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SISTEMA PENAL E FALSAS MEMÓRIAS

Verônica Scartazzini Morgenstern1


Raquel Tomé Soveral2
RESUMO
Em razão da importância das provas dentro do processo penal – este enquanto caminho para
uma eventual punição do réu – e sabendo que um dos meios de que se vale o processo são as
oitivas e/ou depoimentos de testemunhas e/ou vítimas é que surge a imperiosidade de analisar
as falsas memórias que podem existir no íntimo do indivíduo. Dessa forma, o presente
trabalho visa compreender o fenômeno das falsas memórias dentro do processo penal, tendo
como problemática o seguinte questionamento: o que são falsas memórias? E quais pessoas
são mais suscetíveis a elas? Sendo que, este trabalho, tem como objetivo possibilitar uma
melhor e maior compreensão sobre a problemática proposta, a fim de possibilitar a
compreensão e identificação do que são as memórias, do que são falsas memórias e quais os
sujeitos mais suscetíveis a elas, a fim de no futuro proporcionar aos operadores do direito uma
maior clareza sobre o tema e a capacidade de identificar essas memórias distorcidas. Utilizou-
se o método hipotético-dedutivo.
Palavras-chave: Falsas. Memórias. Processo. Penal.

ABSTRACT
Because of the importance of evidence in the criminal proceedings - as this way for a possible
punishment of the defendant - and knowing that one of the means that are worth the process
are the hearings and/or the testimony of witnesses and/or victims is that arises imperiousness
analyzing the false memories that may exist in the individual's intimate. Thus, this study aims
to understand the phenomenon of false memories within the criminal process, and as
problematic the question: what are false memories? And what people are more susceptible to
them? Since this work aims to enable better and greater understanding of the issues proposed
in order to enable the understanding and identifying what are the memories, the memories are
false and that the most likely subject to them in order in the future to provide legal
professionals greater clarity on the subject and the ability to identify these distorted memories.
We used the hypothetical-deductive method.
Keywords: False. Memoirs. Process. Criminal.

INTRODUÇÃO

Sob o viés processual penal, vê-se nos dias atuais, mais do que nunca, a falibilidade
na colheita das provas por depoimentos de pessoas, e, por conseguinte, abre-se margem para a

1
Graduanda em Direito na Faculdade Meridional – IMED; Estagiária da Procuradoria do Estado do Rio Grande
do Sul. Endereço eletrônico: veronica.morgenstern@gmail.com
2
Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Mestre em Direitos Humanos pela
Universidade do Minho – UMINHO, em dupla titulação UNISC-UMINHO. Especialista em Direito Penal e
Processo Penal pela IMED. Professora da Escola de Direito da IMED. Advogada. Endereço eletrônico:
raq_tome@hotmail.com.
ocorrência das falsas memórias, sendo que muitas vezes, em se tratando de crianças, passa
despercebido que suas memórias sucedam de uma alienação parental, por exemplo.
Considerando a relevância ímpar das provas dentro do processo penal, em razão da
condenação ou absolvição do réu com base na colheita das provas, e compreendendo que um
dos meios de que se vale o processo é as oitivas e/ou depoimentos de testemunhas e/ou
vítimas aparece a necessidade de se analisar as falsas memórias.
Este ensaio visa compreender o fenômeno das falsas memórias dentro do processo
penal, tendo como problemática o que são falsas memórias? E quais pessoas são mais
suscetíveis a elas?
Destaca-se, desde logo, que este trabalho corresponde a uma pesquisa em andamento
sobre as falsas memórias nas crianças correlacionada ao tema do abuso sexual e da alienação
parental, tendo, no presente, o ponto sobre a compreensão das falsas memórias.
A relevância da temática se dá em razão de que o poder punitivo estatal, por vezes,
pode acabar incorrendo em erro diante de uma condenação injusta pautada em uma memória
falsa, o que se não for identificada pode incorrer em uma injusta punição, situação esta que
fere, dentro inúmeros outros direitos, a liberdade, a dignidade e todo o sistema constitucional
democrático e, em razão disto, para que se consigam identificar as falsas memórias prestadas
em um processo penal, antes de tudo, tem-se que compreender o que são as falsas memórias.
Estrutura-se realizando uma abordagem específica acerca das falsas memórias, a fim
de compreender na sua essência, o porquê da influência num processo penal. Ademais será
enfatizado que dentre os indivíduos que são mais propícios à ocorrência das falsas memórias,
estão aqueles que sofreram algum tipo trauma ou alguma falha de memória.
Atentos ao fato de que o sistema penal se vale da utilização de provas testemunhais
para corroborar com a verdade de um dos lados do litígio é que se justifica a necessidade da
realização de uma compreensão sobre o que são memórias e, em decorrência, o que são
consideradas as falsas memórias, bem como, analisar em quais pessoas elas estão mais
sujeitas a aparecer.
O método utilizado no presente ensaio, é o hipotético-dedutivo, pois o trabalho se
utiliza de pesquisas bibliográficas, como doutrinas, artigos, revistas, entre outros, a fim de
melhor entender o fenômeno das falsas memórias e sua influência no processo penal.
Nessa perspectiva, será possível visualizar através do direito como enfrentar essas
questões, na busca de amenizar os danos sofridos e causados a todos os envolvidos na ação
judicial penal. Assim sendo, ressalta-se a tamanha delicadeza que se deve ter ao fazer
perguntas às crianças, pois automaticamente está se acessando suas memórias, que podem ser
distorcidas de forma espontânea ou de forma sugerida.

1. Memórias: uma abordagem psicológica e jurídica

A memória humana vem sendo estudada desde muitos anos atrás, e um de seus
pesquisadores mais famosos é Sigmund Freud, o criador da Psicanálise. Freud pesquisou e
explicou que não há uma separação clara entre realidade e a imaginação, e por consequência,
tampouco há uma distinção nítida entre processos inconscientes e conscientes, concluindo que
não existem pensamentos, comportamentos, relatos que são totalmente puros e isentos da
influência subjetiva do próprio indivíduo. Todavia, deve ser considerado se a pessoa tem
consciência de que ela mesma influencia na sua memória, na sua visão das coisas e o quão ela
compromete a si mesma, não sendo somente instigada por fatos externos (CYMROT, 2010, p.
337).
Nessa senda, verifica-se que a memória é um mecanismo complexo, sendo
conceituada por ser “a aquisição, a formação, a conservação e a evocação de informações.”. A
primeira é referente ao aprendizado, ou seja, só é registrado aquilo que se aprende, e, a última,
traduz-se por recuperação. Assim, recorda-se somente o que foi aprendido. (IZQUIERDO,
2006, p. 9).
Nas palavras de Larissa Civardi Flech (2012, p. 46)

A memória refere-se ao conjunto de mecanismos psíquicos responsáveis pelo


armazenamento de informações e experiências vividas, possibilitando sua fixação,
retenção e posterior evocação. É, em síntese, a faculdade de reter as ideias, as
impressões e os conhecimentos adquiridos.

