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Neuropsicologia: Revisão de Literatura

Ano Letivo 2023/2024

Falsas Memórias em vítimas pós-trauma

Aluna: Beatriz Brás nº 31622

Docente: Raquel Lemos


Introdução

O estudo das falsas memórias abrange vários campos da ciência, como a neuropsicologia e a

psicologia forense. O estudo das mesmas têm-se tornado um claro interesse na área da

psicologia, por serem uma consequência do trauma psicológico, destacando assim a

necessidade de aumentar os recursos no campo da investigação psicológica. A recordação

precisa dos eventos vivenciados, e a suscetibilidade a distorções cognitivas tem-se revelado

uma área de pesquisa crucial, destacando-se pela sua relevância para a compreensão dos

processos de memória e, também para um apoio mais eficaz para as vítimas.

Esta revisão de literatura tem como objetivo ampliar o conhecimento sobre FM`s (falsas

memórias) e, acima de tudo, clarificar a interseção entre o trauma psicológico e a formação

de falsas memórias, bem como a sua complexidade, examinando a influência de fatores como

o impacto emocional, o stress pós-traumático, a sugestionabilidade, entre outros.

A seguinte análise visa então, uma compreensão mais holística do papel das falsas memórias,

no contexto de vítimas pós-trauma, fornecendo insights para psicólogos forenses,

neuropsicólogos, psiquiatras, profissionais jurídicos, entre outros, que se deparam

constantemente com esta realidade.

Etiologia das Falsas Memórias

As falsas memórias, referem-se à nossa capacidade de nos recordarmos de eventos ou

informações que não ocorreram, que não vivenciámos ou que não ocorreram exatamente

como descrevemos (Oliveira, 2018).

Inicialmente, no final do século XIX, estudos foram realizados para compreender o efeito das

perguntas nos relatos de crianças e adultos e também para compreender o efeito de perguntas
sugestivas no surgimento de falsas memórias. Os estudos de Ebbinghaus levaram à

formulação da curva do esquecimento e, no mesmo ano, Kirkpatrick realizou o primeiro

estudo laboratorial sobre falsas memórias (e.g., Gallo, 2006; Roediger, Watson, McDermott,

& Gallo, 2001), demonstrando a recordação falsa de palavras, associadas a itens previamente

apresentados. Além disso, Binet, em 1900, introduziu informações enganosas por meio de

questões, demonstrando a possibilidade de distorcer a memória.

Posteriormente, na segunda metade do século XX, houve uma abordagem mais cognitivista

no estudo desse fenómeno, com o surgimento de paradigmas como desinformação e DRM

(Deese-Roediger-McDermott). A década de 1970 destacou-se com um marco significativo,

com os estudos de Elizabeth Loftus, que introduziram o paradigma da desinformação,

demonstrando a distorção da memória por meio da introdução de informações falsas. E, em

1995, o paradigma DRM ganhou também destaque na literatura, sendo este um procedimento

experimental que consiste na apresentação de listas de palavras associadas a uma palavra não

apresentada, chamada de "distrator crítico", assim, os participantes realizam tarefas de

recordação e/ou reconhecimento, onde o “distrator crítico” tem tendência a ser recordado e

reconhecido na mesma proporção que as palavras apresentadas nas listas( Roediger &

McDermott, 1995). Desta forma, este paradigma é utilizado para estudar a ocorrência de

falsas memórias, ou seja, a recordação ou reconhecimento de um evento novo, como tendo

ocorrido anteriormente, ou de forma distorcida, considerando as falsas memórias como

produzidas internamente por efeito de associação (Oliveira, 2018).

Clarificação de Conceitos

É importante começar pelo início de tudo, como se forma uma memória, primeiramente os

nossos órgãos sensoriais recebem a informação, de seguida, a informação recebida é


codificada em “linguagem cerebral” e distribuída pelas diferentes partes do cérebro,

consoante a sua modalidade sensorial e o tipo de informação. Posteriormente a informação é

armazenada nas diferentes regiões do córtex cerebral, onde passaram a ser consolidadas e,

por último, a informação é recuperada ao ser reconhecida ou evocada.

A memória que é transferida para a memória a longo prazo, pode ser influenciada por dois

processos, a interferência e o esquecimento, que, são essenciais para o funcionamento normal

da memória, mas a sua influência pode também gerar falsas memórias.

