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Referencia para citar este artículo: Penso, M. A. & Moraes, P. J. F. de S. (2016). Reintegração familiar e
múltiplos acolhimentos institucionais. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 14 (2),
pp. 1523-1535.
• Resumo (analítico): Este artigo discute a reintegração de uma adolescente à sua mãe e os
motivos que resultaram em múltiplas medidas de acolhimento institucional, a partir da abordagem
sistêmica e da teoria das redes sociais. Os instrumentos foram mapa de rede, entrevistas análise
documental. A análise das informações baseou-se na abordagem construtiva-interpretativa que
resultou em duas zonas de sentido: “A repetição do abandono e as dificuldades no processo de
reintegração familiar” e “Eu não tinha ninguém para contar” versus “Tem muita gente, mas de nada
adianta”. Conclui-se que as múltiplas medidas de acolhimento institucional da adolescente se devem
a fragilidade de seus vínculos familiares e a falta de um trabalho integrado com as redes sociais.
Palavras chave: Institucionalização, adolescente, family disorganization, redes sociais (Thesaurus
de Ciências Sociais da Unesco).
• Abstract (analytical): This article discusses the reintegration of a teenager to living with
his mother and the reasons that required multiple residential care measures, based on the systemic
approach and the theory of social networks. The instruments used were interviews, network maps
and document analysis. The analysis of the information was based on the constructive-interpretative
approach that covered two zones of meaning: “The repetition of abandonment and difficulties in
family reintegration processes” and “I had no one to tell” versus “A lot of people, but they were
useless”. We conclude that the reasons for an adolescent’s multiple residential care periods is due to
the fragility of his his family ties and the lack of integrated work by social networks.
Key words: Institutionalization, teenager, family disorganization, social networks (Unesco
Social Sciences Thesaurus).
*
Este artigo de investigação científica e tecnológica corresponde a um estudo de caso na área de Ciências Sociais; sub-área: psicologia a partir
de uma metodologia qualitativa. Faz parte da pesquisa Crianças e Adolescentes em Acolhimento Institucional no Distrito Federal: Estudo das
condições familiares, institucionais e sociais. Aprovado pelo Comitê de Ética n. 056/2010 e financiada pelo CNPq. O recorte da amostra foi entre
janeiro, 2007 e dezembro, 2009.
**
Psicóloga. Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília. Pós doutorado na Universidade Federal Fluminense. Coordenadora e Professora
do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Católica de Brasília. Endereço para correspondência: Universidade Católica de
Brasília. Campus Universitário II Asa Norte SGAN 916 Asa Norte. CEP 70.790-160 Brasília-DF Telefone: (61) 3405550 / (61) 34487153 / (61)
82262775. E-mail: mariaaparecidapenso@gmail.com
***
Assistente Social. Mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília. Doutoranda em Psicologia pela Universidade Católica de
Brasília. Endereço para correspondência: Campus Universitário II Asa Norte SGAN 916 Asa Norte. CEP 70.790-160 Brasília-DF Telefone: (61)
3405550 / (61) 34487153 / (61) 84562553. E-mail: jakeliny@hotmail.com
-1. Os motivos que deram origem ao artigo. -2. Família como matriz de identidade e o
acolhimento institucional no Brasil. -3. O papel das redes sociais para o desenvolvimento do
sujeito. -4. Método. -5. Resultados. -6. Discussão. -7. Conclusão. -8. Referências.
Os motivos que deram origem ao artigo também a quantidade de tempo que eles têm
passado nas instituições que somam em média
O direito à convivência familiar e vinte e um meses e meio.
