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LACRI − LABORATÓRIO DE ESTUDOS DA

CRIANÇA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP
FACULDADES RENASCENÇA

GUIA DE DEBATES
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
I NSTITUTO DE PSICOLOGIA
LACRI − LABORATÓRIO DE ESTUDOS DA CRIANÇA

Anatomia de uma Surra

PAI PATRÃO
Uma história de medo ou resiliencia?

Extraído do filme e do livro Pai Patrão


Drª Maria Amélia Azevedo
O FILME
Nome original: Padre Padrone

Tradução brasileira: Pai Patrão

Duração: 115 minutos

Video Produtora: F J Lucas

Ano: 1977

País: Itália

Direção e Roteiro: Paolo e Vittorio Taviani

Atores:

Prêmios: Palma de Ouro e Prêmio Crítica Internacional no Festival de Cannes de 1977.


O LIVRO
Autor: Gavino Ledda

Título: PAI PATRÃO. A educação de um pastor de ovelhas

Editora: Nova Fronteira

Cidade: Rio de Janeiro

Ano: 1979

Tradução do original em italiano:

 PADRE PADRONE

Milano: Giangiacomo Feltrinelli Editore, 1975.


SUMÁRIO

1.0 O enredo ..................................................................................................................................................................... 05

2.0 A educação de um pastor de ovelhas: a educação pela pedra ou a pedagogia despótica ..................... 07

3.0 Gavino: sob o signo do medo? ............................................................................................................................... 22

4.0 Gavino: sob o signo da resiliencia? ...................................................................................................................... 23

5.0 Referências bibliográficas ...................................................................................................................................... 30

6.0 Para saber mais ......................................................................................................................................................... 32

7.0 Anexos ........................................................................................................................................................................ 35


1.0 O ENREDO

O filme foi baseado numa leitura livre do livro autobiográfico de Gavino Ledda. Não é uma
transcrição, como o próprio Gavino enfatiza ao seu final.
O livro − que se constituiu em enorme sucesso editorial − foi publicado em Milão, 1975.
É o relato dramático da infância e mocidade de Gavino, um pastor nascido em 1938, na Sardenha,
tendo sido analfabeto até os 20 anos. O livro está dividido em três partes. A primeira começa a 7 de janeiro
de 1944: o pai − convicto de ser proprietário do filho retira-o violentamente da escola elementar para lançá-
lo no trabalho de pastoreio nos montes, o que equivale a dizer: a narrativa se inicia com o término da
infância de Gavino. No convívio solitário e difícil com o pai − senhor, patrão, proprietário da terra e das
gentes − Gavino deve preparar-se para reproduzir o destino das camadas populares numa Sardenha
miserável: ser pastor como seu próprio pai e seu avô. Sob açoites, surras e humilhações, Gavino deve
aprender a ouvir os ruídos e os silêncios, a conhecer e cuidar de plantas e animais.
Na segunda parte, o autor narra o processo de seu crescimento, a adolescência, a curiosidade do
mundo e, finalmente, seu encontro com a música, paixão proibida pelo pai. Narra, também, sua primeira
tentativa de rebelião contra a tirania paterna: emigrar para Alemanha. Tentativa frustrada, na medida em
que o pai não autoriza a partida. Gavino tenta, e consegue, alistar-se no exército, onde aprende o italiano
(já que era proibido falar o dialeto sardo), estuda e termina a escola média.

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Na terceira parte, Ledda relembra a volta à casa paterna e o confronto − inicialmente verbal e, por fim,
físico com o pai que continuava desesperadamente querendo afirmar-se como PATRIARCA. O relato se
encerra com a rebelião definitiva de Gavino e sua partida do povoado.
O filme − também dividido em partes − faz da música de Strauss o contraponto com o silêncio que
durante anos envolveu Ledda (só quebrado pelos ruídos naturais do vento e dos animais) e seu mutismo
decorrente, num primeiro momento, da incomunicabilidade com o pai e, num segundo momento, da
restrição comunicativa imposta pelo dialeto que durante anos foi a única linguagem que Ledda dominou.
A incomunicabilidade definitiva do FILHO-CRIADO para com o PAI-PATRÃO fica patente na cena
reproduzida a seguir:

Enquanto Gavino tenta retirar a mala debaixo da cama do


pai, a fim de poder sair definitivamente de casa, o pai faz
menção de afagar sua cabeça; arrepende-se e a mão
erguida parece, como sempre, um soco suspenso no ar...

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Gavino Ledda formou-se em letras e hoje é professor de lingüística na Universidade de Sassari.
Publicou também:

· Lingua di falce. Milano: Feltrinelli, 1977; e


· Le cane amiche del mare. Firenze: Manzuoli, 1978.

2.0 A educação de um pastor de ovelhas: a educação pela pedra ou a pedagogia despótica

A EDUCAÇÃO PELA PEDRA

Uma educação pela pedra: por lições;


para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
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xxx
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
João Cabral de Melo Neto. Poesias completas, 1975.

A história de Gavino Ledda é, em verdade, a história paradigmática da educação rural na Sardenha


empobrecida dos anos 40 do século XX.
Uma educação extremamente autoritária, violenta e conservadora. Autoritária porque centrada na
figura do patriarca enquanto senhor todo poderoso que, arbitrariamente, fazia as leis e impunha punições
aos que as transgrediam.
PAI − PATRIARCA − PADRINHO − PATRÃO − PADRE ETERNO − PATRONO, o princípio e o fim de todas
as coisas, como Gavino vai descobrindo quando consegue penetrar no mundo mágico dos sons das
palavras.
Uma educação violenta seja no sentido físico, seja no sentido psicológico do termo. Uma educação
aplicada por um pai tão duro quanto os outros vizinhos, destinada a plasmar um caráter duro, no meio da

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dureza das condições naturais da Sardenha. Uma autêntica educação pela pedra, como se de pedra fora o
coração do pai... Uma educação conservadora, ancorada na tradição secular da Sardenha, de que os filhos
devem reproduzir o destino dos pais.
Uma educação que se desenvolve segundo os pressupostos da Pedagogia Despótica, tal como se lê no
encarte a seguir.

Encarte nº 1
Relato
Mais tarde, porém, calhou que meu pai foi ver Nicolau: meu casaco, que eu tinha esquecido lá, na
hora em que ouvira o zurro do jumento, foi o sinal irrefutável de minha presença. Nicolau procurou
justificar-me, mas não convenceu o patriarca. Aí desencadeou-se em meu pai o furacão punitivo...
“Você mentiu. Você esteve no Nicolau”, disse-me, jogando-me o casaco na cara. “Isso é grave e
você v ai pagar”.
Agarrou o primeiro arbusto ao alcance a mão, agrediu-me gritando como um louco e me malhou
de pancadas sem olhar onde batia, como se fazia com os animais. Comecei a correr
desesperadamente, procurando esquivar-me de seus ataques, esperando que desabafasse a fúria.
Mas ele vinha atrás, continuando a espancar-me. Um atrás do outro, corríamos em volta do curral
como dementes.
Enquanto corria para evitar as pancadas, mal tinha uma margem de segurança, eu virava
agoniadamente a cabeça para ver se, afinal, a tempestade estava acabando. Infelizmente, via
sempre atrás de mim as nuvens e os raios de sua raiva. Como um cão raivoso, tendo perdido 9
sempre atrás de mim as nuvens e os raios de sua raiva. Como um cão raivoso, tendo perdido
totalmente a luz da razão, ele me alcançava continuamente para malhar-me mais e mais. Possuído
pelo furor de sua violência educativa, não olhava mais. Espancava e pronto!
Batia-me ritmicamente na cara com o arbusto. Seu braço tornara-se o pêndulo de sua cólera. Cada
vez que eu me virava, recebia-o em pleno rosto. Durante mais de dez minutos prolongou-se esse jogo
feroz, em que eu corria e me esgueirava entre os espinheiros, as moitas e as rochas ao redor da
cabana. E durou mais que de costume, por um motivo que eu então desconhecia: eu procurava a
salvação na fuga. Eu não sabia que deveria suportar a punição e as pancadas sem reagir. O instinto
sugeria-me a fuga. Não conhecia essas regras. Daí este trágico paradoxo: quanto mais eu procurava
me proteger, tanto mais ele aumentava a violência e se enfurecia contra mim.
Finalmente, depois desses dez minutos de ataque feroz, quando viu meu rosto cheio de sangue e
meus olhos inchados e vermelhos, o ciclone pedagógico parou. O vento afugentou aquela nuvens,
como por encanto. O rugido educativo emudeceu na calmaria, mas era tarde demais.
Na hora, não se deu conta da gravidade do caso. Deixou-me chorando desconsoladamente,
apoiado numa pedra. Vociferou e blasfemou para resumir sua lição, e foi buscar a vaca para
ordenhá-la.
Quinze minutos mais tarde passou diante de mim puxando o animal por uma corda amarrada aos
chifres. Lançou-me um olhar apressado, mas quando viu meu rosto desfigurado e inchado, assustou-
se. O leão transformou-se em cordeiro, seu rugido em balido.
− Você consegue enxergar? − perguntou inquieto.
− Consigo! Mas meus olhos... meus olhos estão queimando. Estão doendo muito. O rosto todo está
queimando − respondi apavorado. 10
queimando − respondi apavorado.
Na mesma hora, largou a vaca. Correu para a cabana e voltou com o frasco de iodeto. Medicou-
me as feridas e os sulcos cavados pelos golpes repetidos e me deixou com o rosto em fogo e pintado
de amarelo.
− Oh, Nicolau!, Oh, Nicolááá!
− Oi, Abramo! O que é?
− Vem cá!
− O que que há?
− Tenho que levar o garoto para o povoado, já, já. Acho que exagerei um pouco. Os olhos... são os
olhos que me preocupam. Nunca mais vou usar galhos para dar nele. O cajado ou o cinto serão
suficientes.
− Até que enfim você entendeu, graças a Deus!
Arreou Pacífico, embrulhou-me em seu casaco, cobriu-me com outros trapos, e lá fomos.
− Está enxergando? Está mesmo?
− Estou sim.
− Fecha o olho direito.
− Tá.
− Fecha o esquerdo.
− Tá.
− Você não devia correr de mim! Aí de você se fugir outra vez que merecer uma punição.
− Mas eu não sabia...
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A noite ia caindo das montanhas, e a escuridão nos envolveu enquanto Pacífico nos transportava
para casa, cada um fechado em sua dor.
A chegada a Síligo foi uma tragédia. Mamãe custou a me reconhecer. Identificou-me pelo porte e
pela roupa mais do que pela fisionomia, e interpelou meu pai, em prantos.
− O que foi que você fez, meu Deus! Vou à polícia. Vou te denunciar.
− Eu sei! Fui longe demais. Por enquanto vai chamar o médico. Depois vamos ver. Vai correndo... o
médico! Vai!
− O médico! − repetiu mamãe, jogando nos ombros seu xale preto e precipitando-se pela rua escura.
Voltou com o doutor Ruju, o mesmo que curara minha broncopneumonia.
− O que foi que aconteceu?
Sua pergunta não teve resposta. Irritado e preocupado, examinou-me os olhos, abrindo-os com os
dedos.
− Vocês têm sorte! É uma sorte que os olhos não estejam atingidos − disse, com um suspiro de alívio. −
O resto vai ficar bom sozinho. Vai levar tempo, naturalmente. Mas como se pode fazer uma coisa
dessas! Coisa de louco!
− Ele caiu num barranco, num matagal cheio de espinhos e de estrepes − disse mamãe, tentando
livrar a cara do marido, uma vez tranqüilizada quanto aos olhos.
− Num matagal coisa nenhuma! Isso é surra! São pancadas!
Papai estava junto da lareira, querendo sumir, de tanta vergonha. E, todo encolhido em seu silêncio,
agüentou, sem uma palavra, a tirada violenta do médico.
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agüentou, sem uma palavra, a tirada violenta do médico.
− Vocês costumam educar seus filhos da mesma maneira que habituam os animais a suportar a
carga ou a canga! Usando sempre o chicote e o pau! Educar é difícil: não se educa uma criança
com pauladas ou vergastadas, e sim com a palavra. Eu deveria denunciar você, meu caro
Abramo! Não vou fazê-lo, porque conheço sua situação e não quero acrescentar mais miséria à
miséria que está apertando vocês de todos os lados. Mas que isso sirva de lição!
O médico saiu, deixando meu pai sem graça, humilhado, feito um cachorro que apanhou do dono.

