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LACRI − LABORATÓRIO DE ESTUDOS DA CRIANÇA

INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP


FACULDADES RENASCENÇA

GUIA DE DEBATES
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
LACRI − LABORATÓRIO DE ESTUDOS DA CRIANÇA

TEMPORADA DE CAÇA:
A TRAGÉDIA DE UMA VIDA

Drª Viviane Nogueira de Azevedo Guerra*

São Paulo / Outubro, 2000

*
Mestre e Doutora em Serviço Social. Pesquisadora do Laboratório de Estudos da Criança −
IPUSP.
SUMÁRIO

Página

I. INTRODUÇÃO .................................................................................. 04

II. O ENREDO DO FILME ......................................................................... 05

III. COMENTÁRIOS SOBRE O FILME ........................................................... 07

IV. POSFÁCIO ...................................................................................... 19

V. BIBLIOGRAFIA ................................................................................. 20

VII. PARA SABER MAIS ........................................................................... 21


I. INTRODUÇÃO
O filme Temporada de Caça (no original inglês intitulado
Affliction) baseou-se no livro do mesmo nome escrito por Russell
Banks1. Este escritor de 56 anos, é um dos mais laureados autores
americanos, tendo recebido por seus 13 livros2 o O. Henry e o Best
American Short Story Awards, o Literature Award da Academia
Americana de Artes e Letras. Atualmente é professor de Literatura
na Universidade de Princeton. Entretanto, o que importa saber
deste autor é que ele era filho de um encanador alcoólatra de New
England e esta experiência ecoa em sua obra. O próprio Banks foi
também um encanador com um grave problema de alcoolismo,
sendo que se não houvesse se convertido em escritor, poderia ter
sido morto através de apunhalamento em briga de bares, conforme
ele mesmo informa3.
O livro é dedicado a Earl Banks (1916-1979) e se inicia com um
significativo pensamento: O grande enigma da vida humana não é o
sofrimento, mas a aflição, retirado do trabalho de Simone Weil − O
Amor de Deus e a Aflição4.

