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UNIRITTER LAW JOURNAL, Porto Alegre, n.

2, 2° semestre 2015 – ISSN 2447-1771

A IMPLANTAÇÃO DE FALSAS MEMÓRIAS EM CRIANÇAS SUPOSTAMENTE


VÍTIMAS DE ABUSO SEXUAL E TÉCNICAS DE MINIMIZAÇÃO DA
SUGESTIONABILIDADE.

Monique Isis Moehlecke Padilha1

RESUMO

Tendo como base estudos que comprovam a existência de falsas memórias, envolvendo vítimas e
testemunhas de crimes no âmbito do processo penal, mais especificamente em delitos de abuso sexual, e
que estas são mais suscetíveis a crianças, uma vez que influenciam em lembranças de experiências que de
fato não ocorrerão, levando-as ao erro ao serem inqueridas, busca-se demonstrar de que formas ocorrem a
sugestionabilidade, bem como técnicas que pretendem mitigar informações errôneas, obtendo-se, contudo,
a verossimilhança dos fatos narrados.

Palavras chave: Falsas memórias. Crianças. Sugestionabilidade. Minimização.

ABSTRACT

The present study is based on studies that confirm the existence of false memories from witnesses and
victims of crimes, more specifically children who suffer sexual abuse, since these are more susceptible to
these type of memories, which influence in the remembering of experiences that might not have occurred.
Therefore, it is presented ways that suggestibility occurs involving false memories and also the developed
techniques that try to mitigate the propelling of false information due to false memories, looking to achieve
verisimilitude to what actually happened.

Key Words: False memories. Children. Suggestibility. Mitigate.

1. Introdução

Partindo-se do pressuposto de que somos e, se ainda não, seremos vítimas de


falsas memórias, este artigo visa exemplificar, de forma sucinta, como este fenômeno,
pesquisado de forma crescente, principalmente por profissionais que estudam a psicologia
cognitiva e operadores de justiça, age no cotidiano do ser humano, e como pode
desencadear uma série de situações e novas considerações, podendo influenciar no dia a
dia, bem como, dentro de um processo criminal.

1
Artigo extraído do Trabalho “A implantação de falsas memórias em crianças supostamente vítimas de
abuso sexual e técnicas de minimização da sugestionabilidade”, aprovado para obtenção do título de
Bacharel em Direito da Laureate International Universities- Uniritter em 2015/1.

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A partir de uma abordagem interdisciplinar, através de consulta bibliográfica a
livros, artigos, monografias e dissertações de mestrado, buscou-se apresentar não somente
questões jurídicas, mas principalmente a influência de questões psicológicas nas decisões
e no referencial interno de cada indivíduo, uma vez que as falsas memórias são oriundas
destas.

Neste artigo, será apresentada a ocorrência de falsas memórias, limitando a


abrangência em crianças, especificamente àquelas vítimas ou supostamente vítimas de
abuso sexual, por sua vulnerabilidade, sendo mais suscetíveis a erros e mais
influenciáveis. Por fim, restarão demonstradas técnicas com o intuito de reduzir estas
características para que ocorra o respaldo necessário a esta situação, obtendo-se a
excelência da colheita da prova testemunhal/depoimento pessoal, com a devida extinção
da revitimização.

2. Surgimento das falsas memórias

As falsas memorias definem-se por lembranças de situações que não ocorreram


como se de fato tivessem ocorrido. Em outras palavras, Stein define que:

A mesma memória que é responsável pela nossa qualidade de vida, uma vez
que, é a partir dela que nos constituímos como indivíduos; sabemos nossa
história, reconhecemos nossos amigos, apresenta erros e distorções que podem
mudar o curso de nossas ações e reações, e ate mesmo ter implicações sobre a
vida de outras pessoas.2

Com base neste entendimento e constatação de que a memória é reconstrutiva, ou


seja, não advém de forma sequencial, mas sim de pequenas lembranças, formando,
portanto, um quebra-cabeça, desencadearam uma série de estudos científicos a fim de
abordar, estudar e compreender este fenômeno (lembrar-se de coisas que não
aconteceram), o qual foi intitulado como falsas memórias, amparado no reflexo que
podem produzir no dia a dia.
Os erros de memória foram estudados por Freud (1910/1969), ao revisar sua teoria
da repressão. Conforme essa abordagem, as memórias de eventos traumáticos da infância
seriam esquecidas, reprimidas, podendo vir à tona em algum momento ou situação da
vida adulta, através de sonhos ou sintomas de doença mental. Após, foi constatado que as

2
STEIN, Lilian Milnitsky e colaboradores. Falsas Memórias: Fundamentos científicos e suas aplicações
clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed. 2010, p. 22.

