Você está na página 1de 48

PROJETO

V IDEOTECA CIENTÍFICA

LACRI - LABORATÓRIO DE ESTUDOS DA CRIANÇA


Ψ INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP
FACULDADES RENASCENÇA

Guia de Debates
UNIVERSIDADE DE S ÃO PAULO
INSTITUT O DE PSICOLOGIA
LACRI - LABORATÓRIO DE ESTUDOS DA CRIANÇA

INCESTO PADRASTO - ENTEADA,


“UMA COISA DE LOUCO”

Dra. Maria Amélia Azevedo

São Paulo (SP)


Junho, 2000
FICHA TÉCNICA
Nome Original: Nuts

Tradução Brasileira: Querem me Enlouquecer

Duração: 116 minutos

Vídeo: Warner Home Vídeo

Ano: 1988

País: USA

Diretor: Martin Ritt

Produtora: Barbra Streisand

Atores: Barbra Streisand


Richard Dreyfuss
Maureen Stapleton
Karl Malden
Eli Wallach
SUMÁRIO

1.0 - Introdução .................................. 01

2.0 - Incesto padrasto - enteada: uma “coisa de louco” e não

“de loucos”.................................. 08

3.0 - Onde andará Cláudia Draper?............... 37

4.0 - Referências Bibliográficas .................. 39

5.0 - Para saber mais! ............................ 40

5.1 - Cláudia não foi a única!!! Leia e reflita ! ... 40

5.2 - Biblinet ......................................44


1.0. Introdução
O filme Querem me Enlouquecer, cuja ficha técnica
abre este GUIA de DEBATES foi baseado na peça de
Tom Topor intitulada NUTS a qual também serviu de ins-
piração para o livro do mesmo nome, de autoria de Clau-
dia Reilly, traduzido e publicado no Brasil pela Bertrand
Brasil do Rio de Janeiro, em 1988.
Obviamente ler um filme não é o mesmo que ler um
livro ou uma peça de teatro já que, no primeiro caso, o
que importa é a leitura icônica – das imagens e símbolos
– enquanto nos outros casos, predomina em importância,
a leitura verbal das palavras e sua pontuação. No entanto,
ambas as leituras se completam pois teem em comum o
fato de serem modalidades de RESIGNIFICAÇÃO DO
CONTEÚDO TEMÁTICO. Daí porque a leitura do fil-
me Querem me Enlouquecer exige a leitura do livro ho-
mônimo, a fim de que se possa descobrir seus núcleos
argumentativos e selecionar qual deles explorar. Esses nú-
cleos são vários e diversificados. Assim, por exemplo,
poder-se-ia trabalhar a questão das relações entre crime e
loucura. O filme e o livro tratam da luta da protagonista
principal (Claudia Draper, protagonizada por Barbra
Streisand) para: 1º. refutar o diagnóstico de insanidade
mental (que a confinaria para sempre num hospital de do-
entes mentais); 2º. ser considerada imputável pelo assas-
sinato cometido, podendo portanto ser levada a julgamento
e eventualmente absolvida.
Da mesma forma poder-se-ia tratar das possíveis re-
lações entre criminalidade e violência. O filme e o livro
enfocam a dramática luta de Claudia Draper e seu advo-
ENCARTE BIBLIOGRÁFICO

“Livro e filme são objetos diferentes, cada um


tem um autor e é bom mesmo que sejam diferentes,
foi a resposta, que Umberto Eco mandou aos críti-
cos que desmontaram a adaptação que Jean Jacques
Annaud fez do seu best seller O NOME DA ROSA.
São tortuosas as relações entre cinema e literatura”.
Luiz Carlos Merten
O Estado de São Paulo, 28/03/99, p. D5.

“A leitura icônica é um pouco uma leitura em


cebola, que tem uma série de capas concêntricas de
significação. Um espectador pode compreender as
capas superficiais e não ter compreendido o mínimo
do miolo da obra cinematográfica”.
Luis Espinal – Cinema e seu Processo Psicoló-
gico – São Paulo, LIC Editores, 1976.
“Em estudos histórico-antropológicos, J.
Monahan, Universidade de Virgínia, conclui que ‘a
crença de que as doenças mentais estão associadas
à violência é historicamente constante e culturalmen-
te universal”’. Essa percepção publica, tem
consequências na prática social (estigma) contra in-
divíduos portadores de doenças mentais... O fato é
que a associação entre doença mental e violência...
não tem base.”
Wagner F. Gattaz
Folha de São Paulo, 07/11/1999.
ENCARTE BIBLIOGRÁFICO
“As garotas de programa, segundo os clientes.
‘Elas são todas iguais’
Apresento aqui as categorias definidoras das ga-
rotas de programa mencionadas pelos clientes. Um dos
atributos conferidos é o da uniformidade das prostitu-
tas: para eles, elas são todas iguais... Um segundo atri-
buto imputado às prostitutas é o do uso costumeiro da
mentira... Outra característica da identidade de prosti-
tuta são as condutas que denomino perda da privacida-
de. Condutas que se expressam, entre outras formas,
na iniciativa de aproximação junto aos possíveis clien-
tes... A agressividade passível de ser estigmatizada
como conduta imprópria e desagradável, em certos mo-
mentos pode ser usada pelas garotas como mecanismo
de controle. As garotas entram em relação íntima com
homens que na maioria das vezes são desconhecidos,
expondo-se a situações que podem incluir violência..
O último atributo – a promiscuidade – está bem
expresso nas palavras de um frequentador: ‘É preciso
ter cuidado. Tem que se conhecer a mulher. Tem cada
uma, a maior fria. Não querem nem saber vão com
qualquer um’.”
Maria Dulce Gaspar – Garotas de Programa/Pros-
tituição em Copacabana e Identidade Social - Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985, p. 88, 123.
gado, Aaron Levinsky para demonstrar que, embora te-
nha cometido um crime de assassinato em Primeiro Grau,
embora agressiva, anti-social e inconvencional ela não é
socialmente perigosa, a ponto de ser internada num mani-
cômio judiciário.
Também, seria possível analisar a vida de Claudia
Draper, como a de uma garota de programa, uma prosti-
tuta sofisticada e de luxo que, num certo momento, mata
um cliente ao tentar defender-se de suas violências psico-
lógicas (“vocês, suas malditas putas, são todas iguais...
Cadela”) e físicas (“Parecia estar perdendo o controle,
socando-me com mais força. Tentei desviar seus punhos
de mim, mas eles se abatiam sobre meus ombros, meus
seios... nada o detinha. Esmagou-me a face com o pu-
nho...”). (excertos do livro de Reilly, C. - Querem me
enlouquecer, ob. cit. p. 144, 147)
Embora pertinentes todos esses núcleos,
argumentativos não permitiriam entender o sentido últi-
mo da trágica vida de Cláudia Draper, expresso em frases
que ela vai enunciando ao longo do livro e do filme:
A VIDA É UMA DROGA
DÓI MENOS VENDER-SE A ESTRANHOS
ÀS VEZES, O AMOR É UMA ARMA
EU NÃO CONFIO EM MINHA MÃE
NÃO ACREDITO NA INFÂNCIA

