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Harotdo be Campos: DAS CORES DO MEDO AS DE Monet Lino Machado Universidade Federal do Espirito Santo Resummo: Anilise de correspondéncias entre, de um lado, 0s poems “Topologia do medo”, “Monet” € 0 “O lance de dados de Monet”, de Haroléo de Campos, ¢, de outro, as artes plisticas. Discussio da relevancia do elemento politico em “Topologia do medo”. Palavras-chave: Poesia; Pintura; Ecfrase; Contexto. 1. LeMBRETE, NAO INTRODUCAO O texto a seguir foi extraido de alguns capitulos da pesquisa - que efetuamos em 2004 no ambito da UFES — intitulada Um duplo dizer do outro como diferenga: Haroldo de Campos. O exame das relagdes da obra de Haroldo de Campos com produgées do terreno das artes plisticas ‘vem constituindo 0 objetivo principal de tal pesquisa, que continua em pro- cesso. 2. INTRODUGAO DE FATO No didlogo da poesia de Haroldo de Campos com alguns dos artis- tas plasticos pelos quais ele revelou interesse, 0 escritor transformou em palavras 0 que eram obras nao pertinentes a érea da estrita verbalidade, num trajeto que foi do siléncio de quadros, desenhos e esculturas de ou- trem a escrita fonética de poemas seus, em versos ou no, impressos no branco do papel. © mesmo trajeto deu-se, igualmente, pressupondo nio esta ou aquela obra em particular, mas um determinado estilo pictérico (caso de “Topologia do medo”, que adiante analisaremos, tendo em mente a importancia do abstracionismo geométrico para a-discussio desse tex- to). Certeze-srext-n 12004 = arco de Campos: das cores do med asd Monet Relembremos que um dos impulsos fundamentais do concretismo foi a recuperagdo da visualidade (compreendida em sentido amplo) na es- fera da elaboragio poética: a confecgdo de textos que buscavam uma organizago vocabular ndo mais apoiada no fluxo discursive da lingua, mas na sua distribuigdo espacial na érea branca do papel. Poemas como “nascemorre”, “vem navio”, etc., so exemplares da estética concretista ‘ais rigorosa, nao se devendo ignorar, todavia, os textos pré-concretos em que 0 fator tipogritfico ¢ jé explorado em trabalhos em versos livres, como “Orfeu eo discipulo” e “A naja vertebral”, entre outros. Do mesmo modo, 6 vilido também falar num pés-coneretismo, o que justifica aclassificagio abaixo. Alguns recortes podem ser feitos na produgio de Haroldo de Cam- pos. Encontram-se nesta, ao menos, trés espécies de composigio: a) os poemas pré-concretistas acima referidos: os que, localizando-se ainda no interior da légica do discurso lingiistico, mostram logo um aproveitamento do espaco grafico da pagina; b) os poemas ortodoxamente concretistas (ou “verbivocovisuais”, de acordo com a terminologia joycena dos inte- grantes do movimento, vale dizer, textos verbais em que a sintaxe grama- tical, linear, foi abandonada, em prol de uma organizagao geométrica e ideogrdmica dos vocbulos na superficie da folha em branco, apoiada no principio de justaposi¢ao de elementos da escrita da Iingua chinesa e em determinadas experiéncias de poesia visual, levadas a efeito por Mallarmé em Un coup de dés ¢ por certas vanguardas do século XX); c) os poemas pés-concretistas: os que, embora ndo mais se inserindo na restrita estéti- ‘ca do movimento, denunciam a persisténcia de um ou mais tragos da mes- ma. 3. A IMPLICACAO POLITICA DO ELEMENTO PLASTICO (OCULTO) DE UM POEMA: ‘Aragé Azul fica sendo ‘Onome mais belo do medo Caetano Veloso No livro Xadrez de estrelas, o que denominados