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ESTUDOS FEMINISTAS E DE GÊNERO:

ARTICULAÇÕES E PERSPECTIVAS

ORGANIZAÇÃO
Cristina Stevens
Susane Rodrigues de Oliveira
Valeska Zanello

Ilha de Santa Catarina


Mulheres
2014
© 2014, Cristina M. T. Stevens; Susane Rodrigues de Oliveira; Valeska Zanello

Série Ensaios

Coordenação editorial
Zahidé Lupinacci Muzart

Conselho editorial
Claudia de Lima Costa (UFSC)
Constância Lima Duarte (UFMG)
Eliane Vasconcellos (FCRB)
Ivia I. D. Alves (UFBA)
Joana Maria Pedro (UFSC)
June Hahner (New York)
Nádia Gotlib (USP)
Norma Telles (PUC-SP)
Peggy Sharpe (Talahassee)
Rita T. Schmidt (UFRGS)
Susana Bornéo Funck (UFSC)
Simone P. Schmidt (UFSC)
Tânia R. O. Ramos (UFSC)
Yonissa Wadi (UNIOESTE)

Capa
Cartaz do II Colóquio de Estudos Feministas e de Gênero
Sobre óleo de Zeila Navarro Swain

Revisão e Editoração
Gislene Barral

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil
em 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP


Leny Helena Brunel CRB 10/442
_______________________________________________________

E82 Estudos feministas e de gênero: articulações e perspectivas


[livro eletrônico] / organizadoras Cristina Stevens,
Susane Rodrigues de Oliveira e Valeska Zanello.
Florianópolis: Ed. Mulheres, 2014.
5,45 MB PDF

620 p.
ISBN 978-85-8047-056-7

1. Feminismo. 2. Estudos de Gênero. I. Stevens, Cristina.


II. Oliveira, Susane Rodrigues de. III. Zanello, Valeska.

CDU 305
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Fone/Fax: (048) 233-2164
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www.editoramulheres.com.br
Perspectivas e articulações de uma pesquisa feminista

Debora Diniz1

A Eva despede-se e deixa-me só com a minha tristeza...

(CHIZIANE, 2004, p. 218)

1. Perspectivas

O título desta conversa foi generosamente amplo para que ela se construísse no tempo.
Estou aqui para animar o que já sabemos e pelo que certamente nos aproxima como um
grupo: isso que chamamos de pesquisa feminista. Mas serei tímida sobre o que precisa ser
dito. Quem sabe, conseguirei arrumar conceitos, ou simplesmente provocá-los. Definirei
gênero como um regime político, e não como papéis, identidades, posições ou relações. Quero
aproximar gênero de feminismo mostrando que, ao entender o gênero como um regime
político e o patriarcado como uma tecnologia moral do regime, toda pesquisa sobre gênero
será feminista. Não precisamos ser apenas especialistas em relações de gênero, mas
pesquisadoras, autoras, leitoras e ouvidoras feministas.

2. Patriarcado e gênero

Falamos de relações de gênero, posições de gênero, identidades de gênero, variações


que nos marcam e demarcam entre campos, teorias e conceitos. Falamos até mesmo no plural
– os gêneros. Não quero discutir a sabedoria dessas escolhas – e até mesmo seus sentidos
históricos, disciplinares e estratégicos para a argumentação –, mas pensar gênero como um
regime político2. Gênero é um regime político, cuja instituição fundamental é a família

1
Doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB). Professora da Universidade de Brasília (UnB) e
pesquisadora do Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero).
2
Monique Wittig diz que entende a “heterossexualidade não como uma instituição, mas como um regime
político que se baseia na submissão e na apropriação das mulheres” (1992, p. 15). Entendo a heterossexualidade
como uma das tecnologias de poder – talvez, a mais central delas – da moral patriarcal.