Frases que – CAMUFLANDO ENORME SOFRI-


MENTO PSÍQUICO – precisam ser lidas como expres-
sões da voz de uma sobrevivente de VIOLÊNCIA SE-
XUAL DOMÉSTICA. Sem esta chave de leitura, as “con-
dutas anti-sociais” de Claudia Draper, retratadas no filme
e no livro, poderiam parecer, gratuitas ou patologicamen-
te criminosas. Em realidade, porém, se interpretadas cor-
retamente são “coerentes” com a violência sofrida por
ela na sua adolescência: a violência do incesto padrasto –
enteada . Esta violência é uma “coisa de louco” e não
uma “coisa de louca” como poderia sugerir uma leitura
apressada e superficial do título original do livro e do fil-
me: NUTS.
São as marcas desta violência e todo o esforço feito
para desvela-la e/ou encobri-la, que estão retratadas com
pungente dramaticidade no livro e no filme, embora isto
só vá ficando explicito à medida que a narrativa avança
(como é de praxe na boa literatura policial). Daí a impor-
tância de o leitor saber reunir indícios, sinais, pequenas
evidências capazes de compor o verdadeiro retrato {trá-
gico} de Claudia Draper: nem criminosa e nem louca mas
sim vítima de violência sexual doméstica, em sua infância
e adolescência.
ENCARTE BIBLIOGRÁFICO

Nuts (Giria)
Be nuts = be mad = ser ou ficar louco(a)
Off one’s nut = insane = insano(a)
Fonte: Hornby A. S. et alii – The Advanced
Learner’s Dictionary of Current English – London,
Oxford University Press, 1963.
2.0. Incesto padrasto - enteada: uma
“coisa de louco” e não “de loucos”.
O incesto padrasto – enteada é uma das várias moda-
lidades de incesto. Quando a enteada é menor de idade
(ou menorizada por incapacidade) configura-se a VIO-
LÊNCIA SEXUAL DOMÉSTICA. Este foi o caso de
Claudia Draper. Seu padrasto, Arthur Kirk, violentou-a
durante onze anos de sua vida.
“Estou com tanto medo. Não posso parar as bati-
das. Oh, e agora a maçaneta da porta está sendo sacudi-
da. Ele está tentando entrar. Mas não vou deixar que
entre. Não, não vou ouvir. Vou abrir tanto a torneira da
banheira que não poderei ouvir as batidas. Depois pos-
so dizer a ele que o teria deixado entrar, se pudesse ouvi-
lo. Então tudo ficará bem. E seremos como as outras
pessoas e mamãe me amará e eu amarei mamãe e ma-
mãe amará papai e papai amará...
Estou junto à banheira, nua. Que idade tenho? Te-
nho a idade em que as outras garotas recebem seu pri-
meiro beijo, seu primeiro ramalhete, têm seu primeiro
contato. As outras garotas falam ao telefone, trocando
idéias sobre até onde pretendem permitir que os namo-
rados cheguem. Eu fico aqui no banheiro, tremendo, toda
arrepiada, as mãos tapando a boca para não gritar. Pro-
curo não olhar para a porta, mas olho. Vejo uma nota de
vinte dólares escorregar no azulejo do chão; vejo seus
dedos peludos empurrando a nota por baixo da porta...
Entro na banheira, fecho os olhos para que não pos-
sa ver a nota de vinte dólares, tampo os ouvidos com as
mãos, para não ter que ouvi-lo batendo. Meu cabelo nem
ENCARTE BIBLIOGRÁFICO
INCESTO

RELAÇÃO SEXUAL PROIBIDA POR LEI OU PELOS


COSTUMES
TIPOS
A - NÃO SIMBÓLICO
De sangue
De leite
De nome
B – SIMBÓLICO
Espiritual – Religioso(a) – Crente/Padrinho/Madrinha –
Afilhado(a)
Pedagógico – Professor(a) – Aluno (a)
Técnico-profissional – Terapeuta – Cliente / Dentista –
Cliente / Médico(a) – Paciente / Antropólogo(a) – Indígena

MODALIDADES
Pai – Filha/filho
Padrasto – enteada/enteado
Pai adotivo – filha adotiva / filho adotivo
Avô – neta / neto
Tio – sobrinha / sobrinho
Sogro – nora / genro
Primo – prima / primo
Irmão – irmã / irmão
Mãe – filha / filho
Madrasta – enteada / enteado
Mãe adotiva – filha adotiva / filho adotivo
Avó – neta / neto
Tia – sobrinha / sobrinho
Sogra – nora / genro
Prima – prima / primo
Irmã – irmã / irmão
ENCARTE BIBLIOGRÁFICO
INFÂNCIA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: O
QUE É?

“Todo ato ou omissão praticado por parentes ou


responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que –
sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psico-
lógico à vítima – implica de um lado, numa transgres-
são do poder/dever de proteção do adulto e, de outro,
numa coisificação da infância, isto é, numa negação
do direito que as crianças e adolescentes têm de ser
tratados como sujeitos e pessoas em condição peculi-
ar de desenvolvimento.”
(Azevedo e Guerra, 1995)
ENCARTE BIBLIOGRÁFICO
QUAIS AS SUAS PRINCIPAIS MODALIDA-
DES?

a) VIOLÊNCIA FÍSICA
“Corresponde ao emprego da força física no pro-
cesso disciplinar de uma criança ou adolescente por
parte de seus pais (ou quem exercer tal papel no âm-
bito familiar como p. ex. pais adotivos, padrastos,
madrastas)” (Azevedo e Guerra, 1998). A literatura
é muito controvertida em termos de quais atos po-
dem ser considerados violentos: desde a simples pal-
mada no bumbum até agressões com armas brancas
e de fogo, com instrumentos (pau, barra de ferro, taco
de bilhar, tamancos, etc.) e imposição de queimadu-
ras, socos, pontapés. Cada pesquisador tem incluído,
em seu estudo, os métodos que considera violentos
no processo educacional pais-filhos, embora haja
ponderações científicas mais recentes no sentido de
que a violência deve se relacionar a qualquer ato dis-
ciplinar que atinja o corpo de uma criança ou de um
adolescente. Prova desta tendência é o surgimento
de legislações que proibiram o emprego da punição
corporal, em todas as suas modalidades, na relação
pais-filhos (como p. ex. as legislações da Suécia –
1979; Finlândia – 1983; Dinamarca – 1985; Noruega
– 1987; Austria – 1989 e Chipre – 1994)
ENCARTE BIBLIOGRÁFICO

