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FILHOS DO (DES) ABRIGO

Oliveira,R.C.S.
A condição de miserabilidade das famílias das crianças e adolescentes
institucionalizados, bem como a falta de programas sociais básicos a serem
oferecidos pelo Executivo aparecem como base dessas situações. A medida que
era para ser provisória se torna permanente visto que a partir da
institucionalização, outros determinantes também passam a concorrer para o
desligamento entre a criança e sua família, incluindo as práticas profissionais
jurídicas tanto do abrigo, quanto do Judiciário, que muitas vezes, sob o viés da
proteção, sem a devida percepção, acabam reproduzindo o abandono e a
negligência já sofridos por ela e por sua família, mesmo em tempos de uma
legislação avançada e garantia legal de direitos sociais.
A institucionalização de crianças em abrigos é um fenômeno complexo,
realidade contraditória que comporta particularidades diversas, sendo fonte para
tantos e necessários estudos. A realidade dos abrigos e a prática profissional
junto às chamadas crianças e adolescentes carentes sob a medida de proteção
“abrigo”, ainda é pouco conhecida em sua totalidade e pouco desperta a atenção
da sociedade para este debate.
É sobre a complexidade da situação destas crianças e adolescentes, a partir
das práticas profissionais judiciárias e com base nos registros contidos em autos
processuais que se realizou a pesquisa, buscando os elementos determinantes
que contribuíram para a não provisoriedade do abrigo e a não concretização do
direito à convivência familiar, seja junto a família de origem ou substituta, tendo
como um dos enfoques as práticas profissionais desenvolvidas (tanto do abrigo ,
quanto do Judiciário) no processo de abrigamento.
Meu objetivo é levantar algumas questões para uma prática profissional
junto a esta população que esteja mais sintonizada com a construção de sua
identidade e a instituição de uma nova cultura no trato com a criança
institucionalizada, na busca incessante e questionadora da superação de práticas
que, sob o viés da proteção, continuam, muitas vezes sem a devida percepção,
reproduzindo o abandono e a negligência já sofridos por ela e por sua família,
mesmo em tempos de uma legislação avançada e garantia legal de direitos
sociais.

