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Literatura, crítica e

imaginação histórica:
o desafio literário de
Hayden White e
Dominick LaCapra
Lloyd S. Kramer
O texto faz parte da coletânea A nova história cultural,
organizada pela historiador estadunidense Lynn Hunt,
um marco na historiografia ocidental, construído a
partir da conferência “História francesa: textos e
culturas”, realizada na Universidade da Califórnia, em
Berkeley, em 11 de abril de 1987.

A conferência e a coletânea, capitaneada pela autora de


A invenção dos direitos humanos abre caminho para a
compreensão de que os campos teóricos diversos -
história cultural, história social, virada linguística,
dentre outros - caminhavam todos para o mesmo lugar
quando aceitavam a linguagem e os textos como lugares
de acontecimento da história.
Lloyd S. Kramer
Professor da Universidade da Carolina do Norte
(EUA), tem seus estudos dedicados para a história
moderna europeia, dedicando suas leituras para
temas como intelectuais, política, cultura e
identidades, sobretudo no século XIX francês.

No campo dos estudos teóricos e da configuração


do conhecimento histórico, principalmente para
questões relacionadas a história, linguagens,
discursos e literatura.
Hayden White
Tendo atuado como professor da Universidade da
Califórnia, Hayden White se destacou por trazer categorias
presentes na crítica literária para o campo da história.

Sua obra, sobretudo Meta-história: a imaginação histórica


no século XIX, se voltaria para uma percepção dos
principais estilos, gêneros, figuras de linguagem ou “tropos”
discursivos que definiria a construção do conhecimento
histórico, a exemplo da ironia, metáfora, metonímia ou
sinédoque.

Sua obra recebeu diversas críticas na época em que foi


escrita, sendo acusada de abrir espaço para o relativismo
absoluto e para a perda da cientificidade da história.
Dominick LaCapra
Assim como Hayden White, sua obra se volta para o
campo da linguagem, sobretudo para as abordagens dos
tropos literários na escrita da história.

Seu objeto central de estudo, no entanto, se voltaram


para as memórias do trauma, sobretudo para os modos
como as narrativa sobre o campo de concentração de
Auschwitz foram recebidas.

Também é autor da obra Compreender o outro: povos,


animais, passados, onde aborda o preconceito e o
narcisismo como dimensões históricas do humano.
A virada linguística estadunidense
Os anos 1970 foram um período essencial para o
desenvolvimento da historiografia, porque foi naquela época
que se decantaram todos os movimentos que tinham
começado dentro do novo contexto de “revolução cultural”.

O advento do conceito de pós-modernidade, como condição


histórica de existência, surge, nesse contexto, como uma
crítica radical aos modos tradicionais de se pensar os campos
do conhecimento, dentre eles a história.

Com isso, a influência de autores tais como Michel Foucault,


Jacques Derrida, Julia Kristeva, dentre outros, repercutiriam
em historiadores, sobretudo nos Estados Unidos, que
partiriam dos paradigmas da linguística e da crítica literária
para refletir sobre o próprio estatuto do conhecimento
histórico.
Ao longo de todo o século XX, os historiadores viveram um profundo paradoxo: ao
mesmo tempo que desejavam aproximar-se de outros saberes (antropologia,
sociologia, economia, demografia, etc.), também desejavam fixar quais as bases
epistemológicas de sua própria ciência.

Para Lloyd Kramer, o único traço verdadeiramente distintivo da nova abordagem


cultural da história seria a abrangente influência da crítica literária, que teria
ensinado os historiadores a reconhecer o ativo papel da linguagem, dos textos e das
estruturas narrativas na narração e descrição da realidade histórica.
Nesse contexto, terminou por travar-se uma
intensa “batalha” entre os historiadores que
buscavam ampliar seu arsenal de erudição,
incorporando as discussões da crítica literária
e aqueles que se consideravam os
“verdadeiros” historiadores.