b) NEGLIGÊNCIA
“Representa uma omissão em termos de prover
as necessidades físicas e emocionais de uma criança
ou adolescente. Configura-se quando os pais (ou res-
ponsáveis) falham em termos de alimentar, de vestir
adequadamente seus filhos, etc. e quando tal falha não
é o resultado de condições de vida além do seu con-
trole. A negligência pode se apresentar como modera-
da ou severa. Nas residências em que os pais negli-
genciam severamente os filhos observa-se de modo
geral, que os alimentos nunca são providenciados, não
há rotinas na habitação e para as crianças, não há rou-
pas limpas, o ambiente físico é muito sujo com lixo
espalhado por todos os lados, as crianças são muitas
vezes deixadas sós por diversos dias, chegando a fale-
cer em consequência de ‘acidentes domésticos’, de
inanição. A literatura registra, entre esses pais, um
consumo elevado de drogas, de álcool, uma presença
significativa de desordens severas de personalidade.”
(Azevedo e Guerra, 1998)
ENCARTE BIBLIOGRÁFICO

c) VIOLÊNCIA SEXUAL DE NATUREZA


INCESTUOSA
“Configura-se como todo ato ou jogo sexual, re-
lação hetero ou homossexual, entre um ou mais adul-
tos (com relação de parentesco e/ou responsabilidade
legal) e uma criança ou adolescente, tendo por finali-
dade estimular sexualmente uma criança ou adoles-
cente ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual
sobre sua pessoa ou de outra pessoa. Ressalta-se que
em ocorrências desse tipo a criança é sempre VÍTI-
MA e não poderá ser transformada em RÉ. A inten-
ção do processo de violência sexual é sempre o pra-
zer (direto ou indireto) do adulto, sendo que o meca-
nismo que possibilita a participação da criança é a
coerção exercida pelo adulto, coerção esta que tem
suas raízes no padrão adultocêntrico de relações adul-
to-criança, vigente em nossa sociedade. A violência
sexual doméstica é uma forma de erosão da infân-
cia.” (Azevedo e Guerra, 1998)
ENCARTE BIBLIOGRÁFICO

d) VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA
“Também designada como <tortura psicológica>,
ocorre quando o adulto constantemente deprecia a cri-
ança, bloqueia seus esforços de auto-aceitação, cau-
sando-lhe grande sofrimento mental. Ameaças de aban-
dono também podem tornar uma criança medrosa e
ansiosa, podendo representar formas de sofrimento
psicológico.” (Azevedo e Guerra, 1998)
toca as orelhas. Pensei que seria bom se fizesse com que
me parecesse com um menino, mas acho que não consi-
go. Se ao menos pudesse cortar os meus seios com a
mesma facilidade com que cortei meus cabelos, talvez
isso o detivesse, mas seus dedos continuam a empurrar
a nota, escorregando-a para mais perto de mim. Que
idade tenho? Bastante velha para ser comprada. Bas-
tante nova para ser comprada. Que idade?
- Tinha dezesseis anos! – bradou Cláudia...
Não posso impedir que entrem em meu banheiro.
Ficam me pegando. Tento esconder-me, mas eles não pa-
ram. Vejo as mãos sangrentas de Allen Green tentando
entrar à força no banheiro. Quero fechar a porta, quero
trocar-me e deixá-lo de fora, mas ele não para. Quer me
ferir. Eles dizem que me amam, mas querem me ferir.
Tento bater a porta para fechá-la, mas não posso. Nun-
ca pude. Allen pega meu pescoço com as mãos sangran-
do. É sempre assim. Primeiro me põem na banheira, ba-
nham-me carinhosamente com o sabonete Ivory, e can-
tam cantigas e dão-me patinhos de brinquedo para ba-
lançarem na água. “Você ama o papai?” “Sim, amo você
papai.” “Quanto ama o papai?” “Meu amor por você
vai mais longe de que minhas mãos alcançam, papai.”
Depois me tiram da banheira, esfregam-me com uma
toalha cor-de-rosa, grande e macia. “Isso é bom?” “Sim,
papai.” “Gosta disso?” Muito delicadamente, eles me
esfregam. “Papai, essas são minhas partes íntimas.” “Eu
sei, eu sei.” Por isso vamos guardar segredo. Um segre-
do só entre papai e sua princesinha. Você gosta de se-
gredos, não gosta, Cláudia?” Oh, tudo começa tão gen-
til, tão suave, a toalha rosa entre minhas pernas. E de-
pois começa a doer e não pára de doer. E depois, é aí
que termina, com os dedos sangrentos de Allen Green
em meu pescoço. Eles me roubam a infância. Roubam
meu amor próprio. Roubam minha capacidade de confi-
ar, de amar, de acreditar em alguém ou alguma coisa. E
depois eles matam... (excertos do livro de Reilly, C. -
Querem me enlouquecer, ob. cit. p. 144, 147)