Todas as memórias armazenadas são suscetíveis ao esquecimento, e alguns dos mecanismos

que o influenciam são a passagem do tempo, a idade e as características do evento.

Ebbinghaus estudou o fenómeno da deterioração da memória ao longo do tempo, propondo

que, nos primeiros minutos seguidos à aprendizagem, a perda de retenção é muito grande e, a

evidência empírica demonstra que à medida que o tempo passa, a quantidade de

esquecimento diminui.

Também as características do evento têm uma grande influência no esquecimento, que poderá

ser positiva, quando, devido a um aumento de stress e ansiedade do evento, há recordação de

uma grande quantidade de informação sobre o evento (Buchanan & Lovallo, 2001; Goodman,

Hirschman, et al., 1991) ou, poderá ser uma influência negativa, quando a ativação emocional

impedir a recordação de determinados detalhes (Quas, Bauer, & Boyce, 2004).

Formação de Falsas Memórias

As falsas memórias podem manifestar-se de forma espontânea, quando a distorção da

memória é interna ou endógena ao sujeito, frequentemente decorrente de autossugestão,


(Brainerd & Reyna, 1995) ou por meio de implantação externa, mediante sugestão, através de

sugestões intencionais ou acidentais de informações falsas (Gudjonson, 1986).

Um fenómeno muito estudado na área de psicologia forense é o efeito da sugestibilidade na

memória, que pode conduzir à aceitação e, subsequente incorporação, na memória original,

de informações apresentadas após o evento em questão. Importa salientar que tanto as falsas

memórias espontâneas, quanto as sugeridas, são fenómenos de natureza mnemônica,

relacionados à lembrança, e não têm sua origem em dinâmicas sociais, como mentira ou

simulação, por influência do meio social (Flech, 2012).

Da mesma forma, a imaginação pode também exercer uma influência significativa na

formação de falsas memórias, uma vez que, o processo de imaginar eventos, pode induzir as

pessoas a acreditar e recordar de experiências, que, de facto, não aconteceram. A formação de

memórias por meio da visualização e imaginação de eventos também pode ser incentivada

quando os indivíduos têm dificuldades em recordar-se dos mesmos (Loftus, 2006), uma vez

que o “próprio ato de rememorar pode modificar o conteúdo daquilo que se recorda e que

será lembrado mais de uma vez”. (Mazzoni, 2005: 81).

Vítimas Pós Trauma

É importante começar por definir o que é um “trauma” e realçar que, um evento que poderá

ser traumático para algumas pessoas, poderá ser um mero evento para outras. O trauma, é

definido como uma situação experienciada ou testemunhada pelo indivíduo, na qual houve

ameaça à vida ou à integridade física, do próprio ou de outras pessoas afetivamente ligadas ao

mesmo, como por exemplo, assaltos, sequestros, incêndios, entre tantos outros. (Câmara

Filho, J. W. S., & Sougey, E. B., 2001).


É importante também realçar, que o evento traumático em si, não causa o aparecimento da

perturbação de stress pós-traumático, que se caracteriza pela “vivência ou testemunho de um

ou mais eventos traumáticos e reagir com intenso medo, sendo que os sintomas (definidos no

DSM-5) devem estar presentes por um período superior a um mês após a exposição ao

evento traumático, e interferir em diferentes áreas do desenvolvimento provocando prejuízos

no funcionamento cognitivo, emocional, social e académico” (APA, 2004).

O cérebro não armazena memórias de forma direta, mas sim fragmentos de informação que

acabamos por juntar de forma a reconstruir lembranças, dessa forma conseguimos perceber o

porquê de não conseguirmos recordar com precisão os eventos vivenciados no passado (Peres

& Nasello, 2005). Também as emoções podem exercer uma grande influência sobre a

memória (Santos & Stein, 2008), uma vez que a memória, sendo processada em várias

regiões cerebrais, acaba por abranger também o sistema límbico, especificamente a amígdala,

que é responsável pela modulação emocional, realçando as propriedades emocionais das

informações armazenadas (Fink et al, 1996; McGaugh, 2000). Dessa forma, eventos

traumáticos podem ser submetidos a uma transformação cognitiva moldada pela carga

emocional, por exemplo, Sacks (2013) observou situações, no âmbito do abuso na infância,

onde se verificaram acusações baseadas na sugestionabilidade por terceiros, como

anteriormente falado.

