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A querela da história literária

Estamos fartos dos velhos manuais de história da literatura. Haverá sempre os pequenos
livrinhos para a escola e as grandes enciclopédias para consulta. Mas queremos também
compreender alguma coisa. Já não acreditamos que as “épocas” ou “fases” literárias
começam e terminam na hora em ponto dos séculos ou decênios, nem que os poetas e
escritores marcham pelos tempos, militarmente disciplinados em “escolas” ou “grupos”. É
inteiramente antiquado o sistema de apresentar a história literária em capítulos
cronológicos dos quais cada um começa por umas vinte linhas de “panorama político e
social”, depois esboça, o mais didaticamente possível, um “estilo”, para dar, enfim, uma
coleção de pequenos ensaios sobre os principais autores da época, ensainhos sempre
insuficientes por falta de espaço numa obra global. Isto fica muito bem para transmitir
conhecimentos elementares. Mas nada mais. E origina-se daí o mal-entendido terrível de
que uma história literária seja uma “obra didática”. Realmente, aqueles manuais são livros
de utilidade pedagógica; até o livro admirável de Lanson é assim. Mas Já é preciso algo
mais. A história da literatura é uma ciência, e uma das mais difíceis. Não se resolve com
métodos de pedagogia secundária o grande problema que a história literária apresenta: dar
o ideário completo duma nação, e o itinerário espiritual duma humanidade.
Em face de realizações tão grandes como a velha Storia della letteratura italiana, de
Francesco de Sanctis, ou a nova Expression in America, de Ludwig Lewinsohn, que dão a
completa história ideal duma nação, seguindo as suas expressões literárias, e em face das
obras interpretativas de Korff, Matthiessen, Datches, Raymond, Valbuena Prat,
Momigliant e tantos outros, não podemos continuar com manuais didáticos “pour les
petites filles dont on coupe le pain en tartines”. Aliás, não se trata dum dogma imutável. A
história literária é uma disciplina que quase não existe antes do século passado. Descende
das bibliografias enormes do século XVII, das quais as primeiras histórias eram resumos
didáticos, redigidos no estilo “filosófico” do século XVIII e mal vistos pelos especialistas.
Desde então, a história literária percorreu o caminho de todas as crenças: começou como
heresia, e acabou como superstição. Agora é um abuso, “a custom more honour'd in the
breach than the observance“.
O fim é claramente visível: trata-se de quebrar a tirania cronológica. O tempo dos
relógios não uma medida e menos ainda uma determinante dos fatos literários. É digno de
nota que isso foi sentido primeiro na terra dos manuais: na França. Foi lá que se começou
a buscar os fatores realmente determinantes da evolução literária; lá, Sainte-Beuve criou o
método de determinação psicologística e moralística, que degenerou depois em
biografismo; lá, Taine o criou o método de determinação pelo meio, pela raça, pelo
ambiente físico e moral, que parecia tão científico, e cujas complicadas origens em teorias
anteriores, muito vagas reconhecemos hoje melhor (cf. Social Research, 1943, março): lá,
Brunetiére tentava esboçar a evolução dos gêneros literários conforme leis autônomas, e
imaginárias. Todos esses métodos estão hoje justamente abandonados, assim como a
aplicação mecânica do marxismo vulgar, explicando tudo pela intervenção dos deuses
“Revolução agrária” e “Revolução industrial”, abandonados como o estreito nacionalismo
literário, seja de Settembrini, seja de Lasserre, seja de Linden. Fracassaram todas essas
tentativas porque subordinaram violentamente os valores estéticos, isto é, valores
espirituais, a uma determinação mecânica. O que ganhou a história, perdeu a literatura. O
fim foi a resignação cética de Benedetto Croce que já não admite história literária,
contentando-se de coleções de estudos monográficos. Então, a literatura está salva; e a
história desapareceu.
