Você está na página 1de 2

O ciclo recursivo do abandono

Juliana Fernandes Pereira e Liana Fortunato Costa

2004

Resumo

Pereira e Costa (2004) realizaram um estudo em que se investigou a


articulação entre a Justiça e abrigo no encaminhamento dos casos de crianças e
adolescentes institucionalizados que aguardavam colocação em família substituta. As
principais conclusões evidenciaram a situação de abandono das famílias de origem e
profissionais que atuam na área; a fragmentação das ações e abandono da rede de
atendimento; a presença do abandono na história pessoal das mães-sociais e o
sofrimento psíquico no desempenho da função; e a reedição do abandono para
crianças e adolescentes em virtude da alta rotatividade de cuidadoras.

4.4 - Estado, Instituições e Sociedade: o Abandono da Rede de


Atendimento aos Direitos da Criança e do Adolescente

5 – Considerações Finais

Gostaríamos de ressaltar, para concluir, as três principais conseqüências


do processo de fragmentação e abandono da rede de atendimento, identificadas a
partir da investigação: a) a ausência de alternativas à institucionalização; b) as
dificuldades para trabalhar com a reintegração familiar; c) e, finalmente, as dificuldades
para trabalhar com a colocação de crianças maiores e adolescentes em lares
substitutos.

O efeito mais grave do quadro observado é a continuidade do “abrigo


depósito” — a exemplo da Roda dos Expostos — no qual crianças tornam-se
adolescentes abandonados pela família, pelo Estado e pela sociedade. Em última
instância, sofrendo as tensões do ciclo de abandono vivido nos diferentes níveis do
sistema de atendimento, estão, portanto, a criança e o adolescente que, diariamente,
enfrentam a ruptura dos laços afetivos construídos na instituição e a ação do tempo,
que diminui substancialmente as possibilidades de retorno à família de origem ou
encaminhamento para um lar substituto. Dessa maneira, como explica Enriquez (1991,
77), o modelo real pode diferir substancialmente “do arcabouço estrutural criado para
lhes dar vida”, ou seja, “Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado
no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta” (Art. 19) (ECA) e,
ainda, “o abrigo é medida provisória e excepcional” (Art. 101, § único).

A principal contribuição da investigação se refere à necessidade de


ultrapassarmos a visão reducionista do abandono — como relacionado apenas à díade
família/criança ou adolescente — para se atingir uma visão mais complexa e
contextualizada do fenômeno. Desse modo, o mesmo não deve ser visto apenas sob a
ótica das relações familiares, mas compreendido como um processo co-construído, do
qual participam também o contexto social, institucional, jurídico, econômico, político e
cultural brasileiro. É notável a situação de vulnerabilidade das famílias e de crianças e
adolescentes abrigados quando a rede de atendimento não consegue responder à
demanda que deu origem à intervenção da Justiça.

A ausência de uma política de atendimento profícua, de órgãos e


profissionais qualificados que possam atender às prerrogativas do ECA dificulta, assim,
a realização de um trabalho eficaz, seja de reintegração familiar ou de
encaminhamento para lar substituto. Tais aspectos contribuem substancialmente para
que se instale um processo gradativo de um abandono co-construído, que priva
crianças e adolescentes institucionalizados do direito à convivência familiar. Desse
modo, o próprio modelo de tratamento do abandono em nossa realidade acaba
contribuindo para a instalação de um ciclo recursivo do abandono que re-vitimiza
crianças e adolescentes, transformando-os nos “Filhos do Abrigo”, como outrora definiu
Beloto.

Você também pode gostar