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para analisar e defender a idéia de migliano, 1983). Este filtro irá se lo
república (cf. Skinner, 1981), quanto calizar no que Paul Veyne chama de
por Racine, para expor a superiori "doutrina das coisas atuais", ou seja,
dade natural que garantia à realeza na certeza de que "a tradição mítica
francesa o seu direito à soberania (cf. transmite um núcleo autêntico que,
Marin, 1981); tanto por Montaigne, no decurso dos séculos, se rodeou de
preocupado em fundar o seu ceticis lendas; apenas estas lendas criam difi
mo na demonstração da inexistência de culdades, mas não o núcleo" (cf. Vey
regras gerais capazes de orientar o ne, 1984, p. 26). Trata-se, portanto,
comportamento humano, quanto por de "extrair o joio do trigo", de extir
Sodin, obcecado precisamente pela par da memória todas as "mistifica
descoberta dessas regras (cf. Kosel ções" que a "ingenuidade popular",
leck, 1985, p. 22). Não importa. To pouco a pouco, acabou por acres
dos procuravam promover suas pers centar.
pectivas através do recurso às expe Mas como isto poderia ser feito?
riências acumuladas da história.
Justamente através dessa "doutrina
Tenho a impressão de que a simples das coisas atuais", da comparação dos
menção desses nomes já deixa claro relatos contidos na tradição com as
que tal concepção, longe de se definir convenções do século corrente, assi
como matéria para especialistas, cons milando-se tudo aquilo que era com
tituía-se em um gênero freqüentado patível com estas convenções como
pelos mais diversos autores, em um verdadeiro e descartando-se o resto
modo de argumentar perfeitamente como mero produto da imaginação.
disponível a qualquer intelectual da l! interessante observar que tal con
época clássica. duta, se já envolve uma posição mode
Note-se, porém, que a ausência de radamente crítica em relação à tradi
especialização - e mesmo aquela va ção, ainda está muito longe de sugerir
riedade de conteúdos - não nos deve qualquer alteração no significado da
fazer supor que houvesse uma com noção clássica de verdade. Continua
pleta e irrestrita comunicação, uma mos num mundo de argumentos mo
absoluta transitividade entre a histó rais, polfticos e sociais, onde o que se
ria e a tradição, isto é, que qualquer busca não é a confirmação da sua ver
relato encontrado na memória coleti dade factual, através de documentos e
va pudesse automaticamente se trans testemunhas, mas a simples afirmação
formar em um exemplo, em um argu de sua plausibilidade, de sua veres
mento legitimameDte incorporado ao s.irnilhança, quer dizer, de sua arti
modelo clássico. . cuIação, mesmo precária, com os va
Ao contrário, vamos assistir com Iares cultuados no presente.
freqüência a um esforço das mais Esta observação é importante por
distintas posições que se utilizavam que, quando nos aproximamos do sur
desta concepção no sentido de encon gimento da concepção moderna de
trar um filtro que garantisse uma re história, o que eDtra em ceDa é pre
lativa crítica das narrativas tradicio cisamente o ideal de uma verdade exa
nais, diminuindo a incidência do ta, rigorosa, que pretende se relacio
"mítico", do "maravilhoso", do inve Dar com as ações dos homens não
rossímil e, conseqüentemente, aumen mais em função dos seus valores, dos
tando o poder de persuasão de cada debates éticos que eles propiciam, mas
uma delas (cf. White, 1985, e Mo- apenas pela preocupação em verificar
R O N D A N O TU R N A 31
se, quando e onde elas efetivamente manda tanta miDúcia e erudição que
existiram. termina por converter o historiador
Desta maneira, só para usar uma em um especialista, em alguém cujo
fórmula cômoda, temos a passagem trabalho se caracteriza pela prática de
de uma verdade que se identifica com um certo método, chave da verdade
a ética e se opõe ao erro, para uma e da mentira, acessível apenas depois
verdade que se confunde com o fato de árduo e demorado aprendizado.