Sobre o papel do Poder Judiciário junto às crianças e adolescentes


institucionalizados e os abrigos
Considerando que o abrigo é uma medida de proteção que tem o caráter de
provisoriedade, visto que, à criança é garantido por lei o seu desenvolvimento
junto à família, seja biológica ou substituta, geralmente, a Vara da Infância e
Juventude tem dois eixos para o trabalho com a criança abrigada: 1) o
investimento e o esgotamento da busca de possibilidades do retorno à família
biológica e, na impossibilidade, 2) o investimento no encaminhamento da criança
para família substituta. Mas entre um e outro eixo existe um mar de outras
possibilidades: temos crianças que mantém contato freqüente com sua família,
não existindo, porém, condições sociais para seu retorno a ela, o que, não pode
justificar em si , o seu encaminhamento para família substituta; temos grande
número de crianças que não tem contato com a família e aguardam a legalização
de sua situação para a ser adotada, e, infelizmente, temos muitas crianças e
adolescentes que não contam com nenhuma destas possibilidades, ou seja, já
perderam o contato com quaisquer familiares devido ao abandono, ao falecimento,
ao paradeiro ignorado, etc. e não tem mais possibilidades de serem adotados,
diante da falta de interessados na adoção de crianças com mais idade.
Pelas características próprias da instituição judiciária, o profissional (e não é
somente o assistente social que corre este risco) tende a desenvolver uma prática
fragmentada e normalmente restrita ao momento em que os autos lhe são
designados para estudo social: “estudo que passando pelo desvendamento da
história e da privacidade das pessoas, inclui parecer e sugestões sobre a medida
social ou legal a ser tomada. Sua intervenção, na maioria dos casos, cessas
nestas sugestões, o que contribui para que perca o vínculo com a sequência e o
resultado de sua ação” (Fávero, 1996: 10). Neste sentido, o trabalho técnico junto
à criança abrigada pode ter menos a função de oferecer um laudo que subsidie a
decisão judicial, e mais a característica de um trabalho que propicia o
acompanhamento e o estabelecimento de um vínculo profissional com vistas a
uma conclusão que privilegie o bem estar da criança. No entanto, vale ressaltar
que, em geral, o bem estar da criança, depende, muitas vezes, da decisão judicial
de destituição do pátrio poder, que por questões diversas pode demorar muito
para acontecer2  . Neste sentido o profissional lida com possibilidades, mas
também com os limites de uma prática que se dá em uma instituição com fortes
traços legalistas, formalistas, conservadores e burocráticos.
O Poder Judiciário tem um papel de extrema relevância no trato com a
criança institucionalizada, pois, além do acompanhamento dos casos de criança
abrigada, também é de sua responsabilidade a fiscalização das instituições de
abrigo, conforme art.95 do ECA: “as entidades governamentais e não
governamentais , referidas no art.90, serão fiscalizadas pelo Judiciário, pelo
Ministério Público e pelos Conselhos Tutelares”.
Num mar de diversidade de instituições de abrigo e de situações de crianças
abrigadas, é ela que aparece como elemento comum, capaz de conhecer a
singularidade e a particularidade das crianças abrigadas, visto que sua
intervenção se dá em dois níveis:
-específico – quando acompanha a situação de uma criança abrigada na
instituição “X”
-abrangente – quando fiscaliza a instituição que abriga “X” crianças
O Poder Judiciário imbuído do poder de decisão sobre a vida da criança e da
fiscalização do funcionamento da entidade de abrigo , assume a função de terceiro
termo da relação criança/família/instituição, exercendo( ou devendo exercer) um
papel de mediador entre eles, orientando sobre os direitos e deveres que regulam
essa relação.3  Mas para que isso efetivamente ocorra é preciso,
primordialmente, que se tenha consciência deste papel.
Os autos processuais: rica fonte de pesquisa
Vale ressaltar que os autos registram desde o momento em que o judiciário
foi acionado devido à necessidade de alguma medida judicial com relação à
situação de uma criança ou adolescente e todo o desdobramento desta situação.
Fazem parte dos autos: documentos pessoais, fotos, relato de entrevistas com as
pessoas envolvidas na situação, estudo social realizado com base nas entrevistas
e visita domiciliar ou institucional, estudo psicológico, pareceres, sugestões,
requerimentos do Ministério Público, decisões judiciais, relato sobre audiências
realizados com juiz e promotor, cartas, relatórios da instituição que abriga a
criança e possíveis informações de outras instituições que atendam a criança ou
sua família. Os autos registram um diálogo entre promotor, juiz, advogado,
assistente social, psicólogo, criança , adolescente e suas famílias e diversas
outras instituições relacionadas à situação em lide. E além de falar sobre as
pessoas envolvidas na lide, falam sobre quem são aqueles que tem o papel e a