FONTE: LEDDA, G. (1979). Pai patrão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

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Pedagogia Despótica

“Despótica” vem de “déspota” que, em grego (despotês), é o chefe de família e, enquanto tal, personagem da sociedade e
política gregas. No modelo grego de família, três relações fundamentais estavam imbricadas: entre senhor e escravo; entre
marido e mulher; e entre pai e filhos.
O déspota é o senhor absoluto de suas propriedades móveis e imóveis, das pessoas que dele
dependem para sobreviver (escravos, mulher, filhos, parentes e clientes) e dos animais que emprega
para manutenção de suas propriedades. A principal característica do déspota encontra-se no fato de ser
ele o autor único e exclusivo das regras que definem a vida familiar, isto é, o espaço privado. Seu poder,
escreve Aristóteles, é arbitrário, pois decorre exclusivamente de sua vontade, de seu prazer e de suas
necessidades... O déspota (o despotês; o pater familias) só domina os dependentes e não os livres.
(Chauí, 1992:357)

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Nesse modelo de família, a autoridade despótica (despoteia) define e caracteriza o governo doméstico (oikonomia) e se
exerce em relação aos filhos por meio da Pedagogia Despótica. Essa Pedagogia foi − talvez impropriamente − denominada
Pedagogia Negra* numa alusão a seu caráter maldito, sinistro e nefando.
Os princípios dessa modalidade pedagógica têm a obediência aos pais como a regra de ouro da educação familiar, regra
essa que poderia ser traduzida no conhecido refrão: Quais são os que merecem? São aqueles que obedecem! Como assinala
muito bem Alice Miller (1985:26), seu “programa” educativo implica
demonstrar às crianças − tanto verbalmente quanto através de fatos − que devem submeter-se à
vontade de seus pais e que devem fazê-lo desde o princípio, quando podem já dar-se conta de certas
coisas. A obediência consistirá: 1. em que as crianças realizem com gosto o que se lhes ordena; 2.
deixem de fazer com gosto o que se lhes proíba; e 3. se sintam contentes com as normas que se
prescrevam pensando nelas.

Embora um tanto longo, o texto de J. Sulzer, extraído do livro de Alice Miller (idem:24-6) e reproduzido a seguir, é
exemplar porque permite apreender toda a teia de práticas e crenças educacionais envolvidas no modelo da Pedagogia
Despótica, e cujo objetivo é um só: quebrantar a vontade infantil, exorcizar a desobediência de crianças e jovens e, assim,
afastar o perigo de subversão da ordem (intra e extrafamiliar).
No que respeita à teimosia, diremos que se manifesta como um recurso natural já na primeira infância,
quando as crianças podem dar a entender, mediante gestos, que desejam algo quando vêem algo.
Vêem algo que gostariam de ter mas não podem consegui-lo. Se aborrecem, gritam e dão golpes a seu
derredor. Ou, então, nós lhes damos algo que não lhes agrada e elas o atiram longe, começando a
chorar. São esses hábitos maus e perigosos que impedem a educação integral e deixam aflorar coisas

*
Em 1977, Katharina Rutschy publicou, na Alemanha, o livro Schwarze Pädagogik, contendo vários textos sobre o que ela denominou, já no título, Pedagogia Negra.
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más nas crianças. Se não se eliminar a teimosia e a maldade, será impossível dar uma boa educação a
uma criança. Por isso, quando esses vícios se manifestarem em uma criança será preciso combater o
mal em sua origem, a fim de que o costume não o intensifique e os pequenos não se corrompam de
todo. Por conseguinte, aconselho todos aqueles cuja tarefa consista em educar crianças que convertam
em seu trabalho principal a eliminação da teimosia e da maldade, e persistam nela até que consigam
seu objetivo. Como já assinalei, não se pode tentar raciocinar com crianças pequenas; por isso a
teimosia deve ser eliminada de maneira mecânica e para isso não há outro meio senão se zangar com
as crianças. Se cedemos uma vez ante sua obstinação, na segunda vez esta se terá robustecido e será
mais difícil erradicá-la. Se as crianças se dão conta de que com suas zangas e gritos impõem sua
vontade, não deixarão de recorrer, vez por outra, aos mesmos métodos até que, no final, acabarão sendo
os amos de seus pais e babás e desenvolverão um mau caráter obstinado e insuportável com que
torturarão enquanto vivam a seus pais, como merecida recompensa pela boa educação recebida. Mas se
os pais têm a sorte de neutralizar a teimosia, desde o primeiro momento, mediante sérias reprimendas e
distribuindo golpes com a vara, obterão crianças obedientes, doces e boas
*
Os princípios educativos do Dr. D.G.M. Schreber são os enunciados a seguir:
1º A criança é má de nascença. É necessário separá-la de sua natureza e submetê-la a um adestramento moral e físico (alternação de abluções de água fria e quente
desde os três meses de idade, alteração de terror e sedução).
2º A criança deve adquirir precocemente a arte da renúncia. Deve-se tomar posse, portanto, do seu ser para garantir o domínio do mesmo.
Todo o problema da criança que chora, dos humores que vêm em seguida e da teimosia podem ser assim resolvidos, segundo o Dr. D.G.M. Schreber, no primeiro ano de
vida. Também é, acrescenta ele, o melhor momento para exercitar a criança na “arte da renúncia”. Trata-se de fazer com que a criança sinta o desejo de alguma coisa,
para se lhe recusar em seguida aquilo que ela não deixará de pedir. A ama, com a criança em seu colo, é assim convidada a comer e beber com o único propósito de
opor em seguida uma recusa ao pedido oral da criança. Cumpre suprimir o desejo, para deixar somente subsistir os automatismos (a fome a horas certas). O Dr. Schreber
conta como despediu imediatamente uma ama por ter infringido a regra ao dar a seu filho um pedaço de pêra fora de hora. O caso foi tão falado em Leipzig que ele nunca
mais teve problemas com as amas seguintes.
3º O controle que o adulto adquire sobre as tendências da criança deve estender-se igualmente sobre o corpo dela; daí o desenvolvimento de toda uma ideologia
corretiva do corpo, que encontra a sua expressão na ginástica médica e diversas aplicações ortopédicas. Daniel Paul Schreber foi submetido ao que Sylvester chama
gadget experience, isto é, ao contínuo uso mecânico da coerção corporal, que não pôde deixar de causar em Schreber distorções no âmbito da imagem do corpo.
Pode-se dizer, sem risco de errar muito, que Daniel Paul Schreber foi submetido, na sua relação com o pai, a uma perversão da demanda de amor. Ele era amado ao
preço de não ser; ou melhor dito, ao preço de deixar seu desejo inteiramente governado pelo pai. (Mannoni, 1988:28-9)

