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ganização : Nanci Stancki da Luz, Marília

Gomes de Carvalho, Lindamir Salete


Casagrande.— Curitiba : UTFPR, 2009.
286 p. : Il. color. ; 21 cm

Vários autores
Inclui bibliografias
ISBN : 978-85-7014-055-5

1. Sexo – Diferenças (Educação). 2. Papel


sexual. 3. Feminismo e educação. 4.
Relações de gênero. 5. Feminismo. 6. Papel
sexual. I. Luz, Nanci Stancki da (org.). II.
Carvalho, Marília Gomes de. III.
C758
Casagrande, Lindamir Salete. II. Título.
Copyright (©)
Qualquer parte desta publicação pode ser
reproduzida, desde que citada a fonte.

Projeto gráfico (capa e diagramação): Ana


Claudia França
Impressão: Ajir Artes Gráficas e Editora

Construindo a igualdade na diversidade :


gênero e sexualidade na escola / or
306.7

Printed in Brazil/ Publicado no Brasil


Dezembro de 2009

CDD (22. ed.) 306.43


Curitiba
2009

Editora UTFPR
Cíntia de Souza Batista
Tortato

GÊNERO, EDUCAÇÃO E
ARTEFATOS
TECNOLÓGICOS: OS
DIFERENTES MEIOS
PARA ENSINAR
Solange Ferreira dos Santos e
Benedito Guilherme Falcão
Farias

UM OLHAR CRÍTICO
PARA OS LIVROS
1 DIDÁTICOS: UMA
ANÁLISE SOB A
PERSPECTIVA DE
SEXUALIDADE E GÊNERO Lindamir Salete
23 GÊNERO NA ESCOLA
Beatriz L. Ferreira e Nanci
Casagrande e Marília Gomes
de Carvalho
Stancki da Luz

456 VIOLÊNCIA CONTRA A


MULHER: UM DESAFIO À
CONCRETIZAÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS

Sumário
11

21

APRESENTAÇÃO 33
Nanci Stancki da Luz
Marília Gomes de Carvalho
Lindamir Salete Casagrande
47
GÊNERO:
CONSIDERAÇÕES
SOBRE O CONCEITO
Marília Gomes de Carvalho e 73
Cíntia de Souza Batista
Tortato

Nanci Stancki da Luz


91
QUESTÕES DE GÊNERO
E DIVERSIDADE SEXUAL:
AS POSSIBILIDADES DA
LITERATURA INFANTIL 109
7 133
CIÊNCIA E TECNOLOGIA SOB A ÓTICA DE GÊNERO
Maria Aparecida Fleury Costa Spanger, Tânia Rosa F. Cascaes e
Marília Gomes de Carvalho

8 DIREITOS SEXUAIS E
REPRODUTIVOS: A
REPRODUÇÃO, A
SEXUALIDADE E AS
9 POLÍTICAS Marlene
Tamanini

HOMOFOBIA E A ESCOLA

10 11

12 13
DIVISÃO SEXUAL DO
TRABALHO E
PROFISSÕES
CIENTÍFICAS E
TECNOLÓGICAS NO
BRASIL

Lindamir Salete Casagrande,


Nanci Stancki da Luz Marília Gomes de Carvalho e
Nanci Stancki da Luz

REPRESENTAÇÕES DE
GÊNERO NA CIÊNCIA, Toni Reis SOBRE AS AUTORAS E
TECNOLOGIA E AUTORES
SOCIEDADE, MEDIADAS
PELA PUBLICIDADE
151 171
“O OLHAR NÃO É MAIS O
Maristela Mitsuko Ono, MESMO”: UMA ANÁLISE
Luciana Martha Silveira e SOBRE OS RESULTADOS
Ronaldo de Oliveira Corrêa
DE UM CURSO SOBRE
GÊNERO E
SEXUALIDADE NA
ESCOLA
193 209

247 261

DESAFIOS E AVANÇOS
NAS POLÍTICAS
PÚBLICAS DE GÊNERO
Nanci Stancki da Luz
283
nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande

APRESENTAÇÃO

Nanci Stancki da Luz


Marília Gomes de Carvalho
Lindamir Salete Casagrande

Este livro é resultado do Projeto “Construindo a igualdade na


escola: re pensando conceitos e preconceitos de gênero”,
realizado durante o ano de 2008, na Universidade Tecnológica
Federal do Paraná (UTFPR), por inter médio do Grupo de Estudos
de Relações de Gênero e Tecnologia (GeTec) do Programa de
Pós-graduação em Tecnologia (PPGTE) em parceria com a Secre
taria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do
Ministério da Educação (Secad/MEC).
O objetivo do projeto era contribuir para a formação de pro
ssionais de educação de Curitiba e região metropolitana na
temática “gênero, sexu alidade e diversidade sexual na escola”.
Nesse sentido, foram desenvolvidas várias ações, entre as quais
a oferta de cursos de formação continuada, com duração de 60
horas cada, visando sensibilizar pro ssionais da educação –
professores e professoras do Ensino Fundamental e Médio,
pessoal técnico
administrativo, inspetoras(es), merendeiras(os), pedagogos, entre
outros – preparando-os(as) para perceber e trabalhar com
questões de gênero e diversidade sexual no ambiente escolar.
O projeto tinha como meta inicial a capacitação de 160 pro
ssionais, no entanto, devido à enorme demanda, além das 4
turmas previstas inicial mente, foram abertas mais vagas e turmas,
possibilitando que 328 pro ssio nais da educação participassem
desse processo de formação que procurou:

• Oportunizar o acesso a um referencial teórico que discuta


con ceitos como igualdade de gênero, homofobia, sexismo e
diversi dade sexual.

11
apresentação
• Provocar reflexões críticas entre os profissionais da
educação a respeito da construção dicotômica de gênero
em nossa socie dade e suas conseqüências quanto à
discriminação e preconcei tos.
• Sensibilizar profissionais da educação das escolas-alvo do
pro jeto para a modi cação de estereótipos de gênero que
geram comportamentos discriminatórios.
• Auxiliar docentes na utilização crítica do material didático
em sala de aula quanto aos conteúdos de gênero que
provocam a invisibilidade histórica das mulheres na
construção da socieda de brasileira, da ciência e da
tecnologia; a reprodução dos pa drões tradicionais,
conservadores e discriminatórios de gênero que refletem na
linguagem escrita e visual.
• Problematizar questões como a violência de gênero,
enfati zando a violência contra as mulheres, a violência
doméstica e violência contra homossexuais.
• Discutir juntamente com profissionais da educação a
definição de pro ssões “masculinas” ou “femininas” e o
conseqüente dire cionamento e/ou enquadramento dos
alunos em determinadas pro ssões (geralmente de
conteúdos técnicos) e das alunas em pro ssões de
conteúdos voltados às ciências humanas e às ar tes.
• Problematizar juntamente com profissionais da educação
comportamentos homofóbicos na sociedade em geral e na
es cola em particular e suas conseqüências na exclusão de
pessoas que não seguem os padrões hegemônicos de
gênero.
• Repensar em parceria com profissionais da educação
formas de inclusão no processo de escolarização
daqueles(as) que eva dem ou nem ingressam nas escolas
por fatores de discriminação de gênero.
• Contribuir para a reflexão da importância da promoção da
eqüidade de gênero e para a reflexão sobre os direitos
sexuais e reprodutivos de jovens e adolescentes.

12
nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande

O curso propunha-se a refletir sobre a realidade escolar e


sobre questões que inviabilizam a construção da igualdade na
escola, sendo composto por quatro módulos que abordaram os
seguintes temas:
• Módulo 1– Gênero: construção social do masculino e do
femini no; sexualidade: problematização da
heterossexualidade norma tiva e diversidade sexual;
violência de gênero.
• Módulo 2 – Gênero e diversidade sexual no ambiente
escolar: livros didáticos; espaço escolar, intervalos e datas
comemorativas; currículo explícito e oculto.
• Módulo 3 – Gênero, ciência e tecnologia: gênero e
escolha de uma pro ssão; as disciplinas escolares; acesso,
produção e uso de tecnologias; gênero e mídia – cinema,
imprensa escrita, músicas, Internet, teatro, publicidade,
entre outros.
• Módulo 4 – Eqüidade de gênero e enfrentamento ao
sexismo e homofobia: direitos sexuais e reprodutivos;
políticas públicas, particularmente as educacionais,
voltadas para a promoção da eqüidade de gênero; ações e
propostas para o combate do sexis
mo e homofobia, promoção da eqüidade de gênero e dos
direitos produtivos e reprodutivos.