1 BANKS, R. (1989). Affliction. New York: Harper & Row. BANKS, R. (1998). Temporada de Caça. Rio
de Janeiro: Record.
2 Dentre as obras deste autor, podemos citar Success Stories; Continental Drift; The relation of my
imprisonment; Trailerpark; The Book of Jamaica; The New World; Hamilton Stark; Family Life;
Searching for Survivors; Cloudsplitter; Rule of the Bone. Há uma obra intitulada The Sweet
Hereafter que em português foi traduzida como O doce amanhã e é um filme disponível em vídeo.
3 Esta informação consta de revisão sobre o livro Affliction exarada pela Amazon.com na Internet.
4 A palavra Affliction em inglês quer dizer aflição, angústia, ansiedade, desgosto, atribulação, dor e
o verbo to afflict significa afligir, atormentar. Affliction: a condition of pain, suffering, distress.
Simone Weil, filósofa (1909-1943), filha de uma família judia, estudou na Sorbonne, lutou com os
anarquistas na Guerra Civil Espanhola e morreu na Inglaterra aos 34 anos. Costumava dar aulas a
trabalhadores em minas, nos campos, nas fábricas e destinava boa parte de seu salário para
ajudá-los em seus movimentos grevistas. Seus pensamentos: As sombras de nós mesmos são os
estados passivos que conhecemos como introspecção (In: Lectures of Philosophy, London,
Cambridge University Press, 1978); After a year in the factory before going back to teaching I had
been taken by my parents to Portugal and while there I left them to go alone to a little village. I was,
as it were, in pieces, soul and body. That contact with affliction had killed my youth. Until then I had
not had any experience of affliction unless we count my own, which as it was my own, seemed to
me, to have little importance and which moreover was only a partial affliction being biological and
not social. I knew quite well that there was a great deal of affliction in the world... the affliction of
others entered into my flesh and my soul. Nothing separated me from it, for I had really forgotten
my past and I looky forward to no future, finding it difficult to imagine the possibility of surviving all
the fatigue… (In: Waiting for God, Harper & Row, NY, 1951). Maiores informações sobre a vida
desta filósofa se encontram em McClellan, D. Utopian Pessimist - The life and thought of Simone
Weil, Poseidon Press, NY, (1990).
4
II. O ENREDO DO FILME
O filme Temporada de Caça conta a história de Wade
Whitehouse, 41 anos, um policial, um perfurador de poços e
limpador de ruas nos tempos de fortes nevascas, na pequena cidade
de Lawford, New Hampshire, Estados Unidos. Wade pertence a
uma família composta por seu pai Glen Whitehouse, sua mãe Sally,
sua irmã Lena, seu irmão Rolfe e outros dois irmãos, Elbourne e
Charlie, falecidos quando jovens, vítimas de um morteiro, perto de
Hue, durante a Guerra do Vietnã. Seu pai, constantemente alcoolizado,
espancava a mulher e alguns filhos de forma brutal, dirigindo mais
freqüentemente a sua cólera a Wade, inclusive quando este já
atingira a adolescência e mesmo a idade adulta. Wade, ao mesmo
tempo em que seus irmãos mais velhos estavam no Vietnã, havia
sido destacado para a Coréia a contragosto seu, uma vez que
alimentava o sonho de ir combater os vietcongs sendo que, em vez
disso, atuava como um policial militar que apartava brigas de
bêbados em bares coreanos. Wade, ao terminar o colegial, casa-se
com uma colega de escola, Lillian. Divorcia-se dela antes de ir à
Coréia e no regresso deste país, casa-se novamente com Lillian. Tem
uma filha, Jill, mas acaba se divorciando novamente. Durante o
último processo de divórcio perde a custódia da filha, é obrigado a
pagar uma pensão elevada para sua ex-esposa, bem como só pode
visitar Jill uma vez ao mês em função da sua violência conjugal.
Lillian se muda da cidade, volta a se casar e mantém também um
relacionamento extraconjugal com seu advogado (que aliás atuara
no seu processo de divórcio com sucesso). Wade era um homem
temido em sua comunidade, conhecido por surrar outros homens
em bares, dedicado à bebida.
Em termos de sua família biológica, a irmã Lena casa-se com
um motorista de caminhão, dedica-se ao cristianismo carismático,
tem 5 filhos e se muda da cidade. O irmão menor, Rolfe, embora
durante os anos de sua juventude, tenha se dedicado a condutas
violentas na cidade de Lawford, acaba por abandonar a casa
paterna, vai para a Universidade de Boston, convertendo-se em um
Professor de História do 2º grau. Rolfe é solteiro, sem filhos.
Portanto, dos 5 filhos de Glen e Sally, apenas Wade permanece na
cidade. Os pais vão envelhecendo, Glen bebendo cada vez mais. Um
