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André Malta

ISSO AQUI NÃO É GREGO


Uma Apresentação Descomplicada da Literatura Clássica

São Paulo: Edição do Autor, 2020

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© André Malta 2020
Todos os direitos reservados

versão eletrônica disponibilizada em 31/10/2020 – 196 p.

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Sumário

Prefácio.....5

1 Clitemnestra e o Sexismo no Agamênon de Ésquilo.....9


2 Corrupção Humana nos Trabalhos e Dias de Hesíodo.....15
3 Ironias do Racional e do Irracional no Íon de Platão.....21
4 As Autoficções de Odisseu na Odisseia de Homero.....27
5 A Missão do Super-Herói na Eneida de Virgílio.....33
6 Mais Razão e Menos Emoção na Medeia de Sêneca.....39
7 Um Novo Esopo em Verso nas Fábulas de Fedro.....45
8 A Sabedoria da Vida Como Ela É na Poesia de Teógnis.....51
9 Epidemia, Ciência e Política na História de Heródoto.....65
10 O Charlatão Desmascarado no Falso Profeta de Luciano.....71
11 O Amor Enganador na Elegia Erótica de Ovídio.....77
12 À Procura do Roteiro Perfeito na Poética de Aristóteles.....83
13 Nem à Esquerda Nem à Direita: O Centro na Poesia de Sólon.....89
14 Riqueza Para os Justos Já! na Comédia O Deus Dinheiro de Aristófanes.....95
15 Conciliando Homero e Platão no Como Estudar a Poesia de Plutarco.....101
16 O Sócrates Sofista nas Memoráveis de Xenofonte.....107
17 O Transe do Culto e do Palco nas Bacantes de Eurípides.....113
18 O Desassossego Afrodisíaco na Poesia de Safo.....119
19 Morte e Vida Heroica no Édipo em Colono de Sófocles.....125
20 O Ato Final (e Inaugural) de Sócrates na Apologia de Platão.....131
21 Pinheiros do Paraná na Poesia de Píndaro.....137
22 O Drama do Macho Traído na Comédia Anfitrião de Plauto.....143
23 O Trespasse do Poderio Persa na História de Heródoto.....149
24 Teoria Saturada de Graça na Arte Poética de Horácio.....155
25 O Silêncio de Ájax no Sobre o Sublime de Longino.....161
26 Os Caminhos da Tragédia nas Fenícias de Eurípides.....167
27 Momo e os Memes na Poesia de Arquíloco.....173
28 A Prosa Espectro-do-Belo no Fedro de Platão / Parte 1.....179

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29 A Prosa Espectro-do-Belo no Fedro de Platão / Parte 2.....185
30 Onde Fica o Calcanhar de Aquiles na Ilíada de Homero.....191

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Prefácio

No início da pandemia de 2020, decidi criar um canal no YouTube com episódios


semanais sobre a literatura greco-latina, sempre no mesmo esquema: destacando um
tema no conjunto (e/ou em uma obra em particular) de um(a) autor(a) que escreveu
em grego antigo ou latim. À exceção de dois textos já prontos que precisei apenas
adaptar ao formato do canal, toda semana, de março a setembro, eu finalizava um
episódio novo para colocar no ar. Foi assim que nasceu o “ISSO AQUI NÃO É
GREGO – Uma Apresentação Descomplicada da Literatura Clássica”, agora editado
em forma de livro, com seus trinta capítulos correspondendo a cada um dos trinta
episódios, e com alguns detalhes dos títulos e dos textos originais modificados. A
vantagem, com o acesso possível também via leitura, é permitir que as referências e
os conteúdos sejam consultados de um jeito mais fácil e absorvidos com calma.

Os capítulos/episódios foram criados a partir da minha experiência em sala de aula


como professor de língua e literatura grega antiga na Universidade de São Paulo, onde
atuo desde 2001 (dando, eventualmente, literatura latina também). A intenção era
explorar elementos que nem sempre podem ser apresentados em obras acadêmicas,
mas que frequentemente abordo com as turmas nas mais variadas disciplinas que
tenho ministrado ao longo desse tempo. Misturar Safo com Angélica Freitas, Odisseu
com Karl Ove Knausgaard, Píndaro com Djavan, Aristóteles com Stanley Kubrick,
Eneias com os super-heróis, Teógnis com a literatura de autoajuda, Sêneca com o
budismo, Sólon com a nossa polarização política e Arquíloco com nossos memes –
esse era um dos objetivos, sem descuidar do rigor. Por mais que me dedique a uma
área basicamente histórica como são os Estudos Clássicos em suas múltiplas
ramificações, acredito que conexões livres no tempo e no espaço muitas vezes podem
iluminar os tópicos discutidos com uma pertinência maior do que minúcias de uma
tateante reconstrução do passado. Na mesma linha, acho que é possível falar de
autoficção na Odisseia, lifecoaching em Sócrates, sexismo na tragédia e patriarcado e
preconceito nas expressões cômicas. Não me ocorreu reduzi-las simplesmente às
ideologias e bandeiras atuais, mas me ocorreu sim que não havia como ignorar a
presença de questões tão incômodas em textos tão celebrados. Essa consciência só me

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levou a querer lê-los com intensidade ainda maior, percebendo que, com suas
inegáveis qualidades e inevitáveis limitações – mas, principalmente, com suas ricas
contradições –, podiam ser pontos de partida para as discussões contemporâneas.

Só que essa busca desejável por um contato com as referências atuais, ainda que
importante, é só a superfície do ISSO AQUI NÃO É GREGO. Por debaixo das
conexões inusitadas, e da visão panorâmica e introdutória, eu tinha em mente algo
mais profundo e ambicioso, o esforço de propor, através de um “minicurso virtual”,
uma relação diferente com a literatura greco-latina, não pautada pelo recorte histórico
padrão. Dá para notar isso pela ordenação não cronológica entre gregos e latinos. Se
as histórias da literatura clássica tendem a se abrir com a Ilíada de Homero (fixando,
de saída, que ela é uma produção anterior à Odisseia), aqui fiz questão de colocá-la
por último, deliberadamente embaralhando os textos. Essa decisão não deve ser
interpretada de forma alguma como desprezo pelas historiografias literárias em si, que
têm norteado o ensino de várias gerações e até hoje são ferramentas didáticas
importantes. O ponto é outro: o fato de essas historiografias se pautarem por um
enfoque progressivo e determinista. A princípio, essa até pode ser uma ferramenta
investigativa útil, quando autores, gêneros, obras e épocas estão bem documentados.
Requer, de todo modo, cuidado e sensibilidade, porque a literatura nunca é mero
reflexo, nem da vida nem do ambiente (em suas múltiplas dimensões), a realidade
nunca é mero avanço (ou decadência) e os gêneros não existem em si mesmos. O
problema é quando essa ferramenta se torna viciada, cômoda, e a abordagem do texto
é condicionada por fatores que estão a serviço de uma narrativa já estabelecida. A
obra se transforma em “sintoma”, porque a meta é historiar cultura, sociedade, fontes
e gêneros, com seus nexos causais. A situação se agrava quando os dados externos, e
às vezes os internos, são especulativos em excesso, algo que não é não infrequente
aqui, uma vez que estamos falando de séculos muito remotos. Para piorar, por causa
daquela pretensão científica na qual os Estudos Clássicos insistem ainda em se
escorar, o que é apenas especulação, um consenso entre os especialistas solidificado
pelo tempo, tende a ser transmitido como fato.

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É esse conjunto de práticas que é posto em xeque, às vezes de forma explícita, às vezes
silenciosamente, nas próximas páginas: nelas não há etapas nem fases, seja no trato
com épocas, sociedades, obras ou vidas. Nem há aquelas digressões, muitas vezes
estéreis, sobre o que é autêntico e o que é espúrio, tampouco as abordagens histórico-
formalistas extremadas sobre as manifestações literárias. Não porque sejam todas
desinteressantes: elas produziram alguns dos resultados mais instigantes dos Estudos
Clássicos. A periodização e seus cacoetes não comparecem aqui, na realidade, porque
estou convencido de que há outras especulações, igualmente ricas, que podem ser
experimentadas e quase não são, como a que me interessa em especial, a literária de
fato, com seus mecanismos, temas e significados. Insistimos demais no aspecto
extraliterário quando falamos da literatura clássica, nos habituamos a focar no que é
acessório, lateral. Mesmo os movimentos que querem se distanciar do historicismo
reincidem nele. Discutimos o que não temos em detrimento do que temos, um
contrassenso há muito enraizado na área. Teorizamos de forma incessante, por
exemplo, sobre quem foi Homero, seu tempo, a cronologia relativa das suas obras (e
da épica) e as diretrizes do gênero que praticava, mas interpretamos muito pouco os
seus poemas e os comparamos menos ainda, literariamente falando, com outros.

Aqui o foco são os textos: poemas, peças de teatro, narrativas curtas, narrativas longas,
diálogos em prosa, tratados. Aqui há crítica literária, há apreciação estética e salto
interpretativo, coisas que o cientificismo tende a ver com desconfiança, por se
considerar um método objetivo, que trabalha com produtos históricos. Foi abrindo
espaço a uma subjetividade incontornável que pus esses textos para dialogar de forma
autônoma, com a história por detrás enquanto referência imprescindível, claro, mas
sem a camisa de força dos condicionamentos de fora e de debates que nos distraem
do essencial. Minha esperança é mostrar, ao driblar as bases tradicionais dos Estudos
Clássicos, com suas certezas frágeis, com suas narrativas já cansadas e recalcitrantes,
que não anulamos o aporte investigativo – pelo contrário: adotamos uma posição mais
humilde e interrogativa. Começar a romper com a nossa complacência em relação a
uma prática consolidada pode estimular a curiosidade de quem lê, inclusive a do
especialista, e promover a revitalização de obras que primam pela polissemia. Elas
são mais que épocas, etapas, autores e gêneros, e por isso ainda falamos delas.

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#1 CLITEMNESTRA E O SEXISMO NO AGAMÊNON DE ÉSQUILO

Agamênon, ou Agamêmnon, ou Agamenão, é o líder do exército grego na expedição


contra Troia e um personagem de destaque na Ilíada de Homero. É ele que dá título a
essa tragédia de Ésquilo do século V a.C., talvez a mais bonita de todas as tragédias e
uma das peças de teatro mais impressionantes já escritas. Ela conta como esse rei, ao
voltar vitorioso da Guerra de Troia, foi assassinado pela esposa, Clitemnestra, em
conluio com o seu amante, Egisto. Existem outras duas peças que Ésquilo escreveu
para servirem de sequência ao Agamênon: nelas ele conta como Orestes mais tarde
vingou a morte do pai matando a mãe e o amante, e como foi finalmente absolvido
num tribunal. O conjunto dessas três peças é conhecido como “Oresteia”.

Ésquilo usa essas peças para tratar da violência, da relação entre crime e castigo e da
implementação da justiça, mas dá para dizer que a discriminação entre os gêneros
masculino e feminino tem também um papel importante nessa história. Aqui eu quero
falar sobre como o sexismo aparece no Agamênon, a primeira e mais importante peça
da trilogia. A própria escolha do título já nos dá uma pista: lendo a tragédia, a gente
vê que o personagem do Agamênon tem uma participação muito reduzida em
comparação ao da Clitemnestra. A figura central, do começo ao fim, é ela. A peça
Agamênon deveria se chamar, na verdade, Clitemnestra. O fato de isso não ter
acontecido, junto com o fato de Clitemnestra ser, ao mesmo tempo, uma figura
extraordinária nesse drama, trai uma tensão marcante na criação de Ésquilo, que oscila
entre o empoderamento da esposa do rei e a sua desqualificação pelo fato de ser
mulher.

É um pouco a contradição na base da própria cultura grega antiga: ela pôde criar tipos
femininos fortes e inesquecíveis, como Penélope, Helena, Antígona, Fedra e Medeia,
mas as histórias envolvendo esses tipos tradicionais eram recontadas por homens, num
ambiente patriarcal, androcêntrico. As mulheres não tinham a oportunidade de
compor poemas, criar peças ou trabalhar como atrizes – eram os homens que
representavam as figuras femininas no teatro. Alguns acreditam que elas nem podiam
assistir às peças. De um ambiente assim asfixiante e machista a tendência é imaginar

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que pouca coisa poderia sair sobre o que significava ser mulher, mas não é o que
acontece. No Agamênon, Ésquilo criou uma Clitemnestra que se sobrepõe a todas as
figuras masculinas que encontra pela frente, tendo para isso que lidar com as
dificuldades e os caminhos associados ao seu gênero na Grécia Antiga. Uma
Clitemnestra que, por tabela, nos ajuda a pensar essas questões nos dias atuais, num
país tão desigual e violento como o Brasil.

O poder de Clitemnestra na peça tem a ver com uma escolha decisiva feita por
Ésquilo: ao invés de ela ser, como aparentemente era nas versões correntes dessa
história tradicional, uma simples ajudante do amante Egisto, a quem se uniu na
ausência de Agamênon, ela se torna agora a mentora e condutora do assassinato. Mais
do que isso: estando o trono vago, é ela que detém o poder na cidade de Argos. Com
a volta do rei da guerra, o conflito deixa de ser assim um conflito entre dois homens
para se tornar um conflito entre um homem e uma mulher. Desde o princípio da peça,
fica patente todo o desconforto dos personagens masculinos ao redor de Clitemnestra
com a sua liderança e a sua infidelidade. Ela é uma figura isolada, mas jamais frágil.
E está determinada a matar o marido no momento em que este voltar de Troia. O
motivo? Agamênon tinha sacrificado, dez anos atrás, a filha Ifigênia, para conseguir
ventos favoráveis e poder partir rumo à guerra.

A estrutura da peça é simples, alternando-se entre algumas poucas cenas e os cantos


corais. Na abertura, um vigia posto no alto da casa pela senhora vê os sinais de fogo
que, como uma espécie de telégrafo primitivo, anunciam a vitória grega em Troia.
Trata-se de um monólogo, Clitemnestra não está no palco ainda, mas o
descontentamento masculino com o poder dela e com sua traição está bem claro. Já
sabemos quem manda em Argos, e quem manda é uma mulher que decidiu não se
submeter às vontades e aos atos do seu senhor. O coro começa a cantar em seguida.
Ele representa os anciãos da cidade, não por acaso homens que, novamente, são
contrários a Clitemnestra. Na cena seguinte, já avisada pelo vigia, ela finalmente
surge, para conversar com os velhos do coro sobre a notícia da volta do rei com seu
exército. A reação deles é de desconfiança – a notícia só pode ser fantasia de mulher.
Ela rebate dizendo que é tratada como criança e mostra saber muito mais do que o

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coro poderia imaginar, tanto sobre o sistema de transmissão dos sinais de fogo, que
ela descreve em detalhes, quanto sobre o que deve ter se passado nos instantes finais
da conquista de Troia. O coro reconhece que ela falou bem, mas faz isso com um
elogio sexista, “você falou como um sábio homem”, e o diálogo termina para dar lugar
a um novo canto coral.

Clitemnestra já dá provas aí de que a mulher não precisa ficar confinada ao gueto em


que foi posta pelos homens. Mas os anciãos resistem a equiparar a mulher ao homem.
Nas duas cenas seguintes da peça, o que se vê é Clitemnestra sendo ainda inferiorizada
pelas figuras masculinas, mas se aproveitando dessa inferiorização para pôr em prática
seu plano de vingança. É uma espécie de teatro dentro do teatro: ela tem que fingir
que é a mulherzinha que todos esperam que seja nesse ambiente, para enfim conseguir
o que quer: atrair Agamênon para dentro do palácio e matá-lo. Dois homens chegam
a Argos nessas cenas. Na primeira, o arauto do exército, que anuncia a vinda próxima
do rei. Na segunda, o próprio rei Agamênon. Dado curioso e muito significativo: em
ambas as cenas Clitemnestra está no palco desde o princípio, mas é simplesmente
ignorada; os homens devem primeiro conversar entre si. Ou seja, tanto o arauto quanto
Agamênon falam antes com o coro masculino, para só depois darem espaço para
participação de Clitemnestra.

Esse silenciamento inicial, do ponto de vista cênico, é a indicação de um inegável


sexismo, mas ajuda também na estratégia de Clitemnestra para ultrapassá-lo. A
mulher deve se recolher ao seu lugar para conseguir sair dele. Na cena com o arauto,
quando tem finalmente a chance de se manifestar, a rainha diz a ele (que se mostrava
obviamente feliz com o regresso do exército) que ela também se alegrava. O sentido
oculto não passa despercebido ao coro, mas os velhos não têm coragem de dizer a
verdade. A mesma coisa acontece na cena seguinte, a única da peça em que Agamênon
aparece. Clitemnestra, como eu disse, primeiro deixa que os homens conversem entre
si, mas depois se insere com muita habilidade no diálogo, apresentando-se como uma
Penélope lamentosa, que sofreu com a ausência do marido e cujas lágrimas já tinham
secado de tanto chorar.

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Mas o ponto alto é o convite dela para que Agamênon entrasse no palácio pisando
num tapete vermelho, símbolo da sua glória. O rei, cheio de si e mais vaidoso do que
nunca após a vitória, a princípio resiste e tenta se apegar à necessidade de moderação
e modéstia, mas – como todo macho endeusado pela mulher – acaba por morder a
isca. Quando representada no palco, é uma cena muito simbólica essa do tapete,
porque se trata na verdade de um caminho de sangue, uma antecipação da morte de
Agamênon, que vai ocorrer fora de cena, atrás do palco. Como a história do seu
assassinato ao voltar da guerra era tradicional, a plateia já sabia o que estava prestes
a acontecer, e assim Ésquilo pôde sublinhar o contraste entre o homem que se julgava
poderoso, mas era na verdade a vítima, e a mulher que se pintava passiva, mas era
senhora absoluta da ação.

Há um dado a mais, evidente para quem assistia à peça: Agamênon não chega sozinho.
Ele traz junto uma cativa de guerra, a troiana Cassandra. O homem que podia matar a
filha sem dar a mínima para a opinião da esposa podia também ter livremente suas
escravas sexuais. Da perspectiva masculina, caberia à mulher apenas aceitar, como
caberia a Medeia aceitar a traição de Jasão, e a Dejanira aceitar a de Héracles. Mas os
mitos gregos vão além e falam, como sabemos, de mulheres que não se submetem.
Cassandra é uma dessas mulheres e será a figura central na cena anterior ao assassinato
de Agamênon. É ela que dialoga com o coro e leva ao ápice a atmosfera de desastre
que pairava desde o começo da peça. Sendo alguém que tem o poder da vidência, a
estrangeira Cassandra é capaz de descobrir os crimes passados e futuros da família.
Mas junto com esse poder ela obteve uma maldição: a de não ser levada a sério. O
castigo foi imposto pelo deus Apolo por ela ter resistido ao seu assédio. Sim, na cena
mais impactante, de novo a violência masculina em relação à mulher entra como dado
nada desprezível.

A parte final da peça, depois de ouvirmos os gritos do rei enquanto é golpeado pela
esposa, traz uma transformação de Clitemnestra: ao reaparecer, ela não precisa mais
fazer o teatro da mulher dócil e pode assumir abertamente seu poder. Nem o vigia,
nem os anciãos do coro, nem o arauto, nem o próprio Agamênon – nenhuma dessas
figuras masculinas foi capaz de se contrapor ao desejo dela de vingança. Ela

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simplesmente não aceitou, de modo passivo, a perda da filha. O recato e o silêncio,
símbolos da mulher submissa, são postos de lado. Agora ela proclama em alto e bom
som o sucesso da sua armadilha e a satisfação com o assassinato. O coro, chocado, a
censura, mas Clitemnestra não se abala. Numa das afirmações mais desconcertantes
da literatura grega, ela diz que o crime lhe trouxe sabor adicional na cama, uma
referência explícita à sexualidade e ao prazer feminino. Daria para escrever uma tese
sobre a dificuldade dos estudiosos – homens, basicamente – em digerir essa fala. Mas
falta ainda aparecer Egisto, o amante, e é isso que acontece na última cena da peça. O
fato de ele surgir só no fim é a confirmação daquilo que eu disse antes: nessa versão
da história, a figura de destaque é Clitemnestra, e é ela ainda que dá as cartas aqui. No
bate-boca que se forma entre os machos, com os velhos do coro acusando Egisto de
ter agido como uma mulher, por não ter ousado cometer o crime com as próprias mãos,
é a mulher, Clitemnestra, que intervém para controlá-los, quase como se fossem
crianças. A protagonista da peça, tratada como criança pelos homens em boa parte
dela, fecha a ação reafirmando aquele empoderamento de que deu mostras desde o
princípio.

O Agamênon é uma peça sobre Clitemnestra, sobre a perspectiva feminina, sobre os


obstáculos que as mulheres têm de enfrentar, sobre seus silenciamentos. É bem
verdade que, na sequência da trilogia, com a morte dela e de Egisto, na segunda peça,
e com Orestes saindo impune do crime terrível do matricídio, na terceira, a mensagem
parece ser outra: não se pode admitir uma Clitemnestra na sociedade. O assassinato
da mãe pelo filho pode sim ser perdoado, mas matar o marido é imperdoável; as
mulheres podem sim ser as vítimas, mas os homens nunca. No entanto, por mais
apaziguadora que essa mensagem final pudesse soar aos ouvidos dos atenienses, o
fato é que Clitemnestra pode ser tomada como a grande figura da trilogia. Ela é a
única, aliás, que aparece nas três peças – na última delas é seu fantasma que surge
como personagem. A sua presença é tão poderosa que impede que a lição
provavelmente pretendida por Ésquilo sirva de palavra final. À revelia do autor, a
divisão entre os sexos, com seus papéis pré-definidos, e com a mulher lutando contra
a opressão de que era vítima, acaba por se impor como uma questão sem resposta à
vista, e igualmente trágica.

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Pra terminar, quero falar sobre a relação entre os sexos num exemplo bem diferente
do Agamênon de Ésquilo. Todo mundo sabe que a figura feminina mais importante
da poesia homérica é Penélope, a esposa de Odisseu. Penélope é central na Odisseia:
espera durante dez anos pela volta do esposo da Guerra de Troia. Como ela se
comporta durante a ausência do marido? Chorando, lamentando-se, preocupando-se
com o futuro do filho deles, Telêmaco. Mas também, nos anos finais dessa espera,
tendo que lidar com mais de cem homens que, imaginando o rei morto, sonhavam em
tomar o lugar dele e casar com a rainha. Só que Penélope, ao contrário de
Clitemnestra, é uma esposa fiel. Ela resiste ao avanço dos pretendentes e ainda
imagina uma estratégia para conseguir esse objetivo: diz que precisa tecer uma
mortalha para o pai de Odisseu e que só depois disso poderá escolher um novo homem.
Mas o que ela tecia de dia depois desfazia à noite, tornando o trabalho interminável.
Claro, ela acaba sendo descoberta e a animosidade no palácio aumenta, mas o que eu
quero mostrar é como, a princípio, Penélope é uma “anti-Clitemnestra” e, portanto,
um personagem que se ajustaria bem à visão machista dos gregos. Odisseu trai
Penélope sem problemas, com Circe e com Calipso, mas Penélope, mesmo cortejada
por vários jovens, se mantém pura. Ela representaria assim essa linhagem feminina
íntegra, enquanto Clitemnestra, junto com irmã infiel Helena, representariam a
linhagem dissoluta.

O poema endossa isso, mas a verdade é que Penélope é mais que esse exemplo
feminino construído pela misoginia. Como os estudos feministas começaram a
mostrar a partir da década de 70, Penélope, por causa da estratégia da mortalha e de
uma esperteza capaz de rivalizar com a do marido, tem outra faceta, nada dócil. Ou
seja: mesmo na Odisseia, uma obra que, diferentemente do Agamênon de Ésquilo,
parece pintar um retrato controlado sobre o comportamento feminino tido como ideal,
mesmo nela esse comportamento, na figura de Penélope, ultrapassa as cercas socias e
culturais pré-definidas.

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#2 CORRUPÇÃO HUMANA NOS TRABALHOS E DIAS DE HESÍODO

Hesíodo e Homero são os grandes nomes da poesia épica grega antiga. Apesar de
estarem associados a um mesmo gênero e usarem o mesmo metro, seus poemas são
bem diferentes. Quando pensamos em Homero pensamos na Ilíada e na Odisseia, que
são longos poemas narrativos com mais de dez mil versos cada, onde os personagens
principais são deuses e heróis. Mas quando falamos de Hesíodo estamos falando de
poemas relativamente curtos para os padrões épicos, e de poemas onde encontramos
uma narrativa bem reduzida, porque o propósito deles não é tanto o de contar uma
história, mas sim o de informar e orientar. Homero, com suas figuras poderosas e
sofridas, seus grandes painéis, quer prender nossa atenção e nos comover. Hesíodo,
com suas ideias e seus esquemas, quer nos instruir e fazer pensar.

O poema mais famoso de Hesíodo é a Teogonia. Ele traz longas e intermináveis listas,
com os nomes dos deuses que foram surgindo para dar forma ao mundo. A ideia é de
que este mundo é resultado não da criação de um deus único todo-poderoso, mas de
uma série de uniões sexuais divinas, tendo como matriz principal Terra e suas transas
com os filhos Céu e Mar. Intercalada a essas listas vem uma parte narrativa: ela mostra
como desde o princípio houve uma disputa pelo poder entre os deuses do sexo
masculino, até Zeus se tornar o grande rei do mundo e conferir estabilidade e ordem
à vida sobre a terra. Trabalhos e Dias é o outro poema de Hesíodo, menos conhecido
e lido. Tem só 828 versos e é um manual de reflexões e instruções. Se o propósito
didático é mais indireto na Teogonia, aqui ele se torna explícito. É um poema que
pode ser lido como uma continuação da Teogonia: de que modo a ordem que Zeus
estabeleceu lá atrás, no desfecho da Teogonia, tem sido mantida – ou tem sido
ameaçada – na vida humana?

Pra responder a essa questão, Hesíodo optou por um caminho bem diferente daquele
que encontramos na Teogonia. Nos Trabalhos e Dias já não temos a narrativa em
terceira pessoa, que a gente costuma associar imediatamente à poesia épica. Agora há
uma voz que fala em primeira pessoa e essa voz está imbuída de uma missão:
denunciar os desvios da justiça que foi estabelecida por Zeus e, mais ainda, mostrar

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que justiça é essa e qual a importância de a respeitarmos. para não dar a esse tema
uma formulação abstrata demais, sem uma relação clara com o mundo real, Hesíodo
parte de um drama familiar, a disputa entre o eu poético e o seu irmão, chamado
Perses, pela herança paterna. Essa opção pela partilha é boa porque se trata de um
conflito recorrente nos núcleos familiares desde tempos imemoriais. Mas Hesíodo não
quer falar do direito da família em si: esse é só o ponto de partida para que ele aborde
questões religiosas e relações sociais de modo mais amplo.

É aí que entra a ideia de trabalho, que está no título do poema. Hesíodo busca mostrar
que o trabalho é algo a que estamos todos fadados. Quando alguém como Perses tenta
passar a perna no irmão, ou seja, quando alguém tenta corromper a justiça, esse
alguém está tentando driblar o suor do labor, a necessidade que temos de prosperar
pelos nossos próprios esforços, sem roubar dos outros e da comunidade. Na visão do
poema, mais que uma questão social e jurídica, essa é uma questão cósmica: é ir contra
a vontade de Zeus, ir contra a divisão de funções que ele estabeleceu para deuses e
humanos. O trabalho entra assim como item principal de uma discussão muito vasta
de justiça, porque o justo, mais do que aquilo que está previsto nas relações por um
código de leis, é simplesmente o mundo como ele é.

É por isso que, na sua segunda metade, o poema vai dar orientações sobre o cultivo
dos campos. É bom lembrar que o termo grego érga que está no título, e que
traduzimos por “trabalhos”, têm o sentido também de “lavouras”. “As lavouras e os
dias”. Hesíodo, ao mesmo tempo que está falando, claro, de trabalho, está falando
também de sazonalidade, da regularidade das estações, do momento certo para as mais
variadas ações, ou seja, de uma ordem natural fixada por Zeus. Quem acompanha, no
ambiente rural, a sucessão dos ciclos, não só está se dedicando ao lote que nos cabe,
ao suor do trabalho (como em qualquer outra profissão), mas está acatando esta
ordenação justa da natureza. É por isso também que o poema se fecha com uma
relação das atividades mais adequadas a cada dia do mês: para nós pode parecer pura
superstição, mas o princípio é o mesmo das estações – há uma justiça de Zeus por trás
disso. Hesíodo está ensinando ao leitor que, do menor ao maior elemento, da plantação
à navegação, das partes do dia às fases do mês, há uma medida e um tempo certo no

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mundo que não devem ser desconsiderados. Trabalhar é um entre vários sinais de
respeito a isso. E, apesar de Hesíodo reconhecer que vários fatores concorrem para
desestabilizar essa ordem, como os próprios juízes, que a deveriam garantir, mas
acabam sendo corrompidos, ele acredita que no fim Zeus se sobrepõe.

Mas essa segunda parte do poema que eu acabei de descrever, sobre o cultivo dos
campos e os dias, é um pouco entediante para o leitor de hoje. A parte mais lida é a
primeira, onde temos em sequência três mitos que explicam por que trabalhamos e
por que o trabalho, sendo um entre vários sofrimentos, ainda assim é justo. O primeiro
mito é o das duas Éris, que vem logo depois da invocação às Musas. Tradicionalmente,
na mitologia grega Éris é uma divindade só, que representa a discórdia, a luta, sendo
sempre associada à guerra. Mas nos Trabalhos e Dias Hesíodo resolve brincar com a
existência de uma segunda Éris, sua irmã, que é benéfica e merece nosso louvor, não
nossa censura. Das irmãs, é a que leva à rivalidade, à competição, que faz alguém
trabalhar ao sentir uma espécie de “inveja branca” de quem se esforçou e prosperou.
Fica claro que essa é uma visão apenas provisória e heterodoxa sobre uma divindade
que sempre teve, e continuou a ter, aquela existência única e puramente negativa. Mas
ela funciona aqui justamente porque explora, já de saída, o paralelismo com os dois
irmãos em disputa pela herança paterna: o corrupto Perses, que não quer saber de
trabalhar e só quer criar discórdia, e a figura honesta e trabalhadora do eu que diz o
poema, ciente dos ditames de Zeus e da forma certa de se portar.

A história seguinte é a de Prometeu e Pandora. Ela entra aqui para explicar por que
trabalhar é necessário. É o tipo de narrativa que chamamos de “etiológica”, muito
comum nos mitos. Antes os homens viviam uma vida idílica, livre de sofrimentos,
sem precisar cultivar os campos, até sofrerem sua queda do paraíso. Os personagens
centrais desse relato são Zeus e Prometeu. Zeus, enquanto rei do universo, estava
preocupado com a ordenação maior do mundo. Prometeu, enquanto deus menor
afeiçoado à raça humana, queria protegê-la e beneficiá-la. O primeiro ato de
Prometeu, numa época em que os deuses e os humanos – que eram exclusivamente
do sexo masculino – ainda faziam a refeição juntos, foi dividir o boi de um jeito astuto
e desigual: ossos para os deuses, mas cobertos por uma atrativa camada de gordura, e

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carnes para os humanos, só que cobertas por uma repulsiva camada de pele. Zeus finge
ser enganado pelo brilho da banha e escolhe a parte ruim, não comestível, para os
deuses. Como punição pela artimanha de Prometeu, não concede mais que os homens
tenham acesso ao fogo. Prometeu revida roubando o fogo e permitindo que os homens
o controlem. Zeus contra-ataca então determinando que seja criada a primeira mulher,
Pandora, um presente de grego: atraente por fora, mas destrutiva por dentro. Como no
relato de Adão e Eva, a misoginia é evidente.

Pandora é entregue então ao desavisado irmão de Prometeu, Epimeteu. Junto com ela
vai um jarro que, assim que é aberto, faz com que todos os males – entre eles o trabalho
– se espalhem entre os humanos. Acabou a vida boa dos machos. A conclusão é de
que Zeus, que não era bobo, usou Prometeu desde o começo: ele agiu como agiu
porque queria, como resultado final, separar os deuses dos humanos. Essa passou a
ser a justiça do mundo com a qual temos que nos conformar. Se o homem hoje deve
trabalhar, a culpa é em parte de Prometeu, porque quis ajudar a raça humana e
imaginou que podia ludibriar a inteligência de Zeus. Ao mesmo tempo que decaiu,
por causa desse jogo a humanidade também se tornou civilizada e “evoluiu”: agora
tem religião, seu próprio conhecimento técnico e a instituição do casamento.

O terceiro e último mito na sequência é o das cinco raças, um desdobramento do mito


anterior, de Prometeu e Pandora. É como se Hesíodo quisesse abandonar o esquema
simples do antes-e-depois-de-Pandora em favor de um quadro mais amplo da vida
humana sobre a terra, por fases. para nossa frustração, assim como na Teogonia de
novo a criação detalhada do primeiro ser humano não é narrada: o poema apenas diz
que os deuses fabricaram uma primeira raça humana, a de ouro. Ela corresponderia à
existência paradisíaca, pré-Pandora. Depois disso, ele apresenta mais três raças
criadas, a de prata, a de bronze e a dos heróis, antes de chegar à raça presente, a de
ferro. O movimento, pela lógica da desvalorização dos metais, é de declínio, mas vem
interrompido pela presença da quarta raça, dos heróis, que eram figuras cultuadas
pelos gregos. Mesmo assim, em todas as raças pós-ouro Hesíodo chama atenção para
elementos negativos: infantilidade, insolência, insensatez, excesso, violência, guerra.
Curiosa é a forma como ele aborda a raça atual, a de ferro, à qual nós pertencemos.

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Sendo já o poema todo uma descrição dessa raça humana, Hesíodo fica mais
preocupado em pintar, de um jeito bem apocalíptico, aonde vamos parar se largarmos
de vez a justiça e a moderação. Valer-se do discurso do medo é uma boa estratégia
retórica e contribui para reforçar no leitor aquilo que Hesíodo insiste em martelar ao
longo de todo o poema: a reverência às leis humanas e divinas.

Finalmente, depois dessa sequência de mitos, mas antes ainda de passar para aquela
segunda parte mais prática referente aos campos, sobre a qual eu já falei, Hesíodo
emprega uma seção inteira do poema para discorrer sobre a justiça nas relações
humanas. É o momento mais claramente moral e reflexivo do poema, e por isso ele se
parece muito com um outro ramo da poesia grega antiga, chamado elegíaco. Dentro
desse espírito sentencioso, uma das coisas mais interessantes da seção é que, para
pensar a justiça, ela se abre com uma pequena fábula, a fábula do falcão e do rouxinol.
Ela conta como o falcão, ao apanhar com suas garras o rouxinol e ouvir seus gritos,
disse para ele se calar e se conformar, porque o mais forte mandava e o sensato devia
simplesmente obedecer. A fábula termina e não temos nenhuma moral da história,
além da fala do próprio falcão. Hesíodo emenda, na sequência, uma série de
contrapontos entre as ideias de soberba, húbris, e justiça, díke, obviamente mostrando
a superioridade desta em relação àquela. Mas e que moral devemos extrair da fábula
enunciada antes? Que justiça existe no fato de o mais forte mandar e o mais fraco se
curvar? O poema cria um certo suspense e só dá a resposta lá na frente, quando
compara os seres humanos aos animais. Os bichos, como o falcão e o rouxinol da
fábula, são regidos pela lei da selva, num vale-tudo onde a força é determinante. Mas
Zeus estabeleceu a justiça para os homens, para que eles não vivam como animais.
Essa é a moral. A lei coíbe a força. Sim, Perses quis transformar o próprio irmão em
sua presa. Sim, os falcões continuam a voar por aí e continuam a tentar impor seu
poder. Mas, para Hesíodo, precisamos acreditar que existem mecanismos capazes de
nos garantir que a terra é, no fim das contas, um lugar justo para se viver.

Para concluir, quero falar sobre como situar historicamente a poesia de Hesíodo. Essa
é uma questão importante para os especialistas. para muitos, decisiva. Será que os
elementos que Hesíodo aborda em seus poemas refletem um ambiente político, social,

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intelectual, específico? Que ambiente seria esse, em linhas gerais? Como ele se
relacionaria, na Grécia Antiga, com as condições que vieram antes e depois? para
pegarmos o tópico da justiça, que acabamos de ver nos Trabalhos e Dias. Podemos
comparar o que Hesíodo diz com o que Homero diz a esse respeito em suas epopeias,
e também com o que Sólon diz em suas elegias e Ésquilo em suas tragédias. Indo
além, podemos situar no tempo Homero, Sólon e Ésquilo e, pertencendo eles a épocas
diferentes da época de Hesíodo, especular que as diferenças entre seus poemas se
devem ao fato de eles serem de épocas diferentes. Foi mais ou menos isso que a
historiografia da Grécia Antiga fez: insistiu em diferenças e distribuiu os poetas e suas
obras ao longo de um arco temporal, de modo que essa distribuição refletisse um
propósito evolutivo. Primeiro veio Homero, depois Hesíodo, depois Sólon, depois
Ésquilo, não numa simples sucessão temporal, mas numa progressão profunda. Cada
um, com cada obra, teria dado sua contribuição rumo à afirmação de visões mais e
mais complexas.

Para mim, esse olhar tem o grave defeito de ler as obras não como documentos
literários supratemporais de uma mesma cultura, mas como documentos históricos
pontuais determinados por momentos estanques, etapas de uma marcha maior pré-
definida. Ele privilegia as obras em seu nascimento e suposto vezo de reportar o
ambiente, mas esquece o tradicionalismo conservador delas e a sua relação genérica,
viva, com outras obras ao longo do tempo. A leitura historicista tem valor, se bem
embasada. Mas na falta de dados precisos sobre Hesíodo e a época dos poemas, prefiro
lê-lo em diálogo com Homero, Sólon, Ésquilo, sem assumir essa escalada temporal
transformadora, e entendendo que de perspectivas e lugares diferentes os três falam
da mesma justiça.

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#3 IRONIAS DO RACIONAL E DO IRRACIONAL NO ÍON DE PLATÃO

O Íon é um dos cerca de trinta diálogos compostos por Platão, o discípulo de Sócrates
na Atenas antiga. Sócrates fazia filosofia, na segunda metade do século V a.C., apenas
conversando com as pessoas. Platão encontrou um modo de fazer filosofia, na
primeira metade do século IV, através da literatura: criando, por escrito, debates nos
quais Sócrates é o eixo fundamental e ele mesmo, Platão, está ausente. Nesses
diálogos, Sócrates se encontra com um ou mais atenienses, ou estrangeiros, e eles
começam a discutir um tema. Como alternativa, Sócrates pode rememorar uma
conversa passada, ou algum outro personagem pode fazer isso. No final, somos
jogados numa controvérsia na qual se destacam o magnetismo de Sócrates e os
problemas que ele levanta em relação ao conhecimento e ao comportamento humano.
São cenas teatrais, baseadas no diálogo, e por isso exigem a destreza que um
dramaturgo precisa ter ao escrever uma peça. Só que Platão não quer apresentar uma
ação de fato: ao contrário do que vemos, por exemplo, numa tragédia grega, onde as
coisas se transformam na vida dos protagonistas e daqueles ao seu redor, nos Diálogos
nada, ou quase nada, acontece de concreto na vida dos envolvidos. Mas, por outro
lado, no plano do pensamento muita coisa acontece: verdades sólidas deixam de ser
tão sólidas e verdadeiras, definições aparentemente fáceis se tornam difíceis ou quase
impossíveis, figuras reconhecidamente sábias são questionadas.

É assim também no Íon, um dos menores textos de Platão e com uma estrutura muito
simples: Sócrates cruza por acaso com Íon, famoso rapsodo (ou cantor de poemas), e
eles entabulam uma conversa a princípio banal, mas que acaba os levando a uma
discussão mais complicada. As falas vão se alternando e somos tragados para dentro
desse debate. O tema central gira em torno do verdadeiro grau de conhecimento de
uma figura respeitada como Íon. Se, por sua profissão, ele conhece Homero de cabo
a rabo, e se Homero é “a” referência de conhecimento para os gregos antigos, resulta
daí que Íon deve ser realmente visto como autoridade, como uma espécie de
professor? Para evitar a aridez da discussão filosófica pura, Platão logo de cara nos
pinta, com rápidas pinceladas, os traços principais de cada personagem. Sócrates,
habituado a jogar conversa fora, tanto em público quanto em ambientes privados, é

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loquaz e gosta de conduzir o diálogo, não sem uma pitada de humor. Já Íon não
esconde a vaidade com todo o seu sucesso, mas é mais sério e reticente. Com poucas
páginas, e com ambos se tratando com deferência, Íon de repente já se vê encurralado
por Sócrates: como é que, sendo um profissional da recitação poética, ele se tornou
um especialista em Homero, desinteressando-se pelos outros poetas? Não é um
contrassenso se dedicar a uma atividade tão abrangente, com tantos poetas
interessantes, e ao mesmo tempo ficar restrito a um só poeta e sua obra?

Íon não se mostra incomodado: para ele, sua experiência concreta com Homero é o
que vale e ele afinal de contas tem tido êxito com as coisas tais como elas são. Mas
nesse ponto o rapsodo acaba por morder uma isca que Sócrates, sorrateiramente, tinha
lançado lá no princípio: e se o motivo para essa restrição ocorrer – e Íon admitiu que
ela ocorre – for o fato de ele, Íon, não ter conhecimento das coisas e agir simplesmente
movido por uma inspiração divina? E se essa falta de abrangência decorrer da
ausência de um domínio técnico do que faz? A figura inspirada não é justamente
aquela que não consegue fazer o que quer quando quer, porque depende desse lance
inexplicável, de uma espécie de possessão? Sócrates tenta provar isso a Íon com um
longo discurso. Ele defende que toda a cadeia criativa poética corresponderia a um
conjunto de elos interligados entre si a partir de uma única pedra magnética superior,
a Musa. É esse ímã divino que transmite seu poder aos demais elos que estão abaixo:
contagia os poetas, como Homero, que por sua vez contagiam os cantores dos seus
poemas, como Íon, que por sua vez contagiam a plateia. A conclusão de Sócrates, a
partir dessa metáfora, é de que na sua atividade Íon age fora de si, de forma irracional.

Para alguém mais atento, surgem pelo menos duas desconfianças aqui. A primeira:
será que é possível descrever assim uma profissão como a do rapsodo, em que o
aprendizado e o domínio consciente das mais variadas habilidades jamais poderiam
ser apagados, ainda que se admita um componente divino, um dom? A segunda
desconfiança tem a ver com o fato de que, no diálogo, Sócrates parece estar possuído
nesse momento em que descreve como funciona a inspiração poética. Ora, se ele quer
desqualificar o conhecimento do respeitado Íon, para mostrar por tabela que a
autoridade cabe ao racional filósofo, por que ele se comporta como alguém inspirado?

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Trata-se de uma gozação? E por que nos trechos de Homero que vão surgindo ao
longo do diálogo, é Sócrates basicamente que faz a recitação, e não Íon, o expert? Íon,
de qualquer forma, concorda com o quadro geral da inspiração descrito por Sócrates.
Mas é curioso que, na hora de comentar como, estando fora de si ao cantar Homero,
precisa ficar atento à plateia, para também deixá-la fora de si, Íon acabe sublinhando
o controle que tem sobre sua atividade. Ou seja, num momento central, em que
estariam se opondo o racional Sócrates e o irracional Íon, Platão mostra seu mestre
filósofo de um modo entusiasmado e meio descontrolado, enquanto faz questão de
sublinhar a frieza e a lucidez do rapsodo. Por que Platão embaralha os papéis?

Até esse ponto, o diálogo já acumulou algumas dúvidas e questões, não nos
permitindo chegar a uma conclusão clara a respeito do que está sendo defendido. Mas
o debate ainda não acabou. Depois de Íon deixar a atividade do canto de lado e dizer
que, pelo menos quando fala ou comenta sobre Homero, não está enlouquecido, e que
é capaz de discorrer sobre tudo que está na Ilíada e na Odisseia, Sócrates volta à carga,
apegando-se agora a esse “tudo”. Como assim, tudo? Há várias profissões retratadas
nos poemas homéricos, do cocheiro, do médico, do adivinho, do líder militar. Não são
os especialistas nessas áreas que poderiam discorrer sobre elas? Íon não deveria se
restringir à sua especialização profissional? Como ele pode alegar conhecimento
sobre coisas em relação às quais não tem domínio técnico? Íon não se faz de rogado
e bate o pé: dominando como domina o universo homérico em sua amplitude, e sendo
Homero uma enciclopédia para os gregos, ele detém sim esse vasto conhecimento das
mais variadas profissões. Sócrates perde então a paciência e pergunta por que então
Íon não trabalha como um líder militar, já que ele conhece tão bem a profissão, e tendo
os gregos muito mais necessidade de um general do que de um rapsodo...

Agora estamos perto do fim do diálogo e parece que finalmente Sócrates esmagou Íon
e provou sua limitação. Se ele tem alguma habilidade consciente (e será que tem
mesmo?), seria apenas a do rapsodo, e esta não poderia, claro, ser estendida às outras
habilidades, só pelo fato de elas estarem retratadas nos poemas que ele sabe cantar e
conhece tão bem. Íon é uma fraude e não merece a reputação que conquistou. Mas
aqui de novo, mais do que embarcar nessa leitura e atacar Íon, acho que vale a pena

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levantar algumas suspeitas contra Sócrates. Parece estranho que primeiro ele tenha
criticado o rapsodo por não explorar todo o alcance da sua atividade, ficando restrito
a Homero, o que seria prova da sua falta de conhecimento, e que depois tenha criticado
o rapsodo por querer ter justamente o alcance que Homero lhe dava sobre várias
atividades, o que seria para Sócrates, agora, nova prova de limitação cognitiva. Ou
seja: primeiro Íon sairia diminuído porque sua técnica era especializada demais e
talvez nem técnica fosse, e em seguida porque sua técnica não era especializada como
deveria ser.

Sócrates não está sendo um mau debatedor, usando a especialização ora como algo
ruim, ora como algo bom, segundo lhe convém? Muitos leitores diriam que não, que
são casos diferentes. Mas a tirada final de Sócrates no diálogo parece, a meu ver,
incriminá-lo. Num misto de indignação e sarcasmo, o filósofo diz estar sendo
ludibriado por Íon, que ele, Íon, é liso e age como um Proteu (a figura mitológica que
tinha o dom da metamorfose), por não mostrar o conhecimento que diz ter. Afinal, o
que ele prefere ser: esse enrolador que não comprova o seu saber ou alguém sem
técnica mas divino, por causa da inspiração que recebe? Acuado, Íon responde que
com certeza é bem melhor ser considerado divino, e Sócrates fecha o diálogo louvando
a beleza dessa condição divina, desprovida de técnica.

Tudo estava nebuloso no meio da conversa e tudo termina de forma nebulosa. Sócrates
venceu o debate? Talvez. Mas Íon é ingênuo e manipulável demais para que essa
vitória tenha um grande valor. Seria perigoso se alinhar a Sócrates e tirar como lição
uma oposição pura e simples entre o filósofo que sabe e o pretenso sábio que no fundo
é uma farsa. O diálogo não demonstrou que a poesia é só inspiração. O diálogo não
demonstrou que o conhecimento é apenas habilidade racional. Será que mostrou que
Íon é superior a Sócrates, por ser divino, e que esse é o valor supremo? O que ele com
certeza mostrou é que esses temas são escorregadios e que podemos cair em becos
sem saída no momento em que nos lançamos à tarefa de entender alguma coisa. As
aparências enganam. O mais fascinante no Íon, como em toda a filosofia platônica, é
que ela está sempre em movimento. Não quer só doutrinar ou polarizar. Platão
conseguiu esse efeito ímpar por causa de pelo menos duas escolhas que fez ao

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construir seus Diálogos. A primeira e mais radical foi desparecer do texto, não ter voz
nas conversas, seja como narrador, seja como personagem, e assim não enunciar
diretamente uma filosofia. A segunda escolha, talvez a mais difícil de pôr em prática,
foi reelaborar o personagem de Sócrates para que ele fosse o herói das suas obras de
um jeito muito especial. Mais que a figura impecável e exemplar do sábio, ele teria de
ser um sábio cuja sabedoria na prática viesse sempre posta em xeque: diferentemente
dos sábios de plantão, Sócrates não é um poço de conhecimentos, certezas, acertos.
Ele desconfia do que sabe. E essa desconfiança pode ter o efeito de nós também
desconfiarmos dele. Mais que o farol que a tudo ilumina, ele é a lanterna bruxuleante
que acende e apaga, para assim dar vida nova à investigação.

Se a gente pensar numa outra imagem, a da gangorra, talvez fique mais fácil entender.
Para muitos, o Íon é o típico diálogo que começa com Sócrates adotando uma posição
humilde e com seu oponente cheio de si, para aos poucos eles irem trocando de
posição, até Sócrates surgir como alguém com autoridade maior em comparação à
agora rebaixada figura do seu interlocutor, finalmente desmascarado em suas
limitações. Como no movimento da gangorra, quem estava por cima desceu, enquanto
quem estava embaixo subiu. Mas existe uma outra possibilidade, também válida: a de
imaginar que a gangorra está sempre se mexendo, subindo e descendo, sem que haja
uma posição estática inicial e final, e que seus participantes podem ficar trocando de
lugar, sendo contrapostos e também nivelados. Como Platão consegue alcançar isso?
Exatamente porque constrói um Sócrates oscilante e que se reparte em vários planos.
Ele é sábio, mas não é sábio como os demais sábios, porque sabem com segurança e
gravidade. É o contrário disso que acontece. E essa contradição, do sábio sátiro, é algo
que só Platão conseguiu nos fazer admirar em Sócrates.

Para terminar, quero falar sobre como situar o Íon no conjunto da obra de Platão. A
visão quase consensual hoje é a seguinte: a produção de Platão passou por três fases.
Na primeira, ele produziu diálogos em que a influência de Sócrates era clara. A
filosofia platônica ainda não tinha tomado corpo e o propósito era retratar o mestre.
Numa segunda fase, Sócrates permaneceu como personagem central, mas a discussão
assumiu outras cores, revelando ideias não mais associáveis ao Sócrates histórico.

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Finalmente, numa última fase, Platão se permitiu diminuir a importância de Sócrates
na discussão, ou até eliminá-lo, com seu edifício filosófico já plenamente constituído.
Essa visão, super prática porque agrupa os Diálogos por etapas e direciona já de saída
a leitura, é uma narrativa. Uma entre muitas possíveis. Tem nos ajudado a ler Platão
há décadas, mas não raro esquecido de como seus pressupostos são discutíveis. Por
ela, o Íon seria um diálogo da primeira fase, porque é breve, não faz alusão a tópicos
filosóficos mais densos associados a Platão, além de ser bem-humorado e
inconclusivo. Corresponderia à infância intelectual de Platão. O paralelismo biológico
não é casual. Haveria escondido nos Diálogos um desenvolvimento lógico e linear, da
juventude à velhice, só à espera de ser descoberto.

Mas as obras de qualquer pensador prolífico, as que podemos datar com precisão,
apresentam sempre um desenvolvimento lógico e linear? As primeiras são sempre
mais curtas e menos densas? São as que apresentam maior interferência dos mestres
que as inspiraram? Todo autor ruma em direção ao aperfeiçoamento, de modo que sua
criação começa vacilante, atinge o apogeu e, depois, um inevitável remanso? A de
alguns autores sim. Mas não é uma regra. Os Diálogos de Platão não trazem data: não
sabemos quando nem como cada um foi escrito. A meu ver, o esquema das três fases
é uma hipótese interessante. Mas o Íon pode ter sido criado em qualquer momento da
vida de Platão: não precisamos lê-lo em função de uma cronologia para que suas
questões sejam relevantes. O Íon não precisa ser uma preparação para a evolução de
Platão.

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#4 AS AUTOFICÇÕES DE ODISSEU NA ODISSEIA DE HOMERO

“Madame Bovary sou eu.”

A famosa fala de Gustave Flaubert, o escritor francês do século XIX, autor do clássico
Madame Bovary, talvez seja um bom ponto de partida para se discutir a ideia de
autoficção e a sua relação inusitada com a Odisseia de Homero, um dos grandes épicos
da antiguidade. Num primeiro momento, a fala de Flaubert aponta para a identificação
possível entre o romancista e os seus personagens, ou mais precisamente para a
identificação entre o romancista e o seu personagem central. Mesmo numa narrativa
em terceira pessoa, como é o caso de Madame Bovary, e mesmo numa história sobre
uma mulher elaborada por alguém do sexo masculino, como não pensar nas fontes
reais e imediatas que alimentam a ficção, ainda mais a ficção realista? Como não
pensar no texto enquanto um reflexo, direto ou indireto, do seu criador ou da sua
criadora?

Num livro saído em 1961, A Morte da Tragédia, o crítico George Steiner afirmou que,
ao contrário do homem clássico, o homem romântico, o tipo de artista surgido há mais
de duzentos anos, é um Narciso em perseguição e afirmação exaltada da sua única
identidade. No mesmo livro Steiner disse ainda que toda arte clássica, a arte anterior
ao romantismo, empenhava-se no ideal da impessoalidade, para separar a obra da
contingência do artista, mas que o romantismo almeja o contrário, porque na
imaginação romântica a expressão invariavelmente tende para o autorretrato. Sim,
ainda somos todos românticos. Talvez nunca tenhamos sido tão românticos quanto
agora. Steiner, no seu livro, queria falar especificamente do drama clássico e do autor
que aí é, por natureza, elusivo, ou seja, escorregadio e inapreensível, um autor que
deseja desaparecer e que, portanto, é muito diverso do modelo que admiramos e
cultivamos na nossa modernidade e pós-modernidade. Mas, mesmo assim, mesmo
com Steiner querendo falar de outro tema, nós podemos utilizar seus dizeres para
pensar em como, nos dias de hoje, a exacerbação da nossa sensibilidade tão
autocentrada, mais do que simplesmente apontar para possíveis identificações entre
autor e personagem, ou para o tão conhecido subjetivismo projetado largamente na

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nossa poesia, deu origem a um subgênero narrativo popular cujo combustível é,
abertamente, a própria vida de quem escreve: a autoficção.

Rigorosamente falando, a autoficção é uma narrativa em primeira pessoa na qual o


narrador tem o mesmo nome do autor. Seu objetivo é combinar autobiografia com
liberdade de criação. Firma-se com o leitor o pacto de que o autor vai relatar sua
própria vida, em trechos ou na íntegra, mas sem historiá-la com absoluto rigor factual
– antes se permitindo aquelas liberdades próprias da escrita criativa. Ou seja, no final
das contas, o autoficcionista flerta com os papéis de cronista, autobiografista e
romancista, não sendo nenhum deles exatamente. A existência reconhecida desse
formato novo, a autoficção, já há algumas décadas pelo menos, pode assim ser tomada
como uma espécie de confirmação, mas sob uma feição agora nova, do individualismo
narcísico surgido com a ascensão burguesa de fins do século XVIII, como Steiner
apontou de passagem em sua obra.