pés-coneretismo tem o seu inicio em “Forma de fome”, espécie de resposta dialética & “Fome de forma’, titulo que engloba oito textos concretistas, considerados de acordo com a ortodoxia do proprio movimento de que participou Haroldo de Campos: trabalhos em que a sintaxe discursiva foi abandonada, em = (erento ano 19-2004 Lino Machado beneficio de uma sintaxe espaco-temporal entre cujas bases se acha 0 processo de justaposi¢o, atuante na lingua chinesa e na sua escrita, de natureza ideogramica. Dois so os poemas de “Forma de fome”: “Servidio de passagem” e“Topologia do medo”. O primeiro data de 1961. 0 segundo, de 1961-1962: anos em que, no Brasil, ocorria o confronto entre esquerda ¢ direita (en- trando nessa dicotomia simplificadora outras nogdes politicas, tais como: liberalismo, trabalhismo, populismo, centro, etc). Explicitando mais o que entendemos por compasigées pés-concretistas, diremos que estas so as que, embora revelem o abandono da radicalidade antidiscursiva da poesia concreta, dela retém um ou mais tragos: certa rare- fago do discurso (que retorna, mas de maneira contida, paratatica, eliptica) € um uso ~ j nao estritamente geométrico ~ da tipografia no branco da pagina, Na verdade, tais composig6es poderiam ser confundidas com aque- las que ~ pré-concretistas apresentavam os mesmos tragos. “Servidio de passagem”, salvo erro nosso de interpretago, no contém elementos que a aproximem, de modo produtivo, a outras artes, O contririo se d4 com “Topologia do medo”: neste poema, a presenga de signos que remetem a cores, ainda que elas sejam retomadas a partir da sua prévia codificagdo s6cio-cultural (“branco de medo”, “amarelo de medo”, etc.'), nao deixa de pressupor a pintura ~ uma “‘pintura ideol6gi- ca’, dirfamos, na qual o escritor, com os seus instrumentos especiais, “de- senha” ou “pinta” ndo uma topografia “idilica”, mas um poliptico politico de quatro partes desiguais, dispostas verticalmente, adequado a um tempo de luta (que historicamente teve como desfecho conservador o gol- pe militar de 1964). Bis a integra do texto quadripartido: ‘Topologia do medo 1 branco de medo ‘omedo branco ‘branco do olho oolho branco bbranco do olhto do medo branco ‘omedo oamido agomaa gosma ‘ohomem de branco Coton moran 11-2006 a Haro de Campos: das cores do medo ts de Manet ‘© medo branco do homem de branco ‘o muco a losna anuvembranca ‘olho brancodo homem de branco ‘embrancanovers ‘obrancanuvem 2 ‘omedo amarelo amarelo de medo ‘amarelo do medo © gosto amarefo oamarelo masto coamarelo gosto domedo amarelo 6 gosto € 0 most ‘a desgosto © sobgosto 0 gosto e o esgoto ‘oamarelo mosto do medo ‘orosto amarelo de medo 0 resto 3. o verde o verdoso 0 verdete omedo verde verde de medo limo olimoso o limace ‘ohomem verde co medo verde do homem verde ‘omedo varde do homem verde ‘a medo varde do homem varde ‘o medo verde do homem verde 4 cor furta fo medo furta © gosto furta carta: an0X8-n 11-2008 ne Machado ‘o furtacor furtamedo © furtagosto avidafurta amortefuna o furtahomem (CAMPOS, 1976, p. 155) ‘Nato ignoramos estarmos utilizando a metéfora, falando em “pintura ideolégica” e congéneres; ocorre, porém, que esse emprego figural da linguagem jé faz parte da historia das relagdes entre a literatura ou, sendo mais especificos, a poesia ¢ as demais artes, no que diz respeito quer 4 sua consideragao pelos produtores quer pelos analistas (te6ricos, criticos, etc.). E assim estruturada a quadripartigao de “Serviddo de passagem”: [Parte 1: tem como eixo 0 sintagma “branco de medo” (linha 1 da parte considerada) sm como eixo 0 sintagmna "amarelo de medo” (linha 2 da parte consid). [Parte 3: tem como eixo o sintagma™"verde de medo” (linha 3 da parte vonsid.). [Parte &: tem como eixo o termo composto “furtacor” (nha 4 da parte consid.) ‘A esquematizago acima funciona como um icone diagramatico (de acordo com a concepgdo de Peirce’), ou seja, os simbolos verbais que a compéem explicitam relagdes que poderiam passar despercebidas, pela mera leitura do poema. Ela exibe algo importante: os trés sintagmas € 0 substantivo composto citados correspondem, em termos da posigo verti- cal que ocupam nas suas respectivas partes, & numerago destas (“branco de medo” € a linha 1 da parte 1, etc.). Se nos concentrarmos nos nomes cespecificos das trés cores associadas a “de medo” e no nome genérico cor, teremos condigdes de visualizar 0 conjunto do modo seguinte: Parte 1: “branco dc medo” (seguido de mais 13 linhas: 14 linhas no total) Parte 2: ti “amarelo de medo” (seguido de mais 11 linhas: 13 tinhas no total) Parte 3: (a) [. Conta aro en 31-2006 a ara de Campos: das cores do medo 3s de Monet “verde de medo” (seguido de mais 6 linhas:9 linhas no total) "furtacor™ (seguido de mais 5 linhas: 9 linhas no total) Atento aos termos acima em destaque, o nosso olhar poderd esta- belecer, para as denominagdes das cores, nfio apenas um interpretante verbal, mas também um de natureza viswal: deste modo, o poema iré apre~ sentar-se, intersemioticamente? , como um quadro quadripartido e dispos- to na vertical, quadro em que 0 branco, 0 amarelo ¢ 0 verde “de medo” € © cambiante de furtacor aparecem, como “faixas pintadas”, em posigdes que correspondem a progressio numérica 1, 2,3, 4. Sendo “branco de medo”, “amarelo de medo”, “verde de medo” e “furtacor” interpretaveis como “faixas coloridas”, com que estilo ou movi- mento pictérico estaria Haroldo de Campos dialogando? Tenhamos em ‘mente dois pontos: a) a correspondéncia posicional desses termos desta~ cados com 0 conjunto numérico 1, 2, 3, 4 ¢ traduzivel em termos visuais (num icone diagramético que a explicita); b) tudo isso implica ordenamento, simetria. A resposta 4 pergunta encaminha-se, entao, para a arte abstra- ta, No na sua modalidade de abstragdo lirica (rica em colorido ¢ em formas menos definidas), mas na de geométrica (mais austera no uso da core com o intento de evidenciar o ordenamento dos detalhes plisticos). Assim, o poema “Topologia do medo” ainda se acha préximo ao coneretismo ‘ortodoxo, embora o fio discursivoda lingua jé recomece a insinuar-se, como, entre varias outras, revela a passagem: “branco do olho branco” (CAM- POS, 1976, p. 154). A proximidade estética reforga-se com o atentar para data de feitura do texto, que sabemos ser 1961-1962, época muito vizinha Ada eclosio do movimento concretista, na década anterior. ‘Uma objegio, porém, pode ser feita A nossa maneira de ver 0 poe- ma: a de que branco, amarelo, vende e furtacor, como signos-ocorréncia, reaparecem varias vezes nas suas respectivas partes, 0 que arruinaria 0 nosso diagrama de correspondéncias, saturando-o de dissimetrias. A répli- ca a tal objecdo consiste em recordar que valorizamos a conexio sintagmatica de branco, amarelo e verde com de medo, que, aliés, forma um conjunto paralelistico de trés sequéncias lingifsticas. Quanto a furtacor, este substantivo mereceu realce na interpretacio nfo s6 porque se encontra dicionarizado (e soa tio natural aos ouvidos como branco de medo e seus dois equivalentes em termos de, digamos, “coloricovardia”), * ortnay- ron 39-2004 ‘ino Machado ‘mas também porque, coma sua acepgio de gradago de cores, o substan- tivo em questo como que resume a série pictérica relativa ao temor. Claro que o interpretante “plastico” aqui proposto diz respeito a uma dimenséo do texto, a que mais importa a0 nosso trabalho. Recorde-se, porém, que jé falamos a propésito de “Topologia do medo” (titulo que con- vida a uma andlise descritiva em termos espaciais, acrescida & semantica pictérica das suas linhas) como se fora um poliptico politico com as suas partes arranjadas verticalmente. Ora, a dimensio politica arrasta consigo problemética do posicionamento ideol6gico, das tensées, da luta no interior do Estado e da sociedade, o que ocorria, de maneira muito aguda, no Brasil dos anos 60 (com Sbvias projegdes nas décadas seguintes). Alids, essa refe- réncia ao contexto nacional de entio pode ser o ponto de partida para uma interpretagdo arriscada: o branco, o amarelo e o verde encontram-se num signo especial, quase sagrado ~a bandeira brasileira. E azul? A explica- io de tal auséncia se acha ~ supomos ~ na parte 4 do poema: acor fura, omedo furta © gosto furta o furtacor o furtarmedo © furtagosto a vidafurta a mortefurta ‘ furtahomem ‘Com tantos “furtos” na passagem citada (mais precisamente: em todas as suas linhas!), arriscamo-nos a efetuar uma leitura equivoca, mas talvez ndo equivocada, da auséncia do azul no texto: esta cor foi dele subtraida (furtada), estando ali pressuposta, contudo, pelo paradigma ver- de, amarelo, azul ¢ branco, associado 4 nossa bandeira nacional, e tam- bém implicada no que existe de cambiante em furtacor. A composicio no apenas trata do medo, mas, ic6nica e sutilmentet , poe em jogo um dos seus efeitos: 0 recalgue de um dado (no caso, semioticamente falando, uma qualidade visual, um qualissigno, o azul, elemento que falta aqui para compor todo a simbologia da nacionalidade). Recalque que, ligadoao ‘medo (“omedo furta”), € uma interiorizagao psico-social, politico-ideol6gi- ca tal como, mutatis mutandis, 0 “co” de “covarde” na terceira estrofe da parte 3: \Gemao-s i. 12004 “ Harold de Campos: das cores do medo as de Monet ‘omedo verde do homem verde ‘omedo varde do homem verde ‘o medo varde do homem varde ‘o medo verde do homem verde ‘Aqui, onovo signo “varde” explica-se de duplo modo: tanto pela sua associagao fénica a “verde”, quanto — desde que se o considere uma abre- viagio, ou recalque, de “covarde” — pela sua semfntica associagao a “nedo” Nem tudo, porém, que ¢ interiorizado tem essa natureza, como ago- ‘ra veremos. : ‘Sem ignorar o componente engajado da composigéo, ressaltamos ja como esta passfvel de um exame que discuta 0 seu fator plastica. Algo, aqui, também internalizado com sutileza pelo escritor, em seu col6quio com autores, produgdes ou modalidades da arte cujos dominios se situam fora do territ6rio da verbalidade: 0 geometrismo que se faz patente, quando se recorre a um icone diagramiitico, da espécie do que nos valemos mais acima, para ressaltar as afinidades do poema com a arte abstrata de pendor geométrico. Alias, uma tal internalizagaio menos evidente pode caracterizar certos intercimbios entre as diversas semioses estéticas (dando um exemplo exterior ao campo lingitistico: para um misico, nao é imposs{vel escrever — digamos ~ uma sinfonia, induzido pelo impacto que Ihe provocou a leitura de um romance, sem que tal sinfo- nia revele com facilidade a obra literaria “ocultada” na sua propria textura sonora). ‘Acham-se outros aspectos quer pict6ricos quer politicos no poema. Os abordados, contudo, parecem suficientes para uma amostragem signi ficativa desses dois fatores. 