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memórias em eventos traumáticos poderiam nem sempre ser verdadeiras, sendo não
recordações de coisas que ocorreram, mas sim de um instinto primário, ou seja, um
sentimento ou fantasias de quando criança, gerando assim as falsas memórias.3
Posteriormente, estudos específicos sobre falsas memórias diziam respeito sobre
a sugestionabilidade e suas características, isto é, a possibilidade de se inserir falsos
conhecimentos à sua lembrança, recordando de acontecimentos falsos internos ou
externos, como verdadeiros.
Essas pesquisas sobre a sugestão na memória foram conduzidas por Alfred Binet
(1900), na França, o qual categorizou a sugestionabilidade da memória em dois tipos:
autossugerida, que ocorre através de processos internos da mente humana/indivíduo, e
memória deliberadamente sugerida resultante do ambiente, denominadas posteriormente
como falsas memórias espontâneas e sugeridas, respectivamente.4
Outrossim, a memória está diretamente ligada à recordação, onde Bartlett
descreveu-a “como sendo um processo reconstrutivo, baseado em esquemas mentais e no
conhecimento geral prévio da pessoa, salientando o papel da compreensão e a influência
da cultura nas lembranças”.
Desta forma, ao compreender o conceito de recordação, vinculou as situações
externas à influência na construção da memória, bem como nos próprios anseios de cada
indivíduo, no entendimento dos fatos, sugestionando diretamente nas lembranças.
Através destes estudos, entre outros vários já findados, os autores que o realizaram
observaram que a memória pode ser modificada/alterada sempre que uma informação
diferente, porém parecida com o evento original, era introduzida/ exposta ao delato dos
fatos, fazendo com que fosse alterada a resposta e a explanação do que realmente viram.
De forma que restou demonstrada que a memória é construtiva, podendo sofrer
alterações provocadas pelo próprio organismo (corpo e mente) e/ou por situações e
sensações ocorridas externamente, e que as falsas memórias podem ocorrer tanto devido
a uma distorção, quanto por uma falsa informação apresentada pelo plano externo.

3
MASSON, Jeffrey Moussaieff. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm
Fliess. Porto Alegre: Imago, 1986, p. 21.
4
STEIN, Lilian Milnitsky e colaboradores. Falsas Memórias: Fundamentos científicos e suas aplicações
clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed, 2010, p. 22.

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3. Falsas memórias em crianças e a sugestionabilidade

Os efeitos de falsas memórias no cotidiano, bem como em um processo criminal,


ocorrem para todos os indivíduos, sem distinção. Entretanto, há de se levar em
consideração este fenômeno, principalmente em crianças extremamente manipuláveis e
vulneráveis.

Diante disso, importante mencionar que crianças absorvem tudo que sentem,
ouvem, veem sendo emocionalmente abalada pelas situações a que fazem parte ou
daquelas que presenciam, estando mais acessíveis a sugestionabilidade e sofrendo e
absorvendo muito mais sentimentos e traumas ao longo da infância, refletindo para toda
a vida.
Obtendo-se plena convicção e conhecimento de que crianças possuem suas
memórias produzidas de forma diferente do adulto, produzindo falsas memórias com
maior facilidade, principalmente no que diz respeito a casos cujo envolvimento se deu
por abuso sexual, há de ser mostrado como estas ocorrem e como as mesmas podem ser
minimizadas no âmbito infantil, evitando a proliferação de casos semelhantes.
Dias conceitua o abuso sexual da seguinte forma:

O que caracteriza o abuso sexual é a falta de consentimento do menor na


relação com o adulto. A vítima é forçada fisicamente, ou coagida, verbalmente,
a participar da relação, sem ter necessariamente capacidade emocional ou
cognitiva para consentir ou julgar o que está acontecendo.5