comunitária de crianças e adolescentes Ora, se há interesse da família em manter
acolhidos institucionalmente está previsto vínculo com o filho o que estaria então,
nas seguintes leis: no Estatuto da Criança e impedindo sua saída definitiva do serviço de
Adolescente (ECA) (1990), alterado pela Lei acolhimento? Uma possível resposta pode estar
12.010/09 (Brasil, 2009), na Política Nacional associada às falhas na execução das políticas
de Assistência Social (PNAS) (Ministério públicas voltadas para esse público como
de Desenvolvimento Social, 2004) no Plano também na desarticulação de suas redes sociais,
Nacional de Promoção, Proteção e Defesa tanto a primária que é composta, por vizinho,
do Direito de Crianças e Adolescentes à familiares e amigos, como a secundária que
Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC) abrange a escola, Unidade Básica de Saúde,
(Ministério de Desenvolvimento Social, CAPSi e CAPSiad do Sistema Único de
2006). Sua operacionalização está descrita Saúde (SUS), o Sistema da Justiça da Infância
nos documentos de Orientações Técnicas: e Juventude, os Serviços Socioassistenciais
Serviços de Acolhimento para Crianças e dos Centro de Referência Especializada
Adolescentes (Ministério de Desenvolvimento de Assistência Social (Creas) e Centro de
Social, 2009) e na Tipificação Nacional de Referência de Assistência Social (Cras) e os
Serviços Socioassistenciais (Ministério de Conselhos Tutelares.
Desenvolvimento Social, 2013). Os fatores de riscos mais descritos na
Entretanto, mesmo diante desses avanços literatura sobre os principais motivos para
legislativos os dados do último levantamento acolhimento institucional dessas crianças
sobre crianças e adolescentes em acolhimento perpassam pela negligência, pelo abandono e
institucional (Ministério de Desenvolvimento pela falta temporária de condições financeiras
Social, 2010) apontam um total de 36.929 de suas famílias, esses fatores estão vinculados
crianças e adolescentes acolhidos, sendo que ao grande número de filhos que elas têm, a sua
destas mais de 60% continuam mantendo baixa escolaridade, a pouca oportunidade de
vínculo com suas famílias de origem, através empregos que lhes deem direitos trabalhistas
do contato por visitas das famílias no Serviço. (Rizzini & Rizzini, 2004, Rosa, Nascimento,
Observa-se que paradoxalmente as mudanças Matos & Santos, 2012, Serrano, 2011, Siqueira,
legislativas não só o número de crianças e Zoltowski, Giordani, Otero & Dell’Aglio,
adolescentes acolhidos tem crescido, mas 2010, Siqueira & Dell’Aglio, 2010). Quanto
à dinâmica de relacionamento destas famílias funções, sendo que este movimento relacional
Andolfi, Angelo e Corigliano (1984), Minuchin influencia a individualização que por sua vez,
(1982), Minuchin, Lee e Simon (2008), Penso, proporciona a separação e novamente a coesão
Costa e Sudbrack (2008), Penso e Sudbrack definida como vínculo emocional entre os
(2009) entre outros autores sistêmicos, postulam membros da família em um processo recursivo e
que é na família que se constrói a identidade um novo equilíbrio emocional (Stierlin, Rucker-
de cada um de seus membros, sendo que é nela Embden, Wetzel & Wirsching, 1981). Este
que se encontra o lugar possível de viver os processo possui fases de instabilidade, marcadas
processos de pertencimento e separação. Esses por confusões e incertezas, que revelam a
autores defendem que cada família escolhe para passagem para um novo equilíbrio emocional,
o que quer transmitir a seus membros. capaz de levar a família a tolerar a diferenciação
No entanto, esse processo de transmissão de seus membros. As famílias que estimulam
e lealdade é influenciado pelo que as famílias tanto a separação quanto a individualização
receberam de suas gerações passadas dos seus membros proporcionam a estes um
(Boszormenyi-Nagy & Spark, 2012, Bowen, espaço privilegiado de pertencimento (Andolfi
1991). Assim, o vínculo que se estabelece entre et al., 1984, Bowen, 1991). Aquelas que negam
os pais que doam e o filho que recebe cria um a transitoriedade e mantém seus membros
sentimento de solidariedade e compromisso aglutinados, enfraquecem seu papel cultural e
que tem a função de unificar as necessidades aumentam a possibilidade de adoecimento.
e expectativas dessa família, através da A família tem a função de proteção e
legitimidade (Ducommun-Nagy, 2008). socialização dos seus integrantes, acomodando
Dessa forma, baseado nessas transmissões e transmitindo uma determinada cultura
e no estudo das redes sociais esse artigo, a (Minuchin & Fishman, 1990). Independente da
partir de um estudo de caso, tem o objetivo de organização familiar, todas as famílias criam um
entender os motivos dos múltiplos acolhimentos espaço de proteção que garante a sobrevivência
institucionais de uma adolescente e o processo dos seus membros (Bucher, 1999, Minuchin,
de sua reintegração familiar. Antes, porém, 1982, Osório, 2011). Inicialmente, é no
visando um melhor embasamento teórico, será contexto familiar que a criança introjeta regras,
discutido a importância da família e como estão limites e papeis. Mas a família não é a única
relacionadas suas redes sociais. que influência neste processo de construção
identitária (Stierlin et al., 1981). As relações do
Família como matriz de identidade e o sujeito são também influenciadas pelo ambiente
acolhimento institucional no Brasil em que vive e pela cultura que está inserida.