5
certo dia, ao visitar os pais, Wade percebe que a mãe morreu de frio
à noite. Convoca os irmãos para o enterro e, no momento do velório,
o pai agride os filhos verbalmente, dizendo-lhes que não valem um
fio de cabelo da mãe. Depois disso, enfrenta-se com Wade, acabam
confrontando-se fisicamente, o pai querendo agredi-lo novamente e
Wade se defendendo e imobilizando o pai, lançando-o ao chão. O
motivo da briga foi porque a namorada de Wade, Margie,
interpusera-se entre ambos e Glen a golpeara na mão, detonando a
explosão agressiva de Wade, que inclusive disse a seu pai que caso
tocasse em Margie novamente, ele o mataria.
Com o falecimento da mãe, Wade e sua namorada Margie
passam a residir com o pai dele.
Como pano de fundo desta saga familiar há a abertura da
temporada de caça ao veado na região. Um amigo de Wade, Jack
Hewitt, 22 anos, seu companheiro de trabalho e um bom caçador, é
convidado a acompanhar um dirigente sindical Ewan Twombley
para uma caçada. Este senhor acaba por morrer durante a caçada
devido a um disparo acidental de sua arma. Entretanto, Wade
começa a desconfiar de que houve um complô do crime organizado
para matar este homem porque ele descobrira o desvio de fundos
do sindicato perpetrado por seu próprio genro. Wade pensa que Jack
Hewitt fora contratado para executar Twombley e começa uma
investigação a respeito.
A história vai chegando ao fim quando Wade discute com seu
patrão, perde o emprego. Comparece ao seu advogado, uma vez que
estava tentando reaver a custódia da filha, mas este o convence de
que será um processo inútil e que é melhor aceitar uma nova
negociação, em termos de aumentar o número de visitas de sua filha
a ele. A partir daí, ele vai buscar a filha, percebe que ela não fica
satisfeita em sua companhia, mas mesmo assim insiste. Ao regressar
à casa de seu pai, observa que sua namorada vai abandoná-lo também.
Ao se dirigir a ela, ouve que Margie lhe pede para deixá-la em paz.
Jill se assusta, começa a bater nas costas do pai, pedindo a ele que
deixe Margie em paz, ele revida, golpeando-a e a atingindo no nariz
e na boca. Margie e Jill fogem da casa. Há um confronto final entre
Glen e Wade, sendo que este último acaba por matar o pai, desferindo-
lhe duro golpe na cabeça e queimando o seu corpo ao por fogo no
celeiro da casa. Depois se dirige à floresta, encontra Jack Hewitt e o
6
mata com um tiro de rifle. Desaparece para sempre não dando mais
notícias. Fica estabelecido, posteriormente, que só na imaginação de
Wade, Jack Hewitt seria culpado pela morte de Twombley.

III. COMENTÁRIOS SOBRE O FILME5


Mas os fatos não fazem a história; os fatos sequer fazem os
acontecimentos. Sem significado e sem compreensão das
causas e conexões, um fato é uma partícula isolada de
experiência, é luz refletida sem uma fonte, planeta sem sol,
estrela sem constelação, constelação fora de galáxia, galáxia
fora do universo − o fato não é nada.
Ao dizer estas palavras que revelam a necessidade de
recuperação de toda a história de Wade, seu irmão Rolfe passa a
narrá-la e para isso utiliza-se de depoimentos gravados de todos
aqueles que conviveram com Wade e de suas próprias recordações.
Ressalte-se que com Rolfe, Wade mantinha um relacionamento mais
amplo, telefonando-lhe com freqüência e o visitando, embora de forma
mais esporádica. Segundo ainda Rolfe, ele se propõe a contar a história
de Wade porque: resolvi abrir a boca e falar, deixar os segredos emergirem,
independente do custo para mim e para qualquer outra pessoa. Segundo
Rolfe, ainda, ele não saberia dizer porque reconstruíra a história de
Wade. Ele havia percebido que Wade começara a se deteriorar... como
se eu mesmo pudesse me deteriorar, se não tivesse saído de casa
quando o fiz e da maneira como o fiz, repentinamente e em definitivo,
levantando poeira com a força da minha partida, sem despedidas e
nunca mais retornando. Além disso, a história de Wade era para Rolfe
a história de sua outra vida que ele desejava exorcizar.
Durante a narrativa, Rolfe nos informa que se candidatou à
Universidade de Boston, quando ninguém mais de sua turma de
formandos o fizera, abandonando a casa de seus pais de uma forma
diferente da qual seus outros irmãos (dois falecidos na Guerra e
uma por casamento). Ao chegar à universidade, ele enfrentou
dificuldades de adaptação (por conta de sua origem humilde),
venceu-as, convertendo-se em um professor, com uma vida cuja
rotina era meticulosa, sendo bem aceito em sua comunidade.
Durante o transcurso da obra, Rolfe se interroga porque o destino