O perfil do incesto padrasto – enteada – enquanto


modalidade de Violência Sexual Doméstica contra crian-
ças e adolescentes – emerge quando contrastamos os MI-
TOS (dominantes ainda na cultura popular) e os FATOS
(produzidos pela cultura científica).
1º MITO – O incesto padrasto – enteada é RARO.
FATO – Pesquisas tipo levantamento (survey) têm
mostrado que essa modalidade de incesto está longe de
ser desprezível em termos quantitativos. Se é certo que o
incesto pai - filha é bem mais frequente, também é verda-
de que o número de famílias com padrasto é menor que o
daquelas com pai biológico.
Pesquisas internacionais de PREVALÊNCIA (núme-
ro de casos de Violência Sexual Doméstica que a popula-
ção adulta reconhece haver sofrido) confirmam essas co-
locações anteriores:
A USA
- Russell (1986) com amostra de 930 mulheres víti-
mas de Violência Sexual, constatou uma presença dos pais
biológicos duas vezes maior que a dos padrastos ressal-
vando porém que, na realidade americana, apenas uma
minoria de meninas têm padrasto.
- Allen (1991) com amostra de 140 agressores sexu-
ais adultos (75 de sexo masculino e 65 do sexo feminino)
constatou que 5 agressoras haviam sido vítimas de vio-
lência sexual doméstica praticada por padrasto enquanto
que nenhum agressor masculino sofrera tal modalidade
de incesto.
B ESPANHA
- López (1995) com amostra representativa de 2000
sujeitos encontrou 1.49% de mulheres adultas que diziam
ter sido vítimas de incesto praticado por pai não biológi-
co contra nenhum caso entre adultos de sexo masculino.
Cabe a ressalva de que na população espanhola, os casos
de incesto pai – filha e os de violência intra familiar foram
menos numerosos que os de violência extra-familiar; “tal-
vez porque a família mediterrânea seja mais protetora da
infância que a anglo-saxônica,” segundo o autor (1995).
...
Quanto ao Brasil, os poucos dados disponíveis pro-
vêem de pesquisas sobre INCIDÊNCIA de violência se-
xual doméstica (nº de casos notificados num certo perío-
do de tempo).
- Azevedo e Guerra (1988) – com amostra de 168
casos de violência sexual doméstica extraídos de 309313
documentos consultados no período de 1982 – 1984 (Bo-
letins de Ocorrência Policial, laudos do Instituto Médico
Legal, processos judiciais, prontuários FEBEM, etc.) –
detectaram no Município de São Paulo, 50 casos em que
agressor fora o padrasto contra 117 (69.6%), praticados
pelo pai biológico e 1 (0.6%) pelo pai adotivo.
- Também Cohen (1993) – o estudo sobre incesto no
Município de São Paulo, verificou em amostra de 238
casos provenientes do IML, que em 20.6%, o agressor
era o padrasto contra 41.6% em que o agressor era o pai
biológico.
...
Mesmo com várias limitações, esses dados sugerem
que a ocorrência de incesto praticado por padrastos não é
desprezível ou extraordinária, merecendo consideração
atenta. Nesse sentido, o caso Arthur Kirk – Cláudia Draper
nada tem de inusitado sendo, ao contrário, uma ocorrên-
cia até bem previsível.
2º MITO – O incesto padrasto – enteada acontece,
sobretudo, em famílias pobres.
FATO – O que o filme e o livro Querem me Enlou-
quecer (focalizando um fato real), deixam explícito é que
essa modalidade de incesto não é “triste privilégio” das
famílias pobres. Muito pelo contrário, ele também acon-
tece em famílias de posses.
“De repente, Levinsky, sentiu um toque no om-
bro – Perdão, Dr. Levinsky.
Levinsky voltou-se e viu-se frente a frente com
o homem alto e forte que tinha se identificado como
o pai de Cláudia na Corte. Estava de pé com um
braço passado nos ombros da esposa, protetora-
mente.
- Gostaria de falar com o senhor – disse Arthur
Kirk.
Arthur Kirk estendeu a mão direita, apresentan-
do-se – Sou Arthur Kirk – disse o pai da moça. Essa
é Rose, minha mulher ... Arthur Kirk estava tirando
a carteira. Estendeu um cartão a Levinsky, como se
ambos fossem executivos que estavam se encon-
trando em uma conferência de vendas – Se preci-
sar de alguma coisa, Dr. Levinsky, qualquer coisa,
telefone para meu escritório. Aqui está meu cartão.
Levinsky pegou o cartão encorpado cor de palha e
guardou-o no bolso das calças, sem olhar – Obriga-
do – disse...
- Chamo Arthur Kirk...
O padrasto de Cláudia foi até o lugar destinado
às testemunhas, como se estivesse se dirigindo para
um salão de conferências de executivos...
Arthur sentou-se com uma pose relaxada, em-
bora atenta... Havia franqueza em sua atitude con-
fortável, como se soubesse tanto sobre ser uma tes-
temunha, quanto sobre ser um executivo...”(excertos
do livro de Reilly, C. - Querem me enlouquecer, ob. cit. p.
33, 36, 128)
O que o livro e o filme demonstram é que o incesto
padrasto – enteada é um fenômeno que não conhece bar-
reiras de classe social. Como toda violência sexual do-
méstica, é VIRULENTAMENTE DEMOCRÁTICO!!!
Fig. 1 – A mãe de Cláudia (Maureen Stapleton) e o
padrasto (Karl Malden)