Além desses quatro módulos, o grupo de participantes desen


volveu um trabalho final com questões que visavam a refletir
sobre a própria realidade e diagnosticar a presença de
estereótipos e violências de gênero. Valendo-se dessa análise
preliminar do ambiente escolar, foi proposto ao grupo que
apresentasse ações no sentido de contribuir para a promoção da
eqüidade de gênero e dos direitos sexuais e repro
dutivos de jovens e adolescentes.
Buscou-se explorar a experiência vivida pelos(as)
participantes, trabalhando os temas com base na realidade de
cada pessoa. A des construção de padrões estereotipados de
gênero e da heteronormati vidade e a reflexão sobre as suas
conseqüências – preconceito, discrimi nação e outras formas de
violência – foi o passo inicial para a discussão da promoção de
uma educação democrática e inclusiva, bem como o
enfrentamento do sexismo, machismo, misoginia, homofobia,
lesbofo bia e transfobia no ambiente escolar.

13
apresentação

Gênero, enquanto construção social do feminino e do


masculi no, foi assumido como um elemento das relações sociais
e, portanto, presente em todas as nossas instituições,
particularmente, na escola – ambiente que contribui para a
produção/reprodução de padrões e identidades de gênero e de
sexualidade. Nesse sentido, os educadores foram considerados
profissionais de extrema relevância para a cons
trução da igualdade de gênero. Assim, caberia aos educadores e
edu cadoras refletir sobre as práticas educacionais, buscando não
reforçar preconceitos, discriminações e violências de gênero,
assumindo para si como um dos objetivos da educação o
enfrentamento das inúmeras formas de violência, a promoção da
eqüidade de gênero e o respeito à diversidade.
Dessa forma, as práticas escolares devem ser repensadas,
elimi nando-se do ambiente escolar conteúdos discriminatórios,
bem como ações que configurem qualquer tipo de violência, seja
física, moral ou psicológica. É preciso desnaturalizar o
determinismo biológico pre sente nos padrões dicotômicos de
gênero que aprisionam homens e mulheres em comportamentos e
atributos considerados, respectiva mente, naturalmente
masculinos e femininos. A escola deve se pro por a contribuir com
o desenvolvimento humano pleno, o que pres supõe assumir o
desenvolvimento social e, nesse sentido, fazendo-se necessário
respeitar diferenças, mas, sobretudo, construir cidadania e
contribuir para a concretização dos direitos fundamentais de todo
ser humano. Sendo assim, não há espaço na instituição escolar
para de sigualdades sociais, de gênero ou de caráter étnico-racial,
ou, ainda, para hierarquias de conhecimentos e pro ssões.
É importante destacar que o espaço escolar pode ser um
espaço de inúmeras contradições, pois pode contribuir para a
construção das desigualdades de gênero, mas também pode se
constituir num espaço de transformação social e de construção da
igualdade. Políticas edu
cacionais, projeto político-pedagógico, currículo escolar, planos de
ensino, planos de aula, cotidiano escolar e práticas escolares
podem contribuir para a transformação das relações de gênero e
para a con solidação da justiça social. Certamente esse não é um
processo rápi do, tampouco simples, entretanto, viável, desde que
haja disposição e participação da comunidade escolar em um
projeto de emancipação, autonomia e desenvolvimento de todos e
todas.

14
nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande

Este livro, construído de acordo com os pressupostos


expostos anteriormente é composto por quatro unidades. A
primeira discute, en tre outras questões, gênero, sexualidade e
violência. O artigo “Gênero: considerações sobre o conceito”, de
Marília Gomes de Carvalho e Cíntia de Souza Batista Tortato,
traz uma discussão acerca das diferentes con cepções e
abordagens do conceito de gênero, enfatizando aquele que
norteará o conteúdo deste livro. Para as autoras, não existem
caracterís ticas femininas ou masculinas imutáveis, assim como
não há como con siderar habilidades ou di culdades próprias de
mulheres ou de homens, pois a construção social do masculino ou
do feminino não está marcada pela natureza, devendo sempre ser
entendida no contexto em que se inserem.
O artigo “Sexualidade e gênero na escola”, de Beatriz L.
Ferreira e Nanci Stancki da Luz, revela o quanto o tema
sexualidade é polêmico e enfrenta resistências no ambiente
escolar. A sexualidade quando vista de forma restrita
desconsidera a relação com o corpo, o prazer e o de
sejo. As autoras defendem que é necessário desconstruir a
amálgama entre sexo (ato sexual) e sexualidade, para que se
possa considerar a sexualidade em uma dimensão ampla,
contemplando seus diversos as pectos nos processos
educacionais.
“Violência contra a mulher: um desa o à concretização dos direi tos
humanos”, de Nanci Stancki da Luz, encerra a primeira parte e
discu te a violência contra a mulher, apontando elementos que
contribuem para a sua construção e reprodução social. Destaca
as resistências e con quistas da luta feminista na desconstrução
da naturalização da violência contra a mulher e no combate à sua
impunidade, contribuindo de forma signi cativa para a efetivação
dos direitos humanos das mulheres.
A segunda parte desta obra tem como objetivo discutir as
rela ções de gênero e diversidade no universo escolar e é
composta de três artigos. No primeiro deles – “Questões de
gênero e diversidade sexual: as possibilidades da literatura
infantil” – Cíntia de Souza Batista Tortato apresenta debates sobre
questões de gênero e diversidade sexual, usan do a literatura
infantil como elemento disparador dessas discussões e
contemplando as mais diversas situações que acontecem em uma
esco la e que podem proporcionar momentos preciosos para a
abordagem das questões de gênero ou de diversidade sexual com
as crianças ou jovens.

15
apresentação

Solange Ferreira dos Santos e Benedito Guilherme Falcão


Farias, em seu artigo “Gênero, educação e artefatos tecnológicos:
os diferentes meios para ensinar”, destacam que as diferentes
formas de ensinar e o uso dos artefatos tecnológicos disponíveis
para isso podem contribuir para a disseminação, problematização
e construção de um novo conhe cimento, especialmente, nas
questões de gênero e educação.
Lindamir Salete Casagrande e Marília Gomes de Carvalho
encer ram essa unidade com o artigo “Um olhar crítico para os
livros didáti cos: uma análise sob a perspectiva de gênero”. As
autoras apresentam reflexões sobre as representações de gênero
encontradas em livros di dáticos de Matemática, Geogra a,
Ciências e Português para o Ensino Fundamental, sendo as
ilustrações e os textos dos livros didáticos o foco das atenções
nessa análise. As autoras consideram que ao questionar as
representações estereotipadas nos livros didáticos não estão
negando a sua qualidade e a importância que eles, os livros,
assumem no coti diano escolar, mas objetivam, sobretudo, alertar
para a necessidade de se manter um olhar crítico sobre
representações que podem transmitir preconceitos e gerar
discriminações.
A terceira unidade traz artigos que visam contribuir com a
refle xão crítica sobre a ciência, tecnologia e gênero. Nesse
sentido, o primei ro deles, “Ciência e tecnologia sob a ótica de
gênero”, das autoras Maria Aparecida Fleury Costa Spanger,
Tânia Rosa F. Cascaes e Marília Gomes de Carvalho, traz uma
revisão teórica sobre a temática ciência, tecnolo gia e gênero,
destacando e assumindo a construção social da ciência e da
tecnologia que, historicamente, ocorreu com base nas referências
do mundo masculino, contribuindo assim para a invisibilidade da
mulher nessas áreas.
No segundo artigo, “Divisão sexual do trabalho e pro ssões
cien tíficas e tecnológicas no Brasil”, Nanci Stancki da Luz,
valendo-se de uma discussão teórica sobre a divisão sexual do
trabalho, apresenta uma dis cussão sobre pro ssões que
historicamente tiveram uma composição majoritariamente
masculina: as carreiras científicas e tecnológicas, entre as quais,
destaca o Magistério Superior, a Matemática, a Física, a Quími ca,
a Estatística e a Engenharia/Arquitetura.
Encerrando essa unidade, Maristela Mitsuko Ono, Luciana
Martha Silveira e Ronaldo de Oliveira Corrêa no artigo “As
representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia e
sociedade, via meios de

