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Agra
A INVENÇÃO DA PRÉ-HISTÓRIA
CAMPINA GRANDE - PB
2009
GISCARD F. AGRA
A INVENÇÃO DA PRÉ-HISTÓRIA
a recente produção de um suposto passado remoto
CAMPINA GRANDE - PB
2009
Dedicado a
Fábio Gutemberg Ramos Bezerra de Sousa
SUMÁRIO
Introdução ........................................................................................................ 09
historicos” ......................................................................................................... 38
Anexos ............................................................................................................ 89
Referências .................................................................................................... 92
A INVENÇÃO DA PRÉ-HISTÓRIA: a recente produção de um suposto passado
remoto.
RESUMO
Acredito que o presente livro tem exatamente esse espírito. Ele mostra
a construção histórica do conceito de Pré-História e, em conseqüência, sua
multiplicidade de sentidos e seu engajamento na visão de mundo e nos
interesses daqueles que o criavam ou recriavam. A noção de Pré-História e
seus marcos não são dados imediatamente àqueles que se dispõem a estudar
e pesquisar os eventos passados. Eles não estão isolados e ocultos à espera
de serem revelados por um intrépido cientista à la Indiana Jones, mas são
interpretações. Outra faceta nietzschiana: “não há fatos, apenas interpretações”
(fragmento póstumo 7 [60] final 1886-primavera 1887). Isso significa que as
coisas não estão separadas umas das outras, ou seja, que não há um conceito
puro de Pré-História, válido para todas as épocas e todos os lugares, e que não
há marcos claros e distintos. Os conceitos são fenômenos históricos ligados às
suas condições de surgimento, aos pressupostos e ás necessidades de seus
criadores. Justamente por isso, eles podem ser modificados e assumir
significados diferentes.
O professor Agra, de forma muito consistente, liga essas questões ao
contexto do ensino de História. Deveria uma disciplina de Pré-História constar
na grade curricular de um curso superior de História? É a partir dessa reflexão
que o autor percebe – e faz-nos perceber – o quanto a história contemporânea
perpassa o conceito de Pré-História. Assim, o autor “desnaturaliza” essa noção,
mostrando sua construção pelos historiadores positivistas franceses do século
XIX, pelos historiadores da Escola dos Annales do início do século XX e pelos
historiadores dos anos 1960. Surge daí questões muito interessantes que
atingem o âmbito filosófico, como, por exemplo: “Se a pré-história tem início
com o aparecimento da humanidade, a qual espécie devemos atribuir o início
da pré-história?”. Essa questão toca no próprio conceito de humanidade.
Lembrar que, geralmente, chamamos de pré-históricos animais que se
extinguiram muito antes do aparecimento do homem. Já nos perguntamos qual
o significado disso? Enfim, no final do Capítulo I, lemos: “A Pré-História,
portanto, é um combate: combate travado entre vários grupos que almejam
ocupar os espaços autorizados de produção do conhecimento e da história,
confrontando os seus enunciados e visando estabelecê-los como a verdade
sobre o passado remoto da humanidade”. Essa abordagem nos remete tanto à
microfísica do poder de Foucault quanto ao pensamento de Nietzsche.
Os grandes marcos pré-históricos, a “Revolução do Neolítico” (a
sedentarização do homem) e a “Revolução do Paleolítico Superior” (surgimento
da capacidade de simbolização e significação), têm sobre eles lançados o olhar
de suspeita. Essas “revoluções” são também invenções que atendem aos
interesses de seus inventores. Aqui, noções contemporâneas de pensamento,
inteligência e arte entram em jogo. Na conclusão, aparece mais uma faceta
nietzschiana: quem não sabe rir de si próprio não é confiável. No final do livro,
o autor apresenta algumas representações cinematográficas da Pré-História e
reflete sobre seu próprio texto:
INTRODUÇÃO
1
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral [trad. Fernando de
Moraes Barros]. São Paulo: Hedra, 2008, p. 25.
10
2
Cf. DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque [trad. Regina Grisse de
Agostino]. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1991.
11
3
Cf. ENGELS, Friedrich. “Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem”.
Domínio Público – biblioteca digital desenvolvida em software livre. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_action=&co_obr
a=2272&co_midia=2. Acesso em: 28 jun. 2009.
4
NEVES, Walter Alves. “E no princípio... era o macaco!”. Estudos Avançados, São Paulo, v.
20, n. 58, 2006, pp. 253.
12
5
Cf. POPPER, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica [trad. Leônidas Hegenberg e Octanny
Silveira da Mota]. 12 ed. São Paulo, Cultrix, 2006.
6
PRESSE, France. "Neandertal e Homo sapiens são efetivamente espécies distintas". Folha
on line. Abril/2004. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u11650.s
html. Acesso em: 30 jul. 2009.
13
CAPÍTULO I:
A fabricação de um conceito
1
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru,
SP: Edusc, 2007, p. 19. Para uma relação de obras acadêmicas que trabalharam com o tema
sobre invenção, conferir a primeira nota de rodapé do texto, nas páginas 36 e 37, onde o
autor enumera por volta de trinta e duas obras contendo o termo no título ou no subtítulo.
2
Ibid., p. 19-20.
16
inventado tardiamente, bem posterior aos eventos que pretende relatar. Desta
maneira, estou afirmando que o conceito é elaborado segundo uma convenção
humana, e não segundo uma lógica natural. Não pré-existe ao homem, mas é
produto de sua laboração.
Quando afirmo isto, estou dizendo que é apenas em um determinado
momento, fundado sob uma determinada racionalidade, que se fabricou o
conceito de “pré-história” para se referir a um tempo e a pessoas que ou
viveram nesse tempo, ou viveram em outros tempos mas como se naquele
vivessem.
A pré-história foi inventada pelos historiadores da Escola Metódica
francesa do século XIX, a chamada escola positivista da história3. Na
pretensão de tornar o conhecimento histórico uma ciência, distanciando-o das
abordagens mais filosóficas, os metódicos pretenderam “revelar” as “leis” que
regiam as sociedades, aplicando, desta maneira, à história, um modelo de
produção científica oriundo das ciências naturais desde pelo menos o século
XVI. Tal modelo de produção científica, o chamado paradigma dominante,
baseava-se na observação, na descrição e na sistematização dos eventos da
natureza, submetendo-os a uma determinada racionalidade que tinha como
pretensão central a redução dos elementos do mundo a um conhecimento
objetivo por meio da quantificação4. Era reduzindo a “realidade” do mundo a
números e dados empiricamente verificáveis que os cientistas pensavam ser
capazes de conhecer as leis que o regiam e, assim, ordená-lo e normatizá-lo
de acordo com esse conhecimento.
Se até o século XVIII esse modelo científico, cartesiano e newtoniano,
informou a produção do conhecimento nas chamadas ciências naturais –
Química, Física, Biologia, Matemática, Geometria, etc. –, foi no século XIX que
outros ramos do conhecimento galgaram o status científico e, para isto, tiveram
que adequar suas falas ao paradigma de produção vigente no campo. Refiro-
me à Antropologia, à Geografia, à Sociologia e, especialmente, à História que
pretenderam, lançando olhares para as sociedades humanas, descobrir as leis
3
Cf. REIS, José Carlos. A história entre a filosofia e a ciência. 3 ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.
4
Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto, PT:
Afrontamento, 1998.
17
5
Cf. DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol; SÁ, Magali Romero; GLICK, Thomas (orgs.). A
recepção do darwinismo no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003 [História e Saúde]
6
Cf. LARAIA, Roque de Barros. Cultura – um conceito antropológico. 23 ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2009; REIS, 2006.
7
Cf. BRAGA, Marcos; GUERRA, Andréia et REIS, José Cláudio. Breve história da ciência
moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008 [Vol. 4: A belle epoque da ciência].
18
8
Lembro, neste momento, que a escola Metódica esteve indissoluvelmente ligada ao Estado
em sua faceta liberal e, portanto, via-o enquanto o ente responsável pela segurança das
relações sociais, conforme havia sido estabelecido por pensadores do Iluminismo, como
Rousseau e Montesquieu. Foi justamente essa segurança, que tinha como fundamentos a
manutenção dos acordos, a proteção à propriedade privada, a dissolução dos conflitos e o
monopólio da força, que levou o Estado a ser considerado como protetor e guardião da
sociedade, e que levou também à confiança nas informações prestadas ou legitimadas por
sua escrita.
19
9
Discordo, portanto, de análises que afirmam que “a idéia de que as sociedade ágrafas, ou
seja, sociedades sem escrita, não teriam história nasceu com a vertente positivista da
historiografia ocidental do século XIX” (SILVA, Kalina Vanderlei et SILVA Maciel Henrique.
“Pré-história”. In: Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2005, p. 343). A
meu ver, isto é uma maneira simplista demais de abordar a vertente metódica. O que eles
negam não é a existência da história das sociedades sem escrita, mas a possibilidade de
essa história ser recuperada na inexistência de documentos escritos que, conforme visto,
consistiam no liame estabelecido entre presente e passado da sociedade. A história existia,
sim, mas sem fontes, ela não poderia ser acessada e, portanto, não seria recuperável.
10
Cf. SILVA et SILVA, 2005, p. 342.
11
Utilizo, ao longo de todo este texto, para datas muito anteriores, o formato “AP”, ou seja,
“antes do tempo presente”, e não mais “a.C.”, conforme a datação cristã, já há algum tempo
abandonada pelos estudos arqueológicos. O marco zero da periodização AP, segundo
convencionado pela comunidade científica internacional, é o ano de 1950, devido ao
desenvolvimento do teste de carbono-14, utilizado para datar grande quantidade de vestígios
fósseis, arqueológicos e paleontológicos, encontrados nas últimas décadas (NEVES, Walter
Alves. “Pioneiros da América”. História Viva, São Paulo, ano VI, n. 62, p. 40-45, dez/2008
[Dossiê Primeiros Humanos]).