5 Os comentários sobre o filme apóiam-se também no livro do mesmo nome.


7
dele fora diferente do de Wade e no que residira esta diferença.
Houve um dia em que os dois irmãos estavam conversando e Wade
disse: Não se pode fugir de determinadas coisas na vida, ao que Rolfe
retrucou: Sim Wade, você pode fugir de certas coisas terríveis na vida.
Olhe para mim. Eu fiz isso. As respostas ao questionamento de Rolfe
podem ter sido as mais variadas possíveis.
Em primeiro lugar, é importante perceber que dentre todos os
irmãos, Lena foi a única a sofrer apenas violência verbal, não física.
Rolfe, por sua vez, se coloca como tendo sido uma criança cautelosa,
um adolescente cauteloso e agora um adulto cauteloso, o que ele
considera um preço que pagou, por nunca ter sido alegre e
despreocupado, mas ao menos conseguira evitar ter sido afligido pela
violência paterna. Até os 7 anos de idade, o pai dava palmadas no
bumbum dos filhos e as surras mais violentas se estabeleciam acima
desta idade. Rolfe, por seu lado, parecia estar sempre em posição de
alerta, evitando confrontos com seu pai que pudessem resultar em
violência física. Inclusive ouvia com atenção as histórias dos dois
irmãos mais velhos sobre os seus respectivos espancamentos,
procurando se prevenir para que o mesmo não ocorresse com ele. Já
com Wade a situação era diversa. Lendo um trecho do livro,
percebemos que Wade era um garoto do interior e o terceiro filho de
uma família taciturna − que costumava deixar as crianças desde cedo
entregues a seus próprios meios, como se nada fosse acontecer em suas
vidas adultas para o qual valesse a pena prepará-los − Wade desde a
infância se vira, freqüentemente e por longos períodos de tempo,
essencialmente sozinho… era ignorado, tratado como uma peça de
mobília herdada… Sally, a mãe, considerava-o seu filho favorito.
Acreditava que ele era diferente do seu pai, um sonhador… Há também
um episódio, no qual Wade, aos 11 anos, é espancado pelo pai numa
nítida situação de confronto entre pai e mãe na qual ele leva a pior.
A família estava assistindo televisão até tarde da noite (mãe, Wade e
filhos mais velhos). O pai embriagado manda desligar a televisão.
Os filhos mais velhos retiram-se para seu quarto de dormir porque
percebem o risco que estavam correndo. Wade, entretanto,
permanece em companhia da mãe e ela diz a ele para apenas baixar
o som da televisão, mas não desligá-la. O pai o ameaça e como ele se
sente dividido entre as ordens de ambos, acaba sendo barbaramente
espancado e nesse momento sua mãe é incapaz de protegê-lo. Ela
mobiliza a agressão contra ele e no momento em que a mesma é
detonada, Wade não encontra proteção. Houve um outro episódio
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de espancamento de Wade no qual ele teve as costelas quebradas, foi
encaminhado ao hospital a posteriori com a desculpa de ter sofrido
um acidente. O próprio Wade não se recordava deste fato, alegando
que o mesmo ocorrera com Rolfe, o que não era verdade.
Uma das diferenças entre o comportamento de Rolfe e o de
Wade era que o próprio Rolfe evitava situações de conflito com seu
pai enquanto Wade não. Inclusive na idade adulta, Wade sempre
tinha a tendência a se envolver em confusões por criticar
excessivamente o comportamento alheio, por atitudes imprudentes
que lhe carrearam perda de emprego etc., ou seja, situações
constrangedoras, inclusive, em relação a seu próprio pai que o
levaram a sérios enfrentamentos com ele.
Um segundo aspecto é o da cidade de Lawford na qual vivia
Wade. Cidade conservadora, cidade caminho para outras, uma
cidade da qual as pessoas, às vezes, admitem que vieram, mas para
onde quase ninguém vai . Inclusive os filhos adultos que saíram de lá
e voltaram para viver em suas antigas casas com seus pais, são
considerados perdedores e se comportam como tal. Uma vez ao ano, a
cidade recebe visitantes que comparecem para a Temporada de
Caça e como o diz Rolfe para cumprirem um antigo ritual masculino de
demonstração de força e poder. Situando-se Wade neste contexto
pode-se ver que os membros da cidade também o consideravam um
perdedor, um fracassado: não havia conseguido um emprego
melhor, sua esposa se fora, não mantivera a custódia da filha, só se
envolvia em confusões, não era benquisto na comunidade. Rolfe,
por outro lado, era um professor respeitado, tinha uma carreira, era
convidado para diversos eventos em sua comunidade, era
prestigiado. Rolfe, inclusive, exerce uma crítica sobre a sociedade
americana na medida em que coloca que esta mesma sociedade tem
um lema: faça-se por si próprio... suba na escala social... erga-se para a
nata da sociedade... Ele continua dizendo que todo ano milhares,
talvez milhões de bons cidadãos realmente mudam suas vidas para
melhor, em termos de classe, exatamente... como ele, Rolfe, o fez e
como seu irmão Wade não o fez. Portanto, aos olhos de uma
sociedade que valoriza o sucesso financeiro, Rolfe poderia ser visto
como um vencedor e Wade como um perdedor.
Um terceiro aspecto a se considerar era que Rolfe permaneceu
solteiro, sem filhos. Wade se casou duas vezes com a mesma pessoa.
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Entretanto, no transcurso deste matrimônio enfrentou sérios
problemas de violência conjugal.