3º MITO – O incesto padrasto – enteada só acontece


a garotas que o procuram.
FATO – Esta falsa crença é uma forma disfarçada de
transformar a vítima em ré. Muito pelo contrário, todas as
pesquisas evidenciam que, em se tratando de violência
sexual, o incesto padrasto – enteada implica em uma rela-
ção assimétrica de poder entre agressor e vítima, de que é
muito difícil a esta última escapar.
As estratégias utilizadas pelo agressor são as mais
variadas possíveis. Envolvem desde a força física – que
segundo Russell (1986) seria muito característica dessa
modalidade de incesto quando praticado com adolescen-
tes – até as mais variadas formas de chantagem. O pa-
drasto de Cláudia não precisou recorrer a força física, seja
porque iniciou suas práticas aos 5 anos (quando a resis-
tência psicológica da vítima é menor), seja porque soube
envolver suas condutas na pedagogia da compensação fi-
nanceira, camuflada pela ideologia amor paterno.
“Veja bem – suspirou Arthur – eu a amava.
Quando amamos alguém damo-lhe coisas: no Na-
tal, aniversários, formatura... Quando Cláudia era
pequena, dava-lhe presentes. Quando ficou mais
velha, dei-lhe crédito para que comprasse presen-
tes. Algumas vezes dinheiro.
- Minha mãe sempre me aconselhou a não dar
dinheiro a meus filhos – disse Levinsky.
Discordo – disse Arthur com convicção. Olhe,
sou um homem de negócios e, para mim, adminis-
trar uma família é a mesma coisa que administrar
uma empresa. Se quiser que alguém faça algo, dê-
lhe incentivo para faze-lo...
Ouço você. Está tão perto de mim, sempre tão perto
de mim. Tenho sete anos. Você não devia ficar tão perto
de mim. Mas enfia suas notas de vinte dólares por baixo
da porta do banheiro e eu destranco a porta e o deixo
entrar, ainda que meus dentes batam, ainda que esteja
tão doída. Você começou a fazer isso comigo desde que
tinha cinco anos, não sei porque ainda dói tanto, mas
dói. O amor dói, você me diz. E aqui está você de novo,
tentando ferir-me outra vez com o seu amor...
Voltando-se para o tribunal, Arthur exclamou: -
Não vêem que não está em seu juízo perfeito?
Ele vem para mim com a toalha rosa. Ando para
trás, mas ele me segue, sorrindo. Enrola-me na toalha,
tão felpuda e macia e murmura: – “Sabe que papai ama
você. Vamos, neném, diga a papai o que você quer”...
Novamente Arthur voltou-se para Cláudia. Ar-
rastando-se para baixo da mesa onde ela se prote-
gia, disse-lhe carinhosamente: - Estou lhe pedindo,
neném. Papai a ama, querida.
Cláudia parou de sacudir a cabeça e olhou-o
com olhos inocentes e cheios de horror, quando ele
estendeu as mãos para ela.
Tocou-a gentilmente no braço e Cláudia, os den-
tes começando a bater, as lágrimas escorrendo-lhe
dos olhos, fez menção de erguer as mãos devagar,
como se pretendesse abraçar o homem que a ha-
via estuprado durante onze anos de sua vida.
- Eu lhe darei tudo o que quiser – disse Arthur
em voz baixa. Por favor, neném, por favor. Papai
não vai machucar você. Eu amo você..” (excertos do
livro de Reilly, C. - Querem me enlouquecer, ob. cit. p.
138, 148, 149).
4º MITO – Os efeitos do incesto – enquanto VIO-
LÊNCIA SEXUAL DOMÉSTICA – NÃO COSTUMAM
TER IMPORTÂNCIA.
FATO – As pesquisas realizadas até hoje apontam o
que Azevedo e Guerra (1988) já relataram:
“Bagley (1984) analisa... o trabalho de Hill, que pro-
cedeu a uma revisão da literatura publicada nas últimas
décadas, no qual ele descreve, entre outras, as seguintes
consequências do processo de vitimização:
• traumas físicos, incluindo lacerações vaginais e
anais;
• infecções e doenças venéreas;
• desordens menstruais;
• distúrbios de sono e de alimentação;
• dificuldades de aprendizagem;
• sentimentos de ódio em termos do agressor e do
parente não agressor;
• fugas do lar, uso de álcool e de drogas;
• prostituição juvenil subsequente, etc.
Em relação à prostituição, Bagley (1984) cita o tra-
balho de Silbert que entrevistou duzentas prostitutas de
rua em São Francisco, sendo 70% abaixo de vinte e um
anos e 96% fugitivas do lar, quando se iniciaram nesta
atividade. A maioria delas era proveniente de famílias de
classe média, haviam sofrido um longo processo de
vitimização no lar, sendo que quase todas haviam perdido
a virgindade em consequência desta vitimização e para
escapar deste processo fugiram do lar. Uma vez nas ruas,
o meio de sobrevivência acabou sendo o da prostituição.
Silbert afirma, inclusive, que a maioria das entrevistadas
vitimizadas no lar, sentiu que sua entrada no mundo da
prostituição se correlacionou diretamente com o proces-
so de vitimização sofrido.
Finkelhor (1979) referenda este aspecto, dizendo que
a infeliz lição que as crianças podem extrair deste proces-
so é que somente através do oferecimento de sexo é que
elas logram algum tipo de afeto e de atenção, seguindo
nesta busca infrutífera na idade adulta. Ele diz, ainda, que
não é surpreendente que os estudos sobre as prostitutas,
por exemplo, mostrem que um grande número delas foi
vitimizada na infância.
Por outro lado, ele aponta que outras pessoas podem,
a partir do processo de vitimização, apresentar comporta-
mentos de temor, de rejeição quanto a envolvimentos de
ordem sexual. Os contatos sexuais podem lhes lembrar as
experiências no lar, passando a ser, portanto,
desconfortáveis, desagradáveis.
Ele chama atenção para o fato de que muitas vítimas
relatam que a consequência da vitimização não é apenas
sexual mas fundamentalmente de ordem emocional. Elas
ficam com muitas dificuldades para confiar nas pessoas,
especialmente nos homens, sentindo-se usadas por eles.
Acham que a única coisa que os homens desejam delas é
o sexo. Além disso, passam muitos anos culpando-se pelo
sucedido, sentindo-se diferentes dos demais.
Finkelhor (1979) faz questão de assinalar, em seu de-
bate sobre as consequências, que elas dependem da for-
ma como a questão foi tratada com a vítima. Isto é, se
algumas vítimas acabam drogadas, alcoolizadas,
institucionalizadas, na prostituição, etc. outras encontram
apoio de amigos, de profissionais e acabam recebendo a
ajuda necessária para minimizar as consequências do pro-
cesso sofrido...”
No caso de Cláudia Draper as consequências da vio-
lência sexual doméstica, reiterativamente sofrida por onze
anos, assumiram algumas formas características:
A – Dificuldades Escolares
“Sra. Kirk... pode dizer-nos quando observou
pela primeira vez quaisquer mudanças no compor-
tamento dela?
Rose olhou ansiosamente para Cláudia, depois
disse:
- Quando estava no sexto ano e tinha mais ou
menos onze anos. Sempre foi ativa na escola, nos
esportes, clubes, esse tipo de coisa. Era uma crian-
ça muito feliz. Depois, de repente, afastou-se. Pa-
recia viver em um mundo de fantasia, a maior parte
do tempo...” (excertos do livro de Reilly, C. - Querem
me enlouquecer, ob. cit. p. 115)
B – Drogas
“Mais tarde, no curso secundário, tivemos al-
guns problemas com marijuana...”
(idem, idem)
C – Promiscuidade
“Mais tarde, no curso secundário, tivemos pro-
blemas... noites passadas fora e houve um período
de... promiscuidade...” (idem. Idem)
D – Comportamento Agressivo
“Uma noite, ela tinha dezesseis anos... Arthur -
o Sr. Kirk – e eu a encontramos de pé, diante do
espelho do banheiro. Tinha cortado todo o seu ca-
belo. Quanto tentamos nos aproximar, ela... nos
ameaçou com a tesoura...” (idem, p. 116)
E – Prostituição
Cláudia, após separar-se do marido, passou a
exercer prostituição de alto luxo, como forma de
sobreviver.
“Cláudia, calmamente continuou a falar sobre os
detalhes de sua ocupação, como se fosse um enge-
nheiro explicando a construção de uma ponte –Funci-
ona assim: telefonam-me, marcamos um encontro.
Examino o cliente e, se gosto dele fazemos um trato.
Depois baixou a voz, ao dirigir-se a cada ho-
mem no tribunal - E meus caros, eu valho a pena,
podem acreditar. Se quiserem o melhor. Querem o
melhor?... Estou falando em levar seus corpos ao
céu, mandando suas mentes para baixo... Estou
falando em lhes dar tanto prazer que odiarão qual-
quer outra mulher que toquem... Todos vocês com-
preendem o que estou dizendo?” (excertos do livro
de Reilly, C. - Querem me enlouquecer, ob. cit. p. 171,
172)
Cláudia Draper exerceu prostituição durante 35
meses e 24 dias, “por cem mil dólares por ano...
líquidos” (idem, idem, p. 173)
Que o exercício dessa ocupação por Cláudia Draper
tem tudo a ver com a Violência Sexual Doméstica a que
foi submetida fica claro em mais de uma ocasião, tanto no
livro quanto no filme.
“Mac Millan (promotor) relanceou o olhar para
Rose Kirk que estava acompanhando o curso da
audiência com olhos ansiosos – Em alguma oca-
sião pediu dinheiro a seus pais?
Não – disse Cláudia brevemente.
- Acredita que teriam se recusado a lhe empres-
tar ou lhe dar o dinheiro?
Cláudia olhou rapidamente para a mãe e de-
pois voltou a Mac Millan – Teriam dado – disse, após
uma pequena pausa
- Mac Millan fingiu-se surpreso – Porém, ainda
assim preferia uma vida de trocar favores por pre-
sentes.
- É menos penoso a gente se vender a estra-
nhos – disse Cláudia com seriedade.
Mac Millan, dirigindo-se a Cláudia perguntou: -
Se estivesse hoje na mesma situação, faria a mes-
ma escolha? ...
Voltaria a uma vida como essa, em vez de pedir
dinheiro a seus pais? indagou Mac Millan.
Dando de ombros, Cláudia disse – Provavel-
mente. Não sei. De um jeito ou de outro, há um pre-
ço a pagar. (excertos do livro de Reilly, C. - Querem me
enlouquecer, ob. cit. p. 172, 173, 174)