Entende-se, portanto, que a memória é composta de registro e gravações de


informações, mas também pela lembrança delas, e ao evocar as memórias, não será recordado
todo o evento com todos os detalhes, e essa é outra característica da memória: o
esquecimento, um fator de tamanha importância para a sobrevivência das pessoas, ao passo
que a memória jamais será como a de um computador, mecânica, sem trazer cargas
emocionais (IRIGONHÊ, 2014, pp. 40-41).
Desta forma, “o conteúdo da memória é função da velocidade do esquecimento. Isso
quer dizer que a memória é o que resta quando nós esquecemos, e que não há memória sem
esquecimento.” (VIRILIO apud LOPES JÚNIOR; DI GESU, 2006, p.62).
A memória é, ainda, classificada em memória de trabalho, memória de curta duração
e memória de longa duração.
A memória de trabalho é caracterizada por ser imediata. Ela não arquiva
informações, ela mantem elas por segundos, ou minutos, somente o tempo necessário para
entender o que está acontecendo em certo momento. Esse tipo de memória tem seu déficit
quando a pessoa está com seu estado de ânimo alterado (cansaço, estresse, fadiga), acabando
por não conseguir se concentrar em algo e, portanto, não absorvendo, nem por esses
segundos, o que está diante dela (IZQUIERDO, 2006, pp. 19-20).
Outro atributo dado a esse tipo de memória é seu “papel” de gerenciador central,
conforme explica Iván Izquierdo (2006, p. 20)

O papel gerenciador da memória de trabalho decorre do fato de que esta, no


momento de receber qualquer tipo de informação, deve determinar, entre outras
coisas, se é nova ou não, e no último caso, se é útil para o organismo ou não. Para
fazer isto, a memória de trabalho deve ter acesso rápido às memórias preexistentes
no indivíduo; se a informação que lhe chega é nova, não haverá registro dela no
resto do cérebro, e o sujeito pode aprender (formar uma nova memória) aquilo que
está recebendo do mundo externo ou interno. [...] As possibilidades de que, perante
uma situação nova qualquer, ocorra ou não um aprendizado estão determinadas pela
memória de trabalho e suas conexões com os demais sistemas mnemônicos.

Assim sendo, ela segura a informação viva no cérebro só pelo tempo necessário para
entrar ou deixar de entrar na memória propriamente dita. É nesse tempo que se distingue se há
necessidade de reter essa informação, ou se por ser prejudicial, deve ser “excluída” (DI
GESU, 2014, p. 107).
Portanto, a memória de trabalho não tem o objetivo de arquivar informações, mais
sim de analisá-las e compará-las com as demais memórias preexistentes da pessoa
(IZQUIERDO, 2006, p. 51).
De outra banda, a memória de curta duração, como o próprio nome já diz, é curta, ou
seja, ela permanece por pouco tempo viva – horas – somente o período suficiente para a
consolidação da memória de longa duração (IZQUIERDO, 2006, p. 27).
Porém, para esta se fixar, ela depende do processo feito pela memória de trabalho,
que é a de primeiro instante, a que recebe a informação inicialmente (IZQUIERDO, 2006, p.
52).
Em suma, a memória de curta duração consiste na captação de poucos dados num
curto espaço de tempo (segundos) e se vincula ao entendimento, à compreensão e seu
posterior aprendizado (FLECH, 2012, p. 51).
Salienta-se, porém, que quanto mais tempo um evento permanece na memória de
curta duração, mais facilmente ela se tornará uma memória de longa duração (IRIGONHÊ,
2014, p. 41).
Em outras palavras, a memória de curta duração não sofre uma extinção no ápice de
sua constância (entre 4 e 6hs), ela simplesmente vai se transformando em memória de longa
duração (IZQUIERDO, 2006, p. 55).
A memória de longa duração, então, depende da memória de curta duração para se
consolidar, tanto quanto esta última depende da memória de trabalho. Ela se caracteriza por
fazer permanecer por longos períodos de tempo, as informações fixadas e armazenadas,
consolidando-as (FLECH, 2012, p. 52).
Contudo, até a memória de longa duração se consolidar, no momento de sua
aquisição, ela é frágil e está sujeita a sofrer interferências por várias hipóteses, como por
exemplo, ter sofrido um trauma, ou pela lembrança de outras memórias, afetando, por
conseguinte, a consolidação da memória de longa duração (IZQUIERDO, 2006, p. 25).
Nesse passo, existem três estágios para que a memória de longa duração se forme: a
aquisição, a consolidação e a evocação (IRIGONHÊ, 2014, p.42).
A aquisição é momento em que é recebida a informação no cérebro, onde esta fica
retida na memória de curta duração primeiramente, e após determinado tempo, passa a ser de
longa duração. Para que efetivamente se tenha a aquisição da memória, fundamental é a
atenção do sujeito, pois, se por qualquer razão ele não estiver atento, a aquisição será
deficitária, ao mesmo passo em que é nessa ocasião que a memória fica mais suscetível a
influências, prejudicando, desta forma, o processo construtivo da memória de longa duração,
(IRIGONHÊ, 2014, pp. 42-43).
A consolidação é o estágio de transformação da memória de curta duração para a
memória de longa duração. É quando as informações já estão fixas e armazenadas, de forma
consolidada, tornando mais difícil a ocorrência do esquecimento (IRIGONHÊ, 2014, p. 44).
A evocação é o ato de fazer lembrar, é em si, a recordação, trazendo determinada
memória à tona, conforme elucida a autora citada acima. Não recordar sempre, não quer dizer
que a memória não exista mais, é somente algum fator momentâneo que esta bloqueando sua
evocação. É um processo que “consiste em uma união reconstrutiva de fragmentos que,
deixando momentaneamente outros excertos de memória esquecidos, forma um episódio
mnemônico que se pode chamar de lembrança.” (IRIGONHÊ, 2014, pp. 44-45).
Evidencia-se assim, que a memória de longa duração é responsável pela “guarda” e
conservação das memórias mais remotas, sendo natural que ocorra a extinção das mesmas, ou
seja, sua supressão de forma momentânea, porém permanecem latentes, sendo “revividas” no
momento em que são provocadas de forma muito específica e com uma intensidade bem
elevada, através de “uma “dica” muito apropriada; um quadro emocional que imite o quadro
em que elas foram originalmente adquiridas; uma situação comportamental que se assemelhe
à do aprendizado original.” (IZQUIERDO, 2006, p. 60).
Sob tal perspectiva, Iván Izquierdo (2006, p. 30) faz observância ao fato de que
“conservamos só uma fração de toda a informação que passa por nossa memória de trabalho;
e uma fração menor ainda de tudo aquilo que eventualmente conservamos por um tempo nas
nossas memórias de curta e de longa duração.”, sendo que as últimas são valiosas na vida das
pessoas, mas significam apenas uma pequena parte de tudo que é aprendido e lembrando ao
longo da existência das mesmas.
Nesse passo, Paulina Cymrot, coloca que (2010, pp. 37-38):

a memória não é só produto do registro do fato com isenção e objetividade, e a


fantasia não é só imagem. Nelas intervêm as sensações, a qualidade e a intensidade
dos afetos, as angústias e suas defesas, as fantasias e as alucinações que constituem
os pensamentos, os mitos pessoais, o grau de desenvolvimento emocional, a história
das relações do sujeito com ele mesmo, com outros, com o mundo à sua volta e a
história das identificações deste sujeito com outros, que lhe conferem forma e
sentido.

A memória é, então, um conjunto de percepções e sensações internas e externas ao


sujeito. Ao mesmo tempo em que ele recorda algo, ele está muitas vezes lembrando-se de
vários acontecimentos passados ou atuais, seus, ou contados por quem os vivenciou a ele.
Freud escreveu em 1899 um texto chamado Lembranças Encobridoras, afirmando
que “não há garantias quanto aos dados produzidos por nossas lembranças. Ao mesmo tempo,
algumas delas caracterizam-se por sua nitidez, seu detalhamento, e também sua aparente
insignificância ou inocência quanto ao conteúdo.” (CYMROT, 2010, p. 343).
Evidencia-se, deste modo, que por não ser a memória uma fonte exata, ou seja, que
nem sempre a pessoa irá perceber quando está falando de um só evento ou está misturando-o
com algum outro, ou ainda quando a recordação é sobre um fato que não foi vivenciado pela
pessoa, mas lhe contado por terceiro, é natural a ocorrência de modificações quando a
memória é evocada, ou perdas de traços de memórias sobre determinadas informações
(FLECH, 2012, p. 46).
Assim, Iván Izquierdo (2006, pp. 15-16) esclarece que “nossa memória pessoal e
coletiva descarta o trivial e, às vezes, incorpora fatos irreais. Mas também vamos
incorporando, ao longo dos anos, mentiras e variações que geralmente as enriquecem.”.
Tal autor expõe ainda que “algumas memórias consistem em uma súbita associação
de outras memórias preexistentes.”, e que isso se deve ao fato de que entre a experiência real e
a formação da memória sobre tal experiência, ocorre uma tradução, ou seja, será feito um
filtro entre a realidade e compreensão, e que entre a instauração da memória e sua respectiva
evocação, existe outro tipo de tradução, ocasionado, por conseguinte, em todas essas
traduções, perdas (IZQUIERDO, 2006, pp. 16-17).
Outrossim, nessas traduções, o cérebro, no instante de reter e arquivar a memória,
acaba transformando-a e modificando-a, retirando a possibilidade de uma memória exata do
fato vivenciado (DI GESU, 2014, p. 104).
Nesse ínterim, Marcelo Marcante Flores (s. a., s. p.), explana que

Pensava-se que a memória era apenas um processo reconstrutivo. No entanto, as


recentes pesquisas demonstram que a memória é um processo verdadeiramente
construtivo. Logo, não apenas somos capazes de resgatar certas informações
relacionadas a um evento qualquer, como também de acrescentar muita coisa nova a
tudo àquilo que lembramos.