12
Cf. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da
Historiografia. São Paulo: UNESP, 1997.
20
próprio seio dos Annales, propondo análises a partir de estruturas mais gerais,
tais como as econômicas, culturais, religiosas, ou mesmo políticas, informando
autores como Fernand Braudel, Philippe Ariès, Jacques Le Goff, Geoffrey
Barraclough e Eric Hobsbawm, cujos estudos extrapolaram as periodizações
tradicionais e produziram conceitos tais como “longo século XVI”, “longa Idade
Média”, “breve século XX”, dentre outros14.
O lugar estabelecido para a pré-história, neste ínterim, seria o de
anteceder o período histórico propriamente dito. Nas etapas sucessivas de
idades, a pré-histórica estaria no início dos tempos, no início da humanidade,
precederia a Idade Antiga. O uso do termo “pré”, portanto, dá idéia de uma
leitura linear dos tempos, conforme a sucessão de idades estabelecida pelo
conhecimento científico do século XIX. Expressa também a construção de um
tempo a partir de uma leitura que lhe é posterior, de um tempo que é
construído apenas em função daquele que lhe sucede. Afinal, qual seria a
validade de um termo como “pré-história” se não houvesse o termo “história”?
Desta maneira, a “pré-história” acabou sendo construída não enquanto um
tempo com legitimidade própria de existir por si mesmo, mas tão somente
enquanto um tempo que antecedeu a história.
Assim, o tempo vivido anterior à invenção da escrita foi nomeado e,
muitas vezes, estudado a contrapelo, em função não daquilo que ele
supostamente foi, mas em função daquilo que ele supostamente não foi: ele
não produziu a escrita, ele não instituiu Estados, ele foi uma “não-história”15. O
etnocentrismo do pesquisador, elemento condenado nos estudos sobre as
sociedades desde o início do século XX na Antropologia e mais recentemente
14
Cf. ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente da Idade Média aos nossos dias [trad.
Priscila Viana de Siqueira]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003; BARRACLOUGH, Geoffrey.
Introdução à história contemporânea [trad. Álvaro Cabral]. 5 ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1983; BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Felipe
II. São Paulo: Martins Fontes, 1983; HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. O breve século
XX: 1914-1991. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; LE GOFF, Jacques. Uma
longa Idade Média [trad. Marcos de Castro]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
15
Nesta linha de pensamento, interessante é a leitura de Pierre Clastres ao enunciar, por meio
da experiência com povos tribais da América do Sul, que o Estado é figura prescindível da
vida em sociedade, podendo, esta, solucionar seus litígios por outros meios que não a
invenção dessa entidade abstrata tão exaltada pelo pensamento moderno (Cf. CLASTRES,
Pierre. A sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac
Naify, 2003). Confira também, com este mesmo raciocínio, ROCHA, José Manuel de
Sacadura. Antropologia jurídica – para uma filosofia antropológica do Direito. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2008.
22
16
Cf. BACHELARD, Gaston. A Formação do Espírito Científico: contribuição para uma
psicanálise do conhecimento [trad. Estela dos Santos Abreu]. 6 ed. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2005, 315p.
23
“menos evoluídas” nas diversas linhas evolutivas que eram formuladas pelas
ciências sociais, conforme já anteriormente visto.
A atitude científica do século XIX, portanto, na pretensão de obter um
conhecimento mais objetivo sobre o seu objeto, acabou produzindo o próprio
objeto a partir das lentes dos pesquisadores. Na medida em que pensavam
estar meramente descrevendo objetivamente as sociedades e comunidades
que não escreviam relatos sobre si próprias, os cientistas estavam
interpretando o cotidiano de tais sujeitos a partir de um lugar, que era o de
pesquisadores que pensavam ser a ciência e o método científico os degraus
mais altos da evolução do pensamento humano. Desta maneira, esses
cientistas narraram as vidas de tais sociedades olhando de cima, um olhar que
se instituía enquanto superior, civilizado. Quando “descreviam” as práticas
sociais, estavam, de fato, lendo-as a partir de seus lugares. Estavam aplicando
os seus valores a sociedades que professavam outros valores, que praticavam
o cotidiano informadas por outros lugares. Tais pesquisadores, portanto, ao
descreverem seus objetos de estudo, estavam, em verdade, inventando tal
objeto17.
Tal leitura, entretanto, trazia consigo diversos problemas de ordem
prática. Primeiro, se há que se considerar a pré-história enquanto um período
anterior à história, que teria terminado quando da invenção da escrita há 6 ou 4
mil anos, então como enxergar a existência de povos que não elaboraram a
escrita posteriormente a tal data? Tem-se, por exemplo, como convenção o
enunciado que afirma que a pré-história no chamado Novo Mundo apenas
terminou quando da chegada dos portugueses e espanhóis no século XV, que
trouxeram consigo a escrita e, portanto, a história. Afirma-se que certos povos,
ainda nos dias de hoje, vivem na pré-história justamente por não terem
desenvolvido a escrita. Desta maneira, enquanto para os europeus a pré-
17
Interessante aqui ressaltar a crítica que Foucault faz a essa produção que o cientista faz de
seu objeto, atitude que não apenas fica restrita ao tratamento sobre a produção do
conhecimento, mas que, de maneira geral, ressoa nas práticas realizadas em nome da
ciência, legitimadas pela produção do conhecimento, tais como as práticas psiquiátricas que
inventam os corpos e os sintomas dos loucos ao nomearem-no e classificarem-no sob a “luz”
da ciência (Cf. FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico [trad. Eduardo Brandão]. São
Paulo: Martins Fontes, 2006).
24
história terminou há 6 ou 4 mil anos, para alguns povos ela ainda persiste.
Como interpretar essa multiplicidade de tempos em que vivem as sociedades?
Simplesmente, partindo dessa premissa, enxergo como a pré-história
não pode ser vista enquanto um “período” ou uma “idade” de pretensão
universal como pretendiam os metódicos, mas que ela consiste em um
conceito que visa identificar a relação cultural que certos grupos estabelecem
com a forma escrita de gravar informações em um determinado suporte
material. Se essa relação existiu, então não há que se falar em pré-história,
mas em história propriamente dita; se não existiu, então os grupos serão
considerados “pré-históricos”, tenham eles existido milênios atrás ou sejam
eles contemporâneos nossos.
Novamente, portanto, vejo como o conceito trabalha a contrapelo: não
representa aquilo que uma sociedade foi, mas o que ela não foi. E considerar a
escrita como elemento diferenciador é justamente exaltar um único elemento
da cultura como instaurador de uma diferenciação estabelecida pela própria
ciência. Hoje se sabe que as sociedades legaram diversas maneiras de
investigação de seu passado por meio da produção da cultura material,
podendo até mesmo a ciência investigar elementos da cultura imaterial a partir
da formulação de hipóteses as mais diversas sobre as maneiras de ver e ler o
mundo daqueles homens. De todos esses elementos sobre os quais se pode
debruçar para investigar tais povos, a escrita é tão somente um deles, e nem
mesmo o mais importante para essas próprias comunidades, já que foi um
elemento que sequer nasceu com pretensões de registrar histórias e cotidiano
de seus inventores, mas teve como berço o comércio e o registro de
mercadorias, numa possível pretensão de propiciar maior segurança para as
relações econômicas18. Se, portanto, foi em nome da segurança dessas
relações que os sumérios passaram a registrar as atividades comerciais e
agrícolas em placas de barro por meio da escrita cuneiforme há milhares de
anos, foi também em nome da segurança da produção do conhecimento
18
JEAN, Georges. A escrita – memória dos homens [trad. Lídia da Motta Amaral]. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2008, 160p. [Coleção Descobertas]
25
19
Para considerações sobre a construção da sociedade moderna pautada na escritura e na
segurança que esta fornece em contraposição à desconfiança da oralidade, cf.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. “As dobras do dizer: da (im)possibilidade da
história oral”. In: ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 229-234.
26
20
Cf. ROCHA, 2008.
21
ENCICLOPÉDIA BARSA. Rio de Janeiro, São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil
Publicações Ltda., 1987, p. 487 [vol. 12] (grifo meu).
27
22
CÁCERES, Florival. História Geral. 4 ed. São Paulo: Moderna, 1996, p. 12 (grifo meu).
23
MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História das cavernas ao Terceiro
Milênio. São Paulo: Moderna, 1997, p. 04 (grifo meu).
24
SILVA et SILVA, 2006, p. 342 (grifo meu).
25
MELO, Josemir Camilo de. “A pré-história da Paraíba”. In: SOUZA, Antonio Clarindo Barbosa
de et al. História da Paraíba. Campina Grande, PB: EDUFCG, 2007, p. 15 (grifo meu). Sobre
a relação de Melo com a disciplina Pré-História, confira o texto de sua autoria que prefacia a
obra AZEVEDO, Carlos Alberto. Arqueologia – estudos & pesquisas. João Pessoa: Idéia,
2008.
28
26
HAFF, Günter. “Tese 1: Deus criou a terra e o homem”. In: A origem da humanidade – a
maravilhosa história da criação do homem. São Paulo: Círculo do Livro/ Livros Abril, 1979, p.
08; MORAIS, Jomar. “O desenho inteligente”. Superinteressante, ed. 177, São Paulo: Abril,
Junho/2002, pp. 95-99.
27
Para mais detalhes sobre o criacionismo no Brasil, confira a homepage oficial da Sociedade
Criacionista Brasileira, no endereço http://www.scb.org.br/, cujo mais recente encontro, o 6º
Seminário “A Filosofia das Origens”, em que foram reafirmadas várias postulações do
criacionismo clássico, dentre eles a juventude da Terra, ocorreu na cidade de Campina
Grande, Paraíba, em outubro de 2008.
