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Da relação de objeto à falta de objeto

Algumas Notas

Palavras-chave: Objeto perdido; Castração; Frustração; Privação.

Márcia de Souza Mezêncio*

O título dado por Lacan ao seu quarto seminário — a relação de objeto e as


estruturas freudianas — encontra-se abreviado na edição estabelecida por Jacques-Alain
Miller. O título de Lacan tem o mérito e o objetivo de fazer a diferença entre a teoria e
prática da relação de objeto — orientação dominante no movimento psicanalítico de então
— de uma teoria do objeto em Freud. (O seminário foi dado em 1956-1957).
Como se constitui um objeto de desejo? Talvez esta seja a questão central deste
seminário, ainda que não explícita. O argumento de Lacan é que o desejo se articula à
falta do objeto, ao objeto perdido de Freud, que se buscaria reencontrar. Partindo dos
Três ensaios para uma teoria da sexualidade, Lacan centrará a discussão em torno do
objeto fetiche e do objeto fóbico, em sua função de proteção contra a angústia de
castração. Ele o fará através do caso da jovem homossexual, do caso Hans e de Uma
lembrança infantil de Leonardo da Vinci. A construção principal será em torno do objeto
fálico.
A elaboração do quadro das faltas — as três faltas de objeto — sustenta a linha do
argumento de Lacan: articular castração-desejo-objeto, formalizar o conceito de
frustração, que não é rigorosamente um conceito originário de Freud, diferenciando-o do
conceito de privação.
O enquadre privilegiado das chamadas relações de objeto, a relação (dita dual) do
filho à mãe, fornecerá um fio ao desenvolvimento do tema por Lacan. Segundo Miller,
nesse seminário elabora-se “a teoria lacaniana da mãe”. De fundamental importância para
o sujeito é a relação de sua mãe à própria falta e seu posicionamento como mulher. O
quadro das faltas refere-se, portanto, não só ao sujeito como também a esse Outro, que é
a mãe.
Lacan faz inicialmente o inventário da noção de objeto em Freud. Identifica três
noções:
- a noção de objeto perdido e da busca de reencontrá-lo;

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- a noção de objeto alucinado e a indistinção entre uma satisfação na realidade e
uma satisfação alucinada;
- a noção de reciprocidade imaginária sujeito-objeto, a identificação com o objeto
como suporte de toda relação com este.

Pode-se dizer que as conseqüências dessas noções freudianas permitem-nos


afirmar que não existem, portanto, sujeito autônomo ou objeto acabado, total, ideal,
genital. A noção de objeto alucinado é oposta à noção de um objeto tomado da realidade
comum e a noção de reciprocidade imaginária remete à noção de dissimetria da relação,
cujas vicissitudes Lacan elaborou com o Estádio do Espelho.
A prevalência da relação de objeto na prática analítica se assenta, principalmente,
na noção de identificação, concebendo o fim da análise como identificação com o eu do
analista. A relação dita dual é tomada como real, empírica, não escapando às leis do
imaginário. A saída aponta para fantasias de incorporação fálica. Essa é a estratégia de
condução dos tratamentos proposta pela IPA (Associação Psicanalítica Internacional).
O esforço de Lacan será o de estabelecer o caráter deste objeto — o falo —
inserindo-o em uma lógica simbólica, na articulação do que, em Freud, é o mito de Édipo.
Para ele, essa articulação não deve ser tomada na realidade, mas entendida a partir da
organização que a linguagem dá a essa realidade. Isso supõe esclarecer também a noção
de realidade na análise, que não se confunde com a realidade material, mas é
enquadrada na oposição do princípio do prazer com o princípio da realidade. O mais
importante aí não é que a mãe exerça bem sua função e que a criança aprenda a
distinguir o seio alucinado do seio real. (Winnicott) O ponto essencial aqui é a noção de
falta de objeto.
A análise começa pela noção de castração. É a noção freudiana. O fato de se falar
de frustração (teoria da relação de objeto) e privação (como propunha Ernest Jones) e
que estas tenham se tornado as noções chave na condução do tratamento (pelo menos
na vertente da relação de objeto), é o motor do esforço de Lacan em distinguí-las e torná-
las utilizáveis.
Real, simbólico, imaginário são os operadores lacanianos de organização da
experiência analítica. É necessário assinalar que, no momento desse seminário, Lacan
privilegia o registro simbólico. É ele que sustenta o imaginário e ao real só se tem acesso
teorizando-o. O real, neste ponto do desenvolvimento teórico de Lacan, pouco se

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diferencia da realidade, ainda que se apresente o caráter de repetição. Pode-se, então,
relacionar as faltas a esses registros:

- na privação o furo é real, a ausência de algo que não se tem;


- na frustração trata-se de um dano imaginário, da reivindicação não atendida;
- na castração, noção freudiana coordenada à lei primordial, tem-se a dívida simbólica.

Que ou qual é o objeto que falta nesses três casos?

Na castração o objeto é imaginário, pode ser imediatamente nomeado: o falo (-ϕ).