O primeiro estudo americano sobre este tipo de problema foi


realizado pelo Prof. Richard Gelles, em 1974, intitulado The Violent
Home (in Greven, 1990), hoje reconhecido como uma análise pioneira
e clássica em termos de violência conjugal. É interessante observar
que o Prof. Gelles fez seu estudo exatamente numa comunidade em
New Hampshire (região onde acontece o filme) e descobriu a
gravidade da situação da violência conjugal em muitos lares
pesquisados. Mais impactante ainda foi que ele constatou que
muitos entrevistados que haviam agredido suas esposas haviam sido
expostos à violência conjugal entre seus pais na sua infância, bem como
haviam sido vítimas de violência física doméstica. Gelles convenceu-se,
então, de que a família serve como base para um treinamento na área da
violência ao expor suas crianças a ela, tornando-as vítimas de violência ou
fazendo-as vivenciar contextos nos quais aprendem atos violentos, ou seja,
a família inculca nas crianças valores e normas que aprovam o uso da
violência em termos de seus membros e sob as mais variadas
circunstâncias. Gelles afirma, neste trabalho inclusive, que a questão
da violência conjugal é extremamente grave na medida em que ao
fazer novos estudos alguns anos depois, ele constatou que este é um
fato que pode se repetir na vida de uma criança, quando atingir a
idade adulta, ou seja, ele observou que crianças do sexo masculino,
ao assistirem cenas de violência conjugal em suas casas, acabaram
por impô-la novamente a suas parceiras, quando se casaram. Este é
o caso de Wade: assistia violência conjugal de seu pai, saía em defesa
da mãe algumas vezes, acabando por ser agredido também e na
idade adulta passa a agredir Lillian, sua esposa, embora só batesse
em sua filha Jill no final do filme, em uma situação extremamente
tensa.
Um outro aspecto, que Pizzey e Shapiro (in Greven, 1990),
discutem é o fato de que as crianças criadas em lares violentos
convivem permanentemente com a morte, enquanto uma
companheira constante, principalmente através do discurso do
agressor: Um dia eu vou te matar. Portanto, com toda a violência
existente ao redor, a morte é uma possibilidade real e sempre
presente. Na verdade, a violência doméstica pode conduzir à morte
da alma e do corpo daqueles que nela se envolvem.
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Uma outra questão a se considerar é a da depressão.
No íntimo, Wade acreditava que permaneceria em
Lawford ano após ano, mourejando através dos longos
invernos, agora na casa dos quarenta anos e se sentindo
cada vez mais deprimido − não chamava isso de depressão,
mas lembrava-se de quando se sentia de outro modo, não
feliz exatamente, mas melhor − bebendo demais e com uma
freqüência crescente tendo ataques de violência gratuita
porque no íntimo era realista e honesto o suficiente para saber
que teria quarenta e poucos anos e seria solitário, pobre,
deprimido, alcoólatra e violento...
Straus (1994), em sua obra, coloca que um dos possíveis efeitos
colaterais da punição corporal doméstica seria a chance de a vítima
desenvolver posteriormente em sua vida um quadro depressivo.
Embora a depressão seja um problema antigo da humanidade e
existam inúmeras pesquisas sobre ela, a sua conexão com a punição
corporal doméstica tem sido praticamente ignorada por psicólogos,
psiquiatras e sociólogos. Isto evidentemente não é acidental
considerando-se o fato de que existe um número significativo de
pessoas, em diferentes sociedades, submetidas à prática da punição
corporal, entre elas os próprios pesquisadores que evidentemente
não desejam aprofundar os estudos desta questão. Straus (1994) nos
mostra que outra teoria sobre os processos que ligam a punição
corporal e a depressão é sugerida pela pesquisa na área da
neurobiologia da depressão.
Em 1991, numa reunião científica freqüentada por
especialistas em depressão, chegou-se à conclusão de que este é
um problema de saúde importante, com muitas causas, mas que
também provavelmente envolve um processo biológico no qual
há mudanças na estrutura e na química do cérebro. Um
conferencista informou que um fato que pode desempenhar um
papel nas mudanças, a longo prazo, seria o stress. Tanto animais
quanto pessoas que experimentam situações de stress crônico
respondem secretando “hormônios de stress” que são os mais
significativos concomitantes biológicos da depressão... Inúmeras
outras mudanças na função cerebral foram relatadas tanto em
animais quanto em seres humanos submetidos a um stress
permanente. Para as crianças, uma fonte contínua de stress
seria a punição corporal por seus pais. Esta punição geralmente
se inicia na tenra infância e se estende pela adolescência. Há uma
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necessidade urgente de se fazer mais estudos sobre a punição
corporal e a depressão. Se mais estudos demonstram que ser
espancado pelos pais causa depressão e suicídio, ou se estudos
neurobiológicos descobrem que quanto mais uma criança foi
espancada pelos pais, maior o seu nível de depressão, isto teria
implicações na prevenção da depressão e do suicídio.
É importante salientar que dentre os sintomas da depressão, o
paciente pode demonstrar estados emocionais alterados como
irritabilidade ou hostilidade ou se mostrar inibido, quase paralisado.
No caso de Wade, o quadro era de irritabilidade e de hostilidade em
termos dos demais, comprovado por sua dificuldade de lidar com
os outros, estando sempre na defensiva ou com condutas
agressivas. Dentro ainda do quadro de depressão, a angústia é uma
companheira habitual, sendo que o deprimido tem uma marcada
intranqüilidade interior, um temor do futuro e uma significativa
sensação de que algo catastrófico ocorrerá de forma iminente.
Uma outra questão a ser abordada é a do alcoolismo de Wade e
de seu pai Glen. Ambos eram portadores da Síndrome de Dependência
do Álcool porque apresentavam alguns sintomas evidentes da
mesma:
1. Estreitamento do repertório de beber: ingerem bebidas
alcoólicas durante o transcurso de todo um dia;
2. Priorização do comportamento de busca do álcool: dão
prioridade ao ato de beber ao longo do dia, mesmo nas
situações socialmente inaceitáveis (direção de veículos
etc). O filme mostra Wade bebendo nessas condições e
acompanhado de sua filha;
3. Aumento da tolerância ao álcool: aumento de doses para
obtenção do mesmo efeito;
4. Sintomas repetidos de abstinência: tremores, alucinações
(surgem nas fases mais severas). Há relatos de que o pai
de Wade, Glen estivesse nesta situação. Outros sintomas
podem surgir: físicos (tremores, náuseas, vômitos,
sudorese, cefaléia, câimbra, tontura); afetivos
(irritabilidade, ansiedade, fraqueza, inquietação,
depressão); sensoperceptivos (pesadelos, ilusões,
alucinações visuais, auditivas, táteis). Inclusive há
12
momentos em que Wade parece ter alucinações,
especialmente no tocante ao assassinato de Twombley;
5. Alívio ou evitação dos sintomas de abstinência pelo
consumo de álcool.
Segundo Laranjeira e Pinsky (1997), é possível se identificar as
pessoas que apresentam problemas comumente associados ao consumo
abusivo de álcool por demonstrarem problemas físicos; psicológicos
(nervosismo, irritabilidade, insônia, falta de concentração, problemas
com a memória, mentiras freqüentes); problemas sociais (perda de
produtividade, faltas no trabalho, brigas freqüentes com familiares
e amigos, gastos excessivos, perda da responsabilidade em relação à
família, etc). Wade especialmente apresentava problemas de brigas
freqüentes, dificuldades no trabalho e no relacionamento com amigos.
Seu pai, Glen, era normalmente um tipo silencioso, taciturno, um operário
que detestava seu trabalho e cuja família aborrecida e empobrecida,
servia apenas para relembrá-lo de seus fracassos, um homem que tinha
dificuldade em fazer amigos e que nunca os conservava.