Desta forma, as memórias são resultantes de variados elementos psíquicos e externos


a pessoa, de maneiras tidas por ela para sobrevivência e enfrentamento de situações de sua
vida, sendo que para isso, o próprio mecanismo mnemônico utiliza suas formas de
transformar o que foi vivido por ela para que tal fato faça sentido (CYMROT, 2010, p. 340).
Portanto, a memória é constituída de misturas de diversas memórias, ou seja,
memórias antigas com as recentes, ou com as que são evocadas naquele instante, ou ainda
com memórias que não são da pessoa, que são sugeridas a ela, fazendo com que se crie uma
“nova memória”, uma memória formada a partir da mistura de duas ou mais memórias do
próprio sujeito ou de memórias que lhe foram sugeridas (IZQUIERDO, 2006, p. 31).
Verifica-se, deste modo, que a consciência humana não é estática e sim
essencialmente dinâmica. Ela possui um poder inexaurível de criar, anular ou até mesmo
falsificar a realidade (DI GESU, 2014, p. 105).
Nessa senda, salienta-se que “a repetição da evocação das diversas misturas de
memórias, somada à extinção parcial da maioria delas, pode levar-nos à elaboração de
memórias falsas.” (IZQUIERDO, 2006, p. 32).
Essa facilidade que a memória humana tem de produzir memórias falsas de forma
espontânea ou de forma sugerida advém da característica irracional e impulsiva do sujeito, e
que afeta além de sua memória, sua forma de pensar e entender determinada situação e nos
seus juízos (CYMROT, 2010, p. 339).
Assim, partindo-se do exposto acima, se observa que a memória é de suma
importância para o âmbito jurídico, pois exerce um papel fundamental na hora da colheita das
provas testemunhais, depoimentos pessoais e reconhecimentos, uma vez que o tempo
transcorrido entre o fato vivenciado e o relato da pessoa, a memória de longa duração sofre
interferências no período de sua aquisição até sua consolidação, podendo levar a modificar a
lembrança do depoente (DI GESU, 2014, p. 108).
Logo, sendo a memória caracterizada essencialmente pela sua dinamicidade, Cristina
Di Gesu (2014, p. 112), ressalta que

no processo penal, na maioria das vezes, a prova é oral, embora as testemunhas de


um fato delituoso contem aquilo que viram, ouviram ou sentiram, [...] o
armazenamento da memória não é a absoluto ou completo. Portanto, a capacidade de
reprodução do acontecimento também será deficitária.

Deste modo, a vítima ou a testemunha irá relatar aquilo que ele compreendeu do
evento e o que sua memória interpretou e arquivou, afora as influências sofridas pelos
comentários e interpretações advindas de outras pessoas e que ficam registradas na sua
memória, levando-a a confundir os detalhes verdadeiros do ocorrido ao evocar a memória e
descrevê-la.
Nesse ínterim, Fayga Ostrower (apud SEGER; LOPES JÚNIOR, s. a., s. p.) explica
que “[...] O ser humano é, por natureza, um ser criativo. No ato de perceber, ele tenta
interpretar e, nesse interpretar, já começa a criar. Não existe um momento de compreensão
que não seja, ao mesmo tempo, de criação.”.
Nesse sentido, apesar de ser gradual e parcial o desgaste das memórias com o passar
do tempo, se elas são bem fixadas no período de aquisição e consolidação, serão mais estáveis
e, por conseguinte sofrerão menos interferências, conservando-se por mais tempo na memória
(FLECH, 2012, p. 42).
Todavia, na maioria das vezes o que acontece é o esquecimento, ou o bloqueio do
fato vivenciado. Ocorre que, ao ser colocado frente a uma situação angustiante, o ego do
sujeito trabalha como defensor de seu sistema cognitivo, afetando consequentemente sua
percepção e memorização, mas também seu relato quanto ao que foi vivido por ele naquela
ocasião aflitiva (SEGER; LOPES JÚNIOR, s. a., s. p.).
Assim sendo, a pessoa quando vivencia um delito ou o testemunha, passa por uma
situação de extrema delicadeza, em que passam pela sua consciência, no mesmo instante em
que a memória do fato se forma, emoções, pensamentos, suas interpretações sobre o que está
acontecendo naquele momento, sendo que é esse subjetivismo que ficará arquivado na
memória dela. Porém, para a construção probatória, interessante seria a memória cognitiva, ou
seja, a recordação do que realmente aconteceu, com seus detalhes específicos e não com as
interpretações subjetivas da pessoa. Entretanto, é justamente a memória com os detalhes
técnicos que ficam no esquecimento, por uma questão de defesa do organismo (LOPES
JÚNIOR; DI GESU, 2006, p. 62).
Dessa forma, conforme observa Paulina Cymrot (2010, p. 338)

A recordação, o relato, a comunicação atendem a intencionalidade conscientes e


inconscientes, cumprem suas funções nas relações humanas. Isto vale para quem
julga e para quem é julgado, para vítimas e acusados. Não é por acaso e nem por
luxo que os magistrados necessitam dos jurados, do escrivão, das testemunhas de
acusação e de defesa, para decidirem sobre as suas sentenças. [...] Eles sabem, como
o sabem os psicanalistas, que é escassa a confiabilidade nas lembranças e que uma
recordação que repetidamente é evocada pode se fixar, se cristalizar na mente
enquanto verdade. Sabem, também, que a própria evocação pode ser mais traumática
do que o acontecimento associado a ela. E que avaliar, diagnosticar, julgar envolvem
uma tarefa complexa, nada simples de ser realizada.

Ou seja, no instante da oitiva, depoimento ou reconhecimento dado pelo sujeito, os


juízes devem estar atentos e ter conhecimento sobre a possibilidade da ocorrência de
memórias falsas, uma vez que a pessoa já adentra a sala de audiências com seu relato pronto
para expor, e que conforme o magistrado e os advogados conduzirem-lhe as perguntas, sua
memória irá ser alterada, pois está aceitando que uma sugestão seja incutida a ela, ou ainda
por questão emocional, interna a pessoa, sua memória também acaba por se modificar,
afetando e comprometendo toda a recordação do fato vivenciado.