29
erguidos como se querendo dizer ao leitor “eu não deveria estar aqui!”... 28; a
obra de Dorling Kindersley, intitulada A vida na pré-história, de 1995, que traz
na capa cerca de quatro imagens relativas a dinossauros rodeando a figura
central de um provável Homo habilis, lascando uma pedra29; a publicação de
Douglas Palmer, de nome Atlas do mundo pré-histórico, de 2000, também
repleta de dinossauros terrestres e pterodáctilos ilustrando a capa de uma obra
que se propõe analisar a “história da terra ao longo de quatro mil (sic) e
quinhentos milhões de anos”30; o livro de Robert Muir Wood, A pré-história e os
dinossauros, de 200531, bem como o de Maria Lorente, Atlas de dinossauros,
animais pré-históricos e outros, publicado em 200832, que deixam a confusão
bem clara já no próprio título; A Pré-História, de 2008, da coleção Perguntas e
Respostas, dirigido a um público infanto-juvenil, que traz em sua capa a
imagem de um velociraptor bem ao estilo Steven Spielberg, com a boca aberta
e os dentes à mostra para o leitor, como se pego em plena ação de caça33; e,
fora do mundo estritamente acadêmico, para o grande público, notícias como
as veiculadas pelo Jornal da Paraíba que dão conta das “marcas da pré-
história bem vivas na Paraíba” como sendo os fósseis dos animais que teriam
aí vivido há cerca de 40 milhões de anos34; para o público infantil, o lançamento
da obra Manual da Pré-História do Horácio, de 2003, onde o dinossauro
Horácio, personagem da Turma da Mônica, apresenta o “mundo pré-histórico”,
ou seja, mostra como era o planeta desde o seu surgimento até o advento dos
homens, passando, é obvio, pelos dinossauros35; e na internet encontra-se o
portal Atlas Virtual da Pré-História, basicamente dedicado a animais extintos,
28
ENTWISTLE, Theodore Rowland. Vida na Pré-História. Lisboa, PT: Estampa, 1993, 66p.
[Biblioteca Informação Juvenil].
29
KINDERSLEY, Dorling. A vida na pré-história. Lisboa, PT: Verbo, 1995 [Enciclopédia
Visual].
30
PALMER, Douglas. Atlas do mundo pré-histórico. Lisboa, PT: Estampa, 2000, 224p.
[Atlas].
31
WOOD, Robert Muir. A pré-história e os dinossauros. [s.l.]: Impala, 2005, 64p. [Primeira
Enciclopédia Familiar].
32
LORENTE, Maria. Atlas de dinossauros, animais pré-históricos e outros. [s.l.]: Girassol,
2008, 44p.
33
A PRÉ-HISTÓRIA. [s.l.] Todolivro, 2008, 32p [Perguntas e Respostas].
34
SANTOS, Jacqueline. “Marcas da pré-história bem vivas na Paraíba” et “Há 45 milhões de
anos, João Pessoa estava sob o mar”. Jornal da Paraíba. Caderno Economia, edição de
02/08/2009, pp. 17-18.
35
MANUAL da Pré-História do Horácio. Rio de Janeiro: Globo, 2003, 224p. [Coleção
Manuais da Turma da Mônica, vol. 10]
31
36
ATLAS VIRTUAL da Pré-História. Disponível em: http://www.avph.com.br. Acesso em: 12
jul. 2009.
37
RODRIGUES, Rosicler Martins. O homem na pré-história. 23 ed. São Paulo: Moderna,
2003, 56p. [Desafios].
32
38
Para uma relação das espécies, cf. NEVES, Walter Alves. “E no princípio... era o macaco!”.
Estudos Avançados, São Paulo, v. 20, n. 58, 2006, pp. 249-285.
39
Em apresentação à obra O Colar do Neandertal, de Arsuaga, Walter Neves, paleantropólogo
brasileiro critica o que ele diz ser a “posição da arqueologia espanhola” que admite uma
“humanização demasiada dos hominídeos que precederam nossa espécie, sobretudo os
neandertais”. Segundo ele, “a maioria dos autores concorda, hoje, que não se pode atribuir o
status de humanidade a ancestrais que não apresentavam em sua mente a capacidade de
expressão simbólica”, o que teria acontecido apenas há cerca de 50 mil anos (NEVES, Walter
Alves. “Apresentação ao público brasileiro”. In: ARSUAGA, Juan Luis. O colar do neandertal
– em busca dos primeiros pensadores [trad. André de Oliveira Lima]. São Paulo: Globo, 2005.
33
40
CÁCERES, 1996, p. 12.
41
ENCICLOPÉDIA BARSA, 1987, p. 487.
42
SILVA et SILVA, 2006, p. 11.
34
43
Cf. FOLEY, Robert. Os humanos antes da humanidade – uma perspectiva evolucionista.
São Paulo: Unesp, 2003; ARSUAGA, Juan Luis. O colar do neandertal: em busca dos
primeiros pensadores. São Paulo: Globo, 2005; KLEIN, Richard G. et EDGAR, Blake. O
despertar da cultura – a polêmica teoria sobre a origem da criatividade humana [trad. Ana
Lúcia Vieira de Andrade]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005; NEVES, Walter Alves et PILÓ,
Luís Beethoven. O povo de Luzia – em busca dos primeiros americanos. São Paulo: Globo,
2008; dentre outros.
35
fixação e a cristalização da memória desses povos por meio das inscrições que
originaram a escrita foram eventos que possibilitaram o nosso passado
nomeado de Antigüidade. O período pré-histórico, portanto, teria lançado a
base sobre a qual se fundaram as grandes civilizações da Idade Antiga, então
por que não considerá-lo como parte integrante dessa Antigüidade?
Ora, essa é uma alternativa, mas que acaba não resolvendo uma
questão premente: ao incorporar a Pré-História à Idade Antiga, atualiza-se a
leitura metódica de ler a história por meio de períodos sucessivos com marcos
fundadores. Apenas some o nome, mas a problemática de uma certa leitura de
história que não se sustenta mais nos dias de hoje persiste.
Por que não nomear como História Contemporânea? Pode parecer
estranho chamar a pré-história de História Contemporânea, mas conforme
tenho dito desde as primeiras linhas deste capítulo, a pré-história é uma
invenção discursiva nascida no século XIX, e todo o conhecimento sobre esse
passado remoto foi, em verdade, elaborado ao longo dos séculos XIX, XX e
XXI segundo o que cada um desses momentos da história entendia por modelo
de produção do conhecimento científico. Conforme veremos mais à frente,
foram as noções de ciência presentes na academia nos dois últimos séculos
que legaram à nossa sociedade as leituras de pré-história que temos hoje. Não
escrevem os arqueólogos exatamente o que aconteceu nesse passado pré-
histórico, mas escrevem tão somente aquilo que eles imaginam que aconteceu
a partir do contato com as diversas fontes arqueológicas, genéticas, artísticas,
etc. Elaboram eles um discurso fundado nesses elementos, mas elaborado a
partir do lugar social que ocupam, informados por uma tradição científica que
os possibilita ler tais vestígios do passado de uma maneira, e não de outra.
Esses lugares foram sendo modificados ao longo dos últimos séculos, por isso
mesmo a leitura sobre o período “pré-histórico” também foi sendo modificada,
reelaborada, reinventada. Essa reelaboração fez com que o que pensavam os
arqueólogos no início do século XX fosse considerado equívoco no final do
mesmo século. E cada um destes lugares é informado por modelos de
produção científica presentes em cada momento em que se elabora o
enunciado. E a invenção da pré-história está intrinsecamente ligada aos
enunciados que foram elaborados pela ciência nos últimos dois séculos. Desta
36
44
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
37
CAPÍTULO II:
Produzindo revoluções
– a invenção de “marcos pré-
pré-históricos”
históricos”
1
O nome Neolítico advém da observação da mudança na produção de instrumentos líticos que
passaram a ser mais requintados do que os seus antecessores. Coloca-se, tradicionalmente,
que no Paleolítico, período que teria antecedido o Neolítico, o homem produzia instrumentos
como furadores, raspadores, pontas de flechas, cunhas, buril, etc., por meio do lascamento
da pedra, enquanto que no Neolítico a produção de machadinhas, pedras de mó, etc., era
feita por meio do polimento da pedra (Cf. MELO, Josemir Camilo de. “A pré-história da
Paraíba”. In: SOUZA, Antonio Clarindo Barbosa de et al. História da Paraíba. Campina
Grande, PB: EDUFCG, 2007, p. 18).
40
2
ENCICLOPÉDIA BARSA. Rio de Janeiro, São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil
Publicações Ltda., 1987, p. 496 [vol. 12] (grifo meu).
3
MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História das cavernas ao Terceiro
Milênio. São Paulo: Moderna, 1997, p. 06.
4
CÁCERES, Florival. História Geral. 4 ed. São Paulo: Moderna, 1996, p. 16-17.
5
MOTA et BRAICK, op. cit., p. 06.
6
CÁCERES, op. cit., p. 16-17 (grifo do autor).
41
7
ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Fernand Braudel e as ciências humanas [trad. Jurandir
Malerba]. Londrina: Eduel, 2003, p. 55 [Biblioteca Universitária].
8
Grahame Clark, já na década de 1970, criticava a expressão “revolução neolítica” por
perceber que os elementos que caracterizariam esse evento se deram de maneira aleatória,
com grandes intervalos de tempo distanciando um do outro, além de não terem relação direta
com a produção de pedras polidas que dá nome ao “período”. “(...) O desenvolvimento da
agricultura dificilmente pode ser descrito como ‘neolítico’, pois foi anterior ao surgimento das
comunidades que fizeram uso de uma tecnologia neolítica integral, tal como esta tem sido
entendida há mais de um século. (...) A ‘revolução neolítica’ não foi nem uma revolução nem
tampouco neolítica; foi, acima de tudo, uma transformação iniciada pelas culturas do
Paleolítico Superior e completada pelas comunidades mesolíticas” (CLARK, Grahame. A Pré-
História [trad. Edmond Jorge]. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 77).