função de atender e dar um encaminhamento à situação em questão. Os autos
nos revelam, portanto, identidades.
Perspectiva Teórico-Metodológica da Pesquisa
Especialmente para quem trabalha com questões relativas às relações
sociais , a perspectiva da totalidade aparece como uma forma de iluminação para
a abordagem dos fenômenos sociais. No cotidiano de trabalho das Varas da
Infância e Juventude lida-se com fenômenos sociais como o abandono, os maus
tratos, a institucionalização de crianças, a destituição do pátrio poder 4 , a adoção,
o uso de drogas, o ato infracional, etc. Normalmente trabalha-se a partir do
imediato, da aparência, da singularidade, da fragmentação de uma medida legal e
da pessoa que como sujeito de atendimento do Judiciário se torna “parte” de um
processo judicial. Parte-se da imediaticidade do fenômeno e fica-se nela mesma,
o que faz com que, muitas vezes, nem se perceba as contradições existentes
nesses fenômenos.
Pensar na perspectiva de totalidade inclui pensar em classe social e em
sociedade econômica , em si, essa relação, já é de extrema importância quando
se trata do trabalho em Vara da Infância e Juventude, onde a atuação na
particularidade da vida das pessoas, na sua privacidade, em geral, privilegia a
centralidade na singularidade dos indivíduos, segmentando-os de suas bases
sociais, deslocando os fatores tido como problemáticos, da estrutura social para
os próprios indivíduos e por conseqüência desenvolvendo ações individualizadas
que atuam no sentido da culpabilização .
Pensar a institucionalização de crianças na perspectiva da totalidade, seja a
partir de um sujeito que a vive ou de uma instituição que a realize, significa pensá-
la como um fenômeno que só pode ser melhor compreendido se inserido no
contexto histórico e sócio-econômico da sociedade capitalista brasileira.
Os motivos que levam à institucionalização de uma criança aparecem de
imediato circunscritos ao âmbito da família -“desestruturação familiar” por
problemas mentais, uso de drogas, prisão dos pais , negligência, abandono,
pobreza . Mas as famílias são, em sua maioria, de uma classe social específica -
pobres - e vivem num contexto histórico determinado onde a própria vivência da
pobreza se mostra diferenciada nos diversos momentos da historia, estando
atualmente agravada pelas intensas conseqüências do desenvolvimento
acelerado do capitalismo que gerou uma massa sobrante cada vez maior , com
menor condição de ter minimamente supridas suas necessidades básicas, nem
pela via do trabalho e nem pela via da assistência social.
Apresentação dos dados conclusivos da pesquisa
Considerando que a pesquisa se encontra no término da fase da coleta de
dados, ainda não é possível trazer informações sobre suas conclusões. No
entanto, é possível delinear algumas constatações:
§a condição de miserabilidade das famílias das crianças e adolescentes
institucionalizados aparece como base dessas situações, onde só a mulher
responsabilizada pela criação dos filhos e por conseqüência é quem acaba sendo
culpabilizada pela situação dos filhos ;
§a partir da institucionalização da criança, além das questões apresentadas
até esse momento que levaram ao afastamento entre a criança e sua família,
questões relativas às práticas profissionais jurídicas, também passam a concorrer
para o afastamento e não para o restabelecimento da relação entre a criança e
sua família, o que em geral, levou à sentença de destituição do pátrio poder;
§nessas práticas inclui-se a burocratização no atendimento das famílias,
restringindo-se acesso ao Judiciário e ao abrigo, constantes transferências de
abrigo e restrição de informações claras e precisas para a família
§a falta de integração de trabalho entre abrigo e Judiciário, sendo que um
cuida da vida da criança e outro é responsável pela definição legal sobre tal vida;
§a contradição - para uns o abrigamento efetivamente significou proteção,
para outros sob a pretensa proteção, revelou-se perversão;
§em geral, a criança foi pouco ou mal ouvida durante todos os
procedimentos que
definiram sua situação de vida, não sendo considerada como sujeito de
direitos.

 2 Para que a criança seja legalmente colocada em família substituta, vários


trâmites devem ser seguidos no sentido de que se tente a localização de genitores
ou possíveis familiares, mesmo em se tratando de um caso de abandono clássico.
Há que se nomear um defensor para os genitores ausentes, veicular a imagem da
criança pela televisão ou jornal, fazer busca do nome dos genitores em órgãos do
Estado ou possíveis locais de crédito. Enfim, várias providências são necessárias
para que não se corra o risco de uma nulidade processual caso surja algum
familiar, quando a criança já estiver adotada. Na espera de tais providências
passa-se um tempo, por vezes longo demais, para a criança que vive na
instituição.

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