2. Da conceituação e contextualização do que são as falsas memórias

As primeiras pesquisas sobre a ocorrência de falsas memórias tiveram início no


século XIX em Paris, com o caso de Louis. Esse homem com 34 anos de idade na época
chamou a atenção de médicos, pois estava lembrando fatos que nunca haviam acontecido.
Para esse evento, em 1881, Theodule Ribot chamou de falsas lembranças (NEUFELD;
BRUST; STEIN, 2010, pp. 22-23).
No século XX, o estudo acerca das falsas memórias, ficou por conta de Alfred Binet
na França, em 1900 e foram repetidos por Stern na Alemanha, no ano de 1910. Foram eles os
pioneiros a realizarem pesquisas sobre a sugestionabilidade da memória, especialmente em
crianças, mostrando as diferenças de quando é um evento espontâneo de fonte interna e
quando é um evento sugerido de fonte externa. Nos adultos, a pesquisa foi feita por Bartlett
em 1932, na Inglaterra. Bartlett demonstrou que a memória é influenciada pelas perspectivas
individuais e culturais, sendo um processo de compreensão e entendimento pessoais
(NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, pp. 23-24).
Entretanto, a especialista no assunto e que trouxe ao mundo o que são as falsas
memórias e de que forma elas ocorrem, foi Elizabeth Loftus, por volta dos anos 70. Ela criou
uma técnica para poder estudar melhor as falsas memórias, chamada de Procedimento de
Sugestão de Falsa Informação, o qual consiste em inserir uma informação não verdadeira a
uma experiência vivenciada ou não, resultando o efeito chamado de falsa informação, onde a
pessoa acredita realmente ter passado por essa situação falsa, ou seja, a partir da influência de
um agente externo, a pessoa passa a recordar fatos que na verdade não foram vivenciados por
ela, ou que foram, mas a partir dessa indução alheia, o ocorrido se destorce (DI GESU, 2014,
pp. 127-128).
Nesse contexto, entende-se que “as falsas memórias são caracterizadas pela
recordação de algo que, na realidade, nunca aconteceu. A interpretação errada de um
acontecimento pode ocasionar a formação de falsas memórias.” (PISA, 2006, p. 22).
Conforme explica Cristina Di Gesu (2014, p. 128)

As falsas memórias não giram apenas em torno de um processo inconsciente ou


involuntário de “inflação da imaginação” sobre um determinado evento. Há tanto a
possibilidade de as pessoas expostas à desinformação alterarem a memória de
maneira previsível ou espetacular, de forma dirigida, quanto espontaneamente, ou
seja, sem que haja sugestionabilidade externa.

Depreende-se então, que o fenômeno das falsas memórias pode acontecer em


qualquer pessoa e nos afazeres corriqueiros do dia-a-dia, como ao assistir ao noticiário e ver
uma reportagem na qual os fatos são parecidos com os já vivenciados pela mesma, ou pela
simples sugestão de alguém a lembrar de um acontecimento passado (LOPES JÚNIOR, 2014,
s. p.).
Deste modo, verifica-se que “as Falsas Memórias surgem quando, por indução de
terceiros ou recriação do próprio indivíduo, os mecanismos de aquisição, retenção ou
recuperação da memória falham, levando o sujeito ao erro.” (FLECH, 2012, p. 63).
Para Elizabeth Loftus (apud IRIGONHÊ, 2014, p. 34) a memória não é apenas
formada da situação fática em si. Ela vem carregada de pensamentos, de sensações, do que
estava acontecendo ao redor do sujeito naquele momento e, por essa razão é que a memória
pode ser falsificada pela própria pessoa e nem sempre de via externa.
Outrossim, as imagens não ficam registradas na memória como se fossem
microfilmagens que podem ser acessadas a qualquer momento e com total integralidade da
lembrança. Essa característica é inerente à pessoa, já que a memória humana não se compara a
de um computador e por isso, as pessoas não recordam de todos os eventos vividos com
precisão, esquecendo a maioria dos detalhes e relembrando a parte mais sucinta dos
acontecimentos. (LOPES JÚNIOR, 2013, p. 678).
Assim, há que se pensar que “experiências passadas são expressas através de
lembranças e não podem ser testemunhadas, observadas, reconstruídas realmente. [...] as
lembranças são sempre fontes suspeitas.”, uma vez que com o passar do tempo, o fato
vivenciado vai se flagelando, e a pessoa vai esquecendo partes daquilo, não conseguindo mais
recordar com precisão e perfeição do que aconteceu (CYMROT 2010, p. 340).
Deste modo, Marcia de Moura Irigonhê elucida que (2014, p. 34):

Neste ínterim, a partir das contribuições da ciência moderna e, particularmente,


daquela desenvolvida a partir da segunda metade do século XX, passa-se a pensar a
memória como uma colcha de retalhos constituída por traços de informações
armazenados no Sistema Nervoso Central e recuperados para a reconstrução das
lembranças, nem sempre constituindo um quadro fiel ao que foi vivenciado no
passado.

Para a Psicanálise, “há no funcionamento psicológico das pessoas, ainda que elas não
se encontrem sob pressão interna ou externa, mecanismos falsificadores das memórias”, e se
as experiências, vivências do sujeito, suas perspectivas, seus pontos de vista são havidos
como verdade, ele não necessita de provas para acreditar nisso (CYMROT, 2010, p. 338).
Frisa-se, segundo Osnilda Pisa (2006, p. 21) que:

A memória não funciona como uma filmadora, que grava a imagem e essa pode ser
vista e revista diversas vezes. Muitas são as interferências que podem ocorrer entre
as fases da aquisição e recuperação da memória de um evento. As falsas memórias
podem resultar de sugestão externa, acidental ou deliberada, como no caso dos
experimentos, com a introdução de informação falsa, ou de origem interna, resultado
de processos de distorções mnemônicas endógenas.

Desta forma, constata-se que existem as falsas memórias que são produzidas pelo
próprio agente (chamadas de falsas memórias espontâneas) e as falsas memórias advindas de
fatores externos (chamadas de falsas memórias sugeridas).
As primeiras resultam de distorções internas, que ocorrem de forma espontânea,
alterando a memória da pessoa sem que ela perceba, misturando lembranças recentes com
antigas, sem que tenha havido uma influência externa, isto é, a pessoa, viu, ouviu, ou
vivenciou determinado evento, entretanto sua lembrança é confusa e sofre interferência de
outros fatos vividos, acabando, muitas vezes, por misturar as situações (NEUFELD; BRUST;
STEIN, 2010, p. 25),
Nessa senda, Larissa Civardi Flech (2012, p. 66), expõe que:

Há autossugestão quando o indivíduo recupera somente a memória da essência, ou


seja, do significado do fato vivido. Com base nisso, as Falsas Memórias
Espontâneas ou Autossugeridas consistem no erro de lembrar algo que é coerente
com a essência do que foi vivido, mas que, na verdade, não ocorreu.

Assim, segundo Aury Lopes Júnior (2013, p. 685) “a distorção consciente conduz à
mentira. As falsas memórias não são dominadas pelo agente e podem ocorrer até mesmo de
uma interpretação errada de um acontecimento.”.
Para Enrico Altavilla (apud DI GESU, 2014, p. 129) esse processo leva o nome de
ruminação, segundo qual o fato ocorrido entra num organismo dinâmico – o cérebro, a
memória – e não fica impresso de forma estática, congelando o evento por inteiro com
detalhes e, por essa razão, experiências novas se confundem com as antigas, por alguma
similaridade entre elas, deformando as vivências atuais com as já passadas e vice-versa,
muitas vezes tendo um forte aliado: o esquecimento, fruto da natureza humana.
Destarte, entende-se que as falsas memórias espontâneas ou autossugeridas são
distorções mnemônicas endógenas, ou seja, internas e inconscientes, pois do contrário será
mentira, uma vez que a pessoas passa a alterar o relato propositalmente.
Quanto às falsas memórias sugeridas, “elas advêm da sugestão de falsa informação
externa ao sujeito, ocorrendo devido à aceitação de uma falsa informação posterior ao evento
ocorrido e a subsequente incorporação na memória original.” (NEUFELD; BRUST; STEIN,
2010, p. 26).
Deste modo, “a susgestionabilidade pode ser definida como a tendência de
incorporar informações falsas oriundas de fonte externas às recordações pessoas, o que resulta
na falsificação da memória.” (FLECH, 2012, p. 68).
Contudo, há também a possibilidade de induzir o sujeito a ter uma falsa memória, a
criar inteiramente um episódio que nunca ocorreu, principalmente se alguém da família da
pessoa afirma que o evento realmente ocorreu, pois como há confiança entre os familiares,
naturalmente se acredita no que eles contam e afirmam (LOPES JÚNIOR, 2014, s. p.).
Ocorre que, essa sugestão pode ser de forma acidental ou deliberada, e a pessoa
começa a lembrar de fatos que não aconteceram com ela, que foram criados externamente e
sugeridos a ela, resultando em uma lembrança inexistosa, porém para ela é a mais real
verdade e o fato criado ocorreu verdadeiramente (SEGER; LOPES JÚNIOR, s. a., s. p.).
Nesse passo, Aury Lopes Júnior (2014, s. p.) aduz que:

A confusão sobre a origem da informação é um poderoso indutor da criação de


falsas memórias, e isso ocorre quando falsas recordações são construídas
combinando-se recordações verdadeiras como conteúdo das sugestões recebidas de
outros.