3. UMa EscuTa DE Moner ‘Termo oriundo das artes gréficas, “Serigrafias” & titulo de uma série de oito composigdes datadas de 1971-1972, trés das quais sio dedicadas ao universo da pintura: “Monet”, “Korin (1658-1716) + Maruyama Okyo (1733-1795)" e “Bis em idem”. Claude Oscar Monet: a este pintor decisivo na histéria do Impressionismo Haroldo de Campos dedicou um poema nas “Serigrafias” de Xadrez de estrelas e mais outro, publicado em 1998 na revista Inimigo rumor 3, cujo titulo, intertextualmente mallarmaico, é “O lance de dados e Certo: eroX-n 19-7004 Line Machado de Monet” (CAMPOS, 1998, p. 11-13). Mas comecemos a concentrar-nos no primeiro “Monet” (que, como é previsivel, nos remeterd ao segundo). Para tanto, recordemos que, de acordo com Plauto, Siménides teria afirmado ser a pintura uma poesia muda, e a poesia, uma pintura falante (lugar-comum que, junto com a expresso “Ut pictura poesis", de Horécio, justificou ao longo de séculos a hipotese da correspondéncia entre as duas artes). Ora, 0 “Monet” de Haroldo inicia-se parecendo ecoar essa afirma- a grega de segunda mio, ao comegar com a proposta postica de escuta da produgio plastica do pintor francés, “muda” por natureza: oouvido 1no papel: fimbrias ouvir as ramagens rmargens arabescos aul actinia prissia coral verdenegro nent fares no fgua-pe ‘ago bago desespelho ondea fur nto (CAMPOS, 1976, [s.p.]) Eliptico, organizado em grande medida através da parataxe, da jus- taposicdo de signos verbais, “Monet” é composto com mengdes quer a0 universo pict6rico do artista, quer a dados da sua existéncia. Na passagem citada, o primeiro caso ilustra-se com a referéncia aos feniifares. Sabe-se que Monet pintou mais de duzentos ¢ quarenta quadros com essa espécie de vegetacio (“nemi- / fares no / 4gua-pé”) como tema, em sua incessante pesquisa com as cores. O que, agora, nos remete a um trecho de “O lance de dados de Monet”, no qual as ninfedceas surgem com mais uma das suas denominagdes (“nome / floral: nelumbo"): cores esse novelo abissal de cores onde um sol pode estar contests 1-208 © ‘Hare de Campos: das cores co med as de Monet farfalhando uz nat6nica da palavraneniifar ‘ou declinando a sombra ‘ureo-satimea desse ‘outro (si mesmo) nome floral: nelumbo tudo isso vindo a seruma azul pantera [.) (CAMPOS, 1998, p. 11) Aqui, ainda que com sobrecarga postica, o texto se apresenta descri- fivo (e a descrigdo de uma obra de arte €, em retérica, denominada ecfrase, como adiante reiteraremos). Retorando agora a “Monet”, na passagem citada mais acima, hé o signo “prissia”, Este deve ilustrar os dados biogrd- ficos referentes ao pintor, aproveitados por Haroldo de Campos. Ao menos ‘num caso, 0 topénimo teve importancia indireta (porém decisiva) na vida de Monet: com o eclodir da guerra franco-prussiana, em 1870, o artista fugiu para a Inglaterra, evitando alistar-se no exército do seu pats, (Em Londres, pintou telas dando destagque a vastas panordmicas da capital britinica.) Mais um signo toponimico relevante na sua existéncia, e agora com direta repercus- so nela, é 0 que aparece no passo seguinte, de “O lance de dados de Monet”: 0 olhoconvalescendo ‘de expulsa