e deseja afastar-se de tudo aquilo que E lógico que toda essa modificação
se aproxima das fronteiras da fanta se deu DO decorrer de um processo de
sia ou da imagioação.' muito longo prazo, 11m processo que
Para alcançar esta meta, o histo virtualmente acompanha em uma li
riador moderno deve em primeiro lu nha paralela, subordinada mas ativa,
gar abandoDar completamente a pre· o desenvolvimento da cODeepção clás
tensão de emprestar um significado sica de história, e que inclui, além de
ético e pedagógico à sua atividade, que debates sobre a importância da "que
passa a buscar um ponto de absoluta rela entre os antigos e os modernos" J
ma e aportou a uma terra desconhe por que não? Por que os indícios da
cida, junto à embocadura de rio imen primazia de Cousin não podem ser le
so" (cf. Abreu. 1929, p. 12). Este rio vados a sério por Capistrano? Pela
seria o Ama7')nas e. dessa maneira, simples e decisiva razão de que a
Cousin teria descoberto o Brasil - e única fonte em que se baseiam as pre
a América - em 1488. tensões francesas não é primária, não
A's razões apresentadas por histo era contemporânea aos acontecimentos
riadores franceses, como Gaffarel, pa que descrevia, não era uma testemu·
ra validar a estória de Cousin, dis nha ocular, mas sim um cronista, Des
tribuem-se fundamentalmente em tor marquets, que publica o seu trabalho
no de dois eixos: o primeiro concen em 1785, quase três séculos depois
tra simplesmente alguns argumentos do sucedido.
históricos e geográficos, pois Dieppe, Este "pecado original", que já nos
sem dúvida, era um importante porto remete a um dos procedimentos bá
francês no século XVI, e os "dieppen sicos da crítica histórica, a busca de
ses eram navegadores ousados, que ti testemunhas visuais, vicia inteiramen
nham-se estendido muito pelo Oceano te o argumento francês, enviando-o
e em algumas partes precedido os para o campo do plausível, do ra
portugueses e castelhanos" (cf. Abreu, zoável, do verossímil, de tudo aquilo
1929, p. 14). Quanto aos argumentos que constituía demonstração suficien
geográficos, eles se referem apenas aO te da verdade para a concepção clás
fato de que "as tradições dieppenses sica de história, mas que agora deixa
falam de uma corrente a favor da de possuir qualquer interesse ou
qual navegara Jean Cousin e esta cor valor.
rente existe: é o Gulf-Stream" (idem). A pretensão francesa, já completa
Já o segundo eixo envolve um ra mente desqualificada por sua incapa
ciocínio muito mais intrincado, pois cidade de apresentar testemunhas
parte de indícios que comprovariam oculares, complica-se ainda mais por
a presença no barco de Cousin, como que boa parte dos seus argumentos
seu imediato. de um marinheiro cas padecem de razoável incoerência,
telhano chamado Pinzon, que não se admitem uma grande margem de am
ria outro senão Martim Alonso Pin bigüidade, podendo, por sua debilida
zon, "o mesmo a quem Colombo con de intrínseca, ser facilmente anula
fiou três anos mais tarde o comando dos. Tome-se a história de Pinzon, por
de um dos três vasos de esquadrilha exemplo: se ele efetivamente desem
em que descobriu o Novo Mundo". penhou o papel que lhe atribuíram os
Conseqüentemente, Cousin não só franceses, por que, então, ficou caia
"descobriu o nosso continente, como do, permitindo que Colombo levasse
foi, graças a um seu companheiro, toda a glória da descoberta da Amé
que Colombo usurpou depois a gló- rica?
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em casos muito especiais, ela passa a que me parece crucial para a inven�
ser encarada com a mais absoluta ção da crítica histórica, tornar o pas�
desconfiança, definida como uma en sado um lugar sombrio. rnjsterioso,
lidade que sofre de uma espécie de presidido pelo esquecimento, onde
corrosão interna, corrosão que só faz praticamente qualquer coisa pode ter
se agravar com a passagem do tempo. acontecido.