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reprodutora e cuidadora, e o patriarcado, uma tecnologia moral 3. O patriarcado nos antecede e


nos acompanha: sua principal atualização é isso que chamamos de pedagogias do gênero. As
pedagogias do gênero garantem a reprodução do poder patriarcal. As instituições o
oficializam como regra de governo. As leis são o registro de sua legalidade e de sua potência
para o uso da força perante as insubordinadas. Não sei dizer se o patriarcado é universal nem
mesmo se desde sempre existiu: não sou capaz de falar em absolutos, mas de nós e do agora 4.
Nesta conversa, o nós será sempre biografado – ele terá o nome do corpo ou da lei.
A classificação das pedagogias do gênero entre pacíficas ou violentas é frágil, pois
adota como critério de julgamento as próprias táticas do poder patriarcal que as movimentam 5.
A encarnação do gênero é desde sempre agressiva e nos torna isso que somos – superfícies
naturalizadas pela ilusão ontológica do binarismo sexual com finalidades reprodutivas. Esse é
um dos artifícios mais poderosos já criados no campo moral: o de que somos natureza anterior
aos artifícios, e não matéria ao acaso. Mas há um equívoco na insistência do binarismo
natureza e cultura – natureza e cultura são artifícios com apelos de moralidade distintos. O
que há não é uma dicotomia, mas uma trilogia ontológica (ROSSET, 1989) – acaso, natureza
e artifício. É ao acaso que nossos sentidos de natureza e cultura se confrontam: não há sexo e
gênero, mas como gênero sempre foi sexo, ou sexo sempre foi gênero, sexo e gênero são
categorias políticas que ressignificam o acaso da matéria. O gesto de sexagem dos corpos é o
primeiro que instaura a ordem lexical entre sexo e gênero, fazendo-se crer que há uma
anterioridade do sexo6. A ilusão naturalista da sexagem é um dos pilares da moral patriarcal.
Há uma cumplicidade entre a ilusão da natureza sexual e a ordem do patriarcado.

3
Judith Butler revisa as teorias feministas e justifica o abandono do conceito de patriarcado por “seu fracasso em
explicar os mecanismos da opressão de gênero nos contextos culturais concretos em que ela existe” (2003, p.
20). Sua própria teoria – centrada na performatividade de gênero –, porém, carrega a mesma potência de fracasso
etnográfico. Acredito ser possível reclamar o retorno do conceito de patriarcado e ser sensível às expressões
locais de sua governança pelo presente histórico.
4
Lia Zanotta (2000) sustenta que há um tom absolutizante no conceito de patriarcado e que, por isso, prefere
“relações de gênero”; no entanto, não acredita ser preciso pensá-los de maneira excludente, como “patriarcado
ou relações de gênero”.
5
Aqui sigo a compreensão foucaultiana de poder – “o que há de essencial em todo poder é que seu ponto de
aplicação é sempre, em última instância, o corpo. O poder é físico e, por isso mesmo, violento, no sentido de que
é perfeitamente irregular, não no sentido de que é desenfreado, mas, ao contrário, no sentido de que obedece a
todas as disposições de uma espécie de microfísica dos corpos” (FOUCAULT, 2006, p. 18-19).
6
Butler (1989) definiu este gesto como o da metafísica da substância.

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3. Identificações do gênero

Rami é a personagem central do romance Niketche: uma história de poligamia, de


Paulina Chiziane. Rami é uma mulher triste que vive em Maputo, Moçambique. Aos 40 anos,
com quatro filhos, decide enfrentar o que já sobrevivia há duas décadas de casamento: que o
“meu Toni” era um turista de marido. Ao peregrinar por outras quatro casas onde Toni
também é pai e chefe, Rami instaura a tradição patriarcal em sua família – a poligamia será a
regra oficial de seu casamento –, mas também a desafia – mesmo como mulher do Sul,
conhece os ritos do amor do Norte e descobre os prazeres da carne com outros homens. É a
iniciadora do sexo quem a sentencia: “então não és mulher... és ainda criança”. Rami mira
desconfiada aquela mulher e se recorda de que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher.
Onde terei ouvido esta frase?”, pergunta-se em um meio giro sobre si mesma (CHIZIANE,
2004, p. 35, com grifos no original). Nesse percurso trágico sobre o gênero que a oprime,
Rami acompanha o luto do marido ainda vivo. Ao fazê-lo, engravida de outro homem. É
ainda uma mulher lobolada, uma refugiada pelo nome e pelas terras do marido, mas é uma
mulher que sobreviveu à identificação do gênero7. Não deixou de ser melancólica e triste, mas
atualizou as regras do patriarcado em seu corpo de uma maneira singular8.
As identificações do gênero são melancólicas e tristes, pois a instalação do poder em
nossos corpos vem carregada de sentidos: para Rami, é ser mãe, parideira, cuidadora das
meias e cuecas do “meu Toni”, é dormir em uma cama vazia enquanto o marido se delicia
com mulheres mais jovens e bonitas que ela. O registro do patriarcado na carne não é sutil,
mas se protege pela retórica da naturalidade da sexagem – “em cada passo há uma mulher que
se dá, para vida à vida”, diz Rami (CHIZIANE, 2004, p. 218). A alegoria da natureza da
substância reprodutora nos confunde e, muitas vezes, nos faz crer que nossos desejos são
instintos, que nossas conformações são vontades. Rami lutou e uniu-se às rivais, foi presa,
depois despossuída como viúva, aprendeu a ser mulher, mas foi também na carne que
descobriu que não era natural ser oprimida. Quem a sacudiu para os desvarios do gênero foi