42
menos 10 mil anos atrás, em regiões como a Europa e o norte da África. Esse
evento, que consiste, na visão tradicional, em marco fundador do “período pré-
histórico” chamado Neolítico, é considerado revolucionário por ter levado a
modificações profundas nas maneiras de viver dos grupos de caçadores-
coletores. Reúne, desta maneira, elementos aparentemente simples, mas que
alteraram drasticamente o modo de vida e as relações com a natureza que tais
homem mantinham há tempos.
Se por um lado a revolução neolítica levou o homem a sedentarizar-se,
a fixar-se em um espaço geográfico, sendo justamente este um requisito para a
formação dos primeiros grupos aldeados e, com o tempo, das primeiras
cidades de onde nascerão os primeiros Impérios, por outro lado vê-se a
modificação da relação do homem com a natureza que, conforme já apontado
por alguns autores citados anteriormente, também se alterou. Tanto a
agricultura como a domesticação de animais consistiram em maneiras de o
homem exercer o seu poder e controle sobre elementos do mundo natural. Ao
trabalhar a terra por meio do plantio, o homem trazia para si a responsabilidade
que fora da natureza por bilhões de anos. Era a natureza que, por meio de
diversos eventos climáticos, cultivava a terra, fazendo dela nascer vida vegetal
que serviria de alimento para tantas espécies espalhadas pelo mundo. Quando
o homem passou a cultivar a terra ele próprio, tomou para si aquela função.
Estava, portanto, controlando a ação natural, acelerando seus resultados a fim
de obter mais rapidamente os produtos que desejava. Passou a distanciar-se
do lugar que havia ocupado por milhares de anos, de ser natural, inserido no
contexto do mundo virgem, intocável, e tornou-se colonizador, produtor de
cultura e, desta maneira, transformador da natureza9.
É, portanto, o papel de colonizador da natureza que se sobressai como
ponto de viragem do Neolítico. Não que o homem não a alterasse antes, mas
os estudiosos compreendem que foi com a sedentarização que ele passou a
modificar mais drasticamente o espaço natural, pois seccionou certos espaços
para trabalhar a agricultura, alterando, portanto, nesses espaços, os tempos
naturais de produção de elementos que servissem como alimento animal.
9
Cf. DUARTE, Regina Horta. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. [História
&... Reflexões]
43
científico moderno10. O homem moderno, por sua vez, deveria ser um sujeito
comandado pela racionalidade que não dependesse da natureza para
sobreviver, mas que conseguisse produzir de maneira autônoma tudo aquilo de
que necessitasse através do bom uso da ciência. Enquanto o homem fosse
subjugado pelos fenômenos naturais estaria no estágio de menoridade,
conforme enunciava Kant, em análise de Foucault11. O homem, portanto, por
meio da razão ilustrada, deveria ser capaz de superar a sua milenar
dependência da natureza, posto que esta era caótica e imprevisível, enquanto
a ação racional do homem era ordenada e previsível. Inverter a relação com a
natureza, saindo do estado de subjugado para o de colonizador, era uma
atitude de modernidade, e isto deveria ser feito através das ciências naturais
que permitiriam ao homem conhecer os fenômenos naturais em sua “essência”,
em sua pureza, para que, assim, pudesse prevê-los ou intervir sobre eles, e
não estar mais apenas submetido a eles. De coadjuvantes, os homens
passaram, mais do que antes, a protagonistas numa história que pretendeu
superar a natureza e primar pela construção de um mundo não mais natural,
mas científico12.
Assim, foi com essa preocupação do final do século XIX e início do XX
que os cientistas tentaram estabelecer quando, na história, o homem começou
a se tornar mais autônomo em sua relação com a natureza. Enunciaram,
assim, que isso aconteceu quando ele inventou maneiras de controlar e
organizar a produção de alimentos vegetais por meio do plantio, bem como se
tornou mais autônomo em relação aos demais animais quando passou a
domesticá-los, exercendo, portanto, livre controle sobre eles.
Por outro lado, a sedentarização respondia a preocupações mais
diretamente relacionadas à vertente teórica que inventou o próprio conceito de
pré-história, conforme discuti no primeiro capítulo . A formação de todo e
10
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. [trad. Carlos Irineu da Costa]. Rio de Janeiro:
34, 1994, 152p.
11
FOUCAULT, Michel. “O que são as Luzes?” In: Arqueologia das ciências e história dos
sistemas de pensamento. (seleção e organização dos textos por Manoel Barros da Motta). 2
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, pp. 335-351 (Ditos & Escritos, vol. II).
12
Para maiores discussões a respeito deste tópico, cf. AGRA, Giscard F. Modernidade aos
goles: a produção de uma sensibilidade moderna em Campina Grande, 1904 a 1935.
Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
de Pernambuco, 2008, 220p.
45
13
AZEVEDO, Carlos Alberto. Arqueologia – estudos & pesquisas. João Pessoa: Idéia, 2008,
p. 29.
46
raízes do mundo moderno. É por isso que tratei as origens da agricultura como
não mais que um epílogo do meu livro”14.
Mithen poderia ser uma voz dissonante no espaço arqueológico, mas
não é. Analisando a literatura pré-histórica publicada nos primeiros anos do
século XXI, verifica-se que a revolução neolítica tem deixado de figurar como
principal evento do período “pré-histórico”. O neolítico sequer é tratado por
obras dedicadas ao estudo dos primeiros humanos ou, quando muito, é
trabalhado em segundo plano, destituído do lugar que lhe foi construído no
século XX, em obras como Os humanos antes da humanidade, de Robert
Foley, de 2003, O despertar da cultura, de Richard Klein e Blake Edgar, e O
colar do Neandertal, de Juan Luis Arsuaga, ambos de 2005, assim também
como não aparece no “Dossiê: A odisséia dos primeiros humanos”, publicado
pela revista História Viva, de 200815.
Até mesmo Richard Dawkins, um dos maiores nomes vivos do
evolucionismo, em seu livro A grande história da evolução, publicado no Brasil
em 2009, apesar de tratar do neolítico, faz para descaracterizar o caráter
revolucionário atribuído pelos pesquisadores do século XX, trazendo inclusive
para o debate os nomes de outros dois autores.
14
MITHEN, Steven. A pré-história da mente – uma busca das origens da arte, da religião e da
ciência [trad. Laura Cardellini Barbosa de Oliveira]. São Paulo: Unesp, 2002, p. 363.
15
NEVES, Walter Alves. “Pioneiros da América”. História Viva, São Paulo, ano VI, n. 62, p. 40-
45, dez/2008 [Dossiê Primeiros Humanos].
16
DAWKINS, Richard. A grande história da evolução – na trilha dos nossos ancestrais. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 47. Nenhum dos dois livros citados por Dawkins
possuem traduções no Brasil nem em língua portuguesa.
47
mudança para melhor ou para pior, não foi um evento súbito”17. Para Dawkins,
séculos e séculos de caça e coleta levaram espontaneamente ao pastoreio e à
agricultura, de maneira gradativa, sem que o homem percebesse que estava
produzindo uma “revolução” nas relações que estabelecia com o mundo
natural.
17
DAWKINS, 2009, p. 48.
18
Ibid., p. 53.
19
No tocante a datas, os autores não entraram em um consenso. Assim é que Walter Neves,
por exemplo, provavelmente o maior divulgador da revolução criativa no Brasil, em texto de
2002 admite a possibilidade de ela haver ocorrido há cerca de 80 mil anos (Cf. NEVES,
Walter. “Prefácio à edição brasileira”. In: MITHEN, 2002, pp. 09-12), enquanto em texto de
2006 afirma categoricamente sua datação em 45 mil anos (NEVES, Walter Alves. “E no
princípio... era o macaco!”. Estudos Avançados, São Paulo, v. 20, n. 58, 2006, pp. 249-285);
por sua vez, Steven Mithen a localiza entre 60 e 30 mil anos atrás (Cf. MITHEN, op. cit., pp.
247-303), e Richard Dawkins, em 40 mil anos (Cf. DAWKINS, op. cit.).
20
Cf. DAWKINS, op. cit.
21
Cf. MITHEN, op. cit., 2002.
22
Cf. KLEIN, Richard G. et EDGAR, Blake. “Natureza ou evolução antes do despertar”. In: O
despertar da cultura – a polêmica teoria sobre a origem da criatividade humana [trad. Ana
Lúcia Vieira de Andrade]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
23
NEVES, op. cit., pp. 249-285.
48
caçadores-coletores, passou pelo que pode ter sido uma revolução maior que a
da agricultura, o ‘Grande Salto para a Frente na Cultura’”24.
É Walter Neves quem mais detidamente descreve as conquistas
materiais desse momento:
24
DAWKINS, 2009, p. 55. A expressão é retirada da obra de Jared Diamond citada
anteriormente.
25
NEVES, 2006, p. 275.
26
Cf. GOULD, Stephen Jay. Darwin e os grandes enigmas da vida. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1999; GOULD, Stephen Jay et ELDREGE, Niles. “Punctuated equilibrium comes of
age”. The Unofficial Stephen Jay Gould Archive [on line] Disponível em:
http://www.stephenjaygould.org/library/gould_comes-of-age.html. Acesso em: 30 jul. 2009.
49
27
Cf. DAWKINS, 2009.
28
Cf. MATOS, Olgária C. F. Paris 1968: as barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981;
KURLANSKY, Mark. 1968: o ano que abalou o mundo [trad. Sônia Coutinho]. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2005; VENTURA, Zuenir. 1968 - o ano que não terminou. 3 ed. São
Paulo: Planeta do Brasil, 2008; Idem. 1968 – o que fizemos de nós. São Paulo: Planeta do
Brasil, 2008; ZAPPA, Regina et SOTO, Ernesto. 1968, eles só queriam mudar o mundo.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
29
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 4 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979; Idem.
História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1997; Idem. Os Anormais.
São Paulo: Martins Fontes, 2001; Idem. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2004.
30
Cf. CERTEAU, Michel de. Cultura no Plural. 3 ed. Campinas, SP: Papirus, 2003.