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distribuindo golpes com a vara, obterão crianças obedientes, doces e boas, às quais logo poderão oferecer
uma boa educação. Onde seja necessário deixar uma boa base educativa, deveremos continuar
trabalhando até constatarmos o desaparecimento da teimosia, pois esta não deve manter-se de modo
algum. Que ninguém imagine poder fazer algo bom no âmbito educativo se não eliminou antes estas
duas marcas fundamentais. Trabalharia em vão. Nesse caso, torna-se necessário lançar primeiro as
bases.
Estes são, pois, os dois temas primordiais que é preciso levar em conta durante o primeiro ano de
educação.
Se as crianças têm mais de um ano de idade e começam a entender e falar um pouco, será preciso
pensar em outras coisas, ainda que apenas com a condição de que a teimosia seja o objetivo principal
de nosso trabalho formativo, até que desapareça de todo.
Nossa intenção básica será sempre fazer das crianças pessoas honradas e virtuosas, e os pais deverão
ter presente essa intenção, cada vez que observem seus filhos, a fim de não perderem oportunidade
alguma de trabalhar para eles. Também deverão ter muito presente na memória o esboço ou a imagem
daquele espírito disposto à prática da virtude que descrevi há pouco para que saibam o que lhes
corresponde fazer. A tarefa primordial e mais genérica que se impõe consiste em inculcar nas crianças
o amor à ordem: é o primeiro passo que exigimos para alcançar a virtude. Nos primeiros três anos −
como tudo quanto se queira empreender com as crianças − só poderá ser conseguido de forma
puramente mecânica. Pois tudo quanto se faça com as crianças deveria ser feito segundo as normas de
uma ordem justa. A comida e a bebida, o vestir, o dormir e, em geral, o pequeno mundo familiar das
crianças, deverão reger-se por uma certa ordem e não ser nunca alterados em função da teimosia ou
das extravagâncias infantis, a fim de que eles mesmos aprendam a submeter-se às normas da ordem já
na primeira infância. A ordem que alguém lhes imponha influirá indiscutivelmente em seus temperamentos
e se as crianças se acostumarem desde cedo a uma ordem determinada, mais tarde a julgarão
perfeitamente natural, pois não se darão conta de que lhes foi imposta de forma artificial 17
perfeitamente natural, pois não se darão conta de que lhes foi imposta de forma artificial. Se, para
agradarmos a uma criança, aceitarmos alterar sua pequena ordem familiar, cada vez que seus caprichos
assim o desejem, ela poderia pensar que a ordem definitivamente não importa muito e há de ceder com
freqüência a seus caprichos. Este seria um prejuízo que acabaria solapando, em grande escala, a vida
moral, como é fácil deduzir do que já foi dito sobre a ordem. Quando for possível falar com as crianças,
teremos de aproveitar qualquer oportunidade para apresentar-lhes a ordem como algo sagrado e
inviolável. Se desejam algo que atente contra a ordem, digamo-lhes: “minha querida criança, isto é
impossível, atenta contra uma ordem que nunca deve ser transgredida etc. etc.”
A segunda tarefa a que a gente deve se dedicar já no princípio dos segundo e terceiro anos de
educação é a estrita obediência aos pais e superiores e uma satisfação infantil com tudo que eles
façam. Essas qualidades não apenas são absolutamente necessárias para o êxito do processo
educativo, como exercem uma influência muito grande na educação em geral. São importantes porque
infundem no espírito o sentido de ordem e de submissão às leis. Uma criança acostumada a obedecer a
seus pais se submeterá com gosto às leis e normas da razão, quando for dono e senhor de seus atos,
pois já estará habituada a não agir segundo sua própria vontade. Essa obediência é tão importante que,
a bem da verdade, toda educação não é outra coisa que a aprendizagem da obediência. É um princípio
universalmente aceito que as pessoas de alto posto, chamadas a reger os destinos de nações inteiras,
têm que aprender a arte de governar começando pela obediência. Qui nescit obedire, nescit imperare
(quem não sabe obedecer, não sabe governar): mas a única razão que explica isso é que a obediência
ensina o homem a respeitar devidamente as leis, primeira qualidade de um governante. Assim, quando
tenhamos expulsado a teimosia do tenro espírito das crianças, graças a nosso esforço inicial, o objetivo
fundamental de nossa tarefa deverá consistir em inculcar-lhes a obediência, coisa não muito difícil. É
perfeitamente natural que a alma infantil queira sobressair-se e se não se fizer as coisas
adequadamente nos dois primeiros anos será difícil atingir o objetivo mais tarde. Esses primeiros anos
apresentam, entre outras, a vantagem de que podemos empregar a violência e a coerção. Com o tempo
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apresentam, entre outras, a vantagem de que podemos empregar a violência e a coerção. Com o tempo
as crianças esquecem tudo quanto se lhes ocorreu na primeira infância. Se naquela etapa
conseguirmos despojá-los de sua vontade, nunca mais tornarão a recordar que tiveram uma e,
precisamente por isso, a severidade que for necessário aplicar não terá qualquer conseqüência grave.
É, pois, preciso demonstrar às crianças, tanto verbalmente quanto por meio de fatos, que devem
submeter-se à vontade de seus pais, e deve-se fazê-lo já a princípio, enquanto possam dar-se conta de
certas coisas.
O que esse pedagogo − cerca de 250 anos atrás − demonstra é o “engenho e arte” de uma proposta, dita “educativa”,
extremamente astuciosa, destinada a “colonizar a criança”, porque assentada no princípio da autoridade inconteste de pais
sobre filhos.
Colonizar enquanto forma de dominação, domesticação. Colonizar, do verbo colo, cujo sentido básico “tomar conta de”,
abrange não apenas o cuidar mas também o mandar, dominar (Bosi, 1992:11).
A “Pedagogia Despótica” teve, na Alemanha do século XIX, seus teóricos mais populares: entre eles, o Dr. Schreber, pai
do paciente paranóico descrito por Freud. Suas obras pedagógicas foram tão populares que chegaram a alcançar cerca de
quarenta edições, com traduções em vários idiomas. Sua tese é a de que se deve começar o mais precocemente possível a
educar a criança, já no quarto mês de vida, se se quer “livrá-la das ervas daninhas”.
A passagem seguinte, escrita em 1858, pelo Dr. Schreber (apud Miller, 1985:19-20), mostra o que este sugeria para
educar a criança ou − o que vinha a dar no mesmo − para discipliná-la.
Os gritos ou choros sem motivo com que a criança manifesta seus caprichos devem ser considerados
como as primeiras provas para avaliar a efetividade dos princípios espirituais-pedagógicos... Uma vez
convencidos da inexistência de qualquer autêntica necessidade por trás, de nenhum estado penoso ou
doloroso, de nenhuma enfermidade, podemos estar seguros de que os gritos não são senão a
expressão de um capricho ou melindre, a primeira aparição da teimosia. Nesse caso, não devemos
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limitar-nos a reagir como no início, esperando, mas devemos atuar de modo algo mais positivo:
distraindo rapidamente sua atenção, recorrendo a palavras de zanga ou gestos ameaçadores, dando
pequenos golpes na cama... ou então, quando isso não surtir efeito, mediante admoestações corporais
convenientemente suaves mas repetidas tenazmente a breves intervalos, até que a criança se acalme
ou adormeça... Bastará aplicar este procedimento uma vez ou, no máximo, duas vezes, e seremos
amos da criança para sempre.
A partir de então, bastará um olhar, uma palavra ou um único gesto ameaçador para controlá-la. Não
esqueçamos que, com isso, estaremos fazendo um grande bem à própria criança, libertando-a de
muitas horas de inquietude, horas essas prejudiciais a seu desenvolvimento, e liberando-a de todos
aqueles tormentos interiores que, além do mais, proliferariam com enorme facilidade, convertendo-se
em inimigos vitais cada vez mais sérios e difíceis de superar* .
Essa Pedagogia − segundo Schreber − acabaria recompensando os pais, na medida em que produziria a “agradável
situação” de uma criança controlada quase inteiramente com um simples olhar deles. Ou seja: a criança-robô.
Longe de constituir somente um momento da história da educação ni fantil, a Pedagogia Despótica representa um processo
que:
a. desenvolveu-se a partir de práticas antigas de mutilação física, assassinato e exploração de crianças (deMause,
1975:260);
b. mascarou-se com a incorporação do castigo psicológico (humilhação) enquanto sucedâneo eficiente do castigo
corporal, na empreitada de transformar a criança em adulto;
c. sobrevive ainda hoje na “pedagogia do chinelo”, que legitima o uso da força na educação familiar, da mesma forma
que a “pedagogia da palmatória” o legitimava na educação escolar.
Um processo que − a despeito das conquistas do século XX, considerado o século da criança − ainda está presente nas
famílias de hoje, constituindo o caldo de cultura de que se alimentam muitos episódios de violência doméstica contra
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famílias de hoje, constituindo o caldo de cultura de que se alimentam muitos episódios de violência doméstica contra
crianças e adolescentes.
Isso tem sido possível porque − como bem mostra Fize (1990) ao tratar da realidade francesa − desde a Antigüidade
Clássica até 1945, com o término da Segunda Guerra Mundial, o padrão de relações familiares praticamente não evoluiu:
manteve-se o modelo autoritário, que só recentemente, segundo o autor (década de 80), começa a ser substituído mais
consistentemente por um modelo de democracia familiar, guardadas as devidas proporções. Essa trajetória histórica − do
autoritarismo à democracia familiar − parece ter ocorrido também em vários países da civilização ocidental na última metade
do século XX. Por ser tão recente, torna-se fácil entender por que as sociedades ainda hoje transmitem, no seio familiar, ao
lado da herança biológica, uma herança cultural de que fazem parte juízos de realidade e juízos de valor capazes de embasar
as práticas da Pedagogia Despótica. Eis alguns deles:
1. Os adultos são amos (e não empregados!) da criança dependente.
2. Eles decidem, como deuses, o que é justo e injusto.
3. Sua ira provém de seus próprios conflitos.
4. A criança é responsável por ela.
5. Deve-se sempre proteger os pais.
6. Os sentimentos vivos da criança representam um perigo para o adulto dominante.
7. Deve-se “tirar a vontade” da criança, o quanto antes.
8. Deve-se fazer tudo em tenra idade para que a criança “nada perceba” e não atraiçoe o adulto.
Os métodos para reprimir a espontaneidade vital são: montar armadilhas, mentir, aplicar a astúcia, dissimular, manipular,
amedrontar, tirar o carinho, isolar, desconfiar, humilhar, desprezar, caçoar, envergonhar e aplicar a violência até a tortura.
Também forma parte da Pedagogia Despótica transmitir à criança, desde o começo, informações e idéias falsas. Estas
foram passando de geração a geração e são aceitas com respeito à criança, embora não tenham sido jamais demonstradas e
embora seja possível provar sua falsidade. Entre estas idéias estão, por exemplo:
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1. que o sentimento de dever engendra amor;
2. que é possível acabar com o ódio, mediante proibições;
3. que os pais merecem respeito, a priori, por serem pais;
4. que as crianças, a priori, não merecem respeito algum;
5. que o obediência robustece;
6. que um alto grau de auto-estima é prejudicial;
7. que uma baixa auto-estima conduz ao altruísmo;
8. que a ternura é prejudicial (amor cego);
9. que é mau atender às necessidades da criança;
10. que a severidade e a frieza constituem boa preparação para a vida;
11. que a gratidão fingida é melhor que a ingratidão honesta;
12. que a maneira de ser é mais importante que o ser;
13. que nem os pais nem Deus sobreviveriam a uma afronta;
14. que o corpo é algo sujo e repugnante;
15. que a intensidade dos sentimentos é prejudicial;
16. que os pais são seres inocentes e livres de instintos;
17. que os pais sempre têm razão. (Miller, 1985:66-7)