16
nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande

comunicação”, abarcam discussões sobre representações do


feminino e do masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via
mensagens pu blicitárias veiculadas pelos meios de comunicação
impressos [revistas semanais, gibis, entre outros].
A última unidade tem como objetivo trazer reflexões sobre
eqüi dade de gênero, enfrentamento ao sexismo e à homofobia e a
promoção dos direitos sexuais e reprodutivos. Visa ainda
apresentar os resultados parciais dos trabalhos desenvolvidos
pelos(as) cursistas. Nessa perspec tiva, quatro artigos compõe
essa unidade, sendo o primeiro deles o arti go de Nanci Stancki da
Luz – “Desafios e avanços nas políticas públicas de gênero” – no
qual a autora analisa os conceitos de política pública, destacando
a relevância das políticas de gênero para a construção de um
mundo justo e igualitário. Tais políticas são consideradas importan
tes aliadas no processo de desconstrução de estereótipos de
gênero e eliminação das discriminações negativas. Por outro lado,
contribuem para que mulheres tenham acesso aos direitos
fundamentais e se con solide a igualdade e a justiça social.
O artigo “Direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a
sexua lidade e as políticas”, de Marlene Tamanini, discute a
temática direitos sexuais e reprodutivos com base na perspectiva
dos direitos humanos. A autora traz uma discussão sobre as
desigualdades de gênero e como elas contribuem para a não
concretização dos direitos reprodutivos e sexuais, enquanto
liberdade, direito à assistência, atendimento e infor
mação, autonomia e escolha.
“Homofobia e a escola”, de Toni Reis, considera que a
escola é um lugar privilegiado para promover a cultura do respeito
às diferenças, à diversidade e da inclusão social, rumo a uma
verdadeira democracia em que todos os cidadãos e cidadãs
possam conviver com igualdade e sem discriminação. Para o
autor, no entanto, quando se trata de homosse xualidade, o tema
ainda é cercado de preconceitos, presentes também no ambiente
escolar, e que podem se transformar em discriminação e
marginalização das pessoas.
Finalizando essa unidade, Lindamir Salete Casagrande,
Marília Gomes de Carvalho e Nanci Stancki da Luz, no artigo “O
olhar não é mais o mesmo: uma análise sobre os resultados de
um curso sobre gênero e sexualidade na escola”, apresentam
uma análise das respostas dos pro-
ssionais de educação sobre questões que buscavam identi car as pos-

17
apresentação

síveis transformações que, por ventura, tivessem ocorrido nos olha


res dos(as) participantes após o curso. “O olhar não é mais o
mesmo” – frase retirada da fala de uma dupla de professores (um
homem e uma mulher), sobre as transformações em suas formas
de enxergar e perceber as questões de gênero no ambiente
escolar e na sociedade em geral, após a realização do curso,
representa simbolicamente o resultado do trabalho desenvolvido
por todas as pessoas que se en
volveram neste projeto.
Vale destacar que o projeto que originou este material foi pen
sado e coordenado pelas professoras Dra. Nanci Stancki da Luz,
Dra. Marília Gomes de Carvalho e Ms. Lindamir Salete
Casagrande, mas só foi possível a sua concretização devido à
consolidação de diversos apoios e parcerias, aos quais
agradecemos imensamente por contri buírem na construção de
uma educação com eqüidade de gênero e
respeito à diversidade. Nesse sentido, agradecemos: À Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversi dade do
Ministério da Educação (Secad/MEC), por apoiar propostas que
contribuem para a construção da eqüidade de gênero no am
biente escolar.
À Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)
que, em seus cem anos de existência, sempre contou com
pessoas dispos tas a contribuir para a educação do país e, nesse
momento particular, de implementação do projeto, disponibilizou
seu espaço físico, para a realização do curso, e pessoas, que
contribuíram para o bom desen volvimento das atividades.
Ao Programa de Pós-graduação em Tecnologia (PPGTE),
por entender a importância dos estudos de gênero e colaborar
para que essas discussões sejam difundidas na sociedade.
Ao Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Relações de
Gênero e Tecnologia (GeTec), vinculado ao PPGTE, por se
consolidar como um espaço para estudos, desenvolvimento de
pesquisas e de proje tos de extensão à comunidade, o que
possibilitou discutir, elaborar e executar o projeto “Construindo a
igualdade na escola: repensando conceitos e preconceitos de
gênero”, no âmbito desse grupo de pes
quisas.
Às autoras e aos autores deste livro, aos docentes do curso
e demais colaboradores e colaboradores(as) do projeto.

18
nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande

Às pessoas que participaram do curso, pelo enriquecimento


dos debates, pela partilha de suas experiências e conhecimentos
e pela de monstração de vontade e potencial de transformação da
realidade edu cacional brasileira.
A todos e todas que algum dia virão a ler este material, pela opor
tunidade de podermos apresentar reflexões sobre a realidade
escolar e discutir propostas de uma escola sem preconceitos e
discriminações.
Desejamos que os ideais que incorporam este material
sejam as sumidos a cada dia por mais educadores e educadoras,
para que a esco la possa contribuir para a concretização do
princípio da igualdade e para a construção de um mundo com
justiça social.
19
marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato

1
GÊNERO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO

Marília Gomes de Carvalho


Cintia Souza Batista Tortato

Introdução
Gênero é uma palavra que necessariamente pede uma explicação
a res peito de seu signi cado. Serve para classi car fenômenos os
mais di versos tais como gêneros de literatura, de cinema, de
música, dos seres
vivos na escala biológica, en m é um termo classi catório. No
contexto deste capítulo gênero será utilizado como uma pala vra
que serve para classi car as pessoas na sociedade, de acordo
com o sexo que possuem, ou seja, se são do sexo feminino e/ou
do sexo mas culino. No entanto, a construção social do gênero é
muito mais comple xa do que simplesmente uma classi cação das
pessoas em mulheres ou homens. No campo das Ciências
Sociais a complexidade é ainda maior porque depende das
diferentes correntes teóricas que interpretam o gênero
(mulher/homem) de formas diversas, ora considerando-o dire
tamente relacionado ao sexo, ou seja sexo feminino = gênero
feminino e sexo masculino = gênero masculino, ora desvinculando
o gênero do sexo, sem que haja uma relação direta entre estes
dois fenômenos. Para outras correntes há dois sexos, porém
múltiplos gêneros O termo gênero possui portanto muitos signi
cados, de acordo com as diferentes abordagens que existem
sobre o fenômeno da cons trução social do masculino e do
feminino pela sociedade e pela cultura. O conceito de gênero
apresenta, diferentes concepções, diferentes fo-