Portanto, não é possível desvincular a
A família é a matriz de identidade dos história de vida de uma criança a de sua família,
seus membros, envolvendo os processos de pois toda criança ao nascer está inserida em
separação e pertencimento ao longo do Ciclo de uma cultura que abarca sua história social,
Vida Familiar e a introjeção de limites, regras geográfico e familiar. Esse território revela o
e papeis, além das principais identificações lugar que ela pertence, revela a comunidade que
(Minuchin et al., 2008, Minuchin, 1982). Dessa está vinculada e principalmente determinam
forma a qualidade dos vínculos construídos sua identidade (Vicente, 1994).
entre a criança e seu sistema familiar e as trocas A grande maioria das famílias com
mútuas no seu interior serão fundamentais para filhos institucionalizados tem uma marca
a sua constituição como sujeito e para a sua de fragilização em seus elos familiares. Os
interação com outros grupos de pertencimento estudos na área apontam que a tendência da
(Penso et al., 2008). sociedade é responsabilizar e culpabilizar estas
Neste processo a família, ao longo do seu famílias. Esta visão é pautada em estigmas e
Ciclo de Vida Familiar passa por momentos preconceitos sociais, e rotulam as famílias como
de desorganização, exigindo de seus membros desestruturas, violentas e incapazes de prover
flexibilidade e adaptação em seus papéis e os cuidados e proteção a sua prole (Rizzini &
sua vinda o marido saiu de casa e não deu mais O relato de Lúcia não se diferencia do que a
assistência. Sem condições financeiras e sem literatura tem mostrado
escolaridade suficiente para conseguir emprego, “Eu peguei e vim pra cá com os cinco
Lúcia, desapareceu sem deixar contato na meninos e o marido não pagou aluguel,
Vara da Infância ou Conselho Tutelar. Anos nem nada [...] o pessoal colocou minhas
depois procurou o Conselho Tutelar para saber coisas do lado de fora, aí foi aonde eu
notícias sobre os filhos e descobriu que estavam entrei em desespero, comecei a beber e
abrigados em uma Instituição de Acolhimento, o Conselho Tutelar, veio aqui e pegou
todavia, não retomou a guarda das crianças meus cinco filhos.”
apenas passou a visitá-los esporadicamente, até Além disso, o caso aponta para um
que três deles fugiram para sua casa. Todavia, prolongamento de acolhimento institucional
Diana continuou acolhida junto à sua irmã, que da adolescente. Essa realidade se assemelha
tempos depois também foi adotada. Anos mais as estatísticas encontradas nas duas últimas
tarde, outros irmãos foram acolhidos, todavia pesquisas sobre serviços de acolhimento
em instituições diferentes à sua. (Silva, 2004). A continuidade do acolhimento
Diana foi abrigada com dois anos de idade e não é um caso isolado, mas representa muitas
passou por outras duas instituições, além de ter outras situações reais dentro dessa e de outras
convivido em uma família substituta por sete instituições de acolhimento, mas que será
meses. Foi reintegrada a sua genitora, por três discutido principalmente na segunda zona de
vezes, sendo a última realizada, meses antes de sentido deste artigo.