Figura 2 – A Corte: Cláudia Draper, Levinsky e o


juiz Stanley Murdoch (James Whitmore)
O preço emocional e as consequências adversas que
Cláudia Draper teve que enfrentar ao longo de sua vida –
incluindo seu fracasso matrimonial, o aborto realizado,
etc. – podem ser sintetizadas na frase com que Levinsky
resumiu a conduta agressiva de sua cliente:
“A acusada é como uma dor de corno...” (excerto
do livro de Reilly, C. - Querem me enlouquecer, ob. cit. p.
183)
O importante a assinalar é que Cláudia não nasceu
assim: foi fabricada enquanto tal, pela família incestuosa
em que viveu e especialmente pela firme decisão de sua
mãe e de seu padrasto em declara-la insana para evitar o
julgamento como acusada de homicídio em Primeiro Grau.
Daí a resposta aparentemente chocante, mas perfeitamente
coerente com sua história de vida, que Cláudia deu ao
promotor público quando este indagou: “Há alguém em
quem confie neste tribunal, sem qualquer restrição?
Cláudia olhou em volta por um momento. Os
olhos fixaram-se em Harry, o meirinho... - Confio nele.
Mac Millan voltou-se bruscamente para ver a
quem o dedo de Cláudia estava indicando e enca-
rou o meirinho, chocado. Está apontando para o
funcionário Harry Haggerty?
Cláudia concordou com um movimento de ca-
beça.
- Sim.
Mc Millan mostrou-se aborrecido com isso – A
única pessoa em quem confia neste recinto é o fun-
cionário Haggerty? – exclamou indignado.
- Ele não pode me fazer mal – disse Cláudia
rudemente. O senhor pode, o juiz pode, Morrison
pode – e, olhando atentamente a mãe, concluiu – ela
pode. Não confio em pessoas que podem me fazer
mal, nunca mais”. (excertos do livro de Reilly, C. - Que-
rem me enlouquecer, ob. cit. p. 177/178)
De todas as consequências do incesto enquanto Vio-
lência Sexual Doméstica, a mais devastadora parece ser a
crônica desconfiança decorrente da traição sofrida.
5º MITO – A mãe da sobrevivente de incesto é tão
vítima quanto esta.
FATO – Pesquisas realizadas vêem apontando que em
famílias incestogênicas podem existir três tipos de mães:
- a que tudo ignora;
- a que desconfia mas comporta-se como avestruz, en-
fiando a cabeça na areia para defender-se de uma realidade
perturbadora, de uma verdadeira ferida narcísica;
- a que sabe e até ajuda nas práticas sexuais.
O primeiro grupo é o menos frequente. São poucos os
casos em que a mãe desconhece por completo a violência
sexual ocorrida quotidianamente em sua família.
O segundo grupo é o mais comum: são mães que, em-
bora identificando indícios, tudo fazem para ignorá-los ou
negá-los a fim de não serem forçadas a uma escolha dolo-
rosa entre filha e marido ou companheiro.
O terceiro grupo – também não muito frequente – é o
das mães tão subservientes que até colaboram com o
agressor em suas práticas vitimizadoras. Este foi o caso de
Fabiana Pereira de Andrade, muito bem retratado no livro
autobiográfico preparado pelo LACRI/IPUSP e publicado
pela editora Escrituras com o sugestivo título de LABI-
RINTOS DO INCESTO (1998).
Todos esses tipos de mães têm em comum o “desam-
paro aprendido” e a submissão ao marido como caracte-
rísticas definidoras de sua identidade.
São, as “cúmplices silenciosas do incesto” a que se
refere a literatura internacional.
Rose Kirk, a mãe de Cláudia Draper parece perten-
cer ao segundo grupo. Por isso Cláudia a condena e dela
desconfia.

Figura 3 – Mesmo com seu sentimento de culpa, Rose


prefere Cláudia internada num sanatório do que encarce-
rada.
Tem razão para isso na medida em que a mãe não a
protegeu dos avanços incestuosos do padrasto.
“Rose respirou fundo – Não sei o que aconte-
ceu. Quando era pequena gostava muito de mim.
Costumava dizer-me ‘Amo você tanto quanto a dis-
tância de ida e volta da lua e ao redor do mundo,
ida e volta.’ E eu respondia ‘Amo você tanto quan-
do a distância de ida e volta do sol e ao redor das
estrelas, ida e volta.”
Pousando a caneta, Levinsky olhou novamente
as figuras de pauzinhos de Cláudia. Sem bocas.
Ergueu os olhos para a boca de Cláudia. Seus lábi-
os moviam-se em sincronia com os da mãe, balbu-
ciando os mesmos versos que ela, mas de sua boca
não vinha nenhum ruído. Apenas os lábios, moven-
do-se sem som, os olhos pregados em Rose...
Amo você tanto quanto a distância de ida e volta da
lua e ao redor do mundo, ida e volta, e amo você tanto
quanto a distância de ida e volta do sol, e ao redor das
estrelas, ida e volta, mas que significa isso quando tenho
onze anos e estou sentada na cama, de pijama, soluçan-
do e ouço seus passos toque-toque-toque com seus sal-
tos altos? Você vem até a minha porta com um uísque na
mão. Sei que me ouve chorar, porque posso ver seus olhos
me espiando, através de uma fresta na porta. Mas por
que não entra? Por que seu amor não a faz entrar? Os
cubos de gelo se entrechocam em seu copo, e os saltos
altos a levam para longe de mim, toque-toque-toque, e
então ouço bater a porta de seu quarto. Seu amor está
viajando para as estrelas e para a lua? Estou esperando
aqui pela volta mágica mas, por mais que chore, ele nun-
ca vem a mim...
- Amo você tanto quanto a distância de ida e
volta do sol e ao redor das estrelas, ida e volta –
disse Rose Kirk de novo e então, como se pudesse
sentir como o olhar da filha a estava levando para
muito longe, exclamou: - Lembra-se, Cláudia?
Cláudia pestanejou e olhou para os rabiscos em
seu bloco de notas. Em voz baixa, disse: - Apenas
responda às perguntas, mamãe...”
(excertos do livro de Reilly, C. - Querem me enlou-
quecer, ob. cit. p. 118, 119)
A pergunta que as pesquisas procuraram responder
foi: as mães de sobreviventes de incesto, (como Rose
Kirk), não as protegeram porque não quiseram ou porque
simplesmente não puderam? Não há uma resposta padrão,
mas pesquisas realizadas por feministas têm mostrado
quão inadequado e simplista é condenar e estigmatizar
tais mães. Porisso mesmo “a acusação às mães precisa
ser contextualizada... Para compreender a posição da
mulher [em famílias incestuosas] devemos começar refle-
tindo honestamente qual seria nossa própria resposta se
alguém nos dissesse que o homem – que havíamos esco-
lhido, em quem confiamos e a quem amamos – havia ata-
cado sexualmente nossos filhos. Onde exista apoio para
ela como mãe e mulher, é muito mais provável que a mãe
acredite e proteja sua prole. Onde isto não exista é muito
mais provável que a mãe acredite nas negativas do ho-
mem... Talvez a forma mais efetiva de proteger a criança,
seja protegendo a mãe”. (Orr, 1995)
Não é por outra razão que grupos feministas vêem
considerando o incesto – enquanto Violência Sexual con-
tra crianças e adolescentes – como um crime da e contra
a família.
“Análises feministas da família apontam que esta não
é uma comunidade de iguais, mas estruturada ao redor de
dois eixos de poder – gênero e idade.
Quando isto é vinculado ao reconhecimento de que
histórica e correntemente, os homens usam violência se-
xual como forma de assegurar e manter o controle sobre
mulheres e crianças é possível explicar [porque] abuso de
mulheres e crianças ocorre não apenas em famílias
desestruturadas mas também nas que funcionam de acor-
do com os “valores tradicionais de família” (Orr, 1995).
Voltando ao caso Cláudia Draper, a pergunta que fica é:
numa família chefiada por Arthur Kirk (patriarca por ex-
celência), num contexto caracterizado por estreita depen-
dência e aliança de Rose para com Arthur, e revestido
pela “lengalenga açucarada de amor, amor, amor em
família” (excerto do livro de Reilly, C. - Querem me en-
louquecer, ob. cit. p. 140), haveria condições para que a
mãe suspeitasse da relação incestuosa padrasto - enteada
(uma violência impensável e indizível)? Numa família des-
se tipo, o que preexistem são condições ideais para ocor-
rência de incesto: os limites intergeracionais não são cla-
ros, a solidariedade se dá a nível do casal e não ocorre de
fato em relação à prole, a não ser sob forma mistificada
do “amor hipócrita e egoísta”. Nessa família (formada
antes por mãe e filha), fica fácil a intrusão de um homem,
eventualmente mais interessado na filha que na mãe (por
motivações as mais variadas que podem incluir até mes-
mo as de uma pedofilia latente).
O resultado é o clima de amor impotente, inca-
paz, desvalorizado que Cláudia tão bem soube
explicitar “Mamãe, você diz que me ama, mas você
abriu mão de mim.. Conheço mulheres que vendem
suas filhas para conservarem os maridos...
Filhinha, eu não sabia – disse Rose, suplicante
- Mamãe, disse Cláudia com firmeza – você não
queria saber...
- Mac Millan (promotor)... continuou: Sra. Draper,
acredita que sua mãe a ama?
- Rose exclamou: Claro que amo você!
Cláudia passou a mão pela testa – Aí está essa
palavra de novo... O senhor fica perguntando: a se-
nhora ama sua filha e ela diz que sim e o senhor
pensa que perguntou alguma coisa real. Pensa que
porque joga a palavra “amor” em todas as direções,
como uma bola, vamos ficar aquecidos e prontos
para correr? Não.. Amo minha mãe [Mas]. E daí?”
((excertos do livro de Reilly, C. - Querem me enlouque-
cer, ob. cit. p.. 179, 180)