Mas a autoficção, apensar da definição que apresentei, está longe de ser uma realidade
textual simples. Ela se desdobra em inúmeras direções, comporta diferentes graus e
formatos, e no final extrapola o próprio texto impresso, porque depende de dados
extratextuais que também fazem parte da relação leitor-obra. Estou pensando, por
exemplo, no posicionamento que o autor em geral assume publicamente em relação
ao seu texto, e o modo como este é apresentado no ato da publicação. São elementos
que afetam a recepção, porque a leitura não se dá no vazio. A obra pode ser vista como
mais ou menos fantasiosa, mais ou menos verdadeira, mais ou menos polêmica. Ou
esses aspectos podem ser simplesmente ignorados. Ou os conceitos de verdade e
ficção podem variar radicalmente de cultura para cultura.

O fato é que, para além de termos a simples constatação nome-do-narrador igual a


nome-do-autor, no tradicional formato em primeira pessoa, e um ponto equidistante
entre fato e fantasia, podemos ter na autoficção variadas combinações. Pode haver a
ficcionalização do nome do personagem e das muitas situações que atravessa, ficando
ainda assim mantida para o público a ideia de que se trata de uma narrativa alimentada
pela realidade do autor. Há os casos em que o autor se inclui como observador de uma

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história alheia, que ele narra quase como repórter, sem descartar o dado ficcional, uma
mistura entre jornalismo e literatura que teve como um de seus expoentes Truman
Capote, com seu A Sangue Frio, um non-fiction novel, um “romance de não-ficção”.

Aqui, com o objetivo de traçar um paralelo entre a autoficção e o Odisseu da Odisseia,


me interessam especificamente, nesse universo amplo e talvez inclassificável,
algumas modalidades da combinação verdade-mentira. Provisoriamente, pensei em
quatro tipos de autoficção, distintas entre si, de épocas e culturas diferentes:

a. O primeiro tipo seria aquele em que o autor nega a presença no texto de verdades
factuais/pessoais, no intuito de criar um universo puramente ficcional, mas sem
sucesso, uma vez que o alter-ego é facilmente detectado. Um exemplo possível seria
o nosso Lima Barreto com o seu romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha,
de 1909. É bom registrar que essa sua dificuldade em separar criação e vida foi vista
com maus olhos pela crítica, como uma limitação na sua atividade.

b. O segundo tipo seria aquele em que o autor, ao contrário, nega a princípio a presença
de mentiras e invenções, imaginando que a sua narrativa, ainda que operando com
uma elaboração que é claramente ficcional, seria verdadeira. O melhor exemplo aqui
seria a série Minha Luta, em seis volumes, do norueguês Karl Ove Knausgaard. O
relato foi contestado por pessoas envolvidos na narrativa antes mesmo da publicação,
produzindo controvérsia à época do lançamento, a partir de 2009, e obrigando o autor
a trocar os nomes reais de alguns personagens.

c. O terceiro tipo seria aquele em que o autor assume a mistura deliberada de verdades
e mentiras, sem traçar uma fronteira clara entre o que aconteceu e o que foi inventado,
e – dado importante – mantendo seu personagem central anônimo. Exemplo recente é
o romance Maternidade, da canadense Sheila Heti, de 2018.

d. Finalmente, há aquele quarto formato em que aquilo que se apresenta como


memória fidedigna é pura ficção, subgênero chamado, pelos que denunciam essa
fraude editorial, de “fake memoirs”. Porém os autores, em defesa própria, preferem

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qualificar esse procedimento de ficção biográfica. Exemplo famoso é Misha: Uma
Memória dos Anos do Holocausto, de Misha Defonseca, pseudônimo de Monique de
Wael. O livro saiu em 1997 e foi inicialmente recebido com aclamação, tornando-se
um best-seller, para depois ser desmascarado como engodo.

Estou tratando essas obras aqui, muito livremente, como autoficções, pelo simples
fato de no momento de seus lançamentos, ou na recepção posterior, a relação entre
vida pessoal e ficção ter sido um elemento abordado por leitores e críticos, ou pelos
envolvidos, mesmo que essa relação problemática não tenha sido colocada
abertamente pelos autores. A autoficção, nesse sentido, mais que uma categoria
desprovida de problema, toca no cerne das fronteiras movediças que separam a
experiência do criador dos resultados da sua criação. Por um lado, quem escreve é
sempre, inescapavelmente, parafraseando o batido Fernando Pessoa, um FINGE-
DOR, um inventor, um ficcionista, porque a literatura não é o mesmo que a realidade,
é sempre outra coisa, algo construído, mediado pela linguagem e suas regras e
convenções – por mais naturais e espontâneas que pareçam a cada tempo e a cada
cultura. Por outro lado, e esse lado nunca deve ser desprezado na atualidade, o criador,
ao escrever, ao construir com palavras e apenas com palavras, finge ou ficcionaliza a
partir da dor que ele ou ela DEVERAS SENTE, ou seja, vale-se da experiência vivida
enquanto propulsor essencial do trabalho.

Esse conceito, portanto, pode ter alguma utilidade quando pensamos em Odisseu, que
não é, claro, um escritor, mas um exímio narrador em primeira pessoa. Mais do que
isso: é alguém que fala constantemente do seu passado na Odisseia. Nela existem,
como se sabe, dois grupos de narrativas do herói nesse formato. Temos no miolo do
poema, entre os Cantos 9 e 12, aquelas aventuras que Odisseu conta aos feácios, o
chamado “apólogo”, e na segunda metade do poema, em diferentes momentos (penso
aqui especialmente nos Cantos 14 e 19), as histórias que Odisseu inventa para seus
interlocutores em Ítaca, já disfarçado de mendigo. Tradicionalmente, elas são vistas
como antagônicas: o apólogo traria a mais pura verdade sobre o que Odisseu
vivenciou nas suas perambulações pelo mar Egeu, em sua volta de Troia, enquanto o

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segundo grupo de histórias seria tão real quanto a sua identidade de velho pedinte. Só
que em Homero as coisas não são tão simples assim.

Para começar, é fácil perceber que as mentiras ditas pelo Odisseu-mendigo, além de
serem no geral muito mais verossímeis que as passagens bastante fantasiosas do
apólogo, são em seus detalhes moldadas em alguns elementos oriundos desse mesmo
apólogo. São “alomorfos” seus, como diz Irene de Jong, autora do mais importante
comentário ao poema. O resultado disso é duplo. Em primeiro lugar, essa ficção dita
em Ítaca acaba por não ser tão ficcional assim. Através das bases que estruturam
algumas das mentiras em questão, que já conhecemos a partir do apólogo, Odisseu
quer sinalizar para o leitor que sua ficção é em certa medida autobiográfica, que ele,
o herói astuto, está ali presente por detrás da máscara do estrangeiro errante. Por outro
lado, e esse é o segundo efeito, ainda que esse movimento reforce o dado factual do
apólogo em que se baseia, ele não deixa de, paradoxalmente, contaminar as verdades
ditas antes aos feácios, porque Odisseu mostra ser um habilíssimo mentiroso, capaz
de convencer qualquer um do que diz (e eu lembro que nenhum amigo sobreviveu
para confirmar o que ele relata).

Sim, há passos externos da narrativa principal que confirmam pontos narrados pelo
herói no apólogo como reais – seriam reais, por exemplo, o encontro com o Ciclope,
o gigante de um olho só, e o episódio do gado do Sol, quando seus companheiros
mataram os animais sagrados e acabaram morrendo por isso. Mas, conforme alguns
estudiosos apontaram, não há como negar o lado mais retórico do apólogo, isto é, o
fato de que ele está a serviço da sedução dos feácios e da construção da imagem de
quem narra. Odisseu depende da nau deles para voltar para casa. Em outras palavras:
por detrás da autobiografia do apólogo, não há uma ficção presente ao menos na forma
como essa narrativa é organizada e apresentada? Nas suas ênfases e nas suas escolhas?
No que ela prefere omitir, no que prefere não contar à sua audiência? No uso que faz
dos muitos discursos diretos? No trabalho, enfim, do herói como um verdadeiro editor
ou copidesque de si mesmo?

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Não é o caso de dizer que Odisseu assume para si (e para nós) que o apólogo é, ainda
que em parte, ficcional. Homero não toca nessa questão. Os feácios apenas louvam e
se encantam com a beleza da sua história. E, como eu disse, aquelas aventuras
comprováveis externamente, pelo narrador do poema, meio que estendem a verdade
para o conjunto do apólogo, em bloco, sem que notemos. Porém, dada a astúcia que
caracteriza o herói, é possível pensar em como ele controla editorialmente tais dados
factuais e como esse próprio controle é sim, pelo menos do nosso ponto de vista
contemporâneo, um indício de ficcionalização.

No final das contas, seria possível afirmar que a ideia de autoficção, mais do que uma
categoria moderna da escrita literária, talvez seja, em germe, a ferramenta a serviço
da construção de uma imagem em primeira pessoa – da autoimagem de quem fala de
si. Acima do entroncamento impreciso entre falsidade e realidade, essa imagem, em
certo sentido, certamente num nível psicológico, é sempre verdadeira, como há
verdade na figura do Odisseu que emerge da rememoração dos piores momentos da
sua vida, por mais editados que sejam. Ou como há verdade nas minúcias dos diálogos
e dos eventos do dia a dia relatados por Knausgaard na sua séria épica Minha Luta,
apesar da empreitada memorialística ter mais de duas mil páginas e, pela sua enorme
abrangência no tempo, não se sustentar somente enquanto registro factual.

Só que o Odisseu narrador da Odisseia não é um autor romântico, um autor do nosso


tempo. Como personagem que se volta sobre si mesmo, pode ser antes um protótipo,
ou arquétipo, dessa nossa autoindulgência narrativa, do narcisismo pelo qual nos
moldamos em frente ao espelho. O que ajuda a entender o fascínio maior que a
Odisseia tem exercido desde o século XIX, e a própria relação fecunda que esse épico
estabeleceu com a forma moderna do romance.

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#5 A MISSÃO DO SUPER-HERÓI NA ENEIDA DE VIRGÍLIO

Se existe uma obra que ocupa o centro da tradição literária no Ocidente, essa obra é a
Eneida de Virgílio. Tudo que veio antes e depois dela, tudo converge, de uma forma
ou de outra, para esse épico majestoso escrito em latim no final do século I a.C. É
como se ele fosse um ímã que atraísse para si a energia criativa dispersa por séculos.
Das epopeias de Homero, passando pela tragédia e pela filosofia, atravessando as mais
variadas formas poéticas helenísticas e latinas, até o fim do paganismo e criações
como a Divina Comédia de Dante, o Paraíso Perdido de John Milton, os Lusíadas de
Camões e o romance moderno, a Eneida guarda dentro de si as principais linhas de
força do que tem sido essa tarefa contínua de contar e recontar uma história ambiciosa
e plena de sentido.

Se a princípio ela surgiu para imitar a Ilíada e a Odisseia, imitar num sentido criativo,
sem preconceito algum, com o tempo ganhou tamanha reputação e influência que
tornou Homero, seu antecessor, o poeta secundário. E ainda que do século XIX para
cá a gente venha lendo e traduzindo bem mais Homero que Virgílio, e ainda que
Homero represente hoje a espontaneidade criativa que supera o artifício de Virgílio,
ainda assim a Eneida continua a ser a nossa matriz maior, a fundação sólida sobre a
qual se assenta qualquer representação séria e estendida de uma ação.

Seria possível entender isso de várias maneiras. A gente poderia pensar no modo como
Virgílio adensou a linguagem épica de Homero, trazendo-a para o plano letrado,
deixando apenas alguns poucos vestígios propositais do seu ambiente oral. Ou no
modo como reformatou o metro hexamétrico, aquele de seis pés, para lhe dar
polimento, uma sonoridade ímpar e um ritmo menos caprichoso. Ou como abriu
espaço para modalidades diegéticas variadas, aproximando, por exemplo, a voz do
narrador da voz dos seus personagens, explorando a abundância dos monólogos ou
ainda empregando o presente histórico. Ou como assumiu temas apenas entrevistos
em Homero – o amoroso, o político, o filosófico. Todas essas características já
mostrariam o peso da herança deixada por Virgílio, e eu digo deixada por Virgílio não
tanto porque ele foi o primeiro a empregar esses recursos, mas porque ele foi o mais

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importante e influente a fazê-lo. Foi a partir de Virgílio que pudemos ler Homero
como um poeta em larga medida não-virgiliano, e foi a partir de Virgílio que pudemos
ler incontáveis outros, antes e depois dele, como extremamente virgilianos. Mas não
vou seguir aqui nenhum desses possíveis caminhos. O tópico principal que quero
abordar é a construção do herói em Virgílio, a construção do Eneias da Eneida, esse
herói grego que tinha em Homero um molde diferente, mas que nas mãos do poeta
romano virou não só outro Eneias, mas O herói por excelência.

Quem é Eneias? Na Ilíada, é uma figura que luta ao lado do troiano Heitor contra os
gregos. Faz parte do “segundo escalão” de heróis que encontramos em Homero. Mas
há um detalhe que o diferencia: já na mitologia grega antiga profetizava-se que Eneias,
como sobrevivente da Guerra de Troia, seria responsável por dar continuidade à raça
troiana. Há outro elemento que ajuda a dar mais relevo ainda a ele: como Aquiles,
Eneias é filho de um homem mortal com uma deusa – no seu caso, de Anquises com
a deusa Afrodite, ou com a deusa Vênus, no panteão romano. Entre os heróis, é bom
lembrar, ser descendente direto de uma figura divina ajudava a reforçar seu pedigree.
Mas é bom lembrar também que isso não lhe dava poderes especiais. Os heróis em
Homero, por mais que pudessem apresentar capacidades sobre-humanas, eram no
final do dia encarados como demasiadamente humanos, pelo simples fato de estarem
sujeitos ao mesmo desfecho incontornável de todos os demais seres terrenos.

Pois bem, esse Eneias, já antes de Virgílio, tinha sido explorado por outros narradores
em língua latina como o elo perdido entre o passado grego e o poderio romano: seriam
os primórdios da nação romana que ele na verdade viria a fundar após sobreviver à
Guerra de Troia. Assim como a destruição de Troia está entrevista na Ilíada mas não
é narrada no poema, a grandeza de Roma – a Troia reconstruída – está entrevista na
Eneida sem ser narrada nela. Essa escolha de Eneias como um elo, feita pela primeira
vez não sabemos por quem, nem quando, era uma escolha feliz para um povo que
queria absorver, como uma esponja, a tradição grega que tanto admirava. Eneias, o
herói de Homero, continuava vivo séculos depois numa outra cultura.

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Mas essa escolha ajudava não só a marcar a continuidade, mas também a explicitar a
rivalidade: Eneias era adversário dos gregos em Homero e a sua sobrevivência
acabava por assinalar o contraste com as figuras de Aquiles e Odisseu, os
protagonistas da Ilíada e da Odisseia. Ou seja: na figura de Eneias, era a mesma
tradição heroica que perdurava, como se um fio contínuo ligasse Grécia e Roma, mas
era ao mesmo tempo outra tradição heroica que nascia, contrária, que trazia no seu
bojo um discurso de ruptura. A indumentária geral, na superfície, era a da épica grega,
mas tudo mais se mostrava, ao olhar atento, não grego. O herói derrotado pelos gregos
em Troia iria agora impor sua vitória, uma vitória que Virgílio não queria nem podia
formular nos termos gregos e que deveria ter um valor próprio.

Lendo a Eneida, não é difícil reconhecer os traços essenciais que formam o herói
Eneias e como eles divergem do que encontramos no Aquiles da Ilíada e no Odisseu
da Odisseia. Sim, os seis primeiros livros da Eneida são uma espécie de Odisseia
condensada, porque contam as viagens de Eneias até chegar à Itália; e os seis livros
da segunda metade, voltados para a guerra, uma condensação da Ilíada e o seu espírito
bélico. Mas nem por isso, por vagar de lá para cá e por se lançar ao combate, o
personagem de Eneias é uma simples fusão de Odisseu e Aquiles. Odisseu é um líder
racional e sofrido, que fracassa em preservar a vida dos seus comandados depois de
partirem juntos de Troia, e que restabelece a paz em Ítaca ao custo, de novo, de muitas
mortes no seu currículo de chefe. Dá para dizer que é um herói justo e resiliente; não
dá para dizer que é um herói simplesmente exemplar. Aquiles, menos ainda. Passional
e teimoso, às vezes parece ser o vilão da história em que deveria ser o herói. No final,
não é nem uma coisa nem outra. Provoca incontáveis mortes, provoca a morte do seu
mais querido amigo e acaba encaminhando a sua própria. O que torna Aquiles
admirável é essa força destrutiva tão reconhecível que ele concentra em si.

Não é nenhum desses moldes homéricos que emerge da leitura da Eneida. Eneias é
construído em uma outra fôrma, que pode ser resumida por três palavras presentes no
poema: uirtus, pietas e cura, “virtude”, “devoção” e “cuidado”. Ele não é um herói
que luta por si mesmo, por sua glória e vaidade, pela preservação da própria vida e
pela volta ao lar. Eneias não é o herói da violência bruta, que a Eneida associa a

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Aquiles e ao filho de Aquiles, nem da esperteza traiçoeira, que o épico latino atribui
a Odisseu. Eneias age em nome de uma causa, que é ao mesmo tempo familiar,
religiosa e política, e mobiliza essas três ideias às vezes quase inseparáveis entre si,
“virtude”, “devoção”, “cuidado”. Essa causa não é isolada nem individual porque,
como a Eneida gosta de profetizar repetidas vezes, ela tem a ver com o eventual
estabelecimento de um império que imporia a paz e a harmonia na terra. Esse império
é o império fundado por Otávio Augusto durante a idade madura de Virgílio. A Eneida
é o poema encomendado para celebrá-lo com a mesma monumentalidade e
complexidade dos poemas homéricos. Engana-se quem imagina que é um poema de
alguma forma maculado pela intimidade com o poder oficial.

Para começar, a Eneida não é uma narrativa apenas situada no passado, como são as
epopeias de Homero: é uma narrativa que aponta também para o futuro. A Ilíada e a
Odisseia são retrospectivas somente, olham para trás. A Eneida é retrospectiva E
prospectiva, olha para trás E, de lá de trás, olha para frente. O peso desse círculo que
se fecha é carregado nas costas de Eneias sob a forma de um novo heroísmo, o
heroísmo de alguém que representa uma causa e é responsável por uma nação. Virgílio
aproveitou a oportunidade dada a ele por essa encomenda para imaginar como seria
uma figura não mais norteada pelo individualismo puro, mas por fatores que o
ultrapassam e de algum modo anulam a própria vontade individual do herói. Virtude,
devoção, cuidado – essas são como que qualidades impostas a Eneias pelo destino,
outra palavra fundamental na Eneida. O destino do herói é se lançar a essa missão que
assume, de estabelecer as bases do que viria a ser a grande Roma. Tudo é menor e
desaparece diante dessa imposição, que ele é obrigado a acatar porque, como eu disse,
é familiar, religiosa e política.

Duas cenas famosas do poema resumem bem isso. No Livro 2, quando ele narra para
Dido, sua anfitriã em Cartago, a destruição de Troia pelos gregos, Eneias relembra
como na fuga carregou nas costas o pai idoso, Anquises. A imagem é memorável e
diz muito sobre o espírito que norteia o herói. Mais à frente, no Livro 4, depois de se
envolver com a própria Dido e vê-la apaixonada, Eneias comunica que vai ser
obrigado a partir para dar continuidade à sua missão, e faz isso de um jeito que

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exprime mais resignação do que contrariedade. É um episódio onde o herói se torna
secundário perante o personagem da rainha; como ele mesmo diz a ela, os fados não
permitem que ele conduza sua vida seguindo os seus desejos. Nos dois casos, a gente
percebe que Eneias é um herói diferente: ele se sacrifica pelos outros, ele descuida de
si para cuidar de um bem maior. Ele é, em outras palavras, o instrumento de algo
grandioso e tem plena consciência disso. A sua grandeza, portanto, não está tanto na
valorização de qualidades pessoais vistosas, como Aquiles com sua força ou Odisseu
com sua inteligência: ela está em se colocar a serviço, como líder de fato, de
realizações das quais ele mesmo não vai desfrutar. Eneias suprime os seus anseios e
carrega o próprio pai nas cosas, mas ele suprime e carrega nas costas muito mais,
como pai de todos aqueles que tem sob o seu comando.

Quando a gente enxerga dessa maneira o Eneias da Eneida, a gente vê a grande


distância que o separa do heroísmo homérico. Alguém poderia lembrar que o Heitor
da Ilíada, o grande guerreiro troiano, seria em Homero o que Eneias é em Virgílio.
Com certeza o patriotismo de Heitor, obrigado a defender sua família e sua cidade do
ataque grego, lembra alguma coisa do Eneias na Eneida. Mas, ainda assim, o horizonte
pelo qual Heitor luta é menos amplo do que o de Eneias, e ele em nenhum momento
tem o peso da responsabilidade de fundar algo substancial e abrir mão da sua própria
vontade. Eneias não pode pensar em si mesmo, no seu próprio patriotismo. Ele tem
que pensar no outro, agir pelo outro, cuidar do outro.

Essa é a referência maior que Virgílio funda na Eneida e não é difícil perceber a sua
influência para a construção geral do herói moderno, em sentido amplo. A cultura pop
norte-americana, em particular, ao longo do século XX retrabalhou esse modelo
virgiliano criando um tipo de heroísmo que conhecemos hoje como sendo o do super-
herói. Elementos oriundos do cientificismo dão a esses novos heróis poderes
especiais, fazendo com que sejam dotados de capacidades que os heróis da mitologia
antiga nem sonhavam ter, habilidades inusitadas. A isso se junta ainda a insinuação
de que estão livres da morte e do tempo, o que mostra que a questão central grega se
tornou menos relevante, como já acontecia com Virgílio. O relevante agora é esse
herói pensar menos em si, na sua vida e em quando e como vai morrer, e mais na

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comunidade que deve defender. O que o Super-Homem, o Homem-Aranha e outros
tantos buscam é estabelecer a justiça no mundo onde vivem.

De algum jeito, a formulação que estava lá na Eneida permanece conosco: a de que o


verdadeiro herói trabalha para um mundo que quer e que pode ser melhor. É a ideia
ambiciosa de que há uma construção por fazer, de que podemos sublimar o que há de
pior no ser humano por causa dela. Eneias seria assim o precursor desse ser humano
ideal, uma figura heroica rara, e amada por ser tão distante de nós. Sim, Eneias e os
super-heróis podem fraquejar, podem falhar ou vacilar, mas no final eles devem
superar essas limitações momentâneas, porque eles têm uma obrigação e ela aponta
para longe do próprio umbigo. Os heróis homéricos fascinam por serem autocentrados
demais, verdadeiros demais nas suas egotrips.

Mas Eneias é um herói muito mais influente e representativo, precisamente porque é


essa idealização, essa meta fixada por Virgílio: o super-homem que se pôs acima dos
demais para trabalhar por todos eles; o antepassado de Augusto que anunciava o
advento do próprio. Em sua dimensão política, esse herói virgiliano não deixa de ser
ainda uma possível inspiração para conter o individualismo galopante e o vácuo do
nosso tempo.

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#6 MAIS RAZÃO E MENOS EMOÇÃO NA MEDEIA DE SÊNECA

Como devemos lidar com nossos sentimentos mais descontrolados? Paixão, ódio,
ambição, luto, desespero com a passagem do tempo – a lista de coisas que podemos
sentir e que podem nos tirar do prumo é grande. Como encarar o desfio de não
sucumbir a impulsos que podem nos destruir ou que podem destruir os outros aos
quais se dirigem? Qual o perfil psicológico de quem experimenta cada um desses
sentimentos? O escritor Sêneca, que viveu no século I d.C., tentou responder a essas
questões, questões no fundo filosóficas, de duas maneiras bem diferentes. A primeira
foi escrevendo ensaios morais na forma de conversas com os amigos, ensaios muito
populares até hoje, como Sobre a Ira, Sobre a Tranquilidade da Alma e Sobre a
Firmeza do Sábio. A segunda maneira foi compondo sofisticadas peças de teatro em
versos, que reatualizavam as situações dramatizadas pelas antigas tragédias áticas.
Oito tragédias latinas da sua autoria foram preservadas na íntegra, e elas falam de
personagens como Édipo, Hércules, Fedra e Clitemnestra. São, junto com as gregas,
as únicas que podemos ler da antiguidade clássica, e têm um valor enorme por causa
dessa ponte que estabelecem nesse fosso temporal entre Grécia e Roma.

Entre essas tragédias latinas, há também uma Medeia, um drama que reconta a história
popularizada por Eurípides mais de quatrocentos anos antes, na peça de mesmo nome.
Se no caso de Eurípides, e também no de Ésquilo e de Sófocles, nós não temos nada
além das suas próprias peças para especular sobre quais eram as suas ideias e que
mensagens eles queriam nos transmitir, no caso de Sêneca, ao contrário, por causa da
sua prosa, a situação é bem diferente: trata-se de uma situação rara, de um poeta que
pode ser lido à luz dos seus escritos filosóficos. As várias vozes inseridas nas peças,
que nos gregos, a despeito dos esforços dos estudiosos, não nos conduzem
imediatamente a uma voz unificada, autoral, aqui podem ser compreendidas a partir
de uma ideia norteadora, capaz de dar sentido às ações dramatizadas.

Medeia com certeza deve ter parecido, para Sêneca, um personagem ideal para o tipo
de representação que queria criar. Como grande parte dos personagens da mitologia
grega, ela está envolvida em situações extraordinárias, fora do comum, que mobilizam

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o espectador e o leitor. Apaixonou-se perdidamente por Jasão quando este foi até a
sua longínqua terra, a Cólquida, para pegar o precioso tosão de ouro. Usou sua magia
para ajudar nos desafios impostos ao herói (controlar touros que expeliam fogo,
semear dentes e derrotar soldados que daí nasciam, adormecer a serpente que protegia
o tosão). Depois voltou-se contra a própria família e matou o irmão para auxiliar o
amante na fuga, retardando a perseguição. Ao chegar com ele a Iolco, na Grécia, iludiu
as filhas de Pélias, tio e algoz de Jasão, e as fez matarem o próprio pai. Na sequência,
exilou-se com Jasão e os dois filhos em Corinto. Essas coordenadas gerais da história
tradicional já mostram uma mulher que vive em função da paixão que sente, que não
mede esforços para alcançar o que quer e ajudar o esposo. Só que essa mesma mulher,
como a gente sabe, acaba sendo trocada em Corinto pela filha de Creonte, o chefe da
cidade. Outra oportunidade para vermos o modo como Medeia lida com os seus
sentimentos: para se vingar e levar ao máximo o sofrimento de Jasão, ela mata a noiva
dele, Creúsa, mata Creonte, o pai dela, e talvez na mais terrível de todas as ações que
os mitos gregos nos contam assassina os seus próprios filhos, para que o ex-marido
ficasse privado dos seus descendentes homens.

Na peça de Eurípides, a tragédia grega do século V a.C., Medeia é uma mulher


dividida: guiada pelo sentimento amoroso que para ela é tão importante, quer reparar
de algum modo a afronta que sofreu de Jasão com a traição. Ela sente sim com
intensidade, mas tenta refletir com calma sobre a vingança. Quanto mais pensa no
amor dedicado a Jasão, mais pensa em destruí-lo. E, quando pensa em destruí-lo, é
levada à conclusão quase lógica de destruir o que mais ama, os filhos que teve com
ele. Razão e emoção, amor e discórdia, nela se repelem e se atraem. Toda a tragédia
de Eurípides é a exploração dessa tensão psicológica da heroína, por quem nós
sentimos simultaneamente ternura e repulsa, compreensão e horror. Quando a peça
termina, com os filhos assassinados e ela em fuga para Atenas, onde terá refúgio, nós
nos deparamos com uma Medeia sem arrependimento e remorso, perturbadoramente
grandiosa com a justiça que julga ter estabelecido. Jasão, apresentado em cenas
anteriores como um espertalhão cheio de lábia, capaz de dar nó em pingo d’água,
surge impotente diante do poder da mulher, que conhecia tão bem e que, no entanto,
menosprezou.

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Sêneca, como faz também nas suas outras tragédias, mantém as coordenadas centrais
dessa história tal como ela se consagrou entre os gregos: Jasão abandona Medeia para
se casar com Creúsa, a filha de Creonte, e esses dois, junto com os filhos, são mortos
por Medeia, que foge no final. Só que em Sêneca percebemos que não existe interesse
em explorar qualquer tipo de simpatia por Medeia. Na sua peça, era preciso que ficasse
em destaque uma outra característica da protagonista, que Eurípides não omitiu por
completo, mas que também não chegou a valorizar: o domínio que Medeia tem da
feitiçaria. Na Medeia de Sêneca, Medeia é antes de tudo uma bruxa, e o termo bruxa
em português cai bem aqui, com toda a sua carga de discriminação e desqualificação
da mulher num contexto social androcêntrico. Medeia está a serviço da construção
daquela figura de mulher por quem o homem a princípio se apaixona, mas de quem
depois quer se afastar, por descobri-la louca, descontrolada: é a figura do “outro”,
mais bem abordada quanto mais caricata for, para assim não ser vista nem aceita em
sua dimensão real, humana. Não custa lembrar que em Eurípides há uma célebre fala
de Medeia na qual ela, estrangeira que é, reflete sobre esse lugar que a mulher
ocupava, sem espaço para ser o que queria além do que os homens queriam que ela
fosse. De algum modo, é como se Sêneca, na sua Medeia, séculos depois, reconduzisse
a desafiadora Medeia de Eurípides a um lugar mais compartimentado da existência
feminina.

Mas na Medeia de Sêneca Medeia é muito mais do que apenas esse exemplo que
reforça o sexismo. Como eu disse no começo, Sêneca estava preocupado em discutir
os sentimentos humanos, ou a forma como podemos lidar com eles – os nossos e os
dos outros – em suas formas mais agressivas. Nesse sentido, Medeia não representava
tão somente um sexo, mas um tipo de pessoa e o que podemos aprender com ela. Ao
longo da existência humana, várias religiões e filosofias de vida têm buscado nos
orientar a esse respeito, sobre como aprender a viver a vida. Podemos pensar, pegando
um exemplo, no budismo, que prega o equilíbrio espiritual através da fuga deliberada
das perturbações correntes, o que inclui a negação do desejo, qualquer que seja ele.
No caso de Sêneca, a filosofia que o orientava era chamada de estoicismo e tinha
algum parentesco vago com o budismo e com a sua ideia de apaziguamento. Surgido

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entre os gregos vários séculos antes, o estoicismo era uma mistura de filosofia e credo;
orientava-se pela ideia de que uma razão superior governa o universo, razão essa
passível de ser identificada com a própria noção de uma divindade criadora do mundo.
A natureza, como produto dessa criação, seria a expressão da racionalidade e
harmonia desse criador. Aos seres humanos, diante dessa realidade, caberia viver com
moderação, esquivando-se dos excessos de qualquer tipo, para se assimilar assim ao
mundo como ele foi criado e alcançar a verdadeira felicidade. Na doutrina estoica, era
fundamental que cada um aceitasse a sua condição e o seu destino, não se insurgindo
desesperadamente contra eles. Acolher a morte seria o ápice disso. No fundo, o estoico
é quase uma caricatura do ser humano resignado, que aguenta firme as adversidades
que vão surgindo, sem surtar, porque lutar contra elas seria insensatez e só produziria
mais sofrimento. O personagem de Eneias, na Eneida, tem na sua construção muito
do estoico, porque aceita a missão que lhe foi destinada.

Para falar do estoicismo diretamente, Sêneca podia recorrer aos seus tratados em
prosa, mas para abordar essa filosofia de uma maneira poética e simbólica ele preferiu
usar o exemplo que vinha do mito. Assim ele podia seduzir o leitor com histórias que
eram amplamente conhecidas e ao mesmo tempo transmitir as suas lições através de
comportamentos heroicos que indicavam como agir e como não agir. Montar uma
tragédia apenas com personagens estoicos e virtuosos equivaleria a não montar uma
tragédia. Reaproveitar a tradição para mostrar como a tragédia, do ponto de vista
estoico, da gestão dos sentimentos, é trágica, é uma saída genial, porque reforça a
importância de se observar a psicologia humana em suas mais variadas dimensões,
usando para isso personagens consagrados pela tradição.

Várias escolhas feitas por Sêneca ajudam a colocar Medeia nessa posição da pessoa
descontrolada, que perdeu a razão. Em Eurípides, Medeia tinha algumas figuras que
a apoiavam, como a ama, o próprio coro feminino e Egeu, que lhe oferece abrigo em
Atenas. Em Sêneca, ela fica totalmente isolada: o coro, para começar, lhe é contrário,
e isso fica patente quando, em sua primeira participação, entoa um canto nupcial
anunciando a união entre Jasão e Creúsa. A ama, por sua vez, já censura logo de cara
o ódio que Medeia sente, cobrando dela paciência, resignação e moderação. Mais à

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frente, a mesma serva vai poder dizer, sem meias palavras, que a sua senhora é o
próprio rosto da loucura. Mas a mudança realmente radical está em Jasão. Se em
Eurípides ele era o cara cujo oportunismo e mau-caratismo ajudavam a angariar nossa
simpatia em favor de Medeia, em Sêneca ele se transforma na vítima paciente do
destino e da ex-mulher. Primeiro seu casamento com Creúsa é apresentado como uma
imposição, e não uma escolha. Depois ele afirma não ter tido nenhuma intenção de
trair Medeia, e que é um pai amoroso, sempre disposto a colocar a prole em primeiro
lugar. Mais: diz que foram as lágrimas dele que fizeram Creonte não matar Medeia e
optar pelo exílio dela! É assim, preocupado, que Jasão aconselha a ex a fugir logo,
mas deixando os filhos, porque ele não conseguiria viver sem o único consolo paras
suas aflições. Tal como a ama, Jasão insiste ainda nos pedidos para que a ex-mulher
se acalmasse e se contivesse – o que contribui para que se reforce ainda mais o
propósito sangrento da protagonista. Medeia, vendo o cuidado sincero dele em relação
aos filhos, decide então incluí-los na vingança e assim produzir quatro cadáveres, o
que ocorrerá num curto espaço de versos.

É nesse terço final da peça que sobressai a figura da feiticeira. Temos aí a descrição
dos rituais empregados por ela para envenenar os presentes que acabariam matado
Creúsa e Creonte e, na sequência, a visão do seu transtorno completo, quando aparece
descabelada e é apresentada como uma tigresa, um ser monstruoso. Rigorosamente,
esse não é um dado isolado nas peças de Sêneca. Seu teatro ficou conhecido pelo gosto
particular pelo fantasmagórico e grotesco, apresentados em vívidas e longas tiradas,
talvez mais para serem lidas do que encenadas, porque sujeitas mais à imaginação do
que ao espetáculo. Para dar uma pitada a mais de páthos a Medeia, Sêneca a faz dizer
um monólogo de uma força impressionante e ainda ver as Fúrias surgindo diante de
si, o empurrão final de que precisava para matar os filhos. Primeiro ela assassina um,
e depois o segundo, desta vez diante de um Jasão atônito. É uma cena muito rápida e
dinâmica, já no fim, que leva a peça a um clímax. Como nas outras peças de Sêneca,
não temos aqui o anticlímax das tragédias gregas, que se arrastam por várias dezenas
de versos depois de o mais importante já ter acontecido. É um final apoteótico, que
deixa impresso na nossa mente o caráter dessa mulher possuída. Possuída, sim, mas,
dentro do espírito da peça, é importante sublinhar que ela fala de passagem em

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vergonha e arrependimento. Se a Medeia de Eurípides é assustadora, entre outros
motivos, porque NÃO se arrepende no final, a Medeia de Sêneca, por sua vez, como
que recobra uma momentânea lucidez, e esse toque sentimental tem tudo a ver com o
desenho geral da peça, porque destaca a consciência tardia do desastre que a emoção
desbragada produz. Seria a indicação de uma personalidade cíclica, que se
descontrola, perde as estribeiras e depois se arrepende, para recomeçar tudo de novo.

Sendo a peça bem curta, com aproximadamente mil versos, o efeito final, como eu
disse, é poderoso – e ainda sentimos que seu propósito instrutivo foi reforçado por um
aparato exaustivo de fantasia, seja na boca do coro, seja na dos personagens. Medeia
é um grande mosaico mitológico de proezas, selvagerias e maravilhas, a própria ordem
e desordem do universo, onde se destaca, no centro, alguém que apostou na
possibilidade de levar as emoções às últimas consequências. O enfoque estoico
poderia ter se detido na vida de Medeia depois dos crimes, com o fardo que teve de
carregar nas costas. Mas seria uma traição ao modelo patético euripidiano. Só que a
peça tampouco quer que sintamos junto dela ou com ela, como em Eurípides. Antes
parece querer que olhemos Medeia pelos olhos de Jasão, desse que foi o causador e a
vítima de sentimentos tão perturbadores. Para ele, os sentimentos dela são sentimentos
estranhos, extremos. Mas, ainda assim, o estoicismo nos ensina que ele deve suportar,
resiliente, as consequências do destino em que está envolvido.

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#7 UM NOVO ESOPO EM VERSO NAS FÁBULAS DE FEDRO

Se a fábula grega sofria desde sempre com Esopo de uma espécie de complexo de
inferioridade, com Fedro, em latim, no século I d.C., ela buscou alcançar um novo
patamar, sem negar suas raízes. Tradicionalmente, esses dois autores, Esopo e Fedro,
eram retratados como escravos alforriados, uma coincidência intrigante demais para
ser tratada como fato histórico. O mais provável é que essa condição não fosse
biográfica, mas fizesse parte de uma construção que tinha a ver com a própria índole
do gênero que praticavam. A fábula seria em princípio uma criação subalterna, sem a
autoridade e o prestígio das outros modalidades literárias antigas, uma forma
despretensiosa e divertida, que, no entanto, escondia uma sabedoria particular. Seria
a própria exemplificação de um tema que ela mesma gostava tanto de explorar, o da
aparência que engana e nos surpreende. Vindo “de baixo” e parecendo uma ninharia,
a fábula podia na realidade ser muito útil no seu propósito de revelar a verdade e os
modos da vida humana.

Não é por acaso que Sócrates, o espirituoso filósofo ateniense, surja como personagem
em algumas delas. Sócrates nunca foi escravo, mas era um homem simples e feio de
aparência: por detrás do seu visual nada inspirador escondia-se um espírito potente.
Além do mais, como numa fábula, ele era a mosca insignificante que irritava o
majestoso cavalo, a cidade de Atenas que teimava em não deixar em paz. No mercado
da sabedoria da Atenas antiga, ele valia bem menos que os vistosos sofistas, mas uma
das suas lições era justamente essa, não apostarmos todas as nossas fichas
simplesmente no que vemos. O que aparentemente não vale nada pode valer muito, e
vice-versa. A vida de Sócrates teria ainda outros pontos de contato com a tradição
associada à fábula, mas não quero falar deles aqui, e sim de como um episódio em
particular da sua vida reforça a ligação da sua sabedoria nonchalant com esse ramo
literário humilde, e de como esse episódio estabelece uma ponte entre Esopo e Fedro,
entre Grécia e Roma. No Fédon, o diálogo de Platão em que são recriados os últimos
momentos de Sócrates na prisão, descobrimos que, em resposta a um sonho recorrente
que o incitava a praticar a arte das Musas, ele passou a compor um hino a Apolo e a
versificar algumas fábulas de Esopo. Ao fazer poesia de verdade, ele estaria assim

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reverenciando as Musas e meio que admitindo que a filosofia não era, como ele tinha
achado, a suprema poesia. Nessa mesma passagem, Sócrates já tinha citado Esopo
para falar da relação entre dor e prazer que tinha experimentado quando o guarda veio
soltar as suas correntes na cadeia: o famoso fabulista grego poderia, diz, ter criado
uma bela fábula a respeito.

Acho que esse pequeno quadro exposto no começo do Fédon mostra, entre outras
coisas, como Platão via também em Sócrates muito do fabulista, por causa dessa
mistura entre despojamento e sabedoria. Se Esopo é a figura ideal para vir a criar uma
história que abordasse, com brevidade e singeleza, como dor e prazer estão conectados
(um tópico complexo e profundo), a atividade do fabulista não pode ser entendida
como tacanha, a despeito da impressão inicial que transmite. Do mesmo modo,
Sócrates não pode ser menosprezado no seu poder cognitivo, a despeito das suas
analogias aparentemente bobas com coisas corriqueiras e do jeitão de sátiro que não
deve ser levado a sério.

Só que essa versificação da fábula, na qual Sócrates supostamente teria trabalhado nos
seus últimos instantes de vida, não é uma realidade na coleção grega, de Esopo, onde
ela aparece no formato básico da prosa. Só com Fedro, séculos depois de Sócrates, é
que vamos ter uma modificação importante nesse gênero. Daria para dizer que esse
salto na forma, se não tira da fábula aquele complexo de inferioridade que é quase
estratégico para sua efetividade, dá a ela uma roupagem nova, uma autonomia, uma
independência. Ela continua sim a ser essa narrativa basicamente instrutiva e indireta;
e que deve ser indireta para preservar a integridade do homem simples que fala através
dela. É dentro desse propósito de continuidade que várias das histórias gregas em
prosa surgem de novo em poesia latina, com os mesmos animais e os mesmos
desenvolvimentos básicos. Isso é tradição. Mas, por outro lado, Fedro, atuando num
ambiente letrado, com maior refinamento, consciência e experimentação literária,
inocula na fábula elementos que discrepam daquele esópico. O complexo de vira-lata
deve permanecer como uma característica da fábula; e o fato de ela refletir sobre si
mesma e a sua condição vem ao mesmo tempo desmentir e confirmar isso.

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Fedro, se a gente prestar atenção, é um nome grego dado a um escritor latino. Mas a
homenagem à herança grega é dúbia. Esopo é uma espécie de interlocutor constante,
a fonte que merece reverência, mas está também desalojado da sua autoridade
absoluta. Nos cinco livros das Fábulas Fedro, com pouco mais de cem peças, é a
primeira pessoa do fabulista latino que tem presença marcante, a presença de um autor
que pondera o legado que recebeu e como o ultrapassar. Apego à brevidade da fábula,
consciência da sua utilidade, ambição por aperfeiçoar o gênero, anseio por
reconhecimento – esses são alguns dos elementos que repontam nos comentários
feitos por Fedro, em geral ao abrir e fechar cada um dos cinco livros. São marcas de
uma literatura que vê essa prática com outros olhos, com os olhos de um poeta na
esteira de uma tradição que não é só da fábula apenas, mas da poesia em geral e de
uma história de posicionamento em relação à poesia. Nada disso se encontra em
Esopo. Seus textos não só se caracterizam, como eu disse, pelo uso básico da prosa,
como têm a simplicidade, na falta de palavra melhor, da transmissão tipicamente oral.
Não há um “eu” que dirige o curso das fábulas e sua recepção, e as próprias histórias
não revelam nenhum tipo de ajuste fino na construção. Se há certa “poesia”, entre
aspas, em algumas peças da coleção de Esopo, ela decorre dessa rusticidade franca.

Em Fedro, estamos em outro território. Vejam o exemplo da fábula da raposa e do


bode, uma típica fábula de animais, presente também em Esopo. A fábula conta como
a raposa cai num poço e depois se aproveita do bode para dele sair: convence-o de que
a água embaixo é boa e, com o bode já lá dentro, usa seus chifres como uma escada
para escapar. Em Esopo, a narrativa em prosa é até longa e traz duas falas, ambas da
raposa: uma em que ela diz, já com os dois presos no poço, que o melhor seria ela sair
primeiro apoiando-se nos chifres do bode, para depois puxá-lo (o que, claro, não
acontece), e uma outra, que encerra a fábula, onde, já fora, a raposa censura o bode
por ter descido sem pensar em como sairia do poço, o que é uma construção moral
dentro da própria fábula. Mas há ainda a moral propriamente dita a seguir: a voz agora
impessoal fala de como o homem sensato deve antever as consequências de seus atos
antes de se lançar a uma ação.

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Como na maioria do conjunto das fábulas esópicas, a tendência aqui é mais para o
espraiamento do que para a contenção, e para o uso da moral dobrada, dentro e fora
da história. Já em Fedro, a situação é significativamente diferente, mais enxuta, ao
falar do encontro desses animais. Para começar, a moral vem antes, e não depois da
narrativa, e fala da pessoa esperta que, quando se vê em apuros, escapa às custas de
uma outra. Em Esopo, como a gente viu, a censura recai sobre a falta de precaução,
no caso, do bode. Em Fedro, ela recai sobre a lado traiçoeiro do mau caráter, no caso,
a raposa, que não hesita em prejudicar o outro para livrar a própria pele. Pois bem,
depois desses dois versos inicias da orientação moral, temos mais dez, e uma única
fala apenas, rápida, em dois versos, da raposa. O elogio da água boa, que vinha num
discurso indireto em Esopo, torna-se direto aqui: “Desce, amigo: é tão boa a água/ que
minha vontade nem pode se saciar”. O bode desce e, em seguida, Fedro conta como a
raposinha saiu escalando os chifres do barbicha e o deixou para trás, preso no poço.
Fim da fábula. Nada de moral interna, nada de lição dita seja pela raposa, seja pelo
bode. Os termos “raposinha” e “barbicha”, em vez de “raposa” e “bode”, respondem
à necessidade de variação estilística e adequação métrica, dando um toque todo
especial, ausente em Esopo, habituado a repetir sem cerimônia os nomes dos bichos
ou a usar simplesmente “ele” e “ela”. Esse detalhe dos nomes, mais o emprego do
“amigo” na hora em que a raposa fala com o bode, “desce, amigo”, ajudam a coroar
o polimento e a picardia maior de Fedro, que traz nas suas fábulas a típica agudeza
tão própria da poesia.

Uma outra fábula, sem animais, confirma não só a destreza poética de Fedro, mas sua
conexão com o universo romano, o que, claro, também a modifica a um olhar mais
atento. É bom esclarecer, abrindo um parêntese, que as fábulas sem animais são uma
constante na tradição antiga. Como mais recentemente elas foram associadas ao
público infanto-juvenil, a presença dos bichos foi entendida como obrigatória para
reforçar esse universo mais fofo e aparentemente não adulto. Mas a fábula entre
gregos e romanos era consumida por adultos e nada impedia que explorasse, em seu
movimento simbólico, objetos, figuras históricas e até pessoas comuns, quase como
uma parábola. Com ou se bichos, a mordacidade das suas mensagens dolorosamente
verdadeiras estava longe do alcance dos pequenos, por mais que eles certamente as

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ouvissem, como ouviam a Ilíada de Homero e a Eneida de Virgílio. A fábula parece
infantil, mas não é.

Vamos então à fábula sem animais que eu quero comentar. Seu título é “O Arco de
Esopo”, ou “Esopo e o Arco”. Como ocorre com algumas outras histórias,
acompanhamos aqui Esopo atuando em Atenas e dando uma lição num interlocutor
inconveniente. No quadro maior, é uma situação conhecida de muitos textos da
literatura latina: ambiente e personagens são gregos, mas o dado romano está lá para
quem quiser ver. São treze versos ao todo, incluindo os dois da moral, que aqui não
vem no começo, como na fábula da raposa e do bode, mas no fim, o seu lugar mais
costumeiro. A ação é ágil e de novo só um personagem fala, o próprio Esopo, por duas
vezes. Um ateniense vê Esopo brincando de nozes com algumas crianças e dá risada,
achando-o maluco; Esopo então pega um arco, coloca no meio da rua e pergunta qual
o sentido disso que tinha acabado de fazer; junta gente, o outro pensa por um tempo,
mas desiste; Esopo diz então que, se o arco for constantemente estendido, logo vai se
romper, mas se descansar vai estar pronto para o uso. Moral da história: a diversão e
a brincadeira às vezes são boas para o espírito, para você depois poder pensar melhor.

A proposição e solução do enigma destacam, claro, a sabedoria de Esopo. Um Esopo


personagem que não é uma exclusividade de Fedro. Ele aparece, ainda que bem
menos, nas próprias histórias gregas atribuídas a Esopo, e sua sabedoria, junto com a
construção desenvolvida do personagem, estão apresentados numa longa narrativa em
prosa sobre a sua vida, o Romance de Esopo. Pois é essa sabedoria típica que Fedro
explora aqui, com seu colorido romano e poético, apostando no contraste entre
aparência e verdade, entre humildade e pompa. Lendo com calma a fábula, notamos
alguns detalhes significativos. Primeiro, encontramos o velho Esopo jogando ou
brincando de nozes com crianças, uma situação que tem tudo a ver com o
rebaixamento e a falta de pretensão do próprio gênero; vale lembrar que em latim a
expressão “abandonar as nozes” significava “deixar de ser criança”. Depois, o
ateniense que provoca Esopo é chamado pelo narrador na abertura da fábula de
“ático”, ou seja, oriundo da Ática, a região onde ficava Atenas; mas o termo em latim
permite a associação também, por tabela, com a ideia de sofisticação, refinamento. Já

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Esopo, na sua primeira fala, quando propõe o enigma do arco, se refere ao antipático
passante usando em latim sapiens, que significa “conhecedor”, “intelectual”, ou
possivelmente quase “sabichão” aqui. Finalmente o narrador, ao introduzir a resposta
de Esopo à própria charada que propôs, usa sophus para o fabulista, uma forma
latinizada do grego sophós, “sábio”; o contraste com o atticus/sapiens de antes fica
claro. Quem se achava não era lá essas coisas e a narrativa agora aponta para quem
sabe de verdade. Se, a essa tensão no plano linguístico entre a cultura latina e a grega,
pensarmos que vem ainda se juntar o cliché romano do arco ora em repouso, ora
estendido, e o próprio conceito central do “ócio”, veremos então que a fábula aqui,
além de poética em sentido forte, está adaptada a um novo solo, que se mistura ao
antigo.

Vale ainda dar uma atenção especial a um verso que vem no começo dessa mesma
fábula, quando Esopo percebe que o ateniense está rindo da sua brincadeira com as
crianças. Nele o narrador comenta como o fabulista, incomodado com a gozação,
gostava mais de rir dos outros do que de ser objeto do riso. Assim como Sócrates,
Esopo era motivo de piada, um alvo preferencial da comédia, mas reagia de forma
altiva. Na fábula, é esse desconforto que o motiva a propor o enigma do arco, para
ridicularizar o homem ático, o personagem que, no estilo econômico de Fedro, não
tem direito a fala. Não é, portanto, só o enigma dentro do enigma que se destaca nessa
fábula. É também a fábula explicitando sua natureza, o revide do subalterno, é a fábula
falando do seu mecanismo característico, do riso enviesado. Um riso que, com Fedro,
fica bem mais consciente da sua inteligência e da sua perspicácia.

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#8 A SABEDORIA DA VIDA COMO ELA É NA POESIA DE TEÓGNIS

“Que a marca do meu sofisticado saber fique gravada nestes ditos.” (v. 19-20)

Essas palavras proferidas por Teógnis, o cantor grego do século VI a.C., traduzem
bem o tom que encontramos na coletânea atribuída a ele. Ao percorrermos os mil e
quatrocentos versos da sua obra, hoje chamada Teognídea ou Teognideia, a gente
acaba concluindo que a marca do seu saber sofisticado é a simplicidade dos
pensamentos e conselhos que dá, e concordando com o orador ateniense Isócrates
quando este fala da reputação que Teógnis tinha de ser “ótimo conselheiro”. É dessa
sabedoria gravada na sua poesia que quero falar aqui, mesmo tendo consciência de
que a Teognídea é mais estudada hoje pelo seu ambiente aristocrático e social, pautado
pela relação dos ricos com os pobres – uma visão estranha para nós, mas que era
comum na estratificada sociedade da Grécia Antiga. Só que desse conjunto de viés
aristocrático é possível extrair várias formulações universais. Elas extrapolam o
contexto imediato e transformam Teógnis no conselheiro elogiado e consultado pelos
antigos, capaz de falar de amizade, morte e ambição, entre outros temas.

A sua poesia, que poder ser classificada como “elegíaca”, tinha na base o propósito
claro da reflexão e da orientação. Era uma espécie de literatura de autoajuda da época.
Mas na prática ela não se pautava pelo nosso tom motivacional e marqueteiro, de
autodesenvolvimento, e por isso pode soar um pouco desesperançada e amarga. Não,
para Teógnis você não é foda e não deve perseguir os seus sonhos. As ênfases que ele
dá ao comportamento moderado e à consciência sobre os limites da condição mortal,
marcas da mentalidade antiga, indicam a presença de uma abordagem diferente da
nossa. Ainda assim, os pontos de contato são abundantes e as reflexões que ele propõe,
quando descontextualizadas, ganham um sentido amplo por não ficarem presas ao
ambiente original. É isso que proponho aqui, substituir o Teógnis aristocrático por
outro, de maior alcance, relacionando noventa aforismos que extraí da Teognídea.

Esse tipo de apropriação que estou fazendo, em geral vista com maus olhos pela
perspectiva histórica e acadêmica, era prática corrente entre os antigos. Deu inclusive

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origem a uma vertente própria, a “gnomologia”, voltada às antologias de gnômai, o
termo grego usado para se referir a “máximas” e “aforismos”. Esses gnômai eram
extraídos sem nenhum pudor de Homero, Hesíodo, Píndaro, Eurípides, Menandro,
Virgílio, Ovídio e inúmeros outros. Mais que fontes isoladas de reflexão, eram
valorizados para a consulta e citação em contextos variados, por pagãos e cristãos. Na
atualidade, esse tipo de recolha tem outra cara, mas encontra correspondentes em
livros como o Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas, de Renzo Tosi, e A
Dictionary of Classical Greek Quotations, de Marinos Yeroulanos. Por que não fazer
isso então com um só autor, como Teógnis, ou com outros autores clássicos? Não é o
que já acontece com William Shakespeare ou Fernando Pessoa, por exemplo?

Na minha lista pessoal com os melhores ditos da Teognídea, decidi que as máximas
respeitariam a sequência em que aparecem no poema. Ou seja, aqui elas não vêm
organizadas por assuntos. Para deixá-las mais fluentes, traduzi a poesia original em
prosa, mantendo a ideia essencial mas tomando algumas liberdades, e adicionei o
grego sem indicar as quebras das linhas. Optei ainda por omitir o vocativo “Cirno”, o
jovem a quem Teógnis dá os seus conselhos. Não sabemos nada sobre ele, como
acontece, aliás, com o próprio Teógnis, que teria nascido na cidade de Mégara, perto
de Atenas, ou numa localidade da Sicília de mesmo nome, onde se falava grego. Passo
então à lista com os noventa aforismos, acompanhados da indicação dos versos.

1 Ao se lançar às grandes realizações, confie em pouquíssimas pessoas. (v. 75)


Παύροισιν πίσυνος μεγάλ᾽ ἀνδράσιν ἔργ᾽ ἐπιχείρει.

2 É péssimo parceiro quem tem língua única, mas mente dupla. (v. 91-92)
ὃς δὲ μιῇ γλώσσῃ δίχ᾽ ἔχει νόον, οὗτος ἑταῖρος δεινός.

3 Nunca faça de uma pessoa má sua amiga: fuja dela como de um porto onde não se pode
atracar. (v. 113-114)
μήποτέ τοι κακὸν ἄνδρα φίλον ποιεῖσθαι ἑταῖρον, ἀλλ᾽ αἰεὶ φεύγειν ὥστε

κακὸν λιμένα.

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4 São muitos os amigos na hora de beber e comer, mas muito poucos no aperto. (v. 115-
116)
πολλοί τοι πόσιος καὶ βρώσιός εἰσιν ἑταῖροι, ἐν δὲ σπουδαίῳ πρήγματι

παυρότεροι.