Ao trazer para o centro do debate aquilo que


será conhecido como “história intelectual”,
historiadores como Hayden White e Dominick
LaCapra desafiam as fileiras departamentais,
aproximando-se da filosofia, da literatura e dos
escritos teóricos de culturas do passado,
desconcertando e, por vezes, confundindo
seus adversários.
Expandindo as fronteiras
da história

A reivindicação de uma “Desde a segunda metade do A análise de White sobre a


abordagem mais século XX”, descreve Hayden historiografia moderna
White, “a história tornou-se, sugere, portanto, que os
diversificada da história
cada vez mais, o refúgio de historiadores buscam, mais
traz consigo a influência de
todos os homens ‘sensatos’ frequentemente, fechar as
uma tradição europeia que
que sobressaem por formas alternativas de
vai de Friedrich Nietzsche à
encontrar o simples no
obra de Michel Foucault e compreender o mundo em
complexo e o familiar no
Jacques Derrida. vez de abrir nossa visão.
estranho”.
Expandindo as fronteiras da história

Toda disciplina... é constituída, como viu


Nietzsche de modo muito claro, como
aquilo que ela coloca como proibido aos
que a praticam. Toda disciplina é
constituída como um conjunto de
restrições ao pensamento e à
imaginação, e nenhuma é mais tolhida
por tabus do que a historiografia
ocidental.

Hayden White
Expandindo as fronteiras da história
Para Hayden White, os tabus impostos à história e aos
historiadores os impedem de utilizar insights
originários das artes e da literatura, pois forçam os
historiadores a enfatizar a distinção entre fato e
ficção.

White afirma que, ainda que exista um forte efeito


disciplinador sobre a imaginação e, no caso, a
imaginação histórica, todas as tentativas de descrever
os acontecimentos históricos baseiam-se em
narrativas que levam em conta diferentes formas de
imaginação.
Expandindo as
fronteiras da história
Assim como Hayden White, Dominick LaCapra
também buscou ampliar as definições de história
e desfamiliarizar os textos e contextos do passado.

No entanto, enquanto White buscava mostrar as


estruturas da ficção e suas semelhanças às da
história, LaCapra era ainda mais radical, ao
mostrar que os processos históricos não seguiam
nenhuma ordem ou coerência que, em geral, a
narrativa dos historiadores tentava dar, pois os
acontecimentos sempre foram mais complexos do
que a coerência e a lógica que, em geral, os
historiadores tentam atribuir ao passado.
Expandindo as fronteiras da história
Ainda que tenham convergências na busca por expandir as
fronteiras da disciplinas histórica, Hayden White e Dominick
LaCapra divergem quanto a qual seria as formas dominantes de
compreensão histórica que continuam “amarrando” a disciplina.

White atribui o problema ao tropo discursivo da ironia que, segundo


ele, fundamenta a prática dos historiadores - ironia essa que os
fariam sempre se colocar em um lugar de “verdade” e de
superioridade com relação aos discursos produzidos pela ficção.

Já LaCapra atribuiu essa amarra à proeminência da história social -


ainda que admita sua importância enquanto método de
compreensão do passado - pois afirma que ela, em geral,
desvaloriza outros métodos históricos e simplifica excessivamente a
complexa realidade da experiência histórica.
Crítica literária
O uso de métodos da crítica literária na análise de
textos e problemas históricos suscita questões
imediatas quanto às formas de crítica literária que
podem ser de maior utilidade para o historiador.

Os temas da obra de White relacionam-se, mais


frequentemente, às perspectivas de Michel Foucault,
enquanto LaCapra dá preferência à obra de Jacques
Derrida.

Essas diferenças, porém, nunca se transformaram


em dicotomia absoluta, pois eles também são
influenciados por outros teóricos, tais como Martin
Heidegger e Mikhail Bakhtin.
Crítica literária
Hayden White afirma que, ainda que muitos historiadores
produzam narrativas, eles não discutem as estratégias
discursivas utilizadas para construí-las. É o caso de Leopold
Von Ranke no século XIX e Edward Palmer Thompson no
século XX.

Ao explicar o campo de estratégias narrativas, White


identifica quatro modalidades possíveis de criação de
enredo (romântica, trágica, cômica e satírica), quatro
modalidades possíveis de argumento (formista, mecanicista,
organicista e contextualista) e quatro modalidades de
implicação ideológica (anarquista, radical, conservadora e
liberal), que dependem de quatro tropos literários para se
tornarem familiares (metáfora, metonímia, sinédoque e
ironia).
Crítica literária
A principal referência de Hayden White para essa discussão
será a arqueologia do conhecimento proposta por Michel
Foucault em As palavras e as coisas, onde este afirma que
os discursos possuem certas “estratégias figurativas” nas
ciências humanas.