...
O perfil emergente do incesto padrasto – enteada é o
de uma prática abusiva, reiterativa, do primeiro para com
a segunda, possibilitada por uma estrutura familiar patri-
arcal, alimentada pela cultura do segredo e cimentada pela
mentira ideológica do amor de pais para com os filhos.
Embora em graus diferentes, Arthur e Rose foram
tóxicos para Cláudia. Daí porque, mesmo desejando, Cláu-
dia não podia mais confiar neles.
“Não importava nem um pouco se Rose Kirk ti-
nha magoado a filha intencionalmente: ela a tinha
ferido. Perdera o direito à confiança. E nenhuma
das palavras que dissesse iam devolver-lhe essa
confiança” (excerto do livro de Reilly, C. - Querem me
enlouquecer, ob. cit. p. 178)
Tudo o que foi discutido permite entender porque o
incesto padrasto – enteada é uma “coisa de louco” e não
de loucos. Ao contrário do que o senso comum poderia
pretender e do que os peritos psiquiatras esforçaram-se
por demonstrar no caso de Cláudia, nenhum dos protago-
nistas pode ser considerado louco no sentido estrito de
enfermo mental. A loucura não está neles e sim no insano
de uma vida familiar assentada na mentira de um amor
tóxico para a criança e/ou adolescente. “Algumas ve-
zes, as pessoas nos amam tanto que seu amor é
como uma arma que fica atirando diretamente em
nossa cabeça. Elas nos amam tanto que vamos
parar em um hospital” diz Cláudia (excerto do livro de
Reilly, C. - Querem me enlouquecer, ob. cit. p. 179) para
concluir num brado de revolta e de demanda por justiça,
ainda que tardia:
“Não enlouquecerei para vocês!”. (idem, idem, p.
183)
Figura 4 – Entendam bem – Cláudia diz para a Corte
– Não enlouquecerei para vocês!
3.0. Onde andará CLÁUDIA DRAPER?
Cláudia é o exemplo de sobrevivente de incesto que
soube vencer o complô de silêncio e defender seus direitos.
A tentativa de Arthur Kirk para interná-la num hospi-
tal psiquiátrico - com a anuência da mãe - foi uma tática a
mais de silenciar para sempre a mulher-vítima. Sob a hi-
pócrita alegação de “ser para seu próprio bem”, repre-
sentou uma manobra para evitar o desvelamento do se-
gredo tão bem guardado, durante tantos anos, por uma
“família tão respeitável”. Mais que isso: foi também uma
tentativa de cooptação dos sistemas psiquiátrico e penal
no sentido de “silenciar” a vítima de incesto, caçando não
sua palavra mas confiscando-lhe a credibilidade, através
do rótulo estigmatizante de LOUCA.
Essa tentativa foi abortada, graças à atuação compe-
tente e comprometida de Levinsky, o advogado de Cláu-
dia. Aaron Levinsky é o protótipo do profissional de Di-
reito que vai se desvestindo de suas inúmeras reticências
psicológicas, à medida que se deixa convencer de que
sua cliente em vez de insana como todos pareciam querer
que fosse, era, em verdade, o que muitos teimavam em
ocultar: uma vítima de incesto padrasto – enteada.
“[Meretíssimo, minha cliente] é irritante, desa-
gradável, vulgar. Perturba a ordem. Mas, por mais
irritante que seja, não devemos equacionar sua ati-
tude aborrecida com a doença mental”.(excerto do
livro de Reilly, C. - Querem me enlouquecer, ob. cit. p.
184)
E Levinsky estava certíssimo, ao encerrar assim sua
defesa. A conduta “perturbadora” e frequentemente
provocativa de Cláudia tinha a ver com a Violência Sexual
Doméstica sofrida e não com um quadro de loucura.
Tanto isso é verdade que a 15 de janeiro de 1986,
Cláudia Draper foi julgada, (como queria) pelo Superior
Tribunal Estadual de Nova York. Defendida por Levinsky,
foi absolvida da acusação de assassinato em Primeiro
Grau.
Em 1987 frequentava a Faculdade de Direito da Uni-
versidade de Nova York.
Terá ela se formado? Estará advogando? Terá manti-
do contato com sua mãe e seu padrasto, que em março de
1986 comemoraram 32 anos de casados? Terão eles con-
tinuado juntos?
Passados mais de 15 anos qual terá sido o destino
dos protagonistas dessa triste história de loucura famili-
ar?
O desafio é de vocês leitores. Quem descobrir a res-
posta, comunique-a ao LACRI, para que possamos conti-
nuar a narrativa...
4.0. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- Allen, C. M. – Women and men who sexually abuse


children – Orwell, The Safer Society Press, 1991.
- Andrade, Fabiana Pereira – Labirintos do incesto –
São Paulo, Lacri/Escrituras, 1998.
- Azevedo, Maria Amélia e Guerra, Viviane N. de A.
– Pele de Asno não é só história... – São Paulo, Roca,
1988.
- Azevedo, Maria Amélia e Guerra, Viviane N. de A.
– Violência Doméstica na Infância e na Adolescência -
São Paulo, Robe, 1995.
- Azevedo, Maria Amélia e Guerra, Viviane N. de A.
– Com licença vamos à luta - Guia de Bolso - Telelacri,
São Paulo, 1998.
- Bagley, C. Mental health and the in-family sexual
abuse of children and adolescents – Canada’s Mental
Health (nº 32) – Canada. June 1984.
- Finkelhor, D. – Sexually victimized children – New
York, The Free Press, 1979.
- López Sánchez, F. – Prevención de los abusos
sexuales de menores y educación sexual – Salamanca,
Amaru Ediciones, 1995.
- Orr, T. – No right way. The voices of mothers of
incest survivors - London, Scarlet Press, 1995.
5.0. PARA SABER MAIS !

