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“[O AI]”, DE ALICE RUIZ

o ai
quando um filho

Este poema da curitibana Alice Ruiz foi publicado em 1980 no livro


Navalhanaliga. Não só o fato de ser um terceto faz dele um haicai, mas a própria
palavra indisfarçavelmente nele inscrita: “ai / cai”. Composto por uma interjeição e um
verbo, que ainda se mostra de ponta-cabeça, o termo não deixa dúvida quanto à vontade
de o poema, qual a forma celebrizada por Matsuó Bashô, tentar captar um instante do
modo mais sintético e fotográfico possível. Síntese que, em vez das tradicionais
dezessete sílabas (5/7/5), se dá em apenas seis: 2/3/1. Se se considerar o primeiro verso
um tritongo, teremos então minimalistas cinco sílabas no haicai (1/3/1), uma a mais que
o famoso “amor / humor” oswaldiano.
Tanto quanto no poema modernista, também aqui em Alice Ruiz o riso se
insinua, seja pela singela cena que se desenha (do possível pueril tombo de uma
criança), seja pelo inusitado da palavra de cabeça para baixo (cai), seja ainda pela
simultaneidade isomórfica da rima entre “ai” e “cai” e da realização formal da queda,
com o monossílabo tônico de três letras incorporando o lamento em duas letras do “ai”.
O fonema /k/, surdo e oclusivo, do verbo “cai” recupera e repete o “q” do “quando”,
reforçando sonoramente o baque da queda, que parece se estender no ditongo /ai/ que se
segue.
Duas tradições estéticas se reúnem no micropoema: uma oriental, via haicai, e
uma brasileira, por meio da poesia visual, sobretudo vinculada à produção concretista (o
aspecto visual se destaca neste livro de Ruiz). Ocorre aqui um conhecido minidrama
materno – considerando a voz autoral feminina – de acompanhar o lento crescimento do
filho em direção à vida adulta, à desejada autonomia. Nesse caminho, a mãe há de
presenciar quedas e tombos, derrotas e fracassos, e há de querer que a criança, qual um
insistente Sísifo, refaça o trajeto, supere a dor, siga adiante. (A pungente dedicatória do
livro ao filho Miguel Ângelo confere ao poema uma outra – triste – dimensão para
análise, que aqui não se tem em mente.)
Se o poema for lido a partir de uma perspectiva histórico-política, tudo nele se
reconfigura. Como se sabe, um dos sentidos de “cair”, em contextos e períodos
autoritários, é “ser pego”, “ser descoberto”, mesmo “morrer”, como em “o aparelho
caiu”, ou o “camarada caiu”. Em 1980, estávamos ainda em regime militar (que se
prolongou até 1985) e as práticas belicosas – que se iniciaram com o golpe de 1964 e se
intensificaram nos anos 1970 a partir do AI-5 de 1968 – permaneciam, com toda a carga
de barbárie. (O livro Brasil: nunca mais traz uma lista espantosa de tais práticas.)
Assim, do drama existencial de uma mãe em particular (que repete a angústia
universal de pais e mães), que testemunha os incipientes passos de um filho ou mesmo
alguma agrura ou travessura que redunda em queda, o poema se transforma numa peça
de denúncia e de resistência, ainda que em moldes alegóricos. Decifrada – nessa direção
– a palavra que encerra o poema, aos versos se associa o sentido de uma leitura crítica
do Brasil de então, que torturava e matava seus “filhos”, aqueles considerados
subversivos, aqueles que “caíam” nas garras do Estado censor, repressor e assassino.
Também Paulo Leminski, a seu modo, mas com algum parentesco na estratégia
alegórica, abordou a situação no hilário e sério terceto, de 1981, em Não fosse isso e era
menos não fosse tanto e era quase: “ameixas / ame-as / ou deixe-as”. O leitor curioso,
mais velho ou bem informado, acabará se lembrando ou descobrindo tratar-se o poema
de uma bem-humorada paródia, ambientada nos plúmbeos anos da ditadura, quando o
governo militar divulgou por todos os rincões o slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, que
nutriu de ilusão e má-fé toda uma população. Reduzido, por analogia, a uma ameixa, o
país é denunciado em sua grotesca arrogância e em sua propaganda enganosa.
Destronam-se os nossos obscurantistas déspotas, substituídos pela figura “inferior”,
cômica e algo absurda da ameixa – fruta não autóctone e, cúmulo da paródia que
reescreve a história, também, na gíria policialesca, bala de revólver.
Em Navalhanaliga, de Alice Ruiz, há, como não poderia deixar de ser, um
precioso “retrato de época”, expressão que dá título a um dos trabalhos mais
fundamentais sobre a poesia e o comportamento do período. Pelas páginas
quadrangulares do livro de capa avermelhada, poemas curtos, cômicos e incisivos dão o
tom (temperados com sutil melancolia, aspecto da poesia marginal ainda pouco
explorado pela crítica): – o psicodélico do desbunde e a dança imóvel do pensamento
apreendemos em: “que viagem / ficar aqui / parada”; – o chamamento à consciência das
mulheres e ao fortalecimento dos direitos das minorias se inscreve em: “nada na
barriga / navalha na liga / valha”, e em “drumundana” (“e agora maria? /// o amor
acabou / a filha casou / o filho mudou / teu homem foi pra vida / que tudo cria / a
fantasia / que você sonhou / apagou / à luz do dia /// e agora maria? / vai com as outras /
vai viver / com a hipocondria”); – uma reflexão acerca das delicadas relações entre a
arte e a sociedade, em especial as classes menos favorecidas economicamente, se dá em:
“se eu fizer poesia / com tua miséria / ainda te falta pão / pra mim não”.
O último exemplo demonstra com clareza a consciência que alguns artistas –
entre eles, Alice Ruiz – têm da importância e da impotência da arte se tomada como
instrumento de transformação imediata. Dirá Theodor Adorno, em Teoria estética, que,
“segundo a teoria crítica, a simples consciência da sociedade não leva realmente além
da estrutura objetiva socialmente imposta; e certamente também não a obra de arte, que,
segundo as suas condições, também é ela própria uma parcela da realidade social”. Isto,
contudo, não impede ou esvazia a militância, a defesa, a denúncia. É ainda Adorno
quem afirma na mesma obra: “O objeto da arte é a obra por ele produzida, que contém
em si os elementos da realidade empírica, da mesma maneira que os transpõe,
decompõe e reconstrói segundo a sua própria lei”.
Alice Ruiz fez seu poema “o ai / quando um filho / cai”, colocando o verbo
virado de pernas para o ar, uma metáfora política daqueles tempos. O recurso visual,
decerto tributário da herança concretista, hipnotiza o olhar, qual um punctum
barthesiano, solicitando oswaldianos olhos livres para ver. O chiste inicial – do tombo
de uma criança – dá lugar (sem deixar de ser o que de cara parecia) a uma imagem sem
graça alguma: de algum militante que “cai” nas garras do Estado ditatorial, militarizado,
violento. Constrangidos, somos levados a pensar nesses filhos, todos os filhos que, um
dia, tombaram – caíram – para nunca mais.

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