21
gênero: considerações sobre o conceito

cos de análise conforme as bases teóricas que lhe servem de


susten tação. Por esta razão, o principal objetivo deste capítulo é
trazer uma discussão sobre estas diversas abordagens,
enfatizando o conceito que norteia o conteúdo do livro que trata
de várias dimensões da vida social, todas elas perpassadas pelo
gênero.
Nem sempre este foi um termo utilizado pelos cientistas da
socie dade que até recentemente (anos 60) não se preocupavam
com a cons trução social de mulheres e homens. Na verdade, no
mundo acadêmico, o termo gênero surgiu no momento em que
pesquisadoras feministas buscavam, através dos chamados
estudos sobre mulheres, desnaturali zar a condição da mulher na
sociedade (SIMIÃO, 2005).
Foram os estudos feministas os que inicialmente tinham a
inten ção de desnaturalizar as condições das mulheres na
sociedade, descons truir a idéia de que tudo aquilo que se refere à
mulher está na sua na tureza feminina, ou seja, estes estudos
problematizaram a idéia de que
determinadas características são da essência feminina e outras
são da essência masculina. Nessa linha de pensamento ca
entendido como natural e da sua essência que a mulher seja mãe,
natural e da sua essên cia que seja delicada, sensível, obediente,
amorosa, afetiva, etc, como se tais características estivessem
na carga genética, na biologia. Estas características eram
desvalorizadas pela sociedade ocidental de merca do, onde a
competitividade e agressividade (características vistas como
naturais e essencialmente masculinas) eram mais valorizadas.
Assim, as desigualdades entre homens e mulheres foram
interpretadas como naturais. Era interpretado como algo que não
poderia ser modi cado. Estava na carga genética dos homens, e
na sua essência, serem seres superiores e, por outro lado, estava
na carga genética das mulheres, por
tanto na sua essência, serem inferiores.
Segundo Silva (2007, p. 253):

No século XIX surgiram, particularmente no campo da antropologia


física, teorias que explicaram a inferioridade feminina com base na
biologia. Este campo explicativo tomou muita força na sociedade
moderna pois teria o “aval” da ciência. Contrapondo-se a esta
perspectiva, o movimento femi
nista problematizou e reconstruiu argumentos em torno da
determinação biológica das hierarquias entre homens e mulheres,
colocando em xeque as concepções relativas ao feminino e
masculino na sociedade ocidental.

22
marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato

Para Pedro (2005, p. 78):

O uso da palavra “gênero”, como já dissemos, tem uma história que é


tribu tária de movimentos sociais de mulheres, feministas, gays e
lésbicas. Tem uma trajetória que acompanha a luta por direitos civis,
direitos humanos, en m, igualdade e respeito.

A naturalização das características femininas e


masculinas des considera que tanto mulheres como homens as
adquirem e aprendem na vida social, (em nossa sociedade, hoje
ainda antes do nascimento) através das expectativas criadas
pelos pais e por todo o meio social, tão logo sabem o sexo do
bebê que está para nascer. Essas expectativas, para a maioria
das pessoas, traduzidas nas cores e brinquedos dos en
xovais, na decoração dos quartos, na escolha dos acessórios e até
na forma como a mãe se comunica com o bebê em seu ventre, já
carregam as formas de entender o que é ser homem e o que é ser
mulher e conse qüentemente o que será ensinado ao novo ser.
Para Louro (1997, p. 21):

O argumento de que homens e mulheres são biologicamente


distintos e que a relação entre ambos decorre dessa distinção, que é
complementar e na qual cada um deve desempenhar um papel
determinado secularmente, acaba por ter o caráter de argumento
final, irrecorrível. Seja no âmbito do senso comum, seja revestido por
uma linguagem “científica”, a distinção se xual serve para
compreender - e justi car – a desigualdade social.
A relação direta entre as desigualdades sociais e a
biologia, ex plicando as diferenças como uma contingência da
natureza, ainda é freqüente nas falas e atitudes das pessoas. Nos
dias de hoje, ainda são comuns matérias de jornais ou revistas,
enfocando as diferenças biológi cas entre homens e mulheres,
tamanho ou peso do cérebro, número de neurônios, capacidade
intelectual para números ou habilidade natural para determinadas
aprendizagens, como tentativas de “provar cienti - camente o
porquê das desigualdades entre o masculino e o feminino”
(AUAD, 2006, p. 14).
Citeli (2001, p. 132) complementa:

...desnaturalizar hierarquias de poder baseadas em diferenças de


sexo tem sido um dos eixos centrais dos estudos de gênero.
Estabelecer a distinção entre os componentes — natural/biológico
em relação a sexo e social/

23
gênero: considerações sobre o conceito

cultural em relação a gênero — foi, e continua sendo,um recurso


utilizado pelos estudos de gênero para destacar essencialismos de
toda ordem que há séculos sustentam argumentos biologizantes
para desquali car as mu lheres, corporal, intelectual e moralmente.

Esta postura leva à posição de que é preciso distinguir sexo


de gê nero, pois não são a mesma coisa e devem ser vistos como
fenômenos que nem sempre têm uma relação direta e
determinista.

Distinção entre sexo e gênero


“Sexo” é um dado biológico e “gênero”, uma construção cultural. É
pre ciso descolar o sexo do gênero para entender as questões
culturais que envolvem os comportamentos e características
femininas e masculinas nas mais diferentes sociedades e culturas.
Considerar o gênero como uma contingência do sexo biológico é
uma postura reducionista, pois torna limitado o desenvolvimento
total das pessoas, direcionando-as aos ditames da natureza,
levando a interpretações universais que não cabem nos fatos
próprios da cultura. Para Diniz; Vasconcelos e Miranda (2004, p.
27): “Diferentemente do sexo, o gênero é uma produção social,
aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo
de gerações.”
Utilizando-nos da referência de Costa, 1994, que faz uma
revisão de literatura sobre as formas com que o conceito de
gênero foi enten dido nos meios acadêmicos, podemos dizer que,
diante da di culdade de categorizar as questões de gênero com
base nas diferenças sexuais, a autora explica que o meio
acadêmico foi trilhando outros caminhos para construção do
conceito de gênero. Buscando outras interpretações, tais como:
“... papéis dicotomizados, gênero como uma variável psicológi
ca, como sistemas culturais e como relacional” (COSTA, 1994, p.
147), foi possível compreender que gênero e sexo não possuem
uma relação unívoca, mas que a complexidade do fenômeno é
bem maior.

Gênero e as características binárias


O gênero visto como a construção e a prática de papéis
dicotomizados considera que as representações de masculino e
feminino são aprendi das através do desempenho de papéis
determinados socialmente para homens e para, com
características contrárias e opostas. Esta visão di-

24
marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato

cotômica e binária da questão de gênero deixa de fora da análise


as re lações de gênero e poder, criando estereótipos de papéis de
homem e de mulher. Essa visão também não explica como os
papéis são de nidos e quem os determina, ocultando a
hierarquização e desigualdade en tre papéis masculinos e
femininos que existe na sociedade. De maneira geral as
dicotomias entre o masculino e feminino seguem um raciocí nio
baseado em construções sociais de uma sociedade historicamente
comandada e organizada sob a ótica masculina, onde “(...) a
sociedade impõe certos papéis para os homens e outros para as
mulheres e que vão determinar a forma como homens e mulheres
se vêem e como se relacionam uns com os outros” (SIMIÃO,
2005, p.10)
Gênero, então, pode referir-se à apreensão da diferença
entre os sexos, apresentada de forma categórica, ou seja, a
sociedade cria cate gorias de homens e de mulheres para as
diferenças de sexo. Essa cate gorização acontece tanto para
diferenças tidas como inatas como para aquelas tidas como
construídas socialmente.
Algumas das características baseadas em estereótipos
atribuídos ao masculino e ao feminino estão representadas
sinteticamente pela ta bela abaixo:
MASCULINO FEMININO

Objetividade Senso Comum

Universalidade Localidade

Racionalidade Sensibilidade

Neutralidade Emoção
Dominação Passividade

Cérebro Coração

Controle Descontrole

Conhecimento Natureza

Civilizado Primitivo

Público Privado

A dualidade, além de limitar as características de cada


gênero em seu próprio universo, torna invisível a
interdependência entre o par. É

25
gênero: considerações sobre o conceito

como se, a partir do nascimento, de acordo com o sexo biológico,


mu lheres e homens estivessem engessados em um rol de
características destinadas, de nitivas e previstas para cada sexo.
Os estudos de gênero trazem à discussão o fato de que as
carac terísticas masculinas e femininas são entendidas como
resultado de aprendizagem. Homens e mulheres aprendem a
assumir determina dos comportamentos, atitudes, características e
sentimentos, de acor do suas experiências de vida e com o
contexto onde vivem. A dicoto mia e a oposição entre as
características de homens e de mulheres é, portanto inadequada,
pois é perfeitamente possível que as mulheres assumam
características de objetividade e racionalidade em certas
situações da vida, que assim o exigem, e, em outras situações
sejam amorosas e afetivas. Por outro lado, homens podem ser
emotivos, sen síveis e afetivos sem que com isto, sejam
considerados mulheres. Essa aprendizagem dá aos seres
humanos a possibilidade de transitarem entre as características
mais comuns de cada gênero,sem que se confi gure em um
problema ou uma inadequação, do ponto de vista social.