5 Nada é mais difícil do que reconhecer uma pessoa falsa e nada é mais importante do
que tomar cuidado com ela. (v. 117-118)
κιβδήλου δ᾽ ἀνδρὸς γνῶναι χαλεπώτερον οὐδέν, οὐδ᾽ εὐλαβίης ἐστὶ περὶ

πλέονος.

6 Muitas vezes, nas avaliações que fazemos, somos enganados pelas aparências. (v. 128)
πολλάκι γὰρ γνώμην ἐξαπατῶσ᾽ ἰδέαι.

7 Nenhum ser humano tem à sua disposição tudo aquilo que deseja. (v. 139)
οὐδέ τῳ ἀνθρώπων παραγίνεται ὅσσα θέλῃσιν.

8 Nossas considerações humanas são vãs: não temos conhecimento de nada. (v. 141)
ἄνθρωποι δὲ μάταια νομίζομεν εἰδότες οὐδέν.

9 Prefira viver com poucos bens, mas de forma correta, a adquirir riqueza corrompendo-
se. (v. 145-146)
βούλεο δ᾽ εὐσεβέων ὀλίγοις σὺν χρήμασιν οἰκεῖν ἢ πλουτεῖν ἀδίκως

χρήματα πασάμενος.

10 Nunca encha a boca para falar: ninguém sabe o que cada noite e cada dia reservam
para nós. (v. 159-160)
μήποτε ἀγορᾶσθαι ἔπος μέγα. οἶδε γὰρ οὐδεὶς ἀνθρώπων ὅ τι νὺξ χἠμέρη

ἀνδρὶ τελεῖ.

11 Siga, como eu, pelo caminho do meio. (v. 220)


μέσην δ᾽ ἔρχευ τὴν ὁδὸν ὥσπερ ἐγώ.

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12 Quem acha que o próximo não sabe nada, e que só ele próprio tem resposta para tudo,
é insensato e fraco das ideias. (v. 221-223)
ὅστις τοι δοκέει τὸν πλησίον ἴδμεναι οὐδέν, ἀλλ᾽ αὐτὸς μοῦνος ποικίλα

δήνε᾽ ἔχειν, κεῖνός γ᾽ ἄφρων ἐστὶ, νόου βεβλαμμένος ἐσθλοῦ.

13 Aqueles de nós que já têm muito só se empenham em dobrar o que têm. (v. 228-229)
οἳ γὰρ νῦν ἡμῶν πλεῖστον ἔχουσι βίον, διπλάσιον σπεύδουσι.

14 Nem mesmo o leão tem sempre carne no jantar. (v. 293)


οὐδὲ λέων αἰεὶ κρέα δαίνυται.

15 Pra quem fala sem parar, o fardo mais pesado é se calar. (v. 295)
κωτίλῳ ἀνθρώπῳ σιγᾶν χαλεπώτατον ἄχθος.

16 Com os enlouquecidos fico muito louco, mas com os corretos sou sempre o mais
correto de todos. (v. 313-314)
ἐν μὲν μαινομένοις μάλα μαίνομαι, ἐν δὲ δικαίοις πάντων ἀνθρώπων εἰμὶ

δικαιότατος.

17 Os erros são sempre os nossos companheiros. (v. 327-328)


ἁμαρτωλαὶ γὰρ ἐν ἀνθρώποισιν ἕπονται θνητοῖς.

18 Com planejamento o lerdo alcança o ligeiro. (v. 329)


βραδὺς ὢν εὔβουλος ἕλεν ταχὺν ἄνδρα διώκων.

19 Um refugiado não tem amigos e em quem confiar, e essa é a maior dor de se exilar.
(v. 332ab)
οὐκ ἔστιν φεύγοντι φίλος καὶ πιστὸς ἑταῖρος. τῆς δὲ φυγῆς ἐστιν τοῦτ᾽

ἀνιηρότατον.

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20 Muitos me criticam – gente boa e gente má –, mas nenhum dos imbecis consegue me
imitar. (v. 369-370)
μωμεῦνται δέ με πολλοί, ὁμῶς κακοὶ ἠδὲ καὶ ἐσθλοί, μιμεῖσθαι δ᾽ οὐδεὶς

τῶν ἀσόφων δύναται.

21 Não se precipite: o melhor é sempre esperar o momento certo. (v. 401)


μηδὲν ἄγαν σπεύδειν, καιρὸς δ᾽ ἐπὶ πᾶσιν ἄριστος.

22 Você não pode deixar para os filhos um tesouro melhor do que terem respeito e serem
respeitados. (v. 409-410)
οὐδένα θησαυρὸν παισὶν καταθήσει ἀμείνω αἰδοῦς.

23 Há muitas coisas que entendo e passam por mim, mas sou obrigado a me calar quando
reconheço qual é de fato a nossa capacidade. (v. 419-420)
πολλά με καὶ συνιέντα παρέρχεται, ἀλλ᾽ ὑπ᾽ ἀνάγκης σιγῶ, γινώσκων

ἡμετέρην δύναμιν.

24 A língua de muitas pessoas é como uma porta que não se fecha, e por isso se ocupam
com muitas coisas que não deveriam ser ditas. (v. 421-422)
πολλοῖς ἀνθρώπων γλώσσῃ θύραι οὐκ ἐπίκεινται ἁρμόδιαι, καί σφιν πόλλ᾽

ἀλάλητα μέλει.

25 É mais fácil conceber e criar um mortal do que pôr juízo dentro dele. (v. 429-430)
φῦσαι καὶ θρέψαι ῥᾷον βροτὸν ἢ φρένας ἐσθλὰς ἐνθέμεν.

26 Tolo é quem vigia meus pensamentos, mas não presta nenhuma atenção aos seus. (v.
439-440)
νήπιος, ὃς τὸν ἐμὸν μὲν ἔχει νόον ἐν φυλακῇσιν, τῶν δ᾽ αὐτοῦ ἰδίων ούδεν

ἐπιστρέφεται.

27 As dádivas dos deuses chegam até nós sob as mais variadas formas. (v. 444-445)
ἀθανάτων τε δόσεις παντοῖαι θνητοῖσιν ἐέρχονται.

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28 Se você tivesse de inteligência o mesmo tanto que tem de imbecilidade, e fosse tão
esperto quanto é tolo, seria, para muitos da cidade, tão invejável quanto é agora
insignificante. (v. 453-456)
εἰ γνώμης ἔλαχες μέρος ὥσπερ ἀνοίης καὶ σώφρων οὕτως ὥσπερ ἄφρων

ἐγένου, πολλοῖς ἂν ζηλωτὸς ἐφαίνεο τῶνδε πολιτῶν οὕτως ὥσπερ νῦν

οὐδενὸς ἄξιος εἶ.

29 Quem bebe além da medida não é mais dono da própria língua. (v. 479-480)
ὃς δ᾽ ἂν ὑπερβάλλῃ πόσιος μέτρον, οὐκέτι κεῖνος τῆς αὐτοῦ γλώσσης

καρτερός.

30 O vinho expõe a mente da gente. (v. 500)


ἀνδρὸς δ᾽ οἶνος ἔδειξε νόον.

31 Pra quem perguntar como vivo, responda assim: “Mal em comparação com quem vive
bem, mas muito bem em comparação com quem vive mal”. (v. 519-520)
ἤν δέ τις εἰρωτᾷ τὸν ἐμὸν βίον, ὦδέ οἱ εἰπεῖν, ὡς εὖ μὲν χαλεπῶς, ὡς

χαλεπῶς δὲ μάλ εὖ.

32 Não é em vão que as pessoas apreciam tanto você, Dinheiro: você tolera fácil o mau-
caratismo. (v. 523-524)
οὔ σε μάτην, ὦ Πλοῦτε, βροτοὶ τιμῶσι μάλιστα, ἦ γὰρ ῥηϊδίως τὴν κακότητα

φέρεις.

33 Como sofro com a juventude e com a funesta velhice: esta porque me vem, aquela
porque se vai. (v. 527-528)
ὤ μοι ἐγὼν ἥβης καὶ γήραος οὐλομένοιο, τοῦ μὲν ἐπερχομένου, τῆς δ᾽

ἀπονισομένης.

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34 Aproveito e me deleito com minha juventude, porque depois de morto vou passar
muito tempo debaixo da terra, como uma pedra. (v. 567-568)
ἥβῃ τερπόμενος παίζω. δηρὸν γὰρ ἔνερθεν γῆς ὀλέσας ψυχὴν κείσομαι

ὥστε λίθος.

35 Receba o bem agindo bem. (v. 573)


εὖ ἕρδων εὖ πάσχε.

36 Não tente me ensinar: não tenho mais idade para aprender. (v. 578)
μή με δίδασκ᾽, οὔτοι τηλίκος εἰμὶ μαθεῖν.

37 O que passou não pode ser desfeito: é do seu futuro que você deve cuidar. (v. 583-
584)
ἀλλὰ τὰ μὲν προβέβηκεν, ἀμήχανόν ἐστι γενέσθαι ἀργά. τὰ δ᾽ ἐξοπίσω,

τῶν φυλακὴ μελέτω.

38 Tudo está repleto de risco e ninguém sabe aonde vai dar o que foi começado. (v. 585-
586)
πᾶσίν τοι κίνδυνος ἐπ᾽ ἔργμασιν, οὐδέ τις οἶδεν πῇ σχήσειν μέλλει

πρήγματος ἀρχομένου.

39 Não se deve exagerar, nem no sofrimento nem no contentamento, até que se divise o
desfecho extremo. (v. 593-594)
μήτε κακοῖσιν ἀσῶ τι λίην φρένα μήτ᾽ ἀγαθοῖσιν τερφθῇς ἐξαπίνης πρὶν

τέλος ἄκρον ἰδεῖν.

40 A ganância já matou mais gente do que a fome: todos aqueles que queriam ter mais do
que lhes cabia ter. (v. 605-606)
πολλῷ τοι πλέονας λιμοῦ κόρος ὤλεσεν ἤδη ἄνδρας, ὅσοι μοίρης πλεῖον

ἔχειν ἔθελον.

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41 No começo existe alguma graça na mentira, mas no fim o que se ganha é só vergonha.
(v. 607-608)
ἀρχῇ ἔπι ψεύδους μικρὰ χάρις, εἰς δὲ τελευτὴν αἰσχρὸν δὴ κέρδος.

42 Não há hoje quem seja, sob o sol, inteiramente bom e comedido. (v. 615-616)
οὐδένα παμπήδην ἀγαθὸν καὶ μέτριον ἄνδρα τῶν νῦν ἀνθρώπων ἠέλιος

καθορᾷ.

43 As coisas nem sempre se dão segundo a vontade dos seres humanos. (v. 617)
οὔ τι μάλ᾽ ἀνθρώποις καταθύμια πάντα τελεῖται.

44 É sempre duro para o inteligente entre imbecis longamente falar. E duro também se
calar. (v. 625-626)
ἀργαλέον φρονέοντα παρ᾽ ἄφροσι πόλλ᾽ ἀγορεύειν καὶ σιγᾶν αἰεί.

45 É uma desgraça para o bêbado andar com os sóbrios. E, se sóbrio, uma desgraça ficar
com os bêbados. (v. 627-628)
αἰσχρόν τοι μεθύοντα παρ᾽ ἀνδράσι νήφοσιν εἶναι, αἰσχρὸν δ᾽ εἰ νήφων

πὰρ μεθύουσι μένει.

46 A juventude e a pouca idade roubam à nossa mente o seu devido peso. (v. 629)
ἥβη καὶ νεότης ἐπικουφίζει νόον ἀνδρός.

47 Quem não tem cabeça pra mandar no coração está sempre metido em aflição. (v. 631)
Ὧιτινι μὴ θυμοῦ κρέσσων νόος, αἰὲν ἐν ἄταις.

48 Pondere sempre duas ou três vezes sobre a ideia que lhe vem à mente. (v. 633)
βουλεύου δὶς καὶ τρὶς, ὅ τοί κ᾽ ἐπὶ τὸν νόον ἔλθῃ.

49 Ter esperança e correr risco são parecidos: os dois têm poder sobre nós. (v. 637-638)
ἐλπὶς καὶ κίνδυνος ἐν ἀνθρώποισιν ὁμοῖα, οὗτοι γὰρ χαλεποὶ δαίμονες

ἀμφότεροι.

58
50 Muitas vezes os feitos humanos fluem tranquilos contra o que se supõe e espera. (v.
639-640)
πολλάκι πὰρ δόξαν τε καὶ ἐλπίδα γίνεται εὖ ῥεῖν ἔργ᾽ ἀνδρῶν.

51 Não dá para saber quem é bem- e quem é mal-intencionado, a não ser no aperto. (v.
641-642)
οὔτοι κ᾽ εἰδείης οὔτ᾽ εὔνοον οὔτε μὲν ἐχθρόν, εἰ μὴ σπουδαίου πρήγματος

ἀντιτύχοις.

52 O respeito entre os humanos já era, enquanto a falta de vergonha se espraia sobre a


terra. (v. 647-648)
ἤδη νῦν αἰδὼς μὲν ἐν ἀνθρώποισιν ὄλωλεν, αὐτὰρ ἀναιδείη γαῖαν

ἐπιστρέφεται.

53 Nossa aflição pelos outros é efêmera. (v. 656)


ἀλλότριον κῆδος ἐφημέριον.

54 Não se deve jurar que algo nunca acontecerá. (v. 659)


̣οὐδ᾽ ὀμόσαι χρὴ τοῦθ᾽, ὅτι μήποτε πρῆγμα τόδ᾽ ἔσται.

55 É difícil encontrar a medida certa quando a prosperidade está por perto. (v. 694)
γνῶναι γὰρ χαλεπὸν μέτρον, ὅτ᾽ ἐσθλὰ παρῇ.

56 Quando estou bem os amigos são mais de cem. (v. 697)


εὖ μὲν ἔχοντος ἐμοῦ πολλοὶ φίλοι.

57 Pra grande maioria sucesso é só isso: ser rico. (v. 699-700)


πλήθει δ᾽ ἀνθρώπων ἀρετὴ μία γίνεται ἥδε, πλουτεῖν.

58 Ninguém baixa ao Hades levando as suas propriedades. (v. 726)


χρήματ᾽ ἔχων οὐδεὶς ἔρχεται εἰς Ἀΐδεω.

59
59 As preocupações, com suas asas coloridas e variadas, são o lote que nos cabe. (v. 729)
φροντίδες ἀνθρώπων ἔλαχον, πτέρα ποικίλ᾽ ἔχουσαι.

60 Aprendida a lição, faça fortuna sem corrupção. (v. 753)


ταῦτα μαθών, δικαίως χρήματα ποιοῦ.

61 Que essa dupla maligna fique longe de nós: envelhecer e morrer. (v. 767-768)
τηλοῦ δὲ κακὰς ἀπὸ κῆρας ἀμῦναι, γῆράς τ᾽ οὐλόμενον καὶ θανάτοιο τέλος.

62 Nada é tão grato quanto o solo pátrio. (v. 788)


οὕτως οὐδὲν ἄρ᾽ ἦν φίλτερον ἄλλο πάτρης.

63 Ninguém sobre a terra está imune à crítica. (v. 799)


ἀνθρώπων δ᾽ ἄψεκτος ἐπὶ χθονὶ γίνεται οὐδείς.

64 Nunca existiu, nem existirá, quem baixe ao Hades tendo a todos conseguido agradar.
(v. 801-802)
οὐδεὶς ἀνθρώπων οὔτ᾽ ἔσσεται οὔτε πέφυκεν, ὅστις πᾶσιν ἁδὼν δύσεται

εἰς Ἀΐδεω.

65 Sofri algo que não supera a morte, mas que é depois dela a coisa mais amarga de todas:
fui traído pelos meus amigos. (v. 811-813)
χρῆμ᾽ ἔπαθον θανάτου μὲν ἀεικέος οὔτι κάκιον, τῶν δ᾽ ἄλλων πάντων

ἀνιηρότατον, οἵ με φίλοι προὔδωκαν.

66 Um boi pisa na minha língua com sua pata e me impede de adular os outros, embora
eu saiba como. (v. 815-816)
βοῦς μοι ἐπὶ γλώσσῃ κρατερῷ ποδὶ λὰξ ἐπιβαίνων ἴσχει κωτίλλειν

καίπερ ἐπιστάμενον.

67 Há pouco espaço para os que desonram os pais quando estes envelhecem. (v. 821-822)
οἵ κ᾽ ἀπογηράσκοντας ἀτιμάζωσι τοκῆας, τούτων τοι χώρη ὀλίγη τελέθει.

60
68 Você não vai me convencer – nem a não beber, nem a beber demais. (v. 839-840)
οὐδέ με πείσεις οὔτε τι μὴ πίνειν οὔτε λίην μεθύειν.

69 É fácil administrar mal quem se comporta bem, mas difícil administrar bem o que se
comporta mal. (v. 845-846)
εὖ μὲν κείμενον ἄνδρα κακῶς θέμεν εὐμαρές ἐστιν, εὖ δὲ θέμεν τὸ κακῶς

κείμενον ἀργαλέον.

70 Já sabia antes, mas agora sei melhor: as pessoas más nunca são gratas. (v. 853-854)
Ἤιδεα μὲν καὶ πρόσθεν, ἀτὰρ πολὺ λώϊα δὴ νῦν, οὕνεκα τοῖς δειλοῖς

οὐδεμί᾽ ἐστὶ χάρις.

71 Vinho, ora eu elogio, ora eu critico você: não consigo só odiar ou amar – você é meu
bem e meu mal. (v. 873-875)
Οἶνε, τὰ μέν σ᾽ αἰνῶ, τὰ δὲ μέμφομαι. οὐδέ σε πάμπαν οὔτε ποτ᾽ ἐχθαίρειν

οὔτε φιλεῖν δύναμαι. ἐσθλὸν καὶ κακόν ἐσσι.

72 Preciso aproveitar a juventude: logo será a vez de outros. (v. 877-878)


Ἥβα μοι, φίλε θυμέ, τάχ᾽ αὖ τινες ἄλλοι ἔσονται ἄνδρες.

73 Discernimento é a melhor coisa que alguém pode ter dentro de si. E a sua falta, a pior.
(v. 895-896)
γνώμης δ᾽ οὐδὲν ἄμεινον ἀνὴρ ἔχει αὐτὸς ἐν αὐτῷ, οὐδ᾽ ἀγνωμοσύνης

ὀδυνηρότερον.

74 Em cada coisa um é pior e outro é melhor: ninguém consegue ser hábil em tudo. (v.
901-902)
ἔστιν ὁ μὲν χείρων, ὁ δ᾽ ἀμείνων ἔργον ἕκαστον. οὐδεὶς δ᾽ ἀνθρώπων αὐτὸς

ἅπαντα σοφός.

61
75 Se rico, muitos são os amigos. Se pobre, poucos sobram. (v. 929-930)
ἢν μὲν γὰρ πλουτῇς, πολλοὶ φίλοι, ἢν δὲ πένηαι, παῦροι.

76 O melhor é poupar: ninguém pela sua morte vai chorar se uma boa herança não
encontrar. (v. 931-932)
φείδεσθαι μὲν ἄμεινον, ἐπεὶ οὐδὲ θανὀντ᾽ ἀποκλαίει οὐδείς, ἢν μὴ ὁρᾷ

χρήματα λειπόμενα.

77 Fiz e não fiz, não cumpri e cumpri, agi e não agi, concluí sem concluir. (v. 953-954)
πρήξας δ᾽ οὐκ ἔπρηξα, καὶ οὐκ ἐτέλεσσα τελέσσας, δρήσας δ᾽ οὐκ ἔδρησ᾽,

ἤνυσα δ᾽ οὐκ ἀνύσας.

78 Só o tempo revela por inteiro o caráter de cada um de nós. (v. 967)


ἐκφαίνει πάντων χρόνος ἦθος ἑκάστου.

79 Ora você fica aflito com seus sofrimentos, ora feliz com suas realizações, e entre os
humanos o poder ora é de um, ora é de outro. (v. 991-992)
ἄλλοτέ τοι πάσχων ἀνιήσεαι, ἄλλοτε δ᾽ ἕρδων χαιρήσεις. δύναται δ᾽ ἄλλοτε

ἄλλος ἀνήρ.

80 A tão estimada juventude dura pouco: é como um sonho. (v. 1020-1021)


ὀλιγοχρόνιος γίνεται ὥσπερ ὄναρ ἥβη τιμήεσσα.

81 A ação mesquinha para nós é tão imediata, mas a prática da generosidade é árdua. (v.
1027-1028)
ῥηϊδίη τοι πρῆξις ἐν ἀνθρώποις κακότητος, τοῦ δ᾽ ἀγαθοῦ χαλεπή πέλει

παλάμη.

82 Não chateie seus amigos nem alegre seus inimigos. (v. 1032-1033)
μηδὲ φίλους ἀνία, μηδ᾽ ἐχθροὺς εὔφραινε.

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83 Em uns a riqueza esconde a maldade, em outros a pobreza esconde a virtude. (v. 1061-
1062)
οἱ μὲν γὰρ κακότητα κατακρύψαντες ἔχουσι πλούτῳ, τοὶ δ᾽ ἀρετὴν

οὐλομένῃ πενίῃ.

84 Tolos e sem noção: choram pelas pessoas que morreram, e não pela flor da juventude
a morrer. (v. 1069-1070)
ἄφρονες ἄνθρωποι καὶ νήπιοι, οἵ τε θανόντας κλαίουσ᾽, οὐδ᾽ ἥβης ἄνθος

ἀπολλύμενον.

85 A escuridão se estende adiante, e antes que algo aconteça não temos consciência dos
limites da nossa impotência. (v. 1077-1078)
ὄρφνη γὰρ τέταται, πρὸ δὲ τοῦ μέλλοντος ἔσεσθαι οὐ ξυνετὰ θνητοῖς

πείρατ᾽ ἀμηχανίης.

86 Não vou criticar um inimigo que se porta bem nem elogiar um amigo que se porta mal.
(v. 1079-1080)
Οὐδένα τῶν ἐχθρῶν μωμήσομαι ἐσθλὸν ἐόντα, οὐδὲ μὲν αἰνήσω δειλὸν

ἐόντα φίλον.

87 Não me ame apenas com palavras. (v. 1082c)


μή μ᾽ ἔπεσιν μὲν στέργε.

88 A Esperança é a única divindade boa que ainda permanece entre os seres humanos:
todas as demais partiram para o Olimpo. (v. 1135-1136)
Ἐλπὶς ἐν ἀνθρώποισι μόνη θεὸς ἐσθλὴ ἔτ᾽ ἐστίν. ἄλλοι δ᾽ Οὔλυμπόνδ᾽

ἐκπρολιπόντες ἔβαν.

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89 É difícil o inimigo enganar o inimigo: é mais fácil o amigo enganar o amigo. (v. 1219-
1220)
ἐχθρῷ μὲν χαλεπὸν τὸν δυσμενῆ ἐξαπατῆσαι, φίλον δὲ φίλῳ ῥᾴδιον

ἐξαπατᾶν.

90 Você vai sentir prazer com o amor que já passou, mas não vai ser senhor do que ainda
está por vir. (v. 1241-1242)
χαιρήσεις τῇ πρόσθε παροιχομένῃ φιλότητι, τῆς δὲ παρερχομένης οὐκέτ᾽

ἔσῃ ταμίης.

64
#9 EPIDEMIA, CIÊNCIA E POLÍTICA NA HISTÓRIA DE TUCÍDIDES

Enxergar a vida de uma forma desapaixonada não é incomum. Relatar esse olhar numa
prosa ousada e profunda, também não. Mas forjar uma linguagem que seja a própria
expressão formal dessa austeridade e totalmente indissociável dela, é um feito raro.
Foi essa proeza que o ateniense Tucídides alcançou na segunda metade do século V
a.C. ao escrever a sua História da Guerra do Peloponeso, uma narrativa que
acompanha, ano a ano, o longo confronto entre atenienses e espartanos, um embate
que para ele parecia o maior e mais notável de todos até então, superior à Guerra de
Troia e às Guerras Médicas. Homero narrou, em versos, parte da Guerra de Troia na
sua Ilíada. Heródoto, um pouco antes de Tucídides, narrou em prosa os
acontecimentos mais relevantes das Guerras Greco-Persas. Mas nenhum deles
almejou ser objetivo, preciso e exato como Tucídides, e nenhum deles foi levado a
criar um estilo tão próprio, que era a réplica perfeita dessa exatidão.

Homero e Heródoto são sedutores e envolventes, mobilizando um vasto arsenal de


elementos para montar as suas histórias. Com seus embelezamentos, são, entre aspas,
“ficcionais”. Tucídides, por outro lado, é “científico”, também entre aspas. Como
observador direto da guerra, ele procura o dado concreto, a verdade, ou, se não for
possível, o mais provável, o que tem credibilidade. Por isso seu texto é frio e
monótono. Homero e Heródoto, claro, também têm seus estilos indefectíveis. Mas
Tucídides tem “o” estilo indefectível porque, como eu disse, é perfeitamente ajustado
ao seu enfoque. Em certo sentido, Tucídides tem muito a ver com o clássico brasileiro
Os Sertões, de Euclides da Cunha: aí a Guerra de Canudos, observada pelo olhar
positivista, encontra uma prosa que se pretende tão exata e aplicada quanto o olhar
que está empenhada em veicular. Esse é o dado indissociável dessa grande obra, a
História da Guerra do Peloponeso, cuja leitura, por isso mesmo, é tão difícil – como
a de Euclides é. Aspereza e rugosidade seriam imagens boas para descrever as
escolhas que Tucídides faz, seja no vocabulário, seja na articulação das frases. No
plano lexical, ele não só emprega muitas abstrações, como parece cunhar novos
termos, explorando uma vertente mais filosófica da língua grega. Na sintaxe,
abandona a retórica equilibrada e pomposamente bem disposta em favor de

65
andamentos longos e tortuosos, às vezes imprevisíveis. O resultado é uma mistura
entre compactação de ideias e obscuridade de expressão, já notada pelos críticos
antigos, que se debatiam com essa dicção intratável. Mas as dificuldades valem o
esforço de serem vencidas, justamente por causa da inteligência penetrante do
historiador, que não se espraia na digressão e no pitoresco. O mítico, como era de se
esperar, não encontra espaço nesse texto, e por mítico podemos entender não só a
referência aos deuses e heróis da mitologia, mas a aplicação desse modelo às figuras
históricas, algo que Heródoto faz tão bem. Podemos incluir em mítico ainda oráculos
e profecias: Tucídides não pode deixar de mencioná-los, por serem dados relevantes
da realidade grega, mas os trata com indiferença.

A História da Guerra do Peloponeso é uma obra extensa, dividida em oito livros. Das
várias passagens onde a gente vê bem essa interdependência entre forma e conteúdo,
talvez nenhuma seja tão impactante quanto a da descrição da peste que se abateu sobre
Atenas em 430 a.C., cerca de um ano depois do começo da guerra entre atenienses e
espartanos. Essa descrição, feita numa linguagem gelada e seca, se desenrola por
algumas páginas na parte central do Livro 2. Vem imediatamente depois de Tucídides
recriar o longo discurso que o líder da Atenas democrática, Péricles, fez por ocasião
do sepultamento dos mortos no primeiro ano da guerra. Esse discurso é conhecido
como “oração fúnebre”, mas não é para baixo, como o título pode sugerir. Péricles
aproveitou o momento para reforçar o sentimento patriótico dos cidadãos e a ideologia
imperialista de Atenas. Dona do mar Egeu havia algum tempo, ela agora sofria a
ameaça de Esparta, descontente com tanto poder nas mãos de uma cidade só. Mas
Atenas logo iria sofrer uma outra ameaça, que não estava nos planos de Péricles, uma
outra guerra dentro da guerra.

Essa ligação entre a liderança política destacada e a eclosão da peste é importante. Na


verdade, a justaposição entre esses dois elementos não é uma novidade, o que mostra
que o mítico pode não estar tão ausente assim em Tucídides, pelo menos num nível
mais profundo. A Ilíada de Homero começa com uma peste deflagrada pelo deus
Apolo por causa do comportamento inadequado de Agamênon, o chefe do exército. E
a tragédia Édipo Rei de Sófocles também se abre com uma peste: ela seria uma espécie

66
de reflexo da mancha que Édipo, o líder, representava para Tebas depois de, sem
saber, ter matado o pai e casado com a mãe. Nos dois casos, um vidente é chamado
para ajudar a solucionar o problema sanitário. E nos dois casos esse problema sanitário
tem tudo a ver com a figura de quem está no comando, de um líder que é também um
problema. Mas, mesmo falando de liderança política e peste, esse tipo de enfoque não
é o de Tucídides. Na sua História ele aborda a epidemia de um jeito laico,
entrelaçando três aspectos: o médico-sanitário, o social e o político. A abordagem
podia ser até mais sentimental, porque ele diz que também contraiu a doença, mas
esse dado parece só reforçar a precisão do relato, a busca pela descrição objetiva:
Tucídides fala a partir da observação de si mesmo. Sua visão é tão empenhadamente
técnica que ele chega a dizer que a descrição pormenorizada que traz dos sintomas da
doença será útil àqueles que quiserem estudá-la, pro caso de vir a ocorrer de novo no
futuro. De forma geral, essa utilidade do relato histórico é um mote na sua obra.

Do ponto de vista médico-sanitário, Tucídides afirma o seguinte. Primeiro, que a


doença veio da África, espalhou-se pelo Oriente Médio e finalmente chegou à Ática,
de repente, começando pelo porto, o Pireu, antes de alcançar a cidade. Mas não se
tinha registro de uma ação tão devastadora. Quem já tinha uma doença pré-existente
passava a ter a nova, mas os saudáveis também a contraiam, porque ela atingia os mais
fortes e os mais fracos, indiferentemente. Os sintomas começavam com febre alta,
inflamação nos olhos, dor de garganta, sangramento na boca e mau hálito. Depois
vinham a rouquidão e a tosse violenta, seguidas de vômito e convulsão. Na pele
podiam se formar pequenas bolhas e feridas. Os doentes sentiam uma queimação que
não lhes permitia vestir qualquer tipo de roupa: preferiam andar nus e mergulhar nas
fontes de água que encontravam pela frente. A sede era insaciável. Não conseguiam
ficar parados nem dormir. O corpo mantinha uma resistência até surpreendente, com
a morte vindo a acontecer de sete a nove dias depois. Os que superavam essa fase
acabavam morrendo mais tarde em consequência da desidratação, por causa da
diarreia. Tucídides ressalva que esses sintomas podiam também variar, dependendo
do paciente. Quem sobrevivia podia ter, como sequelas, a perda de dedos e órgãos
genitais, que precisavam ser amputados, a perda da visão e até mesmo da memória,
quando se tornavam incapazes de reconhecer a si mesmos e às pessoas à sua volta. A

67
doença, porém, não atacava a mesma pessoa uma segunda vez, pelo menos de modo
fatal. Para o historiador, o sinal de que era totalmente anormal estava no fato de que
as aves de rapina não se aproximavam dos cadáveres insepultos; já os animais
domésticos, como os cães, morriam se tentavam se alimentar dos corpos.

Tucídides relata que os médicos não sabiam como ajudar os pacientes e faleciam em
grande número pelo contato com eles. Como não havia cura, as pessoas morriam não
sendo tratadas ou sendo muito tratadas. O que beneficiava um paciente podia
prejudicar outro. Quem se afastava, por medo, morria isolado, e quem queria ajudar
morria por causa da caridade. O historiador conta que o mais terrível em toda a aflição
era o desespero de quem se descobria doente e se entregava, sem esperanças, à morte.
Já os sobreviventes eram parabenizados e passavam a acalentar a ilusão de que no
futuro não morreriam por nenhuma outra doença. É importante esclarecer que
Tucídides não faz distinção entre gêneros, classes ou faixas etárias na sua análise da
ação da doença. Também não sabe dizer o número de cidades atingidas, além de
Atenas. Os espartanos, ao perceberem o surto, teriam evitado a transmissão, e assim
a epidemia não se alastrou pelo Peloponeso.

Há muito da linguagem médica nessa descrição, embora ela não coincida com a nossa.
Estimulados pelo cientificismo, geral em Tucídides mas mais explícito aqui, os
estudiosos modernos tentaram descobrir que doença teria sido essa, já que na obra do
historiador grego ela não tem nome. Muitas foram candidatas a se encaixar na
sintomatologia, sem um consenso. Mais recentemente, por causa dos surtos na África,
a infecção causada pelo vírus Ebola foi aventada, com vários pontos de contato.
Tucídides não traz o total de mortos em Atenas: em uma outra passagem, diz apenas
que 4.700 combatentes perderam a vida, além de um número incalculável de
habitantes. O que nos leva mais perto de um índice concreto é seu relato de que a peste
foi levada pelos atenienses até a Trácia, no norte, um outro front da guerra, e que lá,
em quarenta dias, dos 4 mil homens 1.050 morreram, dando uma letalidade de 25%.
A estimativa moderna é de 50 a 80 mil mortos no total. Tucídides também não explora
abertamente as causas. Diz que os meses anteriores ao primeiro surto foram
especialmente isentos de doenças. A suspeita recai sobre a aglomeração na cidade,

68
fruto da estratégia de Péricles de abandonarem os campos e se protegerem dentro da
fortificação ateniense.

Depois desse trecho impressionante e mais extenso, Tucídides relata como a doença
subverteu o comportamento social em Atenas, num contexto já agravado pelo
acúmulo de pessoas na cidade, com várias morando de modo improvisado e insalubre,
em pleno verão. Mortos e moribundos ficavam praticamente uns em cima dos outros
e doentes vagavam pelas ruas em busca de água, desesperados de sede. Os templos se
tornaram depósitos, com os corpos dos que tinham ido buscar ajuda espiritual. Aos
poucos, uma total indiferença começou a se estabelecer em relação às leis sagradas:
os sepultamentos, tão escrupulosamente observados ao fim do primeiro ano de
combate, agora se davam de modo caótico, quando aconteciam, com os familiares
usando piras alheias para a cremação dos seus. De modo mais grave ainda, a peste foi
um ponto de virada rumo à anarquia geral. Com a vida subitamente transtornada, os
que continuavam vivos se encorajavam a fazer às claras o que antes faziam às
escondidas. Todos queriam aproveitar desesperadamente o que tinham, buscando uma
satisfação imediata, cientes de que tudo era efêmero. Esforço e planejamento foram
abandonados. Ninguém se preocupava em ser reverente aos deuses ou às leis, porque
viam a morte atingir a todos indiferentemente, piedosos e infratores. Nesse cenário, a
epidemia já era o pior pagamento possível pelos crimes cometidos.

No plano da ação política, Tucídides ensaia uma discussão sobre a responsabilidade


pela doença e sobre a possibilidade de ter sido prevista. O historiador menciona que
alguns começaram a espalhar que a epidemia fora antecipada por um antigo oráculo,
que dizia: “Virá a guerra dórica e com ela a peste”. Só que Tucídides ressalva que o
termo que aparecia no oráculo era provavelmente limós, a palavra grega para “fome”,
e não loimós, o termo para “peste”. Bem ao seu estilo descrente e de combate ao
obscurantismo, ele comenta que a maioria preferia, claro, ignorar esse detalhe, mas
que, se no futuro acontecesse uma guerra contra os dóricos (=espartanos)
acompanhada pela fome, essas mesmas pessoas não teriam o menor problema em
dizer que o mesmo oráculo anunciava a fome, e não a peste. Quanto à
responsabilidade, ele menciona de passagem uma fakenews segundo a qual os

69
espartanos é que teriam envenenado as cisternas áticas, algo esperado dentro do
espírito de polarizações e ódios da guerra. De qualquer forma, como Péricles era o
líder, a população se voltou inevitavelmente contra ele em busca de culpados. Essa
tática de se aglomerar na cidade já tinha deixado os pobres do campo ainda mais
pobres e feito os ricos abrirem mão de suas propriedades rurais. A peste transformou
essa estratégia impopular em caos social.

Porém, como o historiador admira a figura de Péricles, não se aprofunda nesse ponto.
Prefere mostrar o líder mantendo, heroicamente, o mesmo tom da oração fúnebre.
Péricles reage à peste argumentando, entre outras coisas, que a doença foi algo
inesperado e com um impacto sem precedentes; que entende a reação popular, porque
algo assim assusta e escraviza o espírito, mas que é preciso firmeza e coragem. Suas
palavras, porém, não impediram que fosse destituído, ainda que a volatilidade da
massa o fizesse voltar depois ao comando. Só que Péricles acaba morrendo dois anos
e meio depois, provavelmente por causa dos efeitos da própria peste. Ele devia ter
pouco mais de 60 anos. A epidemia não despareceu de vez ao longo de quase quatro
anos: o primeiro surto durou dois, houve pouco mais de um ano de respiro e em
seguida uma nova onda, por mais um ano. Nada, diz Tucídides, nada abalou mais o
vigor de Atenas do que essa doença. Com a cidade de joelhos e o seu carismático líder
morto, a epidemia expôs também a fragilidade daquele grandioso discurso de
exaltação à pátria.

70
#10 O CHARLATÃO DESMASCARADO NO FALSO PROFETA DE
LUCIANO

Imagine um brasileiro que hoje decidisse aprender o espanhol usado por Miguel de
Cervantes, mais de quatrocentos anos atrás, e que passasse então a escrever várias
obras nessa língua e nesse estilo, que não são seus. E criasse assim um conjunto
notável pela sua originalidade e verve, que terminasse por se integrar à cultura
espanhola e europeia. Foi, mal comparando, o que fez no século II d.C. Luciano,
nascido em Samósata (ou Samsat, na atual Turquia), onde se falava uma forma de
aramaico. Seguindo o espírito geral dos eruditos do seu tempo, saudosos da oratória
ática em pleno Império Romano, ele se voltou para os prosadores clássicos da Grécia
dos séculos V e IV a.C., aprendeu a imitar um dialeto grego já há muito ultrapassado
e se impôs como uma referência obrigatória para quem se interessa pela literatura
clássica. Nenhum prosador antigo é tão legível quanto Luciano e nenhum é,
infelizmente, tão pouco lido como ele. São aproximadamente oitenta títulos que
chegaram até nós, com uma grande variedade de abordagens, todos saborosos e, acima
de tudo, extremamente atuais.

Luciano combinou dois ingredientes mais ou menos estranhos entre si, filosofia e
sátira, para criar uma expressão única. Sócrates, meio sério e meio cômico, não tinha
deixado nada por escrito. Platão tinha composto diálogos elevados, embora o humor
não estivesse ausente. Aristóteles tinha redigido tratados áridos e metódicos. Oradores
de renome, como Demóstenes, tinham posto a retórica a serviço apenas de propósitos
nobres. Cícero e Sêneca, séculos depois, tinham mantido a majestade do enfoque
filosófico em latim. Se a filosofia, na sua forma escrita mais influente, não tinha feito
comédia, tampouco a comédia tinha se atrevido a fazer filosofia, nem com Aristófanes
e Menandro, em grego, nem com Plauto e Terêncio, em latim. O ambiente delas era
outro e elevar o tom ou o tema comprometeria o efeito básico almejado, provocar o
riso. O que a comédia podia fazer, e fazia bem, era parodiar a filosofia. Se Luciano
dominava o emprego do grego antigo e o seu manejo erudito, não tinha, no entanto,
uma referência textual de peso para o gênero misto que veio a explorar, apenas
referências marginais. Em alguns de seus textos, ele mesmo reflete sobre o inusitado

71
da sua obra. Em um, compara-se a um pintor chamado Zêuxis, famoso por um quadro
que retratava uma fêmea de hipocentauro, o ser mitológico meio gente meio cavalo:
na pintura, a hipocentaura aparecia amamentando dois filhotes, um no seio da parte
humana e o outro na teta da parte equina. Em outro texto, Luciano diz que as pessoas
o comparavam a Prometeu, a divindade responsável por criar os primeiros humanos,
sem ter qualquer modelo para imitar. Nos dois casos, porém, Luciano lamenta que o
aspecto da novidade e do inesperado fosse o que prendia a atenção do público. Mais
que ser visto como um inventor de hipocentauros, de textos que combinavam
elementos díspares, ou como um Prometeu que criava do nada, ele queria atenção aos
detalhes da sua arte. Luciano era, na realidade, um estrangeiro no movimento de
ressurreição dos clássicos, porque não cultivava a retórica ou o diálogo puro. Não era
só filósofo ou orador, nem fazia só comédia.

Como ele combinou esses dois ingredientes, filosofia e comédia? Da filosofia pegou
o enfoque moral, misturando cinismo, epicurismo e ceticismo, que pregavam, por
diferentes ângulos, o desprezo à ambição material, à vaidade, à mentira, ao excesso e
ao conhecimento absoluto. De todas essas correntes, talvez a mais importante para ele
fosse a dos cínicos, que apreciavam a língua afiada, ainda que ela mesma não tivesse
uma tradição escrita forte. Por isso Diógenes, o filósofo cínico grego do século IV
a.C., e Menipo, um discípulo de Diógenes, são tão importantes na obra de Luciano.
Em geral, esses personagens, quando aparecem, são alter-egos de Luciano e se
empenham, como o autor, em desmascarar a vaidade humana. Já da comédia Luciano
pegou o tom de deboche, a crítica ácida a figuras conhecidas, o olhar risonho e
desencantado, a construção de tipos caricatos, mas sem o emprego da grosseria. Fazer
gozação com tudo que se apresentasse como sério e elevado era a grande estratégia de
Luciano.

O formato em que essa fusão aparece varia bastante, mas o mais popular é o do
diálogo, consagrado por Platão. Quase metade das suas obras são dialogadas. O livro
Os Diálogos dos Mortos, talvez o mais conhecido do conjunto que chegou até nós,
mostra bem essa faceta de Luciano. Puramente dramático, mobiliza figuras variadas,
da história, do mito ou simplesmente inventadas, para fazer graça com as veleidades

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humanas. O mote básico é de que a morte une todo mundo no Hades, das mais variadas
épocas e lugares, e que a morte, principalmente, iguala todo mundo. Para Luciano é
uma ótima situação dramática para que indivíduos das mais variadas procedências
sejam postos a nu. Os já citados Diógenes e Menipo são os personagens mais
frequentes nas pequenas cenas. A diversão dos dois é zombar de mortos importantes,
como reis, filósofos e heróis. Creso, o lídio célebre pelos seus tesouros, é perturbado
por Menipo e chamado de escravo. Descobrimos que Sócrates gritou como uma
criança ao chegar ao Hades e que, portanto, sua impassibilidade frente à morte era
uma impostura; e que ele não sabia nada mesmo, não estava sendo irônico quando
dizia isso. De um adivinho aproveitador ouvimos a confissão de que deixava de bom
grado que as pessoas ignorantes o vissem como um deus. Alexandre, o Grande, diz
que Aristóteles era um bajulador e um charlatão. E Aquiles leva uma reprimenda e
admite que a glória que tanto buscava não valia nada.

É nessa linha que se insere o Falso Profeta, só que no formato narrativo, como uma
breve novela ou um conto estendido. O espírito, como o título indica, é o mesmo:
desmascarar o impostor, principalmente o que lucra com o fanatismo e a cegueira das
pessoas. Esse tipo de gente, diz Luciano, costuma operar a partir da compreensão de
que dois tiranos controlam a vida humana: a esperança e o medo. É daí que o
inescrupuloso tira proveito. Luciano insiste em mostrar gente assim pelo que elas são:
interesseiras, corruptas, mistificadores, ignorantes. Do sábio desconhecido ao
renomado intelectual, do líder político ao curandeiro, sua prosa não poupa ninguém.
No caso do Falso Profeta, o alvo é um tal de Alexandre, da pequena cidade portuária
de Abonotico, atual Inebôlu, na Turquia. Foi nessa sua cidade natal, às margens do
mar Negro, que Alexandre, esse personagem histórico contemporâneo de Luciano,
fundou um oráculo com o culto ao deus Glícon, cuja fama se espalhou pelo Império
Romano. Era um homem alto e bonito, com uma peruca por cima do cabelo, muito
sagaz e sedutor; aparentava nobreza, santidade e sensatez, mas usava essas qualidades
para os piores fins. Depois de alguns golpes na juventude e de aprender truques com
um mentor e amante, uniu-se a um outro personagem, pior que o antigo mestre, e não
tardaram em bolar um ambicioso golpe: a fundação de um oráculo. No paganismo,
oráculos eram santuários presididos por diferentes divindades, onde pessoas e cidades

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se consultavam sobre os seus problemas e sobre o futuro – um esquema que, com as
devidas adaptações, é rentável ainda hoje.

Pois bem, decidida a criação do oráculo, o parceiro morre logo no início da empreitada
e Alexandre acaba tocando a fraude sozinho. Luciano descreve em detalhes todas as
picaretagens: o enterro de mensagens – oportunamente descobertas – em que Apolo,
o deus da profecia, anunciava que iria se instalar no mar Negro (o que já levou os
habitantes de Abonotico a erguer um templo em sua honra); as encenações em que
Alexandre, servindo-se dos efeitos de uma raiz mastigada, espumava pela boca e dizia
coisas incompreensíveis para impressionar a plateia; e o modo como colocou um
filhote de serpente num ovo de ganso que tinha esvaziado antes, para depois fazê-lo
nascer magicamente. Como Asclépio (o deus da cura e filho de Apolo) era identificado
com a serpente, essa “epifania” do bicho, claro, foi associada a ele. O réptil é nomeado
Glícon e passa a fazer parte de um grande teatro. Usando agora uma cobra de
estimação adulta e inofensiva, que aparece enrolada no seu corpo, por dentro da roupa,
Alexandre cria a ilusão de que a cabeça do animal é a cabeça colorida de um fantoche,
muito bem fabricado, que ele manipula. Na penumbra, a encenação impressionava as
pessoas, porque aquela pequena serpente nascida do ovo de ganso teria se
transformado nessa grande figura.

Alexandre também bola um sistema primitivo de som que fazia com que a própria
cabeça aparecesse dizendo as previsões, um tipo de oráculo que chama de “autófono”.
As perguntas à divindade eram entregues em rolos lacrados, que Alexandre,
afastando-se para o recinto sagrado, abria e depois fechava de novo, tomando cuidado
para não deixar nenhuma marca de adulteração. Assim ele podia ler qual era a
solicitação e dar a respectiva resposta, com os fiéis totalmente estupefatos com
tamanha precisão, porque o rolo aparentava estar intacto. A fraude envolvia vários
assistentes e, com a fama cada vez maior, não só de que o deus curava doentes, mas
ressuscitava mortos, ele foi se sofisticando. Alexandre elaborava novos oráculos
prevendo já a necessidade de corrigir e justificar oráculos equivocados, por exemplo,
no caso de pessoas que acabavam morrendo depois terem a cura anunciada. Rolos
com consultas comprometedoras eram guardados e não devolvidos, para chantagear

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os consulentes e assim arrecadar mais dinheiro. Espiões e informantes espalhados pelo
império permitiam que ele soubesse, com antecedência, quais seriam muitas das
consultas. Oráculos importantes, em outras regiões, eram indicados para os seus
clientes, o que ajudava a criar uma rede de mútua proteção entre eles. Quando premido
por denúncias, reagia ameaçando de morte seus oponentes, algo que o próprio Luciano
diz ter experimentado.

O sucesso foi amplo e duradouro, com o adivinho tendo inclusive ganhado da cidade
uma moeda em sua homenagem, com seu rosto de um lado e o da serpente do outro.
A proximidade com um oficial romano importante, devoto de Glícon, lhe dava a
proteção necessária. Luciano conta que Alexandre previu que viveria até os cento e
cinquenta anos, quando um raio o atingiria, como Zeus tinha atingido Asclépio no
mito, mas não chegou aos setenta, vitimado por uma infecção. O relato se encerra com
o elogio do filósofo Epicuro, um homem de fato divino: os epicuristas, Luciano revela,
estavam entre os principais delatores da fraude de Alexandre. Mas a gente não deve
concluir por aí que a filosofia de Luciano fosse o epicurismo. Parece que a intenção
era apenas contrapor o farsante ao sábio íntegro, o que explora o desespero dos
necessitados a quem quer genuinamente transmitir algum conhecimento e conforto.

Quando Luciano busca louvar alguém em seus textos, ele pende mais, como eu disse,
para a vertente cínica, na qual se destaca o sábio que age como ele, Luciano, faz – isto
é, ridicularizando. É o que acontece em outro texto saboroso seu, Vida de Demônax,
provavelmente também uma figura histórica. O objetivo do conto é fazer o elogio
desse sábio, uma mistura de Sócrates e Diógenes, mas que não se restringia a nenhuma
corrente filosófica em particular. Demônax vivia para incomodar as pessoas e usava
o riso como consolo. A estratégia narrativa que Luciano usa aqui é diferente da do
Falso Profeta: ao contrário da prosa corrida, ele vai enfeixando uma série de “causos”
envolvendo o filósofo, pequenos diálogos que se concluem com tiradas afiadas de
Demônax, uma figura marcada pela sinceridade e pelo desapego material. Perguntado
por um sofista, por exemplo, sobre qual seria sua escola de filosofia, Demônax teria
respondido: “Mas quem disse que sou filósofo?”, e completado advertindo que não se
deve julgar um sábio pela sua barba. Em outra conversa, que nos faz lembrar do

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fraudulento Alexandre, Demônax ataca um adivinho que fazia dinheiro com suas
previsões: se ele realmente tinha o poder de prever o futuro, qualquer valor cobrado
seria muito pouco; se não tinha, sua atividade era simplesmente uma fraude. Em outra
passagem, até um filósofo cínico é atacado, o que deixa claro que a adesão a essa
corrente não implicava qualquer corporativismo.

É curioso notar que Luciano, num dos causos, afirma que Demônax elogiava Tersites
como uma espécie de cínico primitivo. O cínico aqui, e cínico vem da palavra “cão”
em grego, não é o desavergonhado; cínico aqui é o sincero que late e morde o
desavergonhado, é aquele que, como o cachorro, reconhece quem não é de fato seu
amigo. Tersites, no Canto 2 da Ilíada de Homero, pode ser visto como uma figura
cínica porque é o guerreiro do povo que se volta contra as lideranças, principalmente
o chefe Agamênon, dizendo-lhe com franqueza o que pensava sobre o seu
comportamento. Por isso, Tersites é um personagem que tem tudo a ver com Demônax
e com o próprio Luciano.

Atacar os valores dominantes, a hipocrisia, o obscurantismo e a construção de mitos,


é o eixo da verve de Luciano. Se a sua prosa traz nos lábios um sorriso sutil que não
desiste, funcionando como uma espécie de antídoto ao modo de vida falso e desigual,
é porque não deixa de haver nela alguma coisa da crítica social ou do olhar idealista
– a postulação de um mundo mais justo, ou mais puro, que transforme a vida real, ou
que represe, como um dique, a própria realidade.

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#11 O AMOR ENGANADOR NA ELEGIA ERÓTICA DE OVÍDIO

Quando a gente fala hoje em elegia, o normal é pensar num poema grave e meditativo.
Por exemplo, a “Elegia 1938” de Drummond, com estes versos conhecidos:
“Trabalhas sem alegria para um mundo caduco (...) sentes calor e frio, falta de
dinheiro, fome e desejo sexual”. A “Elegia 1938” é uma peça emblemática do livro
Sentimento do Mundo, uma obra toda ela muito elegíaca, porque melancólica e
reflexiva, que fala de ombros que suportam o mundo. A elegia antiga podia ser assim,
melancólica e reflexiva, mas podia ser muitas outras coisas também. Mais do que isso:
antes da disseminação do verso livre usado aqui por Drummond, ela costumava ser
associada a um esquema rítmico fixo.

Quando um poeta reunia um hexâmetro, isto é, um verso de seis pés, com um


pentâmetro, de cinco pés, ele criava uma parelha ou um dístico, uma espécie de
miniestrofe de dois versos que podia repetir quantas vezes quisesse. Com esse
esquema, ele então se dedicava a falar de guerra, juventude, velhice, morte, política e
muitos outros temas. Através do uso do pentâmetro intercalado com o hexâmetro, o
que a elegia fazia, trabalhando a partir da mesma célula rítmica básica, era expandir o
horizonte da épica, conferindo-lhe graça e movimento. Sim, essa poesia ainda era,
como o gênero épico seu primo-irmão, linear e recitativa, mas é como se essa pequena
quebra trazida pela intromissão do pentâmetro fosse a deixa para uma pegada mais
pessoal. Não porque o poeta quisesse falar de si ou se confessar na elegia, mas porque
a expressão, nela, tendia a não ser a da narrativa objetiva em terceira pessoa. Na elegia,
temos um “eu” que fala consigo mesmo ou que fala com uma segunda pessoa que está
ao mesmo tempo dentro e fora do poema, como acontece na “Elegia 1938”, que
interpela um interlocutor imaginário que é também o próprio leitor. Essa forma de
diálogo, que não costumamos associar ao feitio da poesia épica, é vital para a
constituição da elegia enquanto gênero poético.

A chamada elegia erótica romana é uma das vertentes da elegia antiga. Não brota no
vazio, claro: se alimenta de uma longa tradição de versos heterogêneos, tanto em
grego quanto em latim. Mas, dentro dessa tradição, que ela jamais deixa de

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reverenciar, funda ao mesmo tempo um novo campo, no modo muito particular como
situa a temática amorosa no centro das suas atenções. A temática em si não era nova,
porque desde os gregos antigos já se falava de amor de modo mais leve e risonho, por
exemplo com as canções de Anacreonte. Mas fazer isso em dísticos elegíacos, com
um recorte erudito e irônico, era algo relativamente recente. Nessa trilha, a elegia meio
que consolidava a possibilidade de se desvencilhar do seu inevitável parentesco com
a épica. Aquele gosto seu pelo diálogo, que eu mencionei atrás, continuava de pé, mas
a serviço de um efeito bem diferente.

Ovídio, escrevendo em Roma ao longo de quarenta anos, mais ou menos duas décadas
antes e duas depois do nascimento de Cristo, é o mais popular representante dessa
forma de elegia, a elegia erótica romana. Como poeta, foi versátil. Teria escrito uma
tragédia Medeia, que se perdeu, e compôs em hexâmetros um épico central, as
Metamorfoses, mais extenso que a própria Eneida de Virgílio. Mas foi com a forma
elegíaca que passeou por diferentes expressões: criou, em registro mais sério, cartas
de figuras míticas aos seus amados, as Heroides; uma obra didática paródica que nos
chegou incompleta, Tratamentos para o Rosto da Mulher; dois poemas de lamento
sobre a sua suposta expulsão de Roma, Cantos Tristes e Cartas Pônticas; ataques a
um inimigo não nomeado, na obra Íbis; e um poema com o calendário das festas
religiosas em Roma, os Fastos.

Nesse campo variadíssimo da elegia, foi com a sua trilogia erótica que ele se
notabilizou, formada pelas obras Amores, Arte de Amar e Remédios para o Amor.
Nelas, não por acaso, o eu que conduz o discurso poético, e que adora falar sobre o
seu próprio fazer poético, não se esquece do parentesco da elegia com a épica. Ele
explica, mais de uma vez, que a sua vocação era cantar as armas e o sublime, como
em Virgílio, mas que o pentâmetro se intrometeu e ele descambou para a elegia e para
os amores. A elevação é trocada pela descontração. Só que essa mudança de percurso
não o coloca totalmente ao largo da épica, porque Ovídio ressalta, risonho, que as
relações amorosas também são épicas, já que podem ser encaradas como uma forma
de combate, de guerra, de serviço militar: são as armas ainda que ele enverga, e ainda
grandiosas, mas em outra seara... Esse é tom dessa elegia erótica: leve, jocoso,

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paródico, cheio de piscadelas para o leitor, convidado a passear pelas suas múltiplas
notas e referências, não só a Virgílio como a vários outros poetas, nomeados em
algumas passagens.

