Texto publicado nos Anais do III Congresso Ibero-Americano de Psicologia
Jurídica. São Paulo: Mackenzie/USP, 1998
AVANÇOS E APLICAÇÕES EM FALSAS MEMÓRIAS
Carmem B. Neufeld; Luiz Palma Domingos; Lilian Milnitsky Stein Ao longo deste século os pesquisadores tem se interessado pelos estudos da falsificação da memória, o fato de lembrarmos de eventos que na realidade não ocorreram e de como se dá esse processo. Desde Binet (1900) passando por Bartlett (1932), Underwood (1965) e outros, até os dias atuais, tem sido produzido material científico nesta área, principalmente devido a suas implicações legais. As questões relacionadas à habilidade de crianças em relatar fidedignamente os fatos testemunhados, tanto como vítimas de abuso físico ou sexual quanto como testemunhas oculares de contravenções em geral, influenciou e motivou a essa busca maior pelas falsas memórias, principalmente nos EUA. As falsas memórias podem ser de duas formas: espontânea ou sugerida. A primeira se dá de maneira endógena como auto sugestão, e a segunda, exógena como sugestão ou falsa informação acidental ou deliberada. Desde os clássicos estudos de sugestibilidade em memória de adultos de Loftus (1979), a pesquisa em falsas memórias tem se debruçado também sobre a falsificação de memória em adultos. Apesar dos estudos terem comprovado que a suscetibilidade à falsificação de memórias varia com a idade, os adultos também estão expostos a essas condições. Levando em conta o trabalho do jurista, pautado também nas memórias dos envolvidos nos eventos a serem submetidos à avaliação, torna-se clara a aplicabilidade desses conhecimentos para a área de atuação da Psicologia Jurídica. Algumas influências básicas já comprovadas na produção e perpetuação de falsas memórias são o tempo decorrido entre o evento e a recordação, bem como outras memórias relacionadas a esse evento ou distratores que podem estar presentes na cena no momento da armazenagem. Existem várias metodologias para estudar falsas memórias, dependendo das várias teorias existentes que também serão abordadas. As novas direções apontam para duas correntes principais: a Teoria do Traço Difuso (Brainerd e Reyna, 1995) e a Teoria do Monitoramento da Fonte da Informação (Johnson et al., 1993). Como demonstração, apresentaremos um experimento realizado em 1999, comprovando a formação de falsas memórias em adultos.
Falsas memórias, testemunhos, sugestibilidade
O relato de eventos por testemunhas e réus é muitas vezes crucial para determinar o veredicto em um processo. Porém, o quanto podemos confiar na veracidade de lembranças dessas pessoas de fatos que ocorreram, por exemplo, há seis meses atrás? Ou até mesmo no dia anterior? Recentes estudos em Psicologia Experimental cognitiva sobre as chamadas falsas memórias, podem contribuir para com estes tipo de questão. As falsas memórias são lembranças de algo que na realidade não aconteceu, sem que seja uma mentira deliberada do indivíduo. A Psicologia Experimental cognitiva tem questionado os vários conceitos tradicionalmente aceitos pelos tribunais para avaliação de testemunhos e depoimentos. Um desses conceitos refere-se à estabilidade dos relatos de testemunhas que tem implicações diretas na forma como os resultados de entrevistas forense são interpretadas. De acordo com uma pesquisa realizada com advogados e juízes (Fisher & Cutler, 1992), a consistência de respostas entre uma série de entrevistas com a mesma testemunha é um critério chave utilizado juridicamente para determinar a credibilidade do testemunho. Quando o testemunho não pode ser confirmado ou desconfirmado por outra evidência, as afirmações que se apresentam inconsistentes ao longo da entrevista são geralmente consideradas como imprecisas, enquanto que depoimentos que são consistentes ao longo das entrevistas geralmente não são questionados (Brainerd, Reyna & Brandse, 1995). No entanto, alguns estudos recentes sobre persistência da ambas memórias, verdadeiras e falsas, levantam dúvidas sobre a validade do critério de consistência (Reyna in press). Acompanhando os estudos dos pesquisadores desta área, podemos levantar alguns questionamentos quanto à fidedignidade das lembranças relatadas. As influências de alguns fatores podem ter sérias implicações, principalmente na área jurídica, colaborando para a produção e perpetuação das falsas memórias. Podemos citar dentre estes fatores, a morosidade do sistema judiciário. Por exemplo, Roediger e McDermot (1995), utilizando