Gênero como uma variável psicológica


Considerar o gênero como uma variável psicológica foi a opção de
alguns pesquisadores ligados à área da psicologia que “optaram
por conceituar gênero como uma orientação ou força da
personalidade” (COSTA, 1994, p. 150). Com base em padrões de
comportamento, ou “jeitos de ser” essa visão acaba por reforçar
as diferenças entre o que é considerado feminino ou masculino e
assim mantém as diferenças que seriam problematizadas
(SIMIÃO, 2005, p. 11).
Esta percepção do gênero mantém a visão binária, pois
existem comportamentos que são considerados mais próprios de
mulheres e outros, geralmente o seu oposto, para os homens.
Não altera, portan do a dicotomia.

Gênero como Tradução de Sistemas Culturais


Essa perspectiva entende o gênero como dois sistemas culturais
distin tos. De acordo com a perspectiva dicotômica já na infância,
meninos e meninas são educados para agir e se comunicar de
forma diferencia da. A eles são ensinados direitos e deveres
diferentes, criando assim

26
marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato

as subculturas de gênero que se caracterizam por crenças,


padrões de sociabilidade e maneiras de pensar opostas e
divergentes e, quando tentam se comunicar entre si, geralmente
são mal sucedidos (COSTA, 1994).
Essa perspectiva vê as subculturas de gênero como sendo ho
mogêneas, como se todas as mulheres fossem iguais entre si,
assim como todos os homens possuem as mesmas maneiras de
ser, não le vando em consideração diferenças de classe, raça,
etnia, idade etc

Gênero como Relacional


Para Costa (1994) o ponto de partida para a compreensão das
ques tões de gênero numa visão relacional “não é o indivíduo,
nem seus papéis, mas o sistema social de relacionamentos dentro
dos quais os interlocutores se situam” (COSTA, 1994, p.158). A
forma relacional de entender as questões de gênero, como o
nome sugere, leva em consi deração uma série de relações que
circundam a questão, abandonan do a visão dicotômica de gênero
e da divisão de papéis, onde não se reconhece “uma essência
masculina ou feminina, de caráter abstrato e universal (...)”
(MORAES, 1998, p.100). Na visão relacional, o masculino e o
feminino não são dois mundos à parte, as características podem
va riar, é a concepção de múltiplas masculinidades e feminilidades
onde se privilegia a pluralidade.
Segundo Louro (1997, p.22):

O conceito passa a ser usado, então, com um forte apelo relacional –


já que é no âmbito das relações sociais que se constroem os
gêneros. Deste modo, ainda que os estudos continuem priorizando
as análises sobre as mulheres, eles estarão agora, de forma muito
mais explícita, referindo-se também aos homens.

A visão relacional de gênero representa um avanço, pois


leva em conta o contexto em que os indivíduos estão inseridos, as
relações de poder, as crenças, as etnias, “o conceito passa a exigir
que se pense de modo plural (...)” (LOURO, 1997, p. 23). Desta
forma chama-se atenção para o fato de que não importa negar as
diferenças, interessa a rmar que as diferenças podem ser
enfatizadas, negadas, interpretadas, es
tudadas, diminuídas ou atribuídas a diferentes fatores de acordo
com as circunstâncias.

27
gênero: considerações sobre o conceito

Considera-se, neste trabalho, o gênero como um sistema de


sig nificados atribuídos ao masculino e ao feminino e quando se
fala em significados se fala em cultura no sentido antropológico.
Daí a con sideração de que muito do que diz respeito a gênero e
suas constru ções sociais vêm da cultura e não da biologia. É a
partir da cultura que determinados signi cados são imputados aos
objetos, às atitudes, às
crenças, aos costumes e aos comportamentos, é também a partir
da cultura que são construídos os significados atribuídos ao
masculino e ao feminino.
Para Mariano (2008, p. 355):

Gênero, como categoria analítica elaborada nos estudosfeministas,


tem a função de colocar luz sobre as diferentes posições ocupadas
por homens e mulheres nos diversos espaços sociais, dando
destaque ao modo como as diferenças construídas socialmente
resultam em critérios de distribui
ção de poder, portanto, em como se constroem as relações de
subordi nação.

Assim, o gênero também é considerado como constitutivo da


vida social, está presente em todos os aspectos da vida social e
assume conteúdos específicos em contextos particulares. Scott,
uma das prin cipais pesquisadoras da questão em nível
internacional, afirma que “o gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os
sexos” e “uma forma primária de dar signi cado às relações de
poder” (SCOTT, 1995, p.86). Em determina das culturas, por
exemplo, pode ser observado como uma prática mais comum
determinados tipos de trabalho serem executados por mulhe res
enquanto em outras , trabalhos semelhantes podem ser realizados
por homens. São questões que podem mudar de sociedade para
so ciedade, con rmando que os papéis de gênero desempenhados
por homens e mulheres são construções sociais inseridas em
certa cultura e seus signi cados resultam dessa relação.
A questão a ser destacada não é o fato de existirem
trabalhos ou ações realizados mais comumente por homens ou
por mulheres. O que se questiona é a hierarquização dessas
ações e desses trabalhos, colocando os homens e as mulheres
que os realizam em posições so
ciais desiguais, de dominação e subordinação.

28
marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato

Conseqüências do uso da noção de gênero


Ao abordar a questão de gênero como construção social passa-se
a descon ar dos dualismos universais, dualismos que colocam as
carac terísticas de homens e mulheres como fixas, diferentes e
muitas vezes opostas, e ainda pretendem universalizar essas
características como se as mulheres fossem todas iguais em toda
parte do mundo ou até den tro uma mesma sociedade, criando
essencialismos universais tanto para elas, como para os homens.
A partir da noção de gênero assumida neste trabalho, as
dife renças não são tomadas como inquestionáveis, não há uma
predispo sição para esse ou aquele comportamento ou
características com base no sexo das pessoas. Não há
características restritas ao feminino ou ao masculino, não há
como considerar habilidades ou di culdades pró prias de mulheres
ou de homens, as características são construídas ao longo da
experiência vivida, independente do sexo. As diferenças tidas
como inatas ou essenciais também passam a ser questionadas a
partir desta noção de gênero, uma vez que a questão da
construção social não embasa a idéia de que as diferenças
estejam demarcadas pela natureza. Nesse sentido a célebre frase
de Simone de Beauvior que diz que nin guém nasce mulher, mas
torna-se mulher ilustra adequadamente essa idéia.
Toda e qualquer diferença deve ser entendida
contextualmente. Assim, as diferenças intra-gêneros, aquelas que
se referem ao um mes mo gênero e as diferenças inter-gêneros,
referindo-se a diferentes gêne ros precisam ser consideradas e
entendidas em seus próprios contextos, de modo a não cair em
outros determinismos e outras desigualdades. Perpassando a
questão de gênero é preciso considerar também as ques tões de
etnia, classe social e outras diferenças sociais.
Ao limitar a conceituação de gênero nas diferenças sexuais
es tamos deixando à margem todo o contexto
sócio-histórico-cultural em que os indivíduos estão inseridos.
Na educação das crianças, o esforço em acalmar os ímpetos das
meninas, comumente percebido nas escolas desde a educação
infantil, onde a menina é educada para conter-se, controlar-se,
sentar direito, fa lar baixo, ser delicada, e comportar-se como uma
menina. Na educação dos meninos já se observa o contrário, eles
são incentivados desde cedo
29
gênero: considerações sobre o conceito