nivosa.ca- tarata ~ um que pode colar de frente para o sol ce reparticlo (Como a pupila aquilina ‘que nfo se esbranca ag encarar a fulva combusto do astro helio-fogos0) cereparti-loem ccanteiros de flores- Jardim (no sus- penso) de giverny (CAMPOS, 1998, p. 12-13) No vilarejo de Giverny, jé velho, Monet alugou um chalé e, lé,culti- ‘ou um jardim, que se tornou famoso tanto pela sua beleza natural, quanto “ centea-ana-.1-2006 por haver sido pintado pelo artista varias vezes (pois ele era afeito a produ- it muitos quadros sobre um tinico tema, sob condigdes diversas de luz: montes de feno, dlamos, a Catedral de Roven...). Outra referéncia que entrelaga a biografia do pintor e a sua arte € a que diz respeito ao problema de satide que Ihe atingiu a vista, mas nao o impediu de produzir: ~oolho convalescendo de expulsa nivosa.ca- tarata = Aqui, nota-se também o que consideramos iconizago da semanti- ca: a quebra da palavra “‘catarata” em final de verso langa parte dela — “tarata” — no verso seguinte. “Tarata” ou duplo efeito icénico: olhos € ouvidos sensiveis a tais pormenores no papel poderio, em primeiro lugar, ver esta poredo do signo como a quantidade de dgua que uma catarata de fato joga para baixo e, em segundo, escuté-la como uma discreta ‘onomatopéia ecoando 0 interessante rumor do fenémeno. De fato, em “O lance de dados de Monet”, passamos da nomeagio metaférica lexicalizada do problema oftalmolégico ("‘catarata”), ao sentido literal desta palavra: “o que se langa para baixo”, a queda d’dgua. O elemento descritivo, jd apontado, requer agora atencdo especial. A descrigdo de obras de arte de caréter visual, principalmente a pintura, é uma antiga modalidade discursiva, chamada ekphrasis ou descriptio. Ela nao se restringe, porém, apenas ao enfoque dos objetos estéticos. Além destes, lugares, edificios e até homens foram retratados sob o impulso de tal recurso estilistico. Assim, ha dois sentidos para a nogio de ecfrase. O primeiro é generalizante, abarcando quaisquer escri- tos descritivos, detalhistas; 0 segundo tem acepgo mais restrita, atendo- se aos textos que busquem traduzir, em termos verbais, o que foi elaborado artisticamente para ser fruido por meio da visio. ‘O segundo significado do termo ecfrase, bem mais estrito, tem pre- valecido no campo da terminologia literéria. Mesmo neste caso, todavia, algo necesita ser considerado: um escrito pode nio ser ecfrastico de pon- ta.a ponta; & até poss(vel que contenha poucas passagens enquadriveis pelo conceito, o qual nem por isso deve ignorar-se. A ecfrase tampouco se reduz.aos casos em que um artefato estético de fato exista. Por ilustragio, a obra La galeria, de Giambattista Marino, ndo to-sé um museu de poemas sobre exemplos reais de artes plisticas de natureza diversa: nas suas paginas, Iéem-se, também, textos a propésito de trabalhos alheios que, encomendados, nio chegaram & fase de execugio (cf. SOBRAL, conta: an0 Xn 11-2004 * Maretdo de Campos: das cores do medo as de Monet 1994, p. 37-38)... O proprio Haroldo de Campos assinou a composi¢io intitulada “Klimt: tentativa de pintura (com modelo ausente)" (CAMPOS, 1985, p. 37). Aqui, no parece haver uma tela especifica do pintor, que fosse enquadrada pelos versos do poeta; antes, ao que tudo indica, as ca- racteristicas pictoricas daquele sfo traduzidas em signos verbais, que dio corpo a um denso poema bipartido, cuja meta é a de corresponder a0 estilo suntuoso de Klimt - ou as qualidades deste, os seus qualissignos, nogio que, varias, vezes Peirce procura explicar com a sensago da cor: troquemos 0 vermelho, da preferéncia do filésofo, pelo azul, e chegare- ‘mos a0 significativo titulo de mais um trabalho do nosso autor,'a “Nomea- ao do azul-Volpi” (CAMPOS, 1985, p. 92-93).