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A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

Christielle Fagundes

Os mitos religiosos fazem sempre referência a um lugar e período primordiais


onde havia alegria e prazer, sendo a dor e o sofrimento absolutamente
desconhecidos. Esse estado de plenitude deveria durar para sempre, mas,
devido ao mau comportamento do homem, isso foi perdido.

A partir das descobertas psicanalíticas, pode-se pensar que a base para a


criação desses mitos está no desejo, que é também o alicerce da constituição
do sujeito, do fenômeno da transferência e se confunde com o próprio
inconsciente.

No começo da vida, o bebê usufrui de um gozo absoluto na sua relação com a


mãe, mas, posteriormente, algo se perde, instalando-se, a partir de então, uma
falta que fundamentará sua estrutura psíquica e moverá a pessoa, durante toda
a vida, a encontrar o objeto que lhe devolverá sua plenitude.

Freud (1933) aponta a mãe como primeiro objeto de amor do bebê. É um amor
absoluto. Os dois seres formam um par completo, a mãe está sempre atenta e
disponível a atender de imediato as necessidades da criança, esta, por sua
vez, acrescenta Lacan (1956-57) e Fink (1998), tenta identificar qual o desejo
do Outro materno, para, com isso, ser tomada como único objeto da mãe,
completando-a absolutamente, levando-a a prescindir de qualquer outra
relação.

Contudo, há uma lei à qual a mãe está submetida, uma lei que interdita essa
relação simbiótica. Millot (1992) afirma que essa lei se inscreve no inconsciente
sob a forma de proibição do incesto. É a proibição do acesso à mãe como
objeto de gozo; uma castração simbólica. É o momento em que a relação, que
era a dois, é invadida por um terceiro (alguém que represente essa interdição)
e a criança perde seus privilégios.

Esse terceiro é alguém que exerce a chamada função paterna, que funciona
como Lei, como um interdito na relação do filho com a mãe. É uma função que
costuma ser exercida pelo pai, mas por ser simbólica, qualquer outra pessoa
pode desempenhá-la.

Assim, a criança se frustra. Por estar submetida ao simbólico, a mãe dirigirá


seus interesses a outras fontes, seja trabalho ou outros relacionamentos. Vai,
gradativamente, retornando às suas atividades e demais relações de amor.

Dessa forma, a criança é introduzida no mundo simbólico. O simbólico envolve


a representação, isto é, tornar presente algo que está ausente, usar uma coisa
para representar outra. Com isso instala-se uma falta, falta de algo que se
perdeu para sempre.

Miller (1997), diante da questão de qual seria o objeto perdido, responde que
seria a mãe esse objeto fundamental que, mediante a inserção do outro na
relação dual e, consequentemente, da lei contra o incesto, é para sempre
perdida. Mas, novamente, aqui, é preciso observar que essa mãe não é
necessariamente a mãe biológica, mas alguém que cumpra essa função.
Refere-se a uma sensação de amparo e completude.

Na tentativa de reencontro com esse objeto perdido, há a repetição, repetição


de uma situação que proporcione à pessoa uma proximidade com a sensação
primordial, buscando o gozo desfrutado naquele momento inicial. Essa
repetição se dá através de outros relacionamentos.

Ao perceber o olhar de desejo da mãe para outras pessoas, a criança


entenderia que essas pessoas teriam algo de valor a oferecer. Esse olhar da
mãe despertaria, também, o olhar de desejo da criança.

A entrada do pai em cena remove a criança do lugar de objeto completo, que,


por isso, completava a mãe. Esta dirige seu olhar para outra direção, não mais
exclusivamente para o filho, o que leva a criança a se deparar com o enigma
do desejo materno (“para onde ela olha?”). Dessa forma, a criança busca saber
do que se trata quanto ao objeto do desejo materno, qual sua forma. Nesse
intento, passa a olhar na mesma direção da mãe, pois já supôs que se não foi
o bastante para esta, é porque algo falta a ambas.
Assim, a criança se depara com sua própria falta, e passa a tentar obter o
desejo da mãe novamente, mas também a olhar em outras direções,
acreditando poder encontrar no outro o que lhe falta.

No Seminário, livro 5: As formações do Inconsciente, Lacan (1957-58)


apresenta esse percurso como os três tempo do Édipo. O primeiro tempo é a
busca da criança em satisfazer o desejo da mãe. O segundo tempo é marcado
pela intervenção do pai, que é feita junto á mãe, impedindo-a de colocar a
criança como seu objeto de desejo. Por fim, o terceiro tempo é o declínio do
complexo de Édipo, onde subentende-se que o pai pode dar à mãe o que ela
precisa. O interdito está estabelecido.

A partir disso, o sujeito vai se constituindo enquanto tal. Lacan (1964) afirma
que não se nasce sujeito, mas se constitui um sujeito através do Outro, isto é,
na tentativa de aplacar a angústia da falta, busca-se o amor do Outro, entender
o que o Outro espera de si para então aceitá-lo e amá-lo.

A existência da criança, tanto a física quanto a subjetiva, é resultado de algum


desejo dos pais. Nem sempre há o desejo do nascimento do filho; pode haver
desejo de que ele fosse de outro sexo; ou que fosse de determinada maneira,
assumindo uma função específica na família. Esses desejos existem antes
mesmo da existência da criança e continuam a agir após seu nascimento,
sendo responsáveis, em grande parte, por sua inserção no mundo da
linguagem enquanto sujeito (FINK,1998).