31
Cf. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989;
MEIRA, Danilo Christiano Antunes. “Clifford Geertz - o impacto do conceito de cultura sobre o
conceito de homem”. Jurisciência – direito, política e cultura. Disponível em:
http://www.jurisciencia.com/artigos/clifford-geertz-o-impacto-do-conceito-de-cultura-sobre-o-
conceito-de-homem/73/. Acesso em: 30 jul. 2009.
32
Cf. DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da História Cultural
Francesa [trad. Sonia Coutinho]. 5 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
33
Cf. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família [traduzido por Dora Flaksman].
2 ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981; Idem. História da morte no Ocidente da Idade
Média aos nossos dias [trad. Priscila Viana de Siqueira]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
34
Cf. LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: Tempo, Trabalho e
Cultura no Ocidente. Lisboa, PT: Estampa, 1980; Idem. O maravilhoso e o cotidiano no
Ocidente medieval. Lisboa, PT: Edições 70, 1985; Idem. História e Memória [trad. Bernardo
Leitão]. 2 ed. Campinas, SP: UNICAMP, 1992.
35
Cf. CORBIN, Alain. Saberes e Odores. O olfato e o imaginário nos séculos dezoito e
dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
36
Cf. CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações [trad. Maria
Manuela Galhardo]. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
50
37
Cf. FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2003; SILVA, Kalina Vanderlei
et SILVA Maciel Henrique. “Arqueologia”. In: Dicionário de conceitos históricos. São Paulo:
Contexto, 2005, pp. 23-26
38
Cf. MITHEN, 2002.
39
Discute-se ainda qual teria sido a origem da capacidade simbólica do homem, se teria
ocorrido por meio da fixação de um novo módulo mental, que teria passado a integrar os
módulos anteriormente fixados pela seleção natural (inteligência naturalista, inteligência
51
(...) não há provas de que o ‘despertar’ tenha sido suscitado por uma
inovação técnica comparável à invenção da agricultura. A arqueologia
não consegue revelar essa inovação e ainda sugere que o ‘despertar’
representa de fato o início da capacidade humana de produzir essas
inovações marcantes. Portanto, de uma perspectiva arqueológica, o
‘despertar’ não foi simplesmente a primeira de uma série de
‘revoluções’ menos espaçadas no tempo, começando pela agricultura
e chegando à urbanização,à indústria, aos computadores e aos
genomas; foi a revolução seminal sem a qual nenhuma outra poderia
40
ter ocorrido .
técnica e inteligência social), ou se teria sido provocado pela quebra das barreiras que antes
separavam esses módulos, permitindo uma “fluidez cognitiva” (Cf. MITHEN, 2002) entre as
formas de inteligência fixadas na mente humana. “Tal fluidez teria feito aflorar, como
propriedade emergente em sistemas complexos, significação e criatividade ilimitadas”
(NEVES, 2006, p. 274).
40
KLEIN et EDGAR, 2005, p. 224.
41
Cf. MAGALHÃES, Roberto Carvalho de. O grande livro da arte [trad. Gilson B. Soares]. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2005; MITHEN, 2002; “Entrevista Niède Guidon”. Memória Roda Viva.
2003. Disponível em: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/60/entrevistados/niede_guidon_
2003.htm. Acesso em: 18 mar. 2009.
52
42
Proust apud MAGALHÃES, 2005, p. 10.
43
MAGALHÃES, 2005, p. 10.
53
44
LEAKEY, Richard. A origem da espécie humana. Rio de Janeiro, Rocco, 1995, p. 108.
54
meio da caça, teriam levado esses animais à extinção. Por serem seres que
viviam no mundo natural e com ele se relacionavam, é extremamente provável
que os homens tivessem conhecimento do impacto que iriam provocar sobre o
meio ambiente se caçassem desmedidamente tais animais. A extinção da
mega-fauna deve estar mais associada às mudanças climáticas que assolaram
o globo naquele período – final da Era Glacial e reaquecimento da Terra –,
consistindo a caça humana apenas em um elemento que pode ter ajudado a
eliminar alguns desses animais, mas não sendo a principal causa de sua
extinção45.
Por sua vez, existem registros arqueológicos de interações do homem
com seres que, pelo próprio conhecimento científico moderno baseado no
registro paleontológico, teriam sido extintos mesmo antes da existência do
próprio homem. É assim que algumas inscrições trazem, por exemplo, um
guerreiro inca montando um animal que se assemelha muito a um
Tricerátops46. Isto serve ainda hoje como bandeira política na defesa da
postura criacionista que afirma que homens e dinossauros conviveram a partir
do sexto dia da criação, e na refutação do evolucionismo que defende que
dinossauros foram extintos há 65 milhões de anos e que os primeiros
hominídeos datam, no máximo, de 8 milhões de anos. Admitir que o registro
prova a coexistência entre humanos e dinossauros consiste em desconsiderar
a capacidade criativa dos homens, assumindo uma postura que só consegue
admitir uma representação de eventos realmente ocorridos e de seres
efetivamente existentes e visíveis, e não de eventos imaginados ou criados
pela mente humana.
Os arqueólogos e pré-historiadores, entretanto, desde que tomaram
como objeto de estudo o nascimento da criatividade humana passaram a
enunciar que o referente não necessariamente é um elemento do mundo
material presente, ou seja, aquilo do mundo natural que é representado na
inscrição pode estar presente ou ausente no momento da atividade, pois esta é
45
Cf. NEVES, Walter Alter et PILÓ, Luís Beethoven. O povo de Luzia – em busca dos
primeiros americanos. São Paulo: Globo, 2008; FUNARI, Pedro Paulo et NOELLI, Francisco
Silva. Pré-história do Brasil. São Paulo: Contexto, 2006.
46
THOMAS, Art. “Did Dinosaurs and Human Exist?”. Supernatural Truth. 26 ago. 2008.
Disponível em: http://apologetics.supernaturaltruth.com/uploaded_images/Inca-Burial-Stone-
1-721653.jpg. Acesso em: 6 jun. 2009.
55
47
Cf. MITHEN, 2002.
48
Por outro lado, a leitura de que tais imagens representam dinossauros é uma leitura da
contemporaneidade, uma leitura a partir do lugar social que ocupamos. Enxergamos uma
determinada imagem e lemo-la a partir do que conhecemos hoje, então tendemos a pensar
que ali estaria representado um dinossauro posto que a seqüência de traços delineados nos
faz lembrar da imagem de um dinossauro conforme construída pelo nosso conhecimento
científico. É nossa cultura, portanto, que lê tais traços enquanto um desenho de um
dinossauro. Outras culturas poderiam lê-lo com outros referenciais e interpretá-lo de outra
maneira. Não temos, portanto, como saber o que o artista inca quis, na verdade, representar
quando fez tais traços na pedra.
49
DAWKINS, 2009, p. 57.
56
50
LEAKEY, 1995, p. 107.
51
MITHEN, 2002, p. 264.
52
COON, Carleton S. A história do homem – dos primeiros humanos aos que podem ser os
últimos [trad. Milton Amado]. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960, s.p. (Gravura 4, entre as páginas
80 e 81).
53
Cf. LEAKEY, op. cit.
54
KLEIN et EDGAR, 2005, p. 217.
57
55
LEAKEY, 1995, p. 108.
56
Cf. JANSON, H. W. Iniciação à história da arte. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
57
“ARTE pré-histórica”. Portal da Arte. Disponível em: http://www.portaldarte.com.br/artepre
historica.htm. Acesso em: 26 jul. 2009.
58
Mas isto não explica por que são retratadas cenas que não têm a ver
com caça, conforme pode ser constatado com a imensa quantidade de mãos
negativas nas cavernas européias, mãos positivas nas pinturas americanas,
bem como com as cenas sexuais e ritualísticas, muito menos as
representações geométricas encontradas em praticamente todos os sítios
arqueológicos pelo mundo, que incluem “pontos, grades, asnas, curvas,
ziguezagues, curvas similares que se encaixam uma dentro da outra e
retângulos”60. Este estilo, o geométrico, geralmente visto como “arte menor”
quando comparado às demais pinturas, pode, por sua vez, representar
efetivamente o grande avanço da vida social dos caçadores-coletores,
conforme será visto mais à frente.
Alguns arqueólogos, entretanto, presos demais ainda à idéia de
objetividade que caracteriza a sua ciência, posto ela ter nascido enquanto
técnica, refutam tal leitura por considerar que não existem indicações empíricas
que a ratifiquem – André Leroi-Gourhan, por exemplo, recusava-se a interpretar
as pinturas rupestres como símbolos de crenças e sentimentos religiosos,
afirmando que fazê-lo seria uma temeridade, pois, sem verificabilidade
empírica, tal coisa seria “trair o homem das cavernas”61.
Não temos como saber exatamente o que queriam aqueles homens
quando se arriscavam pelos interiores de cavernas como Lascaux, Chaveut,
Cosquer, Trois-Frères e Niaux, na França, Altamira, em Espanha, Hohlenstein-
58
Cf. JANSON, 1996.
59
WHITROW, G. J. O tempo na história: concepções do tempo da pré-história aos nossos
dias [trad. Maria Luiza X. de A. Borges]. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 35.
60
LEAKEY, 1995, p. 112.
61
LEROI-GOURHAN, Andre. Religiões da Pré-História. Lisboa, PT: Edições 70, 2007, p. 134
(Perspectivas do homem).
59
62
Cf. WHITROW, 1993.
63
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. “II Consideração Intempestiva sobre a utilidade e os
inconvenientes da História para a vida”. In: MELO SOBRINHO, Noéli Correia de (org.)
Escritos sobre a História – Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: PUC-RJ, São Paulo:
Loyola, 2005,pp. 67-178.
60
64
WHITROW, 1993, p. 37.
61
66
Cf. HORCADES, Carlos M. A evolução da escrita: história ilustrada. Rio de Janeiro: Senac
Rio, 2004, 126p.