O objeto da frustração é um objeto real (o seio), enquanto na privação é antes um objeto
simbólico (o pênis da mãe).
O quadro é completado com a inclusão do agente:

Ação Falta Objeto Agente

Castração dívida simbólica imaginário pai real

Frustração dano imaginário real mãe simbólica

Privação furo real simbólico pai imaginário

Miller adverte que não se deve seguir o quadro como se segue um mapa. É um
instrumento que ajuda a ordenar a experiência e orientar a clínica. Algumas questões
serão alteradas posteriormente por Lacan e mesmo no correr do próprio seminário 4, nem
tudo se encaixa completamente no modelo.
Lacan introduz a discussão a partir da frustração, destacando o interesse de
pensá-la como introduzindo um ou outro dos planos: castração ou privação. A Dialética da
Frustração demonstra que é impensável, para a psicanálise, a harmonia entre sujeito e
objeto. Freud é bastante explícito quanto ao caráter variável, não necessário do objeto. A
matriz desta dialética nós a encontramos no fort-da, o par presença-ausência que
constitui a mãe como agente simbólico da frustração: ela pode ou não atender o apelo da
criança pelo objeto real de sua satisfação.

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Aqui se articula a falta da criança, a frustração da “necessidade” de objetos reais
de satisfação, com a falta da mãe, sua frustração como mulher. É por isso que a
frustração se desdobra e se inverte, ou seja, a mãe pode não atender ao apelo que a
criança lhe faz e, então, ela se torna uma mãe caprichosa, uma potência real, não mais a
mãe simbólica, como tal submetida ao ordenamento simbólico do Nome do pai. O objeto
também muda de estatuto, passando a ser simbólico, na medida em que a mãe pode dá-
lo ou não, este se torna o símbolo de seu dom, de seu amor.
Têm-se aí as duas vertentes da frustração: frustração de gozo (a noção de gozo
nessa época ainda não está totalmente elaborada, é o equivalente da satisfação de uma
necessidade real) e a frustração de amor. A conseqüência lógica da ordem simbólica é a
desnaturalização do objeto e sua inclusão no registro da demanda. A partir do
desenvolvimento em detalhe dessas duas vertentes da frustração, se elabora o conceito
de demanda, que a torna utilizável na clínica. A importância da frustração de amor é a
constituição dos objetos como signos de amor, signos de dom, estabelecendo sua
equivalência simbólica. O deslizamento na série de objetos se faz possível através de sua
identificação ao falo.

AÇÃO OBJETO AGENTE

( I ) de Gozo Real Outro simbólico


FRUSTRAÇÃO (seio) (mãe)
( II ) de Amor

Simbólico Outro real


(dom) (mãe como poder)

Essa formulação esclarece o impasse da teoria da relação de objeto, que ao não


distinguir frustração de gozo de frustração de amor, não pode deduzir o acesso à
realidade através da falta de objeto, da discordância fundamental do objeto. O estatuto
simbólico do objeto permite também deslocar a questão do acesso à realidade através da
passagem do objeto parcial ao objeto total. Para Lacan, o acesso à realidade depende da
frustração de amor, da dialética do intercâmbio a que se acede por intermédio da

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constituição do dom como forma simbólica do objeto. Isso depende da ordem da Lei, da
proibição do incesto e não de uma experiência empírica da realidade.
Uma palavra sobre a anorexia.1 No comentário que Miller fez do seminário 4, ele
diz que nessa dialética o mais importante é o fato de que a mãe responde e não a
natureza ou materialidade do objeto. Pedem-se coisas inúteis, porque o que importa é a
palavra de amor, os objetos reais se tornam signos de amor. “Em relação à alimentação,
se a alimentação que a mãe dá tem valor mais real que valor de signo de amor, a criança
pode responder com anorexia. Como diz Lacan, prefere comer o nada”. Na anorexia se
encarna o comer nada do amor. De tal forma que a relação de dependência se inverte.
“Graças a este nada, ela (a criança) faz a mãe depender dela”. É, pois em relação à
frustração de amor que se deve pensá-la. Está em jogo uma demanda incondicionada de
amor — ou tudo ou nada. 2
A potência do Outro é ferida, pois é, ao mesmo tempo marcada por uma dupla
falta. Por um lado, há a impossibilidade estrutural de responder à demanda, por outro, o
segredo que a presença-ausência revela: o desejo mais além da demanda, que a própria
falta fálica da mãe induz. É assim que chegamos ao exemplo paradigmático da privação:
a “castração feminina” e a importância dessa falta do Outro no real (“castração” materna)
para a ação da castração. O falo “objeto imaginário da dívida simbólica da castração”,
introduz o sujeito na dialética do dom e das trocas simbólicas, para além da frustração de
amor. Instaura a lei reguladora do poder materno, restringindo, assim, o seu capricho.
A questão sobre o objeto de desejo recai sobre o objeto de desejo do Outro. O falo
se torna a resposta a essa questão, sob as formas do ser ou do ter.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LACAN J. O Seminário – livro 4 – A Relação de objeto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1995

O Seminário – livro 5 – As Formações do Inconsciente, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1999.

MILLER, J.-A. A lógica na direção da cura – Belo Horizonte, EBP-MG, 1995.

RABINOVICH, D. El concepto de objeto en la teoría psicoanalítica, Buenos Aires, Manantial, 1990.

1
Sobre esse tema ver no Seminário 4 – Capítulo XI – O falo e a mãe insaciável.
2
Conf. J.-A. Miller “A lógica na direção da cura”, p. 110

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*
Psicóloga, Mestre em Psicologia - Teoria Psicanalítica (Universidade Federal de Minas Gerais), técnica do
Programa de Liberdade Assistida da Secretaria de Assistência Social da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte,
Analista Praticante, Aderente da EBP - Escola Brasileira de Psicanálise do Campo Freudiano.

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