o paradigma das listas de palavras associadas, observaram um índice de falsas memórias no teste de memória imediata. Esse índice aumentou, após passarem sete dias do evento original, segundo, o teste de memória posterior. Portanto, com o passar de apenas uma semana podemos afirmar que houve um decréscimo das respostas corretas e um aumento significativo dos alarmes falsos (palavras reconhecidas como sendo apresentadas, mas que na realidade não foram). Outro fator a ser considerado é em relação ao tipo de perguntas contidas em interrogatórios ou entrevistas, bem como exposição a repetidos questionamentos sobre o mesmo assunto. Ceci e Bruck (1996) trazem em seus experimentos exemplos de como a sugestão de falsas informações pode corromper a memória original de evento. Eles colocam vários exemplos de relatos de abuso sexual em crianças, e como a desconfiança dos pais em relação a um possível abuso ocorrido com seus filhos possam ter suscitado ou sugerido falsos relatos das crianças. O status do entrevistador é outro fator que comprovadamente influencia os relatos dos sujeitos. Goodman et al. (1995), em um de seus experimentos, utilizaram diversos tipos de entrevistadores, desde adultos representando autoridade, até adultos afetivamente ligados ao entrevistado. Desta forma, comprovaram que os sujeitos são mais susceptíveis a sugestão quando entrevistados por estranhos. Explicação teórica para as falsas memórias Segundo Reyna e Lloyd (1997), a memória não é unitária. A memória de essência é aquela que lembramos somente do significado do fato ocorrido, enquanto, que a memória literal é aquela que lembramos fidedignamente do fato ocorrido. As falsas memórias espontâneas são aquelas onde a distorção da memória se dá de maneira interna ou endógena ao sujeito, através da auto-sugestão. Segundo Brainerd e Reyna (1995), a auto-sugestão acontece quando o indivíduo lembra tão somente do significado do fato ocorrido, ou seja, da memória de essência, devido à interferência na entrada de novas informações. Esses autores também colocam que tanto crianças quanto adultos preferem resolver problemas baseados na memória da essência por ser esta mais estável, beneficiando a acuracidade e flexibilidade do raciocínio, mas perdendo em fidedignidade para a memória literal. As falsas memórias sugeridas surgem a partir da implantação externa ou exógena ao sujeito através de deliberada ou acidental sugestão de falsa informação. O efeito da sugestibilidade da memória pode ser definido como uma aceitação e subsequente incorporação de informação posterior ao evento ocorrido na memória original do mesmo (Gudjonson apud Ceci e Bruck, 1996). Essa definição implica alguns pressupostos quanto à sugestão: a não consciência do processo, resultado de informação apresentada posterior ao evento em questão. Assim, é um fenômeno de base mnemônica e não de base social, (por pressão social ou mentiras). Outra premissa a ressaltar, em relação à sugestibilidade sugerida é que necessariamente ela pode ou não, alterar ou substituir, a memória inicial. Tendo por base os resultados de pesquisas recentes (Bjorklund, 1995; Ceci e Bruck, 1996; Ceci, Ross e Toglia, 1987; Flavell, Miller e Miller, 1999; Schneider e Pressley, 1997; Stein, 1998), observa-se que assim como a memória se desenvolve com a idade, também a susceptibilidade à sugestão é maior em crianças mais jovens. Esses autores ressaltam que os adultos também são sugestionáveis e que suas memórias nem sempre são confiáveis. As questões relacionadas à habilidade de crianças em relatar fidedignamente os fatos testemunhados, tanto como vítimas de abuso físico ou sexual quanto como testemunhas oculares de contravenções em geral, influenciou e motivou o estudo da falsificação da memória, principalmente nos EUA. De acordo com Roediger (1996), os primeiros experimentos demonstrando a ilusão ou falsificação da memória em crianças foram de Binet em 1900 na França, e de Stern em 1910 na Alemanha. O primeiro autor a pesquisar a falsificação de memória em adultos foi Bartlett em 1932. Bartlett, ressaltou a importância das expectativas particulares para o entendimento e as lembranças do sujeito, a partir de seu experimento no qual ele apresentou a sujeitos ingleses uma lenda do folclore dos índios norte-americanos com dados e seqüência de fatos estranhos para uma lógica ocidental. Ao pedir-lhes que recordassem a história percebeu que os sujeitos reconstruíam a história com base em suas expectativas