67
O mais comum, com milhares de exemplos, que consiste justamente nas diferentes maneiras
de cada língua se referir aos seus elementos. “Pai”, portanto, é assim escrito em Português,
mas é o “pater” do latim, o “padre” do Espanhol e do Italiano, o “father” do Inglês, o “Vater” do
Alemão, o “Père” do Francês, etc.; a “mãe” do Português que é a “madre” do Italiano, a
“mother” do Inglês, a “Mutter” do Alemão, a “Mère” do Francês, e assim por diante.
68
Por exemplo, a palavra “will” é um verbo comum tanto à língua inglesa quanto à americana,
mas, enquanto no Inglês representa o futuro do verbo to be (“ser” ou “estar”) para qualquer
pronome pessoal (I, you, he, she, it, we, you e they), no Alemão representa o verbo “querer”
(wöllen) no presente apenas para a primeira pessoa pronominal (ich). A palavra francesa
“despuis” pode parecer aos falantes da língua portuguesa o nosso “depois”, mas significa o
nosso “desde”. Por sua vez, o caso mais conhecido pelos brasileiros de falso cognato é o
verbo inglês to push, que, na verdade, não representa o verbo português “puxar” (no Inglês,
to pull), mas “empurrar”.
69
Um exemplo é a pronúncia de palavras com a letra “w” em duas línguas próximas, o Inglês e
o Alemão, ambos do tronco Germânico. Enquanto no Inglês o “w” representa um som
semelhante ao da letra “u”, no Alemão seu som é próximo ao da letra “v” (portanto, a palavra
“will” é pronunciada como “uil” para o Inglês, enquanto que para o Alemão sua pronúncia
corresponde a “vill”). Posso citar também, dentre vários outros exemplos, o “v” como falado
no Português (“vê”) e como falado no Espanhol (com som aproximado ao “bê” português, daí
a grafia das cidades de “Córdova” e “Vivar” muitas vezes aparecerem como “Córdoba” e
“Bivar” nas traduções brasileiras), ambos do tronco latino (Cf. FRANCHETTO et LEITE,
2004). Semelhantes são as formas inglesa e alemã de dizer o nome (My name is... e Mein
name ist...), mas distintas são as pronúncias como as palavras são ditas (a pronúncia alemã
se assemelha mais à pronúncia de um falante da língua portuguesa lendo a frase – “name” é
“nãmé”, enquanto no Inglês “name” é “neime”).
63
mesma forma, na mesma cultura, mas que sejam faladas ou que representem
elementos diferentes70.
Assim, penso ser possível enxergar as pinturas e gravuras rupestres
como formas de guardar uma informação, de torná-la estática e acessível
àqueles que compartilhem o mesmo código. A diferença entre as pinturas do
início do Paleolítico Superior para as gravuras não-figurativas do final do
Neolítico assenta-se no requinte da elaboração representativa abstrata: as
primeiras estabeleciam uma relação ainda próxima com os referentes,
enquanto as últimas já haviam passado por um enxugamento da forma, haviam
perdido a relação direta com o referente e passado por novas atribuições de
significado. Passaram, assim, a representar uma idéia abstrata, mesmo não
tendo mais vínculo com o referente. Esse movimento, entretanto, não foi
premeditado, nem linear. Não consistiu num “processo evolutivo”, mas foi
sendo modificado pelas sociedades a partir das relações que estas mantinham
com seus símbolos. Ainda hoje, por exemplo, o mandarim continua a ser uma
língua cujo alfabeto mantém relações diretas com os referentes, distintamente
do alfabeto que usam as línguas de origem indo-européia71.
Para que esse movimento possa ser possível, portanto, é necessário
que o homem use sua capacidade de pensar abstratamente e que tenha
acesso aos códigos lingüísticos que a cultura convencionou para referenciar o
mundo. Apenas assim é que alguém poderá olhar para os símbolos gráficos
“lápis” e pensar em um elemento que serve para escrever, ou olhar para “cão”
e imaginar um mamífero quadrúpede ou, ainda mais abstratamente, um sujeito
com chifres, rabo vermelho e tridente.
Neste último exemplo reside outro elemento que, segundo os
arqueólogos e pré-historiadores, só foi possível com a Revolução Criativa do
Paleolítico Superior: para os estudiosos, foi apenas com o Salto que o homem
começou a atribuir sentido e significado aos elementos do mundo. A atribuição
de significado é, ainda hoje, talvez o aspecto mais importante da vida social,
70
No Brasil, os regionalismos inventaram maneiras diferentes de se referirem a elementos
semelhantes, assim como pronúncias distintas para os mesmos elementos. A pronúncia da
vogal “e”, aberta nos estados do Nordeste, é mais fechada no Sudeste, por exemplo. No
Inglês, o caso mais exemplar é o da palavra “get”, com diversas possibilidades de uso.
71
Dentre alguns autores que corroboram esta idéia, cf. MITHEN, 2002; AZEVEDO, 2008.
64
pois é por meio da significação que cada cultura faz ler e ver as coisas do
mundo, elegendo algumas como parte integrante de suas vidas, relegando
outras e inventando elementos que não existem no mundo natural para integrá-
los na vida comunitária. A Revolução Criativa está intrinsecamente ligada à
significação: o homem passou a atribuir sentido a pintar na rocha, a gravar
certas informações, assim como também os próprios símbolos gráficos que
estudei nas últimas páginas,que deram origem à palavra escrita, são símbolos
permeados de sentido porque significados foram atribuídos a eles.
A antropologia, desde os seus estudos de campo do início do século
XX, investiga como certas práticas culturais foram sendo elaboradas nos
pequenos grupos tribais que viviam isolados das “sociedades civilizadas”.
Passou-se a perceber que essas comunidades atribuíam poderes mágicos a
elementos do mundo natural, como o Sol, a Lua, os riachos, as montanhas,
etc., assim como as primeiras grandes sociedades da Antigüidade também o
faziam. Mithen, ao analisar o nascimento desse comportamento, afirma que a
sua ocorrência adveio de uma certa confusão entre dois tipos distintos de
inteligência, a naturalista, construída pela relação do homem com os elementos
da natureza, e a social, construída pelo desenvolvimento de relações entre os
sujeitos do grupo. Para ele, a crença em uma vida espiritual e a união dessas
duas formas de inteligência, propiciadas pela fluidez cognitiva que derrubou as
barreiras que separavam as especialidades na mente do homem, levou o
homem a atribuir sentido mágico a elementos que lhe proporcionavam vida –
luz, calor, água, alimento, etc. Unindo, portanto, esses elementos, o homem
passou a considerar que eles eram responsáveis pela vida e por sua
continuidade, atribuindo-lhe significado divino, fazendo nascer, desta maneira,
o que podemos conceber como as primeiras crenças religiosas72.
Para Mithen, entretanto, a noção de religião centra-se na crença de
seres não-físicos os quais são responsáveis pela ordem do mundo natural,
sendo preciso realizar certos rituais para que tal ordem não seja alterada73.
Tanto na divinização de certos elementos do mundo natural, quanto na
invenção de deidades sobrenaturais, incide a atribuição de significados
72
Cf. MITHEN, 2002.
73
Ibid., p. 279.
65
74
“RELIGIÃO Egípcia”. Portugal Místico. Disponível em: http://portugalmistico.com/artigos-por
-temas-mainmenu-56/temas-religiosos-mainmenu-33/religimainmenu-34/57-outras/102-
religiao-egipcia.html. Acesso em: 27 jul. 2009.
75
COMMELIN, P. Mitologia grega e romana [trad. Thomaz Lopes]. Rio de Janeiro: Ediouro,
[s.d.].
66
afirmam que, ao produzir arte, o homem deixa impregnado nela o seu próprio
olhar sobre o mundo, este, possibilitado pela cultura em que se insere. Isto é
observável quando se lê, a partir de Mithen, que a produção cultural é
determinada pelo modelo mental que se estabelece pela abstração da
materialidade do mundo. Ou seja, o referente, aqui entendido enquanto a coisa
como tal, a coisa material que existe no mundo concreto, passa por um
processo de reelaboração na mente do sujeito, resultando num modelo
abstrato que não existe enquanto natureza, mas apenas enquanto idéia. É
essa imagem abstrata, informada e formada pela cultura, que será o modelo da
produção de cultura artística. O resultado disto, por sua vez, o produto cultural,
será diferente do referente justamente porque este é elemento natural,
enquanto aquele é cultural. Entre a pintura de um bisão na pedra e o bisão do
mundo natural incidiu a abstração mental do sujeito que o pintou a partir do
modelo que ele elaborou informado por sua cultura.
As maneiras de elaborar esses modelos, ou seja, as maneiras de ver o
mundo, são possibilitadas pela cultura, que estabelece o que deve ser visto e o
que não deve ser visto, o que deve ser registrado e o que não deve ser
registrado. O olhar, portanto, é histórico e culturalmente possibilitado. É
justamente esse possibilismo que faz com que as produções culturais sejam
identificadoras da cultura onde foram desenvolvidas. A cultura é produto
humano, portanto, nela identificam-se traços de seu criador76.
Com a religião não é diferente: enquanto produção cultural, nela
podemos identificar os elementos que permeiam a sociedade que a produziu.
Disto, percebo que o antropomorfismo dos deuses antigos nada mais é do que
a própria sociedade antiga produzindo sujeitos a partir de seus valores: se os
deuses gregos, romanos e egípcios sentiam raiva, ciúme, amor e ódio, era
porque as sociedades gregas, romanas e egípcias sentiam raiva, ciúme, amor
e ódio. Os deuses gregos não são sujeitos divinos que sentem as mesmas
emoções dos mortais, mas sujeitos inventados pelos mortais para corresponder
a certas necessidades humanas. Se apresentam as mesmas emoções dos
humanos é porque eles são produtos das cabeças dos humanos, que não
76
Cf. MITHEN, 2002.