a terem iniciativa, serem mais agressivos, colocarem suas opiniões


e se expandirem muito mais. Mesmo na escola, faz parte das
expectativas das professoras desde as séries iniciais, que os
meninos sejam mais ati vos e descontrolados em termos de
comportamento do que as meninas. Quando acontece o
inesperado é que surgem os problemas mais sérios, decorrentes
das visões estereotipadas e preconceituosas de gênero.
Na família, desde que a criança nasce essa forma de
ensinar o controle do comportamento da menina e uma maior
tolerância ou até incentivo quanto à falta de controle do
comportamento dos meninos é uma observação muito comum em
nossa sociedade. O que mais tarde vai ser evidenciado na escola
já vem desde a vida em família, nas formas diferenciadas de
educar meninos e meninas.
1 Inúmeras autoras que interpretaram o gênero sob diferentes óticas podem ser
citadas. Dentre elas: Rosaldo e Lamphere (1979);, Chodorow (1979); Butler (2003);
Nicholson (2000); Strathern (2006); Scott (1995); dentre as brasileiras Heilborn
(1992); Grossi (2006); Corrêa (2001); Piscitelli (1997); Louro (1997); Bruschini
(1994); Costa (1994); Citeli (2001); dentre ou
tras.

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30
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TABAK, Fanny. O laboratório de Pandora: estudos sobre a ciência no
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32
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

2
SEXUALIDADE E GÊNERO NA ESCOLA

Beatriz Maria Megias Ligmanovski Ferreria


Nanci Stancki da Luz

Introdução
A sexualidade envolve inúmeros aspectos pessoais – histórias de
vida, crenças, valores, diversidade, pluralidade e sentimentos – e
também sociais, políticos, culturais e econômicos. Tratar o tema
nem sempre é fácil, enfrenta resistências, particularmente quando
se refere à sua inclusão no currículo escolar. A escola, que cotidia
namente produz e reproduz modelos de sexualidade, nem sempre
consegue explorar toda sua potencialidade e dimensão. A partir
da década de 1980 a escola passa a apresentar preo cupações
com a AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). A falta de
informações a respeito dessa doença, o crescimento no nú mero
de contaminações e a associação com práticas sexuais revelou a
necessidade de discutir a sexualidade, quebrando resistências. A
inserção do tema, entretanto, ocorreu de forma bastante limitada e
com ênfase na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis.
O tema sexualidade revela-se polêmico, envolvendo tabus,
medos, questões religiosas, morais e éticas – o que dificulta a
busca de consensos de como a educação formal deveria
abordá-lo. Essa dificuldade muito se deve ao fato de que a
sexualidade é vista de forma restrita, associada ao ato sexual,
desconsiderando a relação com o corpo, o prazer e o desejo.
Sexualidade não é sinônimo de sexo, é muito mais que isso: é
energia que possibilita encontros, trocas e experiências; influencia
pensamentos, sentimentos, ações e interações e, portanto, tem a
ver com a saúde física e mental do ser humano.

33
sexualidade e gênero na escola

De forma geral, fala-se muito em sexo e pouco em


sexualidade. O sexo chega a ser banalizado em produções
culturais – programas de TV e rádio, músicas, revistas – que
constantemente apresentam o corpo como objeto de consumo. O
erotismo, a nudez e cenas de sexo são utilizadas cotidianamente
para vender produtos ou ganhar pontos numa verdadeira guerra
de audiência e disputa de leitores e leitoras.
Para Abreu (1996) a sexualidade – massivamente presente em
nossa cultura – quase sempre se sujeita a limitações. Formas de
humor, representações da mulher, roupas, intenções eróticas explí
citas na publicidade apontam obsessivamente em direção a
práticas sexuais num contexto em que o modelo de
mercado/consumo ab sorve uma “nova moral”, e a representação
transgressiva da sexuali dade ganha formatos e padrões que a
transforma em mercadoria.
Se por um lado, o sexo é transformado em “mercadoria” que
necessariamente deve ser massificada e “consumida” sem
qualquer critério ético e moral, por outro, assistimos a um
processo de re sistência conservadora na qual se reforça a idéia
de algo sujo, feio, proibido ou pecaminoso, e cuja “purificação”
ocorreria por meio de relações “estáveis” e heterossexuais.
É necessário desconstruir a amálgama entre sexo (ato sexu
al) e sexualidade, para que se possa considerar a sexualidade em
uma dimensão ampla, contemplando seus diversos aspectos, e
que, por sua relevância, receba atenção necessária nos
processos edu cacionais. A liberação sexual total e irrestrita ou a
repressão geral parecem ser modelos que não contribuem para
que as pessoas se cuidem, respeitem a si próprias, mantenham
sua auto-estima e vi vam sua sexualidade como um direito que,
para se efetivar, também exige responsabilidade.
Este texto apresenta parte das reflexões sobre gênero e
sexua lidade do Módulo I – Gênero e Sexualidade – do curso
“Construindo a igualdade na escola: repensando conceitos e
preconceitos de gê nero”, no qual participaram 328 pessoas
distribuídas em 06 turmas. Dessa forma, consiste num trabalho
coletivo, pensado inicialmente pelas docentes do módulo – Nanci
Stancki da Luz e Beatriz Maria Megias Ligmanovski Ferreria –
mas que teve colaboração valiosa de todas as pessoas que
participaram do curso.

34
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

Sexualidade e gênero: conceitos em interação


Abramovay (2004) de ne sexualidade como uma das dimensões
do ser humano que envolve gênero, identidade sexual, orientação
sexual, ero tismo, envolvimento emocional, amor e reprodução. É
experimentada ou expressa em pensamentos, fantasias, desejos,
crenças, atitudes, va lores, atividades, práticas, papéis e
relacionamentos. Os componentes socioculturais, dessa forma,
revelam-se críticos para essa conceituação, que se refere tanto às
capacidades reprodutivas quanto à questão do prazer.
A sexualidade é algo complexo e não pode ser separada dos
as pectos social, político, cultural e econômico, tampouco
associada ape nas a determinadas fases da vida humana. Ela está
presente desde a concepção até a morte. Quando ainda bebês, a
sexualidade pode ser percebida no ato da amamentação, nos
brinquedos, nas brincadeiras, nas roupas, no toque, no
conhecimento do próprio corpo, no contato físico com a mãe ou
pai, gerando sensação de bem-estar.
Na puberdade ou na adolescência, as sensações de prazer
são, em grande medida, voltadas para a região genital, por conta
de uma maior produção de hormônios. É uma época de grandes
transformações – fí sicas, emocionais, culturais e sociais. As
roupas, os relacionamentos e a masturbação são formas de
manifestação da sexualidade desse perío do. Na fase adulta, a
sexualidade se expressa nas relações afetivas, nos
relacionamentos sexuais, no casamento, no amor, na opção ou
não de procriar. E, na terceira idade – não impeditiva para a
vivência da sexu alidade – ela também se expressa nas relações
afetivas e sexuais e na relação com o próprio corpo.
Vale destacar que não existe padrão ou uma relação
biunívoca entre faixa etária e forma de vivência da sexualidade,
pois ela difere de pessoa para pessoa. Entretanto algo é
constante: sexualidade está sem pre presente, pois, é a própria
vida.
Diversas áreas – Medicina, Psicologia, Psiquiatria, Biologia,
Filoso- a, Sociologia – buscaram explicar, com base em suas
perspectivas, a sexualidade humana. Autores (Aries, 1981;
Duarte, 1996; Giddens, 1992) apontam que, no nal do século
XIX, o conceito de sexualidade foi focado na individualidade e
como parte de um projeto de sociedade capitalista. Dumont
(1993) apud Heilborn (1999) argumenta que a individualidade,

35
sexualidade e gênero na escola

por um lado, possibilitou a construção de um sujeito político, livre,


por tador de direitos de cidadania e, por outro, erigiu a
subjetividade como tema central para a constituição da identidade.
Nesse período a sexu alidade desperta diferentes formas de saber
e buscam problematizar um “novo individuo”, dando espaço para
o surgimento de movimentos como o do médico-higienista, no
qual o corpo é um objeto de estudo e intervenção. Nesta última
perspectiva, diferentes áreas do saber busca ram explicar o corpo,
particularmente o das mulheres. Estudos de Freud se destacaram
ao relacionar comportamentos à subjetividade, possibili
tando a organização e o controle dos corpos (FOUCAULT, 1984).
Alguns eventos impulsionaram estudos a respeito da sexualida
de, entre os quais destacamos:

• o desenvolvimento de métodos contraceptivos,


rompendo a associação entre o exercício da sexualidade e
a reprodução da es pécie;
• o surgimento de novas reflexões derivadas dos
movimentos so ciais organizados e de estudos advindos da
academia.