Na verdade, é precisamente esta ca Não me parece casual, portanto.
nexão entre memória e tempo que eu que tenha sido precisamente Desla
gostaria de analisar u m pouco mais epoca que apareceram os prtmelros
• • •
porque, na verdade, ele se movimenta mente qual a direção que ele vai to
contra a história, na direção oposta mar, se, como, quando e onde ele
àquela seguida pelo progresso. pode parar (cf. Koselleck, 1 985, e
Tenho inclusive a impressão de Ricoeur, 1 980).
que é esta característica que explica O tempo linear, portanto, além de
uma certa ambigüidade que parece produzir o esquec.imento do passado,
assolar a profissão de historiador pois, gera a mais terrível incerteza, a mais
se por um lado, ela é reconhecida completa imprevisibilidade em rela·
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uma repercussão bem maior do que 1486, quando Bartolomeu Dias des
o seu valor comercial ou militar. cobre o cabo das Tormentas, logo re
Afinal, até este ponto os portugue batizado, por motivos óbvios, para
ses guiavam-se cegamente pela cosmo cabo da Boa Esperança, descoberta .
grafia de Ptolomeu, que dividia "o que representa o ponto final desta
mundo, que conhecia, em três par primeira seqüência da narrativa de
tes, que são a média habitada, a ár Capistrano.
tica não-habitável, por causa do frio, Passando para a segunda seqüência,
c a tropical, inabitável por causa do verificamos que Capistrano continua a
seu ardor" (cL Abreu, 1929, p. 199). perseguir a evolução do comércio en
Ora, a Hvida pululante", as árvores tre Ocidente e Oriente, s6 que agora
. .
Imensas e os mumeras povos encon- com a China, e não com a lndia, o
-
trados na altura do cabo Vercle de que coloca a seda no lugar das espe
nunciavam a " inanidade do saber an ciarias como o mais valioso item do
tigo" e crivavam de dúvidas O até intercâmbio que, pouco a pouco, co
então incontestado sistema de Pto meça a se desenvolver entre as duas
.
lomeu. reglOes .
-
C.omo quem erra uma vez pode er Pouco a pouco, de fato, pois as re
rar outras, os portugueses começaram lações com a China conheceram inú
a se questionar sobre o "mar das meras idas e vindas, ao sabor das
fndias", que Ptolomeu separava com pestes e das guerras, ao " influxo das
pletamente do Atlântico, prolongando constelações nacionais e internacio
a África até o P6lo Sul. Não seria nais: ora os Chins avançavam, e re
possível, encontrar-se uma passagem, , cuavam a gente ocidental, ora dava-se
uma comumcaçao entre os dois o contrário; umas vezes o Celeste im
. -
terístico dos sarracenos, sentia-se a in não o leste como o camjnho mais
diferença completa, se não a tolerân apropriado para se alcançar as lndias.
cia larga e a ausência de quaisquer Note-se que a solução preconizada
preconceitos sectários" (cf. Abreu, por Toscanelli não era exatamente
1929, p. 209), o que levava os euro nova, pois baseava-se em "teorias cor
peus a supor que, use os soubessem rentes desde a antigüidade clássica: a
dirigir bem, os Mongáis poderiam tor esfericidade da terra, a identidade en
nar-se auxiliares prestimosos e alia tre o oceano ocidental da Europa e o
dos da cristandade na luta contra o oceano oriental da Ásia, (e) a pouca
Islã" (idem). Para tanto, o papa e o distância entre as extremidades dos
rei da França cuidaram de enviar uma dois continentes" (cf. Abreu, 1929,
série de embaixadas ao Grande Kã, p. 2 1 4) . Todavia, o '1ue parece ter
embaixadas que, diga-se de passagem, tido um efeito crucial foi justamente
não conseguiram nada de positivo. a enorme riqueza de detalhes, essen
No entanto, para Capistrano, "maior cialmente derivados do texto de Mar
atenção que esses enviados pontifícios co Pala, com que ele recheou a sua
e reais pedem os Palas" (cf. Abreu, proposta, tornando-a extremamente
1929, p. 2 1 0), mercadores venezia concreta e particularizada e, conse�
nos que realizaram a façanha de cons qüentemente, aumentando bastante a
truir um relacionamento estreito e du sua capacidade de persuasão.
radouro com os mongóis. Nosso his Esta capacidade, se não conseguiu
toriador conta com algum detalhe a fazer com que os planos de Toscanelli
viagem dos Palas, mas não me pare rossem bem recebidos na corte por
ce que a viagem em si seja o móvel tuguesa, garantiu-lhe ao menos um
principal do seu interesse. Para ele fervoroso adepto, um desconhecido
.