e suposições ocidentais, ao invés de lembrá-la literalmente como havia sido apresentada. Loftus e Palmer (1974) introduziram um novo paradigma para o estudo das falsas memórias, chamado de paradigma da falsa informação ou sugestão. O experimento constituía-se de uma cena original apresentada aos sujeitos, onde ocorria um acidente de carro devido ao avanço inapropriado, de um dos motoristas, da placa de "pare". Numa segunda etapa, era apresentada aos sujeitos uma cena, onde eram trocados alguns elementos da cena original (por exemplo: ao invés da placa de "pare", a placa de "dê a preferência" era apresentada). Num terceiro momento, quando questionados quanto a cena original, os sujeitos respondiam de acordo com a cena que continha a informação falsa ou sugerida, apesar de terem sido instruídos a responderem com base na cena original. A partir dos anos 70, Marcia Johnson e seus colegas iniciaram um programa de pesquisa sobre a fidedignidade da memória. Seu trabalho interessou-se em como os sujeitos distinguiam a fonte da informação na qual a memória baseava-se, entre informações derivadas de fonte externa (eventos vivenciados) e eventos derivados internamente (eventos imaginados ou produzidos). Essa teoria é denominada de Teoria do Monitoramento da Fonte da Informação, Johnson et al. (1993). Reyna e Lloyd (1997) colocam três pontos fundamentais sobre a memória, segundo a Teoria do Traço Difuso. Para essa teoria, a memória não é um sistema único, mas dois sistemas independentes e que funcionam em paralelo, denominados de memória literal (representação dos detalhes e mais específica) e de memória da essência (representação de significados e padrões, mais difusa). Essas duas memórias diferem em durabilidade, sendo a primeira mais frágil, menos estável e melhorando com a idade, e a segunda mais robusta (menos suscetível à interferência), mais estável e também melhorando com a idade. Ainda segundo esta teoria, a gradual fragmentação da memória e desintegração dos traços de memória leva ao esquecimento. Referências Bibliográficas Bjorklund, D. F. (1995) Children’s Thinking. Developmental Function and Individual Differences. Second Edition. Brainerd, C. J., & Reyna, V. F. (1995). Autosuggestability in memory development. Cognitive Psychology, 28, 65-101. Brainerd, C. J., Reyna, V. F., & Brandse, E. (1995). Are children’s false memories more persistent than their true memories? Psychological Science, 6, 359-364. Ceci, S. J., & Bruck, M. (1996). Jeopardy in the courtroom. A scientific analysis of children’s testimony. Washington, DC: American Psychology Association. Ceci, S. J., Ross, D. F., & Toglia, M. P. (1997). Suggestibility of children’s memory: Psycholegal implications. Journal of Experimental Psychology: General, 116, 38-49. Fisher, R. P., & Cutler, B. L. (1992, Setember). The relation between consistency and accuracy of eyewitness testiomony. Paper presented at the third European Conference on Law and Psychology, Oxford, England. Flavell, J. H., Miller, P. H., & Miller, S. A. (1999). Desenvolvimento Cognitivo. Porto Alegre: Artes Médicas. Goodman, S. G., Sharma. A., Thomas , F. S., & Considine, G. M. (1995). Mother knows best: Effects of relationship status and interviewer bias on childrens memory. Journal of experimental child psychology, 60 195-228. Johson, M. K.., Hashtroudi, S., & Lindsay, D. S. (1993). Source monitoring. Psychological Bulletim, 114 3-28. Loftus, E. F., & Palmer , J. C. (1974). Reconstruction of automobile destruction: An example of interaction between language and memory. Journal of verbal learning and verbal behavior , 13, 585-589. Reyna, V. F., & Lloyd, F. (1997). Theories of false memory in children and adults. Learning and individual differences, 9, 95 - 123. Reyna, V. F., & Brainerd, C. J.(in press).When things that were not experienced are easier to “remember” than things that were. Psychological Science. Roediger III, H. L. (1996). Memory illusions. Journal of memory and language, 35, 76-100. Roediger III, H. L., & McDermott, K. T. (1995). Creating false memories: Remembering words not present in lists. Journal of experimental psychology: Learning memory, and cognition 4, 803-814 Schneider, W., & Pressley, M. (1997). Memory Development. Between two and twenty. New Jersey: Mahwah LEA. Stein, L. M. (1998). Memory falsification in children: A developmental study of spontaneous and implanted false memories. Dissertação de Doutorado não publicada, University of Arizona.