Nos Amores, dividido em três livros, temos situações descontínuas, vinhetas


envolvendo um homem apaixonado e a sua amada Corina. Na Arte de Amar, também
em três livros, a construção é mais linear, porque o objetivo é instruir o leitor em
diferentes áreas da sedução. Finalmente, em Remédios para o Amor, a mais breve das
três obras, o eu poético faz uma espécie de retratação: ensinou a amar antes, agora vai
ensinar a desamar. Essas obras eróticas conversam entre si e o movimento geral delas
nos mostra bem o lado retórico da obra de Ovídio: com seu virtuosismo, ele podia
versar sobre o que quisesse, contra ou a favor, de um jeito mais sério ou mais cômico,
sendo mais pungente ou mais leve, brincando com o que bem entendesse. Como
resultado disso, a própria abordagem do amor nessas obras acaba não tendo o efeito
que um leitor desavisado poderia esperar.

Sim, Ovídio apresenta insights preciosos sobre a psicologia amorosa e sobre o que é
estar apaixonado, mas a exposição, além do dado da ironia sutil, vem envolta numa
roupagem artificial, que pede tudo do seu leitor ou leitora, menos que se comova para
valer. Para começar, a relação amorosa apresentada é muito específica. Hoje, quando
pensamos em amor, pensamos em duas pessoas de sexos diferentes ou do mesmo sexo
que se sentem atraídas uma pela outra e evoluem para uma relação estável. Para nós,
paixão e união tendem a fazer parte do mesmo pacote. No mundo de Ovídio, o amor
é entendido como paixão, atração erótica, e a paixão não acontece na relação estável
conjugal, mas fora dela. O erotismo habita um espaço que não é o do casamento,
porque o casamento em Roma, como em muitas outras culturas, acontecia sem o
ingrediente da paixão. O esquema básico é o seguinte: de um lado temos o homem
apaixonado, ao mesmo tempo escravo e professor do amor, e do outro lado temos a
mulher casada a quem ele dirige a sua paixão, a domina, que é a senhora que o domina.
Esse homem sofre com esse sentimento e com as situações pelas quais passa, e tem
ainda que lidar com as figuras do marido dela e de possíveis rivais. Dá para dizer,
assim, que a situação central nessa elegia erótica é a traição, o engano. Seu casal

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símbolo é o troiano Páris e a grega Helena, com o triângulo completado pelo marido
descuidado, Menelau. Não é por acaso então que o amor aí está ligado ao fingimento:
quem ama finge. Não porque não sente de fato, mas porque, para ter sucesso, precisar
jogar um jogo onde a sinceridade é a arma mais nociva de todas.

Além da presença desses artifícios, nesse cenário amoroso pintado por Ovídio tudo é
entrecortado, no sentido de que não é possível reconstruir uma ordem dramática
envolvendo o eu poético e suas aventuras. Ao caleidoscópio do poeta interessa a
exploração de diferentes ângulos e não uma narrativa lógica, mesmo quando Corina é
nomeada. O “erótica” de “elegia erótica” também ilude: em meio a artimanhas e
obstáculos que aumentam o desejo, sempre em linguagem sorridente, às vezes o
erotismo pode sim irromper, como quando o poeta fala, nos Amores, do anel da amada
em contato com o corpo dela e da ereção masculina, levando a gente a entender anel
também como ânus; ou quando descreve o prazer do casal quando os dois gozam ao
mesmo tempo. Mas é só às vezes: a leveza é que dita o tom geral. Contribuem ainda
para esse ambiente mais comportado, num universo que é o da classe alta, personagens
que parecem derivar da comédia, mencionados com alguma frequência: porteiros que
impedem a entrada do homem apaixonado, alcoviteiras que aconselham, escravas que
acobertam visitas e entregam cartas. Importante dizer também que, a despeito da
impressão de igualdade na relação homem-mulher, ou mesmo da mulher num papel
de domínio, na prática o machismo é a regra: a figura feminina é apenas objeto do
desejo do homem. Mesmo a seção final dedicada a elas na Arte de Amar é enganosa:
as dicas são sobre como devem agradar seus conquistadores. As poucas referências à
gravidez e ao aborto também não trazem a perspectiva feminina.

Tudo isso, por si só, ajuda a construir uma literatura de amor muito particular, forjada
com base em fantasias masculinas e sexismo, com a urbe de Roma como pano de
fundo, especialmente na Arte de Amar. Só que o que faz a elegia erótica ser o que ela
é, o que lhe confere cor especial, é sua enorme erudição, o jogo que quer estabelecer
com o leitor. Como eu disse antes, a arte amorosa de Ovídio é muito consciente do
seu artifício literário, do seu fazer poético, e a demonstração maior disso são as
intermináveis referências mitológicas, ao lado de outras oriundas do mundo natural.

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São elas que ajudam a ilustrar, numa perspectiva mais ampla e ainda mais artificial, o
tópico que está sendo tratado. Se Ovídio discorre, por exemplo, sobre o desejo
feminino, ele pode elencar dez exemplos míticos para reforçar seu ponto. O
procedimento é uma constante e faz muita gente se perder hoje na leitura, mas há
outros também. Por exemplo, ao sugerir o sexo de reconciliação depois de um acesso
de ciúme, Ovídio pode se voltar para um relato da criação do mundo, onde demonstra
como a união sexual foi importante para civilizar a vida. É ilustrativo e digressivo, e
é uma conversa com o que está lá na abertura do seu épico, as Metamorfoses.

Quando você junta todos esses ingredientes, percebe que na elegia erótica de Ovídio
o amor é, na verdade, quase uma desculpa para se amar a literatura e seus efeitos mais
sofisticados. Ovídio, à medida que vai passeando pelas vicissitudes da paixão, não nos
faz pensar nas nossas questões amorosas tanto quanto nos nossos prazeres estéticos.
Não cria a impressão da fusão sentimental, não nos faz sentir junto com os
personagens e as cenas que descreve: Ovídio faz questão de romper a todo momento
essa identificação, porque o tema não é bem o amor, mas a fabricação verbal do amor,
a poesia ou a própria elegia. Quando vemos Dido apaixonada por Eneias no Livro 4
da Eneida, experimentamos o que é o amor, sua doçura e seu amargor. Ovídio, em
suas elegias, cita Dido como exemplo mais de uma vez, mas o que experimentamos
não é a afecção do amor, mas o amor por Ovídio citando.

Se a gente abordar Ovídio por esse ângulo, não vamos poder deixar de apontar uma
certa frieza característica da sua elegia, uma elegia sobre a paixão que não apaixona
por causa do sentimento. Existe um paradoxo aí, uma quebra de expectativa. É como
se Ovídio mantivesse sempre uma distância segura do seu tema. Para mim, esse efeito
faz lembrar a obra de Choderlos de Laclos, As Relações Perigosas, do século XVIII.
Claro, tudo é diferente nessa história escrita em francês. Primeiro, trata-se de um
romance, e de um romance epistolar, naquele esquema em que acompanhamos o
desenrolar da ação a partir das muitas vozes que falam sozinhas em primeira pessoa:
cada carta coloca uma peça a mais no quebra-cabeça da ação. Depois, essa obra tem
um tom moral, de crítica à decadência da corte francesa às vésperas da revolução. O
mundo da traição e da sedução é deletério, embora alguns tenham podido ver o

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romance como uma apologia à libertinagem. Mas o ponto de contato com Ovídio está
na maneira como os personagens centrais, um visconde e uma marquesa, antigos
amantes, manipulam o jogo da sedução, extraindo prazer menos da paixão genuína e
mais da milícia do engano e do fingimento. De certa forma, existe uma “arte de amar”
dentro dessas relações perigosas, apregoada pelos seus protagonistas, tal como o eu
ovidiano a apregoa em suas elegias. E dessa forma o romance, a meu ver, não nos
comove tanto quanto nos diverte sutilmente, com sua retórica amorosa elaborada. Isso
faz dela uma obra fria, onde o amor está a cada página, mas à distância. A obra de
Choderlos de Laclos, tal como a de Ovídio, tem na algidez seu maior atrativo e seu
maior obstáculo.

Mas será que uma frieza desse teor poderia ter resultado no suposto exílio de Ovídio,
o exílio que é a base dramática paras suas elegias de lamento? Será que Ovídio foi
mesmo expulso de Roma por causa da sua Musa lasciva, como a chama nos Remédios
para o Amor? Pense num poeta que criou um jogo interminável de ilusões em primeira
pessoa: esse poeta é Ovídio. Nenhum outro autor antigo desencaminhou, como ele,
tantos críticos incautos. Difícil imaginar que um romano caísse na identificação fácil
entre o que sua poesia construída e amaneirada diz e o mundo real à sua volta. Difícil
também imaginar que um romano não sucumbisse ao poder dessa ilusão, outro efeito
buscado. Isso é Ovídio a cada verso: lúdico e nada sincero, no amor bem como na
poesia. Mas quem pode resistir à sua encantadora mentira?

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#12 À PROCURA DO ROTEIRO PERFEITO NA POÉTICA DE
ARISTÓTELES

Stanley Kubrick é o diretor norte-americano responsável por filmes clássicos como O


Iluminado, Laranja Mecânica e 2001 – Uma Odisseia no Espaço. Numa entrevista de
1976, Kubrick, que tinha se especializado em trabalhar com roteiros não originais, ou
seja, baseados em histórias pré-existentes, afirmou que o importante para ele não era
o que ia acontecer, mas como. Nas suas palavras: “Se lhe mostram um filme sobre o
naufrágio do Titanic sem que lhe contem que ele vai afundar, você não terá nenhum
interesse por 90% dos acontecimentos antes do choque com o iceberg! Mas se
soubermos que isso vai acontecer, o suspense é de outro tipo, ele tem a ver com o
COMO”. O cinema, desde que surgiu como a sétima arte, vem se debatendo com esse
COMO, e na sua busca por respostas tem recorrido à Poética, o famoso tratado escrito
por Aristóteles no século IV a.C.

Não é por acaso. Na Poética, a atenção principal não está voltada para o que contar,
para o conteúdo, mas para o COMO contar: a história, que é central para Aristóteles
na sua discussão, não precisa ser original, mas a sua articulação, sim. O filósofo chama
esse elemento central de mûthos, “mito”, que significa aí não apenas “história”, mas
“história fabricada, construída”. No mito, tal como Aristóteles o vê, os eventos são
menos relevantes do que o modo como são costurados entre si. Está lá na abertura da
Poética: falemos sobre COMO se devem construir os mitos. Mito tem assim para ele,
no próprio original grego, um sentido quase técnico, de “trama”. Para Aristóteles, essa
era a missão do poeta competente: construir um bom mito.

Sim, o território do poeta aí é o mito, a trama – não a beleza ou a autoexpressão –, e


por isso a Poética tende a iludir com seu título: fica-se à espera de uma abordagem
voltada para a criação lírica, mas ela nunca vem. Aristóteles no tratado considera
apenas o poeta e a poesia que são dramáticos, ou seja, que apresentam uma ação. O
foco recai sobre a épica e principalmente a tragédia. Homero, Ésquilo, Sófocles,
Eurípides, esses eram os que se dedicavam a contar em verso uma história para a
plateia, fosse ela recitada ou montada no palco. Daí a trama ser missão do poeta, como

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é hoje do prosador de ficção. Só que aqui me interessa mais explorar a analogia com
o cinema: como as histórias da mitologia que alimentavam epopeias e tragédias não
eram originais, eram histórias conhecidas envolvendo Édipo, Medeia, Aquiles,
Helena, Héracles e muitos outros, o paralelo com Kubrick que usei na abertura é útil
porque ele era original remodelando histórias inventadas por outros. O Iluminado de
Stephen King é um, o de Kubrick é outro. O, entre aspas, “poeta roteirista” da Grécia
Antiga não criava um roteiro original, era quase sempre um adaptado. Para ele o
COMO, o mito enquanto trama reelaborada de uma história já batida, era o foco maior.
Uma coisa é o mito de Édipo em linhas gerais, em seu argumento ou “mitema”, como
os antropólogos diriam. Já o mito de Édipo, na concepção da Poética de Aristóteles,
é cada trama específica dessa história, em especial a criada por Sófocles no Édipo Rei,
que o filósofo cita seis vezes como modelo. É desse mito que Aristóteles quer falar.
Reparem que no Édipo Rei o suspense é o mesmo do Titanic: já sabemos o que vai
ocorrer e de posse desse conhecimento podemos apreciar COMO Sófocles vai urdir
seu Édipo.

Ao abrir a Poética de Aristóteles, é isso então que devemos procurar: a fórmula do


texto bem costurado. E, apesar da sua preocupação final ser com um gênero
específico, o teatro trágico da Atenas antiga, e apesar de a representação ao longo de
séculos ter se aberto para tantos outros formatos e caminhos, suas reflexões são tão
agudas que servem ainda hoje para qualquer forma de ficção, do romance ao cinema.
Quem tiver paciência para atravessar o estilo metódico e ao mesmo tempo truncado e
elíptico da Poética, um texto normativo e árido, que dá a impressão de resultar da
junção de anotações – quem tiver paciência vai ser recompensado com insights
preciosos. De novo: o leitor não deve esperar a postura de um crítico literário
contemporâneo, atrás de sutilezas, ambiguidades, do gênio original com sua visão de
mundo. Aristóteles é antes de tudo um filósofo: ele quer conhecer o funcionamento
da arte poética, sua natureza e seus efeitos. Na abertura da Metafísica ele diz que todo
ser humano anseia por conhecimento. E na Poética acrescenta que nosso contato com
qualquer forma de representação é uma experiência cognitiva e prazerosa. Está
inscrita na nossa natureza humana. Contemplar um quadro, ver uma peça, assistir a
um filme ou a uma série, todas essas são situações de contentamento, por mais que as

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representações possam ser de coisas terríveis. É um contentamento muito básico, de
reconhecimento do real no que não é real, de si mesmo no outro. Numa passagem
conhecida da Poética, ele fala ainda sobre como a poesia dramática é superior ao
relato histórico, porque a poesia tem esse propósito mais geral, universal, sem se ater
ao particular, e isso a deixa com essa carga mais profunda.

Mas essas formulações mais filosóficas dentro da Poética são raras. Em grande parte
do tempo ela é filosófica simplesmente porque é investigativa. É assim, aos poucos,
que Aristóteles vai percorrendo cada um dos elementos que considera fundamentais,
examinando-os com calma, formulando reflexões gerais ao invés de partir de análises
particulares. Antes de mais nada, ele diz que a composição da ação, que o mito ou a
trama, tem de ter unidade, no sentido de formar um todo com começo, meio e fim.
Qualquer obra tem começo, meio e fim, mas só a obra bem acabada tem um começo
que leva ao meio e um meio que leva ao fim. Só a obra bem acabada é coesa e
orgânica. O que vem DEPOIS DE algo só funcionará se vier POR CAUSA DE algo
e o todo for apreendido no seu conjunto, for inteligível. A relação não deve ser só
cronológica, mas atender a uma lógica interna, a uma necessidade, tanto dos fatos
quanto das motivações e escolhas dos personagens. É um conselho simples, mas
difícil de pôr prática. Quantas obras, no cinema ou na literatura, podemos dizer que
têm essa qualidade?

Em seu rigor, Aristóteles torce o nariz para recursos paralelos, que para nós poderiam
segurar uma narrativa, tais como a ênfase num grande personagem central ou na
música que acompanha a ação, ou ainda nos efeitos especiais do espetáculo. São
elementos cuja existência reconhece, mas que para ele não estariam no âmbito da boa
técnica da construção do mito. Seriam subterfúgios, formas de apelar e de se esquivar
do que mais importa. Para quem faz teatro, pode ser chocante ler isso, porque efeitos
explorados faz tempo no palco passam longe dessa primazia do texto. Filmes de
sucesso têm nas imagens impactantes ou em personagens populares seu ganha-pão,
mais do que no roteiro, na trama bem construída. Além dessa cobrança pela unidade,
para Aristóteles o mito tem de ser verossímil, isto é, plausível, não exatamente porque
fala do real. Pode até falar da coisa mais irreal e absurda de todas, mas no interior

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daquela ação ela deve ser convincente, deve fazer você embarcar na história. O mesmo
vale para o personagem: okay que seja incoerente, contanto que seja mantida a
coerência dessa incoerência, para fazer sentido. O registro dessa lei da credibilidade
interna talvez seja a contribuição mais perene da Poética.

Já pareceria suficiente essa exigência aristotélica pela construção articulada e


plausível da história, mas isso não é tudo. Como nos guias direcionados a roteiristas
e a aspirantes a best-seller, o filósofo desce às minúcias. Unidade, determinação
interna da ação e verossimilhança são fundamentais, mas que mecanismos específicos
essa ação deve conter? Que efeitos ela deve produzir? Que tipo de herói ou heroína
deve apresentar? Examinar cada um desses pontos é iluminar a arte de fabricar uma
boa história e ao mesmo tempo entender aquele prazer e aquele conhecimento que
experimentamos com a representação: que cordas dentro de nós a ficção toca? Para
envolver, Aristóteles defende que ela tem que respeitar um esquema de progressão. O
mito, para o filósofo, tem que ter um nó e depois um desenlace, uma complicação até
a virada central e depois um encaminhamento ou uma “descomplicação” do que foi
exposto. Ou seja, a ação precisa de um crescendo rumo a um ápice ou clímax, e a
seguir precisa de uma resolução, que Aristóteles afirma ser a parte mais difícil de ser
bem executada.

Um segundo ponto que é muito caro para Aristóteles é o da inclusão da reviravolta e


do reconhecimento. Aqui existe um pouco de confusão, porque numa leitura ligeira
as pessoas tendem a achar que reviravolta é essa virada na ação, o divisor entre nó e
desenlace, do tipo “tudo estava indo bem e num lance específico ficou mal” ou “indo
mal e ficou bem”. Na verdade, quando ele fala em reviravolta explica que se trata de
um momento, ou momentos, em que a situação muda de direção contra a expectativa
interna, de um ou mais personagens. Na reviravolta aristotélica alguém é pego de
surpresa, de preferência quando trabalha com algo positivo e o resultado, para espanto
geral, é negativo, o inverso do esperado. Isso é reviravolta, ou peripécia, como outros
preferem chamar. Para Aristóteles, se a peripécia acontece junto com o
reconhecimento, ou seja, com a descoberta por parte do personagem de algo que
desconhecia, algo grave e com consequências importantes, a construção da história se

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beneficia muito. São poucos exemplos, ele dá muito mais ênfase ao reconhecimento,
mas dois elementos estão embutidos na discussão sobre peripécia e descoberta e
ajudam a entender por que Aristóteles confere tanta importância a eles. Quando fala
sobre uma mudança inesperada no curso das coisas e de uma percepção tardia,
Aristóteles no fundo está indicando como, na sua concepção de uma boa história
trágica, os personagens devem se defrontar com a instabilidade e vulnerabilidade das
suas vidas, sujeitas a transformações nem de longe sonhadas, e está indicando ainda
como é doloroso para eles ficarem sabendo só após muito tempo de algo que deviam
ter reconhecido bem antes. No mundo de deuses e heróis da tragédia, isso tudo, claro,
tem a ver com a linha que separa imortais de mortais, os seres divinos dos humanos.
São estes últimos que vivem as incertezas e surpresas, as ignorâncias e cegueiras,
como agruras certas em suas vidas, trágicas em diferentes níveis.

E com isso chegamos ao último ponto, a figura da heroína ou herói. Como construí-
la? Pode ser maligna ou deve ser um exemplo de virtude? Qual se encaixa melhor no
drama? Por que experiências deve passar? E como nós, da audiência, nos
relacionamos com ela? Atualmente, dá para dizer temos pelo menos duas figuras
básicas marteladas pelo audiovisual norte-americano: a da superação/sacrifício de um
lado, e a da redenção de outro. Uma é inerentemente boa e tem essa bondade posta à
prova, e a outra é cheia de imperfeições e atravessa uma jornada em que se purifica e
aperfeiçoa. Não são perfis originais, claro: fazem parte da morfologia do conto
popular. Nos dois casos, o final em geral é feliz, aquele final que é quase uma regra
de ouro da indústria cinematográfica. Ora, a gente pode dizer que, por um lado,
Aristóteles vai na mesma direção, negando destaque ao vilão – a quem é muito
imperfeito do ponto de vista moral. Mas por outro lado ele se afasta do perfil mais
familiar para nós quando propõe uma figura, virtuosa sim como protagonista, notável
sim, mas não perfeita. À primeira vista, parece que estamos ainda na mesma seara,
mas só à primeira vista: Aristóteles exige que essa heroína ou herói cometa um erro e
que esse erro a leve da felicidade para a infelicidade.

As nossas figuras-modelo atuais podem errar, mas chegam lá, e chegar lá para nós é
fundamental, a base do manual hollywoodiano. A figura heroica de Aristóteles

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também pode errar, e erra, mas esse erro impede que ela chegue lá – mais do que isso,
esse erro, muitas vezes não intencional, até casual, pode significar a sua destruição ou
a destruição dos seus entes próximos e queridos. A Ilíada, por exemplo, se encaixa
nesse esquema. Mas a Odisseia, por terminar bem para os bons e mal para os maus, é
criticada por Aristóteles: não é um efeito que ele aprecia. E é por isso que nesse ponto
ele cita mais uma vez o Édipo Rei de Sófocles como modelo. Édipo era o governante
amado pelo povo, homem notável que salvou Tebas da Esfinge, mas a descoberta que
faz na peça dos crimes passados, matar o pai e casar com a mãe, o destrói e destrói
sua família. Essa destruição é contada por Sófocles num ritmo e numa concatenação
alucinantes. Cada cena, cada fala, cada verso têm uma função no Édipo Rei. Se um
trecho sequer for retirado, o edifício desaba. Pois é esse tipo mito, construído desse
modo, com esse tipo de herói, com peripécia e reconhecimento, que para Aristóteles
vai gerar os efeitos tão necessários à experiência dramática: pavor e compaixão.

Mas será que sentimos mesmo pavor e compaixão por Édipo? Ou seria por Jocasta?
Por que temos que sentir isso na boa tragédia? O que significa experimentar a catarse
desses sentimentos? Aristóteles não explica. Mas por trás disso talvez esteja a ideia
de identificação. Édipo não é nenhum de nós, é uma representação, mas Édipo é um
semelhante, é cada um de nós. O que acontece com ele pode acontecer comigo, porque
também não sei bem o que talvez devesse saber, porque tudo é efêmero e sem
consistência, porque tudo pode acabar sem aviso prévio. Tenho pavor porque pode
acontecer comigo. E tenho compaixão porque pode acontecer comigo. Posso ser o
próximo. Kubrick, na mesma entrevista que eu citei no começo, diz que a tragédia
procura apresentar a vida de uma maneira mais honesta e próxima da realidade, e que
seu efeito final deve ser um sentimento de desolação. Acho que Aristóteles não
discordaria.

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#13 NEM À ESQUERDA NEM À DIREITA: O CENTRO NA POESIA DE
SÓLON

Político / sábio / poeta: o ateniense Sólon, que atuou na primeira metade do século VI
a.C., foi essas três coisas ao mesmo tempo na Grécia Antiga. Dos poetas dessa época
remota, nenhum outro tem uma existência histórica tão palpável quanto a dele, e isso
acontece justamente porque a poesia não era a sua atividade principal, mas um ofício
paralelo. Sólon era, antes de tudo, alguém dedicado à sua pólis, alguém empenhado
em trabalhar em benefício dela: é pelos relatos externos que temos sobre sua atuação
política e suas sábias reflexões que podemos iluminar seus versos de um modo único.
Ou seja, no seu caso existe uma conversa direta entre vida, momento histórico e obra
poética, uma conversa que parece determinar a interdependência desses elementos de
um jeito que é muito caro aos Estudos Clássicos. Mas a gente deve tomar certo
cuidado com esse enfoque, porque a poesia de Sólon, mesmo sendo política e falando
da política ateniense do começo do século VI a.C., tem um elemento de sabedoria
atemporal e exemplar, que ultrapassa as circunstâncias histórias e biográficas.

No plano da atuação política, Sólon foi uma figura central para atenuar os conflitos
vividos por Atenas um século antes das Guerras Greco-Persas e de certa forma
pavimentar o caminho para o surgimento da democracia. No final do século VII a.C.
a cidade era controlada por oligarcas que só faziam reforçar as desigualdades sociais.
A legislação instituída por Drácon por esse tempo, da qual pouco sabemos, teria
estabelecido penas duras, “draconianas” (muitas vezes a própria morte), paras as mais
variadas infrações e crimes, o que certamente não deve ter contribuído para o
apaziguamento social. Foi diante desse quadro de conflagração que Sólon, na primeira
década do século VI a.C., assumiu o posto de arconte, nome dado ao principal líder
da pólis, cujo cargo combinava uma atuação legislativa e executiva. O quadro, ao que
tudo indica, era crítico: a maioria das terras e, consequentemente, das riquezas, estava
concentrada nas mãos de poucos, as classes mais altas. Os cidadãos mais pobres, além
da penúria, tinham que conviver, por causa dela, com a ameaça da servidão por dívida:
ao contraírem empréstimos junto aos mais ricos, que lhes cediam o solo, davam a si

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mesmos como garantia. Não pagando, eram escravizados e em geral vendidos para
fora, ou tomavam a medida extrema de fugir e se exilar.

A primeira ação de Sólon como arconte foi cancelar essas dívidas, libertar os cidadãos
que tinham sido escravizados com o endividamento, repatriar os exilados e,
finalmente, proibir que novos empréstimos fossem contraídos sob garantia pessoal. É
bom lembrar que, como nas demais pólis, havia escravidão em Atenas, mas permitir
que um cidadão fosse escravizado por outro e se tornasse um servo era indicativo de
uma distorção socioeconômica grave. Esse conjunto de medidas inicias, portanto, já
restituía um mínimo de igualdade entre os habitantes com direitos políticos. Mas
Sólon, além de ter sido literalmente o libertador do povo, fez mais. Criou, por
exemplo, uma lei que permitia que qualquer cidadão movesse um processo em nome
de uma causa alheia: em outras palavras, não era apenas a vítima que podia ir à justiça.
Se alguém visse uma injustiça cometida contra outro cidadão ou contra a cidade,
estaria apto a fazer uma denúncia, operando quase como um “ministério público” para
conter abusos e infrações. De novo, o mais fraco passava a ganhar proteção em relação
ao mais rico. Finalmente, na medida política mais impactante de todas, Sólon permitiu
que os mais pobres participassem das assembleias, os encontros em que os cidadãos
discutiam o destino da cidade, e que integrassem como jurados os tribunais, julgando
os mais variados casos.

Na prática, isso dava a eles poder de decisão e, portanto, um sentimento de


participação maior nos rumos da cidade, a despeito, claro, da pobreza, que era ainda
um obstáculo: como largar o trabalho e a renda para atuar nas questões cívicas? Se
essa era uma decisão tranquila para um dono de terras, com certeza não era tão fácil
para um simples lavrador. De novo, aqui é bom lembrar que, mesmo num regime de
corte oligárquico, com poucos ricos ainda no controle, instituições que costumamos
associar apenas à democracia efetiva, como assembleias e tribunais, não precisavam
estar ausentes, e não estavam. Se essas foram, por um lado, medidas emancipadoras,
Sólon, por outro, manteve os principais cargos eletivos da pólis acessíveis apenas às
classes mais ricas, seguindo uma divisão censitária, baseada na renda, típica das
plutocracias. Ainda para agradar a essa faixa da população, em sua legislação

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tampouco promoveu uma redistribuição de terras. E permitiu, após o fim do antigo
sistema de empréstimo, que os mais ricos pudessem ao menos determinar por conta
própria os juros cobrados nos novos contratos.

Entre várias outras medidas, expostas publicamente para consulta de todos, Sólon teria
legislado sobre comércio, casamento, cultos religiosos e herança, mantendo, da
legislação de Drácon, só os artigos referentes aos homicídios. A Sólon se atribui, por
exemplo, a abertura de Atenas à entrada de estrangeiros: os imigrantes poderiam se
instalar na cidade contanto que exercessem algum ofício regular. Ele também teria
reformulado o sistema de pesos e medidas e o próprio sistema monetário da cidade.
Depois desses atos, conta-se que Sólon viajou por dez anos, para fugir da pressão por
mudanças – dos mais pobres, descontentes por ele não ter avançado mais contra os
ricos, e dos mais ricos, por ter dado maior espaço aos desvalidos. As tensões
permaneceram a longo prazo, e na sua velhice Sólon pôde testemunhar a ascensão de
Pisístrato, tirano que chegou ao poder com grande apoio popular. O avanço do projeto
democrático só viria mesmo com Clístenes no final do século VI, com seu arranjo
político que realmente misturava ricos e pobres, e principalmente depois das Guerras
Greco-Persas, em meados do século V. À medida que o tempo passava, para os
atenienses Sólon foi se transformando, retrospectivamente, nessa figura idealizada, o
pai de uma espécie de “democracia ancestral”, o campeão do povo, que pela primeira
vez o colocara à frente. Ainda que viesse de uma família importante, Sólon
representava esse ideal da classe média e do bom equilíbrio na cidade.

É essa faceta da moderação que se destaca na construção da sua figura de sábio. O


episódio mais conhecido está na História de Heródoto, obra do século V a.C. Lá ele
conta que, em suas viagens no período em que se ausentou de Atenas, Sólon teria
passado pela capital do império lídio, no Oriente. Instado pelo rei Creso, que vivia no
luxo e na riqueza, a dizer quem seria o ser humano mais afortunado de todos, Sólon
não menciona o nome do anfitrião nenhuma vez, mesmo sendo obrigado a apontar um
segundo e um terceiro colocados. Sólon explica a Creso que, apesar da ligação entre
os termos “fortuna” e “afortunado”, dinheiro não traz felicidade: nossa vida é
marcada, em seus mais de 26 mil dias (caso cheguemos aos 70), pela instabilidade, e

91
só dá para falar em felicidade no último dia da existência: antes de esse dia chegar,
tudo pode acontecer e alterar radicalmente nossa realidade. Creso, que esperava a
adulação de sempre, irrita-se com o que ouve e despacha Sólon. Mas tempos depois
ele se lembra das palavras do ateniense. Derrotado pelo persa Ciro e prestes a ser
queimado vivo, Heródoto conta que ele invocou três vezes o nome de Sólon e
expressou o desejo de que o ateniense pudesse ter aconselhado todos os tiranos: agora
entendia que ele falava das limitações do gênero humano como um todo. O próprio
Ciro, diante da cena, reconhece a instabilidade humana e volta atrás, poupando o
inimigo.

Ainda de acordo com Heródoto, Sólon teria ido também ao Egito, mas os detalhes da
visita encontramos em Platão, nos diálogos Timeu e Crítias, do século IV a.C. Neles
narra-se que lá Sólon ouviu o famoso relato sobre o desaparecido reino de Atlântida,
cujo poderio fora freado por Atenas nove mil anos antes; de volta à pátria, Sólon teria
começado a compor uma narrativa épica em versos com essa história, sem jamais a
concluir. Essas duas histórias, na Lídia e no Egito, junto com outras mais, seriam
anedotas. A verdade delas parece residir em ressaltarem o caráter ponderado do líder,
o que fez com que Sólon figurasse no grupo seleto dos chamados Sete Sábios da
Grécia e lhe fosse atribuída a autoria da máxima “Nada em excesso”. Não é por acaso
que alguns de seus versos se confundem com os de Teógnis, o poeta grego associado
à sabedoria e ao mesmo século VI a.C.

Mas infelizmente não temos de Sólon tantos versos como temos de Teógnis. O
material transmitido por prosadores posteriores não chega a trezentas linhas, com um
ou outro poema completo. O objetivo central nesses poucos versos, ao que tudo indica,
é refletir sobre o funcionamento harmônico da comunidade. É uma reflexão ainda
mais preciosa por não vir de um teórico, mas de alguém que atuou na ágora, no debate
vivo da cidade. Nesses debates, claro, os cidadãos usavam a prosa como veículo paras
suas ideias, mas o recurso às Musas como instrumento importante de atuação está
consignado já na Teogonia de Hesíodo. O arranjo rítmico do verso, com sua facilidade
de memorização, com certeza era proveitoso no plano político, produzindo adesão e
reprodução em massa das mensagens. Se essa foi uma escolha meio isolada de Sólon

92
no universo da real política da Atenas antiga, isso só reforça sua inteligência e senso
de comunicação. Mas do que Sólon fala em sua poesia fragmentária? Em alguns
poemas, da sua intervenção concreta, como naquele em que se vangloria de ter
libertado o povo da escravidão. Mas a tendência é ele ser menos específico e pensar
de modo mais amplo sua atuação, enquanto modelo para o comportamento político.
E aí sobressai seu papel de moderador ou árbitro, de alguém que se posiciona no centro
e busca estabelecer o equilíbrio entre as partes conflitantes: sua atenção não está em
nenhum dos dois lados exclusivamente, mas nos dois juntos, no interesse comum.

Na visão expressa por Sólon, pender para um ou outro lado seria reforçar a divisão
em Atenas. “Divisão”: essa palavra seria uma tradução possível, em português, para
um termo chave em grego, stásis, que significa também “levante”, “sublevação”. Foi
essa situação que Sólon encontrou em Atenas ao assumir como arconte: de revolta, de
crise, de polarização, talvez de uma iminente guerra civil. Sua atuação, portanto, foi
no sentido de estabelecer um governo que apaziguasse o conflito e estabelecesse mais
unidade e paz. Que promovesse, contra a stásis, a justiça, a paz interna e o bom
governo. O fato de os dois lados dessa contenda, ricos e pobres, terem ficado
descontentes com suas medidas, e terem sido hostis com Sólon, seria um sinal positivo
do seu êxito, da sua imparcialidade. Porque Sólon não foi autocrático: Sólon, na sua
própria visão, ouviu e atendeu os dois lados, não fazendo valer a visão extrema de
nenhum deles. Esse era seu propósito, reformador e não revolucionário: colocar-se,
como diz, como um escudo entre as duas facções, ou como um lobo no meio dos cães,
ou como um marco entre as terras, harmonizando as partes sem contemplá-las por
inteiro. Sólon reconhece explicitamente na sua poesia a dificuldade de agradar a todos
quando se trata de assuntos importantes e dá a entender que a moderação, num
ambiente de extrema divisão interna, de stásis, faz inclusive com que o sensato seja
ridicularizado como louco.

Esse tópico da divisão, por sua vez, vem interligado a um elemento tradicionalmente
visto como um estopim da turbulência social: a busca pela riqueza excessiva. O termo
grego usado para designar a ganância ou a ambição aparece mais de uma vez na sua
poesia, principalmente no seu poema mais longo, intitulado “Sobre a Justiça”. Nele

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Sólon explora, no papel de sábio, a articulação moral e religiosa de duas ideias: a
ideia, primeiro, de que a ganância gera fatalmente a ruína de quem a cultiva e de que
essa ruína é a expressão de uma justiça determinada por Zeus, e, depois, a ideia de
que a felicidade não está, como muitos pensam, no acúmulo de bens: há outros
prazeres que o ser humano sensato deve cultivar, sem renegar a riqueza por completo.
Justiça e felicidade coincidem assim com moderação. Claro que isso tem um
desdobramento político e social, porque no regime oligárquico do seu tempo a
semente do conflito era a concentração cada vez maior de riquezas nas mãos de uma
pequena elite. Quanto mais uma família rica buscava o aumento da própria riqueza,
ela não só podia provocar, do ponto de vista moral e religioso, sua eventual ruína e
infelicidade, mas, do ponto de vista político, a desagregação social. A concentração
de riqueza podia ser, e ainda pode ser, a causa maior da stásis, do levante, da divisão,
disso tudo que representa a antítese da união mínima e do senso de comunidade que
devem marcar a condução da boa pólis, do bom estado ou do bom país.

Nesse quadro, o papel de Sólon, como representante de uma classe média, foi
justamente valorizar esse meio termo mais justo e afim ao interesse de todos. Com
ele, a sociedade ateniense evitou a guerra civil, mas continuou a ser desigual e com
pouca mobilidade. Para Sólon, esse era o resultado adequado, conciliar as partes sem
revolucionar o tecido social, porque os custos da revolução eram altos e imprevisíveis.
O tempo, no entanto, sobre cuja passagem ele reflete positivamente em alguns
fragmentos, tentando valorizar os aprendizados da vida longa, o tempo mostrou a
Sólon que o povo de Atenas terminaria por cair na servidão de um só governante.
Pisístrato ocupou o poder em Atenas por cerca de trinta anos, período em que os
poemas de Sólon continuaram a ser cantados, com a mensagem de que sozinhos nos
achamos espertos como raposas, mas facilmente caímos, como uma manada, na lábia
do primeiro tirano, surja ele à direita ou à esquerda.

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#14 RIQUEZA PARA OS JUSTOS JÁ! NA COMÉDIA O DEUS DINHEIRO DE
ARISTÓFANES

Toda fantasia é potencialmente ridícula: esse parece ser o pressuposto maior na obra
de Aristófanes, o principal nome da comédia grega antiga e, infelizmente, o único
cujo trabalho chegou até nós. Reparem nos argumentos de algumas das suas peças:
em plena guerra, uma mulher propõe às outras que façam greve de sexo e controlem
o tesouro de Atenas, para que os homens firmem a paz; um pai endividado recorre a
uma escola de argumentação, o “Pensatório” de Sócrates, para aprender a driblar os
credores; Dioniso, o deus do teatro, desce ao Hades e se torna juiz de um concurso
entre Ésquilo e Eurípides para decidir quem vai trazer de volta à vida; dois velhos
descontentes buscam outra cidade para morar e criam com os pássaros uma pólis no
ar; mulheres se disfarçam de homens para votar na assembleia a abolição da
propriedade privada. São exemplos dos pontos de partida de quatro das onze comédias
de Aristófanes: por aí dá para notar como a proposta inusitada, quando não absurda,
é um prato cheio para o desenvolvimento de situações engraçadas. Só de ler alguns
títulos já notamos o dado da evasão e da fantasia: é o caso de peças como As Vespas,
As Nuvens, As Aves e As Rãs, e o caso também de Mulheres na Assembleia, onde a
comicidade vem do fato de na época apenas os homens participarem da política.

A peça O Deus Dinheiro segue a mesma receita: um velho ateniense empobrecido,


preocupado com o futuro do filho, decide devolver a visão ao deus Dinheiro. Assim
este poderá chegar aos justos, e não mais aos corruptos, os maiores beneficiados pela
cegueira da divindade. Como na maioria das outras obras de Aristófanes, essa ideia
disparatada é levada a cabo pelo seu propositor com a ajuda de outros, e nós
acompanhamos, como espectadores, a aplicação do plano mirabolante e as suas
divertidas consequências. No final, os personagens se reúnem num cortejo festivo,
uma espécie de bloco carnavalesco. Só que, apesar do elemento fantasioso, a comédia
de Aristófanes, conforme os argumentos que eu citei no começo mostram, não é
escapista ou descolada da realidade – muito pelo contrário: ela cria essa abertura rumo
ao extraordinário para se voltar, paradoxalmente, para sociedade como ela é, com seus
valores, costumes e orientações políticas. A sátira está no centro do teatro, e ela foca

95
lideranças do regime democrático, questões relativas à cultura e à educação,
problemas sociais decorrentes da guerra e outros temas atuais. Aristófanes, mais do
que um comediante grego, é um comediante ateniense, e é a cidade que dá norte à sua
voz. Portanto, aqui não estamos no âmbito da comédia privada, que aborda conflitos
e desencontros pessoais. Sim, também temos nas suas peças personagens
estereotipados, mas eles surgem sempre como membros de uma comunidade que
afetam diretamente, e pela qual são afetados. Seja um medalhão da cidade, seja um
tipo qualquer, todos estão envolvidos nas mesmas questões públicas e é delas que
Aristófanes quer falar e dar risada.

O seu humor escrachado, portanto, se filia a uma vertente específica e característica,


menos universalizante porque local. O cômico, como a gente sabe, já tende a ser por
natureza mais circunscrito que o drama ou que o enfoque trágico, porque a piada
costuma se alimentar do lugar e do momento, dos volteios de um idioma e de
referências extremamente específicas, enquanto o drama vai na direção contrária. Dá
para dizer que no caso de Aristófanes essa especificidade pode chegar ao grau máximo
e que de algum modo brota do próprio ambiente com o qual quer gracejar. Pelas
informações que temos, a comédia enquanto integrante oficial dos festivais cívico-
religiosos de Atenas data primeira metade do século V a.C., portanto com o regime
democrático já em pleno vigor. Quando Aristófanes começa a montar suas peças, as
apresentações cômicas já tinham mais de cinquenta anos e era esse ambiente
estabelecido, de liberdade para a criação artística, que com certeza permitiu que sua
sátira pudesse mirar o regime e a sociedade que a promoviam. Junte-se a isso o fato
de que em metade da sua carreira o dramaturgo acompanhou, junto com seus
concidadãos, as perturbações nada pequenas decorrentes da participação de Atenas na
guerra contra Esparta, e a gente vai ver então que as condições eram convidativas para
que sua comédia fizesse graça com a fervilhante realidade política e social à mão.

É importante dizer que as tragédias, as peças sérias apresentadas nos mesmos festivais
desde bem antes das cômicas, também serviram de estímulo para a constituição da
comédia, e a obsessão de Aristófanes por Eurípides, o mais popular dos
tragediógrafos, comprova isso. De algum modo, é como se a comédia, tendo surgido

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algum tempo depois, tivesse se firmado em contraposição à tragédia e atenta a ela,
como se tivesse buscado ser tudo que a tragédia não era: se a tragédia era elevada, ela
deveria ser rasa; se a tragédia trabalhava com mitos tradicionais, ela deveria inventar
novas histórias com tipos comuns; se a tragédia usava um coro de 12 a 15 membros,
ela deveria usar um coro maior, com 24; se a tragédia podia trazer personagens falando
longamente e de modo retórico, ela deveria soar ágil e coloquial; se a tragédia
transmitia sua mensagem de forma indireta e profunda, ela deveria transmitir de modo
transparente e caricato; se a tragédia tinha um efeito impossível de precisar, ela
deveria ter um efeito mensurável a cada instante.

E era em torno desse efeito, o riso, que no final das contas se organizava o teatro de
Aristófanes. Na comparação com o tragediógrafo, a sua tarefa era em certo sentido
muito mais exigente: não só tinha que elaborar novas histórias, com novos
personagens, um esforço de criatividade do qual Ésquilo, Sófocles e Eurípides
estavam mais ou menos livres, mas também produzir risadas quase que a todo instante.
O autor ou diretor de um drama não tem como saber a reação da plateia, mas o autor
ou diretor de comédia sabe na hora se está tendo sucesso. É essa obrigação inerente
ao gênero que faz com que, de novo em comparação com a tragédia, a comédia tenda
a passar a impressão de ser desconjuntada: para ela importa bem menos a rigorosa
construção da trama, aquela unidade tão cobrada por Aristóteles na Poética. O que
vale é o encadeamento de cenas e esquetes que produzam divertimento. Para um
gênero que tinha no próprio absurdo seu ponto de partida, e no qual a liberdade era a
prerrogativa maior, no fim tudo podia ser sacrificado em nome do riso, a começar pela
organicidade da história e a sequência lógica dos acontecimentos. Como nas sitcoms
americanas, a comédia é pautada por claques, mas elas têm que ser espontâneas, não
um recurso “enlatado”.

O que faz rir em Aristófanes, além das situações absurdas e escrachadas? São muitos
elementos, derivados de uma longa tradição cômica, sempre no formato em verso: o
ataque pessoal a nomes conhecidos do público; a caricatura dos hábitos de
determinadas classes; as frequentes citações paródicas da tragédia, da própria comédia
e de práticas religiosas; as tiradas obscenas e de baixo calão; os jogos de palavras; os

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modos de falar do povo na rua, desviantes em relação ao que encontramos nos gêneros
nobres; os apartes dos personagens endereçados ao público; as falas longas em que os
atores prendem a respiração; os disfarces; as quebras da própria ilusão dramática; as
cenas destacadas em que dois personagens debatem ou batem boca; e ainda, dentro
desse ambiente cênico dominado pelos homens, que fazem também os papéis
femininos, a possível ridicularização desse travestismo por gestos e entonações, com
os atores quase se assumindo como drags.

Por isso tudo, dá para imaginar o enorme desafio que a comédia representa para os
tradutores, não só por causa da cor local e da intraduzibilidade da piada, mas pelo peso
que a encenação tinha na compreensão do texto. A saída, em muitos casos, é
abandonar a versão fiel, entre aspas, e partir para a transculturação, adaptando o
cômico de Aristófanes a equivalentes da cultura e do tempo de cada tradutor. Mas é
uma aventura inglória, porque o resultado pode ser ainda sem graça, ou a graça, se
houver, muito fugaz dentro do próprio ambiente da sua recepção. Ao contrário do que
ocorre em geral com a tragédia, Aristófanes cresce ao ser livremente encenado mais
do que ao ser lido, o que indica de novo como as naturezas desses gêneros teatrais,
tragédia e comédia, eram contrapostas.

A mesma constatação vale para a peça O Deus Dinheiro: lendo-a na melhor das
traduções, seja ela solta ou acadêmica, em verso ou em prosa, ou mesmo lendo-a no
original, rimos pouco. E isso apesar de ela ter certa vantagem em relação a outras
peças de Aristófanes, porque, tal como em As Aves, por exemplo, em O deus Dinheiro
o comediógrafo atenua um pouco aquele dado circunstancial que eu mencionei,
exigindo um domínio menor das referências ao mundo de Atenas. Mas elas ainda estão
lá: o lavrador é o cidadão empobrecido da Ática; o sicofanta é o delator profissional
criado pela antiga lei de Sólon e que se tornou um problema para a democracia; o
escravo é a figura excluída no regime. Por outro lado, cada um pode se identificar com
uma figura ampla e significativa, por causa do tema atemporal – riqueza, justiça e a
desigualdade da existência humana. Foi isso que fez dessa peça a mais popular de
Aristófanes durante séculos.

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Reparem de novo no enredo: um cidadão pobre do campo quer que a Riqueza, ou o
Dinheiro, chegue para os justos, e não mais para os injustos. Para isso, com a ajuda
do seu escravo promove a cura do deus, devolvendo-lhe a visão contra a vontade de
Zeus, que tinha originalmente cegado o Dinheiro para que não houvesse justiça. A
vida então se transforma, mas ao mesmo tempo a mudança perturba o arranjo anterior.
É uma história simples e ingênua, que ganha vida pela poesia de Aristófanes – por
exemplo, na relação de Crêmilo, o lavrador, com o seu escravo Carião, e no
protagonismo deste último, uma figura malandra que já se firmava como tipo
incontornável da comédia, construído pela visão escravagista. A cena inicial traz os
dois dialogando ao lado do deus Dinheiro, um ceguinho que levam para casa por
determinação do oráculo de Delfos, sem que soubessem quem de fato era. Quando se
põe a falar, o deus revela sua identidade e pede para ser deixado em paz, mas é
convencido por Crêmilo a ficar, com a promessa de recuperar a visão, passar a ajudar
os bons e se tornar o deus dos deuses, acima de Zeus, seu antigo algoz.

Para endossar a perspectiva de Crêmilo, o coro que se junta à ação é formado por
lavradores como ele, seus conterrâneos. O grupo permanece até o fim, mas é pouco
participativo em comparação às outras peças. Se de algum jeito o coro espelhava no
teatro grego a comunidade democrática e o viés político, seu enfraquecimento seria
um reflexo da transformação do próprio teatro rumo a um espaço cada vez mais
privado. Além dessa relação dono-escravo, a peça explora a interação deles com
outros personagens que vão aparecendo. O amigo de Crêmilo é o primeiro: quando o
vê com o Dinheiro em casa, logo imagina que só pode ter realizado uma trapaça, numa
cena divertida que fala das suspeitas em relação ao enriquecimento ilícito e da ilusão
de uma suposta bondade inerente aos pobres. Depois chega a própria Pobreza
personificada e acompanhamos o seu debate com Crêmilo e o amigo, uma passagem
engraçada por causa dos argumentos sofísticos da Pobreza: ela diz ser o verdadeiro
motor do trabalho entre os humanos e a única capaz de eliminar a corrupção; mesmo
falando melhor, no fim acaba expulsa.

O deus Dinheiro é então conduzido ao templo de Asclépio, o deus da cura, e de lá


volta com a visão restaurada, talvez o ponto alto da peça. Mas o episódio não é

99
encenado, e sim narrado por Carião, como se fosse um típico mensageiro da tragédia,
só que em chave cômica. Finalmente, inserido o Dinheiro na casa de Crêmilo, onde
tudo se transforma, a peça agora vai focar em três pares de personagens e no resultado
dessa nova realidade. Temos primeiro, no plano político, o homem justo versus o
sicofanta ou delator profissional, o picareta que deixou de ganhar com as suas
chantagens. Depois temos, no plano pessoal e sexual, a velha e seu jovem amante, que
agora parou de se aproveitar dela porque não precisa mais do dinheiro, e no plano
religioso as queixas de Hermes e do sacerdote de Zeus, que não recebem mais
oferendas, porque ninguém mais precisa pedir riqueza aos deuses. Muitas piadas
depois, todos no fim, à exceção da Pobreza e do injusto delator, saem em direção à
Acrópole, para instaurar no templo de Atena o Dinheiro como deus supremo.

É um desfecho incongruente. Sim, eu disse que não dá para cobrar lógica da comédia,
mas qual mensagem Aristófanes parece passar com essa virada? A peça começou
propondo que ricos deveriam ser os justos, e não os desonestos. Mas no final ela
abandona essa ideia em favor da apresentação de uma nova era, de bonança para todos,
uma restauração da Idade de Ouro na qual o Dinheiro, não mais cego, alcançaria a
população inteira de Atenas, num discurso do tipo “Make Athens Great Again”. A
questão moral e de classe, para resumir, fica apagada. Lida assim, a peça O Deus
Dinheiro só vem confirmar o lado mais retrógrado que caracterizaria a comédia
antiga. Na superfície, o carnaval promovido sabe a transformação, mas no fundo é só
uma válvula de escape a serviço da manutenção da ideologia dominante, que favorece
poucos. Aristófanes não era socialista, feminista, pacifista ou antiescravagista: na
verdade, era um poeta enorme, que tinha saudade, como todo conservador, dos tempos
passados, em que tudo era basicamente igual, mas melhor.

100
#15 CONCILIANDO HOMERO E PLATÃO NO COMO ESTUDAR A POESIA
DE PLUTARCO

Que influência a representação de uma ação tem na nossa vida? Quando vemos um
filme, uma série ou uma peça, quando lemos um conto, uma novela ou um romance,
como aquelas histórias nos afetam? De que forma reagimos às situações apresentadas?
Por exemplo, se um personagem comete um crime, somos instigados a ter esse
comportamento? Se esse criminoso consegue chegar ao fim da história impune, isso
é um estímulo para a audiência agir do mesmo jeito? Formular essas perguntas hoje
parece ingenuidade: a grande maioria tende a concordar que quem entra em contato
com a ficção sabe que a ficção é ficção, um universo paralelo que, a despeito da
relação com a vida real, não deve ser abordado pela sua possível influência moral. Em
outras palavras: não é porque o herói ou a heroína matam que vou matar, ou porque
traem que vou trair, ou porque são descontrolados que vou me descontrolar. Eu sei
que eles são parte de uma construção fechada, que acompanhamos, ao mesmo tempo,
com prazer e distanciamento. Todos nós sabemos muito bem separar a vida real da
ficcional.

Só que as coisas não são tão simples assim. Talvez essa separação possa valer com
alguma propriedade para a experiência da leitura silenciosa e individual, com um
alcance limitado no conjunto da população. Mas será que quando uma grande
quantidade de pessoas consome um game ou um filme, quando consomem, por
exemplo, um filme de super-herói que se integra a uma forma narrativa consistente e
repetitiva, será que essa massa de pessoas não é levada a pensar e a se comportar de
uma determinada maneira, ou a enxergar o mundo de uma determinada maneira,
mesmo com essa ascendência não sendo consciente? Essa não é uma influência que
podemos chamar de moral, ou, para usar um termo mais atual e amplo, de ideológica?
Nesse caso, ao menos algumas construções ficcionais não teriam um impacto
considerável sobre a vida de muita gente? De Coringa a Tropa de Elite, elas não
seriam responsáveis por estimular comportamentos ou a fixar ações individuas e
coletivas? Não cobramos cada vez mais, ao mesmo tempo, que filmes, séries e livros
retratem a correção no convívio político-social, para que sirvam de orientação

101
saudável para o engajamento público? E não vemos com maus olhos algumas
reconstituições de épocas passadas que, na visão de muitos, poderiam estimular
racismos e sexismos que queremos combater?

Não, as coisas definitivamente não são tão simples assim. Mais do que não serem
simples, não são novas: os dois lados desse debate vêm de longa data – um lado que
defende a autonomia da ficção, com a liberdade absoluta (inclusive moral) sendo a
sua própria razão de ser e seduzir, e um outro lado que exige, digamos assim, um
compromisso seu de responsabilidade na formação do público, um compromisso
social e político correspondente ao alcance e à penetração que toda história tem ao ser
consumida em massa. Na antiguidade grega, esse debate ganhou notoriedade com
Platão, na forma icônica como foi expresso na República. Nesse longo texto em prosa,
Sócrates, como muitos sabem, implica repetidas vezes com as referências inadequadas
que Homero colocava na cabeça de cada grego com os seus épicos magníficos e
onipresentes, a Ilíada e a Odisseia. Na república ideal, essa poesia popular e outras
similares, de poetas vistos como sábios e educadores, deveriam ser censuradas,
restando apenas a parte que trazia bons retratos de deuses e heróis. Na visão do
filósofo, a sedução poética não podia grassar solta: ela precisava se ajustar a uma outra
perspectiva.

Apesar de toda a fama dessa controvérsia em Platão, esse debate não surgiu nem se
esgotou ali: seu diálogo representava apenas mais um capítulo dessa divergência da
filosofia com a poesia, uma divergência marcada pela oposição entre conhecimento e
fábula, entre compromisso com a verdade e compromisso com o prazer, entre utilidade
e emoção. Simplificando, um lado, o da filosofia, estaria propondo o estabelecimento
de uma criação oficial, capaz de moldar e engajar os cidadãos, quase uma arte
bolchevique ou nazifascista. Já o outro lado, o da poesia, estaria defendendo uma
criatividade artística burguesa, livre de amarras e prescrições, de preferência apta a
chocar e a desafiar convenções. Mas, de novo, num nível mais profundo nada é tão
simples: nesse debate, os partidários da filosofia não são retrógrados que não
entendem nada de arte, e os artistas, por outro lado, não podem ser tomados como
libertários que vivem numa redoma, isolados da realidade sobre a qual agem. Trata-

102
se de um dilema complexo, da arte com a moral e da filosofia moral com a arte: nesse
embate, não dá para ser só Homero ou ser só Platão.