completar a maioridade. Durante esse percurso Quanto aos aspectos de transmissão
institucional não conseguiu concluir o ensino geracional, pode-se constatar a repetição do
fundamental, usou drogas e teve dois filhos, dos abandono e da falta de cuidados sofridos pela
quais um está sob a guarda de Lúcia e o outro mãe com relação aos seus pais na sua atual
sob a guarda da adolescente. relação com os seus filhos. Tal situação se reflete
no vínculo entre Lúcia e Diana, provocando
Discussão sofrimento, afastamento entre elas e dificuldade
de comunicação, conforme colocado na fala de
Zona de sentido 1: A repetição do abandono Lúcia
e as dificuldades no processo de reintegração “Eu deixei de ter contato com meus
familiar pais a não sei quantos anos, ninguém se
O caso apresenta-se como representativo preocupava comigo” e na fala de Diana
de tantas outras famílias brasileiras que “Minha mãe nunca me criou, nunca
migram para a capital do país em busca de me deu carinho, ai quando eu já estou
melhores condições de vida e que ao chegarem de maior, completando 18 anos ela me
se deparam com escassas oportunidades quer? [...]eu nunca vou perdoar minha
de trabalho, moradia, emprego e inserção mãe [...]eu não considero que ela é
social (Companhia de Planejamento do minha mãe, mãe é aquela que cuida”.
Distrito Federal, 2013). Tal situação as leva a Observa-se uma mãe que não foi cuidada
condição de miséria, e ao afastamento de suas por seus pais, com quem perdeu o contato e
redes primárias. Muitas vezes tal situação as que também não consegue cuidar dos seus
impossibilita os cuidados com seus filhos, que filhos em um circuito de reatividade emocional
acabam sendo encaminhados à instituição de não resolvido, que a torna vulnerável e com
acolhimento institucional. propensão a repetir os antigos padrões com
A maioria das crianças que estão nos serviços seus filhos. Diana também já está propensa a
de acolhimento é de famílias desempregadas, repetir o padrão e não ter mais contato com sua
sem escolarização e excluídas do mercado de mãe. Esta situação é agravada ainda mais pelas
trabalho, que passam por diversas violências contingências sociais da migração, pela pobreza
sociais (Fávero, Vitale & Baptista, 2008, e pelo abandono que Lúcia sofre do marido.
Gutiérrez-Vega & Acosta-Ayerbe, 2013). Para alguns autores (Kertchmar &
Jacobvitz, 2002, Weber, Selig, Bernardi & a sua mãe, conforme pode ser visto na fala da
Salvador, 2006) as mães recriam os padrões própria mãe “depois que ela saiu daqui por que
transgeracionais que receberam de suas mães quis, eu disse que não ia aceitar ela de volta”.
e avós no exercício da maternagem com seus Entretanto Lúcia aceita exercer o cuidado com
filhos, mas alguns aspectos relacionados o neto, filho de Diana, mas, sempre mantendo
a punições são modificados a medida que o distanciamento da vinculação afetiva: “Eu
recebem o apoio de outras pessoas como a do aceitei cuidar do filho dela, porque o povo do
companheiro, ou a partir de orientações que abrigo disse que ia mandar ele pra adoção,
recebem de profissionais como pediatras e mas quando ela sair de lá ela é que vai cuidar
psicólogos. Todavia, no caso aqui estudado dele” (Lúcia).
esse apoio provavelmente não existiu, isso fez E Diana, ao ser reintegrada a genitora,
com que a mãe não conseguisse modificar os dias antes de completar dezoito anos, assume
padrões de sua família de origem, repetindo o a responsabilidade de cuidar do filho. Durante
abandono sofrido. as visitas observou-se uma fragilidade de
A dificuldade de relacionamento entre vinculação com sua genitora que mencionou ter
Diana e sua mãe é permeada de agressividade e sido obrigada a receber Diana e o filho
a ausência de afetos positivos: “eu não tive outra opção, tive que
“Voltar a morar com a minha mãe receber, senão o que seria deles, iam
foi a pior coisa da minha vida [...] ela morar na rua? Mais já que ela ficou
descontava a raiva dela em mim e no tanto tempo no abrigo, porque eles não
meu filho, ai eu não aceitei e fugi de ficaram com ela e o menino até que ela
casa”. (Diana). “O abrigo trouxe ela encontrasse um emprego?”