67
77
Para um amplo e aprofundado estudo sobre as lutas do povo judeu e as perseguições de
que foi vítima, cf. JOHNSON, Paul. História dos judeus. 2 ed. [s.l.]: Imago, 1995, 683p.;
SCHEINDLIN, Raymond P. História ilustrada do povo judeu. Ediouro, 400p. Para
referências bíblicas de o deus hebraico tendo comportamentos humanos, como ira, vingança
e arrependimento, cf. FREITAS, João de. “O homem criou Deus à sua imagem e
semelhança”. Usina de Letras. Mar. 2002. Disponível em: http://www.usinadeletras.com.br/
exibelotexto.php?cod=6649&cat=Artigos. Acesso em: 27 jul. 2009. Leia também
SCHWARTSMAN, Hélio. “Deus e o jardim das delícias”. In: Folhaonline. Jul. 2009.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u595384.
shtml. Acesso em: 29 jul. 2009.
78
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo [trad. Pietro Nassetti]. São Paulo: Martin Claret,
2000, 112p. [Obra Prima de Cada Autor, v. 50]; JOHNSON, Paul. História do cristianismo.
[s.l.]: Imago, 2001, 680p.
79
Cf. FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo [trad. José da Silva Brandão].
Petrópolis: Vozes, 2007, 344p.
80
“DEUS – o que existe acima de nós?”. Superinteressante especial. Ed. 263, ano 23, n. 3,
São Paulo, 2009, p. 65. Cf ONFRAY, Michel. Tratado de ateologia – física da metafísica
[trad. Monica Stahel]. São Paulo: Martins Fontes, 2007; DAWKINS, Richard. Deus, um
delírio [trad. Fernanda Ravagnani]. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, 528p. Contra,
68
82
BOURGUIGNON, 1990, p. 190.
83
SIMONNET, Dominique et COURTIN, Jean. “Cena 1: A pré-história – a paixão do Cro-
Magnon”. In: SIMONNET, Dominique et al. A mais bela história do amor – do primeiro
casamento na Pré-História à Revolução Sexual no século XXI [trad. Rejane Janowitzer]. Rio
de Janeiro: Difel, 2003, p. 26.
84
BOURGUIGNON, op. cit., p. 190.
85
Até há poucas décadas, os cientistas caracterizavam o sexo dos animais como visando
exclusivamente a reprodução. Este enunciado em muito serviu de embasamento científico e
religioso para grupos conservadores condenarem o comportamento homoafetivo nos
humanos como “não natural”, como “perversão da natureza”. Até o final do século XX,
entretanto, com a observação de práticas sexuais entre animais do mesmo sexo, inclusive em
primatas como os chimpanzés, por exemplo, reviu-se essa posição, percebendo que o ato
que consideramos sexual pode não visar apenas a reprodução, mas também o prazer por
meio do estímulo dos órgãos, bem como servir como elemento apaziguador de tensões entre
sujeitos de um grupo social (Cf. DURHAM, Eunice Ribeiro. Chimpanzés também amam: a
linguagem das emoções na ordem dos primatas. Rev. Antropol. V. 46, n. 1, 2003, pp. 85-154.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-7701200300010
0003. Acesso em: 20 mar. 2009; NEVES, Walter Alves et RAPCHAN, Eliane Sebeika.
Chimpanzés não amam! Em defesa do significado. Rev. Antropol. [online]. Vol. 48, n. 2,
julho/dez. 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-
77012005000200008&script=sci_arttext. Acesso em: 20 mar. 2009; WAAL, Frans. Eu,
primata – por que somos como somos [trad. Laura Teixeira Motta]. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007; MORRIS, Desmond. O macaco nu – um estudo do animal humano [trad.
Hermano Neves]. 17 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2008).
70
86
Cf. LATOUR, 1994.
87
DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque [trad. Regina Grisse de
Agostino]. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1991.
71
natureza humana, como se esta não existisse, como se o homem não fosse um
animal, tal qual os demais animais da natureza88.
Assim como o século XIX havia inventado o determinismo geográfico e
o determinismo biológico, o século XX inventou, especialmente a partir da
década de 1960, o determinismo cultural, elegendo a cultura como elemento
que determinaria todo o comportamento humano. A mente do recém nascido,
portanto, seria uma tábula rasa que deveria ser escrita pelos pais e pela
sociedade, pela cultura que estes produzirem.
Esse tipo de leitura, entretanto, entrou em declínio ainda no final do
século que o produziu, por pensadores que criticaram a postura privilegiada
que a espécie humana continuava a ter nessa teoria. Se desde Darwin sabe-se
que o homem não é nada mais do que um animal, então por que ele seria o
único animal da árvore evolutiva a não possuir uma natureza?
Aqui se dá uma das grandes querelas científicas do final do século XX,
que identifico como sendo entre os estudos sociais que reduzem o homem à
determinação social e os estudos biológicos, especialmente na área da
psicologia evolutiva, para identificar o porquê de nossos comportamentos.
Para os chamados psicólogos evolutivos, tais como Richard Dawkins e
Steven Pinker89, a melhor maneira de compreender algumas características
mentais e psicológicas dos seres humanos, tais como a linguagem, a memória,
a percepção, a agressividade, o desejo sexual, etc., é olhar para a evolução da
espécie e como ela foi se adaptando por meio da seleção natural e sexual às
situações. Para este ramo da ciência, que tem como base a teoria da evolução
de Darwin unida à genética de Mendel – o que se convencionou chamar de
“síntese moderna da evolução” ou “neodarwinismo” –, as respostas
psicológicas, tais como as adaptações morfológicas, inscrevem-se nos genes
dos sujeitos e, desta maneira, são transmitidas à sua descendência. Vista daí,
a mente, diferentemente do que defendem alguns estudos sociais, já viria com
uma ampla gama de conhecimentos e respostas a situações herdados das
gerações anteriores e transmitidos pelos genes.
88
Cf. LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora – ensaios sobre a realidade dos estudos
científicos [trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
89
Cf. PINKER, Steven. Tábula Rasa – a negação contemporânea da natureza humana [trad.
Laura Teixeira Motta]. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
72
O sexo, hoje, tem pouca relação com o ato de fazer filhos. Você sabe.
Nenhum adolescente pensa em engravidar 10 meninas quando vai
viajar para o Carnaval. Mas os genes dele não fazem idéia de que
existem camisinhas e tudo o mais, então deixam o rapaz com
vontade de transar com 10 garotas e pronto. Se tudo der certo, esses
genes poderão instalar-se no útero de um monte de meninas e
construir um monte de bebês (várias máquinas de sobrevivência
novinhas em folha!).
Do ponto de vista das fêmeas a história é outra: transar com 10
sujeitos num feriado não vai "render" 10 filhos para os genes dela se
instalarem. Vai dar é uma baita dor de cabeça. Os contraceptivos
poderiam deixá-las livres para fazer sexo só pelo prazer com um
monte de seres do sexo oposto, como qualquer homem faz (ou tenta
fazer). Mas não. O cérebro delas evoluiu para selecionar os melhores
parceiros, ter poucos (e bons) filhos, não para tentar a sorte com
qualquer um. Sem falar que, do tempo dos nossos ancestrais
caçadores coletores até o século 20, sexo casual para elas era correr
o risco de acabar com um bebê indesejado. Aí não tem ideologia
liberal nem pílula que dê conta de superar esse "trauma" evolutivo.
Psicólogos da Universidade Stanford, nos EUA, checaram isso com
uma experiência simples. Contrataram homens e mulheres atraentes
para abordar estudantes e dizer: "Você gostaria de ir para a cama
comigo hoje?" Nenhuma mulher aceitou. Já as garotas tiveram
resultados melhores: 75% dos homens toparam no ato. Dos 25%
restantes, a maioria pediu desculpas, explicando que tinha marcado
de sair com a namorada. Pois é: do ponto de vista da seleção natural,
uma bela fêmea disponível é um bem valioso demais para ser
desperdiçado. Nenhum homem se surpreende com isso (o pessoal da
obra não está só brincando quando diz "ô, lá em casa!"), mas para as
mulheres a verdade da psicologia evolucionista pode soar
assustadora: "O desejo de variedade sexual nos homens é insaciável.
Quanto maior for o número de mulheres com quem um homem tiver
relações, mais filhos ele terá [pelo menos é o que "pensam" os
genes]. Então demais nunca é o bastante", escreveu outro guru do
neodarwinismo, o psicólogo Steven Pinker, da Universidade Harvard,
90
nos EUA.
90
VERSIGNASSI, Alexandre et REZENDE, Rodrigo. “A evolução da evolução”.
Superinteressante. Ed. 240, jun/2007. Disponível em: http://super.abril.com.br/revista/240/
materia_revista_234211.shtml?pagina=4. Acesso em: 29 jul. 2009.
73
opostos. Pensar que o homem, enquanto um animal, possui instintos que foram
formados e continuam sendo formados a partir de sua experiência com a
natureza e todos os elementos que são gestados nela – inclusive o próprio
homem –, e enquanto ser social, desde pelo menos a Revolução Criativa de 40
mil anos atrás, é produtor de cultura, material e imaterial. Cultura, esta,
funcional, pois produzida como mecanismo de adaptação artificial ao ambiente
e de transformação do espaço e de si próprio. Essa adaptação, por meio da
produção cultural, acaba interferindo também na própria adaptação biológica,
suprindo, por exemplo, certas deficiências biológicas por meio da produção
artificial de medicamentos, o que leva a ver o homem tanto enquanto produtor
como enquanto produto da cultura, conforme ensina Celso Piedemonte de
Lima93.
Mas a cultura também pode ser vista com outra funcionalidade, muito
ignorada pelos psicólogos evolucionistas – e aqui creio responder ao
questionamento final da última citação transcrita há alguns parágrafos. A
cultura, em seu aspecto imaterial, entendida enquanto conjunto de valores
formulados por uma sociedade em torno do qual esta gira, funciona também
como mecanismo de interdição dos instintos, como silenciamento da natureza
humana.