Um exemplo pouco conhecido de reflexão sobre esse dilema e seus dois lados,
Homero e Platão, poesia e filosofia, vem do grego Plutarco, que atuou na passagem
do século I para o II d.C. Ele é o autor de um tratado intitulado Como o jovem deve
ouvir os poemas, título que hoje é simplificado para Como estudar a poesia. O Como
estudar a poesia faz parte de um vasto conjunto de tratados de Plutarco, conjunto esse
conhecido pelo seu título em latim, Moralia. O outro conjunto associado ao nome de
Plutarco é o das Vidas Paralelas, no qual ele apresenta, aos pares, as trajetórias de
figuras históricas conhecidas, uma grega e outra romana. Nas Vidas Paralelas e em
vários dos tratados, fica evidente o interesse que Plutarco tem pela filosofia moral:
para ele, ter à mão modelos de comportamento é sempre uma ferramenta pedagógica
e formativa útil. Pois foi pensando na formação dos jovens que ele redigiu o Como
estudar a poesia, reabrindo aquele antigo debate: como estimular a filosofia num
adolescente quando o que mais atrai nessa idade é a ficção ou representação poética,
com os seus personagens misturados e as suas ações difíceis de avaliar e julgar?

A resposta de Plutarco, mesmo sendo ele muito influenciado pelo platonismo, foi
diferente daquela que está na República: não, a poesia não deve ser proibida ou
selecionada. A literatura pode e deve ser lida, levando-se em consideração suas regras
e seus artifícios e acolhendo-se de bom grado a sua sedução, mas no fim a utilidade e
o juízo moral devem prevalecer. Para resumir, para Plutarco dá para aproveitar o lado
bom de cada partido, juntando-se poesia e filosofia. A sua solução, na realidade, não
era inédita, e para percebermos isso não podemos ficar só com a República como
referência. Alargando o escopo, a gente descobre que o próprio Platão menciona em
pelo menos dois outros diálogos seus, o Protágoras e o Hípias Menor, como a poesia
homérica e a poesia em geral eram interpretadas e ajustadas a formulações éticas. Os
problemas de cunho moral, como comportamentos de heróis e sobretudo de deuses,
eram uma pedra no sapato para recepção de Homero provavelmente desde que
Homero era Homero; temos testemunho disso nos pré-socráticos. A saída era
encontrar lições que tornavam essa poesia palatável e ensinável aos jovens, mais

103
sujeitos a se deixarem levar pela simples sedução. Se essa era uma prática corrente,
na República Platão prefere meio que ignorar o dado da conciliação e assim construir
uma retórica mais forte de condenação de Homero, com sua péssima ascendência
sobre o público. Só que a própria República talvez não deva ser levada tão a sério:
querer banir Homero, nada mais nada menos que o norte poético e educacional da
Grécia Antiga, e por isso reverenciado também no conjunto dos próprios Diálogos
platônicos, soa meio cômico e tem tudo a ver com a ironia socrática. Ou seja, a
República, lida a contrapelo, pode mostrar que a antiga divergência entre poesia e
filosofia não era tão divergente assim em Platão, para não dizer que em Platão poesia
e filosofia eram antes convergentes.

Esse breve parêntese permite então que a gente volte a Plutarco e perceba que o que
ele propõe no seu tratado não é original: está enraizado na própria exegese dos
poemas, desde antes da época de Platão. Nenhum outro texto antigo, porém, traz o
detalhamento desse processo crítico pelo qual poesia e filosofia se conciliam
harmoniosamente, e daí o valor que tem para nós essa obra de Plutarco, o Como
estudar a poesia. O que desperta ainda mais nosso interesse por ela é o fato de trazer
à baila uma contribuição central para a conciliação entre Homero e Platão: a posição
de Aristóteles. Na sua parte mais teórica, o tratado recorre à Poética (mesmo que sem
mencioná-la) para destacar o lado técnico da criação verbal, visto aristotelicamente:
ela é uma imitação ou representação da realidade. O mítico ou a mentira (na avaliação
negativa de Platão) é sua essência, porque a realidade em si é árida e sem graça. Além
do mais, diz Plutarco, no processo de representação tem que haver adequação e
verossimilhança: a imitação não seria competente se imitasse só a bondade, porque
não existe só bondade no mundo. Uma imitação assim modelar seria uma má imitação,
porque representar belamente não é representar apenas o belo. O jovem em contato
com o poema precisa apreciar sua qualidade artística, o que não significa que vai
apreciar tudo que vem retratado na obra. A obra bem construída, seduzindo o jovem
pelo seu lado não filosófico, pode ser bem consumida se lhe forem apresentadas as
ferramentas críticas que permitam discernir utilidade moral no que é retratado. Na
perspectiva de Plutarco, isso vai se dar com a presença de um professor, que guiará o
aluno através dos textos. A melhor filosofia para essa idade será, então, essa que não

104
é dita filosoficamente: o aprendiz poderá “pré-filosofar” juntando o prazeroso ao
proveitoso, promovendo aquela síntese bem conhecida pela fórmula horaciana, entre
“instruir e deleitar”.

Além dessa parte teórica de base aristotélica, formulada com graça e certa
originalidade, temos no tratado as ferramentas práticas de navegação pelos autores
clássicos. Do total de catorze capítulos e cerca de quarenta páginas, são os trechos
mais interessantes. Entre os expedientes, Plutarco afirma, por exemplo que, para
controlar o feitiço poético e rejeitar o baixo em favor do correto, o jovem deve prestar
atenção ao posicionamento do poeta ao introduzir as falas dos personagens, ou ao
comentá-las no final. Várias exemplificações vêm de Homero, em especial da Ilíada.
Se o narrador diz que Agamênon, no Canto 1, despachou Crises “de um modo
terrível”, kakôs em grego, significa que está indicando o comportamento inadequado
do líder. Se no Canto 4 chama Pândaro de “insensato”, depois de este ser levado por
Atena a disparar uma flecha contra os gregos, Homero também está orientando sobre
o caráter desse personagem.

Outra saída possível é prestar atenção às ações e seus desfechos: se elas produzem
dano ou vergonha a seus praticantes, vão beneficiar moralmente seus leitores. No caso
do teatro, como não há narração e os personagens alternam falas em sequência,
Plutarco recomenda que se advogue em favor da melhor posição. Um exemplo tirado
de uma peça perdida de Eurípides, que ele cita: se alguém afirma “os deuses com
frequência derrubam os homens”, culpando as divindades, mas ouve como resposta
em seguida, de alguém que quer eximi-las, “Disseste o mais fácil: responsabilizar os
deuses”, já temos a solução: culpar os deuses é errado. Se a resposta não estiver no
próprio diálogo, diz Plutarco, a fala de uma outra passagem da mesma obra pode ser
invocada, ou até mesmo de outra obra ou de outro autor, tudo isso para assim desfazer
qualquer mal-entendido ético, e se discriminarem as indicações misturadas tanto do
vício quanto da virtude. Ele ainda adverte que, como as figuras do mito
tradicionalmente são endeusadas, é fundamental que os jovens não as tomem como
sendo todas sábias e justas, exemplos de comportamento virtuoso. De novo: na poesia
verossímil, essas figuras são uma mistura de emoções e opiniões, como todo ser

105
humano é. Para Plutarco, Aquiles mostra-se sábio no Canto 1 ao convocar a
assembleia diante da peste, mas equivocado ao desafiar a autoridade de Agamênon.
Agamênon, por sua vez, é ridículo ao não querer entregar Criseida, mas se redime ao
enviá-la de volta ao pai. Pelos exemplos, a gente nota que Plutarco lê Homero segundo
a prática do seu tempo, de um jeito atomizado e por antologias, sem preocupação com
o todo e uma visão que seja ampla, abrangente. Para nós parece uma pedagogia muitas
vezes equivocada, que tira a riqueza das obras. Mas para Plutarco só com ela o jovem
não correria o risco de imitar os comportamentos errados.

É bom lembrar que é na amplitude dessa ideia de imitar, e de imitação, mímesis em


grego, que repousa boa parte do conflito entre poesia e filosofia. Para os partidários
da poesia, imitar é representar – um poeta representar uma ação num épico ou numa
tragédia, um rapsodo representar as diferentes vozes inseridas numa narrativa, um ator
representar um personagem no teatro. Imitar aqui é uma atividade técnica, artística, é
criação e também atuação. Para a filosofia, imitar é representar a realidade de um
modo falso, distanciar-se do que de fato é, criar a imagem da imagem, e é ainda
estimular que a audiência imite e introjete modelos equivocados. Imitar aqui é uma
atividade cognitiva e moral, e é também uma atuação na vida. Na mesma linha, o
resultado da boa imitação, aristotelicamente, seria o prazer da catarse; as
considerações morais seriam menos relevantes. Para a corrente oposta, platônica, o
resultado seria a possível contaminação moral; as considerações técnicas seriam
menos relevantes. No final, continuamos a flutuar entre esses dois polos, talvez sem
atentar o bastante para como poesia e filosofia se misturam a cada experiência
ficcional. Plutarco nos mostra, e acredito que Platão também, que a saída não está em
censurar ou o cancelar, ou promover só a arte do bem, mas em apelar ao espírito crítico
e livre. Essa é a ferramenta essencial para frequentarmos as melhores e as piores obras.

106
#16 O SÓCRATES SOFISTA NAS MEMORÁVEIS DE XENOFONTE

A palavra “sofista” é traiçoeira. No português atual, indica a figura de caráter


duvidoso, que mascara a inconsistência do seu discurso por meio de piruetas verbais
e lógicas. Já no grego antigo, o termo sophistés, do qual vem “sofista”, ficou associado
a quem cobrava uma boa grana para ensinar a arte da argumentação e outras
disciplinas; supostamente era alguém que não tinha escrúpulos em ensinar o discurso
mais adequado à ocasião, qualquer que fosse, e alguém que não tinha como de fato
saber tudo que alardeava conhecer. Só que sophistés, antes de ter um sentido negativo
em grego, significava simplesmente “o que sabe”, “o sabedor”. Esse sufixo -tés,
sophis-tés, é o mesmo sufixo de agente que encontramos, por exemplo, em poie-tés,
“poeta”, que em grego é literalmente “o que faz”, “o fazedor”. O que mais surpreende
na obra de Xenofonte, o prosador ateniense que atuou na primeira metade do século
IV a.C., é que Sócrates, tradicionalmente visto como inimigo dos sofistas, é ele mesmo
um “sofista”, um “sabedor”. Ou seja, ele se associa à visão clássica de alguém que
tem um conhecimento e que o transmite de bom grado àqueles à sua volta. Esse é o
Sócrates das Memoráveis, a mais conhecida obra de Xenofonte, e também dos seus
outros três títulos onde o filósofo aparece: a Apologia, o Banquete e o Econômico.

O Sócrates mais famoso para nós é o dos Diálogos de Platão e o confronto entre o
Sócrates de Platão e o de Xenofonte, que foram contemporâneos, é esclarecedor.
Platão, assim como Xenofonte, teve contato direto com Sócrates, mas utilizou esse
contato para elaborar um projeto filosófico profundo: nele o mestre também surge
como personagem central das conversas, só que como uma espécie de sábio anti-
sábio, um sábio que confunde e espicaça, que nega ter conhecimento na mesma
medida em que o revela. É através desse enfoque que Sócrates se contrapõe, em
Platão, aos sábios, aos sabedores, aos sofistas. E foi a partir dessa visão platônica que
o termo sofista ficou com essa pecha de sábio de araque e oportunista, em oposição
ao verdadeiro filósofo. É uma avaliação injusta: esses sofistas deram grande
contribuição com seu ensino multidisciplinar e a discussão filosófica acerca do
relativismo. No edifício platônico, porém, um sistema complexo e literariamente rico,
não havia espaço para um Sócrates afirmativo, capaz de transmitir seus saberes. Seu

107
Sócrates só sabia uma coisa principal: que não sabia. E é esse seu tom irônico que
embaralha e coloca em xeque a própria concepção de conhecimento nos Diálogos.

Mas quando a gente sai dos Diálogos platônicos e examina a tradição literária grega,
a gente percebe que há toda uma corrente de sábios muito mais alinhada à concepção
de sabedoria de Xenofonte do que à de Platão: Hesíodo, Teógnis, Focílides, Sólon –
são todas figuras detentoras de um saber muito palpável, que orgulhosamente
transmitem por meio dos seus versos. São experts, sofistas. Muito do que dizem são
máximas, provérbios, aforismos. Nesse sentido, praticam um tipo de filosofia que
podemos classificar como moral, assim como a do Sócrates de Xenofonte, por mais
que isso hoje, pelas nossas concepções, não mereça ser chamado de filosofia. A nossa
filosofia tem um sentido mais acadêmico e restrito: ela tende a minimizar o campo
moral utilitarista em favor de outros. Para a academia atual, a filosofia mais antiga de
fato é a pré-socrática, com suas questões sobre a natureza e a origem do mundo. Sábios
ou filósofos são eles – não os conselheiros práticos. Mas não é nessa tradição que
Xenofonte se insere com o seu Sócrates. Numa analogia livre, o seu Sócrates tem mais
a ver com o intelectual contemporâneo, ou com o especialista da área das Humanas
chamado a emitir uma opinião: todos esses também se investem da autoridade do
sábio que domina alguma área do conhecimento e que pode se posicionar com o
mínimo de certeza a seu respeito. Alguns até são filósofos, mas a rigor não precisam
ser: são antes de tudo sabedores, experts, sofistas. Não passa pela cabeça de nenhum
deles negar o próprio conhecimento ou colocá-lo em dúvida, porque isso abalaria a
construção da sua reputação de especialista, de alguém versado numa determinada
área. Nesse sentido, Platão até tem razão: todo expert/sofista é meio ilusionista.

Resumindo, foi isso então que Xenofonte fez com a figura de Sócrates: moldou-a a
uma concepção corrente e pragmática de sábio, criando um Sócrates pedestre e
mainstream, afirmativo e cheio de si, e por isso diametralmente oposto ao de Platão.
Não, o retrato que Xenofonte nos dá não é do verdadeiro Sócrates histórico, como o
de Platão também não é. Talvez o melhor aqui seja abordarmos Sócrates como
abordamos as figuras heroicas do mito. Aquiles, por exemplo, para qualquer grego
antigo tinha sido uma figura real do passado, mas eles conviviam, como nós, com

108
várias versões simultâneas de Aquiles, na épica, na tragédia e na poesia lírica. Eram
releituras desse herói que tinha vivido num tempo distante, e a única exigência, para
que o nome Aquiles pudesse fazer sentido em qualquer recriação, é que fossem
preservadas características essenciais suas enquanto personagem tradicional:
juventude, intrepidez, capacidade bélica, passionalidade, ser sempre o filho de Peleu
e Tétis e guerreiro principal da Guerra Troia, onde morre lutando.

O mesmo vale para Sócrates: seja o personagem de Xenofonte, o de Platão ou de pelo


menos mais oito prosadores que sabemos terem recriado conversas suas, seja ainda o
personagem da comédia As Nuvens de Aristófanes – em todos esses casos Sócrates é
o mesmo filósofo feio, simples e de modos frugais, que não registra nada por escrito,
não liga para aparência e dinheiro, tem grande autocontrole, gosta de conversar e
gracejar, opera por meio de definições e induções, é crítico em relação ao sábios que
cobram para ensinar e ensinam de tudo, e é acompanhado por um “sinal divino”
misterioso, que orienta as suas ações. É o Sócrates que em 399 a.C. foi condenado à
morte em Atenas, acusado de não reconhecer os deuses da cidade e corromper os
jovens. Na comédia As Nuvens, Aristófanes o transforma num pastiche, acrescentando
alguns atributos novos que o deixam meio sem pé nem cabeça, meio sofista e meio
pré-socrático, mas o básico continua lá, para ninguém ter dúvida de que se trata de
Sócrates. É Sócrates numa versão caricatural, um Sócrates inventado que ajudou a
condenar o real anos depois. Platão, como eu disse, o transformou num personagem
envolvente e escorregadio, inspirado e racional, aporético e ao mesmo tempo fonte de
conhecimento. Já Xenofonte fez desse Sócrates um outro Sócrates bem diferente: um
evangelizador envolvido em anedotas triviais em torno do comportamento virtuoso,
razão pela qual o resultado final das suas crônicas é quase uma hagiografia. Sócrates
nunca foi, como Jesus Cristo, um mártir, mas se tem um lugar onde ele se assemelha
a Jesus Cristo é na prosa que Xenofonte lhe dedicou.

Talvez a passagem mais ilustrativa a esse respeito venha da Apologia. Sim, Xenofonte
também redigiu a sua Apologia de Sócrates, mas seu texto está para o de Platão assim
como um esboço trêmulo em preto e branco está para uma pintura acabada em seu
esplendor de cores: é canhestro e pálido. Vejam o episódio onde fala da ida do amigo

109
de Sócrates, Querefonte, ao Oráculo de Delfos para fazer uma consulta sobre o
filósofo. Em Platão, está dito que Apolo respondeu apenas que Sócrates era o mais
sábio dos humanos, e essa resposta sucinta deflagra toda uma reflexão sobre que
sabedoria seria essa que o diferenciava dos demais; no fim, Sócrates chega à conclusão
de que só poderia ser uma, a de saber que não sabia: ao contrário dos mais diversos
sábios, confiantes todos na própria sabedoria, ele era sábio porque se sabia não
sabedor, se sabia não sofista, enquanto os outros sábios se achavam todos experts,
eram sofistas. Isso é o que está na Apologia de Platão. Já na de Xenofonte, Apolo
responde que Sócrates era não só o mais sensato, mas também o mais livre e mais
justo de todos, e a esse oráculo mais bombástico não se segue reflexão alguma: a fala
divina serve só para reforçar o caráter impecável e virtuoso de Sócrates, que ele admite
todo faceiro e do qual se gaba, dizendo ter orientado muitos cidadãos.

É esse o Sócrates que aparece nos quatro livros das Memoráveis, o conjunto socrático
mais lido de Xenofonte. Embora não estejamos aqui diante da situação formal da
“apologia”, de um discurso de defesa no tribunal, o espírito é apologético, como os
dois primeiras capítulos revelam: Xenofonte quer inocentar a figura de Sócrates,
mostrando como a sua condenação foi injusta. Para começar, ele se esforça por indicar
o quanto Sócrates era piedoso, o quanto reconhecia os deuses da cidade como qualquer
outro cidadão, e em seguida argumenta que ele não corrompia de modo algum os
jovens que o acompanhavam – antes os tornava melhores. Mais ainda: não poderia ser
responsabilizado pelo fato de alguns discípulos seus, como Alcibíades, terem se
desviado do bom caminho. A defesa continua através de um relato testemunhal, em
primeira pessoa, que vai se repartindo em diferentes cenas, todas inseridas para
exemplificar as qualidades de Sócrates.

Não há nada aqui do formato puramente teatral que vemos em alguns diálogos de
Platão, nem do esquema narrativo mais elaborado, em que Sócrates ou um outro
personagem rememora uma conversa passada. Quem conduz as cenas é o próprio
Xenofonte e essa sua presença contrasta com a ausência total de Platão no tratamento
dado ao seu Sócrates. Nos Diálogos, a voz de Platão não existe, e isso produz enormes
implicações positivas. Em Xenofonte, ao contrário, a voz autoral é onipresente e

110
percebemos pelo contraste o valor que tem em Platão aquela ausência. Platão tem um
propósito, mas não sabemos bem qual é – e não sabemos porque Platão não queria
que soubéssemos. Xenofonte tem um propósito e ele é muito explícito: argumentar
que Sócrates, enquanto mestre da virtude, era sempre prestativo para com os amigos
e a sua cidade. Tirando-se aqueles dois capítulos introdutórios, ao todo são trinta e
sete conversas nas Memoráveis, e nenhuma delas é equiparável em extensão a um
diálogo platônico breve. De um modo mecânico, somos jogados em entrevistas
insípidas e pedestres de Sócrates sobre temas como piedade, moderação, autocontrole,
respeito à figura materna, amizade, trabalho e atuação política. Há várias falas longas
de Sócrates nas conversas e poucos exemplos de uma postura de fato refutativa e
argumentativa. Xenofonte tenta explorar algum contraponto com os sofistas, sem
sucesso. Também faz referência ao humor de Sócrates, mas este fica pouco aparente:
o filósofo não é irônico e não nega o seu conhecimento. O efeito final é uma
impecabilidade irritante, produzida por um personagem não só virtuoso, mas cioso
dessa virtude e empenhado em reparti-la.

Se a gente olhar, porém, de um modo menos rabugento para essa parte da obra de
Xenofonte – que escreveu ainda livros técnicos e outros históricos, como a Anábase
–, a gente vai ser obrigado a reconhecer seu valor incontestável: só ela nos dá essa
visão mais antiga de um comportamento socrático utilitarista. Há inegavelmente um
elemento popular e acessível no Sócrates de Xenofonte, que de novo o contrapõe a
Platão: Sócrates tem certezas e assim pode desempenhar um papel de grande impacto,
típico da literatura sapiencial, porque quem busca ajuda busca respostas, não novos
questionamentos. Com Xenofonte, a prosa literária ganha seu Sócrates sofista,
Sócrates na sua versão autoajuda ou lifecoaching.

Se ainda tivermos dúvidas a esse respeito, elas vão se desfazer de vez com a leitura
das suas outras obras socráticas, o Banquete e, principalmente, o Econômico. Ambas
são, em termos literários, mais elaboradas que as Memoráveis e chegam a ter o
tamanho de um diálogo platônico; o Banquete, inclusive, como acontece com a
Apologia, traz o mesmo título da célebre obra de Platão, mas as semelhanças param
por aí. No Banquete xenofôntico, o clima é só de brincadeira, sem nenhuma

111
profundidade, e Sócrates aparece como um bonachão – Xenofonte afirma querer
deixar o testemunho dessa sua faceta também; a obra vale sobretudo por trazer uma
descrição vívida do simpósio grego antigo. Já o Econômico impressiona porque
apresenta um Sócrates ainda mais utilitarista que o das Memoráveis: nessa obra ele é
alguém preocupado com a “gestão do patrimônio” – essa a ideia embutida na palavra
grega que deu “economia” e “econômico” em português. O mais interessante é notar
que essa gestão é reduzida à atividade agrícola e que ela tem um componente ético
fundamental de autocontrole, o mesmo destacado nas Memoráveis. É inevitável: na
hora lembramos dos Trabalhos e Dias de Hesíodo, o épico didático que combina
enfoque moral e trabalho no campo. Com o Econômico, entendemos então que o
Sócrates de Xenofonte é definitivamente um sofista sem contracheque, extremamente
prático e avesso a divagações, muito útil no plano real enquanto sabedor versátil.

Mas é possível que o Sócrates de verdade tenha atuado assim, como um filósofo
utilitarista? Ele não precisaria ter sido uma figura mais instigante para inspirar Platão?
De onde vinha o seu apelo – de um conhecimento ao rés do chão e aplicável ao
imediato, ou de um conhecimento mais intrincado e sublime? Não dá para saber. Cada
Sócrates, como eu disse, é uma recriação. Talvez o de Xenofonte esteja longe da
realidade por ser virtuoso demais e utilitarista demais. E o de Platão, pelo motivo
inverso, por ser complexo demais e amplo demais. Um é muito xenofôntico e o outro
é muito platônico. O Sócrates real deve ser buscado num ponto intermediário. Mas,
tanto para Xenofonte quanto para Platão, forjar um retrato mais realista talvez fosse,
enquanto solução literária, a alternativa menos interessante.

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#17 O TRANSE DO CULTO E DO PALCO NAS BACANTES DE EURÍPIDES

Actêon foi um caçador, neto do tebano Cadmo, que morreu dilacerado pelas suas
próprias cadelas de caça por ter afrontado Ártemis, a deusa do âmbito selvagem onde
ele, Actêon, transitava. O caçador virou a presa. Sua história exemplifica um lugar
comum da religiosidade grega antiga: o revide brutal de uma divindade diante de um
ato humano insolente. Para mim, não há cena que mostre isso de modo mais
impressionante e belo do que a morte de Pátroclo provocada por Apolo no Canto 16
da Ilíada: o amigo de Aquiles desafia o deus no momento em que avança lutando pela
planície de Troia e esse deus o aniquila com a mesma facilidade de quem faz uma
pena voar da palma da mão com um leve sopro. Há vários outros casos paralelos
citados nos poemas homéricos, entre eles o de um rei da Trácia destruído depois de
ofender o deus Dioniso. Mas um dos episódios do tipo mais famosos, que envolve
justamente Dioniso, é o contado nas Bacantes. Nessa tragédia de Eurípides do final
do século V a.C., temos uma releitura de um mito tradicional, já citado, por exemplo,
num drama mais antigo de Ésquilo. Segundo esse mito, o rei Penteu se recusa a aceitar
os ritos dionisíacos em Tebas e acaba dilacerado pela própria mãe. Assim como o
Actêon que eu citei na abertura, um primo de Penteu cujo nome é lembrado quatro
vezes nas Bacantes, o rei paga um preço alto por ir contra o deus.

As “bacantes” (ou “bacas”) formam o coro de seguidoras de Dioniso, e Dioniso, como


a gente sabe, é o deus do vinho e da embriaguez. Dioniso é Baco, ou Íaco, ou Brômio,
seus nomes alternativos no grego antigo. (Não, Baco não é um nome criado pelos
romanos para se referir a Dioniso, é só um termo grego aclimatado ao latim. E não,
não é DioníSIO, é DioniSO: chamar Dioniso de Dionísio seria como chamar Cristo
de Cristiano; uma coisa são os nomes próprios derivados dessas divindades, Cristiano
e Dionísio, e outra coisa são os nomes das divindades, Cristo e Dioniso.) Dioniso é
então, voltando, o deus do vinho, mas é bem mais que isso. É o deus da libertação, da
dissolução e da loucura benéficas, do êxtase, do sair de si, da despersonalização. Por
isso era também o deus que tinha tudo a ver com o teatro, por causa dessa experiência
inerente ao drama, do disfarce, da mutabilidade, da transmutação da identidade, da
metamorfose diante dos olhos de todos. O dionisismo estava associado sim à ingestão

113
alcoólica, mas não a pressupunha necessariamente: era também uma experiência
artística, que juntava poesia, canto e dança e promovia a abolição das barreiras
cotidianas.

Quando os atenienses encenavam suas peças nos festivais da cidade, quando


encenavam tragédias, comédias e dramas satíricos, eles estavam celebrando o deus
Dioniso: o espaço físico do teatro era parte do santuário do deus e os sinais da sua
presença jamais eram ignorados: seu sacerdote ocupava um assento de destaque na
plateia e havia um altar dedicado a Dioniso no centro da orquestra, o semicírculo onde
os integrantes do coro ficavam. Além do mais, junto com as peças podiam acontecer,
nas versões mais incrementadas dos festivais, apresentações de ditirambos, ou seja,
dos cantos corais tradicionalmente dedicados a celebrar esse deus. Aliás, sabemos por
Aristóteles que a forma trágica teria nascido de improvisações em cima do ditirambo
e depois se desenvolvido paralelamente a ele. Mas Dioniso não era o deus só da
tragédia. Era o deus do teatro, de qualquer forma teatral.

Nada mostra isso de maneira mais contundente do que a sua participação, como
protagonista, tanto nas Bacantes de Eurípides como na comédia As Rãs de
Aristófanes. Das quarenta e quatro peças gregas antigas que chegaram até nós, só ele,
como divindade, tem o privilégio de ter um destaque assim tanto numa tragédia quanto
numa comédia. Pode ser um acaso da transmissão, mas mesmo que tivéssemos uma
outra tragédia e uma outra comédia em que um deus fosse, em ambas, central, essas
peças não revelariam a natureza do próprio teatro como só a atuação de Dioniso é
capaz de fazer. Isso porque nas duas peças, nas Bacantes e em As Rãs, seu culto é
combinado a uma abordagem direta da atividade teatral. A comédia, claro, podia fazer
isso de forma mais desabusada: nela Dioniso desce ao Hades para trazer de volta
Eurípides, seu tragediógrafo preferido (e o mais ridicularizado por Aristófanes nas
suas peças), mas termina como árbitro de um concurso entre Ésquilo e o próprio
Eurípides e se decidindo por reconduzir à vida Ésquilo, o poeta que era do ponto de
vista moral mais adequado à cidade. O tema aqui é explicitamente o teatro e a disputa
teatral característica dos festivais em Atenas. Mas o interessante é ver como As Rãs
explora na figura do deus a essência transformadora do teatro: Dioniso, para baixar ao

114
Hades, se disfarça de Héracles e numa das sequências mais divertidas da comédia fica
trocando de papel com seu escravo. Essa é a experiência dionisíaca, sair de si e ser
outro. “Eu viro você e você vira eu”, como Dioniso diz para o seu escravo.

É nesse sentido que o teatro, a tragédia e a comédia, tinham tudo a ver com Dioniso.
A festa, portanto, não era menos religiosa e dionisíaca se as peças não colocavam esse
deus no palco e não o abordavam diretamente – o compromisso delas com Dioniso
era de outra ordem, era o compromisso da alteridade e da mutação, da metamorfose
libertadora. E é esse aspecto que está em destaque já na abertura das Bacantes de
Eurípides: nela Dioniso se apresenta como um deus de fora recém-chegado a Tebas,
onde instaura o seu culto. O deus surge como uma figura dupla, uma duplicidade
análoga à da encenação teatral. São pelo menos três pontos onde vemos isso. Primeiro
ponto: vindo do oriente, Dioniso seria estranho à paisagem nativa dos gregos, mas ele
fala grego e é filho de Sêmele, a filha de Cadmo, o ancestral mítico de Tebas. Segundo
ponto: tendo como pai Zeus e tendo nascido da coxa de Zeus, onde terminou de ser
gestado depois da morte de Sêmele, Dioniso é um ser divino com origem metade
humana, uma anomalia para um deus. E terceiro ponto: seu culto seria uma espécie de
nova seita trazida à Grécia, mas sua antiguidade comprovada mostra que era tão
tradicional quanto outros. Um estrangeiro que não é estrangeiro, um híbrido de figura
divina e humana, um novo que é antigo.

Esse é o movimento libertador representado por Dioniso, e é essa liberdade que ele
traz a Tebas. Logo no início da peça, Dioniso aparece metamorfoseado em ser humano
e avisa que já transformou em bacantes as três irmãs de Sêmele, entre elas a mãe de
Penteu, Agave. Elas não acreditavam que Sêmele tivesse gerado Dioniso após transar
com Zeus. Junto com elas, todas as outras mulheres da cidade foram enlouquecidas
também e se dirigiram para a montanha. Dioniso diz também que já sabe da oposição
de Penteu ao seu culto e que vai reagir caso o rei queira impedir as ações femininas.
É no final dessa primeira cena que ele chama o coro das bacantes para a orquestra,
para ser visto pela pólis. É tudo muito metateatral logo de saída: o deus da arte do
disfarce que aparece disfarçado; a referência às mulheres de Tebas que assumiram o
figurino de bacantes; o coro dos cidadãos homens que entra logo depois, todos com

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os figurinos de mulheres bacantes dos quais Dioniso acabara de falar; o deus Dioniso
se apresentando como o diretor e líder desse coro; e, finalmente, a menção à polis que
vai ver o espetáculo – internamente, é a pólis de Tebas que vai ver a ação promovida
pelo deus, externamente é a pólis de Atenas que vai ver a montagem dessa ação.

Não para por aí: na cena seguinte entram os velhos Cadmo e Tirésias, já paramentados
como bacantes. O texto faz graça com esse figurino e explora, dentro da tragédia, com
a referência às roupas e uma quase quebra da ilusão dramática, elementos típicos da
comédia. Penteu, ao entrar e vê-los, diz que é tudo muito ridículo e a plateia com
certeza a essa altura já não tinha conseguido segurar o riso. Esse trânsito entre o sério
e o escrachado só poderia acontecer numa peça em que o deus do teatro é o
protagonista. Mas há o lado grave da cena: Cadmo, e principalmente Tirésias, o
adivinho cego, querem argumentar com Penteu que a adesão ao novo culto é benéfica
– no caso dos dois idosos, representa a possibilidade de momentaneamente
rejuvenescerem. Essa loucura de Dioniso é sadia, sábia, enquanto a sisudez e a
severidade de Penteu são insensatas. A contradição atravessa a peça: há um tipo de
loucura que se identifica positivamente com a sabedoria e há um tipo de sabedoria que
se identifica negativamente com a loucura. De um lado está Dioniso, do outro está
Penteu. Cadmo e Tirésias já perceberam que o melhor é aderir a Dioniso e correr o
risco da comédia. Já Penteu não cede: diz que soube a respeito das mulheres de Tebas
enlouquecidas e da presença de um forasteiro que as comanda. Já determinou que as
tebanas fossem caçadas no campo, onde imagina, como bom puritano, que promoviam
bacanais, e agora determina que o estrangeiro seja preso. Faz o que Dioniso tinha dito
no começo que não admitiria. Ao recusar o sábio delírio dionisíaco, Penteu age como
um tolo e delira da pior forma possível.

Na cena seguinte já vemos o deus preso, travando um ágil diálogo com Penteu, que
quer saber detalhes de Dioniso e do culto. O servo que pegou o forasteiro conta que
quando o prendeu este deu risada, e acrescenta que as mulheres que já tinham sido
presas se libertaram milagrosamente das correntes. São sinais. Só que Penteu não
recua e manda encarcerar o estrangeiro no estábulo. Na cena seguinte Dioniso
promove um pequeno abalo sísmico e se livra da prisão facilmente, para espanto de

116
Penteu, que não entende por que ele não fugiu; nessa hora chega um mensageiro que
conta as maravilhas realizadas pelas tebanas enlouquecidas no campo, num daqueles
trechos narrativos da tragédia nos quais Eurípides era mestre. Havia três grupos de
mulheres, um comandado pela mãe de Penteu e os outros dois por suas tias. Todas se
portavam de modo casto, não promoviam bacanais como Penteu imaginava. O clima
era de harmonia e bebiam leite, mel e vinho, que a natureza produzia
espontaneamente. Mas tudo mudou quando os homens de Penteu tentaram capturar
Agave, a mãe do rei: como cadelas de caça, elas partiram para o ataque. Os servos
conseguem fugir, mas na sua fúria elas dilaceram e esquartejam animais que
encontram pelo caminho. É um prenúncio do que está por vir.

Penteu pensa então em se armar ainda mais para o combate, é advertido mais uma
vez, pelo próprio Dioniso disfarçado, e então acontece uma súbita transformação: o
forasteiro pergunta a Penteu se não gostaria de ver as mulheres reunidas na
montanha... Penteu, fantasiando com as orgias, responde que daria todo o ouro do
mundo por essa oportunidade e o teatro dentro do teatro volta a ocupar a cena. Dioniso
convence Penteu a se vestir de bacante, para passar despercebido enquanto espia:
Penteu será um outro personagem, de um outro gênero, como o ator que troca de roupa
e máscara, e será também um espectador das bacantes, duas faces evidentes da
representação teatral. Os dois discutem as etapas dessa transformação, a túnica
feminina, a cabeleira, o bastão na mão e uma pele de corça nas costas, mas Dioniso
diz que a mudança vai acontecer dentro do palácio, isto é, atrás do cenário, onde os
atores se trocavam. Os dois saem de cena e quando voltam Penteu já está caracterizado
como bacante e transtornado pela loucura de Dioniso, uma loucura maléfica, que vai
ajudar a destruí-lo. Conforme o deus tinha comentado com as bacantes no final da
cena anterior, já sabemos que ele vai ser massacrado pela mãe.

A situação continua a ser metateatral: Dioniso chama Penteu para diante do palácio,
ou seja, para a frente do cenário, e comenta seu figurino repetindo o termo técnico já
usado antes paras as mulheres de Tebas e para Cadmo e Tirésias. Reparos de Dioniso
feitos à cinta e à cabeleira do Penteu-bacante voltam a injetar comédia às vésperas do
momento mais trágico, mas há pungência na forma como o rei surge desarmado e

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entregue, fora de si, algo que fica explicitado pelo fato de dizer que enxerga dois sóis
e duas Tebas. Trata-se do delírio? Da duplicidade do teatro? Penteu ainda afirma que
o estrangeiro agora parece um touro e não sabemos se isso é parte do seu transe ou se
o ator que fazia Dioniso agora usa uma máscara bestial: a associação com o touro
ocorre outras vezes na peça. Aqui é bom lembrar que a imagem tradicional de Dioniso
o mostrava sorrindo e a peça parece fazer referência por duas vezes a esse dado
inscrito na sua máscara. Eles se dirigem então para a montanha e ficamos sabendo na
cena seguinte o que aconteceu por meio de mais um relato. Mãe e tias, fora de si,
atacaram Penteu assim que foi exposto por Dioniso: o rei foi dilacerado, mesmo
pedindo clemência à mãe enlouquecida, e é nesse estado que ela agora traz a cabeça
do filho à cidade como prêmio, imaginado ter matado um leão. A sequência final
mostra Agave saindo do transe e, num diálogo com o pai, Cadmo, descobrindo a
terrível verdade: a cabeça que trazia espetada no bastão do culto era do filho; ela
também pagava por não ter acreditado em Sêmele. Num final com lacunas, Dioniso
vem anunciar, sem disfarces, o futuro de Cadmo e Agave.

É uma história em si já poderosa, mas não podemos esquecer que todas essas cenas
são entremeadas por cantos corais exuberantes, sendo o primeiro deles, o mais longo,
um perfeito ditirambo: sua ocorrência logo depois do chamado do próprio Dioniso é
uma espécie de encenação dos princípios da tragédia. É assim, com uma música
envolvente, que Eurípides conta essa história, em progressão acelerada. É mais do que
qualquer peça ou ópera podem sonhar. Do que ele queria falar? Criticar cultos
fanáticos e elogiar o racionalismo? Ou condenar as pretensões racionalistas? Penteu é
o retrato do incréu ou do filisteu? Essas dicotomias redutoras com certeza não estão à
altura da peça. Na sua base há um oxímoro, a sabedoria do delírio, que pode ser
desdobrado em inúmeras leituras, que vão além de Eurípides e de seu tempo.

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#18 O DESASSOSSEGO AFRODISÍACO NA POESIA DE SAFO

“Dizem que são nove as Musas, mas quanta desatenção./ Tem mais esta: Safo de
Lesbos, a décima.” Esse pequeno poema ou epigrama é atribuído a Platão. Não
aparece em nenhum dos seus diálogos e para maioria dos estudiosos dificilmente
poderia ser de autoria do filósofo. Isso não importa muito. O mais interessante é a
gente notar, primeiro, como a beleza musical, na Grécia, vinha associada ao feminino,
no caso, às nove Musas filhas de Zeus e Memória. E, depois, como a poeta Safo, ao
ser incluída nesse grupo como a décima Musa, deve ser tomada mais pelo lado musical
que literário. Quando pensamos em Safo, nossa tendência é pensar numa linhagem de
criação escrita e silenciosa, em letra e livro, e alinhá-la a figuras como Ana Martins
Marques, Hilda Hilst e Emily Dickinson. Mas Safo é voz e apresentação ao vivo e a
gente entende melhor a sua poesia alinhando-a a Amy Winehouse, Elza Soares e Billie
Holiday. No centro da sua criação está a musicalidade e tudo que se associa à sua
presença concreta. Vejam como os próprios nomes das Musas mostram isso:
aclimatados ao português não dizem muito, Clio, Euterpe, Talia, Melpômene,
Terpsícore, Érato, Polímnia, Urânia e Calíope, mas traduzidos evocam todo o cenário
da sedução fônica, Gloriosa, Prazenteira, Festiva, Celebratória, Dançarina, Amável,
Multi-Hinária, Celeste e Falabela. Esse é o universo de Safo e é essa sonoridade divina
e envolvente que fica indicada quando é incluída no grupo das Musas.

Claro, hoje a gente não sabe muito bem como ouvir Safo, porque basicamente a gente
só lê Safo. Mas o mais longo poema dela, e o único que conseguimos acessar na
íntegra, porque os demais são fragmentários, ou seja, não nos chegaram por inteiro,
esse poema pede que usemos boca e ouvido. Aliás, ele foi transmitido na íntegra por
causa dessa sua qualidade. Dionísio de Halicarnasso, um crítico que escrevia em grego
e atuou por volta do final do século I a.C., apresenta essa criação de Safo para elogiar
o som, ékhos, e a eufonia, euépeia, dessa ode, dessa canção. Não é por acaso que ele
se refere a Safo através do termo melopoiós, isto é, compositora de cantos. Esse
poema, conhecido como “Ode a Afrodite”, tem vinte e oito versos, recheados de
assonâncias e aliterações que comprovam, mesmo numa leitura silenciosa, a
capacidade musical que Safo possuía. A seu favor, Safo, como outros da sua região e

119
da sua época, o final do século VII a.C., usava um ritmo e um dialeto específicos, que
ajudavam a reforçar o efeito encantatório. Tudo isso ainda em criações que falavam
de amor e do universo feminino, com extrema delicadeza e sensibilidade.

Mas a poesia de Safo, feminina e delicada, é uma porrada estética. Estabelece um


padrão altíssimo para qualquer um que se interesse pela perícia verbal e vocal, e ainda
levanta questões centrais a respeito da relação entre vida e obra. Para começar, Safo
é uma autora que inscreve um eu feminino dentro dos seus poemas e que algumas
vezes nomeia esse eu poético de “Safo”; além do mais, explora relações amorosas
homossexuais. Afeto entre pessoas do mesmo sexo e nome inscrito não são
propriamente uma exclusividade sua, mas em nenhum outro paralelo poético da
Grécia Antiga estamos num universo tão intimista. Existe alguma possibilidade de
Safo não estar falando de si mesma, da sua vida, das suas experiências, dos seus
sofrimentos amorosos? Na minha visão, é quase impossível não relacionar uma Safo
externa e real com o eu poético feminino dos poemas, mesmo quando não recebe o
nome Safo. A recepção da sua poesia fez isso por séculos. Esse é um efeito buscado
por ela, com o seu tom pessoal, que exige nossa aproximação e pede essa confusão.

Mas existe uma medida nesse efeito, e aí tendemos a ver mais que um grego ou uma
grega provavelmente viam. Nosso lirismo, com o grau de pessoalidade que cobra de
cada um de nós, é diferente daquele explorado pelo lirismo antigo. Quando leio o
verso “Vai, Carlos, ser gauche na vida”, do “Poema de Sete Faces”, sei que esse Carlos
é uma referência interna ao seu autor externo, Carlos Drummond de Andrade. Não é
o próprio Drummond, um retrato banal e jornalístico seu, porque esse Carlos foi
construído esteticamente. Mas esse Carlos reflete um Carlos único, é a expressão de
um poeta único, remete a uma figura histórica única, com sua visão, suas obsessões e
preferências literárias. O puro dado pessoal não explica o poema e o seu efeito, mas
entra como ingrediente que o sustenta, digamos, numericamente, em bem mais que
50%. Não há outro poeta que se expresse assim: esse Carlos é sinal claro da
individualidade e originalidade do Carlos Drummond de Andrade.

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A gente pode pegar um outro exemplo onde o eu poético não recebe um nome. Estou
pensando aqui no poema “Boa Constrictor”, de Angélica Freitas. É um poema de
amor, elaborado num tom leve e com referências cotidianas e pops, e que é comovente
na sua graça e descontração. Nele o eu feminino narra como se tornou a “presa” de
uma cobra, que a envolveu e apertou. Esse eu, como eu disse, não é nomeado, mas,
assim como fazemos com qualquer outra poesia, o identificamos com o nome que
vem na capa do livro ou com a figura real a quem o poema é atribuído. Não, o eu de
“Boa Constrictor” não é a Angélica, mas ao mesmo tempo é a Angélica: não é porque
não é um retrato seu, trata-se de um eu e de uma situação ficcionais e metafóricos.
Mas é porque só na sua poesia temos um eu que fala assim, porque essa voz é uma
voz associada à poesia da Angélica, e por isso o elemento da identificação sustenta
sua obra em bem mais que 50%. Essa é a nossa poesia afinal: queremos ver nela o
Carlos, a Angélica, a Hilda – cada voz, mesmo em terceira pessoa ou outro gênero, é
a voz específica de cada um deles, cada voz opera com esse mecanismo de
identificação individual e pessoal.

Quando a gente volta para Safo, a gente desconfia então que a audiência antiga talvez
não desse um peso tão grande a esse elemento. Um dos esquemas estróficos que Safo
usa, por exemplo, a chamada “estrofe sáfica”, com três versos de onze sílabas e um
verso de cinco, não era usada só por Safo e com certeza não foi criada por ela. Também
o modo como Safo vê o amor não é um modo altamente pessoal e exclusivo: os temas
e desenvolvimentos da sua poesia são lugares comuns e se repetem em outros poetas.
Ou seja, há sim um efeito pessoal e próprio explorado dentro da sua poesia e a
presença do seu nome em algumas peças ajuda a reforçar isso, mas essa pessoalidade
vinha junto com uma série de elementos que a atenuavam, que apontavam para
esquemas e enfoques muito recorrentes e comuns – porque compartilhados por todos
e a serviço da comunicação.

Nesse sentido, a Safo real, com seus sentimentos e visões próprias, com sua “marca”,
contribuía bem menos do que em 50% para a construção dos poemas, porque o
principal não devia derivar dela, mas do que estava em torno dela. Quanto mais o
poema fosse Safo, a especificidade e a originalidade de Safo, menos relevante seria.

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Para nós é o contrário: quanto mais um poema é Drummond, quanto mais é Angélica,
mais relevante. Só que inevitavelmente transportamos nossa sensibilidade atual para
a leitura de Safo e queremos ver a Safo de carne e osso mais do que os antigos talvez
vissem. Isso tudo para dizer que os amores desse eu poético, às vezes nomeado Safo,
são mais uma construção que uma experiência, uma construção em torno de
sofrimentos, ausências, separações, rejeições e o ingresso na vida adulta. É disso que
essa poesia sonora e musical fala, explorando o universo feminino e as relações de
afeto entre as mulheres.

Outra questão para quem lê Safo: que afeto é esse? Não sabemos bem. A
homossexualidade da Grécia Antiga mais bem documentada é a masculina. Ela
comprova como nossas relações sexuais não são determinadas biologicamente apenas,
mas condicionadas pelo contexto. São a soma imprecisa de desejo e posicionamento
social. Um homem grego, ao atingir a idade adulta, deveria se casar com uma mulher,
por mais que se sentisse atraído por homens. Desse homem casado esperava-se que
estabelecesse, ao longa da vida, sucessivas relações com homens jovens que ainda não
tinham se casado, por mais que se sentisse atraído por mulheres. Assim, ele deveria
ser ao mesmo tempo hétero e gay (ou bi), mas seguindo determinações rígidas: dois
adultos casados não deveriam ter um envolvimento, nem dois jovens. Esse desnível
etário exigido para a relação homossexual ajuda a gente a entender um componente
seu fundamental, que pode ser chamado de “pedagógico”. Essa relação pederástica,
ou seja, literalmente no grego, de “amor por um adolescente”, era uma relação
formativa. Ao se envolver com uma figura já inserida no círculo masculino adulto, o
jovem aprendia as regras do mundo em que iria ingressar. Era uma relação desigual,
entre quem amava, o mais velho, e quem era amado, o mais novo, uma relação entre
mestre e discípulo. Nos Diálogos de Platão é muitas vezes a relação de Sócrates com
os jovens que o cercam, sensual e instrutiva, embora aí fique sublinhado que o melhor
é não ter a consumação sexual, o famoso “amor platônico”. É também a situação que
aparece no contexto do simpósio, o banquete onde os homens costumavam se reunir.

Pra muitos estudiosos, é nessa chave que a gente deve entender a homossexualidade
em Safo, agora entre as mulheres: um clube ou uma confraria onde as mais velhas,

122
casadas com homens, instruem as mais novas, em idade de se casar, e a afeição entre
elas é explorada. Talvez fosse um traço característico da ilha de Lesbos e da sua
proximidade com o oriente, algo possível apenas num ambiente social e culturalmente
mais arejado, onde as mulheres tinham uma autonomia não vista em outras localidades
da Grécia. Ou talvez não, talvez fosse algo encontrável em outras cidades, como a
militarizada e conservadora Esparta. Não sabemos. O que sabemos é que, tanto no
homossexualismo masculino, super bem documentado, quanto no feminino, com
poucos testemunhos (uma desigualdade de dados que reflete a desigualdade de
gênero), o que sabemos é que o aspecto central é a identidade. Homens e mulheres
viviam em mundos separados. O enfoque heterossexual, claro, está presente em vários
poemas e poetas, mas é no homossexual que se entende melhor o que era ser homem
e ser mulher, com adultos e adultas olhando jovens do mesmo sexo e revendo as dores
e delícias desse rito de passagem da adolescência para a maturidade. Em Safo, como
eu disse, esse mundo é o mundo dos prazeres e reveses de eros, da paisagem amorosa
e da chegada do casamento, vistos pela perspectiva feminina.

São cerca de duzentos fragmentos que temos hoje para ler, só um poema na íntegra e
muitas lacunas e questões. É uma perda assombrosa, porque sua obra teria sido
reunida, séculos depois, em nove livros, um deles só de epitalâmios, os cantos
nupciais, e outro só com cantos em estrofes sáficas. Haveria ainda elegias e outras
formas poéticas. Se tivéssemos tudo isso à disposição para ler hoje, com certeza
veríamos melhor em Safo não só a sua competência, mas também a mesma variedade
poética que encontramos nos poetas latinos, como Catulo, Horácio e Ovídio. Não
podermos ler Safo hoje como deveríamos foi o resultado do puritanismo e do
filisteísmo masculinos. É, como eu disse, uma perda assombrosa: se pegarmos quatro
famosas composições suas, todas compostas em estrofe sáfica, se pegarmos, primeiro,
o seu único poema completo, a já citada “Ode a Afrodite”, com sete estrofes, e outros
três incompletos, a “Ode a Anactória”, com cinco estrofes, o “Parece-me par”, com
quatro, e o menor de todos, sobre a Lua, com uma só estrofe, a gente vai ver que essas
dezessete estrofes e seus sessenta e oito versos valem muito mais que extensos
volumes de poesia completa que existem por aí.

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Na “Ode a Afrodite” temos um canto de apelo, uma prece em esquema convencional
dirigida a Afrodite, para vir auxiliar o eu poético, “Safo”, na conversão amorosa da
menina que a despreza. A estrutura é fixa, com invocação à deusa, rememoração do
laço que as une e formulação final do pedido, mas tudo vem envolto em graça musical
e vivacidade poética – a fusão entre passado e presente, o tom religioso, o contraste
entre a poderosa figura divina e a mortal desamparada, e ao mesmo tempo a parceria
e amizade entre elas, o misto de doçura e desassossego característico do amor, a
fraternidade na guerra. Na “Ode a Anactória”, o nome que aparece é o da amada,
enquanto o eu poético feminino fica anônimo; o tema é a saudade e a postulação do
amor como o que há de mais belo, contra os valores ditados pelos homens. Helena
comprovou isso ao pôr a paixão acima de tudo e se guiar por Afrodite. É pelo brilho
da beleza sedutora de uma certa Anactória que o eu poético anseia, não pelo brilho
das armas. Os versos têm uma serenidade e uma assertividade ímpares. É talvez ainda
mais feminino e resgata Helena da condenação machista típica, como em dois
fragmentos do poeta Alceu, contemporâneo e conterrâneo de Safo. Já na ode “Parece-
me Par”, deparamos com um triângulo amoroso e uma voz feminina que descreve a
própria perturbação ao olhar para a mulher com outro cara. Não temos nomes nem
lamentos, só uma descrição do seu crescente abalo, a mais cirúrgica e a mais quente
da literatura ocidental. Finalmente, no fragmento sobre a lua, Safo fala daquela que,
ao brilhar como a lua cheia, apaga as estrelas, ou meninas, à sua volta.

Essa e outras imagens da natureza eram frequentes. Contribuem para aquela


suavidade, aquele encanto e graça. A poesia de Safo é tradicional, mas é excepcional.
Uma voz feminina. Uma voz falando sobre o mundo feminino. Uma voz falando sobre
cumplicidade feminina, sobre sororidade. Doce e afiada como uma faca. Onde há
perturbação e amargor, mas onde se pode repousar no terno peito da companheira.
Onde a mulher tem sim gosto e vontade, e não apenas medo e presságios.

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#19 MORTE E VIDA HEROICA NO ÉDIPO EM COLONO DE SÓFOCLES

O Édipo Rei de Sófocles se abre com Édipo, o líder de Tebas, chamando de “filhos”
todos aqueles que vêm até ele em busca de uma solução para a peste que assola a
cidade. É uma figura confiante e poderosa, que já livrou Tebas da esfinge e, como
prêmio, se casou com a viúva Jocasta. Nada parece escapar à sua inteligência e
presteza. Passam-se décadas e no Édipo em Colono, a outra tragédia de Sófocles
protagonizada por Édipo, encontramos essa mesma figura abrindo a ação com essa
mesma palavra, só que agora empregada no singular, para chamar a filha, Antígona:
é ela que acompanha o antigo rei, que surge desamparado, como um cego pedinte.
Pouca coisa sobrou daquele jovem adulto de outrora, depois de descobrir que não era
quem achava que era, depois de descobrir que tinha matado o pai, casado com a mãe
e tido com ela filhos que eram também seus irmãos. O Édipo de agora é um homem
envelhecido e errante, que busca um desfecho para os seus sofrimentos – mas sem
que, com isso, os sofrimentos da sua família se encerrem: numa outra peça de
Sófocles, essa filha de Édipo, Antígona, morre em defesa do sepultamento do irmão
Polinices, que falecera com Etéocles num combate fratricida pelo poder de Tebas.

Essas três peças de Sófocles, Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona, formam o que
chamamos hoje de “trilogia tebana”. Não foram originalmente apresentadas como
uma trilogia, mas são dramas interligados, porque narram em sequência os infortúnios
de uma mesma linhagem. A ação envolvendo as mortes de Polinices e Etéocles não
está apresentada em Sófocles, mas pode ser conferida em Ésquilo, na peça intitulada
Os Sete Contra Tebas, e também nas Fenícias de Eurípides. Juntas, essas cinco
tragédias formam um painel poderoso, três de Sófocles, uma de Ésquilo e uma de
Eurípides, e ainda nos fornecem, comparativamente, indicações preciosas de como o
teatro de Atenas podia explorar acontecimentos similares por ângulos e recursos bem
diferentes.

De todas essas tragédias tebanas, Édipo em Colono tende a ser a que recebe menos
atenção, ofuscada pelo Édipo Rei. É uma injustiça. Se ela não traz a progressão
acelerada e mesmerizante da peça mais famosa, com a qual sempre acaba confrontada,

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tem por outro lado a vantagem de explorar melhor a psicologia do seu personagem
central, para além daquela virada que ele sofre no Édipo Rei, onde passa de rei
poderoso a rei derrubado. Para quem não sabe ou não lembra, o Édipo Rei termina
com Jocasta se enforcando e Édipo furando os próprios olhos. Ele pede então a
Creonte, o irmão de Jocasta, para ser levado para longe de Tebas, mas essa decisão
fica em suspenso. Quando ele reaparece no Édipo em Colono, descobrimos que Édipo
ficou retido em Tebas por um longo tempo e terminou expulso pelos filhos homens,
já crescidos, quando ele mesmo já não queria mais partir. Errando por muitos anos de
lá para cá com o auxílio de Antígona, que era uma criança no final do Édipo Rei, o
velho Édipo chega como suplicante a Colono, nas imediações de Atenas. Aí ele espera
cumprir um oráculo: a cidade que o acolhesse nos instantes finais receberia proteção
no futuro. Édipo, o proscrito manchado pelos crimes hediondos, tem o poder de
abençoar. É por esse motivo – por ser o “enigma de uma contradição”, como disse o
crítico alemão Karl Reinhardt –, que o Édipo do Édipo em Colono desperta interesse,
uma figura que encara o fim iminente e repassa a própria história. Como no Édipo
Rei, ele está no centro da ação do começo ao fim.