7
O glossário ao final da obra traduz “lobolo” como “dote”.
8
Butler, em uma exegese de Sigmund Freud, diferencia a tristeza da melancolia de gênero: a identificação
heterossexual produz tristeza; a homossexual produziria melancolia pela perda do objetivo e do objeto
(BUTLER, 2003 [1990]). Em ensaio posterior, Butler (1997) explora como o gênero é um dos efeitos da
melancolia. Freud (2013) se movimenta pelas fronteiras entre o luto e a melancolia, mas em um de seus ensaios
sugere ser a “baixa autoestima” um dos demarcadores entre as experiências. Rami é uma mulher humilhada em
busca de reconhecimento pelo corpo, por isso, a descrevo, além de triste, como melancólica em sua vivência do
feminino.

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sua própria imagem em um espelho, uma fantasia sobre si mesma, refletida em quem só pode
ser ela: a sua própria superfície. É com essa interpelação à própria imagem refletida que Rami
se investiga: “ah, meu espelho confidente. Ah, meu espelho estranho. Espelho revelador.
Vivemos juntos desde que me casei. Por que só hoje me revelas o teu poder?” (CHIZIANE,
2004, p. 17).
O poder que Rami reconhece como seu é resultado do trabalho de tristeza que
experimentou ao confrontar-se com a poligamia do marido. Talvez fosse melhor descrevê-lo
como a potência do trágico – os breves momentos de nossa existência em que o dobramento
das ilusões perde sua aura de essência ou de natureza e nos mostra que as crenças são práticas
repetidas e, algumas delas, inclusive legitimadas pela força. É dessas fissuras que se formam
nossas resistências à moral do patriarcado: são elas que nos mostram que o modelo não é o de
um molde em que seríamos o gesso para a fabricação de corpos reprodutores funcionais à
família – é um contínuo fazer e refazer, moldar e fissurar em uma economia do poder que
permanentemente nos interpela sobre o gênero que demarca nossos corpos9. Se a cada
atualização da norma há variações na sua ordem de sentido, isso não é o mesmo que afirmar
nossa capacidade de ignorar o poder normalizador dos corpos que nos interpela como gênero.
Se o gênero é sempre melancólico ou triste, sobrevivemos incorporando a subalternização da
ordem patriarcal que nos antecede. Rami termina sua história sendo ainda uma mulher
lobolada. Sozinha, não é capaz de subverter o regime político que a fez descrever-se como
refugiada do mundo – “na terra do meu marido sou estrangeira. Na terra dos meus pais sou
passageira. Não sou de lugar nenhum. Não tenho registo, no mapa da vida não tenho nome”
(CHIZIANE, 2004, p. 90).

4. Sobrevivências no gênero

No mapa da vida, na trilha da sobrevivência no gênero, alguns corpos são sexados


como mulheres. Uma vez mulheres-sexadas, somos interpeladas como reprodutoras da ordem
social e biológica, pois a interpelação do gênero nos promete identidades (BUTLER, 1997)10.
As teorias feministas recentes ampliaram nosso horizonte de preocupações – mostraram-nos
outras formas de entender os problemas do gênero, e passamos a falar de sexualidades,

9
Wittig descreve a marca do gênero na linguagem como um ato criminoso dos homens contra as mulheres:
apropriaram-se do universal como masculino (1992, p. 107).
10
A sexagem como mulher não é um destino. A vivência trans a desafia.