A ação dos movimentos sociais, com destaque para o


feminista e o de gays e lésbicas, contribui para o avanço signi
cativo dos estudos nessa área. A emergência dos estudos de
gênero deu visibilidade à com plexidade da sexualidade,
explicitando as dimensões sociais e políticas de um tema tratado
mais no campo biológico. A relação entre sexuali dade, gênero,
saúde e cidadania possibilitou o surgimento de discus sões sobre
os direitos reprodutivos e direitos sexuais, contribuindo para a
construção dos direitos individuais e coletivos.
A forma como a sexualidade é percebida e vivida sofre
interfe rência de uma conjunção de fatores, destacando as
relações de poder e, particularmente, as de gênero. Essas,
tradicionalmente, trazem em seu âmago construções de
masculino e de feminino nas quais a sexualidade é vista, ensinada
e controlada de formas distintas quando se trata de homens e
mulheres.
Gênero é uma categoria que ajuda a entender o processo de
construção social do masculino e do feminino, recolocando o
debate no campo social:

36
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

[...] pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações


(desiguais) entre os sujeitos. As justi cativas para as desigualdades
precisariam ser buscadas não nas diferenças biológicas (se é que
mesmo essas podem ser compreendidas fora de sua constituição
social), mas sim nos arranjos so
ciais, na história, nas condições de acesso aos recursos da
sociedade, nas formas de representação (LOURO, 1997:22).

Adotar essa perspectiva de análise para gênero e


sexualidade permite entender que a sexualidade, assim
como o que é percebi do como masculino e feminino, está
associada a contextos históri cos, culturais, sociais e econômicos
específicos que participam dessa construção.
Nesse sentido, o espaço escolar é um espaço relevante e
que produz, reproduz, rea rma, desconstrói e legitima imagens e
repre sentações de gênero e sexualidade. Esse espaço é, no
entanto, con traditório, pois, assim como pode reproduzir, pode
também transfor mar.
Para Freire (2003) educar é construir, libertar homens e
mulhe res do determinismo, passando a reconhecer o seu papel
na história, considerando a sua identidade cultural na sua
dimensão individual e coletiva. Sem respeitar essa identidade,
sem autonomia ou sem levar em conta as experiências vividas, o
processo educativo será inoperan te e constituirá somente um
conjunto de meras palavras, despidas de signi cação real.
A escola, dessa forma, pode reproduzir papéis de gênero e
modelos de sexualidade que oprimem, mas que também podem
construir relações que libertem e nas quais a dignidade humana e
a igualdade de direitos poderão ser princípios norteadores. A
legisla
ção brasileira traz essa perspectiva, prevê a igualdade de direitos
e deveres entre homens e mulheres e estabelece entre os
objetivos da República Federativa a promoção do bem de todas
as pessoas, sem preconceitos ou qualquer outra forma de
discriminação. A concreti
zação desse objetivo depende de reflexões sobre gênero e
sexualida de, para que essas categorias deixem de ser utilizadas
para classi car, discriminar e excluir e contribuam para a criação
de novas formas de abordagem que desconstrua preconceitos e
discriminações – ativida des que pode ser assumida pela escola.

37
sexualidade e gênero na escola

Sexualidade e gênero na escola


A instituição escolar pode e deve contribuir para uma educação
cida dã e libertadora que contemple a dimensão sexual, a
diversidade, os direitos humanos e a multiculturalidade. Todavia,
para que isso ocorra
é necessário a implementação de novas praticas pedagógicas. A
sexualidade e o gênero – em constante construção – fazem parte
das pessoas que compõe a comunidade escolar. Mesmo que a
educação não assuma formalmente esse debate, ele está
permeando as relações entre docentes e discentes. Para Louro
(2007), a sexuali dade não é apenas uma questão pessoal, mas
social e política, sendo construída ao longo de toda uma vida, de
muitos modos, por todos os sujeitos, particularmente, os
envolvidos no processo educacional. Se é papel da escola tratar
da sexualidade, como essa deve ser abordada? Docentes se
sentem preparados para isso? Quais as di cul dades e obstáculos
que estariam impedindo a inserção da temática “gênero e
sexualidade” na escola?
Relatos dos participantes do curso “Gênero e Sexualidade”
con- rmam a di culdade em se trabalhar a temática sexualidade e
gêne ro:

Existe di culdade para se trabalhar o assunto sexualidade em sala de


aula, por conta do preconceito, por falta de preparo e informação dos
professores, questões religiosas, construção social. Não existe
prepara ção, cursos na academia sobre o tema. A sociedade é
formada por insti tuições que têm seus princípios construídos
historicamente, que tendem a transformar a sexualidade em tabu.
(PARTICIPANTE 1)

Os participantes do curso apontaram dois fatores relevantes


e que di cultam o debate do tema:

a) resistência familiar – pais e mães rejeitam a idéia de que


seus lhos e lhas tenham informações a respeito, temendo
que a sexualidade seja estimulada;
b) professores não se sentem preparados, tanto para
enfrentar as resistências ao tema quanto para abordá-lo,
que acaba restri to a docentes da área Biológica e, por
conseqüência, também focado em aspectos biológicos.
38
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

No que se refere à tolerância com a diversidade, a fala da


Partici pante 2 expressa um sentimento comum:

Não [a escola não é tolerante]. É preciso enfrentar o sexismo, o


machismo, a homofobia e racismo nas escolas, a partir da aquisição
de conhecimentos, mudanças de posturas e da luta por políticas
publicas educacionais que apóiem o trabalho pedagógico.
(PARTICIPANTE 2)

Para reverter a ausência de discussão sistematizada a


respeito da sexualidade, bem como o tratamento preconceituoso
que é dado ao tema, o protagonista dessa mudança – a
professora ou professor – pre cisa ter domínio sobre o assunto,
refletir e problematizar essa questão, assumindo a importância
desse debate para a formação de gerações futuras, bem como
a relevância de uma educação calcada em valores humanos e no
respeito aos direitos individuais e coletivos, eliminando qualquer
tipo de discriminação do ambiente escolar.
Para Whitaker (1989), o fato de educadores e educadoras não do
minarem a problemática de gênero contribui para a continuidade
de velhas crenças impregnadas de ideologias desvalorizadoras do
papel da mulher na “história”, o que se encontra nos currículos ou
na forma como esses são apresentados, trazendo uma visão
masculina do universo.
Mais do que rever currículo escolares, há que se repensar
na for mação docente e enfrentar o preconceito e as violências de
gênero que, muitas vezes, os próprios professores enfrentam no
dia-a-dia de traba lho. Urgente também repensar o masculino e o
feminino frente a uma realidade social que não comporta mais
modelos duais e discriminató rios. A realidade tem exigido
posturas educacionais abertas e que per mitam o pleno
desenvolvimento humano. Conforme artigo da UNICEF (1999), se
a educação das meninas e adolescentes tiver como parâmetro
apenas a maternidade e o casamento, di cilmente, na fase adulta,
elas emitirão suas opiniões na sociedade ou mesmo concorrerão
a um cargo político, pois, tenderão a assimilar, por meio da
socialização, que essas são ações para os homens.
Estereótipos e preconceitos marcam a educação. A escola repro
duz muito do que a sociedade tem esperado de comportamentos
mas culinos e femininos. A delicadeza, a fragilidade, a discrição, a
passividade, o pudor e a emoção são ensinados para as meninas.
Em contrapartida, dos meninos, espera-se competitividade,
agressividade, força física e ra-