Subjacente a toda essa poderosa teia de representações estão dois mitos básicos: o das divindades familiares e o da
maldade infantil.
No primeiro caso, trata-se do mito dos pais perfeitos (ou mito da bondade dos pais) a que se referem Forward e Buck
(1990:29-31):

22
Os antigos gregos tinham um problema. De seu pátio etéreo de recreio, no cume do Monte Olimpo, os
deuses os contemplavam e se erigiam em juízes de tudo o que faziam os gregos. E, quando não
estavam complacentes, apressavam-se a impor o castigo. Não tinham por que mostrar-se bondosos;
não tinham por que ser justos; nem sequer deviam ter razão. A bem da verdade, os deuses podiam
comportar-se de modo totalmente irracional. Segundo seu capricho, podiam converter uma pessoa em
eco ou condená-la a subir uma rocha pela encosta de uma colina, durante toda a eternidade.
Desnecessário dizer que a imprevisibilidade desses poderosos deuses causava medo e confusão
consideráveis entre seus mortais devotos.
Algo parecido sucede na relação entre um certo tipo de pais e seus filhos. Aos olhos de uma criança,
um pai/mãe imprevisível é um deus que inspira temor sagrado. Quando éramos muito pequenos
aquelas divindades parentais eram tudo para nós. Sem elas não teria havido amor, nem proteção, nem
lar para nós; sem alguém que nos alimentasse, teríamos vivido em constante estado de terror, sabendo
que não éramos capazes de sobreviver sozinhos. Na primeira e na segunda infância eles são nossos
provedores onipotentes. Nós só temos necessidades e eles as satisfazem.
Sem ter nada ou ninguém que nos sirva de padrão para julgá-los, supomos que nossos pais são
perfeitos. À medida que nosso mundo se alarga para além dos limites do berço, aparece a necessidade
de manter essa imagem de perfeição como defesa contra as grandes incógnitas que vamos
encontrando. Enquanto podemos sentir que nossos pais são perfeitos, consideramo-nos protegidos. [...]
[...] Nossa cultura e nossa religião apóiam, de modo quase unânime, a onipotência da autoridade
parental.
A expressão de aborrecimento contra o cônjuge, o amante, os irmãos, os chefes e os amigos é
aceitável, mas o enfrentamento com nossos pais, com a intenção de fazer-nos valer, é pouco menos
que um tabu. Quantas vezes não ouvimos dizer: “não responda a sua mãe” ou “não se atreva a gritar
23
com seu pai”? A tradição judaico-cristã sacraliza o tabu e o incorpora a nosso inconsciente coletivo ao
falarmos de “Deus Pai” e ao impor-nos como mandamento o “Honrarás teu pai e tua mãe”. A idéia
encontra expressão em nossas escolas, nas igrejas, nos governos (“um retorno aos valores da família”)
e, inclusive, nas sociedades anônimas. Se atentamos para a sabedoria popular, nossos pais têm o
poder de controlar-nos, pelo simples fato de que nos deram a vida. A criança está à mercê dessas
divindades parentais e, como os antigos gregos, nunca sabe quando o raio cairá sobre ela. Mas o filho
dessa “classe” de pais sabe que cedo ou tarde o raio se abaterá sobre ele. No mais íntimo de todos os
adultos que foram maltratados na infância − inclusive daqueles que fizeram os maiores progressos − há
uma criancinha que se sente impotente e que tem medo.
O mito da maldade infantil, por sua vez, deita raízes no debate natureza versus educação que se acendeu sobretudo na
França e na Inglaterra do século XVII.
“A menos que você dê às crianças tudo que elas pedem, elas são rabugentas e gritam sempre, sacudindo seus pais por
vezes; e isto elas o fazem por natureza...” Não foi um francês, mas Thomas Hobbes quem pronunciou tais conclusões sobre a
natureza das crianças.
Nenhum intelectual francês da época teria discordado de Hobbes. Crianças são, por natureza, aborrecidas e mal-
humoradas. O biógrafo de um santo reformador católico contrastou o caráter infantil dessa pessoa (“doce e agradável”) com
aquele “de crianças normais, comumente irritante, teimoso e não sério” (deMause, 1975:260).
Como as duas faces da mesma moeda, o mito dos pais perfeitos e o da maldade infantil (inata) são o sustentáculo da
Pedagogia Despótica enquanto modelo privilegiado da família patriarcal, autocrática.
Os mitos e toda a rede de representações deles derivadas são crenças falsas, mas resistentes a evidências empíricas e
argumentativas. Não obstante, continuam passando de geração a geração, são aceitas sem crítica e encontram pleno respaldo
na cultura e na religião vigentes.
Essas colocações permitem compreender que a Pedagogia Despótica é uma verdadeira ideologia, um falso sistema de
crenças, valores sociais, cuja sobrevivência a Política e a Psicologia podem ajudar a explicar. 24
crenças, valores sociais, cuja sobrevivência a Política e a Psicologia podem ajudar a explicar.

FONTE: AZEVEDO, M.A.; MENIN , M.S.S. (1995). Psicologia e política. São Paulo: Cortez/FAPESP.

25
3.0 GAVINO: sob o signo do medo?

Gavino foi educado contraditoriamente sob o signo do medo, para tornar-se um cavaleiro sem medo. A
cena do filme, já reproduzida anteriormente, ilustra bem essa afirmação. Ela retrata uma das muitas surras
aplicadas ao pequeno Gavino, pelos motivos mais fúteis.
É uma surra de vara. A descrição completa do episódio está no Encarte nº 1. Ela permite avaliar toda a
disparidade entre a fúria punitiva do pai-adulto e a pequenez de Gavino. O livro mostra a indignação do
médico face às conseqüências da surra, sem que, porém, resulte disso qualquer denúncia às autoridades.
A mãe − absolutamente submissa ao pai − está longe de poder proteger Gavino do furor paterno. Sua
atuação é tópica, limitando-se a curar-lhe as feridas. Se esse episódio é muito sucintamente narrado no
filme, este retrata, em compensação, todo o terror intimidatório dos preparativos para a surra: arrancar a
vara, prepará-la com canivete etc. etc.
De fato, Gavino conheceu o terror das bofetadas, dos socos, dos açoites, da proibição de alimentar-se,
do isolamento na cama, da proibição de estudar, viajar, ouvir, tocar e até assobiar música. A crueldade de
certas cenas impressiona pela crueza: a do flagelamento com cobra, a do mergulho do rádio na água são
apenas alguns exemplos. O medo do pai tirano sempre acompanhou Gavino na infância e na
adolescência. Medo que o fez urinar-se já na escola elementar, no dia fatídico em que seu pai foi buscá-lo
para ser seu criado.

26
Medo do pai que não admitia seu estudo, sob a estúpida alegação de que quem não trabalha é
ladrão. Medo do patriarca que violava sua intimidade procurando adivinhar-lhe os pensamentos,
através das palavras sussurradas durante o sono. Medo do pai-patrão que não se cansava de afirmar: Eu
sou seu patrão aqui. Sou seu pai!
O medo, como sabemos, pode ser uma emoção parasita de efeito paralisante. Talvez, por isso, Ledda
tenha demorado tanto em libertar-se do jugo paterno...

4.0 GAVINO: sob o signo da resiliencia?

Mas, se é uma história construída à sombra do terror familiar, é também uma história de resistência.
Resistência a uma autoridade tirânica que pretendia apropriar-se do corpo e da mente de Gavino,
sujeitando-os a seus próprios caprichos e desígnios.
Isolado, sem apoio quase nenhum, mesmo assim, Gavino nunca deixou de sonhar com a liberdade
que um dia conseguiu num autêntico episódio em que a violência tanto tempo sofrida foi devolvida de
forma exemplar ao pai carrasco. Exemplar no sentido de que a luta final entre pai e filho foi presenciada
pela mãe e os outros filhos.
Gavino a descreve magistralmente:

27
O drama patriarcal onde duas culturas ambas duras como pedras se enfrentavam... O
choque fora demasiadamente violento. Minha revolta porém o perturbara. Pela primeira
vez, uma lição, inesperada, penetrada, à força de empurrões e de choques em sua
natureza rochosa e deixara um eco na língua que ele conhecia bem... Pude novamente
rever meu pai fora do tumulto de nossa briga. Sua figura terrificante que até então
abafara em mim todo impulso vital, eu a via agora distante de mim como algo que não
podia mais me alcançar. Além disso, eu me revi como eu era, Gavino, sem qualquer
complexo por ter feito oposição a meu pai. SENTI -ME LIVRE.1
LIVRE na medida em que − como representa LOUISE BOURGEOIS2 − Gavino conseguiu virar o jogo e,
assim, destruir o pai dentro dele e, conseqüentemente, neutralizar seu poder tirânico. Isso só foi possível
porque Gavino foi capaz de resistir à adversidade de um PAI DÉSPOTA.