Por outro lado, estes autores colocam que pessoas portadoras


de depressão bebem muito. Embora esta seja uma doença
psiquiátrica relativamente fácil de tratar atualmente, quando se
relaciona ao consumo excessivo de álcool, seu tratamento se torna
mais complicado, pois o próprio uso do álcool pode levar à
depressão. Muitas vezes não se sabe o que veio primeiro: se a
depressão ou o alcoolismo.
É importante nos lembrarmos com Laranjeira e Pinsky (1997)
que a ocorrência de álcool entre jovens e adolescentes de uma determinada
família pode ser influenciada principalmente por três fatores familiares: o
consumo inadequado de álcool pelos próprios pais, a qualidade da relação
pais-filhos e comportamentos dos pais em relação a bebidas alcoólicas. O
que estes autores querem dizer é que o comportamento do adulto
influencia o jovem: como por exemplo, pais que nutrem
desinteresse pelos filhos, não os protegem ou ainda as situações de
conflito no lar (inclusive há pesquisadores que apontam uma
associação entre a ocorrência de um maior número de brigas
familiares à maior possibilidade de desenvolvimento de abuso do
álcool por jovens). Além disso, há famílias que são altamente
permissivas e não se preocupam com o destino de seus filhos, tais
quais a de Wade.
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A respeito desta questão do alcoolismo é importante nos
lembrarmos do trabalho de Gelles (1996) onde ele nos diz:
Há pouca evidência científica no sentido de apoiar a
afirmação de que álcool e drogas (exceto anfetaminas e
esteróides) tenham propriedades químicas e farmacológicas que
produzam diretamente um comportamento violento. Evidências
oriundas de pesquisas feitas em diferentes culturas, estudos
laboratoriais, testes sangüíneos realizados em agressores de
esposas e surveys indicaram todos que embora o álcool possa ser
associado à violência familiar, não é o seu responsável básico.
Entretanto, o álcool e as drogas podem ser considerados fatores
de risco sob determinadas condições... embora as drogas não
sejam responsáveis por um comportamento violento, o uso de
substancias controladas é relacionado à propensão em termos de
imposição de violência severa à criança.
Finalmente um dos aspectos mais complexos de Temporada de
Caça é o do parricídio. Lembremo-nos de um trecho do livro Os
irmãos Karamazov − Fedor Dostoievski − durante o julgamento de
Dimitri, em termos das palavras de seu advogado de defesa:
Pai, dize-me por que devo amar-te; prova-me que é um dever
e se esse pai for capaz de lhe responder e de lhe provar, eis uma
verdadeira família normal, que não repousa unicamente sobre
um preconceito místico, mas sobre bases racionais,
rigorosamente humanas. Pelo contrário, se o pai não apresenta
nenhuma prova, está liquidada essa família, o pai não é mais
um pai para seu filho, este recebe a liberdade e o direito de
considerá-lo como um estranho e até mesmo um inimigo...
Nesta obra, escrita no século XIX, durante o julgamento de um
parricida no Tribunal do Júri russo, o advogado de defesa se
recorda do passado relacionamento entre pai e filho, no qual a
violência doméstica é uma tônica evidente e na qual ele se baseia na
tentativa de conseguir a absolvição de Dimitri também. Através de
suas palavras fecundas, ele já apontava em um romance o que hoje
se constata em pesquisas científicas: o fato de que o parricídio pode
ser uma das conseqüências mais severas da violência física
doméstica, quando a vítima acaba por eliminar o seu algoz,
enquanto uma forma de por fim a seu sofrimento. No livro
Temporada de Caça fica claro o momento em que Wade decide
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matar seu pai, cumprindo outras ameaças anteriormente feitas: ao
final, quando o pai ri dele, parado na varanda, depois de assistir a
cena em que Wade agride a filha Jill. Neste momento, o filho se
tornara um homem exatamente como o pai. Ah, que momento delicioso
para o pai...! Ao não poder suportar isso, por ter lutado o tempo
todo para ser um bom pai para Jill, e ao não ter conseguido, decide
por fim a vida de Glen como uma forma de exorcizar todo o seu
passado e poder finalmente partir com rumo ignorado.
Em termos de uma conexão entre violência doméstica contra
crianças e adolescentes e o crime perpetrado por vítimas da mesma
é importante se perceber a necessidade de um estudo a longo prazo
de crianças e adolescentes submetidos a esta prática para se inferir
tal conclusão. Não há muitos estudos nesta área. Entretanto, o
pouco que foi feito aponta nesta direção. Nagaraja (1984), Patterson
(1982), Patterson et al (1987) estudaram crianças com distúrbios
severos de comportamento. Descobriram que os pais destas crianças
usavam punição corporal ou agressão verbal para controlar seu
comportamento e ao fazerem isto, tais crianças tentavam usar uma
tática similar com seus pais. Os pais imediatamente encaravam isto
como mau comportamento e puniam ainda mais severamente,
sendo que as crianças, por seu turno, se tornavam mais hostis.
Embora o estudo de Patterson seja muito valorizado pelos
psicólogos, ele padece de uma importante limitação porque se
aplica a crianças com comportamento altamente disruptivo ou
agressivo. Aqueles que são favoráveis à punição corporal de
crianças argumentam que muitas delas não dão respostas como as
acima mencionadas. Embora isso possa ser verdade, é importante
dizer que as crianças com comportamento altamente agressivo
reduzem este comportamento na medida em que seus pais são
conscientizados de que não devem submete-las à punição corporal.
É por isso que é necessário ainda a realização de estudos
consistentes que acompanhem a longo prazo as crianças que sofrem
punição corporal para se estabelecer com clareza os nexos entre ela
e a conduta criminal. Straus (1994), por exemplo, encaminha-se
neste novo século, para outras pesquisas no sentido de referendar o
seu ponto de vista de que − embora a punição corporal possa a
médio prazo produzir uma conduta conformista, ao longo do tempo
pode conduzir à violência e ao crime.

15
Linedecker (1993), ao trabalhar com casos de parricídios e
matricídios na sociedade americana, perpetrados por crianças e
jovens, especialmente em anos recentes, revela-nos que analisou 10
casos em sua obra e que pode enquadrar os assassinos em cinco
grandes categorias:
− aqueles que foram vítimas de violência física, sexual,
psicológica em seu lar e que aprenderam que o uso da
violência é a melhor forma de resolução de conflitos;
− aqueles que são pessoas frias, que não se preocupam com as
necessidades e os direitos de outrem, que não demonstram
nenhuma sensibilidade e nenhum tipo de remorso pelo que
fizeram;
− aqueles que se vincularam de forma perigosa com rituais
satânicos, cultos de sangue nos quais lhes são prometidos
fama, poder etc. desde que exista o sacrifício de vidas
humanas;
− aqueles que matam por algum tipo de gratificação, ou seja,
quando desejam herdar patrimônios vultosos de seus pais;
− os que são portadores de distúrbios psiquiátricos severos ou
aqueles dedicados ao uso de drogas pesadas e que matam
durante surtos de alucinação, de paranóia.
Este autor pondera que no século XIX este tipo de crime era
mais raro nos Estados Unidos e que no século XX aumentou de
forma mais significativa, especialmente ao final do mesmo. Os
parricidas (ou matricidas) segundo ele pertencem a todas as classes
sociais6.