No entanto, diferente do que pensam seus críticos, Hayden


White não acredita que existe apenas um “ente
fantasmagórico” da linguagem. Nisso, discorda de Derrida,
quando este afirma que “existe apenas a figuração”.

Hayden White, portanto, faz um alerta aos historiadores


para que não embarquem na crítica literária de Derrida,
pois afirma que ela adentra num universo unicamente
metafísico, o que não contribuiria com a história.
Crítica literária
Por sua vez, Dominick LaCapra segue firme em sua
vinculação ao pensamento de Derrida, afirmando que a fuga
de Hayden White do pensamento deste linguista era, também,
a busca por uma certa “base de segurança” epistemológica.

Concordando com Derrida, LaCapra entende que, diferente


do que costumam fazer os historiadores - criar um processo
de oposição entre categorias distintas, tais como bem e mal,
certo e errado, direita e esquerda, identidade e diferença, etc.
- desvirtua a complexidade da experiência e dos textos
históricos.
Romances e poesia
Uma das mais significativas tendências da
moderna historiografia, do modo como White e
LaCapra a descrevem, tem sido a crescente
separação entre as formas narrativas da
literatura criativa e da escrita da história.

No século XIX, os historiadores adotaram um


modelo de representação que se assemelhava aos
desdobramentos contemporâneos no romance e
na ciência, mas preferiram não alterar esse
modelo quando os escritores criativos deram
início aos seus experimentos com a narrativa e
quando os cientistas começaram a levantar novas
questões sobre a natureza da ciência.
Romances e poesia

Ao restringir seus modelos de representação ao


romance realista e à ciência positivista, a
história, segundo White, perdeu de vista sua
origem na imaginação literária.

Esse processo disciplinador ajudou os


historiadores a delimitarem suas reivindicações
científicas, mas, ao mesmo tempo, foi aos
poucos colocando a história às margens de uma
cultura criativa, crítica e intelectual, que se volta
cada vez mais para uma grande variedade das
mais recentes questões linguísticas, teóricas e
experimentais.
Romances e poesia
As inovações da literatura moderna também interessam a
LaCapra que, ainda que admita não ser possível, e talvez
nem desejável, que os historiadores incorporem todas as
estratégias narrativas do romance moderno, ele se mostra
favorável à incorporação de alguns elementos, tais como
o ponto de vista unificado, a cronologia e o narrador
onisciente.

La Capra defende que um dos usos históricos da


linguagem que poderiam ser utilizados pela história
seriam os trocadilhos intentivos, utilizados nas práticas
carnavalescas, bem como almejar as ousadias da
linguagem em romances tais como Madame Bovary, de
Gustave Flaubert, e Ulisses, de James Joyce.
Relativismo e relatividade
A crítica mais comum dos historiadores profissionais
a White e LaCapra diz respeito à suposta tendência
desses autores ao relativismo histórico.

Ao enfatizar os princípios da linguagem e dos códigos


literários, parecem transformar a compreensão
histórica numa percepção de que a linguagem se
bastava, não precisando haver conexão entre a
narrativa e o acontecimento.

No entanto, essa crítica é refutada pelo próprio


Hayden White, ao afirmar que não se enquadraria no
relativismo absoluto, pois afirma que sua questão não
é negar a “verdade” do acontecimento, e sim apenas
discutir as convenções narrativas utilizadas para
discuti-la.
Relativismo e relatividade
A complexa relação entre a forma e o conteúdo do
conhecimento, que White e LaCapra discutem o
tempo todo em sua reflexões epistemológicas, sugere
que é impossível transformar nossos métodos de
erudição sem também modificar nossa compreensão
de realidade histórica.

A literatura e a teoria literária ajudam a ampliar a


busca da realidade histórica, levando às fontes e
formas submersas de pensamento que em geral
desafiam as hierarquias, as relações sociais e as
categorias intelectuais que regem as sociedades
modernas e a historiografia moderna.

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