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substâncias, performances, identificações ou identidades11. Não quero ignorar a diversidade de


interpelações da moral patriarcal aos corpos pelos problemas do gênero – o sexismo é um
deles, a homofobia e suas variações lesbofóbicas ou transfóbicas são outros. Nessa
multiplicidade de interpelações, uma delas parece ocupar a centralidade do regime político: a
figura da potencial reprodutora asilada em uma família. Na falta de uma terminologia melhor,
utilizo a ordem linguística do gênero – mulheres são os corpos cuja matéria sexada tem a
potência reprodutora do útero12. Além da potência reprodutora, é preciso que esse corpo seja
interpelado como mulher. É no corpo que as ilusões de natureza e cultura se atualizam.
Há violências da moral patriarcal que instauram a solidão, como é a história de Rami;
outras marcam a lei no corpo das mulheres – assim sobrevive Maria da Penha; outras
aniquilam a vida, como é a história de mulheres assassinadas pela fúria do gênero. Entre 2006
e 2011, o Instituto Médico Legal do Distrito Federal foi o destino de 81 mulheres mortas pelo
gênero13. Muitas delas saíram do espaço da casa como asilo (“lugar onde ficam isentos da
execução das leis os que a ele se recolhem”) para o necrotério. Essas mulheres, as verdadeiras
testemunhas de como a moral patriarcal inscreve nos corpos a sentença de subordinação, são
anônimas e não nos contam suas histórias em primeira pessoa. Acredita-se poder biografá-las
por diferentes gêneros de discurso – um deles é o texto penal. As mulheres mortas pelo gênero
não retornarão pela instauração de uma nova ordem punitiva, o feminicídio, mas acredita-se
que a nominação de seu desaparecimento é uma operação de resistência: o nome facilitaria a
esfera de aparição da mulher como vítima. Tenho dúvidas sobre esse meio giro em torno do
trágico – somente a subversão da ordem política do gênero é que verdadeiramente protegerá
as mulheres –, mas entendo-o como uma resignação ao presente histórico do regime político
que mata as mulheres asiladas14.

11
Butler fala de “gênero”, no singular, em grande parte de sua obra. Há momentos que o utiliza no plural para se
referir às posições e relações entre as identificações.
12
Mas nem todo corpo com útero é interpelado como sendo de uma mulher. Um transhomem é um desses
exemplos. Uma transmulher pode performar-se de tal forma como mulher que seja interpelada pela ordem do
gênero para o projeto reprodutivo.
13
Foram 337 mortes violentas de mulheres que chegaram ao IML.Dessas, somente 180 processos judiciais foram
localizados, dos quais 81 eram de violência doméstica (GUMIERI, 2013).
14
Wittig diz que as mulheres sñ existirão se houver a destruição da categoria sexo, pois “a categoria de sexo é
uma categoria totalitária que para provar sua existência têm seus inquisidores, sua justiça, seus tribunais, seu
conjunto de lei, seus terrores, suas torturas, suas mutilações, suas execuções, sua polícia... por esta razão,
devemos destruí-la e começar a pensar mais além dela se queremos começar a pensar realmente, da mesma
forma que devemos destruir os sexos como realidade sociolñgica se queremos começar a existir” (WITTIG,
1992, p. 28).

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Mas permitam-me explorar a ambiguidade dessa nova classificação penal: os homens


