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I

A história da literatura vem, em nossa época, se fazendo cada vez mais mal afamada –
e, aliás, não de forma imerecida. Os patriarcas da história da literatura tinham como
meta suprema apresentar, por intermédio da história das obras literárias, a ideia da
individualidade nacional a caminho de si mesma.

Nos cursos oferecidos nas universidades, a história da literatura está visivelmente


desaparecendo (...) filólogos de minha geração orgulham-se de ter substituídos os
tradicionais painéis globais ou de época de sua literatura nacional. A produção científica
oferece um quadro semelhante: as empreitadas coletivas, na forma de manuais,
enciclopédias e volumes interpretativos desalojaram as histórias da literatura, tidas por
pretensiosas e pouco sérias.

Já a pesquisa levada a sério, por sua vez, encontra registro em monografia de revistas
especializadas (...) que se contentam com uma abordagem histórico-literária. Seus
autores, porém, veem-se expostos a uma dupla crítica. Dá ótica das disciplinas vizinhas
(...) desenhados como um saber puramente antigo. Tampouco a crítica oriunda da teoria
literária revela-se mais complacente em seu juízo. Tal crítica tem a objetar à história
clássica da literatura que ela apenas se pretende uma forma da escrita da história, mas,
na verdade, move-se numa esfera exterior à dimensão histórica e, ao fazê-lo, falha
igualmente na fundamentação do juízo estético que seu objeto demanda.

A história da literatura, em sua forma mais habitual, costuma esquivar-se do perigo de


uma enumeração meramente cronológica dos fatos ordenando seu material segundo
tendências gerais, gêneros e ‘’outras categorias’’, para então, sob tais rubricas, abordar
as obras individualmente, em sequência cronológica. Ou, então, o historiador da
literatura ordena seu material de forma unilinear, seguindo a cronologia dos grandes
autores e apreciando-os conforme o esquema de ‘’vida e obra’’, e o próprio
desenvolvimento dos gêneros vê-se, assim, inevitavelmente fracionado. Esta última
modalidade de história da literatura corresponde sobretudo ao cânone dos autores da
Antiguidade clássica; já a primeira encontra-se com maior frequência nas literaturas
moderna, que se defrontam com a dificuldade de ter de fazer uma seleção dentre uma
série de autores e obras cujo conjunto mal se consegue divisar.

A qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das condições
históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão-somente de seu posicionamento no
contexto sucessório do desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios da
recepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto à posteridade, critérios estes
de mais difícil apreensão.

II

As citações não constituem apenas um apelo a uma autoridade (...) elas podem também
retomar uma questão antiga visando demonstrar que uma resposta já tornada clássica
não mais se revela satisfatória, que essa própria resposta se fez novamente histórica,
demandando de nós uma renovação da pergunta e de sua solução.

Winlhelm von Humboldr – sobre a tarefa do historiador -, para ele, o historiador da


literatura somente se torna um historiador de fato quando, investigando seu objeto,
encontra aquela ideia fundamental que atravessa a própria série de acontecimentos que
ele tomou por assunto, neles manifestando-se e conectando-se aos acontecimentos do
mundo. Essa ideia fundamental, que, para Shiller, traduz-se ainda no princípio
teleológico geral que nos permite compreender o desenvolvimento da história universal
da humanidade. Quando então, Gervinus se apropria dessa maneira ideal de explicar a
história, ele, imperceptivelmente, coloca a ideia histórica de Humboldt a serviço da
ideologia nacional. Assim, uma história da literatura nacional alemã teria de mostrar de
que forma a direção sensata na qual os gregos haviam colocado a humanidade foi
conscientemente retomado por estes. Isso em função daquela ideia de que somente os
alemães revelavam-se aptos a concretizar em toda a sua pureza.

O ideal da história universal transformou-se, assim, num embaraço para a investigação


histórica. Histórias nacionais somente podiam ser consideradas séries acabadas de
acontecimentos na medida em que culminam politicamente na concretização da
unificação nacional ou, literalmente, no apogeu de um modelo clássico nacional.

Afastando-se da filosofia da história do Iluminismo, o historicismo abandonou não


apenas o modelo teleológico da história universal, como também o princípio
metodológico que marca o historiador universal e seu proceder: vincular o passado ao
presente.