Vários estudos mais recentes, têm também revelado novas perceções acerca do papel das

variações individuais na propensão a distorções de memória, associando assim certos traços

de personalidade a uma maior propensão a equívocos mnemónicos (Drivdahl & Zaragoza,

2001; Peiffer & Trull, 2000).

De acordo com a Terapia Cognitivo-Comportamental, a personalidade é definida como

padrões únicos de pensamento, emoção e comportamento, sendo assim moldada por um


sistema de crenças (Knapp & Beck,2008). Assim, cada ser humano tem diferentes tendências

pessoais que os tornam mais ou menos suscetíveis à produção de falsas memórias. Por

exemplo, estudos com vítimas de trauma indicam diferenças significativas na recuperação de

informações verdadeiras e falsas (Neufeld et al., 2013). Outros estudos com pessoas que

sofreram um trauma, algumas com perturbação de stress pós-traumático (PSPT) e outras sem

a perturbação, demonstram que estas têm maior propensão a recuperar memórias negativas

em comparação com memórias neutras, verificando assim uma relação entre trauma e

suscetibilidade a falsas memórias, indicando que sofrer trauma é um preditor das mesmas

(Zoellner et al., 2000). Este estudo sugere também que os indivíduos que passaram por

traumas, com ou sem PSPT (perturbação de stress pós-traumático), podem apresentar

dificuldades de monitoramento da fonte, levando a confusões entre memórias reais e

imaginadas ou sugeridas e, dessa forma, aumentar a suscetibilidade à formação de falsas

memórias.

A literatura indica ainda que a ansiedade e a intensidade do trauma estão associados à

formação de falsas memórias, indicando que o estado emocional relacionado ao trauma pode

influenciar a criação e recuperação de memórias (Zoellner et al., 2000).

Falsas Memórias em Contexto penal

As falsas memórias têm implicações significativas para os contextos jurídicos e clínicos.

Existem vários processos psicológicos envolvidos no testemunho e, no âmbito da psicologia

forense, a recordação de experiências é influenciada por vários fatores, entre os quais se

destaca o intervalo de tempo entre o evento e a entrevista, uma vez que existe uma interação

complexa entre os processos de codificação, armazenamento e recuperação de memórias

(Fivush, 2002; Peixoto et al., 2011).


Em contextos jurídicos, o fenómeno das falsas memórias pode afetar a fiabilidade dos

depoimentos das testemunhas, conduzindo potencialmente à apresentação de informações

imprecisas ou enganosas em tribunal. Esta situação pode ter consequências graves para os

processos judiciais, afetando os resultados dos julgamentos e podendo conduzir a

condenações ou absolvições injustas.

Assim, o estudo das falsas memórias revelou que vários fatores, como as técnicas sugestivas

de questionamento, e o momento da apresentação das informações, podem influenciar a

formação e a persistência das falsas memórias, destacando a necessidade de uma

consideração cuidadosa dos depoimentos das testemunhas em processos judiciais.

Conclusão

Em todo o caso, a distinção entre uma memória verdadeira e uma "não tão verdadeira assim"

não é uma tarefa fácil. Mesmo que a lembrança seja falsa, isso muitas vezes não altera a

sensação de uma experiência vivida ou a intensidade da dor associada a essas recordações,

especialmente quando inseridas em um contexto traumático.

Sendo a compreensão do funcionamento da memória essencial para a atuação do psicólogo,

especialmente o estudo das falsas memórias (Oliveira, 2018), cada vez mais, se torna

evidente a necessidade de cautela e avaliação crítica da recordação da memória em contextos

legais e clínicos, enfatizando a importância da compreensão dos fatores que podem contribuir

para a formação de falsas memórias e o seu potencial impacto nos processos judiciais e nas

práticas terapêuticas. Assim, torna-se imperativo que futuros estudos neste campo explorem e

aprofundem a complexidade das interações entre o trauma e a memória e os processos a eles

subjacentes, aprimorando as práticas profissionais, nomeadamente na área da psicologia

clínica e forense, para lidar eficazmente com as implicações das falsas memórias.
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