já são descritos e nominados se vítimas de homicídio, cuja categoria penal não descreveria a
matança de homens como humanos, mas apenas de humanos-sexados-machos. Reclama-se,
então, um novo nome para uma matéria inexistente à lei penal – o homicídio de humanos-
sexados-fêmeas, por isso o ”feminicídio”. Mas é preciso que o matador seja um humano-
macho. Feminicídio: um crime que descreverá os extremos da soberania do patriarcado pelo
gesto da sexagem – homens como matadores e mulheres como vítimas –, mas também uma
forma de realizar vidas que não são reconhecidas como vidas enlutáveis, pois inominadas
(BUTLER, 2009)15. O resultado dessa ambiguidade é que o ato criminoso não é só da vida,
mas da linguagem (WITTIG, 1992). A mulher anônima e não testemunhável não será
reconhecida por uma concessão vocabular punitiva, pois é o patriarcado que a mata e ele
mesmo que irá nominar seu feminicídio. Mas, sem nominá-la, sua vida ininteligível no asilo
corre perigo.
As mortas pelo gênero são as verdadeiras anônimas, mas Rami reclama não ter
“registo” – tem nome, mas este não é reconhecido como o de alguém. Rami é uma
despossuída de si mesma pelo patriarcado que a demarca como propriedade do marido: “fecho
os olhos e escalo o monte para dentro de mim. Procuro-me. Não me encontro. Em cada canto
do meu ser encontro apenas a imagem dele. Solto um suspiro e só me sai o nome dele”
(CHIZIANE, 2004, p. 14). Aquela que verdadeiramente conheceu o artifício do gênero não é
capaz de testemunhar sua história – é como as muçulmanas dos campos concentracionários,
afogaram-se e não nos contam suas histórias como as sobreviventes (LEVI, 2004)16. Rami e
Maria da Penha testemunham suas histórias, desafiando a polaridade entre o niilismo e o
decisionismo. Nem uma coisa nem outra – “é o simples fato da própria existência como
possibilidade ou potência” que as torna personagens incômodas ao patriarcado (AGAMBEN,
2013, p. 45). O testemunho da sobrevivência no gênero é um ato político de resistência à
ilusão de natureza na sexagem. As aparições – na ficção ou no corpo – desafiam a

15
A família é um reduto do poder soberano, diz Foucault (2006). O patriarcado é a moral que regula o poder
soberano sobre os corpos das mulheres na casa.
16
“Muçulmanos” é uma expressão dos campos concentracionários referente aos prisioneiros que perderam a
condição de homens e se transformaram em cadáveres ambulantes. Por isso a pergunta de Primo Levi – “é isto
um homem? (LEVI, 2013). As muçulmanas seriam as verdadeiras testemunhas: “repito, não somos nós, os
sobreviventes, as autênticas testemunhas... nós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, além de exígua:
somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. Quem o fez, quem fitou a
gñrgona, não voltou para contar, ou voltou mudo; mas são eles, os „muçulmanos‟, os que submergiram – são eles
as testemunhas integrais, cujo depoimento teria significado geral” (2004, p. 72). Há uma conotação
discriminatória na expressão, mas ela foi incorporada à história dos campos.

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Estudos Feministas e de Gênero:ArticulAÇÕES e Perspectivas

precarização da vivência do gênero (BUTLER, 2009), por isso a ética da existência como
possibilidade ou potência deve ser a ética feminista da subversão ao gênero.

5. Úteros e castigos

Elas são três mulheres – Rami, Maria da Penha e a anônima. As regras da vida no
gênero, Rami as contou; Maria da Penha as teve registradas na carne; a anônima é um corpo
congelado à espera do luto. As formas de realização no gênero foram diferentemente
vivenciadas por cada uma dessas mulheres, pois o poder e a moral não se reproduzem sem
novas e permanentes subjetivações. Algumas das regras do patriarcado não são anunciadas, só
vividas e presumidas pela autoridade do artifício da natureza, semelhantes à sentença da
colônia penal: “seria inútil anunciá-la. Ele [o condenado] vai experimentá-la na própria carne”
(KAFKA, 1998, p. 36)17. De fato, as mulheres não precisam da face agressiva das pedagogias
do gênero para conhecerem na carne a sentença, como foi com Maria Penha – a sutileza da
atualização do poder patriarcal está nas pedagogias silenciosas, naquelas que se reproduzem e
se movimentam pela necessidade e pelo desejo da repetição.
A astúcia do poder é expressar-se sem anunciar cotidianamente sua potência
repressora. Isso não quer dizer que o patriarcado abdique da repressão. O uso da mão punitiva
ou da política social focalizada são duas das várias faces da governança do gênero. A mesma
mão punitiva que ameaça as mulheres de prisão pelo aborto é a que garante protegê-las com a
mão punitiva contra os agressores de mulheres. Ficamos confusas – são as mulheres que essa
ordem protege ou o quê? A mesma mão das políticas sociais que garante centralidade à
maternagem pelas lógicas de focalização é a que anuncia a bolsa-estupro18. Novamente: são as
mulheres mesmo? A mesma mão que anuncia guerra às drogas é a que inflaciona as cadeias
femininas. De que estão falando: de propriedades ou mulheres? De famílias ou mulheres?
Eu queria arriscar uma resposta: o regime político do gênero e a moral do patriarcado
têm como sua unidade de governança a família heterossexual e os corpos das mulheres são a

