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A CRIANÇA EM SITUAÇÃO DE DISPUTA DE GUARDA: PROCESSOS

IDENTIFICATÓRIOS E FORMAÇÕES TRANSGERACIONAIS

Martha Wankler Hoppe1

Os processos judiciais nas Varas de Família e Infância e Juventude relacionados


à disputa de guarda de crianças envolvem uma complexidade de relações em torno desta. A
disputa de guarda de crianças pode ocorrer entre um casal, pai e mãe biológicos que
reivindicam o filho para si, ou, entre uma família biológica e aquela substituta, que defende
os direitos sobre uma criança que esteve sob seus cuidados por um tempo determinado ou
desde seu nascimento. Falamos aqui daquelas crianças criadas por famílias que são, muitas
vezes, parentes próximos da criança. Nesses processos, observamos que os motivos
desencadeadores da disputa estão ligados ao tipo de vínculo estabelecido entre as famílias
ou entre os casais. Os conflitos geradores da ação judicial envolvem relações de amor e
ódio entre as partes, que inclui a criança como mobilizador e simbólico da existência do
vínculo.
Se voltarmos nosso olhar para a posição em que estas crianças são colocadas
podemos observar um momento de perplexidade e confusão. As crianças expressam
sentimentos comuns, tais como “nunca pensei que isto um dia pudesse acontecer comigo”,
“não sei o que pensar sobre isso”. Como se acordadas de seu adormecimento infantil, são
cobradas a uma definição ou escolha. Quando ouvimos estas crianças e voltamos nossa
escuta para o seu desejo, constatamos um discurso transindividual, marcado por referências
de diversas ordens. Ao mesmo tempo, constatamos que esta criança revela soluções simples
e satisfatórias para o momento, porém, não toleradas pelos adultos responsáveis por seus
cuidados. Na tentativa de articular um discurso inarticulável a criança, nesta situação,
reproduz o momento de vida que está vivenciando e tenta incessantemente encontrar uma
saída para esta situação.
Na compreensão dos vínculos que se estabelecem entre pais e filhos partimos
do pressuposto que esta criança é colocada em um lugar imaginário para ambas partes,
daquela que a concebeu e daquela que tomou-a para cuidados. Esta condição imaginária
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Psicóloga e Professora da ULBRA – Guaíba. Doutoranda do CPG em Psicologia do Desenvolvimento da
UFRGS e membro do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia. E-mail: mwhoppe@zaz.com.br

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coloca a criança na ambigüidade de um vínculo, de um registro identificatório em que
deverá encaixar-se para corresponder, uma vez que sua referência identificatória está
apóiada nele.
Para a compreensão dos enunciados identificatórios, tomamos de Aulagnier
(1997/1975) a noção do espaço de constituição do eu, na condição de passagem de um eu
ideal, previamente determinado, para um ideal de eu. Esta condição é referida por Freud
em 1923, na constatação da influência dos pais na formação dos ideais da criança, na
antecipação do eu ideal através dos ideais parentais, de existência prévia ao surgimento do
filho. O eu ideal como imagem narcísica se equipara ao eu de prazer e corresponde à
ilusão narcísica de ligação perfeita com o objeto de desejo do outro e de si mesmo. Com
este enlace, o eu manteria garantida a incondicionalidade do objeto, sua onipresença.
Como resultado e conseqüência do complexo de Édipo, o ideal de eu marca a
diferença entre presente e futuro e introduz a possibilidade de um projeto, marcado pela
distinção entre o sujeito que crê ser, e o sujeito que aspira ter. Deve-se a ele, a abertura à
dimensão simbólica, configurada pela passagem de um eu idealizado, já realizado, a um Eu
que pode aspirar. Para a efetivação dessa transformação de reconhecimento da falta de algo
no eu e no outro, é necessário que as implicações da castração se apresentem.
O casal irá formar um espaço familiar pelo qual o filho irá constituir-se. Esse
espaço constará de dois organizadores essenciais, o discurso e o desejo do casal parental.
Através da abordagem dos enunciados, presentes no discurso, traçaremos um caminho que
poderá revelar o sentido do registro identificatório na criança. Aulagnier (1997/1975)
aponta a evolução das posições identificatórias, ocupadas sucessivamente numa cadeia
sintáxica: uma, própria do ser “fantasiante” (matteur-em-scène), outra do ser “enunciante”
(matteur-em-sens). Entende que é na dialética do “ser” e do “ter” que será elaborada a
passagem de uma legenda escrita pelo primário, aos enunciados forjados pelo secundário.
A criança, ao colocar-se na enunciação como objeto do desejo da mãe, ou seja,
na concepção de Lacan de ser o desejo do Outro, focaliza a problemática materna de
transformação psíquica:
“ ser objeto do desejo da mãe®
® ter um filho da mãe®
® tomar o objeto do desejo da mãe®