A guinada rumo ao positivismo foi determinada primordialmente por essa crise. A


historiografia literária positivista acreditava estar fazendo da necessidade uma virtude
ao tomar emprestados os métodos das ciências exatas. O resultado é bastante conhecido:
a aplicação dos princípios da explicação puramente casual à história da literatura trouxe
à luz fatores apenas aparentemente determinantes, fez crescer em escala hipertrófica a
pesquisa das fontes e diluiu a peculiaridade específica da obra literária num feixe de
‘’influencias’’ multiplicáveis a gosto. O protesto não tardou a chegar.

Da orientação definida pela escola positivista e pela idealista destacaram-se a sociologia


da literatura e o método imanentista, aprofundando ainda mais o abismo entre poesia e
história. Tal se revela com a máxima nitidez nas teorias literárias antagônicas da escola
marxista e da formalista, escolas estas que constituirão o ponto central de meu
panorama crítico da pré-história e da ciência literária atual.

III

Comum a essas duas escolas é a renúncia ao empirismo cego do positivismo, bem como
à metafísica estética da história do espírito. Por caminhos opostos, ambas tentaram
resolver o problema de como compreender a sucessão histórica das obras literárias
como o nexo da literatura, e ambas mergulharam, por fim, numa aporia cuja solução
teria exigido que se estabelecesse uma nova relação entre a contemplação histórica e a
contemplação estética. A teoria literária marxista entendeu ser sua tarefa demonstrar o
nexo da literatura e seu espelhamento da realidade social. Desnecessário seria determo-
nos aqui nos resultados ingênuos obtidos pela historiografia literária praticada pelo
marxismo vulgar.

Werner Krauss, discutiu essa ampla tese em monografia sobre a literatura do


Iluminismo, mas não a desenvolveu, transformando-a numa história da literatura. Uma
vez que esta última se apega a uma delimitação nacional da história da literatura, ela
segue sempre trilhando velhos caminhos.

A historiografia literária marxista permaneceu, de um modo geral – e sem o admitir-,


presa a uma estética classicista. Isso se revela não apenas nos apriorismos da crítica
literária de Georg Lukács, mas, ainda em maior grau, na construção de cânones, comum
a todas as escolas marxistas e obrigatória até pouco tempo atrás. O conceito de arte
clássica, tomada empresta por Hegel e absolutizado, resultou que toda literatura
moderna que não se deixava apreender segundo o princípio da identidade entre forma e
conteúdo teve de ser desqualificada como arte degenerada da burguesia decadente.

IV
Os primeiros passos dos formalistas deram-se sob o signo de uma rigorosa ênfase no
caráter artístico da literatura. A teoria do método formalista alçou novamente a literatura
à condição de um objeto autônomo de investigação, na medida em que desvinculou a
obra literária de todas as condicionantes históricas e, à maneira de nova linguística
estrutural, definiu em termos puramente funcionais a sua realização específica, como a
soma de todos os procedimentos artísticos nela empregados. O caráter artístico da
literatura deve ser verificado única e exclusivamente a partir da oposição entre
linguagem poética e linguagem prática. A diferenciação entre as duas conduziu ao
conceito de percepção artística. Assim, o processo de percepção da arte surge como um
fim em si mesmo, tendo a perceptividade da forma como seu marco distintivo e o
desvelamento do procedimento como o princípio para uma teoria que, renunciando
conscientemente ao conhecimento histórico, transformou a crítica de arte num método
racional e, ao fazê-lo, produziu feitos de qualidade científica duradoura.

Entretanto, não se pode ignorar um outro feito da escola formalista. A historicidade da


literatura, inicialmente negada, reapareceu ao longo da construção do método
formalista. Com isso, a escola formalista começou a buscar seu próprio caminho de
volta rumo à história. Essa sua nova proposta abandonava a concepção básica desta
última de um processo linear e continuado. A evolução literária não foi um fluxo
supostamente pacífico e gradual da tradição e sim um processo que encerra rupturas,
revoltas de novas escolas e conflitos entre gêneros concorrentes.

A escola formalista aproximou-se bastante de uma nova compreensão histórica da


literatura, abrindo caminho, assim, para uma descoberta de que a pura sincronia é
ilusória, porque todo sistema apresenta-se necessariamente como uma evolução, e esta,
por sua vez, carrega forçosamente um caráter sistemático.