6 Dentre os 10 casos relatados por ele, um é o do assassinato brutal da atriz de cinema Susan
Cabot por seu filho de 22 anos. Esta atriz, famosa nos anos 50, envolveu-se afetivamente com o
rei da Jordânia, Hussein, havendo rumores de que ambos teriam tido este filho. Não se casou com
o rei por ser judia. Seu filho nasceu prematuro, teve problemas sérios de crescimento, sendo
submetido por longos anos a uma terapia hormonal. Inclusive seu comportamento, por ocasião do
matricídio, era o de um adolescente de 14 anos. O relacionamento entre mãe e filho sempre foi
tempestuoso. O assassinato se deu ao final de uma forte briga entre ambos. Outro caso relatado
foi o de Richard John Jahnke que, após longos anos de espancamento brutal, de violência
psicológica, decide matar seu pai e agressor. Sua irmã Deborah também era vítima de violência
física e sexual por parte de seu pai. O assassinato foi planejado e correspondeu a uma execução
do agressor. Este caso foi extremamente comentado nos Estados Unidos, sendo que em 1985 foi
montado pela rede de televisão americana - ABC um documentário intitulado Right to Kill,
convertido posteriormente em vídeo e que chegou ao Brasil com o nome de Do que o ódio é capaz
[Direção: D. John Erman, 100 minutos, Home Video].
16
Inclusive ao se consultar o trabalho de Gitta Sereny (1998), no
qual ela descreve em profundidade a vida de Mary Bell, uma
menina de 11 anos, que em 1968 foi julgada e condenada pelo
assassinato de duas crianças, podemos observar nos capítulos finais
da obra, o quanto Mary Bell foi submetida a uma terrível violência
doméstica que envolvia a de natureza física e a sexual perpetrada
por amantes de sua mãe, com a conivência desta última. Sabe-se
ainda que sua mãe, ao se dedicar à prostituição, obrigava a filha a se
submeter a atos de sadismo perpetrados por seus clientes e
costumava espancá-la, tentando algumas vezes até estrangulá-la.
Mary Bell sofreu sérios acidentes em sua tenra infância, que na
verdade nada mais eram do que o reflexo de uma conduta
altamente negligente de sua mãe, ou seja, uma supervisão perigosa.
Tais eventos constituíram-se em ingestão de comprimidos ou
quedas de janelas. Havia um profundo processo de rejeição da mãe
quanto a ela. Portanto, uma das mensagens que Gitta Sereny nos
transmite é a de que nas histórias de crianças que perpetram crimes
é importante se recuperar a questão da violência doméstica contra
crianças e adolescentes que faz parte quase obrigatória destas
mesmas histórias.
Fica faltando se dizer que, se por um lado, Wade era uma
vítima de violência doméstica, extremamente comprometida com
tudo o que lhe ocorrera na infância, Rolfe poderia ser considerado
uma pessoa resiliente.
O impacto de eventos traumáticos também depende de certa
forma da capacidade de resiliência da vítima. Enquanto estudos
acerca dos veteranos da 2ª Guerra Mundial mostraram que
cada homem tem o seu ponto vulnerável, alguns o atingindo
mais rapidamente que outros, descobriu-se que uma pequena
minoria de pessoas absolutamente excepcionais parecia ser
relativamente invulnerável a situações extremas. Estudos sobre
diferentes grupos de pessoas chegaram a conclusões similares:
as pessoas mais resistentes a situações de stress pareciam ser
aquelas com maior grau de sociabilidade, que eram mais
ponderadas, com uma percepção aguda da sua habilidade em
termos de controlar o seu destino... durante eventos
estressantes as pessoas que são consideradas resilientes fazem
uso de qualquer oportunidade para uma ação que envolva

17
terceiros enquanto que as outras pessoas se mostram
paralisadas pelo terror da situação e se mostram isoladas. A
capacidade de preservar as relações sociais e de adotar
estratégias para lidar com aspectos estressantes, mesmo em face
de duríssimas adversidades, parece proteger determinadas
pessoas contra o desenvolvimento posterior de um estresse pós-
traumático.
Este pensamento está contido na obra de Herman (1994), que
vai da violência doméstica dirigida a mulheres e crianças até o
terror político, passando pelos prisioneiros de guerras, em especial
aqueles que sobreviveram ao Holocausto e à Guerra do Vietnã. De
certa forma, faz dela as palavras de Virgínia Woolf (1938):
O mundo privado e o público estão inseparavelmente
ligados... as tiranias e o servilismo de um são as tiranias e o
servilismo do outro.
E finalmente fazendo nossas também, quase que as últimas
palavras de Temporada de Caça:
Mas nossas histórias, a de Wade e a minha, descrevem as
vidas de garotos e homens há milhares de anos, meninos que
foram surrados por seus pais, cuja capacidade de amar e de
confiar foi mutilada quase no nascimento e cujas melhores
esperanças de uma conexão com outros seres humanos
residem em elaborar para si mesmos um modo elegíaco de
relacionamento, como se a vida de todas as demais pessoas
já tivesse acabado. É assim que evitamos, por nossa vez,
destruir nossos próprios filhos e aterrorizar as mulheres que tem
a desventura de nos amar; é como nos livramos da tradição
de violência masculina; é como abdicamos do sedutor papel
de anjo vingador: aceitamos impiedosamente os limites do
nada − da desconexão, do isolamento e do exílio − e os
lançamos em uma luz noturna cruel e elegíaca, uma vila
teutônica nas montanhas rodeadas por densas florestas
escuras, onde bestas peludas aguardam os andarilhos
errantes, os veados de olhos arregalados correm pela neve
funda e os caçadores fazem suas pequenas fogueiras para
aquecer as mãos a fim de que possam manejar suas armas
graciosamente no frio.

18
IV. POSFÁCIO7
A aflição de uma dor de dente

Dentre as muitas aflições vivenciadas, no filme, pelo


personagem Wade, está a provocada por uma renitente dor de
dente. Várias vezes, ele se queixa dela, especialmente quando se
encontra em situações geradoras de maior ansiedade ou dor
psicológica.
O irmão a quem ele confidencia suas inúmeras dificuldades ao
longo do filme, chega a lhe dizer que, antes de resolver os grandes
problemas, é preciso cuidar dos pequenos problemas. A sugestão
implícita é a de que dor de dente é um problema banal, de fácil
solução, consultando-se um cirurgião-dentista. Surpreendentemente
porém, nem essa aflição banal, Wade consegue resolver
adequadamente. Estressado por muitas outras frustrações, ele
chama seu dentista ao telefone, pedindo-lhe uma consulta de
emergência. Quando isso lhe é negado, parte para uma solução
inusitada: após beber um gole de whisky, arranca ele mesmo o
dente causador da aflição física, utilizando um alicate doméstico
como fórceps. Não dá um grito de dor: o único sinal aparente de
sofrimento está nas lágrimas que involuntariamente lhe caem dos
olhos.
A automutilação praticada pode ser compreendida à luz da
interação de fatores culturais e individuais, ligados à Psicologia da
Dor. Segundo Zborowski (1969), o desconforto da dor é enfrentado
diferentemente conforme a tradição cultural defina padrões de sua
aceitação ou rejeição. Em estudo realizado com quatro grupos de
pacientes (velhos americanos, judeus, italianos e irlandeses) na
cidade de New York, esse autor verificou que os velhos americanos
adotavam − frente à dor − uma atitude não emocional, calma, usualmente
não expressiva. Estavam também sempre muito preocupados em mostrar
um comportamento próprio de um homem adulto. E... homem que é
HOMEM não grita de dor: agüenta firme.