pra morar aqui na minha casa [...] ficou Os resultados deste estudo de caso
um tempo aqui quando estava grávida, confirmam os estudos desenvolvidos por outros
mas, esperou eu ir trabalhar para fugir autores (Siqueira et al., 2011), que apontam
de casa, depois queria voltar pra morar que o fracasso nos processos de reintegração
comigo e eu não aceitei” (Lúcia). familiar se associa a falta da motivação e
Tal situação provavelmente está relacionada de engajamento familiar no processo de
com a precoce separação entre Lúcia e Diana, reinserção; a fragilidade dos vínculos afetivos
que dificultou a construção do sentido de familiares; aos conflitos familiares; as relações
pertencimento, de vínculos de confiança e familiares permeadas por violência física; a
a possibilidade de lidar com os conflitos da ausência de confiança; a ausência de um plano
convivência cotidiana de forma resolutiva e sem de reinserção que contemple a preparação da
violência. Em famílias onde há o rompimento família e dos acolhidos para o desligamento;
dos laços afetivos muito cedo, a vinculação e o a falta de uma avaliação da situação familiar
sentimento de pertencimento ficam prejudicados tanto emocional quanto financeira e a ausência
(Kertchmar & Jacobvitz, 2002, Weber et al., de um acompanhamento próximo durante os
2006). Essa situação aconteceu com a história primeiros meses de reinserção.
de Diana, que foi afastada do convívio com a
sua mãe e institucionalizada aos dois anos de Zona de Sentido 2: “Eu não tinha ninguém
idade sem ter a oportunidade de conviver com para contar (Lúcia)” versus “Tem muita gente,
a figura materna e com outros membros da mas de nada adianta (Diana)”
família. Essas funções de afeto e cuidado foram A mãe de Diana relata que os motivos
transferidas para os cuidadores e técnicos das do acolhimento institucional dos filhos
instituições pelas quais Diana passou. perpassaram pelas questões financeiras e pela
Portanto, as tentativas frustradas de falta de apoio familiar e social: “Ninguém se
reintegração de Diana à sua família, se preocupava comigo, eu não tinha ninguém para
relacionam à fragilidade do sentimento de contar, não tinha vizinho, nem irmão nem nada
seu pertencimento a esse núcleo familiar e, [...]eu não tinha onde morar, não arrumava um
principalmente a seu distanciamento emocional emprego nem nada” (Lúcia).
Muitas famílias que não dispõem de apoio A mãe de Diana não pôde contar com ninguém.
emocional, familiar e institucional delegam as Entretanto Diana, desde muito pequena, teve
instituições de acolhimento o cuidado aos filhos o contato com diferentes instituições, que não
“eu não tive apoio de ninguém pra cuidar das conseguiram desenvolver um fortalecimento
crianças. “Eu não tinha condição de tirar eles dos laços familiares e uma reintegração efetiva
aí eu deixei eles lá” Esse cuidado se prolonga a família. Observa-se no mapa de rede várias
por muito tempo, revelando a fragilização das redes sociais que parecem trabalhar de forma
redes primárias e secundárias dessas famílias. isolada.
Figura 1. Mapa de rede de Diana segundo o modelo proposto por Sanicola (2008).
Com relação à rede primária, mesmo uma da Vara da Infância e Juventude e outra
existindo várias pessoas da família (mãe, pai, da Unidade de Acolhimento [...] quando eu
dois irmãos e uma avó) as relações são descritas estava grávida fugi de casa e fui pra Vara, lá
como muito fragilizadas e com a presença tem gente que me ouve “[...] tem gente aqui
de conflitos, violência, abandono e laços (referindo-se à instituição de acolhimento) que
interrompidos, o que em muitos momentos vou lembrar pra toda vida, porque acredita em
foi motivo para o acolhimento e também pode mim”(Diana).No entanto, os vínculos com estas
ter dificultado as tentativas de reintegração profissionais não são suficientes para motivá-la
familiar. a realizar atividades que podem contribuir para
“Minha mãe me magoou muito, ela vai a sua autonomia: “[...] o povo daqui do abrigo
morrer sem meu perdão [...] meu pai até que tenta me encaminhar pra curso e escola
abandonou minha mãe e sumiu pra morar [...] eu vou pra escola, mas eu não consigo ficar
com outra mulher [...] eu não gostava de quieta” (Diana).
ficar perto dos meus irmãos no abrigo, Lúcia não contou com uma rede social de
eles me batiam muito” (Diana). apoio. Diana, no entanto contou a presença
Verifica-se a presença de duas profissionais de muitas instituições ao longo da sua
que integram a rede primária de Diana, sendo vida. Quanto à estrutura da rede secundária
identifica-se presença das entidades de serviço Essa articulação, quando ocorre, está associada
social: Unidades Acolhedoras, do Conselho a um projeto comum entre família e instituições
Tutelar, do Cras e Creas, instituições de em que os sujeitos podem estabelecer uma rede
saúde: Adolescentro e o Centro de Orientação como também ser o principal instrumento para
Médica Psicopedagógica (Compp), instituições mobilizar outras redes por ele estabelecidas
judiciárias: Ministério Público da Infância e (Sanicola, 2008).