Em parte, vemos o mesmo homem decidido e obstinado, às vezes um pouco


destemperado, mas vemos também um idoso calejado pelo passar do tempo e pelo
acúmulo das dores. Há uma altivez que o conecta ao Édipo Rei, mas repassada agora
pelo amadurecimento. Colabora para a percepção que temos dele a relação que
Sófocles explora com as filhas, em especial com Antígona, a fiel escudeira de um pai
que já não pode andar pelas próprias pernas: essa conexão é uma das coisas mais
tocantes da literatura antiga, um dado central no Édipo em Colono, mas impensável
no jovem intempestivo do Édipo Rei. Aqui a gente tem um Édipo digno e ao mesmo
tempo frágil. São ajustes que nos mostram como Sófocles era um mestre na arte da
caracterização. Além desse Édipo tridimensional, Sófocles trabalha com outros
recursos que são meio excepcionais se comparados às outras seis peças suas que
sobreviveram: primeiro, constrói um drama enorme, com quase mil e oitocentos
versos, o mais extenso dos que temos à disposição para ler hoje; segundo, recheia-o
de ação e movimento, com lances de forte carga emocional, um expediente em geral
associado mais ao teatro de Eurípides; e, terceiro, insere um número incomum de

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cenas em que ocorre a interferência do canto coral, ou seja, em que o coro, para além
de cantar fazendo a tradicional divisão entre as cenas, participa também cantando em
sintonia com os personagens. Tudo isso aponta numa mesma direção: Sófocles quis
explorar, dos recursos que tinha à disposição, os que exacerbassem na tragédia seu
tom mais sentimental, que permitissem à plateia experimentar de modo intenso o
majestoso fim do grande Édipo.

É importante deixar claro que esse tema, o destino final da figura heroica, com a
ocasião memorável do seu sepultamento, era comum. A gente vê isso na Ilíada de
Homero, com Pátroclo e com o troiano Heitor, e vemos isso, na tragédia, em duas
peças do próprio Sófocles: na já citada Antígona, onde ela luta para que o irmão receba
as devidas honras fúnebres, e no Ájax, que fala desse herói que, ao se suicidar, instaura
um debate sobre a pertinência do seu enterro. A relevância desse tema se explica
porque todo o sentido da vida heroica se dirigia para o desfecho que teria e para o
reconhecimento que receberia. Aquiles simboliza bem isso: sua morte não é contada
na Ilíada, mas seu sepultamento é rememorado no Canto 24 da Odisseia e com isso
de novo percebemos o peso desse elemento.

Mas não é só esse dado que está presente no Édipo em Colono. Junto com a chegada
da morte, podia ocorrer uma transformação da condição do herói, outro dado
recorrente na literatura grega. As Traquínias, de Sófocles, se fecha anunciando a
morte de Héracles e a sua apoteose, isto é, sua conversão de figura heroica em divina.
É uma situação extraordinária, excepcional, mas dá para dizer que, de certa forma,
resume o destino de todo herói: mesmo que não passasse a viver com os deuses, como
Héracles, havia sempre um elemento de divinização implicado, porque os heróis,
enquanto semideuses, eram cultuados pelos gregos, e seus túmulos eram locais
sagrados. Portanto, o que temos no Édipo em Colono é a retomada de um lugar
comum, mas com uma diferença: a morte de Édipo não entra como algo anunciado ou
profetizado ao final, ela é a própria razão de ser do drama.

Um outro elemento recorrente, que não pode ser esquecido, é a situação de súplica,
quando uma pessoa ou um grupo chega a uma terra estrangeira solicitando abrigo e

127
proteção. A súplica tem tudo a ver com a instituição grega da hospitalidade, pela qual
se firma um laço duradouro de amizade entre anfitrião e hóspede. Está na base da ação
da Odisseia de Homero, onde Odisseu é um viajante que anda de lá para cá por anos,
necessitado de asilo e apoio. Era ainda algo explorado fartamente nos mitos e nas
tragédias – não é por acaso que temos duas peças cujo coro é formado por suplicantes,
as Suplicantes de Ésquilo e as Suplicantes de Eurípides. No Édipo em Colono, Édipo
é, como eu disse, o suplicante que chega a Colono, nas imediações de Atenas, em
busca de acolhida. É o motivo da súplica combinado ao tema da apoteótica morte
heroica. Mas não acabou, há ainda outro motivo visível no Édipo em Colono: a
exaltação de Atenas. Sendo a tragédia que a gente lê hoje uma expressão artística
ateniense, era muito conveniente que ela passasse à plateia a imagem de uma cidade
justa, livre e hospitaleira. O lendário rei Teseu, a figura benevolente que dá proteção
ao cego Édipo no Édipo em Colono, é o mesmo Teseu que aparece, por exemplo, nas
Suplicantes de Eurípides fazendo a exaltação do regime democrático. Seu pai, Egeu,
é o personagem que na Medeia, também de Eurípides, promete asilo à ex de Jasão.

É essa grande Atenas que, ao aceitar receber o corpo de Édipo nas suas imediações,
nessa localidade chamada Colono, será beneficiada no futuro pela presença heroica
protetora. Esse propósito de louvar a cidade é ainda mais explícito porque Atenas é
celebrada pelo coro em uma das odes da peça, onde é descrita como a dádiva de uma
divindade. O louvor, acontecendo no fim do século V a.C., quando a peça teria sido
encenada pela primeira vez, tinha assim a ver com a realidade da pólis e com sua
necessidade de, falando de um herói alheio, falar de si. O cruzamento amplo e sem
pudor entre passado e presente, entre realidade mítica e política, entre Atenas e outras
cidades, está no centro da tragédia grega, e o Édipo em Colono mostra bem isso.

O termo usado para descrever esse cruzamento é “anacronismo”: cria-se uma


inconsistência entre o universo dos heróis e as referências contidas na representação
trágica. Um rei que no mito não tem nada a ver com a democracia pode aparecer na
tragédia como alguém identificado com esse regime. Os habitantes de uma pólis que
não conheceram no passado o voto votam como cidadãos. Instituições atenienses
próprias do século V a.C. são transportadas para outros tempos e lugares. Era uma

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forma de Atenas, nos concursos teatrais, olhar-se no espelho: era raro as histórias se
passarem em Atenas ou trazerem um ateniense como protagonista, mas no fundo era
como se, indiretamente, se passassem e trouxessem. Suas questões vinham à tona de
viés, por intermédio de mitos tradicionais repensados à luz do contexto político atual.
No Édipo em Colono, o Édipo exilado pode ser a vítima do ostracismo, o mecanismo
criado em Atenas no final do século VI a.C. para livrar a cidade de figura indesejadas;
a “aliança” de Édipo com Atenas pode ser reflexo da política externa ateniense no
século V: ao falar da antiga proteção conferida pelo herói, a peça justificaria a
superioridade futura de Atenas sobre a rival Tebas. O passado da peça dialoga com o
momento presente da encenação. Dá para dizer, assim, que o título Édipo em Colono
refere-se, enquanto passado estático, a Édipo indo encontrar seu descanso em Colono,
mas Édipo em Colono refere-se também, enquanto presente vivo, à presença cultual
e protetora de Édipo em solo ático.

Esse é o anacronismo trágico, que a plateia devia sentir em vários momentos da


encenação, em qualquer tragédia, com base em inúmeras referências. Só que não
devemos pesar a mão ao falar do anacronismo na tragédia: uma mesma história mítica
era sempre, simultaneamente, uma história passada e uma história passível de ser
atualizada, apta a falar do momento presente. Só iremos pensar de outro jeito se
ficarmos presos à ideia de um rigor histórico que não dá conta dos mecanismos da
criação verbal. Uma história como a de Édipo era sempre reatualizada a cada
representação. Séculos depois, vemos essa dinâmica ativa na Eneida de Virgílio: o
mito de Eneias é exemplo vivo de um passado que se funde com o presente. Visto
assim, o anacronismo seria mais natural e menos inconsistente do que tendemos a
imaginar, porque inerente à transmissão desses contos tradicionais. Édipo em Colono
é uma antiga história, sem data e local de origem, mas é uma história revista à luz da
Atenas do século V a.C., e é também – por que não? – uma história revista à luz de
outras épocas posteriores e da nossa época atual, reencenada, readaptada ou tão
somente relida: as perspectivas se embaralham.

É essa peça que traz, como eu disse, uma espécie de reviravolta da reviravolta: no
Édipo Rei, Édipo caiu lá do alto rumo ao lugar mais baixo, e no Édipo em Colono ele

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faz o caminho inverso, sai do lugar mais baixo rumo ao mais alto. A princípio foi a
bênção de Tebas, mas virou a sua maldição. Vai amaldiçoar aqui os filhos, mas
abençoar Atenas. Viveu o auge da existência humana e agora só quer morrer. É uma
morte anunciada já no começo do drama, quando chega ao bosque sagrado em Colono,
mas que fica em suspenso até o desfecho. Entre esses pontos extremos a gente tem a
movimentação central da peça entre dois grupos de personagens, os que auxiliam
Édipo e estão ao seu lado (as filhas Antígona e Ismena, o rei Teseu e o coro de idosos
de Colono), e os que querem se aproveitar dele e levá-lo embora (Creonte e o filho
Polinices), por causa da proteção que pode dar. No meio disso, entre expectativas,
apelos e raptos, acompanhamos ainda três “apologias” de Édipo, isto é, três
manifestações suas em que se defende dos crimes passados, alegando ignorância. Não
há inconsistência em relação ao Édipo Rei: ele ainda se considera poluído, mas é
verossímil que, com o distanciamento, aborde a questão da responsabilidade sob uma
perspectiva diferente, quase jurídica.

Há grandeza e alguma serenidade aí, e nenhum traço da ironia trágica que tanto o
persegue no Édipo Rei, aquele tipo de fala que, sem o falante querer e perceber, diz
mais do que pretende. Aqui Édipo diz o que quer dizer. A sua morte, quando
finalmente chega, não é encenada, mas narrada por um mensageiro. São quase cem
versos de uma beleza assustadora. Édipo sumiu, foi tragado pela terra, um evento
misterioso testemunhado por Teseu apenas, que não pode revelá-lo a ninguém. A
poesia de Sófocles consegue tornar esse espanto e esse mistério mais palpáveis do que
qualquer experiência audiovisual faria hoje. O grande herói Édipo tem a glória de uma
morte sem tumba, sem sinalização concreta. Como ele mesmo diz, “não sendo mais –
agora é”, o enigma de uma luz sem fulgor.

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#20 O ATO FINAL (E INAUGURAL) DE SÓCRATES NA APOLOGIA DE
PLATÃO

A “apologia de Sócrates” é um acontecimento histórico e um acontecimento literário.


O acontecimento histórico: em 399 a.C., o filósofo Sócrates, aos 70 anos de idade, foi
processado em Atenas por não reconhecer os deuses da cidade e por corromper os
jovens. No tribunal, depois de ouvir a acusação, fez seu discurso de defesa, mas não
conseguiu escapar da pena capital e morreu envenenado. O acontecimento literário:
Platão, o discípulo de Sócrates quarenta anos mais novo, pouco tempo ou muito tempo
depois de assistir ao julgamento do mestre (não sabemos), resolveu recriar esse
discurso de defesa recorrendo a uma prosa e esforço de caracterização que poucos
escritores, desde então, conseguiram igualar. A defesa histórica de Sócrates virou a
defesa literária de Platão. Mais do que isso: no conjunto das cerca de trinta obras
platônicas, acabou se tornando a mais popular, curiosamente a única que não vem no
formato dialogado. Uma das explicações para essa popularidade seria o fato de a
Apologia se deter, como nenhum outro texto platônico, na compreensão profunda de
quem era esse seu herói Sócrates e o que ele representava enquanto figura filosófica.

Para muitos especialistas, o Sócrates da Apologia é em essência o Sócrates do


socratismo, da filosofia socrática, e não o Sócrates do platonismo. Platão, mesmo não
sendo repórter jornalístico, mesmo não tendo à mão um bloquinho de anotação nem
um gravador, teria registrado no espírito o que ouviu Sócrates dizer no tribunal e então
posto por escrito, da melhor maneira, o que foi aquela defesa, para deixar um retrato
adequado do mestre. Ainda para os estudiosos que pensam assim, esse Sócrates do
socratismo teria se transformado ao longo dos Diálogos. Se numa fase inicial, a fase
da redação da Apologia e de outros diálogos leves, Platão teria querido retratar a
atuação e a filosofia do Sócrates real, aos poucos, entretanto, ele teria se distanciado
da doutrina do mentor e criado a sua própria, motivo pelo qual seu personagem central
foi virando um Sócrates cada vez mais platônico e denso, até poder se transformar
enfim, numa fase última da redação dos Diálogos, num personagem passivo e
secundário.

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Reconheço, claro, o interesse e a fecundidade decorrentes dessa teoria, mas na
ausência de dados objetivos prefiro pensar de um modo alternativo. Prefiro entender
que a Apologia tem uma função nuclear nos Diálogos. É por causa do seu foco
contínuo na caracterização de Sócrates em primeira pessoa que ela pode ser tomada
como central no conjunto da obra de Platão, sem que nos preocupemos com questões
especulativas de datação. Por esse olhar, existe um só Sócrates nos Diálogos, esse
Sócrates é o Sócrates visto pelos olhos de Platão e a serviço da filosofia platônica.
Suas diferentes formas de atuar se explicam não por uma evolução linear no
pensamento e na vida de Platão, do socratismo ao platonismo, da juventude à velhice,
mas pelas necessidades internas de cada diálogo: conforme o tema e a abordagem, o
personagem Sócrates pode ser manipulado segundo diferentes facetas suas (e elas não
são poucas, nem facilmente separáveis), sem que ele se torne incongruente. Assim,
por mais que a intenção consciente de Platão tenha sido deixar um testemunho
histórico com a Apologia, isso não importaria de forma decisiva: na prática, ela é uma
obra que explica em linhas gerais o seu personagem Sócrates e como podemos
entendê-lo no interior do conjunto dos Diálogos.

Não é uma tarefa simples. Dá para dizer que a Apologia de Platão realiza um
movimento duplo, que embaralha e borra as fronteiras entre história e construção
literária. Por um lado, ela é, dramaticamente, retrospectiva: ilumina a atuação
pregressa de Sócrates na cidade, o comportamento que ele teve em Atenas por quase
meio século enquanto figura puramente oral. Mas, por outro lado, o movimento da
Apologia é prospectivo e tem um valor programático: revisita essa mesma atuação de
Sócrates, recriando-a por escrito, à luz dos Diálogos de Platão. Em outras palavras,
esse ato público final de Sócrates na Apologia, defender-se diante da cidade, vem
explicar “historicamente”, historicamente entre aspas, o que ele foi e fez, mas
sobretudo vem explicar filosoficamente e literariamente o que ele é e faz nos
Diálogos. Assim, esse ato público final é transformado num ato inaugural da filosofia
platônica, não inaugural no tempo, não porque teria sido uma obra da juventude de
Platão ou escrita antes das demais. É inaugural porque serve de porta de entrada e
congrega suas linhas de força.

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É importante a gente entender que significado adquire então, em Platão, esse ato
público final de Sócrates e como ele pode ser um ato inaugural do platonismo.
“Apologia”, apología em grego, é um simples discurso de defesa no tribunal, mas no
caso de Sócrates ela foi menos, e mais, do que isso. Não, no plano concreto, a apologia
de Sócrates não foi um pedido de desculpas, não teve nada a ver com apologize e
apologies em inglês, nem com o puro enaltecimento ou a defesa apaixonada, como no
uso em português da expressão “fazer a apologia de algo ou de alguém”. Sua apologia
foi, antes de tudo, e contra a expectativa geral, uma defesa que não aconteceu como
deveria. Pela outra Apologia que temos para ler, a de Xenofonte, ficamos sabendo
igualmente que Sócrates no final não usou a ocasião para se defender como todo
mundo fazia: foi meio arrogante e não se importou em marchar em direção à própria
morte. Platão, ao explorar esse mesmo elemento, ajuda a confirmá-lo como real. Só
que, ao contrário de Xenofonte, ele se apropria dessa altivez, coragem e intransigência
(que nunca saberemos como exatamente ocorreram) enquanto eixos de um grande
projeto em torno de Sócrates. Assim, o puro dado factual, de um Sócrates que se
recusou a se defender segundo as regras, é transfigurado pelo filosófico-literário.

É sempre bom lembrar que, no caso de Platão, esse Sócrates da Apologia, o Sócrates
às voltas com um processo penal, não é uma construção isolada. Quem está mais
familiarizado com os Diálogos sabe que a Apologia é só mais um capítulo na
dramatização maior dos instantes finais da vida de Sócrates. No diálogo Êutifron
temos um momento anterior: Sócrates ainda não foi julgado e preso, mas debate com
um adivinho o que seria piedade e impiedade, um dos tópicos da acusação que sofre.
Já o diálogo Críton fala de um momento posterior: traz Sócrates condenado e preso,
sendo instigado pelo amigo a fugir, mas rebatendo que deveria continuar a respeitar
os ditames da cidade pelos quais sempre se norteou. Finalmente, no diálogo Fédon,
reunido com os amigos mais próximos já no dia da execução da pena, Sócrates
discorre sobre a imortalidade da alma e expõe sua impassibilidade perante a morte,
antes de ingerir a cicuta e morrer de forma serena. Quando a gente lê cada um desses
diálogos e analisa suas questões, a gente percebe não só aquela ligação dramática
evidente com a Apologia, mas também uma conversa ampla, dinâmica e sincrônica,
que Platão estabelece entre as suas obras a partir das ações desse personagem central.

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Se é verdade que cada obra traz uma nova peça ao quebra-cabeça em torno do
personagem Sócrates, é só na Apologia, porém, que ele tem espaço para se apresentar
de forma demorada, e à luz da justiça e da circunstância limítrofe em que se encontra.

Um outro diálogo que ajuda a gente a entender o que significa o ato de Sócrates, na
Apologia e no conjunto platônico, é o Górgias, que não faz parte dessa sequência que
eu acabei de citar. A ação do Górgias seria, dramaticamente falando, anterior à velhice
de Sócrates. Górgias era um grande sofista da época, versado na retórica, a arte de
persuadir através das palavras. Essa era, e ainda é, uma grande capacidade humana,
com sérias consequências quando usada para fins não muito nobres. Retórica aqui não
significa falar de um jeito pomposo ou difícil, mas falar de um modo conveniente ou
dominador, segundo a ocasião ou o ouvinte, falar segundo um interesse e não segundo
a verdade. Os sofistas tinham fama de conhecer bem essa arte e ser capazes de ensiná-
la. No diálogo Górgias, Sócrates quer descontruir o valor desse tipo de retórica,
debatendo com o próprio Górgias e com dois seguidores seus.

Pois bem, mais de uma vez um desses seguidores, um ateniense, diz para Sócrates que
se ele, Sócrates, por causa da sua prática filosófica, fosse processado e condenado em
Atenas, seria incapaz de salvar a si mesmo; Sócrates concorda que não saberia de fato
o que dizer e que não teria medo de morrer assim. Trata-se, claro, de uma piscadela
de Platão. O personagem Sócrates do Górgias é o mesmo personagem Sócrates da
Apologia, é o Sócrates que “não sabe” se defender, o Sócrates justo, que não se curva
à conveniência retórica, que não adula seu ouvinte e cuja atitude deu origem à
expressão “O silêncio de Sócrates”. Não, Sócrates era uma verdadeira matraca, jamais
fechava a boca e não apreciava a postura do sábio calado e misterioso. Nunca iria se
calar no tribunal. O silêncio de Sócrates tem a ver com o fato de não ter se defendido,
ou de não ter se defendido apropriadamente, ou retoricamente. Sócrates não fez o que
99% das pessoas fariam na sua situação, acovardadas diante da morte. Não apelou ao
discurso que seria útil naquela circunstância. Não baixou a crista, não foi humilde, um
cão compungido. Mais ainda: foi altivo, sarcástico, irônico. Foi esse “erro” da defesa
de Sócrates que Platão explorou no centro da sua filosofia.

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Já na abertura da Apologia, a gente percebe bem que Sócrates é esse nas mãos de
Platão: numa longa tirada, ele afirma que seus acusadores só falaram mentiras, mas
que ele sim vai proferir verdades, mesmo sem poder recorrer à técnica dos discursos
de tribunal, que não domina. É uma tirada paródica. Todo réu abria assim seu discurso
de defesa, numa impostura típica já esperada. Só que quem abria o discurso assim
continuava assim até o final, jogando o jogo retórico para se safar da acusação ou para
atenuar a pena. Sócrates não faz isso: ele mostra que conhece bem esse e outros
esquemas retóricos, como a gente nota exaustivamente nos Diálogos, mas que no seu
caso a retórica está a serviço da verdade de fato e da reflexão, não de uma verdade de
ocasião ou da adulação. Essa é a condição da sua retórica filosófica, como dá para ver
numa outra obra platônica, o Fedro.

Ao brincar, portanto, com a retórica típica do tribunal, Sócrates a refuta e a expõe: já


sabemos que essa apologia não vai ser uma típica apologia. Vai ser a apologia do
mesmo homem acostumado a refutar e a expor imposturas e impostores de plantão. O
resultado concreto será pouca atenção aos dados formais da acusação, restritos
basicamente a um interlúdio dialogado com o acusador principal. O foco mesmo será
a apresentação da sua atividade filosófica, da qual esse ato público final, a apologia,
o discurso de defesa, será mais um exemplo. Essa palavra fundamental na Apologia,
“atividade”, prâgma em grego, mostra para a gente como a filosofia não é vista aqui
como um lugar de reflexão apenas. Não é só um modo de pensar. É sobretudo um
modo de agir, é “pragmática”. O dado moral, que a gente costuma associar mais ao
socratismo, não deixa de ocupar o centro da discussão filosófica em Platão, por meio
da figura de Sócrates e do destaque dado ao tema da justiça.

Da sua atividade como filósofo, um dos pontos de destaque na Apologia de Platão é o


que Sócrates fez com a informação dada pelo Oráculo de Apolo de que ele, Sócrates,
seria o mais sábio dos seres humanos. O relato que traz do exame junto a políticos,
poetas e especialistas em cada profissão, na intenção de descobrir como lidavam com
seus saberes, termina com a seguinte solução para a charada do oráculo: essas figuras
respeitadas acreditavam nos seus saberes, eram, num sentido lato, sofistas, enquanto
ele desconfiava do seu e dos outros. Essa era sua grande sabedoria. Só que expor

135
aquelas figuras vaidosas ao escrutínio geral não angariava simpatias. E ainda
angariava jovens seguidores, que eram “corrompidos” pelo método. (Não custa
esclarecer que o episódio do oráculo na Apologia vale menos como dado biográfico
do que como índice do posicionamento socrático básico nos Diálogos: exame e
autoexame, seja refutando ou doutrinando.) Existe ainda outro ponto importante na
Apologia, que se junta à atuação de Sócrates enquanto pensador que inspeciona e
provoca: a alusão oblíqua à imortalidade da alma. Ela tem a ver com o dualismo que
perpassa todo o pensamento platônico e se desdobra em diferentes campos,
interligando o sensível e o inteligível, o que a gente vê e o que a gente não vê. O
platonismo é um grande movimento paradoxal, que confere realidade maior ao que
não podemos tocar, que parte da forma concreta para chegar à ideia abstrata.
Desprezar o corpo em favor da alma é sinal disso. Ou a vida em favor da morte.

Todos esses elementos, exame, autoexame e idealismo, vêm na Apologia expostos


junto com outros mais, por meio de variações de estilo e postura, com Sócrates
transitando da seriedade à brincadeira, da profundidade ao escárnio, da defesa ao
ataque; são variações que explicam internamente o favor E a animosidade do júri, o
desejo de absolver E de condenar, a própria votação apertada, enfim, pela culpa de
Sócrates. Considerar-se um presente de Apolo para a cidade era soberba. Propor como
pena alternativa receber a maior honraria da cidade também. Só que soberbas de um
homem íntegro, disposto a ir até o fim. Mas cuja ironia não ajudava: afinal, ele era ou
não um sofista? É nesse retrato complexo que Platão investe, para no final mostrar
externamente, aos seus leitores, a grandeza de quem disse o que disse não no vazio,
mas como um ato público e político, na iminência de atar as pontas da vida terrena e
partir desta para melhor.

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#21 PINHEIROS DO PARANÁ NA POESIA DE PÍNDARO

“Capim do vale/ vara de goiabeira/ na beira do rio/ paro para me benzer/ Mãe d’água/
sai um pouquinho/ desse seu leito ninho/ que eu tenho um carinho/ para lhe fazer/
pinheiros do Paraná/ que bom tê-los/ como areia no mar”. Esses são os versos de
abertura da canção “Capim”, de Djavan. As imagens e os sons vão se somando, num
crescendo, estabelecendo associações inesperadas e ousadas, até o clímax final em
torno dos “pinheiros do Paraná”, comparados à areia no mar. Lidos apenas, são versos
bonitos, mas fica faltando a dimensão performática e musical que é a razão de ser da
canção, ainda mais quando o autor é alguém com um fraseado melódico tão rico como
Djavan. Para quem já ouviu “Capim”, a sonorização imediata desses versos, mesmo
numa leitura silenciosa, a transforma consideravelmente. Essa distância entre letra
morta e experiência performática musical é a distância que temos que percorrer para
entender melhor o que foi a poesia de Píndaro, produzida na primeira metade do
século V a.C. na Grécia Antiga. Em Píndaro, assim como em Djavan, as palavras
podem ter um sentido não muito transparente, elas podem construir um discurso difícil
e às vezes impenetrável. Nos dois, a compreensão pura e simples pode ficar relegada
a um segundo plano, enquanto o conjunto de sons e imagens se impõe como dado
primordial.

Píndaro é o maior representante da poesia coral grega; produzia poemas pensados para
serem dançados e cantados, poemas que não eram poemas, mas letras de música com
acompanhamento instrumental. Inseria-se assim em uma longa corrente poética
tradicional. Como em muitas culturas, os cantos corais estavam por toda parte da vida
grega, nas mais variadas cerimônias, públicas e privadas, em casamentos, funerais,
procissões e incontáveis festas religiosas e cívicas. Conforme o tipo de canto, formato,
integrantes ou ocasião, ele recebia um nome diferente: epitalâmio, treno, prosódio,
partênio, peã, ditirambo, hiporquema, encômio. É bom lembrar ainda que cada uma
dessas formas podia ser retrabalhada no interior das apresentações teatrais gregas,
cujas cenas eram separadas pela mesma estrutura coral tradicional. Só que para
entender cada um desses muitos tipos de canto, não adianta a gente se apoiar apenas
nos textos que temos à disposição para ler hoje, porque os textos eram performances,

137
e as performances davam a eles o real sentido. Era o contexto do canto que muitas
vezes explicava de que tipo ele era.

Sabemos que Píndaro produziu cantos corais variados, mas o que sobreviveu da sua
produção são as odes conhecidas como “epinícios”, quarenta e cinco no total, um
número assustadoramente grande de versos em comparação a outros líricos gregos
antigos. Os epinícios eram cantos corais bem específicos, voltados para a celebração
de uma vitória atlética em um dos quatro Jogos da Grécia Antiga. Mas ocasião e
momento da primeira apresentação eram menos importantes que a sobrevida que os
epinícios poderiam ter enquanto cantos representativos dessa vertente musical.
Píndaro criou odes para vitórias atléticas em cada um desses quatro Jogos gregos e
por isso elas recebem um sobrenome de acordo com o evento: as Odes Olímpicas, em
referência aos Jogos Olímpicos, em Olímpia, no Peloponeso, a cada quatro anos; as
Odes Nemeicas, em referência aos Jogos Nemeicos, em Nemeia, também no
Peloponeso, a cada dois anos; as Odes Píticas, em referência aos Jogos Píticos, em
Delfos, na Fócida, a cada quatro anos; e as Odes Ístmicas, em referência aos Jogos
nas cercanias de Corinto, no istmo que liga o continente ao Peloponeso, a cada dois
anos. Todos esses eram eventos atléticos, como os nossos Jogos modernos, mas eram
muito mais do que isso: eram cerimônias cívicas e religiosas, utilizadas para a
celebração de figuras políticas, de suas famílias e cidades, em conexão com figuras
divinas e heroicas ancestrais. Em todos os cantos, deuses e heróis têm papel central.

Pode parecer um pouco estranha a princípio essa ligação entre atletismo e religião.
Mas quando a gente acessa a mitologia grega, a gente vê como esses personagens,
deuses e heróis, podiam ser encarados quase como “protoatletas” por causa da sua
capacidade superior, ao mesmo tempo física e militar. É só olhar os exemplos dos
heróis homéricos participando de provas atléticas no Canto 23 da Ilíada e no Canto 8
da Odisseia. Ou o combate de Zeus contra os deuses mais antigos, apresentado como
uma vitória atlética num canto coral do Agamênon de Ésquilo. Ou as referências em
Píndaro a Héracles, o grande guerreiro grego, como o fundador dos Jogos Olímpicos,
na 3ª e na 10ª Ode Olímpica. O dado esportivo e o dado bélico são contíguos, como
atesta ainda hoje o nosso vocabulário moderno, e não por acaso uma das provas nesses

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Jogos era uma corrida de 400 metros com armas de combate. Só que quem procura
esse atletismo marcial espalhado nas Odes de Píndaro, nas odes voltadas para a
celebração de conquistas atléticas, se frustra. Há mais foco em elementos esportivos
nas passagens homéricas que eu citei do que em Píndaro. No Canto 23 da Ilíada, a
prova da corrida de carros, que é parte dos Jogos fúnebres em honra a Pátroclo, é
narrada com detalhes tão vívidos quanto os que vemos na famosa cena do filme Ben-
Hur. No Canto 8 da Odisseia, Odisseu participa do lançamento de disco de um modo
que nenhum atleta cantado por Píndaro o faz. O motivo para essa ausência dos
elementos esportivos ou de uma estética do esporte é que os epinícios de Píndaro não
estão preocupados com o evento atlético em si: ele é só um pretexto para tratar de
outros temas.

Quais são esses temas? Basicamente, celebrar, como eu disse, a figura e a família de
renome presentes por detrás da vitória, e não a prova vencida. A gente não tem aqui,
portanto, um simples atleta recompensado pelo seu esforço, nem a exaltação do feito
esportivo em si. O elemento central é o louvor político e moral. Sim, uma figura podia
ser objeto de louvor enquanto atleta e pelo seu feito atlético, como é o caso do general
Heródoto de Tebas, que Píndaro diz, na 1ª Ode Ístmica, ter participado, ele mesmo,
da prova. Mas vejam, trata-se de um general e o registro da sua participação direta
confirma que isso é excepcional: em muitas das odes, e nas mais conhecidas, o homem
louvado por Píndaro não participa da disputa, apenas a financia. É o caso de Hierão,
um tirano da época de Píndaro com poder na Sicília (essa ilha e todo o sul da Itália
eram então uma extensão ocidental da Grécia). Hierão é celebrado em quatro odes de
Píndaro, todas elas provas com cavalos, éguas ou mulas, onde quem suava de fato era
um jóquei ou cocheiro. Ser proprietário ou criador de cavalos era sinal de riqueza,
conferia status, e não podemos ignorar que um terço das odes falam de vencedores em
provas equestres.

Píndaro, portanto, assim como vários cantores do seu tempo, era contratado por
Hierão e por outros para fazer uma celebração política, o que tornava a sua atividade
artística uma atividade comprometida com o poder oficial e com a instituição do
patronato. Esse esquema é mais familiar para nós a partir da situação encontrada em

139
Roma durante o princípio do império, mas era algo comum na antiguidade grega, e
não devemos julgar negativamente os poetas por causa desse compromisso. Virgílio
e Horácio louvavam sim Augusto, mas iam muito além disso como poetas. Píndaro
louvou Hierão e outros, mas suas odes não eram um discurso míope, chapa-branca, da
mais pura adulação.

Píndaro quer falar nas suas odes, a partir do evento atlético e da encomenda recebida,
do valor humano, da capacidade humana, da areté, uma ideia muito cara aos gregos
antigos. Seus cantos, como afirma, eram “espelhos de belos feitos”. Por meio desses
feitos, simbolizados pelo acontecimento atlético, grandes homens mostravam sua
proximidade com o universo heroico e divino. É uma abordagem épica, elevada,
aristocrática, só que com o louvor dirigido a um humano contemporâneo, o dado
básico mais “lírico”, entre aspas, que falta na épica. Por causa desse enfoque e desse
parentesco com a epopeia, é muito comum encontrar nas odes longas narrativas
míticas, com a presença inclusive de diálogos (não, a ilustração mítica não é um
entrave só à leitura da poesia latina). Com isso, estende-se uma ponte entre o passado
e o presente, entre os principais de outrora e os de agora, que se beneficiavam de uma
suposta ligação ancestral com seres do mito. Todos pertenceriam então à mesma
linhagem e os epinícios comprovariam isso.

A essa linhagem celebrada caberia, claro, a demonstração de uma capacidade que não
estava desprovida do componente moral. Daí então a importância nas odes das
máximas e sentenças, que vão pontuando as mensagens que Píndaro quer passar
enquanto poeta-sábio que é: as reflexões giram em torno das glórias e dos limites da
existência humana, ao mesmo tempo próxima e distante da divina. Daí também o
movimento revisionista em relação às versões tradicionais dessas histórias: Píndaro
busca corrigir inverdades, para que elas não ferissem os preceitos de comportamento
e não manchassem as figuras envolvidas. Tudo isso ainda embalado numa valorização
do próprio canto e do próprio ofício do cantor como veículos fundamentais dessa
realidade. Mais de uma vez Píndaro fala dos monumentos perenes que está erguendo
com seus cantos, imortalizando as figuras celebradas e a si próprio. Essa propaganda
interna dos serviços prestados, de olho em novos contratos, casava-se bem com o

140
patronato. Num quadro assim, nem preciso acrescentar que esse universo é
exclusivamente masculino e elitista: as mulheres não têm vez, nem a existência
comum. As relações que são estabelecidas são relações entre homens apenas, e apenas
entre os que detêm o poder.

No final, Píndaro usa o esporte como ponto de partida, mas mal fala dele, porque quer
antes exaltar um figurão. Mas no final tampouco fala muito dessa figura, porque a
preocupação maior é com a ideia geral de valor e grandeza, e assim acabamos diante
de exemplos e narrativas míticas, passagens sentenciosas e a celebração do próprio
canto. Parece uma grande salada, e é. É difícil que uma ode de Píndaro prenda a nossa
atenção, porque ela vai de lá para cá, passa de um ponto a outro, às vezes sem aviso
prévio, criando um jorro de movimentos díspares. Horácio e Quintiliano falaram de
Píndaro como um rio e a gente poderia acrescentar que é um rio agitado, cheio de
correntezas contrárias. Em certa medida isso tem a ver com o próprio esquema das
odes, com os dançarinos indo de lá para cá.

A maioria das obras de Píndaro segue a estrutura típica do canto coral grego: dividem-
se em três partes, a estrofe, a antístrofe e o epodo. A estrofe pode ter ritmos e números
de versos variados de ode para ode, mas uma vez definido o seu esquema, ele é
reproduzido na antístrofe, servindo de orientação para os passos da dança. Na estrofe
os dançarinos vão para um lado e na antístrofe dele retornam, em ritmo idêntico. A
terceira parte é o epodo, uma estrofe final diferente das duas primeiras, que o coro
cantaria sem movimento. Esse conjunto de três partes podia ser repetido inúmeras
vezes. Tudo isso para dizer que o canto coral não ia de lá para cá apenas internamente:
o texto espelhava o movimento dos coreutas. Esse canto não era como uma estátua,
não era estático. Por isso também, a dificuldade de achar uma unidade não ocorre só
em Píndaro. Ela pode ser vista, por exemplo, em muitos dos longos cantos corais do
teatro de Ésquilo, um contemporâneo de Píndaro. Suas odes também podiam ser
caudalosas e ousadas. Não partiam do louvor de uma figura específica, mas traziam
elementos míticos e sentenciosos. E eram, como todo canto coral, tingidas pelo
predomínio do dialeto dórico.

141
Nesse universo, o que torna Píndaro muito especial é a visão de conjunto que temos
dessas quarenta e cinco odes, com a mais extensa delas, a 4ª. Ode Pítica, tendo catorze
tríades e trezentos versos, e a menor, a 7ª. Ode Pítica, tendo uma só tríade e vinte e
um versos. Mergulhar nas odes mais extensas e torrenciais é lançar-se a um esforço
de compreensão (com base na palavra impressa apenas) de algo que extrapolava em
muito, como eu disse, a experiência da letra isolada. As metáforas, alusões, transições
e imagens eram antes de tudo uma experiência musical e performativa, debilmente
transposta para a página, como acontece com a letra da canção de Djavan, “Capim”.
Quando citei antes sua abertura, deixei de comentar um procedimento usado por
Djavan que se assemelha um pouco a algo frequente em Píndaro: o fato de ele, Djavan,
explorar a sequência capim/ goiabeira/ rio/ bênção/ mãe d’água/ ninho/ carinho, para
no final dar o destaque aos pinheiros do Paraná, as araucárias imponentes que
encontramos no sul do país.

Esse procedimento se aproxima daquilo que, nos estudos literários, recebe o nome de
“priamel”, uma figura em que alguns termos são listados com o objetivo de destacar
um último, principal. É uma formulação ascendente que visa a um clímax. Na Ode
mais famosa de Píndaro, a que abre o conjunto dos epinícios, a 1ª. Ode Olímpica, é
esse procedimento que encontramos logo na abertura, com a sequência água/ ouro/
fogo/ sol/ Jogos Olímpicos. É com a minha tradução dessa abertura que eu quero
terminar, para deixar uma pista aqui da natureza abundante e desnorteadora da poesia
de Píndaro, se ela pudesse voltar a sair do silêncio: “Máxima a água/ o ouro qual rútilo
fogo/ à noite sobressai acima da imensa riqueza/ mas se atléticas disputas/ anseias
entoar caro coração / não olhes outro astro/ a brilhar mais cálido que o sol/ no ermo
azul do dia/ nem Jogos superiores aos Olímpicos anunciaremos”.

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#22 O DRAMA DO MACHO TRAÍDO NA COMÉDIA ANFITRIÃO DE
PLAUTO

Quando expressões ou palavras se integram ao vocabulário de uma língua por causa


de uma autora ou autor, a gente percebe sua influência e popularidade. Plauto faz parte
desse seleto grupo: “anfitrião” e “sósia” são hoje substantivos correntes no português
por sua causa. Tudo bem, esses termos foram introduzidos no português através do
francês, por causa da comédia do século XVII de Molière, Anfitrião. Mas o Anfitrião
de Molière era uma recriação da peça de mesmo nome de Plauto, e por isso não
erraríamos em dar o crédito final ao autor latino. Anfitrião é uma das vinte comédias
criadas por Plauto que sobreviveram, algumas com trechos faltando, mas no geral bem
legíveis e muito divertidas, um conjunto que revela um autor no pleno domínio do seu
ofício. Com Plauto, a progressão do diálogo entre os personagens, trabalhada desde a
Atenas do século V a.C. e muito explorada por Sófocles e Eurípides, ganha uma
naturalidade incomparável, para não falar do emprego que faz de uma extensa
variedade de metros, elementos que fazem dele um grande dramaturgo e um grande
poeta. É, portanto, um elo fundamental entre o teatro grego antigo e o nosso, de
Shakespeare para cá.

Plauto viveu em fins do século III e começo do século II a.C. Sua produção
corresponde a uma fase da literatura latina muito menos documentada em comparação
com os séculos posteriores. Por essa época, o poderio da república romana era
crescente na Itália e em todo o Mediterrâneo, ao mesmo tempo em que se mantinha
intacto o domínio cultural das declinantes pólis gregas. Os romanos, como outros
povos, se deixaram contaminar por essa ascendência helênica, recriando modelos
gregos e fundindo-os às suas próprias tradições. A gente sabe, por exemplo, que foi
um contemporâneo de Plauto, Lívio Andronico, que realizou a primeira tradução da
Odisseia de Homero para o latim. Temos menos de cinquenta versos dela, mas eles
bastam para mostrar como essa transposição era tanto um ato de reverência ao original
grego quanto um ato de apropriação e aclimatação ao universo latino. Esse mesmo
Lívio Andronico também compôs comédias e tragédias indo beber na fonte grega, um
movimento de transculturação cuja pujança ainda podemos testemunhar séculos

143
depois no teatro de Sêneca. Das várias possibilidades de criação teatral existentes à
época de Plauto, pouco ou muito marcadas pela influência grega, pouco ou muito
eruditas, ele parece ter se dedicado quase exclusivamente a uma já popular entre os
gregos, chamada comédia nova. A gente fala em “nova” para diferenciar essa
comédia da sua cara mais antiga, cujo maior representante na Grécia foi Aristófanes.

Aristófanes, como Plauto, só que uns duzentos anos antes, também fazia comédia em
verso, mas seu humor derivava da crítica social e política, que tinha tudo a ver com o
ambiente democrático da Atenas do seu tempo. O elemento mitológico e da comédia
privada não estavam ausentes, mas não ocupavam o primeiro plano. Ao longo do
século IV a.C., no entanto, a vida doméstica começou a assumir o lugar dessa sátira
no interesse dos espectadores, levando os comediantes a deslocar o centro de
gravidade das peças do público para o privado. A ação também foi ficando cada vez
mais coesa e dinâmica, deixando de dividir espaço com as partes cantadas, que foram
desaparecendo. Quando lemos a peça O Rabugento, de Menandro, a única que temos
da era grega pós-Aristófanes, produzida já no final do século IV a.C., ou seja, cerca
de cem anos antes de Plauto, quando lemos O Rabugento vemos com clareza a
mudança: o drama da vida privada tomou conta. Menandro traz os temas consagrados
pela comédia nova: paixões entre jovens, relações entre pais e filhos, desencontros,
mal-entendidos, reconhecimentos. É algo bem diferente, mas não completamente
novo. O que a gente nota no teatro de Menandro são elementos que estavam dispersos
não só na comédia, mas também na tragédia, e ganharam corpo a ponto de quase
constituir um gênero à parte.

A tragédia, principalmente com Eurípides, já mostrava a possibilidade de investir, em


uma das suas vertentes, no rebaixamento da ação, tratando os personagens nobres do
mito de um jeito mais íntimo e casual, além de explorar os sentimentos em situações
de descobertas, afastamentos e reencontros, quase como um melodrama. A própria
comédia de Aristófanes podia ser às vezes menos localizada e abordar seus temas de
forma mais universal, com foco nas relações pessoais. Tudo indica que ao longo do
século IV a.C. modalidades variadas continuaram a existir, com tragédias mais e
menos elevadas, comédias mais e menos políticas, com mais e menos coro, mas é

144
provável que aos poucos o formato cômico (contaminado pela tragédia de feitio
euripidiano) tenha se imposto como o mais popular. Assim teria se formado a comédia
nova, ao longo de várias décadas e de acidentes que não podemos determinar.

Foi esse tipo de expressão, mais descontraída e universal, que chamou a atenção de
Plauto e outros dramaturgos latinos, que resolveram levá-la aos seus palcos na Itália.
Foi com eles, com Lívio Andronico, com Névio, com Plauto, com Terêncio, que a
comédia nova ganhou a sua expressão definitiva, não mais em língua grega, mas
latina. Nesse ambiente ela recebeu o nome de fabula palliata, “história com pálio”,
isto é, história na qual os personagens usam não a toga romana de outras peças, mas
um manto tipicamente grego. O movimento de deglutição da cultura helênica que
encontramos é o mesmo exemplificado por inúmeros outros autores latinos que se
voltaram, ao longo dos séculos seguintes, para modelos gregos: na superfície é
praticamente tudo estrangeiro, roupa, cenário, história, nomes dos personagens, mas
abaixo da superfície é tudo muito latino. A comédia nova na sua versão latina era
apresentada, pitorescamente, como uma comédia grega, porque derivada da comédia
nova grega, mas na prática uma peça como Anfitrião era tão latina quanto o Anfitrião
de Molière era francês.

Pensar, como estudiosos pensaram no passado, que Plauto e outros apenas traduziam
para o latim as comédias de Menandro e seus contemporâneos, é um erro. Não adianta
pensar também que era um simples adaptador que fundia elementos de peças
diferentes para formar outra comédia em latim. Enxergar assim a atividade de Plauto
e outros é abordar de um jeito errado o significado da emulação nessa cultura. Virgílio,
na Eneida, era apenas um tradutor de Homero ou alguém que fundia trechos da Ilíada
e da Odisseia num só poema? Claro que não. A Eneida é profundamente romana e ao
mesmo tempo reverente a toda uma tradição poética alheia. Virgílio traduz sim versos
de Homero, refunde passagens homéricas, mas tudo isso vem costurado por um olhar
e projeto próprio. O parentesco com Homero é evidente, mas a Eneida está a léguas
de Homero e é outra épica.

145
O mesmo vale para Plauto. Pelas informações que temos, suas comédias iam buscar
temas, enfoques e personagens na tradição cômica grega. Mas o seu trabalho poético
é tão competente e, no detalhe, tão diverso do de Menandro, que só nos resta concluir
que traduzir e fundir originais gregos era apenas uma entre outras etapas de um projeto
maior e mais complexo. É o que dá para sentir lendo os próprios fragmentos da
Odisseia de Lívio Andronico, que eu já citei. Há uma evidente dimensão autônoma e
criativa nesse trabalho, como há em qualquer simples tradução. Mas a pecha
romântica do tradutor como imitador menor, ou do imitador como reprodutor
mecânico, toldou por um tempo a nossa apreciação de Plauto e de outros que tinham
uma relação dinâmica com os clássicos gregos. Assim é o Anfitrião de Plauto, sua
comédia mais conhecida: mito grego, ação na Grécia (só que em Tebas, e não em
Atenas, como era quase regra na comédia nova), figurino grego, nomes gregos. Mas
no processo de transposição dessa história tradicional, fartamente explorada em
tragédias e comédias, um processo que não sabemos como se deu, Plauto incutiu os
elementos típicos da sua cultura (prosódia, metros, valores, religião, humor), mantido
o viés universalizante.

O tema da história envolvendo Anfitrião e Alcmena é o adultério feminino. O rei


Anfitrião sai para o combate e na volta descobre, pela própria esposa, que tinha
acabado de passar a noite com ela. Isso só foi possível porque Zeus (ou Júpiter) dormiu
com Alcmena disfarçado de Anfitrião. O assédio não começara agora, já vinha de
antes. Como consequência, o deus a engravidou e o marido também: dessa relação
sexual dupla nasceram os gêmeos Íficles, filho de Alcmena com Anfitrião, e Héracles
(ou Hércules), filho de Alcmena com o deus. Hesíodo fala dessa união de Alcmena
fora do casamento no começo do seu poema épico O Escudo de Héracles, mas aí o
tratamento não pode ser cômico. A temática do adultério ou do possível adultério
também não é cômica nas abordagens que recebe, por exemplo, em Homero, em
relação a Helena, Clitemnestra e Penélope (embora seja incidentalmente divertida em
relação a Hefesto, Afrodite e Ares no Canto 8 da Odisseia). A coisa muda de figura
quando a comédia rebaixa esses personagens à existência comum e encara o drama
como um drama marcado por confusões sem maiores consequências. Foi o que fez

146
Plauto, adicionando graça à história de Anfitrião e Alcmena por meio do jogo com a
sobreposição de identidade e a intervenção do escravo, presentes em outras peças.

O motivo da confusão de identidades exemplifica de novo a exploração cômica de


algo sério. Como na visão mitológica deuses e deusas têm o poder da metamorfose, é
comum que a gente os encontre disfarçados: a identidade secreta ajuda a entrarem em
contato com heróis e heroínas sem serem descobertos. Só que dentro desse expediente
temos os casos de deuses que se transformam em personagens já existentes na história
– por exemplo, Atena se disfarçando de Telêmaco no Canto 2 da Odisseia e Íris de
Polites no Canto 2 da Ilíada. Nessas duas situações poderíamos nos perguntar o que
ocorreria se alguém de repente se deparasse com dois Telêmacos em Ítaca ou dois
Polites em Troia. Homero, claro, não quer fazer graça com isso. Mas esse foi o motivo
que deu o combustível central para a comédia Anfitrião, com Júpiter se disfarçando
de Anfitrião e o deus Mercúrio se disfarçando de Sósia, o escravo de Anfitrião. É o
motivo do duplo em dobro. Todos os desencontros, confusões e ironias decorrem
desse elemento básico, que Plauto manipula muito habilmente. O segundo motivo é o
da escravidão. Desde a comédia antiga o escravo se consolidava em torno de um
estereótipo, do homem esperto e covarde, fiel ao dono e maltratado por ele; aparecia
também em algumas tragédias, como personagem secundário, às vezes com certa
graça. Mas é com o fortalecimento dos elementos privados da comédia que essa figura
vai ganhando relevo. No Anfitrião essa figura é Sósia, muito presente e responsável
pela maior parte da sua comicidade, quase um palhaço dentro de uma história séria.

A peça se abre com uma fala de Mercúrio, o equivalente latino do deus Hermes. Entre
os gregos, a primeira cena teatral já tinha se firmado como um espaço de apresentação
da história. Eurípides fez isso em algumas tragédias, colocando em geral um deus para
dar as coordenadas gerais, como nas Bacantes. Mas Plauto, por causa do ambiente
cômico, vai além: o personagem que diz o prólogo, além de resumir a história, rompe
a ilusão dramática e fala da própria peça. É como se a parábase de Aristófanes, o
trecho no meio da comédia antiga onde ocorria esse tipo de quebra e onde o
dramaturgo falava com a plateia, tivesse sido deslocada para o começo. No Anfitrião,
Mercúrio, disfarçado de Sósia, dá sim as coordenadas fundamentais da peça, falando

147
abertamente do seu argumento, mas faz mais: afirma que a comédia vai ser uma
tragicomédia, por causa dos personagens nobres; brinca com a sua condição divina e
capacidade de mudar o que quiser; e dá ainda indicações cênicas sobre como
diferenciar um Anfitrião do outro e um Sósia do outro (tudo leva a crer que os atores
ainda usavam máscaras). Ou seja, é quase um diretor vindo antes do espetáculo para
explicá-lo. Mais para o fim da peça, Júpiter também vai quebrar a ilusão dramática
referindo-se à ação como uma comédia e atuando quase como um deus ex-machina
antes da hora. Não são elementos estranhos, se pensarmos que na abertura de outra
comédia de Plauto até o título da peça grega original é informado.

Depois disso temos cinco atos. No primeiro, Sósia dialoga com Mercúrio disfarçado
de Sósia e produz várias tiradas cômicas sobre quem seria agora, já que estava diante
de quem se dizia o verdadeiro Sósia. No ato seguinte, Anfitrião chega da guerra e
Alcmena não entende por que voltou se tinha acabado de partir: aqui o
desentendimento do casal é pontuado pelos inúmeros comentários do escravo, que
garantem a comicidade em meio à apreensão masculina frente à possível traição.
Júpiter volta disfarçado no terceiro ato para se aproveitar sexualmente um pouco mais
de Alcmena, e novamente Sósia entra com a comicidade ao conversar com o deus.
Parte do quarto ato se perdeu, quando a peça já se encaminhava para a conciliação e
resolução, e os dois Anfitriões eram postos frente a frente. No quinto e último ato
temos um desfecho rápido, com o anúncio de que Alcmena deu à luz os dois filhos, e
com Anfitrião aliviado. No fim, vemos que Plauto faz comédia aqui com um dos
maiores dramas masculinos: perder o controle sobre a mulher. A suspeita de que
Alcmena não teria sido casta é o tormento maior de Anfitrião, só atenuado pela
descoberta do truque de Júpiter e a garantia de que, afinal, Alcmena tinha traído
Anfitrião com ele mesmo! Ela ainda era a matrona virtuosa de sempre. E cumpriu com
sua função reprodutora. Tudo não passou de um pesadelo para Anfitrião. E de uma
piada para o patriarcado.

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#23 O TRESPASSE DO PODERIO PERSA NA HISTÓRIA DE HERÓDOTO

História, no singular, ou Histórias, no plural? Qual o título correto da obra de


Heródoto, o historiador grego do século V a.C.? Os dois são e isso diz muito sobre a
natureza desse trabalho. A palavra historíe, que quer dizer em grego “pesquisa”,
“investigação”, “inquirição”, aparece no singular logo na primeira frase do texto:
Heródoto afirma querer expor a pesquisa que fez sobre o conflito entre gregos e
bárbaros e as suas causas; o resultado dela é o seu livro, a sua História, que se
subdivide em nove longos livros. Só que essa história é apresentada de forma saborosa
e envolvente, combinando uma série de relatos que se assemelham a crônicas de reis,
com suas origens e campanhas. Lembra um pouco as narrativas das vidas de figuras
célebres e estabelece algum parentesco com o formato que veio a ser chamado de
“romance antigo”; são as Histórias de Heródoto. Nelas nos deparamos com falas de
personagens e divagações que vão além do dado objetivo e político-militar, com
sonhos, profecias, a atuação do destino e outros fatores divinos ou sobrenaturais. Ao
lermos Heródoto, nos sentimos em parte num ambiente muito homérico, épico, pela
sedução da prosa, das aventuras e dos protagonistas. Como na Ilíada, fala-se de uma
guerra entre gregos e não-gregos, com a intenção de se perpetuar a memória de
grandes feitos; os dois lados são apresentados de forma mais ou menos imparcial,
apesar da ótica helênica; o estilo é coordenativo, fluente e fácil de acompanhar; e o
resultado final é um painel monumental, baseado nas tradições orais.

Mas há limites para essa aproximação. A prosa de Heródoto não comporta, por
exemplo, a onisciência da Musa: o seu conhecimento, a despeito do empenho da
pesquisa, é limitado. Essa limitação, por sua vez, nos leva ao cerne de um método
investigativo: expor diferentes versões e o que se diz correntemente, mas
comparando-as, ponderando a razoabilidade dos relatos e em alguns casos checando
pessoalmente sua veracidade. É por aí que Heródoto se aproxima de Tucídides e é por
aí que voltamos a pensar, para o título da sua obra, mais em História, no singular, do
que em Histórias, no plural. Heródoto e Tucídides, como a gente sabe, são
tradicionalmente contrapostos enquanto historiadores, o primeiro sendo visto como
mais fantasioso e sem rigor em comparação ao segundo, mais seco e científico. Mas

149
o objeto de cada narrativa talvez explique melhor as suas diferenças. Tucídides, uma
geração depois de Heródoto, falava na sua História da Guerra do Peloponeso de
eventos contemporâneos e de eventos do mundo grego. O seu relato é de gregos contra
gregos, está restrito a um arco temporal menor, com os regimes das cidades variando
entre oligarquias e democracias. Tudo é mais homogêneo. Já Heródoto escreve pelo
menos cinquenta anos depois do fim das Guerras Médicas ou Greco-Persas, ou seja,
está limitado não só pelo distanciamento temporal, mas por um arco cronológico
maior, e ainda pelo trato com regimes monárquicos, culturas e lugares diferentes e
distantes. Tudo é mais heterogêneo. Isso ajuda a explicar sua objetividade menor. E é
isso que explica também um dos aspectos mais celebrados da sua obra: o enfoque
etnográfico, os vários desvios provocados pelo interesse em descrever outros mundos,
como o Egito ao longo do Livro 2, um dado de relativização ausente em Tucídides.
Em outras palavras, dá para dizer que cada um tem o seu próprio rigor e que esse rigor
tem a ver com o material diverso que abordam. Nesse sentido, ambos são meio
parecidos por serem antiépicos/antimitológicos, por se recusarem a aceitar o aspecto
maravilhoso sem contestação e por entenderem que seus relatos têm algo a ensinar.