Ou seja, o menor envolvido não sabe distinguir o evento ocorrido, não sabe
diferenciar o certo do errado, sendo vulnerável e incapaz de considerar o respectivo ato
como sendo um abuso sexual.
Diante disso, surge a indagação de como determinar se a recordação de abuso
sexual infantil é verdadeira ou esta teve induzimento das falsas memórias?
Baaddeley, Anderson e Eysenck explicam que:

As crianças pequenas geralmente têm habilidades de linguagem muito


limitadas. Isso significa que, em geral, elas não são muitos boas em comunicar

5
DIAS, Maria Berenice. A Falsa Denúncia de Abuso Sexual. 2ª ed. Ver. Ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010.

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com precisão o que conseguem se lembrar de suas vidas. Como resultado,
muitas vezes não está claro se a criança de fato entende que os eventos que ela
descreve realmente ocorreram com ela. 6

Izquierdo menciona, ainda, que “as crianças costumam acrescentar episódios


vistos num filme às memórias da vida real, incluindo, muitas vezes, detalhes referentes
àquilo que gostariam que tivesse acontecido”. 7
Desta forma, constata-se que a criança, além de não saber diferenciar e concretizar
o que vem a ser o ato (abuso sexual), ela ainda traz consigo eventos de sua imaginação,
que podem deixá-la ainda mais confusa, vulnerável e incapaz de declarar de fato o que
realmente aconteceu.
Crianças adaptam sua memória diferentemente dos adultos. Assim, o método de
interrogatório utilizado na entrevista, bem como o transcurso de tempo do ocorrido com
a colheita de informações, apesar de prejudicar a qualidade da prova também em adultos,
são consideravelmente mais devastadores nestes, justamente por sua vulnerabilidade,
enfraquecendo, por sua vez, a memória original.
A fim de demonstrar quão vulneráveis e influenciáveis as crianças são, foi
atribuído a elas, com idade de cinco e seis anos, um evento emocionalmente carregado
referente ao abuso sexual, no qual deveriam testemunhar no respectivo episódio, que
estava dividido em duas etapas: a primeira utilizando-se da sugestionabilidade do
entrevistador, e a segunda sem sugestionar (de forma neutra).

No evento inocente, um zelador chamado Chester limpava algumas bonecas e


outros brinquedos em uma sala. No evento do abuso, Chester tratou as bonecas
de maneira rude e de forma levemente abusiva. Algumas crianças foram então
questionadas por outro entrevistador que sugeriu que o zelador era inocente.
As crianças restantes foram questionadas por um entrevistador, que evitou
fazer sugestões. As crianças descreveram aos pais o que o zelador havia feito
imediatamente após a entrevista e duas semanas mais tarde. As memórias de
testemunho ocular das crianças foram, em geral, precisas quando questionadas
pelo entrevistador neutro. Entretanto, as descrições das crianças, em geral, se
conformaram às sugestões do entrevistador, quando este acusava ou defendia.
Em outras palavras, as crianças disseram que o zelador havia sido abusivo
quando o entrevistador o acusava, mas o seu comportamento foi considerado
inocente quando o entrevistador o defendia. Quando então foram feitas
perguntas neutras às crianças pelos seus pais, suas descrições do evento foram,
em geral, consistentes com o que haviam dito ao entrevistador. 8

6
ALAN, Baddeley, Michael C. Anderson & Michael W. Eysenck.Memory (Memória). Porto Alegre:
Artmed, 2009, p. 305.
7
IZQUIERDO, Ivan. Questões sobre a Memória. São Leopoldo: Unisinos, 2004. p. 57.
8
ALAN, op. cit., p. 305-307.