Ou seja, as falsas memórias sugeridas podem ser incutidas nas memórias das pessoas
como verdadeiras, por exemplo, ao assistirem a um programa de televisão, ao serem
interrogados, ou inclusive conversando com outras pessoas (LOFTUS apud LOPES JÚNIOR;
DI GESU, 2007, p. 63).
Nesse contexto, há que se ressaltar que falsas memórias não são a mesma coisa que
mentiras. Na primeira, a pessoa acredita veemente e de boa fé que o que lhe foi sugestionado
realmente aconteceu, independe do querer do sujeito, ao contrário do que ocorre na mentira,
onde o sujeito sabe o que está relatando, pois inventou e manipulou os fatos que descreve
(LOPES JÚNIOR, 2013, p. 677).
Portanto, a mentira é uma criação consciente e falsa pela vontade própria do agente
e, pode ocorrer por pressão social, ou seja, alguém forçar a pessoa a mentir. Já as falsas
memórias são criadas inconscientemente pela própria memória do agente, seja de forma
espontânea ou de forma sugerida, isto é, ocorre uma confusão de lembranças ou uma
interferência de uma lembrança que não é da própria pessoa em sua memória. (DI GESU,
2014, p. 137).
Nesse viés, há quatro teorias que explicam os mecanismos responsáveis pela
ocorrência das falsas memórias: Teoria Construtivista, Teoria dos Esquemas, Teoria do
Monitoramento e a Teoria do Traço Difuso.
As duas primeiras teorias estão englobadas dentro do Paradigma Construtivista, o
qual entende a memória “como um sistema único que vai sendo construído a partir da
interpretação que as pessoas fazem dos eventos.” (NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 27).
Sendo assim, para a Teoria Construtivista as novas informações são unidas as
informações mais antigas que a pessoa já tem arquivada em memória, e por essa “integração
de memórias” o resultado muitas vezes é a distorção, tanto dos fatos passados quanto dos
fatos atuais, levando o individuo a ter uma falsa memória. Ou seja, o que a pessoa realmente
lembra é fruto da sua compreensão, do que ela extraiu do seu entendimento e reorganizou de
forma coerente em sua memória (NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, pp. 27-28).
Portanto, a memória, segundo esta teoria, esta incessantemente sujeita a ter
interferências e que, portanto, as falsas memórias espontâneas e as falsas memórias sugeridas
“ocorreriam devido ao fato de eventos realmente vividos serem influenciado pelas inferências
de cada indivíduo, ou seja, interpretações baseadas em experiências e conhecimentos pré-
vivos.”, isto é, o que fica do fato vivenciado são a interpretação e o entendimento que a
pessoa teve da situação, registrando essa concepção na memória e tendo isso por lembrança
(NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, pp. 28-29).
Entretanto, como explica Cristina Di Gesu (2014, p. 138) houve crítica a essa teoria
“justamente no fato de que somente uma memória é construída sobre a experiência, bem
como no fato de entender por perdidas as informações literais durante o processo de
interpretação da informação.”.
No que tange a Teoria dos Esquemas, ela se assemelha muito a Teoria Construtivista,
todavia ela defende que a memória é criada a partir de esquemas mentais, os quais, por sua
vez, são como informações pré-existentes na mente e que quando uma nova informação entra
ela é direcionada a um esquema que a defina, fazendo com que haja a compreensão e o
entendimento da situação vivenciada (NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, pp. 28-29).
Nesse passo, para a Teoria dos Esquemas as falsas memórias espontâneas e sugeridas
ocorrem devido ao redirecionamento errado das novas informações que entram na memória,
ou seja, quando uma informação nova chega à memória ela é interpretada segundo os
esquemas que já estão fixados nela. Após essa interpretação, a informação recém-chegada
será agregada ao esquema que corresponde sua categoria e, é nesse processo que ocorre o
“erro” e se geram as falsas memórias. (NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 29).
A crítica recebida por essa teoria, também foi nos mesmos moldes daquela da Teoria
Construtivista, ou seja, quanto ao entendimento de ser unitária a memória, e que “esse caráter
construtivo da memória pressupõe que as informações específicas dos eventos não existiriam
mais, apenas o entendimento e a interpretação que foi feita dela tendo por base os esquemas
mentais.” (NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 30).
Por sua vez, a Teoria do Monitoramento da Fonte, explica que “a fonte de uma
informação refere-se ao local, pessoa ou situação de onde ela provém.” (IRIGONHÊ, 2014, p.
48).
Essa teoria tem por objetivo julgar a diferença entre a fonte da memória verdadeira e
outras fontes, podendo ser estas últimas internas, como por exemplo, as emoções da pessoa,
seus pensamentos, sentimentos e imagens de que se lembra, ou externas, como fatos
vivenciados pelo sujeito, por exemplo. Deste modo, uma vez que, por um descuido apenas, a
pessoa deixa de monitorar a fonte, informações novas se confundem com outras já vividas, ou
até mesmo com sentimentos, pensamentos, ocasionando assim, as falsas memórias
(NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 31).
Por essa razão, ressaltasse que:

A possibilidade de discrimar a fonte da informação lembrada também é suscetível à


interferência da sugestão de falsa informação, tanto acidental quanto deliberada.
Nesses casos, a recuperação precisa da informação é influenciada por informações
geradas antes, durante ou após este evento. A recuperação errônea da fonte de
informação está vinculada à incorporação de múltiplas fontes [...] que distorcem e
atualizam a memória para a informação original (NEUFELD; BRUST; STEIN,
2010, p. 32).

Ou seja, no momento de monitorar e diferenciar o que é memória verdadeira e o que


não é, a pessoa pode acabar sendo influenciada e gerando uma falsa memória, confundindo e
misturando mais as memórias reais das irreais.
A principal crítica recebida, conforme elucida Marcia de Moura Irigonhê (2014, p.
49) “é a de não enfrentar a questão das distorções da memória, atribuindo sua falsidade
apenas a um erro de decisão a respeito da fonte de origem de uma informação.”.
A última teoria é a Teoria do Traço Difuso, a qual trabalha com a ideia de ser a
memória composta por múltiplos traços e não unitária, explicando que existem, portanto, dois
sistemas: a memória literal e a memória de essência (DI GESU, 2014, p.139).
A memória literal tem a função de armazenar detalhes específicos e superficiais
sobre algum acontecimento, já a memória de essência registra a compreensão do que
significou algum evento (DI GESU, 2014, p.140).
Assim “para a TTD a memória não é um sistema unitário e sim composta por dois
sistemas, nos quais o armazenamento e a recuperação das duas memórias são dissociados.”
(NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 34).
Portanto, conforme a tese defendida por essa teoria:

As FM espontâneas referem-se a um erro de lembrar algo que é consistente com a


essência do que foi vivido, mas que na verdade não ocorreu. Já as FM sugeridas são
erros de memória que surgem a partir de uma falsa informação que é apresentada
após o evento. Assim, adultos e crianças podem lembrar coisas que de fato não
ocorreram baseados na recuperação de um FM espontânea ou sugerida (NEUFELD;
BRUST; STEIN, 2010, p. 34).
Deste modo, compreende-se que as falsas memórias espontâneas tem sua “fonte” na
memória de essência, e as falsas memórias sugeridas, na memória literal, porém não sendo
regra.
Para tanto, existem cinco princípios que melhor elucidam essa teoria.
O primeiro e o segundo princípios estão ligados, pois se completam em suas ideias.
Eles colocam que as memórias de essência e literal são geradas a partir do mesmo evento e
processadas de forma paralela em seu armazenamento e independente na sua recuperação
(NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, pp. 34-35).
O terceiro princípio diz respeito ao julgamento dos eventos quando eles são
recordados ou reconhecidos, ou seja, “traços literais são recuperados corretamente por um
processo de julgamento da identidade da informação, induzindo a uma rejeição da informação
de essência.” (NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 35).
O quarto princípio faz uma comparação acerca da conservação e permanência na
memória dos traços de essência e os literais, sendo que os últimos permanecem menos na
memória, ficando mais suscetíveis a interferências, enquanto que os primeiros duram mais na
memória, se mantem nela ao longo do tempo (NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 36).
O quinto princípio versa sobre a habilidade das pessoas na recuperação de traços de
memória, isto é “as memórias, tanto para traços literais como para traços de essência, são
aperfeiçoadas ao longo do desenvolvimento”, e por isso a recuperação de uma memória fica
mais fácil na fase adulta do que na fase infantil (NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 36).
Apesar de essa teoria trazer princípios e uma visão diferente a respeito da memória
comparada as outras teorias, ela foi alvo de críticas, pois primeiramente divide a memória em
traços, e não explica as falhas no julgamento de fontes de experiências distintas, ocasionando
choque entre seus próprios princípios (DI GESU, 2014, p. 141).
Compreende-se de todo o exposto que “as FM são hoje reconhecidas como um
fenômeno que se materializa no dia a dia das pessoas, têm sua base no funcionamento
saudável da memória e não são a expressão de patologia ou distúrbio.” (NEUFELD; BRUST;
STEIN, 2010, p. 37).
Nesse viés, resta claro que as falsas memórias não são algum tipo de doença mental,
e sim algo que acontece espontaneamente ou sugeridamente na memória do indivíduo,
podendo ser mais visualizadas em algumas pessoas do que em outras.
3. Em quem as falsas memórias são mais visualizadas

Tendo em vista que foi superado o paradigma de que a memória humana funciona
como uma gravadora, registrando com detalhes específicos todo o evento vivenciado e com a
possibilidade de vê-lo e revê-lo na íntegra como realmente aconteceu, deve-se atentar então,
ao fato de que algumas pessoas são mais suscetíveis à ocorrência de falsas memórias,
principalmente no que tange às sugeridas, uma vez que elas não agem de maneiras iguais em
todos os indivíduos, pois cada sujeito possui características fisiológicas e emocionais distintas
(BARBOSA; ÀVILA; FEIX; GRASSI-OLIVEIRA, 2010, p. 133).
Assim, as fases do desenvolvimento humano marcam os fatores individuais de cada
pessoa, marcam sua individualidade, e a sua idade exerce uma influência muito grande sobre
a sua memória, bem como suas emoções, seus traumas e medos (BARBOSA; ÀVILA; FEIX;
GRASSI-OLIVEIRA, 2010, p. 135).
Partindo desse pressuposto, cabe enfatizar que dentre os indivíduos que são mais
propícios à ocorrência das falsas memórias, estão aqueles que sofreram algum tipo trauma ou
alguma falha de memória (LOPES JÚNIOR; DI GESU, 2006, p.64).
Nesse sentido, Paulina Cymrot (2010, p. 339) explica que “certos acontecimentos,
fatos traumáticos [...], podem servir para comprovar uma fantasia do sujeito e para que ele a
torne poderosamente real e justifique suas ações.”.
Entende-se então, que o sujeito ao cometer um crime, pode justificar tê-lo cometido,
pois em sua infância, ou até mesmo em sua vida adulta, lhe fizeram o mesmo.
Porém, “quem sofreu, foi ofendido, torturado não precisaria criar mentiras, se
desculpar, ser castigado; mas a vergonha, o sofrimento vivido contribui para as alterações de
suas histórias.”, ou seja, as vítimas também acabam alterando sua memória em virtude do
trauma sofrido (CYMROT, 2010, p. 342).
Portanto, ambas as situações acima narradas, caracterizam a ação das falsas
memórias espontâneas, uma vez que ocorrem de forma endógena no processo mnemônico,
sem o querer da pessoa que está sob sua influência.
Nessa senda, observa-se que a emoção compromete a memória, tanto em adultos
como em crianças, porém, a lembrança de um evento cuja carga emocional foi intensa, será
mais vívida do que um acontecimento neutro, independentemente de ser positivo ou negativo
(WELTER; FEIX, 2010, p. 163).
Contudo, as crianças são capazes de lembrar e narrar, por períodos de tempo maiores
que os adultos, informações de um acontecimento agradável ou estressante (WELTER; FEIX,
2010, p. 163).
No entanto, “recordar maior quantidade de informações emocionais não é garantia de
recordação confiável e precisa. [...] nossa capacidade de recordação pode ser influenciada e
distorcida por fatores relativos ao contexto externo.” (WELTER; FEIX, 2010, p. 166).
Nesse passo, em se tratando da sugestionabilidade da memória, em pesquisas feitas
“as crianças foram historicamente avaliadas como mais vulneráveis à sugestão, pois a
tendência infantil é justamente a de corresponder às expectativas do que deveria acontecer,
bem como às expectativas do adulto entrevistador.” (LOPES JÚNIOR; DI GESU, 2006, p.
64).
A sugestionabilidade, por sua vez, nada mais é de que uma pessoa, de forma
intencional ou acidental, incorporar na memória de outra pessoa, fatos externos a ela, ou seja,
que não fazem parte das suas lembranças pessoais (WELTER; FEIX, 2010, p.167).
Nas crianças, por óbvio, seu psicológico ainda está em formação, o que as leva por si
só, ser facilmente induzidas a erro, fazendo com que misturem fantasia com realidade,
alterando significativamente suas memórias (LOPES JÚNIOR, 2013, p. 684).
Considerando-se, portanto, a diferença entre a memória de um adulto e de uma
criança,

esse dado deve ser levado em consideração desde situações corriqueiras, como ouvir
o relato do dia dela na escola, até em casos especiais, como em depoimentos
jurídicos. A memória das crianças é confiável, desde que sejam usados métodos
adequados naquelas situações em que se deseja ter acesso à recordações sobre
determinada situação (BARBOSA; ÀVILA; FEIX; GRASSI-OLIVEIRA, 2010, p.
138).

Por essa razão, “a questão da exatidão da memória infantil requer a análise das
características individuais da criança e, também, das vulnerabilidades físicas e psíquicas
inerentes ao seu peculiar processo de recordação.” (FLECH, 2012, p. 77).
A partir disso então, cabe sopesar que a memória da criança varia a cada fase infantil,
ou seja, no período dos 2 aos 3 anos de vida, as lembranças dessa etapa serão inacessíveis
com o passar da infância e principalmente em sua idade adulta, ao que eles chamam de
amnésia infantil, que nada mais é que um adulto não conseguir lembrar as vivências
autobiográficas desse momento inicial de sua vida (WELTER; FEIX, 2010, p. 161).
Todavia, as memórias autobiográficas, segundo a perspectiva sociolinguística,
podem ser recordadas, pois se formam principalmente dentro de um contexto de interação
social, sendo mais comum dentro da própria família da criança, em conversas com seus pais,
os quais exercem uma função determinante, uma vez que a partir do que eles explicam e
relatam um acontecimento, o infante vai construindo sua interpretação, porém ela é baseada
na informação dada por seus genitores. Assim, elas aprendem com eles, como se lembrar de
fatos, o que recordar e como organizar e narrar posteriormente um evento (WELTER; FEIX,
2010, p. 161).
Outrossim “crianças em idade pré-escolar são mais sugestionáveis do que crianças
mais velhas, adolescentes ou adultos.” (WELTER; FEIX, 2010, p. 168), em especial por
serem mais vulneráveis nessa fase e, também, por três fatores:

1. crianças pequenas têm dificuldades em tarefas de recordação livre quando são


solicitadas a lembrarem um evento, sem qualquer estímulo ou pista; 2. crianças
pequenas são deferentes, tendendo a respeitar e se submeter às vontades dos adultos;
3. as crianças possuem dificuldades em identificar a fonte da informação recordada,
se foi algo que elas viram ou que ouviram alguém dizer, por exemplo. (WELTER;
FEIX, 2010, p. 169).

