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Novos rumos no feminismo

Rumo equivocado: o feminismo ela denuncia se constroem pela conjunção de


estatísticas sobre violência física com dados sobre
e alguns destinos. agressão verbal ou qualquer tipo de
desentendimento entre membros dos dois sexos.
BADINTER, Elisabeth. Tradução: Vera Ela examina e avalia questionários, bem como
Ribeiro. definições de conceitos polêmicos, como o de
assédio (que prevê agressão sexual, simbólica e
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, física, sem levar em conta as relações de poder
2005. 174 p. entre as pessoas envolvidas), e mostra que todos
os artifícios estão a serviço de uma ideologia
conspirativa, que faz avolumar-se a acusação
contra os homens, de predadores, violentos,
cruéis, exploradores, que se aproveitam de
mulheres indefesas, fracas, infantilizadas. A autora
Introdução mostra como se cria um mal-estar filosófico, com
o acirramento binarista, de oposições
Após breve introdução historiográfica sobre maniqueístas, com o homem mau e a mulher
a trajetória do feminismo, Elisabeth Badinter inocente, em que a dominação masculina é
enfrenta as estatísticas (provenientes, sobretudo, apresentada como mascarada, multiforme e
de periódicos e publicações feministas mais prevalente, e em que o naturalismo que parecia
radicais) com humor e ironia. O texto se destaca sepultado retorna vitorioso.
pelo estilo vívido, e tem tradução excelente, o O segundo capítulo, sobre Omissões, mostra
que torna sua leitura agradável. A autora o contraponto, que tem sido silenciado ou
empreende uma análise corajosa dos resultados, negligenciado pelas feministas radicais. A autora
dificuldades, êxitos e expectativas dos projetos e faz uma série de perguntas intrigantes, que
movimentos de emancipação e visibilização das mostram que na sociedade, em geral, homens e
mulheres, com foco no que se passa na França, mulheres não vivem a guerra que as feministas
na Europa em geral, bem como nos Estados pintam em suas estatísticas. Pergunta por que
Unidos e Canadá. tantas mulheres permanecem casadas, quando
O texto todo é varrido por considerações o divórcio permite a separação legal. Retira o
avaliativas da escritora, que condena véu de algo aparentemente impensável, que é
veementemente a violência masculina e a violência feminina, contra homens e contra
argumenta em favor da necessidade de se mulheres, nos espaços público e privado.
conseguir igualdade de oportunidades para Descreve a violência das mulheres, tanto durante
homens e mulheres, superando a fase atual de a Revolução Francesa, como em dois genocídios
luta e projetos de anulação da identidade de guerras étnicas do século XX, o da Alemanha
masculina na França, fase que ela considera no nazista e o de Ruanda. Relata com detalhes que
risco de trilhar um rumo equivocado. Avulta no as mulheres, nessas chacinas, batiam e
texto a insistência da autora em que o feminismo torturavam o máximo que podiam. Elisabeth
radical que ela denuncia vai além das medidas, Badinter justifica o silêncio sobre as barbaridades
por se transformar numa luta contra os homens, cometidas pelas mulheres como decorrente de
e não mais em favor das mulheres. um estereótipo que vê os homens como maus e
as mulheres como inocentes. Os casos de
A crítica demolidora de Badinter
ferocidade e selvageria cometidas por mulheres,
Em belo capítulo que se intitula “O novo no cotidiano, raramente ganham espaço nas
discurso do método”, Elisabeth Badinter desfaz mídias, embora os relatos da violência feminina
equívocos resultantes de amálgamas de dados deixem os profissionais desnorteados e incrédulos.
de distinta natureza, que resultam em números A imagem de inocência, associada às mulheres
alarmantes sobre a violência perpetrada por e às crianças, fez com que demorássemos a
homens contra as mulheres. Os percentuais que