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Apresenta-se nítido, na pesquisa referida acima, que quando a criança possui uma
terceira pessoa que intermedia suas decisões elas se deixam influenciar, sendo facilmente
sugestionáveis. Por outro lado, aqueles assistentes que realizam os questionamentos de
forma aberta, fornecem ao menor uma segurança, transparecendo a acessibilidade para
que possam delatar o que ocorreu verdadeiramente.
Além disso, como se não bastasse toda a confusão mental que há no menor, outro
fator que influencia e agrava a sugestionabilidade é o da emoção: sentimento atuante no
menor e muito expressivo, que prejudica consideravelmente o êxito da prova testemunhal
e do respectivo depoimento pessoal, uma vez que agrava a situação vivenciada, pois já é
suficientemente constrangedora.
Isto porque, as emoções podem ser definidas como reações somáticas e cognitivas
de curta duração a antecedentes ambientais ou cognitivos, que preparam o organismo para
a ação. Assim, as emoções se diferenciam do humor, tendo em vista este último ser um
padrão estável e duradouro, não necessitando obrigatoriamente de um antecedente
determinado.
Feix define que “as reações emocionais podem ser aferidas, basicamente, através
de três niveis: comportamental (observação), fisiológico (medidas de frequência cardíaca
e pressão sanguínea) e subjetivo (escalas auto-aplicavéis)”. As emoções afetivas são
divididas em duas: valência e alerta. A primeira refere-se a carga emocional do negativo
(desprazer) ao positivo (prazer) e a segunda varia da calma à excitação. 9
Não cabe exemplificar detalhadamente todos os tipos e como eles agem
intimamente em crianças e no depoimento infantil. Entretanto, foi necessário sinalizar a
fim de contextualizar que, conforme estudos, é possível averiguar, através da emoção
transpassada pela criança, se ela foi ou não vítima das falsas memórias, e se o que está
sendo referido advém da sugestionabilidade ou faz parte dos fatos elencados (emoção
habitual por relembrar dos fatos vivenciados).
Paralela às sugestionáveis situações e informações, a incidência das falsas
memórias pode se dar por dois fatores principais: um deles é a submissão social. As

9
FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovani Kuckartz. Memória em julgamento: técnicas de
entrevista para minimizar as falsas memórias. Porto Alegre: Artmed, 2010, p. 32.

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crianças novas podem ceder à pressão social e a uma falta de apoio social, mesmo quando
sua própria evocação é exata. 10
“O outro fator é a incompetência cognitiva. Crianças novas chegam a acreditar em
seu próprio relato de memória distorcida, devido a limitações no processamento, atenção
ou linguagem.” 11
A descoberta de que uma sugestão externa pode conduzir à construção de falsas
recordações infantis ajuda a entender o processo pelo qual as falsas recordações surgem.
A informação enganosa tem o potencial de invadir as recordações quando fala-se com
outras pessoas, quando interroga-se sugestivamente ou quando lê-se ou vê-se a cobertura
da mídia sobre algum evento que entendem ter vivenciado elas mesmos.·.
É o que evidencia Lotfus ao caracterizar:

A indução da imaginação do entrevistado por oficiais ou profissionais da área


faz com que o evento imaginado torne-se mais parecido e mais pessoal,
familiar, convincente comparando o evento preparado tão somente para o
momento da entrevista para conseguir respostas as perguntas e/ou confissões
às recordações da infância em vez de ser relacionada ao ato de imaginar,
ocorrendo por não possuir a fonte da informação, pode tornar-se intensa e
distante para as experiências da infância, sendo para tanto mais uma forma e
uma das mais utilizadas erroneamente pelos operadores da justiça e de saúde
mental.12

A corroboração de um evento por outra pessoa pode ser uma técnica poderosa
para induzir a uma falsa memória. De fato, apenas afirmar ter visto uma pessoa fazendo
algo errado já é o suficiente para conduzí-la a uma falsa confissão, no caso das crianças.
Diante dos fatores suscetíveis a sugestionabilidade em crianças, restou definido
que falsas recordações são construídas combinando-se recordações verdadeiras com o
conteúdo das sugestões recebidas de outros.
Durante o processo, os indivíduos podem esquecer a fonte da informação. Este é
um exemplo clássico de confusão sobre a origem da informação, na qual o conteúdo e a
proveniência da informação estão dissociados.
Com isto, a criança torna-se confusa, não contribui para o processo criminal e o
desfecho do processo criminal pode não corresponder a verdade (formal) dos fatos.

10
ALAN, Baddeley, Michael C. Anderson & Michael W. Eysenck.Memory (Memória). Porto
Alegre:Artmed, 2009, p. 307.
11
ALAN, Baddeley, Michael C. Anderson & Michael W. Eysenck.Memory (Memória). Porto
Alegre:Artmed, 2009, p. 307.
12
LOFTUS, Elisabeth F. Creating false memories. Scientific American, 70-75. Tradução disponível
em: <www.geocities.com/athens/acropolis/6634/falsamemoria.htm>. Acesso em 03 jun. 2015, p. 5.