VII

Essa tese volta-se contra o ceticismo disseminado quanto a possibilidade de uma análise
do efeito estético chegar a alcançar a esfera de significação de uma obra literária, em
vez de, em suas tentativas, resultar, na melhor das hipóteses, simplesmente uma
sociologia do gosto.

Efeito estético privilegia o ato da recepção, especificamente, o receptor, e considera


que a leitura é resultado de um diálogo entre o texto e a bagagem cultural do leitor.
Sociologia do gosto é a construção embasada em Bourdieu a qual considera que o gosto
e as práticas de cultura de cada um de nós são resultados de um feixe de condições
específicas de socalização’’.

Wellek argumenta não ser possível, por meios empíricos, determinar um estado de
consciência, quer seja o individual, quer seja o coletivo.

Há, entretanto, meios empíricos nos quais até hoje não se pensou – dados literários a
partir das quais, para cada obra, uma disposição específica do público se deixa
averiguar, disposição esta que antecede tanto a reação psíquica quanto a compreensão
subjetiva do leitor. Assim como em toda experiência real, também na experiência
literária que dá a conhecer pela primeira vez uma obra até então desconhecida há um
‘’saber prévio’’. Ademais, a obra que surge não se apresenta como novidade absoluta
num espaço vazio. Ela desperta a lembrança do já lido.

O caso ideal para a objetivação de tais sistemas históricos-literários de referência é o


daquelas obras que, primeiramente, graças a uma convenção do gênero, do estilo ou da
forma, evocam propositadamente um marcado horizonte de expectativas em seus
leitores para, depois, destruí-lo passo a passo.

Dom Quixote cria a expectativa dos antigos e tão populares romances de cavalaria, e
entrega uma parodia de cavaleiro. Jacques le fataliste evoca o horizonte de expectativa
do então em voga romance de ‘’viagem’’ para contrapor provocativamente um amor
inteiramente não-romanesca.

Mas a possibilidade de objetivação do horizonte de expectativa verifica-se também em


obras historicamente menos delineadas.

VIII

A maneira pela qual uma obra literária, no momento histórico de sua aparição, atende,
supera, decepciona ou contraria as expectativas de seu público inicial oferece-nos
claramente um critério para a determinação de seu valor estético. A distância entre o
horizonte de expectativa e a obra, entre o já conhecido da experiência estética anterior e
a ‘’mudança de horizonte’’ exigida pela acolhida à nova obra, determina, do ponto de
vista da estética da recepção, o caráter artístico da uma obra literária.

A arte ‘’culinária’’ ou ligeira deixa-se caracterizar, segundo a estética da recepção, pelo


fato de não exigir nenhuma mudança de horizonte, mas sim de simplesmente atender a
expectativas que delineiam uma tendência dominante do gosto. O oposto é as obras-
primas?

A relação entre literatura e público não se resolve no fato de cada obra possuir seu
público específico, histórica e sociologicamente definível; há obras que, no momento de
sua publicação, não podem ser relacionadas a nenhum público específico, mas rompem
tão completamente o horizonte conhecido de expectativas literárias que seu público
somente começa a formar-se aos poucos. O poder do novo cânone estético pode vir a
revelar-se no fato de o público passar a sentir como envelhecidas as obras até então de
sucesso, recusando-lhes suas graças.

Madame Bovary e Fanny são, do ponto de vista temático, ambos os romances que
atendiam à expectativa de um novo público. Os dois tratavam de um tema trivial –
adultério em um ambiente burguês ou provinciano. Contudo, para além dos previsíveis
detalhes das cenas eróticas, ambos os autores souberam dar uma guinada sensacional no
triangulo amoroso entorpecido pela convenção. Lançaram uma nova luz sobre o
desgastante tema do ciúme, invertendo a já esperada relação dos três papeis clássicos.

Quando, porém, Madame Bavary, compreendido de início somente por um pequeno


círculo de conhecedores e considerado um marco na história do romance, tornou-se um
sucesso mundial, o público leitor de romances por ele formado sancionou o novo
cânone de expectativas, tornando insuportáveis as debilidades de Feydeau e fazendo
amarelecer qual um best seller do passado as páginas de Fanny.

IX

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