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analisar com mais objetividade o que se passa imposto violentamente. Esse movimento
em ambos os segmentos. Badinter nos faz ver que, sacralizador silencia sobre os projetos de
no reduto do casal, a violência feminina também emancipação e liberação absoluta das mulheres
se manifesta, com um dado novo: geralmente os e se concentra nos casos em que há
homens têm vergonha de admitir que são vitimalização. Tem um compromisso com a volta
espancados, e tendem a continuar a conviver da ordem moral, contra a sociedade de
com a pessoa agressora. A violência feminina se consumo, do capitalismo exagerado. Nesse
manifesta por meios aparentemente não capítulo, também é relatado que o corpo às vezes
violentos, como no uso do poder de reprodução, é explorado até a destruição, ao ser associado
quando a mulher se vale do esperma masculino aos atos sexuais e filmes pornográficos, que
para impor a paternidade àquele que a recusa transmitem a idéia de obsessão dos homens pelos
de forma explícita. A continuarmos nessa senda seus desempenhos e das mulheres pela sua
argumentativa, poderíamos pensar que para esta aparência.
autora, sempre polêmica em suas abordagens, Por fim, o capítulo sobre Regressão analisa
desde o clássico O mito do amor materno, dos o quanto o feminismo avançou e/ou retrocedeu
anos 1980, domina o entendimento de que as nos últimos 15 anos. Elisabeth Badinter aponta o
mulheres é que são violentas, e de que os homens desconforto vivido pelo homem, atualmente, com
nunca o são. Entretanto, ela quer apenas desfazer os avanços da mulher na sociedade. Mostra
a falsa verdade, fabricada por viés ideológico, também o retrocesso no sentido da revalorização
que condena os homens, sem apelação. Cabe da diferença biológica entre homens e mulheres.
ressaltar que a violência, conforme nos ensina Salienta como as mulheres se apresentam como
Badinter, é algo inerente ao ser humano, e não vítimas dos homens e reclamam por condições
uma característica pertencente a um único sexo. particulares de tratamento, contrariando o ideal
A violência está acima dos sexos. de igualdade social. A regressão constatada pela
O terceiro capítulo analisa a Contradição autora remete enfim a algumas conseqüências
entre a realidade sexual e a nova moral sexual como: homens e mulheres se julgando vítima um
que se definiu e consolidou na Europa em geral, do outro, uma vez que os homens começam a
e na França, em particular. Mostra que na busca se sentir dominados pelas mulheres, as quais, de
da liberdade total, favorecida pelos forma paradoxal, não reconhecem essa
anticoncepcionais, parte das mulheres francesas dominação; a (re)valorização das diferenças
banalizou o sexo e a relação sexual, o que por entre os gêneros, pautada na cultura e na
sua vez contribuiu para inflamar a violência biologia, na medida em que não mais se
masculina. Na complexidade de gestos e atitudes reconhece a igualdade como valor universal,
que se deflagraram no campo do gênero, dois retornando a discussão acerca de papéis
movimentos se manifestaram fortes. Por um lado, masculino e feminino. A autora toma como
as mulheres virilizadas, independentes, que exemplo a religião muçulmana e a polêmica nas
requerem uma ordem de liberdade absoluta, e escolas francesas sobre a aceitação do uso do
de poder sem limite, que lhes permita cavalgar véu pelas meninas adeptas dessa religião. E,
os homens, utilizar-se deles como escravos de seus finalmente, fala de uma armadilha na qual
projetos e desejos. Para esse segmento, cabe corremos o risco de cair quando retornamos ao
denunciar, sempre, os homens, que levam as fator biológico para solucionar as questões entre
mulheres a aviltar o próprio corpo, representadas os homens e as mulheres. Ao reforçarmos a
pela atriz pornô, pela dançarina e strip-tease e situação particular da mulher relacionada à
pela prostituta, todas representantes do abuso de reprodução, estamos indo contra o ideal de
poder masculino, e num certo sentido (para as igualdade batalhado por tantos anos. Essa
feministas radicais) objetos de estupro. De outro diferença deve, sim, ser valorizada, como diz
lado, a sacralização do corpo feminino, a volta Badinter, sem, no entanto, idealizar a educação
ao modelo judaico-cristão, de valorização da de homens-femininos. Na obra da intelectual
maternidade, em suma a volta do mito do amor francesa propõe-se, em suma, o seguinte
materno como instinto e não como construção paradoxo: as diferenciações particulares a cada
cultural. O feminismo do retorno moral prega a sexo devem ser levadas em consideração, como
libertação das mulheres diante da opressão da a condição de reprodução e amamentação que
dominação e defende a igualdade dos papéis as mulheres detêm, para que assim possa se
de homens e de mulheres, embora não aceite a constituir um caminho de igualdade entre os
prostituição como uma possibilidade de escolha sexos. Sendo assim, outros recursos são
por livre-arbítrio das mulheres e sim como algo interessantes para favorecer a relação homem–

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mulher, e não apenas uma batalha de poderes sentidos, contudo, não parece ser resultado da
entre os mesmos. A autora aponta, em seu ação coletiva ou organização das mulheres.
discurso final, para o risco do rumo equivocado, O exposto acima pode nos estimular no
que consiste no restabelecimento das fronteiras sentido de realizar pesquisas semelhantes em
e na deterioração da relação das mulheres com nosso contexto e verificar o quanto as formulações
os homens. da autora podem ser aproveitadas em nossos
Nosso posicionamento estudos. Ressaltamos que não é nossa intenção
desautorizar suas conclusões, e sim verificar a
Temos a impressão de que a realidade viabilidade de suas idéias no Brasil, o que se
brasileira apresenta semelhanças e diferenças poderá fazer com o aprofundamento no
com a apresentada na obra de Badinter, uma conhecimento da realidade na qual fazemos
vez que o contexto sociocultural brasileiro intervenções e pesquisas. O aproveitamento
constitui-se de forma distinta do europeu. Há, no crítico da obra dessa autora nos favorece um
entanto, traços em comum. O casamento (re)pensar das teorias feministas discutidas no Brasil
continua sendo fortemente valorizado no Brasil, e, sobretudo, adverte que, também aqui,
apesar do crescimento na participação das enfrentemos o risco de escolher um rumo
famílias chefiadas por mulheres, e se insiste sobre equivocado.
a maternidade das mulheres jovens por vezes de
forma moralista ou condenatória. Contamos com
Sebastião Votre
propagandistas tanto da luta antimasculina,
Universidade Gama Filho
absorvida por muitos homens, quanto da
igualdade, sem que as contradições sejam
Hugo Lovisolo
claramente debatidas. No Brasil foi gerado um
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
complexo legal que favorece a mulher em vários

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