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Desta forma, faz-se necessário apresentar técnicas que suavizem e reduzam estes
fatores, a fim de se extrair a melhor resposta possível dos envolvidos no processo.

4. Depoimento sem dano como técnica de minimização das falsas memórias

A fim de contribuir com o curso de um processo criminal envolvendo menores,


há de ser mencionado que existem alguns procedimentos que podem ser utilizados para
reduzir lembranças erradas, ou que não existem, de fatos que não aconteceram (falsas
memórias). Cabe expor um procedimento dedicado para aplicação exclusiva com
crianças, onde tem-se a possibilidade de reduzir os danos causados.
A este procedimento foi dado a denominação de depoimento sem dano. Previsto
no projeto de Lei nº. 4.126/2004, com o objetivo de “fazer a oitiva da criança/adolescente
em um espaço próprio, protegido e especialmente projetado para o delicado momento do
depoimento infanto juvenil”.13
É um método que serve para melhorar as condições da prova testemunhal e do
interrogatório da criança e adolescente, a fim de amenizar os traumas já ocasionados em
virtude do crime vivenciado, evitar o surgimento de sugestionabilidade externa ao
envolvido, bem como o surgimento das falsas memórias.
O projeto consiste em inquerir a criança ou adolescente vítima ou testemunha de
delito sexual, em sala separada, “especialmente projetado para esse fim contendo
equipamentos próprios adequados à idade e à etapa evolutiva do depoente”, ou seja, o
depoimento não será colhido na sala de audiências.14
Ademais, a inquirição não será na presença das partes e do juiz, mas sim, realizada
através de um “profissional devidamente designado pela autoridade judiciária, o qual
transmitirá ao depoente as perguntas do juiz e das partes”. As partes que permanecerão
na sala de audiências, assim como o juiz, terão acesso através de equipamento de som e
vídeo, ou qualquer outro equipamento similar; haverá toda a degravação da entrevista,
que ficará disposta no processo, como parte integrante da ação.

13
Depoimento sem dano. Disponível em:
<http://www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/tribunal_de_justica/corregedoria_geral_da_justica/infanci
a_e_juventude/doc/Cartilha_Depoimento_Sem_Dano.pdf>.Acesso em: 30 mai. 2015.
14
DI GESU, Cristina Carla. Prova penal e falsas memórias. 2008. 354 f. Dissertação (Mestrado) –
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Direito, Porto Alegre, 2008, p. 202.

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O procedimento prevê uma medida inovadora, juntamente com a possibilidade de
a prova ser colhida antecipadamente mediante intimação do interessado para comparecer
em audiência, vedando a inquirição, exceto se autorizado judicialmente, o referido
método tem de ser precursor de uma mudança e valorização do menor envolvido.
Isto porque com o método utilizado para inquerir a vítima ou a testemunha
(criança) faz com que o infante esteja em um ambiente acolhedor e desenvolvido
exclusivamente a ele. Reduzir-se-á as falsas memórias, uma vez que as perguntas serão
abertas de forma a não comprometer o conhecimento do depoente, assim como a
revitimização, suprindo a necessidade de vários depoimentos e traumas.
Ademais, o objetivo deste projeto é reduzir os danos sofridos pelas crianças, que
ao viver uma situação de afronta aos seus direitos fundamentais, tem que relembrar
diversas vezes de uma situação que gostaria de esquecer.
Importante salientar que as supostas vítimas sentem-se influenciadas e assumem
o papel de vítimas, devido a má técnica da colheita das provas, a derradeira instrução
criminal, e a incidência das falsas memórias, Di Gesu orienta os riscos de colher o
depoimento infantil tendo em vista que:

a) as crianças não estão acostumadas a descrever fatos vivenciados por elas; b)


o transcurso do tempo prejudica na recordação, c) possuem dificuldades em
delatar o que aconteceu em casos de violência, trauma, dor e vergonha e d) a
criança muda de opinião com frequência e quase nunca diz não para agradar o
adulto entrevistador.15