Se a gente pegar, por exemplo, os parágrafos iniciais do Livro 1 da História de


Heródoto, vamos ver bem isso, a recusa do mítico em favor do dado mais concreto,
além de uma reflexão sobre o valor do seu trabalho. Nesse trecho, o historiador afirma
que persas e fenícios atribuíam o início das divergências entre Ocidente e Oriente a
sucessivos raptos de mulheres, até que Páris finalmente levou Helena, a mulher de
Menelau, razão pela qual os gregos, os primeiros nessa série a exigir reparação por
um sequestro, deflagraram uma guerra contra a Ásia, a Guerra de Troia. A partir daí
então a Grécia teria se tornado uma inimiga do Oriente. Heródoto gasta quatro
parágrafos para expor essas versões e então nos oferece a sua posição: não tem como
dizer se as coisas se passaram desse jeito, preferindo focar na figura que primeiro
atacou os gregos, o rei lídio Creso. Assim, apesar dos evidentes pontos de contato com
a épica, já de saída conduz seu relato do âmbito fantasioso e homérico para o da
investigação propriamente histórica. Mais ainda: no final dessa introdução, diz que
vai abordar igualmente grandes e pequenas cidades, assinalando que as pequenas
podem ter se tornado grandes e as grandes pequenas, o que revela o caráter transitório,

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instável e imprevisível das coisas humanas, entre elas as políticas. É uma lição
importante essa, de que tudo que é humano oscila e é cíclico, tem sua ascensão e
queda. Pode ter a ver com a derrota inesperada que Heródoto vai narrar do grande
poderio persa para uma força grega muito menor. Mas pode ser lida também como
um alerta a respeito do próprio império ateniense da época da redação da obra. Isso
porque em Heródoto, como em Tucídides, não existe uma história com “h” maiúsculo,
não existe aquilo que a gente entende hoje por “processo histórico”. Os
acontecimentos vão se encadeando e deles se podem tirar vários sentidos, muitas
vezes até uma moralidade trágica, mas há uma opacidade final na sucessão de eventos
que não pode ser resolvida, ou que pode ser reduzida apenas à ideia de que a história
humana se repete.

É o que vemos ao longo do Livro 1, quando Heródoto narra as histórias do já citado


rei lídio Creso e do persa Ciro: a Lídia foi o primeiro reino a submeter as cidades
gregas da Jônia, na costa do atual território turco, mas depois foi anexada ao poderio
persa. Essas duas narrativas têm sim elementos que chamaríamos, entre aspas, de
“míticos”, “ficcionais”, mas ainda assim permanecem em Heródoto como relatos
históricos: é o arranjo de tipo factual e de larga escala que predomina, como bem
notou Aristóteles no Capítulo 9 da Poética ao opor história e poesia. Se tivéssemos
obras dramáticas com Ciro e Creso para comparar, perceberíamos que a organização
do material acaba sempre por diferir, quando se passa do enfoque histórico para o
poético. Dá para ver isso quando pegamos o caso do rei Xerxes, retratado em prosa e
verso.

Junto com o pai, Dario, Xerxes é a figura central da dinastia persa na narrativa de
Heródoto, apesar de atuar apenas a partir do Livro 7. Ciro, depois de fundar o império
persa, é sucedido por Cambises. Com a morte de Cambises, quem assume é Dario,
que começa a pensar na expansão rumo ao continente grego: é Dario que constrói uma
primeira ponte para atravessar para Europa e combater os citas, e é ele também que
tenta invadir a Grécia desembarcando na planície de Maratona, numa batalha vencida
em 490 a.C. pelos atenienses. Com a morte de Dario, Xerxes ascende ao trono disposto
a vingar a derrota em Maratona para os atenienses e o apoio dado à revolta da Jônia

151
contra o domínio persa. É essa narrativa que tem início no Livro 7 da História de
Heródoto e que se estende até a sua conclusão, no Livro 9, formando o clímax da obra.
O Livro 7, o mais longo de todos, vai trazer a famosa Batalha das Termópilas, em 480
a.C., vencida pelos persas. O Livro 8, a batalha naval de Salamina, também em 480
a.C., vencida pelos gregos. E o Livro 9, a vitória grega em Plateias, em 479 a.C. É
curioso notar que no arco temporal geral da obra, a ênfase recai sobre o Oriente, com
essa sequência de reis que eu citei, Creso, Ciro, Cambises, Dario e Xerxes. Com
poucas exceções, é uma história do expansionismo oriental. A virada só acontece no
Livro 8, a partir do relato da batalha de Salamina. Ou seja, é uma história registrada
pelo grego, mas que subordina a Grécia a eventos asiáticos.

O rei Xerxes, ao assumir dentro desse processo de expansão, escancara sua ambição.
Heródoto explora bem isso na forma como dramatiza uma reunião dele com seus
principais conselheiros. O foco é o ataque à Grécia e a cena se passa na capital Susa,
atualmente um sítio arqueológico em território iraniano. Xerxes afirma querer
expandir os limites do poderio persa até o céu de Zeus e é estimulado pelo primo
Mardônio, que já tinha comandado uma expedição fracassada, anterior a Maratona. O
outro conselheiro é um tio de Xerxes, Artábano, que se coloca contra a decisão,
lembrando, entre outras coisas, do fracasso da expedição contra os citas (Artábano
tinha participado dela) e da possibilidade de um poderio maior ser derrotado por um
menor. Artábano diz que não é bom desejar muitas coisas e sua atuação mostra como
a tradicional figura literária do conselheiro ignorado podia ter lugar na reconstrução
historiográfica. Artábano mostra também que a fixação grega pela ideia da moderação
podia ser transferida sem problemas para outra cultura. Esse tipo de transferência
ocorre repetidas vezes na História de Heródoto, comprovando que seu olhar helênico
contaminava o acesso ao mundo oriental. Há alteridade sim no trato com outras
culturas, há etnografia, mas ao mesmo tempo ela tende a privilegiar uma forma de ser
essencialmente grega, num etnocentrismo que hoje julgaríamos inadequado ao
registro histórico. A visão moral de Artábano nesse e outros trechos o torna quase um
outro Sólon, o sábio ateniense presente no Livro 1, e ambos parecem se identificar
com a posição da voz narrativa de Heródoto.

152
Xerxes a princípio não ouve o ponderado Artábano, mas depois volta atrás. Só que
passa a ser visitado por um sonho recorrente que o manda marchar. A solução
encontrada é vestir Artábano com as roupas do rei e fazê-lo dormir no trono, para ver
se o sonho voltava a aparecer para o conselheiro. O sonho reaparece e a expedição é
sacramentada. Os persas atacariam por mar e terra. Heródoto passa aos preparativos
e os paralelos com a épica voltam a ficar evidentes, principalmente em relação à
grandiosidade da empreitada: lemos a lista com os nomes dos vinte povos que se
juntaram para o ataque do exército, além de um catálogo à parte dedicado à frota, com
uma ressalva bem homérica de Heródoto de que não registraria todos os nomes. Foram
quatro anos de preparação para resultar na maior expedição já vista, maior que a
própria Guerra de Troia. (Vale lembrar, entre parênteses, que esse motivo da
valorização da guerra em tela como a maior de todas voltaria a aparecer na boca de
Tucídides em relação à Guerra do Peloponeso.) No caso da expedição persa, Heródoto
fala em mais de dois milhões de combatentes, talvez um exagero. É com esse espírito
épico que Xerxes marcha e chega à região de Troia, onde ouve detalhes da antiga
guerra e faz uma oferenda a Atena, a deusa favorável aos gregos na ação da Ilíada.

A essa altura o rei está perto de realizar o feito que sintetizaria a grandeza da sua
aventura militar: cruzar o mar, com o exército, pelas pontes flutuantes que mandara
construir. O pai dele, Dario, já tinha feito isso, como eu disse, para atacar os citas,
criando uma ponte com naus interligadas por cabos, unindo a Ásia à Europa. Só que
sua travessia tinha sido no Bósforo, atual estreito de Istambul. Já Xerxes cruza pelo
Helesponto, atual estreito de Dardanelos, e não com uma, mas duas pontes flutuantes.
O historiador conta que o exército levou setes dias e sete noites ininterruptas para
fazer a travessia. Não foi a única proeza do poderio persa: Xerxes também mandou
escavar um canal através de um istmo para a frota passar, outra obra notável de
engenharia humana. Só que Heródoto, apesar das inegáveis ferramentas literárias, não
articula esses fatos, a meu ver, como sinais de uma possível húbris de Xerxes, porque,
como eu disse, seu enfoque é histórico e amplo. Todo o avanço do exército e as
batalhas principais travadas depois, Termópilas, Salamina e Plateias, são descritas
sem uma moralidade destacada e bem articulada pelo historiador, o que não quer dizer
que ela não esteja insinuada nas estrelinhas.

153
Aqui vale a pena explorar, nesse confronto entre poesia e história, o contraste com a
tragédia Os Persas, de Ésquilo, que reconstrói a derrota persa em Salamina, mas em
versos. Nela os personagens centrais são Xerxes, a rainha sua mãe e o fantasma de
Dario, o pai já falecido. A ação se passa em Susa e, como é comum em Ésquilo, é
mínima: pode ser resumida à chegada de um mensageiro relatando a derrota na batalha
naval e, mais para o fim, à chegada do rei derrotado. Tal como em Heródoto, temos
um sonho e grande destaque dado à travessia sobre o Helesponto, só que com as
relações entre forças humanas e divinas ganhando um significado mais claro. O
fantasma do pai, Dario, funciona como um contraponto a Xerxes, o bom rei em
oposição ao filho soberbo, algo ausente em Heródoto, e as pontes usadas para juntar
Ásia e Europa são tomadas como sinais claros de arrogância. Há um sentido dramático
e uma teodiceia explícita nessa história centrada nos persas, com o abuso de termos
do vocabulário moral grego. É um episódio histórico recente em chave mítica, sem
etnografia.

Sim, também em Ésquilo, como eu já disse de Heródoto, além do patriotismo, não


seria completamente descabido postular a presença de uma autocrítica embutida a
respeito do expansionismo helênico, como se ele devesse olhar para si mesmo ao
encarar a derrocada persa. O fato, porém, é que Ésquilo e principalmente Heródoto
ajudaram a sedimentar, em que pese a riqueza das suas obras, a narrativa oficial de
um Ocidente sempre em luta pela liberdade – um orientalismo muito conveniente,
repaginado até hoje, da antiga Pérsia à China atual, por diferentes potências
ocidentais.

154
#24 TEORIA SATURADA DE GRAÇA NA ARTE POÉTICA DE HORÁCIO

A Arte Poética de Horácio é uma pequena joia. São ao todo 476 versos hexamétricos
que discorrem sobre poesia. Sim, ao contrário de outros tratados, como a Poética de
Aristóteles ou o Sobre o Sublime de Longino, ambos em prosa, o de Horácio se
caracteriza por uma intensa elaboração verbal. Mas não se trata da elaboração de um
autor qualquer. Horácio, esse poeta latino do século I a.C., representa no imaginário
ocidental o equilíbrio poético supremo, a harmonia absoluta, aquela precisão artística
que, de tão exata, parece ter sido alcançada sem nenhum trabalho. Pois foi um poeta
assim que pôs por escrito, em versos, reflexões centrais sobre o ofício de se criar obras
literárias em verso. É, portanto, a arte poética de quem produziu grande poesia. Vistos
mais de perto, porém, Horácio e a sua Arte Poética talvez não correspondam
exatamente à caricatura construída ao longo do tempo, da visão racional de um poeta
racional. A poesia de Horácio é bem mais do que isso. Em português, quando
pensamos em Horácio é meio inevitável pensarmos também em Ricardo Reis, o
heterônimo de Fernando Pessoa. Com essa máscara poética Pessoa explorou os temas
caros à cultura antiga, como o famigerado carpe diem, numa linguagem latinizante.
Há economia e serenidade aí, o clássico enquanto paradigma plácido, mas falta na
postura reverente encarnada por Ricardo Reis a verve, a ousadia e a graça que são
marcas adicionais da poesia de Horácio. Falta Álvaro de Campos.

Talvez esse seja um enfoque mais adequado para a gente se aproximar da obra de
Horácio. São essas as qualidades que podemos encontrar nos seus quatro conjuntos
principais, as Odes, os Epodos, as Sátiras e as Epístolas, cujos temas e tons podem
variar bastante. Apesar de as reflexões sobre poesia não estarem ausentes em outros
poemas, especialmente em seis outras peças suas em hexâmetros, foi só na Arte
Poética que elas ganharam status de referência. Tradicionalmente ela é apresentada
como integrando o conjunto das Epístolas, as cartas em versos. Trata-se, no caso, de
uma missiva dirigida aos Pisões, ao que tudo indica uma família envolvida com o
patrocínio às artes durante o império de Otávio Augusto. Ainda assim, ainda que possa
ser alinhada ao conjunto das Epístolas, a Arte Poética é uma obra meio única no
interior da produção de Horácio: corresponde a um lugar onde ele parece experimentar

155
um didatismo meio sério, meio jocoso. É como se o poeta traduzisse toda a tradição
de reflexão sobre criação verbal, vinda desde os gregos, num aggiornamento que
descontruía essa tradição na mesma medida em que a repunha em circulação, com
uma estampa moderna.

Pra começar, a sua Arte Poética traz aquela falta de unidade e de previsibilidade que
encontramos também ao tentar seguir os capítulos da Poética de Aristóteles, escrita
mais de trezentos anos antes. Mas Aristóteles ao menos era sistemático em seu
método, havia um fio condutor mínimo alinhavando as seções. Já Horácio é errático
e cria uma harmonia desarmônica. Em Aristóteles, o desarranjo na ordenação do
material parece resultar do próprio processo de constituição da obra, através da junção
de anotações. Em Horácio, ao contrário, ela parece ter a ver com um movimento
deliberado de associação mais ou menos livre de um material vário. Em Aristóteles,
o efeito final da escrita é certa aridez filosófica. Em Horácio, o efeito é de uma
sofisticação sortida, num tratado que pode estar brincando com sua própria natureza.
O trecho inicial exemplifica bem esse ponto. Horácio abre sua discussão abordando
dois tópicos tradicionais da poética antiga, unidade e adequação, explorados através
de outro lugar comum, o paralelismo com a pintura. A imagem inicial é a de um
quadro que retrata uma mulher-cavalo-ave-peixe, uma espécie de hipocentauro
mitológico ainda mais bizarro e sem sentido. Como ela não despertaria o riso ao ser
contemplada, pela falta de nexo e conveniência? É um retrato deslocado, fora do lugar,
que nenhuma liberdade artística poderia justificar. Na sequência, Horácio fala ainda
de juntar aves a serpentes, tigres a cordeiros, de retratar golfinhos nas florestas e
javalis no mar, ou seja, de unir num todo coisas que são díspares ou contrárias. Só que
essa pletora de elementos desconexos e risíveis parece ser apresentada de uma forma
propositadamente solta, como se Horácio já estivesse anunciando, na abertura do seu
poema, que o seu tratado não é inteiramente um exemplo do que prega, como se
houvesse uma distância entre o que diz e o que põe em prática. É essa distância que
talvez confira um sabor todo especial à sua Arte Poética, e que serve de advertência
quanto a lê-la na mesma chave em que lemos Aristóteles. Encarada assim, essa obra
perde muito da sua sisudez habitual e desce do pedestal clássico redutor. O leitor

156
destinatário da epístola (uma epístola pintada sem os rigores do conjunto uno e da
adequação padrão) sorri do que Horácio diz censurar.

Essa hipótese de leitura aproxima a Arte Poética do gênero satírico latino, um gênero
que Horácio praticou em outros poemas e que acabou por se confundir, pela
semelhança fônica, com o universo do Sátyros grego, com “y”, o seguidor de Dioniso.
Satura em latim, com “u”, deu “saturar” em português, e na Roma Antiga
correspondia a uma vertente própria, marcada pela saturação de elementos, por uma
aglomeração desordenada e exuberante de enfoques. É o que vemos na continuação
do tratado. Depois de abrir falando da unidade e do decoro, Horácio transita entre
vários temas, desde o uso de palavras novas e a escolha dos assuntos, passando pelas
abordagens dos metros e dos gêneros, até o papel do poeta e de como inspiração e
transpiração se combinam na sua atividade. Em alguns momentos as ligações entre os
tópicos abordados são mais evidentes, em outros são mais caprichosas, num
ziguezague que só reforça a impressão de que a coesão não foi privilegiada.

Ao mesmo tempo, por meio dessa construção não-sistemática, certas passagens vão
ganhando autonomia e destaque e, junto com elas, apontamentos ora profundos ora
ligeiros, ora sutis ora escrachados. Por exemplo, ao falar da renovação de antigos
termos e da cunhagem de novos, Horácio recomenda bom senso. Contra o estereótipo
construído em torno do escritor clássico, ele não se porta como um purista e aceita,
por exemplo, a importação do grego, desde que sem exageros, como ilustra ao
empregar poemata para “poemas”. A discussão vai além do dado técnico, com uma
digressão sobre a vida e morte das palavras, numa analogia com a própria existência
humana. Há gerações de vocábulos que morrem, como nós e o que é nosso. Por outro
lado, há termos que voltarão à vida, num ciclo de transitoriedade que, exposto, traz a
filosofia das suas mais famosas odes.

Depois desse ponto, Horácio passa a um registro mais descritivo, ao formular uma
mini-história dos gêneros poéticos derivados da fonte grega. Isso o leva de volta ao
tópico da adequação, ao locus, ao lugar de cada um desses gêneros, e depois de volta
mais uma vez ao enunciado dos gêneros. É o didatismo errático, marcado pela

157
miscelânea, que nos faz lembrar dos Trabalhos e Dias de Hesíodo e das Geórgicas de
Virgílio, mas em outro tom. O curioso nesse miolo da sua Arte Poética é a atenção
maior dada ao teatro, algo que intriga até hoje os estudiosos. Se o próprio Horácio não
criou comédias e tragédias, se essas formas aparentemente nem eram populares na
Roma do seu tempo, por que dar tanta importância a elas? Por que não se voltar para
os gêneros lírico e jâmbico, aos quais se dedicou e que aborda rapidamente, sem entrar
em detalhes? E por que afirmar com todas as letras que vai ensinar o ofício do poeta
“nada escrevendo” ele próprio? Sobre escrever a respeito do teatro, parece que
Horácio está em parte simplesmente acatando a tradição que vem desde Aristóteles.
Na Poética do filósofo grego, a discussão se volta para a tragédia, com a épica
entrando como paralelo ou contraponto. Por outro lado, falar do teatro, e da épica por
tabela, é conveniente porque ajuda a dar destaque à ação e, com ela, ao elemento moral
em dois níveis, o da representação pelo ator e o da imitação pela plateia. O enfoque
moral, vale lembrar, estava no centro da sátira latina.

Mas dá para pensar também essa ênfase dada ao teatro, que não era a praia de Horácio,
como uma forma de reafirmar o tratado como um não-tratado, de reafirmar o seu
didatismo brincalhão e sem alvo concreto. Isso poderia ajudar a entender a afirmação
de que ensinava “nada escrevendo”. Como assim, nada escrevendo, Horácio, quando
a extensa obra que chegou até nós comprava que você escreveu muito? Na
interpretação biográfica, o “nada” aí seria uma referência a alguma fase da sua vida
em que suspendeu, momentaneamente, a produção poética. Só que Horácio, ao dizer
que nada escreve, não faz outra coisa senão escrever... Para outros intérpretes, a saída
seria subentendermos o adjetivo “teatral”, não escrevendo nada “teatral”: ou seja, ele
ensinava sobre a poesia dramática sem tê-la escrito. É uma solução. Só que, um pouco
antes de dizer que ensinaria mesmo não escrevendo nada, Horácio tinha brincado com
a figura do poeta enlouquecido, do poeta que despreza o labor poético, aquela mesma
figura que vai reaparecer no final da Arte Poética. Horácio afirma que, se ele próprio
não se purificasse da sua loucura, seria um poeta imbatível, e se autoproclama então
um criador gauche, torto, desastrado, sem as qualidades naturais para o ofício...

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Claro, é uma ironia, mas dentro desse espírito poderíamos ler em chave irônica
também o “nada escrevendo”, com o sentido de “não escrevendo nada de valor”, o
que incluiria a própria obra em que isso é dito. A falsa humildade faria parte de um
jogo, quase como se ele estivesse dizendo para não se levar a sério a Arte Poética, um
texto sem valor didático. Ela corresponderia a um tratado voltado para si mesmo e,
portanto, não ensinaria nada de fato. Podemos até, a partir da conhecida fórmula sobre
se combinar instrução e deleite, celebrizada por Horácio no poema, deduzir que
qualquer possível instrução presente nele está a reboque do deleite. Ou que o deleite
vem justamente da instrução poética pouco instrutiva, cheia de problemas, que fala do
que não devia falar, e deixa de falar do que devia. Talvez as cochiladas encontradas
em Homero sejam as dele próprio, Horácio, porque, como ele mesmo diz, não basta a
perfeição – é preciso envolver. Como na pintura, existe o quadro que, visto de perto,
na penumbra, agrada pouco, mas existe o que visto de longe, sob a luz, vai agradar
sempre. Pequenos defeitos não maculam grandes qualidades. A sua Arte Poética, da
mesma forma, se fosse um tratado rigoroso e sistemático, que exige, como a Poética
de Aristóteles, o olhar minucioso, seria medíocre.

Não por acaso, é com a imagem do poeta medíocre que o tratado se fecha. Depois de
mencionar Orfeu e Anfíon, as figuras míticas de músicos responsáveis por nos tirarem
da selvageria com a bela arte dos sons e das palavras, Horácio retoma a relação entre
dom e trabalho, entre gênio e arte, natureza e estudo. Na sua visão, ambos se
completam, mas o poeta precisa ser sobretudo são e não dar valor demasiado à
inspiração, à capacidade inata. Há toda uma tradição por detrás desse debate, e a gente
lembra aqui do Íon de Platão, o rapsodo possuído e sem arte. Para Horácio, o dom
precisa ser longamente trabalhado, como comprovam atletas e músicos. Só que a
preguiça impera, e a maioria confia no próprio furor divino para produzir “poemas
maravilhosos”. Os puxa-sacos e aduladores dos poetas de posse, diz Horácio, tudo
aprovarão e o mau recitador não deixará seu poema repousar pelos recomendáveis
nove anos. Na caricatura final, será um louco como Empédocles, ou melhor, como um
urso enjaulado, ou uma sanguessuga, que agarra um pobre ouvinte e o suplicia. Eis
que o poeta doido do final nos remete à pintura monstruosa e maluca, sem pé nem
cabeça, do início. Sanguessuga, a última palavra do poema, é o pé que nos leva à

159
cabeça, à mulher-cavalo-ave-peixe. São imagens que ficam na memória e unem o
poema em sua falta de unidade. Saímos dele sem levarmos qualquer nitidez de um
ensinamento articulado. A Arte Poética mostra-se um conjunto extremamente
complexo, de tiradas espirituosas, inteligentes e desconcertantes, que reforçam a
suspeita quanto ao propósito real de qualquer ensino sério. Talvez seja a lição de uma
arte didático-satírica, de uma arte horaciana, urbana e aguda, que vai além da aparente
retidão poética.

Lida assim, a Arte Poética serve tanto para criar poesia quanto os Trabalhos e Dias
serve para arar o campo. Sim, seus ensinamentos gerais radicam na tradição
aristotélica e têm a ver com a discussão de séculos sobre formas poéticas, mas o
registro pode ser gracioso e cheio de alusões irrecuperáveis a debates
contemporâneos. Nesse sentido, essa Arte Poética que se desconstrói pode servir,
adicionalmente, como alerta para as nossas próprias teorias sobre criação literária na
antiguidade greco-latina. Como a de que devemos nos aproximar de uma visão
original dos gêneros e dos seus modos de produção e recepção, e replicá-la para ler os
textos. Horácio, junto com outros tratadistas e poetas metaliterários, foi recuperado
como janela privilegiada para o entendimento de uma teoria antiga dos gêneros
poéticos, que precisaria ser resgatada para que finalmente deixássemos de ler
romanticamente os clássicos. Seria o recurso a um modo contemporâneo de abordar
literatura antiga, mais puro e correto, por causa do rigor histórico. Só que no final o
método fala mais de uma visão que é nossa: de uma visão que, se não for aplicada
com cuidado, é ilusória, porque no fundo traz uma construção nossa da leitura antiga,
não a leitura antiga em si. Esta não é recuperável. O temido cruzamento com visões
modernas é inevitável e desejável. É ele que ilumina nosso presente e nosso futuro.

160
#25 O SILÊNCIO DE ÁJAX NO SOBRE O SUBLIME DE LONGINO

No Canto 11 da Odisseia de Homero, Odisseu passa por uma experiência


extraordinária: entra em contato com os mortos. Entre esses seres que já morreram e
vagam no submundo está Ájax, o maior guerreiro na Ilíada depois de Aquiles. Ájax
está no Hades porque se matou, em plena Guerra de Troia, após não aceitar que as
armas do finado Aquiles tivessem sido dadas a Odisseu, e não a ele, Ájax, o herói que
de fato as merecia. Pois bem, nesse episódio da Odisseia, Odisseu se aproxima meio
constrangido da alma de Ájax e tentar puxar conversa, mas Ájax não diz uma palavra
ao ex-companheiro de combate e se afasta. É essa cena famosa que Longino, já no
século I d.C., rememora ao redigir o seu tratado Sobre o Sublime, para dizer que o
silêncio de Ájax em Homero é grandioso, e mais elevado do que qualquer discurso.
Um silêncio pungente, que diz mais do que mil palavras poderiam dizer. O passo
ilustra bem toda a discussão desenvolvida por Longino sobre esse conceito literário
central, o elevado ou o sublime. Mais ainda: além de fornecer um ótimo exemplo, o
recurso a esse paradoxo, o silêncio de Ájax enquanto expressão profunda da
excelência na arte verbal, mostra também a qualidade dessa obra discreta e aguda, o
Sobre o Sublime.

Claro, ao longo dela Longino vai se concentrar em vários exemplos onde as


intervenções de narradores e personagens, mais do que os seus silenciamentos, são o
foco, como numa passagem que cita do Canto 17 da Ilíada, em que o mesmo Ájax
dirige uma prece a Zeus pedindo que a névoa do campo de batalha fosse dissolvida, e
assim eles pudessem morrer vendo a luz. O crítico comenta que a cena é sublime
porque revela a nobreza de sentimento do herói, que, mesmo acossado, não pede para
viver, mas apenas o mínimo de claridade para demonstrar a sua coragem. Nos dois
casos, falando ou se calando, para Longino Homero faz o personagem Ájax produzir
um efeito de elevação. É essa a ideia que norteia o tratado de Longino, tò húpsos em
grego, em geral traduzido por “o sublime” a partir do adjetivo latino sublimis, “alto”,
“elevado”. Há outros termos correlatos que aparecem também no tratado, como tò
mégethos, “a grandeza” ou “grandiosidade”, tò megalophués, “a natureza grandiosa”,
he megalopsukhía, “a grandeza da alma”, he megalophrosúne, “a grandeza do

161
espírito”, he hupsegoría, “a elevação do enunciado”. Tamanho e altura são as ideias-
chave. Em uma ocasião Longino fala em profundidade, tò báthos, e também em
beleza, tò kállos, mas não destaca essas ideias tal como esperaríamos hoje. O sublime
é, como diz, o amor a tudo que é grande. É o que agrada sempre, e a todos, o que
suporta o reexame frequente e deixa uma lembrança forte. É algo que vai do autor ou
autora em direção ao seu leitor ou leitora: está na fonte e na recepção, produzindo em
quem consome uma obra a mesma grandeza de alma e dando-lhe a impressão de que
a produziu. É uma identificação que tem o poder de produzir êxtase e alegria. É uma
qualidade, no limite, quase indefinível das grandes obras. O sublime, se a gente quiser
resumir com a formulação mais famosa de Longino, é “um eco da grandeza
espiritual”, uma ressonância.

Por essa rápida apresentação, já dá para sentir que não estamos diante de um tratado
convencional. O Sobre o Sublime não traz o viés técnico-sistemático e prescritivo da
Poética e da Retórica de Aristóteles, nem o viés moral do Como Estudar a Poesia, de
Plutarco, para citar outros dois textos em prosa de natureza afim. Tampouco se
aproxima da liberdade divagante e sortida da Arte Poética de Horácio, composta em
versos. Talvez seja o único tratado antigo sobre criação verbal que lemos com uma
identificação genuína. O sublime dos tratados greco-latinos de retórica costumava se
associar a um entre outros estilos possíveis, era visto como uma dicção específica, por
exemplo, a dicção majestosa do teatro de Ésquilo, e não como um efeito geral. É esse
caráter ao fim difuso da elevação enquanto conceito estético, e a sensibilidade
acentuada que Longino revela para abordá-lo com inúmeros e variados exemplos, que
conferem ao seu tratado uma identidade muito própria. Há nele mesmo, igualmente,
uma busca continuada pela expressão sublime, como se ao fim o próprio crítico
pudesse se juntar àqueles autores e autoras que examina. Difícil negar o sucesso de
Longino na empreitada.

No seu conjunto, o tratado traz, claro, as marcas do seu tempo. Tem aquele formato
de epístola, com o nome do destinatário anunciado já no começo, um tal de Postúmio
Terenciano, e o espírito combativo do momento, porque para Longino tratava-se de
rebater o que havia dito um outro crítico, Cecílio, sobre o mesmo tema. Com a língua

162
afiada, Longino começa já por apontar para o fato de a obra do concorrente ter sido
“rasteira” ou bem “mais baixa” do que o assunto demandaria, uma indicação de que
o enfoque tem de estar sim à altura do tema... Ao longo dos quarenta e quatro
capítulos, conseguimos divisar o esquema geral da obra, apesar da presença de lacunas
que teriam atingido cerca de um terço da sua extensão total. A divisão do material se
dá entre uma introdução geral, nas sete primeiras seções, e a abordagem, em
sequência, do que chama de cinco “fontes” do sublime. O objetivo maior é iluminar o
verdadeiro sublime em contraposição ao sublime falso, aquele que ilude e só aparenta
elevação. Trata-se, portanto, de expor a tarefa básica de toda crítica, o julgamento, a
discriminação, com seus percalços e inevitáveis comprometimentos de toda ordem.
Para Longino, o problema da afetação em geral decorre da ânsia pelo novo a todo
custo. O resultado deficiente pode ir do inchaço, que afirma ser o defeito mais comum,
até o oposto do sublime, a puerilidade e a frieza, inadmissíveis para quem almeja a
elevação e a dignidade. Um terceiro problema seria a emoção fora de hora ou sem
medida, quando a “embriaguez” no interior de uma obra não encontra respaldo numa
resposta “embriagada” do público.

Em suas orientações iniciais, Longino também insiste que é um erro depositar todas
as fichas na própria natureza ou genialidade, na phúsis, em grego. O talento é central
sim para a criação literária e para a sublimidade, mas não se pode desprezar a técnica
e a aplicação, porque educam a natureza privilegiada. Sem isso a vocação corre o risco
de ser desperdiçada, de se tornar mero ímpeto, sem as devidas balizas que a contenham
e orientem. A ideia em si da combinação entre esses elementos não é nova, mas o jeito
mais ensaístico como Longino a aborda sim. Na realidade, tal como os tratados do seu
tempo, ele vai gastar grande parte da obra falando justamente das três fontes técnicas
do sublime, ainda que os trechos mais famosos e atrativos para nossa sensibilidade
moderna sejam aqueles em que discorre sobre as duas fontes naturais. O capítulo em
que elenca todas as cinco fontes é o oitavo e nele fica subentendido que a própria
fronteira entre o natural e o trabalhado não é tão clara. As duas fontes naturais do
sublime, diz Longino, são o contato com os pensamentos elevados e a emoção intensa.
Já as três fontes técnicas são a fabricação de figuras, a dicção ou expressão nobre e a
atenção à articulação e ao ritmo. A primeira fonte, a mais importante de todas, essa de

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se conseguir pensar grande, de se ter a grandeza naturalmente dentro de si, vem
indicada, curiosamente, por um aparente neologismo em grego, que poderíamos
traduzir por “pleniposse”. Essa é a fonte maior da elevação, a “pleniposse” em relação
aos pensamentos, algo que não pode ser forjado artificialmente, porque é inato. É a
visão própria de quem cria, os caminhos que escolhe para explorar nos textos, a
inventividade dirigida ao que é grande.

É disso que Longino vai tratar entre os Capítulo 9 e 15. Só que mesmo aí há, como eu
disse, elementos artificiais, artificiais no bom sentido, que ele acredita que ajudem na
elevação, como a amplificação, uma espécie de expansão deliberada da grandeza
existente, com base no recurso à quantidade e ao acúmulo de elementos. Outro ponto
destacado por ele nesse trecho é a imitação. O termo, a gente sabe, tinha uma larga
tradição crítica, significando representação em mais de um sentido, mas Longino
prefere explorar a ideia aqui de emulação. Na sua visão, que não era nova, a fonte
natural do sublime dentro de nós pode ser estimulada pelos exemplos dos nomes do
passado, tal como a sacerdotisa em Delfos que se deixava entusiasmar pelo sopro
divino ao fazer as suas profecias. Na busca por grandeza, devemos imitar os grandes
e assim arriscarmo-nos a nos tornar grandes como eles. Longino afirma, por exemplo,
que a magnitude de Platão tem a ver com o fato de ter imitado Homero, e que cada
escritor, ao buscar redigir sua grande obra, deve se perguntar: “Como Homero teria
dito isso?”.

Ao encerrar essa discussão sobre a primeira e mais importante fonte, Longino aborda
ainda o que chama, em grego, de phantasía, isto é, o uso de imagens, o poder visual
das palavras. Para ele trata-se de uma ferramenta que, mais uma vez, colabora com a
“pleniposse” natural. Aqui vale destacar a citação que faz da parte final do Édipo em
Colono de Sófocles, com o propósito de mostrar que o genial dramaturgo, ao explorar
tão bem o elemento imagético da morte do herói nessa peça, logrou reforçar sua
genialidade. É importante lembrar que a discussão sobre a outra fonte natural
elencada, o páthos, a emoção intensa, uma discussão que Longino diz ter sido omitida
por Cecílio no seu tratado, parece ter se perdido no Sobre o Sublime, ainda que ela
apareça um pouco misturada à reflexão sobre os pensamentos e em outros trechos. Já

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as três fontes ditas técnicas são as mais desenvolvidas, assinalando o parentesco com
a discussão poético-retórica antiga, como vemos em outros textos mais ou menos
contemporâneos, ambos do século I a.C., o Sobre o Estilo, de Demétrio, dedicado à
dicção, e o Sobre a Composição das Palavras, de Dionísio de Halicarnasso, dedicado
à articulação frasal. São tratados que abordam alguns elementos presentes já na
Retórica de Aristóteles, uma obra bem anterior, do século IV a.C.

Há sim vários apontamentos interessantes nesse trecho mais técnico do tratado de


Longino, como o uso de assíndetos, a escolhas de palavras e metáforas e o emprego
do ritmo dactílico na prosa. Mas não há como negar que são os capítulos situados no
terço inicial e um pequeno trecho mais para o fim que se destacam. O Capítulo 9, por
exemplo, traz digressões célebres sobre Homero. Primeiro Longino fala da enorme
semelhança entre deuses e heróis nos épicos, concluindo com a ideia inesperada de
que os humanos têm vantagem sobre os imortais porque, com a morte, têm alívio para
seus sofrimentos, enquanto a miséria divina é sem fim! É nesse mesmo capítulo que
ele propõe a famosa divisão da vida de Homero em duas fases, uma dedicada à criação
da Ilíada e outra à da Odisseia. Na Ilíada ele estaria no auge da força criativa, e o
poema de temática bélica demonstraria isso. Já na Odisseia estaria experimentando o
declínio, razão pela qual teria se concentrado em tantas contações de história. Não é
um enfoque romântico, de ler a obra a partir do seu autor. Eu diria que é o contrário,
imaginar que potência criativa está por detrás de épicos tão diferentes. Trocando em
miúdos, Longino está dizendo que o sublime e a grandeza natural de Homero sofreram
um arrefecimento e rebaixamento ao longo do tempo, o que levanta a questão
fundamental a respeito das forças criativas no curso de uma carreira produtiva. Nesse
esforço crítico, Longino trabalha com imagens elas mesmas sublimes, como quando
diz que na Odisseia Homero é comparável ao Sol poente ou ao rio Oceano a se retrair.
Outro Capítulo fundamental é o 10, onde cita o famoso poema de Safo, “Parece-me
Par”, e o analisa com sensibilidade, mostrando que o sublime pode decorrer de um
movimento de concentração de elementos essenciais. Vale citar também o Capítulo
12, onde compara Demóstenes e Cícero, o orador grego e o romano.

165
Sim, a paleta de Longino é ampla e inclui até o Gênesis. Seus ídolos são Platão,
Homero e Demóstenes, mas ele cita tragediógrafos, historiadores e líricos, misturando
prosa e verso, porque o sublime não se reduz a um gênero ou forma. O gênio também
não se nota, ele afirma, por uma impecabilidade absoluta – muito pelo contrário, como
vemos entre os Capítulos 33 e 36, quando avalia a relação entre perfeição e impulso
natural. Trata-se de outro lugar comum, de novo manejado com felicidade. A
conclusão é semelhante à de Horácio na sua Arte Poética. Há sim falhas em Homero,
mas quem preferiria ser o correto Apolônio de Rodes? Ser Baquílides em vez de
Píndaro? Íon de Quios em vez de Sófocles? Cuidado extremo e minúcia podem
apequenar uma obra literária. Grandes autores e autoras não são pequenos cursos
d’água, mas rios da magnitude do Nilo e do Danúbio, são o Etna em erupção. Não há
como resisti-los. Mais uma vez a gente nota que existe um circuito na visão de
Longino: a fonte que está no autor vai para a obra e contamina leitores e críticos. É o
circuito da sublimidade. Não há aqui o simples efeito da catarse, da purificação ou da
educação moral. Há antes um sentimento de proximidade com o divino,
proporcionado por nomes que Longino trata como heróis imortais, heróis em cuja
escrita criativa se localiza um desejo de glória.

Em parte, é uma antecipação do nosso olhar romântico, voltado para a genialidade,


para a inspiração e para a beleza que transporta. Mas há também a valorização daquela
imitação despudorada dos mestres que a nossa sensibilidade tende a digerir mal.
Falível ele mesmo, Longino não cita Virgílio e o Livro 6 da Eneida, quando a rainha
Dido ignora no mundo dos mortos o chamado de Eneias, o ex-amante que a
abandonou. O passo é uma das melhores mostras, senão a melhor, da sublime
recriação imitativa que Longino nos manda buscar.

166
#26 OS CAMINHOS DA TRAGÉDIA NAS FENÍCIAS DE EURÍPIDES

As Fenícias de Eurípides é uma tragédia surpreendente. Logo na abertura ficamos


sabendo que Jocasta não se enforcou depois de Édipo ter descoberto que não eram
apenas marido e mulher. Ela continua viva e morando em Tebas, assim como ele, que
se cegou e está confinado no palácio. Ficamos sabendo também que, como mãe, nessa
peça Jocasta vai poder intervir no confronto entre os dois filhos, Etéocles e Polinices,
que disputam o poder na cidade, uma participação que não fazia parte das versões
mais correntes dessa história. A ousadia na reelaboração dos mitos tradicionais virou
uma marca registrada do teatro de Eurípides e está ligada a uma série de outras
questões sobre o seu papel na trajetória da tragédia e da literatura grega antiga. O que
representa o fato de Eurípides ter repensado nas Fenícias a participação de Jocasta?
De a ter colocado junto aos dois filhos? De ter criado uma peça com onze personagens
e com quatro deles morrendo, dois recordes no conjunto das trinta e duas tragédias
que nos chegaram? De ter reduzido em muito a participação do coro e ter colocado
seus protagonistas para cantar?

As respostas a essas e outras perguntas passam por um trabalho de comparação entre


os três grandes tragediógrafos gregos, Ésquilo, Sófocles e o próprio Eurípides, os
únicos que podemos ler de um ambiente original heterogêneo e fervilhante. Temos
sete peças de Ésquilo e sete de Sófocles, enquanto de Eurípides temos dezoito
tragédias. Todas são da Atenas do século V a.C., recobrindo um arco temporal de
cerca de setenta anos, da mais antiga à mais recente. São poucas obras, frente ao total
que produziram individualmente ao longo das suas carreiras. É também uma
amostragem desigual, que nos leva a ver mais variedade em Eurípides. Se tivéssemos
dezoito de Ésquilo e dezoito de Sófocles, haveria uma variação semelhante? Difícil
especular, mas pelos conjuntos de cada um dos dois tudo indica que o teatro de
Ésquilo, o mais antigo, tenderia à homogeneidade, enquanto o de Sófocles, na prática
um criador da mesma geração de Eurípides, se encaminharia rumo à diversidade. Do
Édipo Rei ao Filoctetes, das Traquínias ao Édipo em Colono, já é possível discernir
sendas variadas em Sófocles, algo que não ocorre com Ésquilo, ao passarmos de Os
Persas ao Prometeu Acorrentado, ou das Suplicantes para Os Sete Contra Tebas.

167
É essa peça, aliás, Os Sete Contra Tebas de Ésquilo, que convida a gente a uma
comparação específica com as Fenícias de Eurípides, porque as duas tragédias
retratam a mesma ação central – Etéocles e Polinices, os filhos amaldiçoados por
Édipo, literalmente se matando na disputa pelo poder de Tebas. No rodízio acordado
entre ambos, Etéocles deveria ceder o comando a Polinices, mas ele se recusa.
Polinices se exila então em Argos e reúne, para atacar a própria cidade, um exército
com ele e mais seis comandantes. São os sete que marcham contra Tebas. Entre a peça
de Ésquilo e a de Eurípides teriam se passado pelo menos cinquenta anos, e o
confronto ajuda a gente a entender a história da tragédia, ou os modos como podemos
contá-la. Em Ésquilo, esse mito é apresentado no seu estilo característico: com pouca
ação e muita participação do coro. São apenas quatro personagens que têm falas, o
protagonista Etéocles, um mensageiro, um arauto e Antígona. O arauto e Antígona
aparecem no final, o que reduz a peça basicamente à figura do rei. Todo o clima é
construído em torno do diálogo dele com o coro e dos cantos corais, que ocupam 40%
do total. É a estrutura mais antiga do teatro trágico, hierática e estática, mas nem por
isso menos eficiente. Seu andamento lento tem conexão ainda com o fato de Ésquilo
construir suas peças como trípticos, ou seja, em três partes sequenciais. A “Oresteia”,
a trilogia formada por Agamênon, Coéforas e Eumênides, é a única que chegou até
nós. Mas Os Sete faria parte também de uma trilogia, seria a peça final depois de Laio
e Édipo. Na prática, era como se Ésquilo quisesse contar uma história só ao longo de
três movimentos, o que contribuía para retardar ainda mais a ação, que se desenvolvia
aos poucos, majestosamente, sem pressa e sem piruetas.

Quando a gente passa pras Fenícias, a realidade é outra. Eurípides não trabalhava mais
com trilogias, a ação tinha que se resolver dentro dos limites de uma única peça. Isso
já contribuía para sua aceleração. Mas Eurípides fez mais: para contar a mesma
história, recorreu, como eu disse, a onze personagens, entre os quais estão Jocasta,
Antígona, Polinices, Etéocles, Creonte, Tirésias e Édipo. Em contraste com o isolado
Etéocles de Ésquilo, temos aqui a família junta e interagindo. Ao contrário de Ésquilo
também, o coro, formado por mulheres vindas da Fenícia e a caminho de Delfos, é
secundário, com seus cantos ocupando pouco menos de 15% dos versos. São os

168
personagens que passam a contribuir com trechos cantados, os quais correspondem
nas Fenícias a quase um quinto da peça. De modo geral, não é difícil entender o que
aconteceu: o centro de gravidade da tragédia sofreu um deslocamento, na passagem
da geração de Ésquilo para a geração seguinte, de Sófocles e Eurípides. Com as peças
mantendo basicamente a mesma extensão total, o coro perdeu para a ação o seu
espaço. De um jeito que não podemos precisar, os tragediógrafos foram percebendo
as possibilidades dos recursos que tinham à disposição e respondendo, provavelmente,
a anseios do público.

O relato de Aristóteles no Capítulo 4 da Poética revela um pouco o que teriam sido


essas mutações: segundo ele, Ésquilo teria introduzido o segundo ator, e Sófocles o
terceiro, junto com a cenografia. São pequenos avanços que atestam a experimentação
e o desejo de potencializar o efeito dramático. Os atenienses se limitaram a esses três
atores na tragédia, não sabemos bem por quê, mas ter três já era uma vantagem – vale
lembrar que os atores usavam máscaras e que costumavam fazer mais de um
personagem. Tudo bem, o número por si só não diz muita coisa: na “Oresteia”, Ésquilo
já aparece usando três atores, porque temos cenas com três personagens que falam no
palco, mas isso não se traduziu num salto em dinamismo. Nas Fenícias, por outro
lado, três atores são responsáveis por onze personagens, e a interação viva entre três
figuras no palco é central. Ou seja: ter à disposição três atores, junto com outros
recursos, indicava a possibilidade de alargamento da experiência dramática, não sua
obrigatoriedade e uso exaustivo. A tragédia foi sim podendo se tornar dinâmica, com
mais ação, uma constatação inescapável, mas é perigoso construir, a partir daí, a ideia
de uma progressão absoluta e profunda, ao modo de um darwinismo literário.

Essa narrativa darwinista foi pensada assim: a tragédia do século V a.C. seria uma
terceira etapa no desenvolvimento da literatura grega, depois da épica e da lírica.
Como no caso desses dois outros gêneros, ela teria tido também, internamente, suas
subetapas de desenvolvimento, formando uma escada com três degraus, Ésquilo,
Sófocles e Eurípides, do mais “primitivo” ao mais “avançado”. Nessa abordagem, um
texto literário é sempre determinado por diferentes e sucessivos contextos, que se
refletem nas obras e as explicam. O dado da experiência sincrônica da recepção é

169
desprezado em favor de gêneses diacrônicas bem marcadas, onde residiria o sentido
fundamental. Enquanto historiografia, isto é, enquanto construção de uma história dos
gêneros poéticos e de uma história no interior de cada gênero (e mais ainda, no interior
de cada produção autoral), ela quer descrever um processo amplo em que o homem
grego marchou em direção à razão e à ilustração, a um quadro moral e filosófico mais
complexo e sólido. Assim, nessa narrativa darwinista, Sófocles não só veio depois de
Ésquilo, mas representou um avanço em relação a ele, que não podia ser só formal.
Da mesma maneira, Eurípides não deveria ser visto como coetâneo de Sófocles, mas
como um criador de uma outra etapa, mais uma vez com novo ganho.

Quem quiser ter uma noção mais clara dessa narrativa influente deve ler os capítulos
iniciais do clássico Mito e Tragédia na Grécia Antiga, de Jean-Pierre Vernant e Pierre
Vidal-Naquet, onde se fala, por exemplo, em “esboços da vontade” e outros conceitos
que, antes inexistentes ou incipientes, agora começariam a pipocar nas peças. Por esse
esquema darwinista, uma peça como as Fenícias não pode trazer a mesma história de
Os Sete apenas contada com outros recursos: ela deve ser mais, deve revelar outro
homem grego, outra relação com a religiosidade, outras formas políticas e de
pensamento. Não interessa a esse olhar ver uma estabilidade de fundo que ligue
Ésquilo a Eurípides e dar maior destaque a elementos temáticos, técnicos, formais.
Nessa narrativa, Eurípides é o autor de um racionalismo em marcha, e o próprio
desenvolvimento do seu pensamento tem que andar de mãos dadas, de algum jeito,
com a produção da sua obra.

O teatro de Eurípides é múltiplo e variado. Estilisticamente e tematicamente, bem


diferente do de Ésquilo, com certeza. Só que isso não o torna uma etapa avançada de
uma mentalidade em transformação. Quando Aristófanes, na comédia As Rãs,
estabelece uma disputa entre os dois no Hades, entre Ésquilo e Eurípides, está
brincando com esses enfoques e estilos diferentes. Os dois foram escolhidos porque
suportavam a caricatura enquanto tragediógrafos opostos, o mais antigo, austero, com
tratamentos tradicionais, e o mais recente, com um tom rebaixado e tratamentos
ousados. É um recorte e no mundo real nenhum dos dois era apenas os exageros que
Aristófanes explorou. Conforme eu disse, Ésquilo talvez seja mais homogêneo,

170
enquanto Eurípides dá testemunho, com suas dezoito tragédias, da multiplicidade de
sendas à disposição, potencializadas por novidades na dramaturgia ateniense. As
Fenícias enquanto peça exemplifica um caminho, o caminho de um teatro povoado
de personagens, movimentado e melodramático, onde o coro fica relegado ao segundo
plano. O rebaixamento do mito que ela deixa entrever aparece mais claro em outras
tragédias suas, algumas trágicas, outras trágicas mais por convenção do que por
conteúdo. Mas em Eurípides temos peças também no formato mais “comportado”,
entre aspas, como em Medeia e nas Bacantes, com poucos personagens e coros mais
participantes, peças que comprovam a diversidade e não precisam fazer parte de uma
linha evolutiva.

Se ficarmos com a narrativa darwinista e determinista, teremos que datar as peças e


lê-las em função de contextos imediatos e de um arco maior. É por onde a especulação
historicista tem ido. Mas e se abandonarmos a evolução – entre os gêneros, entre os
tragediógrafos, entre as peças de um tragediógrafo? E se as diferenças forem
decorrentes de idiossincrasias de estilos, diversidades de opções e de uma
transformação técnica que não se deu em linha reta, mas embaralhando modos e
soluções? E se Eurípides estiver imerso num mundo com as mesmas referências e
crenças de Ésquilo, e a percepção diversa que temos do seu teatro (e ela é um fato) for
resultado de novos mecanismos e dinâmicas? Dostoiévski e Tchekhov, separados por
quarenta anos em seus nascimentos, são etapas diferentes de um avanço do homem
russo ou dois prosadores de uma realidade em larga medida bastante igual, mas que
abordavam com enfoques e com esquemas narrativos diferentes?

É pensando nessas questões que eu quero voltar às Fenícias. Quando a gente a lê,
percebe por que Eurípides teve a ideia de reformular os elementos do mito: ele queria
mais ação e emoção, mais dramaticidade. Suas peças, com a redução opcional do coro,
podiam, se quisessem, recrudescer os choques entre os personagens, expor melhor
seus pontos de vista. É o que mostra um simples olhar panorâmico sobre essa tragédia.
Logo de cara temos Jocasta, viva, falando da trégua que conseguiu estabelecer entre
os filhos diante da iminente guerra. É a figura central do drama, um drama cujo título
deveria ser, aliás, Jocasta, como o do Agamênon de Ésquilo deveria ser Clitemnestra.

171
Sua longa fala na abertura fornece as coordenadas gerais da peça, num uso do modo
narrativo muito euripidiano, muito competente, como comprovam ainda as
intervenções de dois mensageiros na peça, cada um deles com dois longos trechos em
que reportam eventos importantes. Depois de Jocasta já surge Antígona ao lado de um
servo, e ela canta na expectativa do combate em cada uma das sete torres de Tebas. A
voltagem emocional sobe, não há delonga. O coro canta também, numa entrada
ligeira, e voltamos para uma sequência enorme, talvez o ponto alto da peça, com
Jocasta conversando com os dois filhos, o atual rei e o exilado, que entrou às
escondidas em Tebas para o encontro de conciliação arquitetado pela mãe. Em Os
Sete Contra Tebas não há Polinices nem Jocasta, mas aqui os três estão frente a frente.
Eurípides intuiu a riqueza dramática de uma cena assim e seu acerto é patente. É uma
passagem extraordinariamente rica, que termina com o bate-boca dos irmãos e
nenhum acordo. Depois, num drama incidental, temos a intervenção de Creonte, que
consulta Tirésias sobre algum vaticínio capaz de proteger Tebas do ataque. Tirésias
diz que a solução é sacrificar o filho de Creonte. Creonte se recusa, claro, mas o filho
ouve tudo e decide se sacrificar pela cidade. Em seguida ficamos sabendo do combate
e da morte de Etéocles e Polinices. Jocasta foi ao encontro deles e se matou sobre seus
cadáveres. Os três corpos são trazidos à presença de Édipo, que lamenta seu destino,
chama Jocasta de “mãe” e prediz sua morte em Colono. Antígona reaparece e
prenuncia o confronto com Creonte, que não quer que Polinices receba as honras
fúnebres. É um final semelhante ao de Os Sete Contra Tebas, mas a velocidade, a
junção de elementos, o melodrama, nada disso estava em Ésquilo. O homem grego
mudou? Pessoalmente, acredito que não. O teatro estava sim em mutação, mas essas
eram questões antigas (maternidade, maldição, patriotismo, tirania), vindas de
Homero e revistas à luz de novos recursos.

172
#27 MOMO E OS MEMES NA POESIA DE ARQUÍLOCO

No final do Livro 7 da sua História, Heródoto fala de dois espartanos que faziam parte
dos trezentos comandados por Leônidas, o destacamento que, apesar da gritante
inferioridade numérica, enfrentou com bravura o exército persa na Batalha das
Termópilas, em 480 a.C. O historiador relata que, como esses dois espartanos estavam
doentes, foi-lhes oferecida a possibilidade de voltarem para casa e não lutar. Um deles,
ciente da aproximação persa, mesmo debilitado envergou as armas e se dirigiu para a
batalha, onde foi morto. Já o outro preferiu voltar para Esparta, onde foi recebido com
desonra. Heródoto conta que ninguém lhe dirigia a palavra e passou a ser chamado de
covarde. Só no ano seguinte, na Batalha de Plateias, ele teve a chance de se reabilitar
aos olhos dos concidadãos. A narrativa fala ainda de um terceiro integrante dos
Trezentos, que aproveitou a oportunidade que teve de ser enviado como mensageiro
a uma outra região para também não lutar. De volta a Esparta, foi igualmente tratado
como uma vergonha para a cidade e acabou se enforcando.