Juventude do Distrito Federal (MPDFT), Vara No caso estudado a adolescente apareceu
da Infância e Juventude do Distrito Federal como única interligação entre estas redes.
(VIJ) e Delegacia de Proteção da Criança e Mesmo tendo tido contato com muitas
do Adolescente (DPCA) e uma instituição de instituições, Diana, não conseguiu suporte
educação. A rede secundária do Terceiro Setor é suficiente para mudar sua condição de vida.
representada apenas pela presença de uma clínica Antes de completar dezoito anos, já tem dois
escola de psicologia. Todavia, os relatos sobre filhos, está envolvida com drogas, não consegue
as relações com as instituições demonstram se manter na escola. Prestes a sair da instituição
encaminhamentos padrões e desarticulados que de acolhimento em razão da idade ainda não
surtem efeitos momentâneos, sem a adesão da tem uma profissão e nem para onde ir, seguindo
adolescente. Um exemplo é o encaminhamento o mesmo percurso de sua mãe.
para tratamento pelo uso de drogas: “Quando
eu comecei a usar droga, a cuidadora queria Conclusão
me levar pro adolescentro, mas eu não fui,
nem pra lá nem pra clínica nenhuma, eu acho Este artigo identificou aspectos das relações
isso uma bobagem, se eu quiser parar eu paro familiares e do processo de transmissão
sozinha” (Diana). geracional no que diz respeito ao abandono e as
As instituições têm pouca interligação e dificuldades com o cuidado e a articulação da
também vínculos frágeis com a adolescente, rede social primária e secundária no processo
especialmente, as instituições de acolhimento de reintegração familiar de uma adolescente
e educação. Tal situação não favorece com múltiplos acolhimentos institucionais.
o desenvolvimento da adolescente e o As análises aqui realizadas não desqualificam
fortalecimento da sua autonomia. Pesquisas os avanços na Política de Proteção à Criança e ao
desenvolvidas por outros autores (Bastos & Adolescente, mas apontam para incongruência
Mendes, 2010, Siqueira et al., 2010), enfatizam entre as propostas políticas e a realidade em que
que a exposição à situação de risco dessas se encontram parte da infância e adolescência
famílias, são consequência da fragilidade das brasileira. O estudo da história familiar e da
Políticas Públicas. Os autores apontam que rede primária e secundária da adolescente
mesmo que essas famílias tenham acesso a aponta que a fragilidade das relações familiares
alguns programas sociais de transferência de está relacionada aos seus aspectos sociais, as
renda mínima, muitos problemas familiares questões familiares trangeracionais e baixa
continuarão a existir devido à falta de articulação articulação de sua rede de serviço.
dos serviços básicos de saúde, educação e A efetividade de qualquer Política Social
assistência social. está amparada no desenvolvimento conjunto
Quando comparadas as redes primária de serviços, programas, projetos e benefícios
e secundária, esta última apresentou maior que visem à promoção do indivíduo (Campos
amplitude e densidade, isto é, observou-se um & Mioto, 2003). Todavia, no Brasil, a
quantitativo maior de instituições e relações implementação das diferentes políticas sempre
entre elas, do que entre a família. No entanto, esteve vinculada a transferência de renda e ações
isso não foi suficiente para diminuir o tempo descontínuas, focalizadas, residuais e seletivas,
de acolhimento e a reintegração definitiva da associada ao empobrecimento acelerado da
adolescente à sua família. Além disso, observa- população brasileira, nas décadas pós- ajuste
se ausência de ligação ou vinculação entre os estrutural, em razão de diversos fatores, como
membros da rede primária e da rede secundária. reforma do Estado; compressões políticas,
Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv 14 (2): 1523-1535, 2016
http://revistalatinoamericanaumanizales.cinde.org.co
1531
DOI:10.11600/1692715x.14243180815
Maria Aparecida Penso - Patrícia Jakeliny Ferreira de Souza Moraes
econômicas globais; novas demandas de uma auto gerenciar, dificultando assim as chances de
sociedade complexa; déficits públicos crônicos; uma reinserção bem-sucedida, podendo levar à
revolução informacional; transformações ruptura dos vínculos familiares e a dificuldade
produtivas; desemprego; precarização nas na construção de novas relações afetivas (Costa
relações de trabalho; desregulamentação & Rossetti-Ferreira, 2009, Silva, 2004).