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® ser o objeto desejado pelo pai ®
® ter um filho do pai ®
® dar um filho ao pai ®(e a partir do momento no qual a mulher torna-se
mãe)
® desejar que seu próprio filho se torne pai (ou mãe) que seja realizado por ele
um mesmo “desejo de ter filho” ).
0 três termos de parentesco circulam: criança, pai, mãe.
1 Quatro verbos são representados por dois pares: ser-tomar; ter-dar.
(Aulagnier 1997/1975, p. 115).
Podemos entender o esquema acima, que apresenta a transformação dialética do
ter e ser, na constatação de que a criança é o objeto direto desse predicado, modificando o
objeto indireto, ou seja, para quem ser e de quem ter. No enunciado fica estabelecido que o
sujeito que deseja – ser, ter – projeta num outro, suporte, um desejo em seu nome. Essa
cadeia condena a criança a uma condição mítica em que um representante originário,
antecipado no discurso materno, irá definir representantes sucessivos.
Tomando a condição de constituição do eu, através dos enunciados
identificatórios, buscaremos a investigação desse processo de estruturação de um Eu
idealizado e já realizado, para um Eu esperado, de um sujeito que crê ser, para um sujeito
que aspira ter, na medida em que abre seu espaço na direção de uma dimensão simbólica.
Consideramos que a condição de recalcamento desses processos traumáticos encontra-se na
gênese da formação do supereu, de escolha de um ideal pelo qual, o sujeito, dimensiona seu
Eu atual, característico do processo identificatório (Freud, 1915).
Como conseqüência do processo identificatório de apropriação do Eu como
causa de prazer e sofrimento, formam-se espaços onde a interpretação causal é impedida de
uma causalidade fantasística, devido a situações de intenso sofrimento experimentadas
pelos pais. Em outras palavras, o Eu da criança não encontra outro Eu, na relação parental,
capaz de ser investido pelo prazer e pelo sofrimento, sofrimento este que lhe foi imposto e
causa do apelo. Assim, formam-se demandas transgeracionais que permanecem na estrutura
do psiquismo como enunciados identificatórios de não-desejo e de ausência de sentido.
Podemos considera-las formações estruturantes do psiquismo, irrompem em situações
limites em que o Eu necessita apoiar-se em seus fundamentos para firmar-se na ordem do