7 Este posfácio foi preparado pela Drª Maria Amélia Azevedo, Coordenadora do Laboratório de
Estudos da Criança e Professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
19
Por outro lado, Sternbach (1963) mostra que há pessoas
capazes de exibir o que ele chama de assimbolia para dor. Ou seja:
uma condição na qual a pessoa sente dor, mas permanece
invulnerável a ela, não fazendo qualquer esforço para evitá-la.
Os dois tipos de fatores podem ter influído na opção de
automutilar-se, praticada por Wade. Pressionado por inúmeros
fracassos, ele adota uma solução estóica e − indiferente à dor −
procura mostrar a si próprio e talvez ao pai, que ele era um FORTE e
não um FRACO como vinha aparentando...

V. BIBLIOGRAFIA
DOSTOIEVSKI, F. (s/d). Os irmãos Karamazov. São Paulo: Ediouro.
GELLES, R.J. (1996). The book of David - How preserving families can cost
children's lives. New York: Basic Books.
GREVEN, P. (1990). Spare the Child - The religious roots of punishment
and the psychological impact of physical abuse. New York: Vintage
Books.
HERMAN, J.L. (1994). Trauma and recovery − from domestic abuse to
political terror. London: Pandora.
LARANJEIRA, R. e PINSKY, I. (1997). Mitos e Verdades - O alcoolismo.
São Paulo: Contexto.
LINEDECKER, C.L. (1993). Killer Kids − shocking true stories of children
who murdered their parents. New York: St. Martin's Paperbacks.
NAGARAJA, J. (1984). Non-compliance − a behavior disorder. Child
Psychiatry Quarterly 17:127-32.
PATTERSON, G. (1982). A social learning approach to family intervention:
III, Coercive Family Process. Eugene, OR: Castalia.
________ (1987). Lew Bank and John B. Reid Delinquency
Prevention through training parents in family management.
Behaviour Analyst 10:75-82.
SERENY, G. (1998). Cries unheard - why children kill: the story of Mary
Bell. New York: Metropolitan Books.

20
STERNBACH, R. (1963). A congenital insensitivity to pain: a critique.
Psychological Bulletin 60, 252-264.
STRAUS, M. (1994). Beating the devil out of them - Corporal Punishment
in American Families. New York: Lexington Books.
WOOLF, V. (1938). Three Guineas. New York: Harcourt, Brace,
Jovanovitch.
ZBOROWSKI, M. (1969). People in Pain. São Francisco: Jossey-Bass Inc.

VI. PARA SABER MAIS


A. CONSULTE A BIBLIOGRAFIA A SEGUIR:

1. GUERRA, V.N.A. (1998). Violência de pais contra filhos: a tragédia


revisitada. São Paulo: Cortez. 3ª edição revista e ampliada.
2. AZEVEDO, M.A. & GUERRA, V.N.A. (2000). Infância e Violência
Doméstica: fronteiras do conhecimento. 3ª ed. São Paulo: Cortez.
3. AZEVEDO, M.A. & GUERRA, V.N.A. (1998). Infância e violência fatal
em família: primeiras aproximações ao nível de Brasil. São Paulo:
Iglu.
4. AZEVEDO, M.A. & GUERRA, V.N.A. (1994). Perguntelho − O que os
profissionais querem saber. São Paulo: Laboratório de Estudos da
Criança/IPUSP.

B. Visite o site www.renascenca.br/faculdade/lacri-usp


e apóie a Campanha do Laboratório de Estudos da
Criança - Instituto de Psicologia da USP - intitulada
A PALMADA DESEDUCA.

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FICHA TÉCNICA

FILME:
Nome original: Affliction
Tradução brasileira: Temporada de Caça
Duração: 113 minutos
Video: Europa Filmes
Ano: 1997
País: Estados Unidos
Diretor: Paul Schrader
Atores: Nick Nolte, James Coburn, Sissy Spacek, Willem Dafoe.

LIVRO:
Nome original: Affliction
Ano: 1989
Autor: Russell Banks
País: Estados Unidos
Editora: Harper & Row Publishers, Inc.

TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS

Nome original: Temporada de Caça


Ano: 1998
Autor: Russell Banks
Cidade: Rio de Janeiro
Editora: Record
QUESTIONANDO O FILME

1ª Questão:
− De que trata o filme?

2ª Questão:
− Quais as conseqüências do tipo de violência doméstica
sofrido por Wade, em sua infância e adolescência, em termos
do seu futuro?

3ª Questão:
− Os irmãos de Wade e ele mesmo recebiam palmadas no
bumbum até os 7 anos. Você consideraria isso como Violência
Doméstica? Justifique, tendo como base a história de Wade.

4ª Questão:
− Como prevenir a reprodução deste tipo de caso?

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