Esses relatos, que iluminam a moralidade antiga, ajudam a entender melhor o espírito
dos versos de Arquíloco, um dos poetas gregos mais populares da antiguidade, que
teria vivido no século VII a.C. Não temos poemas inteiros dele, apenas fragmentos
sobre os quais os estudiosos se debruçam como peças de um quebra-cabeça
incompleto. Talvez o mais famoso desse conjunto mutilado seja o que fala do escudo
do guerreiro, com apenas quatro versos e em dísticos elegíacos, ou seja, organizado
segundo aquela sequência de duas linhas alternadas, uma com seis pés e a outra com
cinco (na verdade, dois pés e meio dobrados). Nele temos um eu poético sem nome
próprio que conta, nos dois primeiros versos, ter sido obrigado a abandonar num
arbusto o seu armamento para o inimigo, que agora comemora a conquista. Já nos
outros dois versos esse mesmo eu poético diz que, mais importante do que manter o
escudo, foi ter se safado, ter escapado vivo: o escudo que se exploda, ele poderá
adquirir um outro depois. Qual é a desse poema? Deve ser levado a sério? Ou seu tom
é jocoso? Ele funcionaria como um epigrama ou uma espécie de poema-piada, pela
brevidade e jovialidade? O que ele quer dizer?

173
É difícil precisar. Se pensarmos, porém, naqueles relatos de Heródoto na sua História,
a gente vai ver, ao menos, que o eu que fala nesse fragmento de Arquíloco pode ser
tranquilamente identificado com os guerreiros fujões. É como se Arquíloco estivesse
dando voz a esse comportamento covarde, não patriótico, o comportamento que não
traz, para quem o adota, a tão desejada glória. Mas por que dar voz a essa postura,
que, claro, era encontrável na vida real nas mais diferentes guerras, mas nada
recomendável para a vida de um homem? Na historiografia literária da Grécia Antiga
construída ao longo do século XIX e que se manteve viva em boa parte do século XX,
essa voz e outras nos fragmentos de Arquíloco representariam um sopro de renovação,
uma libertação da visão disseminada por Homero na épica, baseada na honra e no
renome, na ação memorável. Agora o sujeito grego podia enfim expressar sua
individualidade e subjetividade, seus medos e fraquezas, num registro mais realista.
Para essa narrativa, não importava muito que outras vozes poéticas, fora da dicção
épica, como as de Calino e Tirteu, também expressassem a mesma visão que
encontramos em Homero, ou que os próprios heróis homéricos manifestassem
diferentes subjetividades, com defeitos e fraquezas. Para o esquema evolutivo, era
preciso que a lírica de Arquíloco (e a lírica em geral) fosse uma expressão posterior à
épica e associada a transformações fundamentais ocorridas no mundo grego.

É por isso que um estudioso importante como Herman Fraenkel pôde se referir a
Arquíloco, num livro de meados do século passado, como “fundador”: para ele, na
esteira de uma tradição crítica forte no ambiente de língua alemã, cujo nome central é
Werner Jaeger e a sua Paideia, Arquíloco era aquele sopro de renovação e verdade.
Sua poesia trazia um conteúdo em ligação direta com o seu tempo e a sua situação,
um conteúdo contrário ao idealizado mundo das epopeias. Mas o que fazer com os
formatos fixos, as abordagens convencionais e os jogos genéricos, ou seja, com os
elementos perenes que poderiam pairar acima das circunstâncias imediatas? Eram só
detalhes menores para essa tradição crítica, apoiada na ideia hegeliana de um espírito
humano em gestação paulatina e gradual, nesse verdadeiro laboratório que era a
idealizada Grécia Antiga. Nessa Hélade, poder-se-ia divisar enfim, num recorte hiper
interessado, a admirável trajetória das trevas à luz que o homem branco europeu
acalentava, ele mesmo, percorrer.

174
Mas e se esses elementos perenes, as convenções e os gêneros, não fossem simples
detalhes? E se a voz que fala do escudo não fosse a voz de um Arquíloco repórter do
seu tempo em confronto com um tempo anterior, mas uma voz estereotipada, apenas
mais uma dentro de um universo de múltiplas vozes poéticas tradicionais, uma voz
com uma função específica, que continuaria tendo o mesmo valor quando ouvida por
um contemporâneo de Heródoto duzentos anos depois? É mais ou menos assim que a
gente tende a abordar Arquíloco hoje, sem a obsessão pelas ideias de formação e
desenvolvimento, sem encará-lo como fundador de um gênero novo em compasso
com uma nova etapa, mas antes como representante maior de uma vertente poético-
musical antiga que chamamos de jâmbica.

Poesia jâmbica é a poesia que a gente teria no fragmento do escudo. É a poesia do


gracejo, do ataque, da maledicência, da paródia, do feio, do torpe, do ignóbil, do
erotismo grosseiro, num espectro amplo que a abstração teórica não capta. Ao
contrário da poesia que eleva, que dignifica, que reflete com seriedade, como a
elegíaca, é a poesia que faz rir, que avacalha – uma parenta direta do teatro cômico de
Aristófanes produzido no século V a.C. Não custa lembrar que ambas, poesia jâmbica
e cômica, teriam sido analisadas por Aristóteles no segundo livro da Poética, que se
perdeu: ficamos só com a parte da poesia épica e trágica. A gente compreende bem
essa presença do ridículo na poesia jâmbica pela personagem Jambe, que aparece no
“Hino Homérico a Deméter”. Esse hino não é um poema brincalhão, mas na história
que ele conta uma tal de Jambe aparece para fazer uns gracejos e provocar o riso e
alguma distração em Deméter, a deusa que sofre por causa do rapto da filha Perséfone.
Esse nome Jambe não está aí à toa: para os ouvintes gregos, mesmo não sendo
especificado o que ela disse para Deméter, estava indicado, pelo seu nome
transparente, que ela tinha atuado como uma figura jâmbica.

Onde está então a graça jâmbica no fragmento do escudo, com o eu poético declarando
gostosamente sua covardia e desmerecendo o valor desse armamento? Acredito que
está em dois níveis: no riso que ele constrói em relação a esse objeto e no riso que os
ouvintes do poema experimentam em relação a esse eu sem noção. Na cultura grega

175
antiga, atravessada por intermináveis guerras, e em outras também, estava bem
sedimentada a ideia de que se portar como um covarde em combate era uma mancha
quase indelével. Nesse ideário, entre todos os armamentos, o escudo em especial
desempenhava um papel simbólico. Na militarizada Esparta, por exemplo, conta-se
que as mães, ao despacharem os filhos para a guerra, diziam a cada um deles, ou que
voltassem com seu escudo ou que voltassem sobre ele, ou seja, ou que retornassem
vivos após lutar com bravura ou que voltassem carregados sobre o escudo porque
morreram em combate. Nesse cenário, voltar sem o escudo era a pior opção, porque
transmitia a imagem de fraqueza, de derrota para o inimigo, que teria se apossado da
arma de um adversário em fuga pela vida. É a situação retratada por Arquíloco, só que
dando voz a esse eu derrotado, um eu que se vangloria do seu fracasso e da sua
pusilanimidade. O que esse eu está fazendo é avacalhar com o símbolo maior do
código de conduta bélico. Ele é, portanto, um eu jâmbico porque avacalha com o
“inavacalhável”. A avacalhação é ainda mais sentida porque ele brinca com isso,
chamando o escudo que deixou para trás de arma “inavacalhável”. O termo em grego
é amómeton, que significa, literalmente, “sem mômos”. Mômos, um filho da Noite na
Teogonia de Hesíodo, deu o “Momo” da expressão “Rei Momo” em português.
Significa em grego “sarcasmo”, “esculhambação”, “deboche”, “zombaria”,
“escárnio”. Na maior cara de pau, o eu poético de Arquíloco diz que não se pode
esculhambar o armamento que ele está esculhambando, o “grande” escudo.

Mas há um segundo nível importante aí, o modo como a voz desse eu é recebida pelo
público. Ela escarnece sim do escudo, mas o retrato final delineado pelo fragmento é
alvo, por sua vez, do escárnio de quem entra em contato com ele. O eu poético debocha
do escudo, mas o ouvinte ri desse eu que ri do escudo. Numa dimensão psicológica, é
inegável que a expressão dessa covardia podia funcionar como um alívio ou válvula
de escape para muitos que sentiam, ou temiam sentir, os mesmos medos e desejos,
mas numa dimensão social o efeito tinha que ser o contrário, incentivar não a covardia
e outros eus como esse de Arquíloco, mas a ojeriza à covardia. Lendo assim esse
fragmento de Arquíloco, ele deixa de ser uma voz autêntica e nova, o fundador
incendiário de uma realidade mudada, para se transformar no cioso mantenedor da
ordem tradicional. O ataque interno aos valores correntes, concentrados na imagem

176
do escudo, é externamente “atacado” no momento da recepção. No final, dou risada
de quem dá risada do escudo. A poesia jâmbica, portanto, não queria rir de tudo e de
todos para instaurar uma nova ordem: ela queria gracejar para dessa maneira reforçar
e solidificar a ordem vigente. Existiria até, para muitos estudiosos, uma dimensão
religiosa nessa vertente jâmbica. Não seria algo estranho, porque as expressões
poéticas na Grécia Antiga nem sempre eram separáveis dos cultos. Pelo fato de Jambe,
como apontei, aparecer numa história envolvendo Deméter, é possível relacionar a
poesia jâmbica ao culto dessa deusa, quando então se abriria espaço para a fala
vergonhosa. Dá para pensar na relação com o deus Dioniso também, a partir do lado
satírico e dissoluto do seu culto.

Tudo isso, infelizmente, aparece de um jeito muito magro nos fragmentos que temos
de Arquíloco. Em alguns deles, o eu poético pode associar o universo da lança guerreia
e da vigília à ingestão de bebida alcoólica, numa formulação aparentemente
provocadora, pela qual se retrata o contrário do recomendável, como no fragmento do
escudo. Em outros é o espírito briguento do eu poético que vem à tona, porque o que
se afirma é a necessidade do revide, em especial de se pagar com um mal o mal
sofrido. De novo, parece incendiário e contestador, mas por trás dessas linhas está a
boa e velha moral antiga. Atacar quem agiu de modo indevido tem tudo a ver com o
espírito jâmbico – mordaz e conservador. As coisas devem permanecer no seu lugar,
não podem ser subvertidas. Isso explicaria também a presença de fábulas com animais
em alguns dos fragmentos, por causa do espírito moralizante que as uniria à poesia
jâmbica.

Esse devia ser ainda o espírito presente nos poemas de Arquíloco que falavam de um
pai e sua filha. Temos só pedaços do que teria sido essa história ficcional a serviço de
uma tradição poética. Dos fragmentos dá para depreender que o pai tinha prometido
a filha ao eu poético “Arquíloco”, Arquíloco entre aspas, mas que depois voltou atrás,
rompendo o contrato firmado. Os poemas trariam então ataques violentos à família,
em reação ao descumprimento do combinado. Como resultado, pai e filha teriam se
enforcado, o mesmo destino daquele espartano que fugiu da Batalha das Termópilas,
provavelmente pelo mesmo motivo, a vergonha diante da comunidade. O riso, na

177
poesia jâmbica, vinha desse dedo apontado na direção dos desviantes, e as estratégias
podiam ser muitas. No mais longo fragmento que temos para ler de Arquíloco,
presente num papiro que os especialistas chamam de “Papiro de Colônia”, vemos uma
delas: o eu poético assedia a irmã da jovem prometida pelo pai, só para se vingar, e
ainda aproveita para difamar a sua ex-futura esposa.

O machismo vinha junto com o conservadorismo nessa moral misógina, e tratar como
puta a mulher que não cumpriu com suas obrigações fazia parte do pacote. Ajudava a
plateia masculina a rir, como a comédia de Aristófanes fazia rir também com seus
preconceitos. É esse mecanismo comparável ao do meme, da ridicularização do que é
estranho e inaceitável para determinado grupo social, que estrutura a poesia de
Arquíloco. Não só a dele, mas também de outros nomes, como Hipônax e Semônides,
este último autor de um poema extenso em que faz a caricatura de diferentes tipos
femininos, associando-os a diferentes animais. É o machismo do mito de Pandora
elevado à décima potência. Como toda piada, não tem graça para os grupos
ridicularizados ou oprimidos, mas tem graça para a visão dominante.

Arquíloco não fazia poesia jâmbica porque era engraçado e transformador, porque
tinha uma língua ousada que lhe rendia inimigos. Ele fazia versos escarnecedores
seguindo um costume, uma tradição. E por essa tradição tinha de ser pikrós, um
adjetivo que fala não só de quem é ácido ou amargo, mas também de quem pica,
cutuca, perfura. Era censurando que a derrisão reforçava, subliminarmente, a coesão
social. Dá para perceber, assim, que Arquíloco era um antípoda de Píndaro, o poeta
coral do século V a.C. Píndaro, com seus epinícios, vivia para o louvor, para o
enaltecimento, para a glória. Por isso mesmo só poderia afirmar, na sua 2ª. Ode Pítica,
que desejava ficar bem longe da maledicência e da censura que caracterizavam
Arquíloco. Um era a abelha com seu favo de mel. O outro, o ferrão da vespa.

178
#28 A PROSA ESPECTRO-DO-BELO NO FEDRO DE PLATÃO / Parte 1

Como criar o mais belo artefato verbal no formato escrito? E que valor dar a ele? Essas
parecem ser duas questões centrais no diálogo Fedro de Platão. Ele as levanta
enquanto as põe em prática, de um modo sorrateiro e sedutor, num ilusionismo
desconcertante poucas vezes visto. O grande filósofo nunca pareceu tão à vontade no
papel de grande escritor como aqui. E ignorar esse aspecto fundamental jamais trouxe
tantos prejuízos, como traz no Fedro, para a compreensão da esfinge platônica. Platão,
claro, é um filósofo, um pensador. É assim que ele tem sido encarado há mais de dois
mil anos. Mas Platão é também um exímio prosador, uma qualidade que todos que se
debruçam sobre a sua filosofia reconhecem sem pestanejar, ainda que lhe deem no
final um papel secundário. Só que Platão não é apenas um grande pensador que calha
de ser um habilidoso escritor, tal como Claude Lévi-Strauss em francês, Sigmund
Freud em alemão ou Sérgio Buarque de Holanda em português: Platão é ainda um
grande ficcionista, e esse terceiro dado é meio que sistematicamente ignorado pelos
que interagem com a sua obra.

Platão não escrevia tratados onde expunha diretamente, numa prosa burilada e
variada, sua doutrina: ele imaginava cenas com personagens reais e inventados, a
debater temas variados, por meios dos quais uma filosofia difusa e móvel ia sendo
descortinada, sem ponto de partida nem de chegada. Nessas cenas o personagem
central é Sócrates e Platão nunca aparece. Efeitos de caracterização, atenção ao
cenário, uso de metáforas e analogias, jogos de palavras, reapropriação da tradição,
emprego do humor – essas e outras ferramentas, que podemos encontrar em qualquer
bom ficcionista, são as ferramentas empregadas também por Platão à medida que
constrói um pensamento filosófico denso e desafiador. Ignorá-las pode representar um
erro grave de leitura, porque significa mutilar uma obra no que ela tem de essencial.
Significa dar a entender que há um conteúdo que pode ser extraído sem que a forma
seja levada em conta, a despeito do fato patente de Platão ter dispendido um esforço
gigantesco para atrelar esse conteúdo a uma forma. Expressão e substância são irmãs
siamesas em Platão, uma não sobrevive sem a outra. Pois é essa espécie de mutilação

179
que tem atingido também o Fedro, de um jeito grave, porque, como eu disse, o Fedro
é um diálogo que fala abertamente sobre a construção de um texto.

Esse problema de se ler Platão sem levar em conta todo o seu investimento literário,
focando só no conteúdo filosófico, fica bem ilustrado no Fedro pela atenção maior
dada ao segundo discurso que Sócrates profere nessa obra. Para quem não conhece o
Fedro ou não se lembra da sua estrutura, ela é assim: primeiro Fedro, o interlocutor
de Sócrates, lê um discurso do orador Lísias sobre eros, o amor. Sócrates, em seguida,
tenta fazer ele próprio um discurso na mesma linha, mas no meio do caminho se
arrepende e elabora um segundo discurso, em sentido contrário, o mais longo e famoso
dos três que aparecem na primeira parte. Na segunda parte do Fedro, os discursos
longos são abandonados e os dois passam ao formato dialogado ligeiro, para analisar
qualidades e defeitos dos discursos proferidos, o que é a boa e má retórica, e ainda sua
relação com a filosofia e a escrita. Essas duas partes bem distintas sempre intrigaram
os estudiosos: do que afinal o Fedro está falando, do amor ou da retórica? Platão está
fundindo num só diálogo os temas do Banquete (eros) e do Górgias (retórica)? Seja
como for, a despeito desse problema da unidade, o Fedro é estudado em função
daquele segundo discurso de Sócrates que eu mencionei, por sua conexão com o
idealismo platônico: nesse discurso Sócrates aborda a natureza da alma, explora sua
divisão em três partes e deixa entrever sua Teoria das Ideias. Pegando esses elementos,
e mais alguns outros da segunda parte sobre a dialética, já se torna possível juntar esse
diálogo a outros em que a doutrina de Platão está bem exposta, como a República e o
Sofista. Esse seria o “suco” do Fedro; o resto é bagaço. Mas e se boa parte da
substância estiver no bagaço? Mais ainda: e se o Fedro for, de todos os diálogos, o
que fala da inseparabilidade entre suco e bagaço? E se seu tema for essa unidade entre
forma e conteúdo? E se essa atenção dada ao segundo discurso de Sócrates ilustrar o
que o Fedro quer condenar?

Sim, o Fedro fala contra o sequestro da atenção devida ao conjunto e suas partes,
contra o sequestro da atenção devida à beleza da ordenação, aos volteios sutis que
todo grande texto exige que sejam levados em conta. É o tipo de sequestro de que
Platão tem sido vítima, ironicamente, na recepção a seus escritos. O Fedro, em outras

180
palavras, fala contra a leitura que vê apenas doutrina em quem foi muito além da
doutrina enquanto escritor único, equiparável aos maiores ficcionistas de todos os
tempos. Platão, com seus Diálogos, compôs organismos vivos e pulsantes, com uma
pletora de vozes a se manifestarem numa multiformidade de registros. Sua prosa é
monumental e assombrosa. Do discurso de defesa de Sócrates na Apologia, passando
pela paródia a uma oração fúnebre no Menexeno e pelo relato da criação do mundo
feito por Timeu no diálogo de mesmo nome, até chegar à fala de Protágoras no
Protágoras ou à de Diotima no Banquete (para ficar só em alguns exemplos), a
conclusão é uma só: essas e outras são todas construções verbais de Platão,
humilhantes demonstrações do que era capaz quando se tratava de recriar por escrito,
ficcionalmente, realidades e vozes do seu tempo. Ainda não chegamos nem perto de
ter a dimensão exata do que essa prosa representa e até onde ela alcançou se expandir.

Incontáveis elementos do Fedro, nos quais só vou resvalar aqui, vêm comprovar essa
competência literária ímpar. Não é apenas o fato de, já na primeira fala de Sócrates,
nos depararmos com um sucinto “de onde e para onde” dirigido a Fedro, assim, sem
verbo, como se Platão tivesse querido concentrar nessa fórmula todo a ressonância
filosófico-literária do diálogo que estamos prestes a acompanhar. É o fato ainda de,
depois desse cartão de visitas, Platão investir como em nenhum outro diálogo no
cenário onde a conversa se desenrola, e logo em seguida apresentar como discurso de
Lísias, orador e escritor famoso da sua época, um discurso que ele mesmo, Platão,
construiu imitando Lísias. Sobre a paisagem, ficamos sabendo, sem o recurso à voz
narrativa, só pelo manejo da conversa direta, como todo bom dramaturgo é capaz de
fazer, que os dois, Sócrates e Fedro, saíram para fora dos muros da cidade, e é numa
paisagem bucólica, junto a um rio e debaixo de uma árvore, no verão, que vão jogar
conversa fora. Quanto ao discurso de Lísias, é Sócrates quem percebe que Fedro o
carrega debaixo do braço, num folheto. Com ambos admitindo que são apaixonados
por eloquência, Sócrates não aceita que partam sem Fedro antes ler o que traz consigo.

É o que Fedro faz. O tema do discurso é eros, como é também nos vários discursos do
Banquete, outro diálogo onde Fedro está presente. Eros é o desejo ou o amor, mas não
o amor em geral ou nosso amor gay, hétero e bi: é antes a relação grega bem específica

181
entre dois homens, um mais velho, apaixonado, e um mais novo, objeto da paixão.
Essa relação homossexual era comum em Atenas: fazia parte do ambiente de
isolamento entre os gêneros, favorável, claro, ao “clube dos machos” retratado nos
Diálogos. O homem casado, em seu convívio com outros homens, podia se apaixonar
por um jovem que ainda não chegara à idade de casar. A relação deles era erótica e
pedagógica, tinha sedução e instrução. Era passageira também. O jovem, depois de
casar, iria atrás ele mesmo do seu amado, assumindo agora a nova posição. No
discurso de Lísias que Fedro lê para Sócrates no começo do diálogo, é dessa relação
que se fala, com um eu masculino se dirigindo ao jovem por quem se interessa, mas
disfarçando o interesse. Os planos se sobrepõem: persuasão, dissimulação e sedução
associadas a eros são também as mesmas associadas à retórica. Fedro é um admirador
de Lísias e acha o discurso o máximo, por um motivo principal: quem fala tenta
convencer o jovem a se envolver não com quem está apaixonado por ele, mas com
quem não está. Ou seja, Lísias, aproveitando-se de um lugar-comum, que associava
paixão a loucura, Afrodite a insensatez, vai contra o olhar padrão, defendendo que
nessa relação é melhor ter um não apaixonado do que um apaixonado. O fato de Lísias
usar, aos olhos de Fedro, bons argumentos a favor dessa posição esdrúxula
comprovaria toda a sua capacidade retórica.

Sócrates, depois de ouvi-lo, diz que ficou atordoado com o discurso e delirou junto
com Fedro. O interlocutor logo detecta a ironia e a brincadeira típicas de Sócrates, que
já começa com sua costumeira autodepreciação, dizendo-se uma nulidade, um
ignorante, um leigo, sem deixar, no entanto, de apontar o lado retórico, negativamente
falando, do discurso, meio repetitivo e exibicionista. Fedro desafia qualquer um a
fazer um melhor, e no final, num ambiente de tensão erótica permanente, que envolve
Fedro e Lísias e Sócrates e Fedro, Sócrates aceita, como philólogos, um “amante da
palavra”, improvisar um discurso para concorrer com o de Lísias. Só que indica que
vai fazer isso cobrindo a cabeça, por causa da vergonha que sente. É nesse tom
farsesco, cômico, que ele faz uma invocação às Musas e começa o primeiro dos seus
dois discursos no Fedro. Em linhas gerais, o que Sócrates faz é defender a mesma
ideia básica de condenação da loucura do amor, por mais que seu discurso traga já
elementos filosóficos ausentes no de Lísias, como, por exemplo, a preocupação com

182
uma definição e uma melhor organização do pensamento. Apesar da brincadeira com
o estado inspirado com que estaria falando, dos jogos de palavra e da afetação geral,
no final o apaixonado continua a ser uma figura nociva e desagradável, que deve ser
evitada, como um lobo posto ao lado de um cordeiro.

Fedro, porém, reclama que Sócrates interrompeu o discurso no meio, deixando de


falar dos benefícios de se ter ao lado o homem não apaixonado, um movimento que,
só depois perceberemos, foi calculado. Sócrates, de imediato, responde apenas que já
começava a falar num tom épico, às portas do delírio, e ameaça partir. É aí então que
o seu sinal divino, a voz interior conselheira, o detém, cobrando que se retratasse. Seu
erro, ele percebe, foi ter feito um discurso deinós, hábil, terrivelmente hábil,
retoricamente hábil, um discurso simplório, obtuso, no qual faltava com a verdade:
Eros é divino e não pode ser visto como algo ruim. Os dois discursos feitos até então
podiam até enganar uma gente qualquer e adquirir certa fama, mas estavam longe da
verdade. Sócrates atribui seu primeiro discurso a Fedro e diz que o seguinte, o de
retratação, será de Estesícoro, autor de uma “palinódia”, um poema onde revia a
acusação de adultério feita a Helena para se livrar da cegueira punitiva.

O discurso seguinte é a palinódia que Sócrates oferece a Eros, ao Amor. Fedro, um fã


confesso da retórica e das piruetas discursivas, se anima com a perspectiva de Sócrates
defender agora o contrário do que tinha dito, e assim mergulhamos no famoso segundo
discurso de Sócrates, aquele que atrai a atenção maior no Fedro. Agora a loucura
amorosa é vista como uma bênção, ao lado de outras loucuras divinas, como a
produzida por Apolo na vidência e pelas Musas na poesia. Sócrates tece um grande
mito, comparável a outros que encontramos em Platão, e reformula a visão tradicional,
disseminada em Homero, dos binômios memória-conhecimento e corpo-alma. Aqui
no Fedro, Sócrates não só diz que a alma é imortal e está sempre em movimento, mais
ainda que vive um ciclo de reencarnações. Usando a célebre imagem da parelha alada,
ele afirma que toda alma humana é como um cocheiro a controlar dois cavalos de
índoles contrárias, o que dificulta nossas escolhas. Após ter tido contato no espaço
supraceleste com as formas essenciais, a alma sofreu uma queda, perdendo as asas e
ficando presa ao corpo. Sócrates vai argumentar que o sentimento da paixão é um

183
impulso, provocado pelo contato com a beleza física dos jovens, em direção ao belo
original antes divisado em diferentes graus por cada alma em seu voo. A alma
filosófica é aquela que vai controlar bem seus cavalos e não buscar a consumação
sexual com o rapaz desejado, mas recriar asas e se encaminhar para a rememoração
daquela experiência anterior e superior. Visto dessa maneira, estar apaixonado é
ótimo, porque o Eros divino vira um motor do conhecimento real, e não do sexo
carnal. O amor sexual vira convívio filosófico erotizado.

Fedro fica admirado com essa prosa sublime e sedutora e confessa que perto dela a de
Lísias é rasteira. Chegamos a pouco mais da metade do diálogo e vimos dois
apaixonados por discursos se esbaldando com eles – e com ótimos insights, aliás,
sobre a arte de amar, dignos de um Ovídio. O mestre em retórica Lísias foi bem
representado por Fedro, que leu o aparentemente insuperável discurso sobre os
benefícios da ausência da paixão numa relação amorosa. O risonho Sócrates se
mostrou reticente, mas montou seu costumeiro teatro e acabou fazendo uma defesa na
mesma linha, todo envergonhado. Só que depois se retratou e veio com uma fala
magnífica e arrebatadora, que dizia o contrário dos discursos anteriores. Será que
Sócrates continuava com seu teatro? Será que seu primeiro discurso era só um
exemplo da chamada erística, a vertente discursiva marcada pela disputa de quem fala
melhor sobre um mesmo tópico? E será que seu segundo discurso era exemplo de
outra vertente, a antilogia, onde o exercício consiste em falar o contrário do que tinha
sido dito, para mostrar que dá para se posicionar contra e a favor de um mesmo tópico?
Por que eleger eros como tema desses três discursos? Por que Sócrates e Fedro não
falam mais dele na segunda metade? Qual é afinal o tema que unifica essa obra
aparentemente confusa e como ele pode ilustrar o alcance da arte platônica? É disso
que eu falo na segunda parte.

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#29 A PROSA ESPECTRO-DO-BELO NO FEDRO DE PLATÃO / Parte 2

Foi Schleiermacher, o pai da hermenêutica e tradutor de Platão para o alemão, o


primeiro a tentar explicar modernamente onde estava a unidade do Fedro, a obra
dividida em duas partes que parecem desconectadas entre si – uma com três longos
discursos sobre eros e a outra dialogada e sem referência ao eros abordado antes. Obra
que se torna ainda mais frouxa com a atenção quase exclusiva dada ao conteúdo
filosófico do segundo discurso de Sócrates na primeira parte. Schleiermacher, dentro
do espírito do seu tempo, final do século XVIII e início do XIX, buscou enxergar a
produção platônica como um grande sistema, especulando sobre como suas obras
teriam surgido e se organizado. Com ele os Diálogos já não respondiam mais à antiga
disposição estática por tetralogias, artificial e incapaz de dar conta da construção do
pensamento em Platão. Dentro ainda dessa nova visão, alguns dos textos também
passariam a ser considerados espúrios, por não se ajustarem ao sistema imaginado, o
que deu início a uma investigação sobre autoria que, tal como a da evolução, perdura
até hoje. Pois bem, no sistema divisado por Schleiermacher, o Fedro figura como obra
primeira, inaugural. É com ela que Platão teria apresentado seu método, antecipando-
lhe as linhas principais. Na introdução que escreveu ao diálogo, a mais longa das
dedicadas a cada texto platônico traduzido, Schleiermacher defende que o filósofo
traz no Fedro, com o seu espírito jovial, um primeiro broto derivado da inspiração
socrática, primeiro mas já apto a fornecer os germes do conjunto que estava por
desabrochar e amadurecer.

Não importa muito que essa posição tenha sido revista depois pelos estudiosos, que
passaram a organizar a progressão da obra de Platão de jeitos diferentes e a situar o
Fedro como obra da maturidade. O relevante é Schleiermacher ter mostrado que,
sendo esclarecedor sobre a natureza do pensamento platônico, o Fedro não pode ser
reduzido ao tema do eros ou da beleza que desperta o eros, porque esse tema está
restrito à primeira parte. Apesar de os subtítulos tradicionais do diálogo chamarem
atenção para esses elementos, subtítulos como “Sobre o Amor”, “Sobre o Belo”, não
era essa a matéria do Fedro, porque sobre ela nada se fala na segunda parte. O tema,
na realidade, seria a incorporação da retórica pela dialética filosófica, e os discursos

185
da primeira parte entram apenas como exemplos, pontos de partida do argumento
maior. Os três discursos ou lógoi da primeira parte só fazem sentido se vistos da
perspectiva desse grande discurso ou lógos que é o Fedro, um diálogo que articula as
suas partes de uma forma explícita e harmoniosa. Nessa disputa tão grega e retórica
de discursos, é o Fedro o lógos vencedor, porque põe em prática os elementos que
prega. É a mágica que Platão faz sem nos darmos conta, numa construção “em
abismo”.

Sim, como eu disse, há já no plano mais superficial uma articulação explícita entre a
primeira e a segunda parte. Depois de Fedro ler o discurso de Lísias, depois de um
Sócrates envergonhado discursar na mesma direção, e depois de enfim se retratar com
uma grande alegoria sobre a alma, os dois interlocutores passam a debater o que é
escrever bem e mal. Ou seja, voltam-se para os produtos verbais recém-apresentados.
Quem põe um discurso por escrito, como Lísias, deve ser visto negativamente, como
um sofista? Aqui vale lembrar que os escritores de discursos em prosa, ou, para usar
o termo grego, os logógrafos, eram uma realidade no tempo de Platão, o século IV
a.C., como Isócrates, um concorrente cujo nome é citado de modo enigmático ao final
do Fedro. Vale lembrar também que nos Diálogos de Platão temos uma profusão de
discursos e esquemas retóricos, que posicionam, sem sombra de dúvida, seu autor
como um virtuose no ramo.

Mas a escrita deve ou não ser mal vista, como coisa de sofista? Sócrates diz que não,
o problema não é o escrever em si, mas encontrar o melhor modo, o melhor trópos
(em grego) de escrever e discursar. Todo o Fedro é, simultaneamente, uma discussão
e uma execução desse trópos adequado. É a atenção direta a esse elemento, no começo
da segunda parte, que dá aquela unidade, num nível imediato, ao diálogo. Só que antes
de passar ao exame desse tópico, e como que para exemplificá-lo, Platão faz Sócrates
se deter num mito inventado sobre as cigarras, originalmente figuras humanas agora
a serviço das Musas. Eram elas que faziam barulho dialogando acima das cabeças de
Fedro e Sócrates na paisagem bucólica. E reportariam às duas Musas ocupadas com a
filosofia se aqueles dois as estavam honrando devidamente. Com mais essa tirada

186
poética e divertida de Sócrates, passamos ao ponto principal: por onde é belo discursar
e escrever, e por onde não?

Nesse trecho, no formato mais conhecido das sucessivas perguntas e respostas, vários
pré-requisitos vão sendo apresentados. Conhecer a verdade e não se guiar pela simples
opinião é fundamental. A opinião, dóxa em grego, é como uma fakenews implantada
na alma, por ignorância, vaidade, interesse, simples comodidade etc., num mundo
regido por aparências. Devemos ficar em guarda: se alguém quiser aproximar e
confundir coisas diferentes, que o faça conhecendo a verdade. Sócrates diz a Fedro
que seus dois discursos foram um exemplo de como jogar com as palavras e seduzir
o ouvinte tendo-se o conhecimento da verdade, embora ressalve, no seu vezo típico,
não ser dotado na arte de falar... Mas será que se pode enxergar essa arte de bem falar
no discurso escrito de Lísias? Fedro relê a abertura do texto e Sócrates o interrompe
para apontar a ausência, já de saída, de uma definição de eros. Além do mais, o
discurso é confuso, sem coesão e unidade, lembrando o epigrama de Midas, cujos
quatro versos podiam ser trocados de lugar sem que o sentido se alterasse... Fedro não
gosta da gozação e eles passam aos dois discursos que Sócrates fez de improviso após
ouvir o de Lísias. Sócrates admite que seu segundo discurso é um imaginativo hino
mítico, uma brincadeira em que passou da censura ao elogio, mas chama atenção para
o fato de que adotou dois procedimentos importantes, a divisão e a reunião dos
elementos, o recorte em lados opostos, o direito e o esquerdo, e ainda a visão de
conjunto. Enquanto um apaixonado por esses movimentos, análise e síntese, Sócrates
se declara um dialético, um termo filosófico chave.

Mas se esse belo discursar é a dialética, onde fica a retórica, a arte que se ocuparia da
construção de belos discursos? O que fazer com as diferentes técnicas prescritas nos
manuais de eloquência, aqueles elementos que podemos encontrar, por exemplo, na
Retórica, o tratado do discípulo de Platão, Aristóteles? O que fazer com toda a
terminologia para designar partes e mecanismos dos discursos – como preâmbulo,
diegese, refutação e sobrerrefutação, diplasiologia e iconologia, eulalia e ortolalia? É
nesse trecho que desfilam comicamente nomes de mestres do ramo, como Eveno,
Tísias, Górgias, Pródico, Hípias, Pólo, Protágoras e Trasímaco. Sócrates defende que

187
os artifícios dos manuais são anteriores à arte de bem escrever e falar. Correspondem
à preparação, porque quem domina a arte retórica, além do pendor natural, deve ser
capaz de discernir cada um dos elementos relevantes ao seu argumento e com eles
compor um todo coeso, com conhecimento e aplicação – tudo que Lísias, referência
na arte retórica, não fez. Mais: é preciso dominar a “psicagogia”, a forma pela qual
orientar a alma do ouvinte. Esse controle do que chamaríamos hoje de “influência
psicológica” também era contemplado nos manuais, como dá para ver no Livro 2 da
Retórica de Aristóteles, que fala do manejo das emoções. Mas para Sócrates, de novo,
a retórica não pode ser simples feitiço ou envolvimento: é preciso levar em conta a
reflexão filosófica sobre a natureza da alma, a mesma reflexão destacada no seu
segundo discurso. Conduzi-la não tem a ver com iludir e convencer do que for, mas
persuadir em direção à verdade. É com isso em mente que o bom orador e escritor
ajustará cada tipo de discurso a cada tipo de alma.

Nesse ponto, porém, Sócrates toma o partido dos retóricos e refuta a si mesmo,
dizendo que a retórica não tinha nem precisava ter nada a ver com tais
condicionamentos filosóficos relacionados à verdade: seu objetivo era persuadir
trabalhando com o provável, com o verossímil. O verossímil, aquilo que é convincente
mesmo que não seja fato, é o coração da retórica, e ponto final. O importante é parecer
verdadeiro, não ser verdadeiro. É assim até hoje com o discurso do político, do
advogado, do marqueteiro, do intelectual, do influenciador e muitos outros, em âmbito
público e privado. A essa contestação que ele mesmo formulou, Sócrates responde
reconhecendo que o verossímil, o jogo entre o falso e o verdadeiro, deve sim ser
empregado, mas, de novo, por quem conhece de fato a verdade e sabe jogar com as
semelhanças sem fazer prevalecer a mera opinião. É uma nova estocada ao discurso
de Lísias, e uma reafirmação do emprego produtivo da verossimilhança nos discursos
proferidos por ele, Sócrates.

Mas e o tópico referente à escrita? Não faz mesmo a menor diferença recorrer ou não
a ela? Será que a exposição oral não é superior? É com essa discussão que Platão fecha
o diálogo, explorando sua repercussão direta não apenas em relação a logógrafos
como Lísias e Isócrates, mas ao seu próprio trabalho. Mais um mito entra cena. Desta

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vez Sócrates cria um diálogo entre dois deuses egípcios, Teut e Ámon (chamado
também de Tâmus), os equivalentes de Hermes e Zeus. Teut inventou os números, a
matemática, a astronomia, os jogos de dados e gamão e as letras. De posse das
novidades, foi mostrá-las ao deus-rei, Ámon, a quem descrevia a utilidade de cada à
espera dos comentários. Quando chegou a vez do alfabeto, Teut louvou a descoberta
como grande conquista para o conhecimento, um fármaco para sabedoria e a
rememoração – um argumento batido na apreciação da escrita dos gregos até hoje,
esse de ser a guardiã do saber. Só que Ámon não partilha do mesmo entusiasmo do
pai das letras: a invenção poderia, ao contrário, gerar descuido com a rememoração e
esquecimento. O que ele inventou, diz Ámon, foi um fármaco para a lembrança, ou
seja, um lembrete para a sabedoria, não a sabedoria ou a rememoração em si. O termo
grego aí para fármaco é phármakon e não podemos ignorar sua ambiguidade: se bem
usada, a escrita é sim um remédio, mas não como Teut imagina; se mal usada, é um
veneno, como Ámon adverte. Vale lembrar aqui um detalhe: Platão já vinha
explorando desde antes o paralelo entre retórica e medicina, e lá atrás, no começo do
diálogo, o discurso de Lísias tinha sido chamado de fármaco por Sócrates, momentos
antes de ouvi-lo. Lísias, assim como Teut e os sofistas versados em muitos saberes,
acreditavam no poder curativo da palavra escrita e da palavra em geral, mas a dele era
mera opinião, não era remédio, só veneno. É essa ideia que Sócrates desenvolve na
sequência, abandonado o mito egípcio e trabalhando com analogias com a pintura e a
semeadura. O conhecimento é algo escrito dentro da alma, ou inscrito na alma, não
em papiro ou papel, e tem a ver com a rememoração móvel e viva, livre e profunda,
aquela reminiscência do segundo discurso de Sócrates.

É por aí que eros, retórica e escrita se encontram. Se a beleza física, como a gente viu,
é só uma imitação, um simulacro ou espectro da verdadeira beleza, um lembrete para
a reminiscência filosófica, a reminiscência do belo em si, da ideia do bem e do justo,
e se é por essa razão que Sócrates pode afirmar mais de uma vez nos Diálogos que a
arte erótica é a única que domina, então também em relação à escrita dá para dizer
que, na sua forma verdadeiramente bela, ela é apenas um espectro, ou lembrete, na
busca pelo mesmo belo em si que a alma do filósofo almeja. É essa sua contribuição
“medicinal”, como diria Platão. Portanto, a bela prosa que o diálogo preconiza, para

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a qual não só dá as coordenadas, mas que executa de fato, essa prosa é um
correspondente daquele belo jovem. Nos dois casos a beleza é um impulso filosófico
que se dá por meio de um sentido fundamental, a visão. Nos dois não devemos nos
concentrar no dado concreto imediato nem o sacralizar, seja o dado hedonista da
realização sexual, seja o dogmático da idolatria do texto. Ambos são divertimentos,
pontos de partida, pretextos para um conhecimento que deve ir necessariamente além.
Tal como ocorre com o ser amado, o alvo nunca é a coisa em si, material, sensível,
mas a ideal, inteligível. Assim, o que Sócrates faz com Fedro em relação à adoração
deste pelo texto de Lísias talvez seja, mal comparando, o que Platão quer fazer com
seu leitor e leitora em relação ao próprio Fedro. Claro, o Fedro tem tudo que o discurso
de Lísias não tem enquanto organização poética e do pensamento: é de fato um
remédio que nos ajuda a lembrar da sabedoria, que nos impulsiona à reminiscência de
um lógos suprassensível. Mas, ainda assim, essa acabada beleza literária, que o Fedro
ilustra num grau especial porque metatextual, é apenas simulacro, um degrau para o
conhecimento. Aqui não posso deixar de citar a corrente que derivou da leitura dessa
parte final do Fedro a ideia de que Platão, com o mito egípcio, estaria colocando a
escrita, a sua própria, abaixo do ensinamento oral que produzia dentro da Academia.
Sua verdadeira filosofia estaria contida nessas doutrinas internas, que se perderam, e
não nos Diálogos que nos chegaram.

Que monstro essencialista e avesso à forma ousou imaginar um tal filósofo desligado
da sua arte retórico-literária suprema? Como eu disse, a bela escrita do Fedro pode
ser só cópia ou lembrete físico do Belo com “b” maiúsculo. Mas continua a ser bela e
a guiar almas, como Sócrates guia a de Fedro. E responde às questões que coloca: a
poesia, aristotelicamente entendida, para além do metro, como construção dramática
orgânica e profunda, a poesia – tal qual a beleza visível do amor – é um pré-requisito
para a filosofia.

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#30 ONDE FICA O CALCANHAR DE AQUILES NA ILÍADA DE HOMERO

Páris, o troiano que raptou Helena, a esposa de Menelau, provocando a Guerra de


Troia, finalmente consegue, em um de seus raros momentos de destaque, disparar uma
flecha e ferir o pé do grande Diomedes. Mas será que o interesse dessa cena meio
perdida no Canto 11 da Ilíada de Homero é só esse, destacar Páris e mostrar Diomedes
saindo ferido do combate, o que torna ainda mais crítica a situação dos gregos, que já
estavam sem Aquiles, afastado depois da briga com Agamênon? Para muitos
especialistas, não, a cena teria ainda um valor adicional: seria uma antecipação
enviesada do fim do próprio Aquiles. Ao morrer, ele receberia, segundo a visão mítica
tradicional, também uma flechada, também de Páris, também no pé, só que num ponto
específico, o único vulnerável de todo o corpo desse herói de força sobre-humana: o
calcanhar, o famoso “calcanhar de Aquiles”. Não, não adianta a gente procurar pelo
relato da morte de Aquiles na Ilíada nem por referências diretas ao seu frágil
calcanhar. Elas não aparecem em nenhum dos quase 16 mil versos do poema. Essa
omissão vem se juntar, por sua vez, a várias outras consideradas imperdoáveis pelos
aficionados por mitologia. Só que são essas omissões, curiosamente, que talvez
ajudem a explicar melhor por que a poesia homérica tem a qualidade que tem.

A narrativa homérica é tudo menos óbvia. Operar com alusões, silêncios e recortes é
uma das suas diretrizes principais, um mecanismo que tende a quebrar as expectativas
com as quais a gente costuma trabalhar. Onde está narrado o rapto de Helena por Páris,
a ação responsável por deflagrar a Guerra de Troia? Não está em parte alguma, porque
a narrativa, quando começa, já pula para um momento avançado do extenso combate
entre gregos e troianos. Mas, por outro lado, a relação entre Helena e Páris está bem
retratada no Canto 3 da Ilíada, através do modo como os dois se sentem
irresistivelmente atraídos um pelo outro e, pela intervenção da deusa Afrodite, acabam
levados ao quarto para transar enquanto a carnificina humana continua a rolar lá fora
(sim, em Homero heróis e heroínas trepam, e choram muito, e se descontrolam). Foi
o jeito narrativo sofisticado que Homero e a tradição épica grega encontraram para
remeter a audiência à causa da guerra, ao sentimento que estava envolvido no rapto,
sem ter de recorrer a um flashback ou fazer a narrativa começar do começo.

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A gente poderia se perguntar também a respeito do juízo de Páris, aquela conhecida
decisão anterior ao rapto, quando o troiano foi obrigado a escolher entre três deusas,
Hera, Atena e Afrodite, e acabou optando pela última, um indicativo dos seus
interesses na vida e um prenúncio do que estava por vir quando se encontrasse com
uma mulher da beleza de Helena. Tudo bem, Homero não precisava ter começado a
Ilíada daí, mas por que não se referir com alguma demora a esse episódio em algum
momento da narrativa, ao invés de fazer isso de relance, nos Cantos 3, 6 e 24? Uma
explicação possível seria a de que não lhe interessava se deter nesse aspecto
mitológico fabuloso, que tanto interessa hoje.

A verdade é que Homero, até mesmo num poema mais fantasioso como a Odisseia,
produziu uma poesia muito mais realista do que se imagina. Acontecimentos
espetaculosos tendem a ficar de fora ou a serem apresentados de forma discreta. É por
isso também que a Ilíada, sem ter começado pelo rapto de Helena, se fecha antes do
fim da guerra e sem o estratagema do cavalo de Troia. Um roteirista hoje argumentaria
que é loucura privar o público de ver tais ações retratadas, e é por isso que tanto o
filme quanto a série Troia as incluem. Só que Homero, felizmente, as excluiu da
Ilíada, deixando para rememorar lá na Odisseia, e ainda assim sem se aprofundar
muito, o cavalo de Troia e a morte de Aquiles.

A nossa frustração diante dessas ausências, como eu falei, é compensada, e muito,


pela qualidade do que é incluído, fruto de uma visão aguda a respeito de como contar
duas grandes histórias com economia e profundidade. Desde Homero, ninguém
conseguiu superá-lo quando optou por dizer mais do que ele disse sobre Aquiles e
Odisseu: os acréscimos redundaram em diluição e superficialidade. Vamos voltar ao
exemplo da morte de Aquiles com uma flechada no calcanhar. Ela pode estar
prenunciada, conforme eu disse, no ferimento sofrido no Canto 11 por Diomedes, uma
espécie de substituto de Aquiles na ausência deste, mas ela também está indicada de
outras formas. A principal é o modo como é trabalhada a sua relação com Pátroclo e
com o troiano Heitor, os dois heróis cujas mortes são as mais sentidas no poema.
Depois da briga com Agamênon no Canto 1, Aquiles fica em sua cabana e se recusa

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a lutar, mas no Canto 16 acaba cedendo ao apelo de Pátroclo, seu melhor amigo, e o
deixa combater em seu lugar – em seu lugar literalmente, porque Pátroclo veste as
armas de Aquiles e atravessa a planície de Troia sendo de início confundido com o
companheiro. Foi a pior decisão. Pátroclo avança mais do que devia e acaba sendo
morto com uma intervenção final de Heitor. É a vez de o troiano pegar as armas de
Aquiles e vesti-las, para depois, no Canto 22, terminar assassinado pelo grande
inimigo, que veste novas armas imortais encomendadas pela mãe, a deusa Tétis. Nesse
jogo de troca de armas, Homero parece jogar também, de forma mais profunda, com
a identificação entre esses três heróis.

Desse modo, com os dois morrendo em sequência, Pátroclo e Heitor, ambos com as
armas de Aquiles, é como se a morte deste último estivesse sendo anunciada na Ilíada.
Esse anúncio velado se explicaria por um motivo básico: porque, não sendo narrada
na Ilíada, a morte de Aquiles, a morte desse herói fadado a falecer jovem, fica
pairando no ar, o que lhe confere força maior. Quando atingimos o fim do poema, no
Canto 24, com Aquiles no centro do palco, sabemos que sua hora está chegando não
apenas por ser esse um dado tradicional, mas porque Homero nos fez pressentir essa
morte como inevitável e iminente. Vale mais acompanhar um Aquiles que tem
consciência de que vai morrer, que em certo sentido marcha resoluto em direção a
essa morte, do que vê-lo já morto, e morto melodramaticamente, por uma fragilidade
no calcanhar.

Essas escolhas todas, calcanhar de Aquiles, rapto de Helena e juízo de Páris, entre
outras, no fim têm a ver, como eu disse, com o foco maior na concentração da ação e
na adoção de um tom mais realista e reticente. A Ilíada é um poema monumental, mas
não tem enrolação. Mais espaço aí não equivale a preencher o tempo com
desenvolvimentos inúteis, como nos piores filmes épicos de ação ou em séries do tipo
saga histórica. Estruturalmente, é como se estivéssemos diante de um seriado em três
temporadas com oito episódios cada. A primeira temporada vai do Canto 1 ao 8, a
segunda do 9 ao 16 e a terceira do 17 ao 24. São arcos muito bem construídos, da
briga de Aquiles com Agamênon à deterioração da situação do exército grego, da
teimosia de Aquiles à morte que ele mesmo provoca do melhor amigo, do seu luto e

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determinação em novamente lutar ao assassinato de Heitor e a reconciliação
momentânea, elegíaca, com o pai daquele que foi sua nêmesis. Em cada um desses
segmentos a ação se desenvolve com extrema riqueza, simplicidade e fluência, mas
de forma nada simplória ou primitiva.

Em termos literários, Homero é o contrário do primitivo em sentido pejorativo, o


primitivo visto enquanto expressão arcaica limitada em suas capacidades, porque
anterior a recursos mais avançados. Se alguma coisa evoluiu na vida humana desde
Homero, não foi a poesia. Homero é a excelência verbal com a qual devemos sonhar,
a coragem de olhar o mundo de forma trágica e vigorosa, sem concessões. Isso tem
relação com aquele tom realista que eu citei e que marca presença já nos primeiros
versos, quando o cantor pede à Musa que cante a fúria de Aquiles, a fúria devastadora
de um só que produziu incontáveis mortes. Além dessa fúria, almas e corpos também
têm destaque na abertura da Ilíada: as primeiras, as almas, foram para o Hades depois
de mortas, onde sabemos que vão vagar numa existência espectral e triste; já os
corpos, espalhados pela planície, ficaram entregues ao ataque das aves de rapina e dos
cães, sem ter a honra do sepultamento. Logo de saída, não há consolação alguma.

Sim, é a brutalidade que dita o tom nessa épica, mas uma brutalidade que vem se
combinar à ideia de uma vontade divina suprema, a vontade de Zeus, e ao choque
entre duas figuras grandiosas, Agamênon e Aquiles. Os dois, como vários outros, são
reis, um termo central nos épicos, embora em grego não se associe a uma típica
monarquia, porque nesse mundo o poder da elite tendia a se dissolver não só de pólis
para pólis, mas também no interior de cada uma delas. Isso reforça o choque entre as
figuras humanas de destaque, que tinham uma dimensão histórica e política, um pouco
como nas peças de Shakespeare que falam de reis da Inglaterra. Portanto, grandeza,
humana e divina, junto com brutalidade, humana e divina, formam esse binômio
trágico fundamental da Ilíada. A vida heroica que vem retratada, uma vida acima da
vida humana comum, é, a despeito disso, muito humana e precária, limitada pela
morte certa. Já a existência das muitas divindades, uma existência acima da heroica
(mas abaixo da de Zeus), é tão caprichosa quanto a dos heróis, norteada por interesses
honoríficos que determinam a própria ordem moral.

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É desenvolvendo tais arranjos e choques entre divindades e heróis, em planos que se
entrelaçam, que Homero vai construindo a Ilíada, sem nos entregar nada mastigado.
Se hoje temos no formato padrão do romance um narrador “intrometido”, que entra
nos seus personagens e descortina para nós suas motivações e vontades, das quais as
ações e falas decorrem mais como uma consequência secundária do que um dado
primário, na épica homérica a gente encontra o contrário: um narrador muito “na
dele”, discreto, que adora deixar os personagens falarem e agirem por si mesmos.
Quem for atrás de mergulhos interiores vai, de novo, se frustrar. Os personagens são
verborrágicos, falam por muitos versos e falam muitas vezes. Nós ouvimos o que
falam e fazem e tiramos nossas conclusões, e as conclusões podem variar. Aquiles, e
em seguida Heitor, são os campeões em números de versos em discurso direto, mas
essa ferramenta está distribuída por um número enorme de personagens. É o
mecanismo central de caracterização na Ilíada e na Odisseia, o que faz de Homero
quase um dramaturgo. É próprio do dramaturgo realizar o que o poeta realiza, colocar
os personagens debatendo entre si para a partir daí então, e a partir do conjunto das
ações e escolhas que são apresentadas, a plateia se orientar.

Esse é Homero: muito realista e trágico, e muito econômico na construção de uma


ampla ação. Os dados artificiais da sua dicção, como as famosas repetições, que
podem passar a sensação de que há elementos sobrando, colaboram para essa
economia, ao invés de atrapalhá-la. Vale a pena falar um pouco das repetições em
Homero para a gente entender que valor elas têm no conjunto das suas epopeias. Entre
os especialistas, elas ficaram conhecidas como “fórmulas” e envolvem não só
construções que deixam adjetivos, simples e compostos, colados a substantivos
comuns e próprios, mas também uma série de outros sintagmas. São tijolos pré-
fabricados, dos quais os cantores poderiam se servir no momento da recitação dos
poemas, uma vez que não decoravam os épicos na íntegra, verso por verso, mas essas
estruturas reformatáveis, as fórmulas.

Elas tinham, portanto, o propósito da facilitação, mas iam além. As fórmulas


homéricas, com as quais a gente se familiariza assim que começa a ler o original grego

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ou qualquer tradução que as tente preservar, essas fórmulas vão formando, junto com
as passagens não formulares, um jogo encantatório de repetição na variação ou de
variação na repetição, mais ou menos como os refrãos e as rimas em certos tipos de
poesia e de canção. Homero, assim como o restante da poesia antiga, não trabalhava
com a rima enquanto apoio rítmico e sonoro, mas as fórmulas funcionavam quase
como rimas no sentido de que seu uso mais elaborado era justamente aquele onde
forma e conteúdo pareciam se atrair, ou seja, quando a fórmula, tal como a rima, não
era tão só um ocioso preenchimento funcional do verso – era também um elemento
semântico reiterativo daquela realidade. As possíveis oscilações de sentido de várias
das repetições, segundo os diferentes contextos, fazem parte dessa rede semântico-
formal muito homérica. O mesmo vale para as cenas típicas, de sacrifício e consumo
de comida, de armamento, de combate, de hospitalidade e outras mais. Existe uma
espécie de template em Homero para cada uma delas, um template que opera com o
mesmo princípio, molde básico virtual + variação e ressignificação, ultrapassando
assim o mero propósito mecânico.

Tudo isso produz um oxímoro, o dinamismo imutável de Homero. Há nele o fluxo


contínuo e majestoso de um mundo que ficou no passado, mas que ao mesmo tempo
permanece imóvel através do tempo, como se aquele fosse um tempo fora do tempo e
permanentemente eloquente, um mundo que fala de autoridade e cooperação, amizade
e ódio, de escolhas difíceis e impactantes, de prestígio e dor. Nesse mundo, não havia
como o herói-ícone da Grécia Antiga ser reduzido a um calcanhar. Em vez disso,
Homero preferiu investir num pés-rápidos Aquiles que opta por permanecer, na maior
parte do tempo, amargurado e estático, com aquela sua retidão e orgulho excessivo, o
maior inimigo dos seus e de si mesmo. São sentimentos que o aproximam do indigesto
general Coriolano, da peça homônima de Shakespeare, e que permitem pensar o
grande herói como um problema, e não uma solução.

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