* ‘O par “Monet” e “O lance de dados de Monet”, de modo semelhan- te, sio tradugdes intersemidticas (ou de um sistema signico para outro, de natureza diversa): nfo deste ou daquele quadro do artista francés, mas de alguns dos seus qualissignos, vale dizer, Haroldo procura captar alguma coisa da qualidade especifica de Monet. ‘Como outros impressionistas, Monet dialogou coma pintura japone- sa. Assim, ndo serd por coincidéncia que, em Xadrez de estrelas, a0 poe- ma que Ihe foi dedicado, imediatamente sigam-se dois outros, relativos a artistas plasticos do pais do “sol nascente”: “Korin (1658-1716) + Maruyama ‘Okyo (1733-1795)" e “Bis em idem”. Contigiidade buscada, com certeza, Isto, porém, é uma outra histéria, merecedora de um enquadramento ana- litico que desborda do que quisemos efetuar aqui. Notas + Balando com rigor maior, o branco nao é cor; entretanto,jé que, no cotidiano, ‘© “sentimos” como se fora uma das cores, ele seré assim nomeado, no nosso trabalho. 2 “Muitos diagramas nao se assemetham, de modo algum, com seus objetos, quanto & mera aparéncia: a semelhanga entre eles consiste apenas quanto & rela- $0 entre as suas partes” (PEIRCE, 1977. p. 66 - destaque n0380). Intersemiose: inter-relagio de signos de eddigos diferentes. +m semictica peirceana, cone diz respeito & semethanga, & similaridade, & analogia (claro que nunca totais, mas existindo em gradagées variadas) entre os signos € os seus objetos. >“Processo de reprodugio de imagens e letreiros sobre superficies planas ou ‘curvas, de papel, pano, vidro, metal etc.,com oemprego de um caixilho com tela de «© Coren -en ta 12004 Lino Machado seda, néilon, ago inoxidével, etc., formando uma espécie de esténcil (méscara) no qual as partes impermeabilizadas representam os claros do desenho ou as éreas reservadas a outras cores, ¢ a tinta passa através das partes permedveis premida pelo rodo ou puxador” (Diciondirio eletrénico novo Aurélio século XM), Claro que otermo “serigrafia” tem aplicagao metaférica, nao técnica, no titulo de Haroldo de Campos. Inicio do poema em questdo: “um / rouxinegro / canta / no azul- / volpi” (CAMPOS, 1985, p.92). Dois detalhes a destacar aqui: a) “um”, isolado no primeiro ‘verso: correspondéncia grifico-iednica entre a posigao do signo-numeral na pégi- nae osentido do mesmo; b) “rouxinegro / canta”: correspondéncia fOnico-icOnica entre o neologismo “rouxinegro” e “rouxino!” Referéncias CAMPOS, Haroldo de. A educagao dos cinco sentidos. Sio Paulo: Brasiliense, 1985. O lance de dados de Monet. Inimigo rumor 3. Rio de Janeiro: Sette Letras, agosto-dezembro 1998, p. 11-13. . CAMPOS, Augusto de, PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta 2.ed, Sto Paulo: Duas Cidades. 1975. Xadrecde estrelas: percurso textual: 1949-1974. So Paulo: Perspectiva, eletrénico Novo Aurélio século XI: Versio 3,0, Rio de Janeiro: Lexicon/ ‘Nova Fronteira, (s.d]. PEIRCE / FREGE. (Os pensadores.) Trad. Armando Mora D Oliveira et al. 3.ed. ‘So Paulo: Abril Cultural, 1983. PEIRCE, Charles Sanders. Semidtica. Trad. José Teixeira Coelho Netto. Sio Paulo: Perspectiva, 1977. . Semiética e flosofia. Int. sel. trad. 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