Neste aspecto, a fim de sanar ou diminuir a incidência de casos que envolvem


crianças, foi criado o depoimento sem dano, com intuito de priorizar a vítima e gerar o
menor transtorno possível a todos os envolvidos.
Implantado por alguns tribunais, em especial no Rio Grande do Sul, na capital
Porto Alegre e região metropolitana, o projeto tem por finalidade casos envolvendo
menores de 18 anos, portanto, crianças e adolescentes supostamente vítimas ou
testemunhas de crimes, especialmente quando há suspeita de abuso sexual.
Neste sentido, decisões favoráveis quanto à manutenção do respectivo método
vêm consolidando o posicionamento de utilizá-lo, no sentido de dar ênfase aos direitos

15
DI GESU, Cristina Carla. Prova penal e falsas memórias. 2008. 354 f. Dissertação (Mestrado) –
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Direito, Porto Alegre, 2008, p.124.

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da criança e do adolescente, bem como, o de priorizar sua proteção, colocando em prática
a respectiva lei especial, quer seja o Estatuto da Criança e do Adolescente:

[...] Nestas condições, não se vislumbrando nenhum prejuízo pelo emprego


desta sistemática, seja à acusação, seja à defesa ou à formação do livre
convencimento do juiz, deve prevalecer aquele meio disponível que, a meu
ver, revela-se mais hábil na proteção dos direitos das crianças e adolescentes,
vítimas de abuso, e resguardo da dignidade, respeito e intimidade das mesmas.
16

O projeto baseado no Decreto Lei 99.710/90, Convenção sobre os direitos da


criança17, em seu artigo 12, descreve o direito da criança de ser ouvida em processo
judicial. O Depoimento sem Dano estabelece a inquirição especial da criança e
adolescente, em sala separada, através de psicólogo ou assistente social, que recebe as
perguntas necessárias via fone de ouvido pelo juiz, adequando-as à uma linguagem
compreensível às crianças. Todo o depoimento é filmado, transcrito e anexado ao
processo para fins de prova judicial.
O responsável pela transferência das informações será denominado de técnico, o
qual deverá ser ocupado por profissional plenamente qualificado e capacitado com todas
as informações necessárias do processo, a fim de dar suporte ao menor envolvido e não
influenciar nas respostas. Deverá ter profundos conhecimentos em psicologia evolutiva e
dinâmica do abuso sexual, deixando o infante confortável e confiante a expor o evento
ocorrido.18

16
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança n. 70013658638. Impetrante:
Ministério Público, Impetrado: Juiz de Direito da 6º Vara Criminal do Foro Central da Capital. Relator:
Desa. Fabianne Breton Baisch, Porto Alegre 12 abr. 2006. Disponível em:
<http://www.tjrs.jus.br/busca/search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php
%3Fnome_comarca%3DTribunal%2Bde%2BJusti%25E7a%26versao%3D%26versao_fonetica%3D1%2
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ator=Fabianne%20Breton%20Baisch&aba=juris>. Acesso em: 01 maio. 2015.
17
Artigo 12:1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios
juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança,
levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança. 2.
Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo
processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um
representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional.
(BRASIL, Decreto Lei 99.710/90, Convenção sobre os Direitos da criança). Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm.> Acesso em: 20 abr. 2015.
18
DOBKE, Veleda. Abuso sexual: a inquirição das crianças – uma abordagem interdisciplinar. Porto
Alegre: Ricardo Lenz, 2001, p. 46.

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Diante disso, Felix categoriza o projeto como apto a reduzir os danos, como o das
falsas memórias quando menciona que:

O projeto “Depoimento sem Dano” objetiva reduzir os danos causados à


criança e ao adolescente pelo aparato judicial, propondo, como já referido,
retirar o menor do ambiente formal de uma sala de audiências e introduzi-lo
em um ambiente lúdico onde se sinta mais a vontade para conversar sobre o
assunto. A criança, assim, será ouvida por um profissional capacitado, que
reproduzirá as perguntas realizadas pelo Juiz e pelas partes, de uma maneira
mais inteligível, podendo o infante utilizar de objetos como lápis e bonecas no
intuito de responder os questionamentos. 19