Como visto anteriormente, desde A origem das espécies o homem
perdeu o lugar central da criação e foi relegado a um mero galho na árvore
evolutiva. Mesmo, entretanto, com a pretensão da ciência moderna de forjá-lo
puramente racional, isto jamais foi alcançado, até mesmo porque, enquanto
animais, os homens carregam consigo toda uma carga de instintos naturais
adquiridos ao longo dos milhões de anos que foram necessários para
transformar os descendentes do nosso ancestral comum ao macaco em Homo
sapiens morfológica e comportamentalmente modernos, nas acepções de
Walter Neves. Milhões e milhões de anos de acúmulo de adaptações à e
experiências com a natureza simplesmente não somem do dia para a noite,
nem devem ter sumido completamente nos últimos 200 mil anos, data estimada
para a origem da espécie do homem moderno.
93
LIMA, Celso Piedemonte de. Evolução humana. São Paulo: Ática, 1990 (Série Princípios).
75
94
Cf. LIMA, 1990.
95
Cf. NEVES, 2006.
77
XX, tanto nas ciências humanas, com a emergência da cultura como objeto de
estudo de historiadores, antropólogos, filósofos, etc., quanto nas ciências
biológicas, com o desenvolvimento do pontualismo, do neodarwinismo, da
psicologia evolutiva, da arqueologia cognitiva, etc., que possibilitou a invenção
da Revolução do Paleolítico Superior, momento em que o homem, por meio de
um “salto evolutivo”, teria adquirido a capacidade de significação e, desta
maneira, a possibilidade da invenção da cultura imaterial. Esta mesma cultura
que permitirá ao homem se diferenciar dos demais animais na medida em que
passa a pretender ser guiado não mais pela sua natureza instintiva e animal,
mas pelas normas de convivência elaboradas por ele próprio.
Se, portanto, a Revolução do Neolítico representa o momento em que
o homem passou a domesticar alguns animais, a Revolução do Paleolítico
Superior me parece representar o momento em que o homem passou a tentar
domesticar a si próprio, a domesticar a sua natureza instintiva, o seu animal
interior e, desta maneira, diferenciar-se por meio da elaboração da cultura.
78
CONSIDERAÇÕES FINAIS
1
2001: UMA ODISSÉIA no espaço. Direção: Stanley Kubrick. Intérpretes: Keir Dullea; Gary
Lockwood. [S.I.]: 1968. MGM, 1 DVD (149 min), son., color.
2
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral [trad. Fernando
de Moraes Barros]. São Paulo: Hedra, 2008, p. 25.
79
3
Cf. BRENER, Rosinha Spiewak. “2001: Odisséia no Espaço - trilha sonora”. Mnemocine –
memória e imagem. Disponível em: http://www.mnemocine.com.br/cinema/crit/2001trilha.htm.
Acesso em: 11 jun. 2009; OLIVEIRA, César Fernando de. “Análise 2001: Uma Odisséia no
Espaço, de Stanley Kubrick”. Asa Nisi Masa. Dez, 2005. Disponível em:
http://cesarfernando.multiply.com/reviews/item/2. Acesso em: 11 jun. 2009
80
4
O termo vem da tradução livre de “club girls”, usado constantemente ao longo do filme.
5
HOMO erectus. Direção: Adam Rifkin. Intérpretes: Adam Rifkin; Giuseppe Andrews; Ali
Larter; Ron Jeremy. USA: Burnt Orange/Brad Wyman, 2007, meio digital (88 min), son.,
color. Todas as traduções relativas a este filme são livres, visto ele não ser comercializado no
Brasil.
6
Ibid., 00:10:39.
7
Ibid., 00:11:50.
8
Ibid., 00:12:51.
9
Ibid., 01:15:12
81
10
HOMO erectus, 2007, 00:06:12.
11
CAVEMEN. Criação: Joe Lawson. Direção: Will Speck, Josh Gordon. Intérpretes: Bill English;
Nick Kroll; Sam Huntington. USA: ABC Studios, 2007, meio digital (22 min), son., color.
[episódio 4: The Mascot].
82
sociedade. Desde o primeiro contato com a sua turma, Hedge já expõe alguns
elementos que compõem tais representações:
12
CAVEMEN, 2007, 00:02:30.
13
Ibid., 00:17:00.
83
– Mais nada?
– Sim, vi um homem fugir [do local do assassinato].
– Como ele estava?
– Ele estava de costas.
15
– Vamos à aldeia prender todos que estavam de costas ontem.
15
RRRrrrr!!!, 2005, 00:46:00.
16
10.000 a.C. Direção: Roland Emmerich. Intérpretes: Steven Strait, Camilla Belle, Cliff Curtis,
Joel Virgel, Affif Ben Badra, Mo Zinal, Nathanael Baring, Marco Khan. USA: Warner Bros.,
2008, 1 DVD (109 min.), son. color.
17
Cf. NEVES, Walter Alves et PILÓ, Luís Beethoven. O povo de Luzia – em busca dos
primeiros americanos. São Paulo: Globo, 2008.
85
10.000 a.C., desta maneira, é um filme que pretende ser levado a sério,
que pretende contar a história do nascimento do “primeiro herói” que luta contra
um império estabelecido no período pré-histórico. Vejo-o, entretanto, mais
como um discurso que ratifica a luta da comunidade arqueológica norte-
americana contra a arqueologia internacional, que a coloca como D’Leh,
lutando contra os impérios estabelecidos, mesmo lá no “fim do mundo” da
África...
O mais clássico filme tratando de aspectos da pré-história, por sua vez,
é A Guerra do Fogo18. Produzido em 1981, o filme do francês Jean-Jacques
Annaud ainda hoje é considerado referência no ensino da pré-história no Brasil.
Este lugar é bem merecido, visto tratar-se talvez da mais fiel adaptação do
conhecimento arqueológico, paleantropológico e psicanalítico para as telas do
cinema. Em seu enredo, deparam-se várias tribos de seres que parecem
pertencer a espécies diferentes. Apesar de aparentemente o filme ser sobre o
uso do fogo e a importância que esse elemento tinha para as comunidades
paleolíticas de caçadores-coletores há 80 mil anos, ao afastar os animais
predadores, aquecer o grupo, permitir cozinhar os alimentos, etc., o que se
destaca no filme é o estranhamento do contato entre diferentes seres,
hominídeos de diferentes espécies, de costumes e hábitos distintos.
O grupo central do filme é uma tribo provavelmente de neandertais – a
identificação pode ser dada justamente pelas formas como eles são dados a
ver, com crânio alongado para trás, toro supraorbital proeminente, largas
narinas, todas características do Homo neanderthalensis. Após atacada por
uma espécie diferente de homens-macacos – mais macacos do que homens,
peludos e agressivos, mas bípedes, eretos e que se utilizam de ossos para
agredir, tal qual os macacos de 2001 –, o fogo da tribo neandertal acaba tendo
sua chama apagada, o que leva a que três de seus membros precisem se
aventurar por terras estranhas na tentativa de recuperá-lo. Essa busca leva ao
encontro com outra tribo, provavelmente também de neandertais, que tem em
seu poder fêmeas de uma espécie completamente diferente de todas as que
18
LA GUERRE du Feu. Direção: Jean-Jacques Annaud. Intérpretes: Everett McGill, Rae Dawn
Chong, Ron Perlman, Nameer El-Kadi, Gary Schwartz, Kurt Schiegl, Frank Olivier Bonnet.
FRA/CAN: Lume, 1981, 1 DVD (100 min.), son. color.
86
20
A HISTÓRIA do mundo, 1981, 06:20:00.
88
ANEXOS
90
Iconografia 7: Ao som de Assim Falou Zaratustra, o homem macaco se humaniza por passar a usar as
mãos para o trabalho e para a morte. Discurso presente no filme 2001: Uma odisséia no espaço (1968)
baseado numa leitura funcionalista e materialista da evolução humana, que passou a ser abandonada
na academia já na década de 1960 e mais especialmente na arqueologia na década seguinte. Talvez a
cena mais clássica que Hollywood já produziu sobre a evolução do homem, já diversas vezes parodiada
por filmes, séries, desenhos, propagandas, etc. Entretanto, segundo o que enuncia o conhecimento
científico do final do século XX, a cena está completamente equivocada, e a evolução humana passou
longe de seguir a seqüência filmada por Kubrick.
92
REFERÊNCIAS
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Priscila Viana de Siqueira]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
CERTEAU, Michel de. Cultura no Plural. 3 ed. Campinas, SP: Papirus, 2003.
DUARTE, Regina Horta. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005
[História &... Reflexões].
______. “O que são as Luzes?” In: Arqueologia das ciências e história dos
sistemas de pensamento. (seleção e organização dos textos por Manoel
Barros da Motta). 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, pp. 335-
351 (Ditos & Escritos, vol. II).
FREITAS, João de. “O homem criou Deus à sua imagem e semelhança”. In:
Usina de Letras. Mar. 2002. Disponível em: http://www.usinadeletras.com.br/
exibelotexto.php?cod=6649&cat=Artigos. Acesso em: 27 jul. 2009.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. O breve século XX: 1914-1991. 2 ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
JOHNSON, Paul. História dos judeus. 2 ed. [s.l.]: Imago, 1995, 683p.
KURLANSKY, Mark. 1968: o ano que abalou o mundo [trad. Sônia Coutinho].
Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. [trad. Carlos Irineu da Costa]. Rio
de Janeiro: 34, 1994.
______. Uma longa Idade Média [trad. Marcos de Castro]. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008.
LIMA, Celso Piedemonte de. Evolução humana. São Paulo: Ática, 1990 (Série
Princípios).
______. “Pioneiros da América”. História Viva, São Paulo, ano VI, n. 62, p. 40-
45, dez/2008 [Dossiê Primeiros Humanos].
VENTURA, Zuenir. 1968 - o ano que não terminou. 3 ed. São Paulo: Planeta
do Brasil, 2008b.
WAAL, Frans. Eu, primata – por que somos como somos [trad. Laura Teixeira
Motta]. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.