5.1. CLÁUDIA NÃO FOI A ÚNICA !!!! Leia e reflita !

Shelly
I am seventeen and in grade twelve. My stepfather
started sexually abusing me when I was nine. I didn’t really
get the message across about what was happening until I
was fifteen. Six years later. I felt like it was my fault for
leading him on.
I stopped liking my body because I thought that this was
the kind of thing that it made men do. I wrote poems when I
was unhappy but usually ripped them up because I was scared
someone would find them. I also cried a lot. I sucked my thumb.
The most scary thing I tried to do was commit suici-
de. Two times. Once by taking a lot of tranquilizers. When
I woke up I was so sad I wasn’t dead. Looking back now
I am so glad that I am alive and so sad that no one noticed
how bad I felt. I also tried to shoot myself but I couldn’t
do it. I didn’t really want to die. I just wanted someone
toI am so glad that I am alive and so sad that no one noticed
how bad I felt. I also tried to shoot myself but I couldn’t
do it. I didn’t really want to die. I just wanted someone to
notice what was going on without getting myself in trouble.
I didn’t think anyone knew. I never thought it was
happening to my little brother, too. Now I know how hard
it is for someone to see it is going on when it isn’t
happening to them.
I first told my mom when he started touching my
breasts. She said she’d tell him to stop. He did. He didn’t
do it in front of her anymore. And he kept on telling me it
was okay. I didn’t know if it was but I didn’t like it. I
didn’t feel any better after I first told. It was another three
years later until I told again. When I finally got my guts
up to tell her it was because I didn’t think he could do any
worse to me. She made him stay away from me and we
moved out soon after. I am still scared of him and I always
will be but now I know I am right and he was wrong.
Now my stepfather has to see a psychiatrist and he
isn’t allowed to come anywhere near me or phone or write
to me or he goes to jail.
Even though I love my mom I was very mad because
she didn’t see what was going on. Now I am still angry
because she didn’t see but I understand better that it wasn’t
all her fault. She can’t know for sure something is wrong
if I don’t tell her.
My school work was very bad before. I get C+’s to
A’s now.
I got help by telling my mom when we were alone
and telling her everything. I felt much better and safer
after telling her.
What happened with my stepfather made no difference
with guys except that at first I thought they knew. But that
was wrong because nobody can see inside your mind. I
am now going out with a guy that had the same sort of
thing happen to him and I am very happy. Any problems
we have are just like everybody else because everybody
fights.
Some things I would tell mothers are that if you feel
something is wrong trust yourself and not your husband
just because you love him. You know best. Tell your child
you will believe anything he or she says and be serious.
Don’t treat them like a child. Then if your child tells you
something believe them. A child couldn’t lie about stuff
like that to get attention. Then make sure your child is
safe, and confront the other person involved. If you feel
scared, get someone who believes you to go with you.
Kids... tell your mother everything. Don’t hide
anything, Everything will help her to believe. It’s scary
for a mom, too, so if she cries and if she gets angry, it’s
not you. She is just scared and upset. If you want help
though you will have to tell her. If you can’t tell your mom
or your dad then go to someone you can tell... your teacher
or counsellor. Remember, it’s never too late to tell.
Remember, there is always someone out there who
loves you. You may not feel that right away but somebody,
someday, will. Take care of yourself before you protect
anybody else. Remember, it’s not just dads, it’s moms,
grandparents, anybody else who can do this. Even teachers
and mothers and sisters and brothers.
If you don’t like it, it’s your right to make a ruckus.

Fonte: Foon, D and Knight Brenda – Am I the only


one?/ A young people’s book about sex abuse, Vancou-
ver, Douglas and McIntyre, 1985, p. 46, 49.
5.2 - Biblinet

CONTATE! CONTATE! CONTATE!

SITES DA INTERNET QUE PODEM INTERESSAR A SOBREVIVENTES DE


VIOLÊNCIA SEXUAL DOMÉSTICA*

ASARian.org
Anonymous Sexual Abuse Recovery (Canadá)
Child Abuse Survivor Organizations and Agencies
Dark Angels
Incest Survivors Resource Network International (ISRNI)
Khijl.org
M.A.L.E. – Men Assisting Leading & Educating
The National Committee to Prevent Child Abuse
Partners and Allies of Sexual Assault Survivors Resource List
PASA – People Against Sexual Abuse, Inc.
N.O.M.S.V. – The National Organization on Male Sexual Victimization
Sidran Foundation Online Resources
Survivor’s Link
The Survivor’s Page
The Survivor’s Voice
VOICES In Action, Inc.
The Wounded Healer
Maiores informações a respeito destes sites podem ser obtidas em:
http://www.jimhopper.com

Kempe Children’s Center (http://www.kempecenter.org)


National Clearinghouse on Child Abuse and Neglect Information (http://
www.calib.com/nccanch)
Vancouver Incest and Sexual Abuse Centre (WINDOWS/TEMP/indice geral
limpo.html)
Save The Children
(http://www.savethechildren.es/organizacion/abus.htm)

_______________________________
* Este material foi organizado por Renato de Azevedo Guerra – Estudante de
Direito, PUCSP.
Estagiário do Laboratório de Estudos da Criança.
CONSULTE! CONSULTE! CONSULTE!

BIBLIOGRAFIA BRASILEIRA SOBRE VIOLÊNCIA SEXUAL DOMÉSTICA


CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

AZEVEDO, M.A. (1991). Incesto pai-filha: um tabu menor de um Brasil menor.


Tese de Livre Docência, IPUSP.

AZEVEDO, M.A. e GUERRA, V.N.A. (1988). Pele de Asno não é só história...


Um estudo sobre a vitimização sexual de crianças e adolescentes em família.
São Paulo: Roca.

AZEVEDO, M.A. e GUERRA, V.N.A. (1994). Infância e violência doméstica.


Perguntelho – O que os profissionais querem saber. São Paulo: Laboratório de
Estudos da Criança/IPUSP.

AZEVEDO, M.A. e GUERRA, V.N.A. (orgs) (1997). Infância e violência


doméstica: fronteiras do conhecimento. 2ª edição. São Paulo: Cortez.

Você também pode gostar