Destarte, verifica-se que a criança nessas idades – de 4 a 6 anos – tende a não ter uma
memória legítima sobre determinado fato, pois seu sistema cognitivo ainda está se formando,
e pelas variáveis vistas acima, sua recordação pode ser espontânea e isso não quer dizer que
não seja verdadeira, mas pode ser fruto de seu imaginário, bem como ela pode ser sugerida,
ou por meio do próprio entrevistador, com perguntas fechadas (sim e não), ou pelos próprios
familiares, que passam ao infante sua visão do acontecimento, induzindo-os a acreditar no que
aquele lhes relata (WELTER; FEIX, 2010, pp. 169-170).
Essas distorções ocorrem devido ao fato da dificuldade que as crianças tem de
identificar a origem de suas lembranças, uma vez que o monitoramento da fonte está se
desenvolvendo nesse período ainda, contribuindo para que a memória infantil fique suscetível
à sugestionabilidade, fazendo com que a criança tenha memórias falsas (WELTER; FEIX,
2010, p. 171).
De outra banda, existem características pessoais, ou seja, inerente a uma criança, que
a levam gerar mais facilmente falsas memórias, do que a outras crianças que tem outras
particularidades. Assim, crianças com uma aptidão verbal e linguística mais elevadas,
mostram-se menos suscetíveis a sugestões do que crianças com tais características menos
desenvolvidas (FLECH, 2012, p. 81).
Outrossim, a capacidade de cada criança de enfrentar situações de forte emoção,
também é algo peculiar de cada uma. Assim:

o coping é um conceito complexo que diz respeito à capacidade da criança de lidar


com situações de estresse por meio da regulação e modulação das emoções, tanto no
momento que transcorre o episodio estressante quanto depois da sua ocorrência. O
modo de lidar com situações com elevados níveis de estresse tem sido apontado em
diversos estudos como um dos fatores que afetam a capacidade de uma criança
recordar um evento. (WELTER; FEIX, 2010, p. 172, grifo do autor).

Além disso, ao se deparar com certa pessoa, objeto ou situação, a criança tende a
fazer analogia com algo já visto ou vivenciado anteriormente por ela. Ela busca assemelhar o
que acontece no momento com algo passado. Isso faz com que ela analise um todo, num
contexto, trazendo uma percepção total e não apenas do atual (DI GESU, 2014, p. 148).
A Apelação Crime nº 70017367020, julgada em 27/12/2006 pela 5ª Câmara Criminal
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul3, ilustra o exposto acima. Nessa Apelação, os
eméritos julgadores mantiveram a absolvição do réu, ora padrinho da suposta vítima, pelo
crime de atentado violento ao pudor. As acusações tiveram início em certa noite em que a
menina, na época com 8 anos, assistia com a sua mãe ao programa televisivo Globo Repórter,
no qual passava reportagens sobre abusos sexuais contra crianças. A suposta vítima ficou
impressionada, em específico, com a passagem de uma das reportagens que contava sobre um
pai que engravidou a filha e vivia normalmente com ela na mesma residência. A partir daí,
extremamente nervosa e chorando diz para a mãe que não queria engravidar, ao mesmo passo
em que esta pergunta se alguém a tocou, ao que a filha responde que sim, acusando seu
padrinho de tê-la beijado e feito carícias quando ia à sua casa. A menina antes de depor em
juízo, contou o fato a uma delegada em sua casa, a uma psicóloga, aos policiais na Delegacia
de Polícia. Ressalta-se que houve intervalos significativos de tempo entre um relato e outro.
Enfim, em juízo, ficou claro que toda essa situação não passou de um mal entendido e
fantasias do psicológico da própria menina, uma vez que, em depoimento, alegou que na
creche que frequentava, ela e as colegas já haviam insinuado comportamentos sexuais, bem
como em sua própria casa, já havia visto seu pai nu e por diversas vezes, como confirmado
pela mãe, beijado – por carinho – o irmão na boca. Restou comprovado que o padrinho raras
vezes esteve em casa quando a menina a frequentava e que geralmente a madrinha a
convidava para ir lá justamente quando o suposto agressor estava viajando.

3
O referido exemplo cita uma jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande Sul, pois o
presente trabalho desenvolve-se no Estado de sua jurisdição. Pretende-se assim, aproximar o estudo do presente
trabalho com a realidade da Justiça Gaúcha.
Outro exemplo de situação em que se observou a ocorrência das falsas memórias nas
crianças foi o Caso da Escola Base de São Paulo no ano de 19944. Sucintamente, esse
paradigmático caso teve seu início quando duas mães de dois alunos da referida escola,
noticiaram à autoridade policial que seus filhos foram vítimas de abuso sexual pelos donos da
mesma e seus sócios. A investigação toda não durou três meses, e acabou sendo determinado
o arquivamento do inquérito por insuficiência de provas. Todavia, toda a preocupação iniciou
em casa, quando uma das crianças supostamente abusadas, e na data do fato com 4 anos de
idade, sentou na barriga da mãe no quarto e começou a se movimentar pedindo se era assim
que homens faziam com mulheres. Obviamente a mãe apavorada começou a interrogar-lhe, e
ele lhe respondeu que havia visto isso em um videocassete, sendo que o pai negou tê-lo
levado a alguma videolocadora na sessão de filmes pornográficos. No fim, a mãe saiu do
“interrogatório” afirmando que seu filho tinha assistido a uma fita pornográfica na casa de um
colega, descrevendo o lugar, muito parecido por sinal, com um motel e, que chegavam até lá
de Kombi, sendo os atos praticados pelo dono, pelo motorista do veículo e pelos pais de desse
colega que ele frequentou a casa. A partir daí, essa mãe procurou a outra, pois nas perguntas a
seu filho ainda ele mencionou que outras crianças haviam participado das orgias, sendo uma
delas filha dessa mãe que foi procurada. Após relatar o ocorrido, a mãe interrogou também
sua filha, de maneira sugestiva, sendo que ela correspondeu as suas expectativas, e
imaginando muito mais coisas como que havia ido à casa do mesmo outro colega dez vezes.
Assim, o fato foi levado à Delegacia de Polícia, que imediatamente solicitou exame de corpo
de delito. O resultado preliminar vindo do IML constatou lesões no ânus do menino, que
serviu como “prova cabal” para o delegado tomar atitudes mais severas no caso. Todavia, em
mandados de busca e apreensão na escola e nas casas dos suspeitos nenhum material para uma
incriminação robusta fora encontrado. Os supostos abusadores foram à Delegacia esclarecer o
que estava acontecendo, porém não foram sequer ouvidos. Além de todo terror vivido pelos
envolvidos no caso, as mães não satisfeitas, recorreram a imprensa para que esta publicasse o
caso. Antes mesmo de “fatos novos” chegarem a autoridade policial, a imprensa já havia
divulgado. As crianças eram entrevistadas pelos repórteres sem nenhum filtro, com perguntas
altamente sugestivas. Um homem americano foi preso suspeito de envolvimento com os
abusos. Todo esse cenário desesperador, no fim, não passou de um grande e escandaloso
engano. Exames com dois médicos comprovaram que as lesões no ânus do garoto poderiam
ser por verminoses ou fezes endurecidas. Em atendimento psicológico feito a mãe do menino,