28
Destruição do pai
1974

29
Louise Bourgeois curadoria Paulo Herkenhoff

Robert Storr Destruição do pai


Uma combinação de caverna de predador de estalactites, estalagmites protuberantes e presas comidas pela
metade e um teatro Grand Guignol de marionetes − Destruction of the father [Destruição do pai] é a cena do crime.
Na versão de Bourgeois dos eventos, cuja cena final é aqui representada, o pai, acostumado a se sentar à
cabeceira da mesa e a falar enquanto todos ouvem em silêncio, finalmente conduz sua platéia cativa a um tal
estado de loucura que seus filhos, levantando-se em revolta, matam-no e comem-no.
Em um certo sentido, o conto enquadra-se na descrição feita pela artista da raiva que sentia por seu próprio pai,
que se deliciava ao entreter a família e convidados por horas a fio com histórias e piadas, freqüentemente à custa
dos filhos. Em outro, desta vez psicanalítico, o conto é uma parábola de vingança edipiana, mais precisamente de
castração. Pois é difícil não ver a câmara construída por paredes de Destruction of the father, em suas formas
arredondadas contrapostas, como uma enorme vagina dentata. No entanto a fonte da imagem que emerge dos
primeiros desenhos de Bourgeois não é estritamente autobiográfica nem freudiana, mas sim greco-romana.
Temeroso de que seus filhos usurpassem seu poder ou brilhassem mais que ele na posteridade, Cronos − ou
Saturno, como seria mais tarde conhecido − devorou seus filhos, um a um. Sua crueldade é motivo de inúmeras
obras de arte, grandes pinturas de Rubens e Goya. (No Renascimento, o nome de Saturno simboliza a melancolia
artística.) Destruction of the father demonstra as conseqüências de os filhos virarem o jogo contra seu progenitor e
assassino.
Assim, os elementos e motivos encontrados nos primeiros trabalhos da artista surgem muitas vezes em seus
últimos trabalhos. Como a recorrente faca, cada motivo é um símbolo em si mesmo, ao mesmo tempo que em
conjunto destacam a constância das obsessões da artista, bem como a estranha eficiência da aparentemente
fortuita gestação de sua obra. Clímax de um ressentimento filial de toda uma vida, cauterização de uma ferida
30
profunda causada pela morte de seu marido e a revisão radical de um paradigma modernista, Destruction of the
father exemplifica essa confluência entre antigas intuições com necessidades e circunstâncias presentes.
Inicialmente intitulado Le repas du soir [A refeição noturna], o trabalho foi pela primeira vez exibido ao público
em 1974 no espaço experimental da 112 Greene Street, em Nova York, a primeira exposição individual da artista,
desde sua mostra em 1964 na Stable Gallery. Envolta numa cortina de tecido encerado, de modo bastante
diferente do da apresentação final do teatro de marionetes, a instalação era a peça central de uma grande seleção
de trabalhos que também incluiu esculturas em bronze e mármore executadas na Itália, nas visitas a Pietrasanta
durante os quatro anos anteriores. Dentre as esculturas mais tradicionais, encontravam-se Hommage to Bernini
[Homenagem a Bernini] (1967), diversas versões da imagem de Jano de 1968, assim como Baroque [Barroco], Eye
to eye [Olho a olho] e Rabbit [Coelho] (todas por volta de 1970), um certo número de cumuls entalhados e
reunidos, e um pequeno retrato fundido da cabeça de seu irmão Pierre, que − embora fora posteriormente excluído
do trabalho − ocupava uma posição na base de Destruction of the father, tornando essa versão original da obra
explicitamente autobiográfica.
Descrito diversas vezes com pequenas variações de ênfase ou detalhe, o cenário de Destruction of the father
é ao mesmo tempo totalmente anedótico e deliberadamente mítico. A seguir, uma versão completa, construída a
partir de vários contos e descrições:
Há uma mesa de jantar e pode-se ver que várias coisas acontecem ao mesmo tempo. Pomposamente,
o pai fala à sua platéia cativa sobre sua grandeza, as maravilhas que fez, os maus que derrubou hoje. Mas
isso prossegue dia após dia. Há tragédia no ar. O pai repetiu sua história muitas vezes, em demasia. Ele é
insuportavelmente dominador, embora provavelmente não se dê conta disso. Cresce um certo
ressentimento, e um dia meu irmão e eu tomamos uma decisão, chegara a hora! Nós o agarramos, o
colocamos sobre a mesa e com nossas facas o dissecamos. Nós o despedaçamos, o desmembramos,
cortamos seu pênis. E ele se tornou alimento. Nós o comemos. Trata-se, como se vê, de um drama oral. A
31
irritação foi sua ofensiva verbal contínua. Foi liquidado da mesma maneira que liquidava seus filhos. A
escultura representa tanto uma mesa quanto uma cama. Quando se entra no quarto, vê-se a mesa mas
também, no andar de cima, no quarto dos pais, há uma cama. Essas duas coisas contam na vida erótica
de uma pessoa: a mesa de jantar e a cama. A mesa em que seus pais fizeram você sofrer. A cama em que
você se deita com o marido, em que seus filhos nascem, em que você morrerá. Essencialmente, como
ambas são do mesmo tamanho, ambas são o mesmo objeto.
Pela primeira vez desde o final dos anos 20, Bourgeois concebera uma obra como um ambiente total. Nesse
caso, todavia, ela fechava o espaço permitindo seu acesso visual apenas através de um arco proscênio, em vez de
montar seu drama num teatro de arena, como fizera na exposição da Peridot Gallery, em 1949-50, e faria mais
tarde em outras instalações. Em Destruction of the father, empregou pela primeira vez os materiais suaves que
seriam freqüentes nos trabalhos feitos a partir do início dos anos 60, mesmo enquanto os nódulos de látex em
forma de bulbo que preenchem a cobertura do nicho (...) lembram as paredes onduladas das cavernas de Lascaux
que Bourgeois visitara durante os anos 60. Da mesma forma, as sobras de animais obtidas em mercados locais,
fundidas em gesso e espalhadas sobre o chão cavernoso da peça, evocam tanto os restos horripilantes primitivos
do caçador quanto o mercado de carne crua de The quartered one [O esquartejado] (1964-65).
Não encontramos, porém, nenhum objeto afiado; tampouco o pai está presente seja no todo, seja em parte.
Embora claustrofóbico, o local está virtualmente vazio, como se a carnificina ritualística fora completada com o
convidado de honra inteira e apropriadamente consumido. No entanto, sem quaisquer evidências dos
perpetradores, o sexo do responsável primário é aparente. Com sua boca bocejante e enormes molares, com suas
feições de útero, Destruction of the father é em si a criatura carnívora e a vagina dentata definitiva. A despeito do
cuidado de implicar seu irmão no crime, na realidade a filha por si só se deliciou com o pai e, dessa maneira,
usurpou o papel do filho na luta contra sua dominação.

32
Para que o triunfo sedento de sangue de uma geração sobre a outra possa acontecer e recorrer em benefício
do filho antes dependente, agora assassino e independente, o pai deve ser mantido vivo ou de algum modo ser
ressuscitado. Se sua morte chega prematuramente, antes que o filho invejoso possa sobreviver sem ele e se
orgulhar de fazê-lo, seus efeitos podem ser devastadores. O problema é crucial para a vida e obra de Sylvia Plath
e sua aflição compara-se de forma instrutiva com a de Bourgeois. Papai, tive de matá-lo./Você morreu antes que
eu tivesse tempo, escreveu Plath com uma inimizade frustrada.
Desprovida da arrogante e malévola presença do pai, ela se despedaçou: Puxaram-me do saco./E juntaram-
me com cola/E então eu sabia o que fazer./Fiz um modelo de você. Embora seu pai ainda vivesse quando ela
contava mais de trinta anos, Bourgeois foi igualmente incapaz de estabelecer sua soberania própria antes de sua
morte. Sujeita a episódios de mutilante melancolia, ela, como a poetisa, foi obrigada a construir um monumento a
sua fácil autoridade para que então pudesse destruí-la. É uma prova do superior instinto de autopreservação de
Bourgeois que ela tenha tão freqüentemente conseguido se recolher e recompor no processo de modelagem do
patriarca tirânico ou, no caso de Destruction of the father, criar uma imagem de desolamento causada pela morte
do marido e de um veículo para sua furiosa angústia. Da angústia passiva ao ódio ativo, esse assassinato
fantástico redirecionou os impulsos suicidas que periodicamente tomavam conta dela. Assim, o sacrifício simbólico
da vida do pai tornou possível o prosseguimento da filha, preenchendo o propósito desse ritual em termos
concretos e metafóricos...
Robert Storr. Traduzido do inglês por Adriano Pedrosa.
(Este texto é composto de partes de dois ensaios do autor, escritos em ocasiões diferentes, sobre Destruction of the father, de Louise Bourgeois. N. do E.)

Resistir sem anular-se para, finalmente descobrir − pela descoberta do significado das palavras − a
existência de um outro poder e da sua própria força ao manipular pensamento e linguagem.

33
Gavino bem poderia, portanto, ser considerado alguém que na mesma medida em que foi oprimido e
amedrontado, foi construindo a capacidade de resistir. Resistir que é próprio dos que vivem sob o signo da
RESILIENCIA, no sentido definido no Encarte nº 2.