dos direitos sociais; expansão da pobreza e Esses aspectos, se vivenciados por longos
aumento das desigualdades sociais (Boschetti, períodos, representam violação dos direitos
2007, Pereira-Pereira, 2009). e deixam marcas irreversíveis na vida dessas
Apesar do caso aqui apresentado apontar crianças e adolescentes, que não adquirem
para tentativas frustradas de reintegração sentimento de pertencimento e enfrentam
familiar, é importante pontuar que mesmo dificuldades de adaptação e de convívio em
com a vulnerabilização social, muitas família e na comunidade (Siqueira et al., 2011).
famílias conseguem encontrar estratégias que Alguns autores (Barros & Fiamenghi,
possibilitam sua sobrevivência e garantem 2007) em seus estudos discutem a influência
a continuidade das principais trocas afetivas da qualidade da instituição de acolhimento no
e de aprendizagem entre seus membros. desenvolvimento da criança ou adolescente.
Essas famílias não se deixam vencer. Elas Para os autores, a vinculação afetiva é a
aprendem respostas adaptativas que são o responsável pelo estabelecimento, na criança,
reflexo de grande criatividade. Lutam todo da confiança e da segurança para explorar e
o tempo, tentando manter alguma forma de apreender o mundo. Isto significa que o cuidador
pertencimento e continuidade, procurando é o mediador de muitos comportamentos que a
sobreviver emocionalmente e construir algum criança desenvolverá, regulando sua atenção,
sentido de família, a despeito da situação de cognição, linguagem e emoções, dentre
desamparo social em que vivem (Penso & outros. No entanto a presença de múltiplos
Sudbrack, 2009). cuidadores (como acontece na maior parte
Dessa forma, este artigo instiga pensar das instituições) potencializam os efeitos do
práticas de reintegração familiar não só na abandono e da rejeição, na medida em que os
análise das condições econômicas dessas laços afetivos tornam-se quase inexistentes
famílias, mas também no estudo dos aspectos (Assis & Constantino, 2001, Constantino, Assis
relacionados aos vínculos afetivos familiares, & Mesquita, 2013).
no conhecimento das vivências de abandono Tudo isso se não observado tende a
dessas famílias, suas relações transgeracionais intensificar ainda mais a permanência dessas
e na valorização das expectativas das crianças e crianças e adolescentes nos serviços de
adolescentes que são acolhidos nesses serviços acolhimento institucional. Este estudo de
institucionais. caso instiga pensar a reintegração a partir do
Pois os laços afetivos que unem os membros fortalecimento das redes de apoio das famílias
da família são considerados importantes, mas durante todo o processo. Incita-nos a pensar
precisam se manter próximos durante todo em um trabalho mais pontual das políticas
o processo de institucionalização. Estudos sociais e serviços que resgatem condições não
sobre esta situação (Azôr & Vectore, 2008), só de sobrevivências dessas famílias, mas de
realizados em instituições, têm revelado vários resgate de seus direitos a partir de programas
prejuízos para essas crianças e adolescentes, específicos e profissionais que capacitem e
tais como: carência afetiva, dificuldade para viabilizem o retorno de seus filhos.
estabelecimento de vínculos, baixa autoestima,
atrasos no desenvolvimento psicomotor e pouca Referências
familiaridade com rotinas familiares
Outros prejuízos somam ao empobrecimento Andolfi, M., Angelo, C. M. I. P. & Corigliano,
da subjetividade, pela falta de um relacionamento A. M. N. (1984). Por trás da máscara
afetuoso e individualizado; a incapacidade de se familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.
1532 Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv 14 (2): 1523-1535, 2016
http://revistalatinoamericanaumanizales.cinde.org.co
DOI:10.11600/1692715x.14243180815
Reintegração familiar e múltiplos acolhimentos institucionais