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ser e do ter. Consideramos estas formações transgeracionais parte do processo
identificatório da criança e necessárias na sua sustentação.
A partir deste pressuposto, entendemos que os pais, no momento de disputa
pela guarda de um filho, buscam um porta-voz externo que exerça a função continente de
dizer e predizer as possíveis manifestações desse impasse. Ao mesmo tempo, buscam uma
ordem externa que exerça representabilidade e figurabilidade da situação que vivem. O
momento é de exteriorização e de expulsão de conteúdos em uma ação protagonizada por
sujeitos que não se reconhecem na cena. Na manifestação da passagem ao ato, a criança é
posta em lugar do “representado” ou “figurado”. Essa problemática assume diversas
formas, uma vez que o filho, na relação de um casal, é resultado de um investimento
privilegiado e prévio ao seu nascimento, como foi apontado anteriormente. Compreender o
lugar do filho e da enunciação de seu discurso é o ponto de partida para nosso estudo.
Para o desenvolvimento deste estudo, buscamos na proposta de uma investigação
psicanalítica a metodologia de análise de nosso estudo. Propomos a construção de um caso
psicanalítico, tal qual propõe Fédida, (1992), em que o pesquisador buscará sua direção na
análise de supervisão e sua posterior construção e escrituração, direcionando sua
interlocução com uma comunidade específica. O modelo narrativo escolhido para sua
enunciação deverá seguir o estilo próprio do pesquisador e a forma como atribui sentidos á
experiência vivida com o paciente (Hoppe, 2001).
O caso apresentado não segue uma situação de tratamento, tal como é realizado na
clínica, uma vez que é realizado no ambiente de um Fórum, onde são tratados impasses de
ordem jurídica. Entendemos que esta situação não se fundamenta na busca de mudança,
mas na necessidade de reconhecimento, de representabilidade e de realização na ação. A
dificuldade na abordagem do caso, não é muito diferente daquela que encontramos em
hospitais psiquiátricos, onde o paciente é conduzido por não conseguir encontrar uma
alteridade que o signifique. O encaminhamento é originado pelo Juiz que avalia o caso
como uma situação de difícil definição. O psicólogo, que o recebe para uma intervenção,
posiciona-se de forma a encontrar novos sentidos que propiciem a recondução da situação,
legitimando a abordagem na elaboração de um laudo. A intervenção gera expectativas de
solução, cujo envolvimento pode desencadear um processo transferencial, conforme a

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periodicidade estabelecida. No caso em questão, trabalharemos com uma freqüência
semanal de sessões, de quarenta e cinco minutos de duração.

Situando o caso

Abordamos aqui um caso acompanhado no Juizado da Infância e Juventude de


um Fórum do interior do Estado. Foi encaminhado pelo Juiz após a audiência inicial, uma
vez constatado tratar-se de problemas de relacionamento entre as famílias. Os pais
substitutos reivindicam a guarda de uma menina de 11 anos e a destituição do pátrio poder
da mãe biológica. A audiência determinou a guarda provisória aos pais substitutos e a
visitação quinzenal à mãe biológica.
A legalização da situação entre as duas famílias, entretanto, desvelou outros
sentidos que sustentavam a situação entre elas. A menina retornou das primeiras visitas à
mãe com uma visível mudança de conduta. Mostrava-se desafiadora, contestando as
determinações dos pais, principalmente da mãe. Esta por sua vez, retornou ao Juizado para
reverter a situação de visitas, propondo sua suspensão. Diante desta imposição, o Juiz
solicita acompanhamento psicológico da menina.
Até seus três anos e meio ela viveu com seus pais biológicos e suas irmãs, uma
quatro anos mais velha e outra três anos mais jovem. O rompimento com a família ocorreu
diante das crises alcoólicas do pai, em que tornava-se violento. O episódio culminante
decorreu de uma tentativa de suicídio do pai diante da família, com uma facada no peito.
O casal rompeu por solicitação da mãe da menina, que passou grandes
dificuldades financeiras após o afastamento do pai. A situação em que permaneceu chamou
a atenção de parentes que se prontificaram a auxiliá-la. Assim, a menina foi levada pelos
pais substitutos, parentes próximos da mãe biológica, para passar alguns dias com eles e
receber assistência, pois estava desnutrida e com problemas de saúde. Após algum tempo, a
mãe biológica solicita que o casal leve a menina para ficar com eles. A convivência com os
pais substitutos estendeu-se por longos meses sem que a mãe procurasse pela filha. Após
sete anos, com poucas visitas da mãe biológica, a família substituta decide solicitar a
guarda da menina. Segue a audiência com a determinação de guarda provisória e visitação
quinzenal.