Encarte nº 2
Resiliencia (Resilience)

A pesquisa evidencia que filhos de pais perturbados ou incompetentes aprendem a olhar por si próprios e crescem ao longo
do processo... A capacidade de superar adversidade desenvolvendo habilidades que potencializam aspectos do eu individual,
está no núcleo do que chamamos resiliencias (resiliences). As resiliencias costumam agrupar-se conforme o tipo de
personalidade e podem assumir várias configurações a partir do que consideramos ser a

MANDALA DA RESILIENCIA (RESILIENCE)

34
INSIGHT − Hábito de formular perguntas duras e de dar respostas honestas.
INDEPENDÊNCIA − Capacidade de estabelecer limites entre o eu e os pais.
RELACIONAMENTO − Capacidade de estabelecer vínculos íntimos e satisfatórios com outras pessoas.
INICIATIVA − Capacidade de assumir problemas e exercer controle.
CRIATIVIDADE − Habilidade para estabelecer ordem no caos de suas próprias experiências perturbadoras e de seus
sentimentos dolorosos.
HUMOR − Saber descobrir o cômico no trágico.
MORALIDADE − Consciência de que seu desejo de bem estar deve estender-se à Humanidade como um todo.

FONTE: WOLIN , S.J. and WOLIN , Sybil (1994). The resilient self / How survivors of troubled families rise above
adversity. New York: Villard Books, Cap. 1, p.3-21.

5.0 Referências Bibliográficas

(1) LEDDA, Gavino (1979). Pai patrão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p.180-3.
35
(2) FUNDAÇÃO Bienal de São Paulo (1998). Núcleo histórico: antropofagia e história do canibalismo. V. 1. São Paulo: A
Fundação Bienal, p.448-51.

36
37
6.0 Para saber mais
A. Leia os livros:
AZEVEDO, M.A.; GUERRA, V.N.A. (2000). Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 3ª ed. São
Paulo: Cortez.
AZEVEDO, M.A.; GUERRA, V.N.A. (1998). Infância e violência fatal em família: primeiras aproximações ao nível de
Brasil. São Paulo: Iglu.
AZEVEDO, M.A.; GUERRA, V.N.A. (1995). Violência doméstica na infância e adolescência. São Paulo: Robe.
AZEVEDO, M.A.; GUERRA, V.N.A. (1994). Infância e violência doméstica. Perguntelho − o que os profissionais
querem saber. São Paulo: LACRI.
AZEVEDO, M.A.; GUERRA, V.N.A. (1989). Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu.
AZEVEDO, M.A.; GUERRA, V.N.A. (1988). Pele de asno não é só história... um estudo sobre a vitimização sexual de
crianças e adolescentes em família. São Paulo: Roca.
AZEVEDO, M.A.; MENIN , M.S.S. (1995). Psicologia e política. São Paulo: Cortez/FAPESP.
AZEVEDO, M.A. (1991). Incesto pai-filha: um tabu menor de um Brasil menor. São Paulo: IPUSP. [Tese de Livre-
Docência, 331p.]
AZEVEDO, M.A. (1985). Mulheres espancadas − a violência denunciada. São Paulo: Cortez.
GUERRA, V.N.A. (1998). Violência de pais contra filhos: a tragédia revisitada. 3ª ed. São Paulo: Cortez.

38
GUERRA, V.N.A. (1984/1985). Violência de pais contra filhos: procuram-se vítimas. 1ª e 2ª eds. São Paulo: Cortez.

39
B. Consulte:

40
C. Questione o filme e o livro, respondendo:

− Teria sido Gavino Ledda, um novo pequeno mártir de Violência Doméstica na Infância?

Por que?

41
ANEXOS

42
Acordando o silêncio Produções
O som em “Pai Patrão” *
Mariarosário Fabris
Professora de Língua Italiana, junto ao Departamentos de Letras Modernas da
FFLCH. Doutoranda na ECA na área de Artes.
A banda sonora é um elemento fundamental do filme “Pai Patrão”, e ouvindo-a é que se pode perceber, Resumo
com toda a intensidade, o desdobramento da narrativa: a ausência de diálogo e a conquista do direito de
ter voz, conquista da palavra.

Filme, banda sonora, narrativa. Descritores

The sound-track is the basic element to the understanding of the movie “Padre Patrone”, listening to it one Abstract
is allowed to perceive, with all its intensity, the development of the drama: the lack of dialog, the
conquering of the right to speak, to conquest the word.

Film, sound-track, drama. Descriptors

Em cinema, quando falamos de som, tendemos, muitas vezes, a privilegiar os


diálogos, esquecendo que a banda sonora é constituída também pelos ruídos e
pela música e que é esse amálgama homogêneo que vai encadear-se com o
elemento visual para formar o universo fílmico.
Essa simplificação de análise levou-me, até pouco tempo atrás, a ver no filme
Pai Patrão, dos irmãos Taviani, uma luta travada entre a linguagem do poder (a
do pai) e a linguagem da revolta (a do filho), mas só em termos estritamente
*
In: Revista Comunicações e Artes, ano 13, nº 18, abril de 1988.
43
do pai) e a linguagem da revolta (a do filho), mas só em termos estritamente
lingüísticos, ou seja, entre o logudorês (um dos dialetos da Sardenha) e o italiano
padrão, respectivamente. Equação muito mal resolvida do ponto de vista
ideológico, uma vez que na realidade lingüística cotidiana da Itália os dados se
achavam invertidos: a língua padrão correspondia à linguagem do poder e as
manifestações dialetais à linguagem, senão da revolta, da resistência, resistência
de todo um patrimônio cultural, cujas formas lingüísticas, porém, eram, na
maioria das vezes, índice de quanto de provinciano, de antiquado, de opressivo, de
risível permanecia na sociedade italiana, formas, portanto, a serem superadas como
modelos atuais de expressão, a serem consideradas como restos arqueológicos do
passado1. (1) DE M AURO , T. apud FABRIS, M. (1982:52-3).
O neo-realismo cinematográfico
Instaurava-se dentro de mim um certo mal-estar, não diante da obra dos italiano: uma leitura. São Paulo.
Taviani, que se equilibrava dialeticamente entre tradição e transgressão, mas
diante de minha irresoluta participação como espectadora.
G AVINO = personagem, G AVINO LEDDA = o
A re-visão do filme levou-me a uma revisão de leitura. Assim como Gavino 2, (2)
escritor.
fui acordada do meu embotamento pelos acordes da valsa de Strauss. E a partir
da música descobri os ruídos, e a partir de ambos reavaliei os diálogos, ou antes,
a ausência de diálogo e a conquista do direito de ter voz, a conquista da palavra.
É nesse sentido que vai orientar-se a presente análise, a qual, em princípio,
deverá versar sobre a música como elemento privilegiado da banda sonora de
Pai Patrão, sem excluir, entretanto, os ruídos e as falas, pois o registro sonoro que
se articula sobre o registro das imagens não pode prescindir da conjunção desses
três elementos para que o filme produza o seu discurso.
44
A valsa de Strauss, que, de repente, se expande pelo ar e rompe o silêncio que
envolvia Gavino e a natureza, abre o segundo bloco do filme sobre aquele que
constitui um de seus pontos nodais, pois corresponde exatamente ao momento
em que o protagonista começa a descobrir seu meio de comunicação.
Se atentarmos bem, o primeiro bloco... caracteriza-se pela ausência de
diálogos, pois a voz imperante é a de Efísio, uma voz, na maioria das vezes,
ameaçadora, que não admite réplicas, uma voz escorada, quando não
substituída, pelo som seco das batidas de seu cajado (ao tirar o filho da escola;
na cena em que a mãe está preparando Gavino para o isolamento da coutada;
nos vários castigos corporais aplicados ao menino). Nesse sentido é interessante
observar que o plano final do prólogo nos mostra Gavino Ledda entregando a
Omero Antonutti/Efísio um cajado e dizendo: Meu pai usava isto também3.
Se, de um lado, esse gesto marca a passagem do espaço da realidade para o
TAVIANI , P. & V. Padre Padrone.
espaço da representação, do outro, é um expediente para chamar a atenção sobre (3)
Transcrizione dal film di E. Ferrini.
o objeto em si, objeto que, como já salientei, é freqüentemente usado em todo o Bologna, 1977:39.
bloco, símbolo da violência que caracteriza o discurso paterno.
Bloco da ausência de diálogos, como dizia, pois as tímidas intervenções da
professora, os pensamentos off dos coleguinhas de Gavino, reduzidos ao silêncio
pelo anátema do pai, a conversa da mãe com o filho, que mais parece um
solilóquio, vêm reforçar o poder da palavra paterna como instrumento que
destrói a possibilidade de comunicação.
Se um diálogo se esboça nesse bloco é o bate-boca entre Gavino e a ovelha
rebelde (off, porque também pertence à esfera dos pensamentos), o que vem nos
45
rebelde (off, porque também pertence à esfera dos pensamentos), o que vem nos
lembrar que o único código do qual o menino está autorizado a apropriar-se é o
da natureza, presença marcante no filme através dos sons que povoam seu
silêncio: os passos do burro de Efísio, o ramalhar do carvalho, o murmúrio do
riacho, os passos do cavalo de Sebastião, os badalos e os balidos das ovelhas, o
cacarejar das galinhas, os latidos do cachorro, o vento, o próprio canto sardo
entoado pelo pai, uma espécie de balido, que, coralmente, se expande pelo
campo, e a respiração ofegante das crianças que se acasalam com os bichos, dos
adultos que se acasalam entre si, de toda a aldeia no cio, que fecha essa primeira
parte do filme.
Ao lado desse silêncio povoado pelas vozes da natureza, coexiste o silêncio
interior, o que soa como o toque dos sinos afinados, o silêncio do mutismo a que
Gavino parece condenado. É sobre esse silêncio, não apenas sobre aquele registrado
pela banda sonora após a cópula coletiva, que se ergue a valsa de Strauss.
Gavino, agora já com vinte anos, descobre a música e, fascinado por ela, realiza o
primeiro ato de desobediência ao pai: troca um velho acordeão por dois cordeiros.
O uso da valsa, não só nessa seqüência mas em quase todo o segundo bloco, é
magistral. A música parece descer do céu para a vala em que Gavino se
encontra. Mesmo quando o rapaz espia para fora, ela parece vir do nada, pois a
paisagem continua deserta. Uma PAN descobre dois músicos, um dos quais está
tocando no acordeão o famoso leitmotiv da opereta O morcego. A melodia que
ouvimos, entretanto, é tocada por uma orquestra, o que dá um sentido muito