17
Um soldado vai ser punido pela lei reminiscente da colônia penal – uma máquina de morte que inscreve na
carne a sentença não aprendida pela disciplina. A novela é breve e se encerra com a destruição da máquina do
mundo no dorso de seu último representante. O soldado anônimo é libertado.
18
“Bolsa-estupro” é um termo do movimento feminista para se referir ao projeto de lei em tramitação no
Congresso Nacional que institui o estatuto do nascituro e oferece benefícios de transferência de renda para as
mulheres estupradas que não abortarem (DINIZ, 2013).

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Estudos Feministas e de Gênero:ArticulAÇÕES e Perspectivas

propriedade a ser assegurada19. Sinto melancolia pelo gênero que professo – no sentido
freudiano de baixa autoestima – quando passo pela sombra dessas punições (FREUD, 2013).
A governança patriarcal persegue nossos corpos; se não eles, ao menos a potência de nossos
úteros. É de nossos úteros que os filhos serão gerados, é de nossos úteros que a metafísica do
instinto da maternagem será nutrido20. Nossos úteros são um território alienado de nossas
entranhas: “<tota mulier in utero: é uma matriz>, diz alguém” (BEAUVOIR, 2009, p. 13).
Rami também conhece a famosa frase de Simone Beauvoir – nascemos e nos
transformamos. Mas eu arriscaria redescrever essa fórmula binária de matérias e vivências,
pois não me parece possível descorporificar-me para pensar os efeitos das pedagogias
patriarcais para me atualizar na existência. Não nascemos fêmeas: ao nos materializarmos
para a moral, já somos sexadas como reprodutoras potenciais, mulheres com potência para a
produção de famílias. Mas famílias heterossexuais, não podemos esquecer. O útero como
metonímia da sexagem é apenas um ponto no radar para o deslocamento da pedagogia de
gênero sobre o meu corpo21. Mas ela antecedeu meu nascimento; apenas se moveu para
atualizar-se e fissurar-se a cada novo corpo.
Acredito que o mesmo poder patriarcal que controla as mulheres e odeia os fora da
norma sexual se move pela sobreposição entre a reprodução biológica e social: precisamos da
propriedade da copulação heterossexual para a produção de filhos (ou de sua imitação em
laboratório pelo gesto medicalizante e do mercado) e somente as mulheres de famílias
binárias são naturalizadas para o cuidado das crianças. Para esse modelo de copulação e
cuidado, as mulheres são propriedade do patriarcado (GUILLAUMIN, 2005). É da obsessão
com as famílias que nos atualizamos como os corpos sob controle – nossos úteros, esse lugar
tão misterioso de geração da vida, nos transformam em propriedades do regime do gênero e
nos amedrontam pela lei penal se ousarmos desafiá-lo. Abortamos, mas somos punidas com o
castigo da prisão. Controlamos a reprodução, mas ainda somos execradas como pecadoras.
Mas a despossessão é um dos artifícios do regime político do patriarcado – nossos
úteros não nos pertencem, pois são propriedade do regime. Essa lógica que descrevo não é
cínica, acreditem, talvez apenas antiquada. Mas é a que me permite entender a insistente

19
Feministas materialistas descreveram esse regime de posse como propriedade – as mulheres são propriedade
de outra classe, a dos homens (GUILLAUMIN, 2005).
20
“Nossos” = corpos sexados mulheres e interpelados como mulheres.
21
A insistência no útero também permite pensar o horror aos corpos trans: corpos sexados como mulheres que
desejam suspender a potência reprodutora ou mesmo mutilar-se para fazer desaparecer as inscrições da sexagem.