Justamente nesse ponto devemos à discussão os melhores resultados. Analisaram-se
com maior compreensão os blocos estilísticos “Idade Média”, “Renascença”, “Barroco”,
“Classicismo”, “Romantismo”, de modo que esses conceitos, já desacreditados, perderam
todo sabor de escola, revelando a sua riqueza infinita de nuanças e contradições
imanentes, revelando-se como estados de alma e estilos universais de sentir e de viver. Já é
possível esboçar a história multissecular daqueles “blocos estilísticos”, das suas
transformações contraditórias, das suas sutilíssimas relações subterrâneas, das suas
expressões simbólicas estilísticas. Talvez já seja possível dar, em resumo rápido, um
primeiro esboço duna conceito novo da história literária — dum dos muitos possíveis.
Quebrar a tirania cronológica, não significa violentar a cronologia. Aqueles “blocos
estilísticos”, quando se tornam dominantes, coincidem com épocas históricas. Mas não se
abrem com a noite de ano novo de um século; abrem-se com o advento duma nova
geração. O fato não é biológico: é um fato estilístico. A nova geração fala uma nova língua,
de modo que os pais não entendem os filhos, e estes não se entendem com aqueles. Esse
fato está para ser explicado.
A nova geração está sempre diante de uma nova situação social, preparada por lentas
e vagarosas revoluções, as quais preparam também uma nova sensibilidade. Em face da
situação social quebra-se a unidade vital da geração: esta se decompõe em “classes”, fato
em que Karl Mannheim (Kölner Vierteljahrshefte für Soziologie, VIII, 1928) reconhece o
fator variável da evolução. Cada uma dessas classes refere-se a uma tradição, à qual tomam
os elementos da nova expressão: explicam-se assim as oposições estilísticas dentro das
épocas, como entre o gongorismo e o realismo picaresco do barroco; explica-se pela
aplicação do novo estilo aos problemas literários, autônomos, do passado precedente, a
“evolução dos gêneros”; e explicam-se assim, esclarecendo a assincronia entre a expressão
individual e a superestrutura sobrevivente, os casos dos “precursores”, o maior embaraço
de qualquer método cronológico; explicam-se, enfim pela “escolha de tradição” (Auden), as
“renascenças” conseqüentes (e nem sempre classicistas), das quais se compõe a evolução
literária do Ocidente. Mas nessa “escolha de tradição”, as novas gerações estão
inteiramente livres; estão ligadas à sua “paisagem histórica”, à sua “área de cultura” que
constitui o fator invariável da evolução. O efeito da “escolha de tradição” o novo estilo, em
que os fatores “tradição” e “revolução” se encontram, criando novas possibilidades
universais de expressão e de realização em todos os setores da atividade espiritual. Há
literatura, arte, música, religião, filosofia, Estado, economia medievais, renascentistas,
barrocos, classicistas, românticos. Há sobretudo, em todas as épocas, o tipo ideal do
homem daquela época, o homem medieval, o homem renascentista, o homem barroco, o
homem classicista, o homem romântico. E esses homens seriam mudos e, por
conseqüência, esquecidos, se certos entre eles não tivessem dom individual da expressão
artística, realizando-se em obras que ficam.
Essas obras constituem eterno assunto da história literária. A história literária não é
história pura nem critica literária; estuda homens em face de situações históricas, estuda
resultado desse encontro: as formas os assuntos que se condensam em obras definitivas.
Não apenas a história da origem dessas obras, mas também a sua história póstuma, na
qual colaboram todas as gerações seguintes. Essa “interpretabilidade” continua o critério
que a história literária aplica: ocupa-se das obres que não serão esquecidas porque são
inesquecíveis, vivem entre nós e para o futuro. Assim, o passado grisalho está ilumina do
bela luz das muitas auroras que ainda não se levantaram.

OTTO MARIA CARPEAUX


Rio de Janeiro, O jornal, 18 de julho de 1943

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