46
mais amplo à cena, uma vez que lembra uma cultura largamente difundida e da
qual Gavino foi excluído, e impregna de novo o filme de um forte antinaturalismo,
como já havia acontecido no bloco anterior, quando, diante do filho machucado,
o pai expressava sua dor, a qual se agigantava num dramático coro coletivo.
Naquela seqüência, também, com uma leve PAN, a CAM havia-se deslocado do PP
de Efísio para uma paisagem deserta, mas não despovoada, pois nela ecoava a
dor de todas aquelas gerações condenadas à solidão do pastoreio.
A valsa de Strauss volta a explodir no rosto atônito do patriarca, que, ao
perceber que está perdendo o controle sobre o filho, tenta roubar seus
pensamentos mais secretos durante o sono, e prolonga-se na seqüência seguinte,
dessa vez tocada pelas mãos inexpertas de Gavino, que está aprendendo a
comunicar-se com os outros.
A seus penosos acordes responde a flauta de um pastor e, ao contracanto dos
dois instrumentos, os soluços entrecortados de um menino que transporta leite
num burro. A música passa a ter o valor das palavras, pois cada som é traduzido
por uma legenda:
Eu sou Gavino, filho do pastor Efísio, que é filho do pastor Lucas. O frio de ontem
encheu o ovil de pulgas, sinto as mais gulosas debaixo das axilas (acordeão);
Eu sou Efísio, filho do pastor João, que era filho do carabineiro Henrique. Comi queijo
demasiado fresco, se soprar com força minha língua arde (flauta);
Anjos do paraíso que tocais, eu sou Mateus e vos rogo: fazei aparecer uma bacia de
água fervendo para os meus pés. Senão vou morrer. É uma súplica. (pranto)4. (4) Idem, p.54-5.
As legendas aparecerão de novo nesse bloco, quando um grupo de rapazes,
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entre os quais Gavino, tenta emigrar para a Alemanha: sobre a imagem de um
enorme carvalho, eleva-se uma música austera, quase religiosa, poeticamente
interpretada pelos dizeres: Sagrados carvalhos da Sardenha, adeus...5. O contracanto
dos jovens no caminhão, entretanto, é dessacralizador: um faz um barulho (5) Idem, p.98

desrespeitoso com a boca, outro dá uma banana. Gavino mija. Os valores


tradicionais da mãe-terra, sagrados porém também cerceadores, precisam ser
reavaliados: os usos e costumes atávicos (como as antigas vinganças que pesam
sobre a cabeça de Sebastião); a água delimitadora (como o riacho na coutada da
Baddevustrana), que faz da Sardenha uma ilha também de ignorância; os
marcos circunscritivos do saber humano (os carvalhos), que parecem
intransponíveis como outrora as colunas de Hércules. Se Sebastião foi morto, se
a água será transposta, o carvalho permanecerá como um baluarte até o filho
ousar desafiar de vez a autoridade paterna e afirmar sua independência e sua
individualidade. Para transpor os confins da própria condição, é necessário
contestar a ordem natural dentro da qual ele, o pai e gerações de pastores estão
encerrados:
“Considerate la vostra semenza:
fatti non foste a viver come bruti,
ma per seguir virtute e conoscenza”.
Com essas palavras, Ulisses, no Inferno dantesco, havia exortado os
companheiros a alargarem o domínio de seus conhecimentos: palavras que se
ajustam a Gavino, disposto a prosseguir em sua odisséia.
Voltemos, entretanto, ao segundo bloco. Com a música, rompe-se para
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Gavino o isolamento do silêncio: começa a comunicar-se com as pessoas, começa
a conhecer a história dos outros pastores − tão parecida com a sua! −, mesmo não
tendo ainda o domínio da palavra (daí o uso didascálico das legendas, para que
nós, espectadores, detentores de um código outro, possamos entendê-lo).
De fato, na seqüência da compra do olival, que sucede à da morte de
Sebastião, o pai é o único que fala com a viúva para fechar o negócio; do resto da
família só ouvimos a voz off dos pensamentos, sobre os quais explode de novo a
música, uma canção cantada por Mina, da qual captamos distintamente apenas
duas palavras, o sonho... Música que continua na seqüência seguinte, em que
toda a família está trabalhando freneticamente, cada um perseguindo sua
quimera; música que Gavino tocará na casa do comerciante de azeitonas,
instigado pelo pai.
Essa última seqüência é muito significativa, pois é a primeira vez que Efísio
permite ao filho expressar-se. Obrigado a calar-se diante da cultura do filho do
comerciante de azeitonas, reconquista sua autoridade através da habilidade de
Gavino, e, se lhe havia vedado o ingresso ao mundo dos dominadores,
castigando-o por ter respondido em seu lugar, reconhece-lhe, porém, a própria
capacidade de expressão.
A importância dessa seqüência acresce-se diante da seguinte, em que a
narração de abertura é feita por Gavino Ledda em voz off. O trecho narrado é
praticamente extraído do livro e isso parece-me muito significativo, porque os
Taviani passam a palavra para Gavino Ledda exatamente no momento em que
no filme Gavino tem sua voz autorizada pelo pai6. A narração passa da terceira
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no filme Gavino tem sua voz autorizada pelo pai6. A narração passa da terceira
Cf.: Idem, p. 60 & LEDDA, G. Padre
para a primeira pessoa, há uma pausa realista dentro do filme, cria-se um novo (6)
Padrone: l’educazione di un pastore.
efeito de distanciamento, pois é salientado o fato de que o discurso Milano, 1977:127.
cinematográfico está criando uma realidade outra.
O antinaturalismo buscado pelos diretores volta a afirmar-se com toda a sua
força naquela que talvez seja, do ponto de vista musical, a seqüência mais
marcante do filme: a da procissão. Ao Miserere sardo entoado pelos pais (o
mesmo do 1º bloco), alterna-se a conversa abafada dos jovens sob o andor, até
que uma canção alemã de cervejaria se expande pelo ar: Trink, trink, Brüderlein
Essa seqüência tem despertado o
trink, lass doch die Sorgen zu Haus...7. Os dois cantos rivalizam entre si, sem que se (7)
interesse de vários críticos. Entre os mais
chegue a uma osmose. São dois mundos que se chocam e parece não haver entusiasmados figura o cineasta
alemão Werner Herzog, que a destaca
possibilidade de reconciliação. É o momento em que os jovens pastores, servos (ao lado daquela do canto sardo coral)
de seus patrões ou dos pais, pensa em partir para a Alemanha, onde os aguarda como um dos momentos em que a
consonância entre música e imagem
uma vida também de servidão, mas na qual vislumbram a possibilidade de no filme se realiza plenamente. Cf.
terem sua individualidade reconhecida: H ERZOG, W. Von Ende des
Analphabetismus. Die Ziet , 24 nov. 1978
− “Vai continuar sob as ordens de um patrão. e il cinema, la musica, la prosa, la tv.
− Mas, pelo menos, lá a gente tem um nome. Bolognaincontri, 16(4), apr. 1985, p. 5.

− Que nome?
− O próprio, aqui eu esqueci o seu. Para falar de você, a gente diz: o servo do
seu Zé, o servo do seu Zé”8. (8) TAVIANI , op. cit., p. 63.