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Estudos Feministas e de Gênero:ArticulAÇÕES e Perspectivas

perseguição às mulheres que abortam. Por isso, talvez, agora cinicamente, eu duvide da
compaixão do regime do gênero pelas mulheres que morrem ou pelas mulheres cujas famílias
têm fome, para as quais se oferece a mão penal contra os agressores ou as políticas
focalizadas de distribuição de renda. A precariedade da vida das mulheres não é parte de
nossa ontologia do abandono: é resultado da economia de precarização do regime político do
gênero22. Morremos pelo aborto ou pelo asilo na casa, somos pobres pelo capitalismo e
compassionadas pelas políticas humanitárias – todas estas formas conformadas pela
precarização da sexagem de nossos corpos.
É, sinto inquietações pelo apelo penal, pois se o gênero for mesmo um regime político,
o patriarcado, uma de suas tecnologias de poder, e a família, uma de suas instituições de
governança, o complexo penal é uma de suas táticas de segurança. A soberania do gênero se
esconde pela ilusão da natureza, ao mesmo tempo em que permanentemente se inaugura, mas
o patriarcado se expressa na linguagem, na estética e na lei. Falamos, sentimos e
sobrevivemos em uma ordem familista patriarcal, onde nossos corpos sexados como mulheres
ocupam um lugar vital à reprodução. Se essa parece uma matriz de dominação de mulheres
com longa duração, as configurações do regime político do gênero, da moral patriarcal e da
governança pela família têm permanentes atualizações históricas e sociais que nos cabe
compreender e desafiar.
E aqui chego ao que considero a peça central desse jogo conceitual entre regime
político, moral e governança – gênero assim entendido faz com que toda pesquisa seja
feminista. Uma pesquisa feminista parte do acaso da matéria, reconhece a sexagem como um
gesto inaugural do regime político do gênero, investiga a moral patriarcal na vida e sobrevida
das mulheres, desconfia das instituições que movem a governança das mulheres no asilo, na
esquina, no convento ou na prisão. E não esquece que é da potência da existência, do
testemunho que nos realiza e que desafia a matriz de inteligibilidade do gênero, que se anima
a ética feminista.

6. Articulações

As pedagogias do gênero são conformações dos sujeitos para a vivência da sexagem.


Formamos e conformamos os corpos pela moral patriarcal: a subalternização de mulheres a

22
Abandono é a forma como Jean Luc-Nancy (1993) descreve o acaso da existência. Somos seres abandonadas e
no abandono. A sexagem não é parte de nossa ontologia no abandono.

19
Estudos Feministas e de Gênero:ArticulAÇÕES e Perspectivas

homens é uma de suas leis; outra é a abjeção aos fora da norma heterossexual. Há práticas de
veridição sobre a sexagem que nos inaugura para garantir a estabilidade da ordem do gênero –
e para desafiá-las nos falta muita coisa, mas uma delas é fundamental: a linguagem. Sem ela,
nos fragilizamos para o enfrentamento. Rodamos em torno da herança patriarcal que nos
oferece os marcos de identificação: falamos em homoafetividade, casamento gay, leis de
proteção à violência com o nome da vítima, e não sabemos como subverter a hegemonia da
gramática pelo masculino universal sem perturbar outros regimes de discurso, como a estética
ou a clareza. Usamos essa excrescência tecnológica e pouco sensível às ledoras cegas que é a
arroba, ou inventamos uma letra sem som para as vogais que nos aterrorizam, o xis. Falamos
no feminino – como faço – em um giro que só pode ser considerado incômodo para os que se
acostumaram ao homem-humano, mas que talvez não tenha nada de subversivo: o feminino é
o que me foi designado pela sexagem.
Talvez como Rami, a personagem triste, melancólica e abusada de Chiziane, eu
também tenha estado “a falar de mais. A pretender dizer que as mulheres são órfãs. Têm pai
mas não têm mãe. Têm Deus mas não têm Deusa. Estão sozinhas no mundo no meio do fogo.
Ah, se nós tivéssemos uma deusa celestial!” (CHIZIANE, 2004, p. 93). Me confortem se falei
demais, se fui também abusada e se, ao final, não apresentei nenhuma deusa celestial que nos
socorra na insubordinação política. Talvez só tenha compartilhado o que descobri sobre a
potência mundana do conhecimento feminista para desafiar o gênero. É dessa potência da
existência que se anima a ética feminista.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. “Ética”. In: ______. A comunidade que vem. Trad. de Cláudio
Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p. 45-46.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. de Sergio Millet. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2009.

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