Diante disso, torna-se evidente que este projeto pode oportunizar um melhor
aproveitamento da prova, tal necessária e essencial para o deslinde do processo judicial.
Além disso, valoriza o menor envolvido em seus direitos e garantias, não causando mais
abalos e traumas, uma vez que evitará novas inquirições e, consequentemente, a
revitimização da depoente.
Ademais, o fato de o infante não precisar ficar repetindo por diversas vezes seu
depoimento, sem a intervenção de terceiros, sem exposição e constrangimentos,
acarretará no insurgimento das falsas memórias, bem como na avaliação através da
gravação, se esta existiu ou não, obtendo-se a valorização da palavra da vítima, segurança
e eficácia da vítima, que ficará cada vez mais próxima da tão almejada verdade formal.

5. Considerações finais

Tendo em vista os aspectos observados, resta evidenciado que somos o que


pensamos, através da nossa mente cumulada com o nosso organismo. De fato, é
humanamente impossível separar a razão da emoção, e o cérebro do restante do corpo,
porque um depende do outro e vice versa.
Assim, tudo o que lembramos é resultado do que aprendemos e do que guardamos
por se ter aprendido, de forma que nossa memória é dependente do conhecimento
agregado àquela situação e da importância que damos a ela, de forma que não há como

19
FELIX, Juliana Nunes. Depoimento sem dano: Evitando a revitimização de crianças e adolescentes à
luz do ordenamento jurídico pátrio. Disponível em
<http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/1383/1070.> . Acesso em: 06 jun. 2015,
p.12-13.

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recordar fidedignamente o que se aprendeu/vivenciou, uma vez que a memória é
reconstrutiva.
Ou seja, não é possível lembrar em sequência, como uma gravação de alguma
coisa. As memórias apresentam-se em flashs e por isto são tão suscetíveis a ocorrência de
falsas memórias.
Sim, falsas memórias. Sim, elas existem e estão presentes no nosso dia a dia, nos
anos que já passaram e nos que virão. São mais comuns do que imaginamos e, na medida
em que estas se misturam às memórias verdadeiras, podem e causam danos que
prejudicam sutilmente ou intensamente o envolvido, como por exemplo acusar alguém
inocente.
Através de processos e acontecimentos externos, a memória pode vir a ser influenciada
como um todo: através da visão, da emoção, da sensação, da concepção daquilo que
vivenciou, como e/ou também da sugestão de terceiros ou de novas vislumbrações, as
quais interferem na verdadeira memória.
Assim, aquilo que de fato aconteceu, passa a ser falsa memória, pois introduz-se na
memória verdadeira algo que não aconteceu, tendo como agravante o transcurso do
tempo, o qual pode atribuir novos detalhes ao caso concreto, como até mesmo diminuir
os detalhes em suas especificidades e necessidades.
Em relação aos supostos casos de abuso sexual envolvendo crianças, restou
configurado a estes indivíduos a propensão destes delitos. Uma vez que tratam-se de
indivíduos frágeis e com personalidade em criação, são vítimas muitas vezes dentro do
próprio lar, com seus próprios familiares, é imprescindível que haja mudança na
percepção do Estado, a fim de restringir e evitar estes casos, bem como de realizar o
procedimento jurisdicional (processo penal) com êxito, utilizando a prova testemunhal a
seu favor, e a favor da vítima, com o intuito de evitar maiores danos e abalos ao menor
envolvido, tão suscetível a traumas e problemas psicológicos ao longo dos anos.
Desta forma, com base nestes apontamentos, tornou-se necessário evidenciar
soluções para auxiliar na minimização dos danos e na indução de terceiros, que acabam
por implicar na sugestionabilidade junto aos envolvidos. Assim, foi sugerida, no âmbito
das crianças, tendo em vista serem vulneráveis e suscetíveis as falsas memórias e a erros
na colheita de suas provas, juntamente com a necessidade de proteção integral, atender o

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melhor interesse da criança, o depoimento sem dano, técnica atualmente empregada em
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%3D%26versao_fonetica%3D1%26tipo%3D1%26id_comarca%3D700%26num_proce
sso_mask%3D70013658638%26num_processo%3D70013658638%26codEmenta%3D
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8&lr=lang_pt&site=ementario&access=p&oe=UTF-
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