Ludibriado pelo pai, que o deixou ir embora mas não assinou a autorização
para emigrar, tapeado porque, se aprendeu a comunicar-se ainda não possui a
palavra, Gavino vai servir no exército, seguindo a vontade de Efísio, que volta a
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palavra, Gavino vai servir no exército, seguindo a vontade de Efísio, que volta a
fechá-lo num mundo isolado do presente (terceiro bloco). A música desapareceu
do filme e só voltará quando ele reencontrar sua forma de expressão. Durante o
serviço militar, cai de novo no silêncio, pois, vindo de uma outra civilização, de
uma outra língua, não consegue integrar-se facilmente. A cultura sarda (mais
ligada à terra) e a cultura italiana (expressão de uma classe burguesa) entram em
choque. O toque dos sinos afinados volta a ecoar na cabeça de Gavino,
eliminando os outros sons. Estes, porém, prorrompem no filme no momento em
que a amizade de César consegue vencer a barreira do silêncio (na Praça dos
Milagres de Pisa). O mundo mágico das palavras começa a abrir-se para o pastor
semi-analfabeto e essa descoberta culmina num outro grande momento do filme,
quando Gavino, a partir de uma explicação sobre o significado da bandeira,
alinha toda uma série de palavras que se encadeiam pelo sentido, pelo poder
evocativo, pelo efeito fonético:
“Bandiera banderuola bando bandito bandita bantú baroco basilico barone...
Stato stagnino staffile stadera stalagmite starnuto statuto...
Stazzo ragazzo pargolo infante putto bebé livido rattrappito screpolato
rapace... rapace selvatico agreste...
Alpestre bucolico idillico arcadico pastorale pastorizia pastorizzazione
deportazione separazione esclusione masturbazione libido turgore languido
laido...
Padre patriarca padrino padrone padreterno patrono...9
desterro desterrado coutada (terra
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Outro grande momento de distanciamento, de reflexão sobre a própria
condição, de dolorosa tomada de consciência, de domínio da expressão. A
música de Strauss volta a explodir, sai volteando do aparelho construído para
obter o diploma de técnico de rádio.
Adquirida a palavra, Gavino desobedece de novo ao pai: inscreve-se na
Idem, p. 104-5. Tradução:
faculdade para tornar-se glotólogo, volta para a Sardenha. Seu encontro com (9)
Bandeira cata-vento convocação /
Efísio é comentado por um coro off e indistinto de diz-que-diz, sobrepujado desterro desterrado coutada (terra
reservada para pasto) baritono (=
pelos pensamentos deste, o qual, mais uma vez, nega a comida ao filho (como música, voz) banto (= africano, não-
quando da primeira desobediência). O trabalho intelectual se lhe afigura como civilizado, sulista) barroco (pérola irregu-
lar, defeituosa) manjericão (= aroma)
um engodo: quem não ganhar o pão com o suor do próprio rosto não come. barão (= senhor feudal);
Procura confinar Gavino no ovil como outrora, mas o filho rebela-se, dedica-se Estado funileiro (que lida com o estanho,
como o técnico de rádio) açoite
aos estudos, volta para casa. Agora os sinos afinados tocam para Efísio privado balança (na qual pesar presente e
da voz pelo filho, que o fez calar. Interrompe o trabalho na lavoura e dirige-se passado) estalagmite (cuja forma
lembra a cabana do ovil) espirro (=
para casa, a fim de restabelecer sua autoridade. Sobre seus passos já se eleva a expulsão) estatuto;
música de Mozart que Gavino está escutando na cozinha. Ovil rapaz criança infante menino bebê
livido encolhido gretado ave de rapina
Começa o enfrentamento decisivo de duas culturas: de um lado, o filho, que ave de rapina selvagem agreste;
está afinando seus conhecimentos (e é significativo que da valsa de Strauss, Alpestre bucólico idílico arcádico pastoril
pastoreio pasteurização deportação
recriação de danças populares, se passe para o concerto de Mozart, o grande separação exclusão masturbação
compositor do século do Iluminismo); do outro, o pai, que continua a expressar- libido turgidez lânguido torpe;
Pai patriarca padrinho patrão (dono) Deus-
se autoritariamente: bate com a palma da mão na mesa para pedir o jantar, pai padroeiro.
ordena ao rapaz apagar o rádio, tenta golpeá-lo com um pau e, diante de sua
resistência, mergulha o aparelho na água da pia.
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A música de Mozart, entretanto, continua, assobiada por Gavino. Ao ver que
não conseguiu tirar-lhe as armas que conquistou para expressar-se, Efísio pede-
lhe para renunciar à sua linguagem (musical, articulada), que ele não
domina, e adotar a dele (a da violência). O desafio é aceito e começa a luta
corporal, na qual o filho derrota o pai. Indiferente, a mãe canta uma canção
sarda, debruçada no silêncio da noite. Confinada num mundo natural,
tradicionalmente mudo, não contaminado pela razão (suas risadas e suas
manifestações um pouco histéricas, seu instinto de preservação), a luta pela
dominação, que se trava no universo masculino, ao qual sempre foi submetida e
do qual sempre foi excluída, não lhe diz respeito.
Gavino derrota o pai falando exatamente sua mesma linguagem, a das
pancadas, dos tapas, das sovas, a linguagem do dominador, a linguagem do
poder, da qual não quer apropriar-se. E, no epílogo, Gavino Ledda confirma a
interpretação que os irmãos Taviani deram à sua história, ao dizer que voltou
para sua aldeia porque no continente exerceria o poder que a cultura lhe
conferiu, no que estaria imitando seu pai, porque a sua terra, a sua gente lhe
permitiram escrever o livro, no qual o filme se inspirou livremente.
Reaparece, então, a cena do início, quando o pai, após tê-lo tirado da escola,
volta para fazer cessar os gritos de escárnio das outras crianças. Só que agora,
sobre as imagens dos rostinhos assustados, não se ergue a voz off de seus
pensamentos, mas a valsa de Strauss, a mesma valsa que arrancou Gavino do
analfabetismo, a qual logo se funde com o vento. E o vento sopra sobre a aldeia
deserta e sobre Gavino Ledda, que, sentado no vale onde transcorreu a infância
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deserta e sobre Gavino Ledda, que, sentado no vale onde transcorreu a infância
e a adolescência, começa a balançar-se como antigamente. Dessa vez, porém, os
sinos não dobram. Sobre os letreiros que fecham o filme, ouvem-se o concerto de
Mozart e o vento. A barreira do silêncio foi superada, mas a dor calou fundo.
xxxx
Sem dúvida alguma, o elemento sonoro e o elemento visual combinam-se
admiravelmente nesta obra de Paulo e Vittorio Taviani. A música não serve
simplesmente de contraponto à imagem, mas intervém de forma decisiva na
trama do filme, da qual em momento algum aparece dissociada, pois a luta que (10) Egisto Macchi é um compositor de
vanguarda, discípulo do Vlad e
se trava entre a ordem natural e a história se articula sobretudo no plano sonoro. Scherchen. Faz música para filmes
desde os anos 60. Entre as trilhas
De fato, se quisesse caracterizar os blocos em que dividi Pai Patrão, seria mais sonoras que compôs para vários
fácil fazê-lo a partir do som. O primeiro bloco é dos ruídos, porque nele documentários e longa-metragens,
destacam-se a de O assassino de
predominam os sons da natureza e a linguagem do pai, telúrica, atávica, estática. Trotsky, de Losey, e a de O delito
No segundo bloco, a música vem romper o silêncio suspenso sobre a ordem Matteotti, de Vancini. Cf. E. Comuzio,
Musica e suoni protagonisti nel cinema
natural, ritmada pelo suceder-se das estações e das gerações, e começa a povoar dei fratelli lavioni. Bianco e Nero, 38(5-
o silêncio interior de Gavino, com suas evocações de um mundo outro, de uma 6), set, dic. 1977:117.
cultura outra que não necessariamente aquela circunscrita e tradicional de sua
ilha (ou de qualquer realidade regional isolada). O terceiro bloco, o da palavra, é
marcado pela contestação à ordem natural, pela busca individual de expressão
como garantia de integração numa ordem social mais dinâmica e dialética
(história).
A matéria sonora, portanto, impregna a trama narrativa com ruídos, com
palavras e com a música de Egisto Macchi 10, o qual a trechos de sua autoria.
palavras e com a música de Egisto Macchi 10, o qual a trechos de sua autoria,
alterna o bê-a-bá, reelaboração de uma cantiga do folclore italiano, a canção
cantada por Mina, uma intérprete da música popular italiana, o miserere sardo, a
canção alemã de cervejaria, o concerto para clarineta e orquestra em Lá, K. 622 −
2º movimento: Andante, de Mozart, a canção folclórica sarda, cantada pela mãe,
e, sobretudo, a valsa, extraída da opereta Rauschende Melodien, de Strauss. A
valsa, representante de uma cultura metropolitana em oposição aos ritmos
ancestrais da Sardenha, a valsa, que, com seu compasso ternário fortemente
marcado, acaba por determinar a estrutura do filme.
Este não persegue uma ordem linearmente cronológica, mas subdivide-se,
como já vimos, em três blocos sintéticos e evolui dramaticamente através de
repetições ternárias: a própria história foi escrita por Gavino Ledda, é narrada
pelos Taviani, é contada a César por Gavino, que se serve das palavras da
Eneida; a voz do autor do livro faz-se presente no prólogo, no meio do filme e no
epílogo; atraído pela valsa, Gavino, por três vezes, coloca-se no caminho dos
músicos; no segundo bloco, as legendas são usadas em três momentos distintos −
quando Gavino faz 20 anos, quando o acordeão, a flauta e o pranto do menino
ecoam na solidão do vale (e os instrumentos de comunicação são três), no adeus
aos carvalhos; o corte do lábio com a faca, feito por Gavino quando troca os
cordeiros pelo acordeão e, durante o serviço militar, quando evita ser testado
pelo instrutor, é retomado por Efísio, após o enfrentamento final, para justificar
sua derrota diante dos outros filhos; o movimento de embalo de Gavino começa
no primeiro bloco (infância), repete-se prolongadamente no
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no primeiro bloco (infância), repete-se prolongadamente no
segundo (início do serviço militar), reaparece no prólogo (efetuado pelo próprio
Gavino Ledda); o toque dos sinos afinados acompanha o primeiro e o segundo
balançar-se de Gavino e volta a surgir quando Efísio percebe que sua voz já não
tem autoridade.
Os exemplos citados nos repropõem também a questão da língua, que, se
numa primeira leitura parece refletir o choque entre uma cultura hegemônica (a
italiana) e uma cultura subalterna (a sarda), numa análise mais aprofundada se
revela como o confronto entre os que detêm o poder e os que a ele estão
subordinados. E isso constitui o grande fascínio de Pai Patrão. A apropriação da
cultura hegemônica não significa necessariamente a negação da cultura subalterna.
De fato, no filme, a cena em que Efísio ensina o filho a reconhecer os sons da
natureza recebe um tratamento carinhosamente idílico; quando Gavino está
aprendendo a tocar o acordeão, e a flauta e os soluços entrecortados do menino
respondem-lhe, os Taviani traduzem para nós, espectadores letrados, os signos
desse outro código que não possuímos; Gavino estuda cientificamente as
expressões dialetais de sua terra; o cheiro das mimosas permite-lhe alcançar a
edícula na Praça dos Milagres de Pisa, num belíssimo momento de integração
das duas culturas.
A nova língua adquirida serve a Gavino-Gavino Ledda para refletir sobre a
língua materna e sobre seu patrimônio cultural, transforma-se num instrumento
de libertação (e não de transferência do esquema do poder para outra esfera),
num instrumento de conquista da palavra, daquele som articulado que vence a
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num instrumento de conquista da palavra, daquele som articulado que vence a
barreira da incomunicabilidade, rasga o silêncio e resgata para a história os
marginalizados.

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LACRI /IPUSP
Av. Prof. Mello Moraes, 1721
Cidade Universitária
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