o que m3JS Importa sao as reper- marinheiro genovês que para lá havia
. -
o Brasil para Portugal. E o Brasil re Jau5S, 1978, p. 92). Se isto é verdade,
cebe desde o primeiro momento lima se o princípio e o fim possuem efeli
ideDtidade específica, um Dome pró vamente esta importância. é evidente
prio inspirado "num pau, matéria·prj· então que o tempo que transcorre en
ma de certa substância vermelha" - tre eles terá que levá-la em conside
lembremo-nos do início do texto -, ração. movimentado-se nllma direção
pois .havia a bordo da expedição de determinada, para a frente, para o
Cabral marinheiros que já tinham vi futuro, para o final, exatamente como
sitado a África e a Ásia, com Vasco O tempo iluminista que discutimos em
da Gama, aptos por conseguinte a função do texto anterior de Capis
evitar o erro de Pinzon e a começar trano.
a desmontar o "ciclo das idéias de No primeiro texto, a lese de con
Toscanelli", atestando que haviam curso de 1883, este tempo linear apa
chegado a uma Dava terra. recia apenas como um suposto, de
Quero observar, antes de prosse importância estratégica, decisiva para
guir, que o texto de Capistrano Dão a própria definição do método histó
se encerra exatamente aquj, contendo rico. mas com uma presença pratica
ainda outras seções que descrevem os mente invisível. provavelmente não
grupos indígeDas que habitavam a pressentida nem mesmo por Capistra
costa brasileira no momento da des no. Neste segundo trabalho, ao con
coberta, informam sobre o restante da trário, de vai desempenhar um papel
viagem de Cabral e sobre os primei central pois, de certa maneira, ao
ros esforços desenvolvidos pelos por ocupar todo o espaço que separa o
tugueSes para explorar e colonizar início do final, ele se confunde com
a terra que tinham acab.do de en a própria narrativa. ou melhor. con·
contrar. segue amoldá-la em função das suas
características particulares.
Entretanto, para os propósitos da
Mas de que forma, especificamen
minha análise, isto é, a discussão da te, essa noção iluminista do tempo ori
narrativa histórica em Capistrano de entaria a narrativa? A certeza de que
Abreu 1., essas outras seções funcio se trata de uma linha que se desloca
nam quase com um anticlímax ou um compulsoriamente em uma única di
post-scriptum. Creio, de fato, que a
reção tem levado alguns autores, em .
conclusão do relato se dá com a des
especial aqueles que adotam lima pos
coberta do Brasil, aDtes do final do
tura mais crítica em relação à concep
texto, pois é somente com ela que o
ção moderna de história (cf. nota 1 5),
longo movimento de contato entre o
a identificarem esta linha com uma
Ocidente e o Oriente, iniciado por
cronologia, o que faria com que os
Alexandre da Macedônia, parece fi
nalmente completar o seu sentido. seus episódios conhecessem apenas
uma sucessão e uma causalidade bem
E é possível, inclusive, aproveitar
simples, um vindo depois do outro, o
mos essa questão para dar partida Da
que vem atrás ocasionando o que vem
análise propriamente dita, pois uma
à frente e assim por dianteP
das características principais da nar
rativa é precisamente a de que ela Ora, o problema é que a narrativa
possui um começo e um fim extrema também comporta outra dimensão
mente bem-<lefinidos e solidamente ar além da episódica, aquela que Paul
ticulados entre si, um como que pres Ricoeur ( 1 980 e 1 ;)84) chama de COIl
supondo a existência do outro (cf. figuracional, dimensão que aponta di-
4� ESTUOOS H I STÓRICOS - 1 9l!l!/ I
9 . Os dois textos Que vamos discutir parecem .t.er uma certa relação com o Que
estão enfeixados em um único volume. acabamos de discutir. Frankstein resulta
publicado em J 929 pela Sociedade Capis diretamente de um desarranjo da ciência
Irano de Abreu e intitulado O descobri Que, procurando planejar e dominar o fu
mento do Brasil. O primeiro deles, a tese turo, termina por produzir o horror; Drá
de concurso de 1883, recebeu o nome de cuia, um senhor medieval Que sobreviveu
RONDA NOTURNA 53
Paris, 1982.
VEYNE. Paul. Acreditavam os gregos nos
JAUSS, Hans Robcrt. Paur une esthétique seus mitos? Brasiliense, São Paulo.
de la réception. Gallimard, Paris, 1978. 1984.
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LOVECRAFT, H. P. EI horror en la lite
--o