4
Cita-se o mencionado caso por sua dimensão em nível nacional e por ser conhecido como o maior e mais
emblemático caso de falsas memórias para os doutrinadores e pesquisadores nessa área no Brasil.
a psicóloga declarou que a mesma pôs suas frustações emocionais e sexuais na criança e que
chantageou a mesma para que lhe contasse o que havia ocorrido. O americano foi solto, pois
não tinha nenhuma ligação com o caso. Finalmente, após uma investigação fraca e mal
conduzida, em pouco espaço de tempo, com danos de ordem material e emocional a todos os
envolvidos, com a interferência assídua da mídia e da comoção social, foi determinado o
arquivamento do inquérito (DI GESU, 2014, pp. 208/220).
Diante dos casos acimas relatados, atenta-se a duas situações: primeira, a fragilidade
da memória infantil e, segunda, a importância da memória da criança dentro de um cenário
processual.
A primeira está diretamente relacionada com o desenvolvimento do infante, que por
si só, já explica sua alta sugestionabilidade. Quanto à segunda, a preocupação se dá pelo fato
de que crianças que depõem em juízo estão ali para relembrar e relatar acontecimentos
constrangedores e experiências traumáticas de suas vidas íntimas, se não, não estariam em tal
lugar. Por isso a importância dada em saber o quanto uma criança consegue lembrar-se do
evento e quão precisa é essa lembrança (WELTER; FEIX, 2010, pp. 158-159).
Nessa senda, percebe-se a importância de analisar no contexto do depoimento de
uma criança, se o que ela relata corresponde fielmente ao fato narrado, uma vez que sua
memória é facilmente vulnerável, abrindo margem a sugestionabilidade por parte de um
terceiro, seja ele seu pai ou mãe, ou até mesmo a pessoa que o entrevista pela maneira que faz
as perguntas (WELTER; FEIX, 2010, p. 159).
Outrossim, elas tendem a colaborar com o adulto que lhes fazem perguntas e poucas
vezes irão responder que não sabem, pois por uma questão de respeito, hierarquia e até medo,
elas são deferentes com o adulto que lhes intercedem (LOPES JÚNIOR; DI GESU, 2006, p.
65).
Considerando-se não tão somente as inquirições em âmbito processual, e sim as que
ocorrem antes de chegar ao judiciário algum fato envolvendo o infante, Osnilda Pisa (2006, p.
22) atenta a seguinte situação:

O testemunho infantil pode ser verdadeiro ou falso. O testemunho verdadeiro


corresponde a uma memória verdadeira, ou seja, o relato é fiel ao fato vivenciado ou
testemunhado. Diz respeito à exatidão entre o fato ocorrido e aquele relatado. Por
outro lado, o testemunho falso pode decorrer de distorção proposital dos fatos
(mentira) ou de distorção da memória (falsas memórias). A criança mente quando
lembra o que realmente aconteceu, porém, conscientemente distorce a informação,
seja por desejo de vingança, punição ou, ainda, mediante coação de terceiros,
especialmente dos próprios pais. Ao contrário, no caso de distorção da memória, o
testemunho é falso, mas a criança acredita estar dizendo a verdade.
Deste modo, percebe-se que as crianças ao serem interrogadas, seja em sede
inquisitorial, em sede de juízo ou em suas casas, estão propensas à sugestão adulta,
principalmente tratando-se de seus pais ou familiares, pois além de tentarem corresponder às
suas expectativas, não raras vezes são induzidas por eles a terem memórias que não são suas,
ou seja, muitas lembranças que a criança tem, não são suas e foram criadas espontaneamente
em sua memória, imaginadas endogenamente e que relatadas ao familiar, este acaba por
“ajudar” a criança a imaginar muito mais coisas que nunca ocorreram. Isso acontece, pois os
pais, os familiares do infante, tem um elo naturalmente forte com ele, e por questão de
confiança, respeito e hierarquia, ele jamais irá imaginar que seu ente querido esteja lhe
fazendo perguntas com intuito de lhe prejudicar, da mesma maneira que o adulto, por vezes,
também não tenha a intenção de prejudicar a criança, achando ainda que está ajudando-a.
Entretanto, existe a possibilidade de que as perguntas feitas pelo familiar a criança
sejam sugestivas e intencionais, buscando a inserção de uma falsa informação na memória da
criança e usando-a como meio de prejudicar outra pessoa. Assim, tendo em vista ser a criança
mais suscetível aos efeitos da sugestão, bem como confiar naturalmente em seu familiar, ela
gera, sem saber, uma falsa memória, e esta por sua vez, é mais difícil de ser esquecida do que
uma memória verdadeira, pois aquela foi criada e geralmente é relatada e relembrada
repetidas vezes. Além disso, a sugestão tornando-se uma falsa memória, causa na criança
danos psíquicos, pois ela acredita que a falsa memória é uma memória verdadeira, isto é, que
o fato inventado pelo adulto e inserido na sua memória aconteceu verdadeiramente, indo ao
extremo de ser-lhe inserida uma memória de um abuso sexual que nunca ocorreu (WELTER;
FEIX, 2010, p. 178).
Assim sendo, ressalta-se a tamanha delicadeza que se deve ter ao fazer perguntas às
crianças, pois automaticamente está se acessando suas memórias, que podem ser distorcidas
de forma espontânea ou de forma sugerida. Diante disso, o ponto preocupante é quando as
falsas memórias sugeridas advêm de falsas informações inseridas na memória da criança em
âmbito familiar, através de seu pai ou sua mãe, podendo ser de maneira intencional ou não.
Sendo intencional, atenta-se ao fato de que um dos genitores possa estar tentando, através de
seu filho, prejudicar direito de outrem, que não raras vezes é outro genitor da criança,
acarretando além das falsas memórias no infante, uma alienação parental.
CONCLUSÃO

É possível concluir, ao menos minimamente, uma vez que este assunto ainda não está
encerrado, longe disto, é um objeto para um desenvolvimento praticamente constante dos
pesquisadores, doutrinadores e aplicadores do direito, que as falsas memórias, sejam elas
decorrentes de influências externas ou da própria mente do indivíduo, tendo algo como real,
mas que na verdade é imaginário, podem ser utilizadas como provas no decorrer de um
processo penal, bem como, serem utilizadas como base para uma condenação e,
consequentemente, uma punição infundada aplicada ao réu. E se por ventura isto ocorrer,
direitos fundamentais dos cidadãos estarão sendo violados, numa insustentável punição
estatal.
Atento a esta compreensão é imprescindível o entendimento do que são as falsas
memórias para que se possam identificá-las e evitar julgamentos injustos baseados nessas
provas.
Assim, é possível afirmar que a memória é composta de registro de informações e de
lembrança, sendo que quando a memória é requisitada nem sempre será recordado todo o
evento com todos os detalhes, uma vez que o esquecimento é um fator relevante para a
sobrevivência das pessoas. As experiências são expressas por meio de lembranças, as quais
não podem ser testemunhadas, observadas, reconstruídas realmente, ou seja, impossível
verificar a realidade dos fatos valendo-se apenas do testemunho de lembranças, afinal as
lembranças são sempre fontes suspeitas.
Ademais, as falsas memórias são mais facilmente visualizadas ou inseridas nas
crianças, já que o psicológico ainda está em formação, o que as leva por si só, ser facilmente
induzidas a erro. Por isso elas tendem a colaborar com o adulto que lhes fazem perguntas e
poucas vezes irão responder que não sabem. Em função disso, ao colher o depoimento da
criança, há que se ter um cuidado especial, pois a forma como é realizada a oitiva dela é
decisivo para saber se o relato é fidedigno ao fato narrado.
Por fim, salienta-se que este trabalho corresponde a pesquisa que deverá ser
finalizada ao final do ano, no intuito de demonstrar a influência das falsas memórias em casos
de alienação parental naqueles processos penais que busquem a punição pelo delito de abuso
sexual, sendo assim, não cabe tecer conclusões finais, mas realizar algumas ponderações e
alcançar conhecimentos para a busca de processos penais e, consequentemente, punições
corretas, onde o sistema penal possa se valer da utilização de provas baseadas em
depoimentos e/ou testemunhos de memórias que realmente tenham acontecido.
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