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O atendimento da menina estendeu-se por cerca de um ano, seguindo-se após
a audiência que reafirmou a guarda para os pais substitutos. Neste período, a menina
verbalizava sua ambivalência diante da dupla condição de filha e da necessidade de rever o
pai, causa do rompimento com a mãe.
O que podemos afirmar sobre o caso investigado decorre daquilo que tivemos
acesso no curto espaço de tempo do atendimento. Observamos na menina um estado de
perplexidade diante da nova condição legal de ter pais guardiões e uma mãe biológica que
visitava a cada quinze dias.
O contato com a mãe biológica e as irmãs fez a menina reviver sua história
passada. Surgiram lembranças da vida com o pai e o apego recíproco entre eles, além de
sintomas de insônia, pesadelos que se repetiam diariamente e visões, na forma de
alucinações do pai, que estava desaparecido de sua vida. Os sintomas foram superados
durante o tratamento e a menina tornou-se mais dócil com os pais substitutos. Neste
período ocorreu a audiência com a definição da guarda dos pais substitutos e a visitação
mensal à mãe biológica.
Deixaremos nosso relato neste ponto da história para trazer a tona a posição da
menina na trama transgeracional. A mãe biológica pertencia a uma família numerosa, com
grandes dificuldades financeiras. Uma de suas irmãs foi entregue para ser criada por uma
família com melhores condições. Essa irmã, mais velha herdou o patrimônio dos pais
guardiões e vivia sem contato com a família de origem. A mãe referia o fato com
ressentimento, pois a irmã em questão não reconhecia sua família biológica e chegou a
recusar a presença no enterro da avó materna. A mãe, ao revelar este aspecto de sua vida,
identifica na entrega da filha a mesma condição imposta à irmã. Mostra-se ambivalente no
desejo de ter sua filha de volta ao lar. Ao mesmo tempo que reivindica o retorno da menina
expressa o desejo de que ela permaneça com o casal guardião. Assim, a mãe compartilha
junto à filha a condição de escolhida para ter uma vida mais confortável e com mais
oportunidades de crescimento. A menina recebe, assim, a herança materna de assumir o
lugar da irmã (tia) que foi entregue ao cuidados de outro casal, supostamente um lugar
desejado pela mãe e que lhe foi negado. Este lugar de exclusão passa a ser incluído no seu
processo identificatório. Constatamos assim, uma seqüência de identificados que vem

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juntar-se ao identificante, resultante deste processo de mudança que a criança se impõe
neste momento, a favor ou contar o desejo do outro.
Seguimos a problemática materna de transformação psíquica, proposta por
Aulagnier (1997/1975), na articulação dos lugares de mãe, pai e filha: no lugar de ser o
objeto de desejo da mãe, a menina assume os pais substitutos como seus; no lugar de tomar
o objeto de desejo da mãe, depara-se com o pai substituto e a ausência do pai biológico,
este último surge nos pesadelos e alucinações; no lugar de ser o objeto desejado pelo pai,
assume o risco de vir a ter um filho do pai, uma vez não é sua filha de fato. Podemos
enfatizar que este último aspecto sustentava as crises de agressividade com a mãe
substituta. Neste ponto limite situava-se o conflito identificatório da menina, com o risco
de assumir o lugar de objeto do desejo do pai e suas conseqüências.
Procuramos pontuar a análise deste caso para não estender em detalhes e
enfatizamos a importância da compreensão dos enunciados do discurso da criança e do
lugar psíquico em que está colocada pelos pais biológicos e substitutos na trama familiar
apresentada. A história do caso torna-se importante para encadear conteúdos, entretanto, é
no enunciado das demandas de diferentes origens que poderemos encontrar o caminho de
volta à causa do impasse. Nesta investigação, o contato com as famílias é necessário e
imprescindível pois delimita os fundamentos dos desígneos que foram impostos à criança e
que surgem como formações transgeracionais no processo identificatório.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Aulagnier, P. (1997). La violência de la interpretación. Del pictograma al enunciado.


Buenos Aires: Amorrortu editores (Publicado originalmente em 1975).
Aulagnier, P. (1990). Um intérprete em busca de um sentido - II. São Paulo: Escuta.
Fédida, P. (1992). Nome, figura e memória. A Linguagem na Situação Psicanalítica. São
Paulo: Escuta.
Freud, S. (1915). Pulsiones y destinos de pulsiones, Em Obras Completas, vol. 14, (pp.
107-152). Buenos Aires: Amorrortu Editores.
_________ (1923). El yo y el ello. Em Obras Completas, vol. 19, Buenos Aires:
Amorrortu Editores.

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Hoppe, M.W. (2001). Do modelo narrativo à escritura do fato clínico: o drama do paciente
e o caso de analista. Pulsional- Revista de Psicanálise, 140-141, p. 56-62.

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