Dessa forma, entende-se que o sujeito é causado pelo desejo do Outro. A


leitura do desejo do Outro é feita a partir de seu discurso. A criança capta que
há algo por ser dito nos intervalos desse discurso. Como diz Lacan (1964), “[...]
Nos intervalos do discurso do Outro, surge na experiência da criança, o
seguinte, que é radicalmente destacável – ‘Ele me diz isso, mas o que é que
ele quer?’” (p. 209). Assim, o desejo do sujeito aliena-se ao desejo do Outro: ‘o
que ele quer de mim? o que quer que eu faça? como quer que eu seja?’.

O discurso apresenta sempre duas dimensões: enunciado e enunciação. O


enunciado é o que é dito, enquanto a enunciação está por dizer, é o que está
por trás do dito, é o desejo. A linguagem é permeada pelo desejo e marcada
pela impossibilidade de se dizer o que realmente se quer (SOLER, 1997).

Fink (1998) complementa a fala supracitada de Lacan (1964) considerando


que, quando a criança questiona o discurso do Outro, está interessada em
saber qual seu lugar, que posição ocupa ou que importância tem na vida dos
pais. Nas palavras do autor, “as crianças estão preocupadas em assegurar um
lugar (a si mesmas), tentar ser o objeto do desejo de seus pais, em ocupar
aquele ‘espaço’ entre as linhas, onde o desejo mostra sua face” (FINK, 1998, p.
77).

Esse “interesse” não se limita à infância. Mas pode acompanhar a pessoa por
toda sua vida. Com isso, esse autor observa que o desejo do homem, mais que
ser o desejo do Outro, é o desejo de ser desejado por esse Outro. Quando a
criança percebe que não é o único objeto de amor da mãe, encontra-se
desamparada diante de sua falta e, para preencher essa falta, demanda um
amor infinito.

Lembrando que amor é a suposição de que o Outro sabe ou possui algo que
falta ao sujeito, Lacan (1964) afirma que amar é, essencialmente, querer ser
amado. E isso influencia todas as relações estabelecidas pelas pessoas, que
supõe ao Outro um saber sobre si mesmas. Tem-se, com isso, o fenômeno da
transferência.

A Transferência é um importante conceito da teoria psicanalítica que foi


lapidado na medida em que a teoria foi se desenvolvendo. Freud (1912) a
destacou como sendo o motor mais forte do sucesso da análise; Lacan (1964)
a apresentou como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Ambos atribuíram-lhe grande relevância dentro da teoria e prática
psicanalíticas e buscaram compreender como esse fenômeno se dava.
Elaboraram definições que se diferenciam, mas não se opõem, pelo contrário,
se complementam.

Em 1912 Freud escreve o primeiro texto totalmente dedicado à transferência


intitulado A dinâmica da Transferência, onde observa que esse fenômeno é
uma força que se movimenta de forma ambivalente, podendo ser positiva ou
negativa.

Essa força seria o afeto, os sentimentos: negativos se forem hostis; positivos,


se amistosos. Os sentimentos negativos, ou a transferência negativa, leva a
pessoa a se comportar diante da outra de forma ríspida e desconfiada.
Enquanto a transferência positiva promove uma atitude de confiança, grande
simpatia e, até mesmo, apaixonamento.

Freud (1914) reafirma a importância das primeiras relações de amor na vida da


pessoa e acrescenta que, a forma como as crianças se relacionarão com os
outros será estabelecida até seus seis anos de idade, a partir de seus
relacionamentos primários.

Até os seis anos, as principais figuras da vida de uma criança são seus pais e
seus irmãos. Com eles, são experimentados os primeiros afetos e
estabelecidas as primeiras relações de amor e ódio. Posteriormente, de acordo
com Freud (1914), as pessoas com quem essa criança, futuro adulto, vier a
estabelecer relações, serão tratadas como figuras substitutivas desses
primeiros objetos de seus sentimentos. Lacan (1960-61) concorda com essa
idéia quando afirma que a realidade da transferência é a presença do passado.

Isso explicaria a antipatia ou a grande simpatia sentida por alguém com quem
se teve pouco contato, muitas vezes, nem mesmo é necessário o
estabelecimento de contato direto para que esses sentimentos sejam
despertados, basta observar a outra pessoa se comportando. Não se sabe bem
por que, mas a primeira impressão surgida foi agradável ou desagradável.

(...) Seus relacionamentos posteriores são assim obrigados a arcar


com uma espécie de herança emocional, defrontam-se com simpatias
e antipatias para cuja produção esses próprios relacionamentos
pouco contribuíram. Todas as escolhas posteriores de amizade e
amor seguem a base das lembranças deixadas por esses primeiros
protótipos. (FREUD, 1914, p. 249)

Esses sentimentos são despertados por algo inconsciente, pois, aquelas


relações primárias deixaram marcas que a consciência não suporta carregar,
daí sentimentos surgem diante de algumas situações e a pessoa não sabe
explicar sua origem.
REFERÊNCIAS

FINK, Bruce. O sujeito Lacaniano: Entre a linguagem e o Gozo. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1998;

FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência (1912). Obras psicológicas


completas vol XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996;

_______________. Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar (1914). Obras


psicológicas completas vol XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996;

_______________. Feminilidade (1933). In: Obras Psicológicas Completas vol.


XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996;

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 8: A transferência (1960-61). Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editor, 2010;

LACAN, Jaques. O Seminário, livro 5: As Formações do Insconsciente (1957-1958).


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999;

_____________. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da


psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008;

MILLER, J-A. Parte I: Excomunhão. In: FELDSTEIN, R; FINK, B; JAANUS, M. (org.).


Para ler o seminário 11 de Lacan: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

MILLOT, Catherine. Freud Antipedagogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992;

SOLER, Colette. O sujeito e o outro II. In: FELDESTEIN, R.; FINK, B; JAANUS, M.
(Org). Para ler o seminário 11 de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997;

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