39
sexualidade e gênero na escola
cionalidade, sob a alegação de que são características
masculinas. De ambos os sexos, espera-se relações
heterossexuais, consideradas como forma “única” e “correta” de
vivência da sexualidade. Constro em-se dois mundos – o real e
o imaginário – tão díspares que não ajudam a construir relações
igualitárias numa realidade na qual ho mens e mulheres vivem
juntos e que nem sempre (ou quase nunca)
se enquadram nesses padrões. Qual é o espaço das pessoas que
não se enquadram nesses modelos? A escola pode
desconsiderar que a realidade não comporta um modelo único?
A sociedade tem imposto padrões de gênero e modelos de
se xualidade que impedem o desenvolvimento individual, social e
po lítico de muitas pessoas – particularmente daqueles indivíduos
que não se “encaixam” no modelo hegemônico. A imposição de
padrões
fixos e a intolerância com a diversidade têm gerado discriminação,
ódio, preconceito e violência – questões que não contribuem nem
para o desenvolvimento humano, tampouco para o social de uma
nação.
As instituições educacionais em geral não têm apresentado
preocupações com a diversidade, ocultando dos currículos:

(...) a multiplicidade das diferenças culturais (em especial a dos


gêneros e das sexualidades), bem como o não-reconhecimento
pedagógico do caráter construído e político das identidades
(hegemônicas e subordi nadas) e de seus sujeitos. Além desses
temas estarem esquecidos, são freqüentemente mal trabalhados,
tanto pedagogicamente quanto nas relações sociais que se
estabelecem na escola, a despeito das políticas
educacionais que atualmente contemplam tanto a questão de gênero
quanto à da sexualidade (FURLANI, 2005, p. 225-226).

Furlani (2005) complementa que a escola é espaços estratégi cos


para a reflexão, para que sejam conferidos novos significados aos
sujeitos e às práticas subordinadas. A educação deve romper com
os padrões de identidade ditos como normais em detrimento de
outros, pois, como e quem tem poder para definir o que é normal
ou não?
Parece claro que as práticas sociais devem sofrer limitações, uma
vez que a convivência humana depende de relações de respeito
aos direitos de outras pessoas. O silêncio e os padrões
pré-estabele cidos de gênero e sexualidade presentes na escola,
no entanto, não

40
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

têm contribuído para que as pessoas percebam tais limites. A


pedofi lia, a violência sexual, a violência doméstica, a homofobia, o
sexismo, o racismo, entre outras questões revelam que o silêncio
sobre o tema não representa possibilidades de se viver em uma
sociedade que res peite as diferenças. O que tem imperado é
individualismo, a indife rença, o egoísmo, contribuindo para gerar
relações que, em muitos casos, podem ser classificadas como
patológicas e criminosas, como
nos casos de abuso e de violência sexual e de gênero. Furlani
(2005) contribui nessa discussão mostrando que a questão da
identidade, da diferença e do outro é um problema pe dagógico e
curricular, especialmente, se o outro é o outro gênero, é a cor
diferente, é a outra sexualidade, é a outra etnia, é a outra nacio
nalidade, é o corpo diferente. Problema maior ainda quando o
outro não é aceito pela própria escola.
Silva (2000) complementa, alertando que é imprescindível
que o âmbito escolar mostre que o “outro” pode ser “eu’, ser
“você”, en fim, que o “outro” e o “eu” são as mesmas pessoas.

Gênero e sexualidade: é possível iniciar o debate na escola?


O conhecimento da realidade na qual a escola está inserida é con
dição preliminar de qualquer atividade docente envolvendo as te
máticas de gênero e sexualidade. Um bom diagnóstico indicará as
demandas, sendo sempre necessário que se tenha cuidado com
pro postas prontas e milagrosas que possam afrontar diretamente
a cul tura local e gerar resistências, afastando qualquer
possibilidade de
atuação na área.
Na sala de aula, notícias em revistas e jornais podem exemplifi car
violências contra mulheres, crianças, homossexuais, negros e po
bres. A consideração de que essas pessoas não são “outros”, mas
que a violação de seus direitos é a violação do direito de todos,
pode ser uma questão óbvia, mas que nem sempre é entendida.
Uma socie dade sem violência – desejo coletivo – exige que esse
tipo de mani festação não seja tolerado, independente da vítima. A
reflexão sobre tais questões apontará caminhos, mostrando aos
educandos, sejam esses meninos ou meninas, que violência,
preconceito, sexismo, ho mofobia, misoginia ou racismo não são
naturais, sendo possível des construí-los, contribuindo para a
realização de uma sociedade com

41
sexualidade e gênero na escola

novos parâmetros, entre os quais esteja a justiça social e o


respeito à diversidade.
O docente é o protagonista central da educação – uma vez
que planeja, avalia, implementa propostas, educa, interfere sobre
a realida de –, o que sempre exigiu de sua postura pro ssional
profundos conhe cimentos. Dessa forma, coloca-se a sua frente
um novo desa o: ensinar sobre conteúdos e temas que, numa
perspectiva tradicional, não fazem parte da sua área de
formação. Sabemos ser impossível ensinar aqui lo que não
conhecemos, por isso, a viabilidade do desenvolvimento de
trabalho com as temáticas aqui abordadas só será possível com
investi mentos na formação de educadores.
Destaca-se a importância dessa formação, pois,
mudanças nas concepções e práticas escolares dependem,
sobretudo, de preparação, de sensibilização docente. A inclusão
de temas como gênero e sexua lidade nos cursos regulares e de
educação continuada oferecerá base teórica e metodológica para
que o docente tenha segurança para apre sentar e debater
questões que, por sua relevância, não podem ser trata das de
qualquer maneira. Esse tipo de ação também possibilitará que os
educadores enfrentem situações que aparecem no seu cotidiano e
que exigem respostas educacionais: discriminações de gênero,
homofobia, sexismo, gravidez na adolescência, doenças
sexualmente transmissíveis, aborto, etc.
A formação continuada deve ter como ponto de partida a
reali dade do trabalho docente. Pretender formar docentes, sem
ouvir de mandas ou conhecer a realidade educacional, é iniciar um
trabalho com menores possibilidades de suprir expectativas e
correr o risco de não atingir os reais objetivos de uma
capacitação: preparar o professor e a professora para a
intervenção pedagógica.
Essa formação é desa adora, abrindo possibilidades para
que os docentes revejam suas práticas, suas formas de ensinar e
aprender, inte ragir e signi car o conhecimento em todas as suas
dimensões, integrar os conteúdos e associá-los à vida real. Isso
contribuirá para o desenvolvi mento de um trabalho amplo, não
voltado apenas para o cumprimento de metas e conteúdos, mas
para o desenvolvimento pessoal de cada discente e para o
desenvolvimento social do país.
Os temas se renovam a cada dia, exempli camos alguns que
po dem ser trabalhados na escola: aborto; fetos anencefálicos;
direito à vida

42
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

(do feto; da mãe); autonomia sobre o corpo; controle de


natalidade; mé todos contraceptivos; saúde materna; mortalidade
materna; câncer de útero, mama ou próstata; planejamento
familiar; contracepção; concep ção; adoção; início da vida;
pesquisas com células-tronco; direitos sexu ais e reprodutivos;
violência de gênero, doméstica e contra a mulher; pedo lia; parto
natural; cesárea; barriga de aluguel; fertilização in vitro;
bebê de proveta; início da vida sexual de homens e mulheres;
desco berta do corpo; cuidados com o corpo; união homoafetiva;
mudança de
sexo; maternidade responsável; paternidade responsável, etc.
Para a educação não há “receitas prontas”, a realidade desvela rá
questões latentes e caberá aos docentes a de nição do método
que melhor se adapta ao assunto e à realidade de seu trabalho.
Temas como gênero e sexualidade não pretendem e tampouco
devem substituir os conteúdos “tradicionais” das disciplinas que
compõe o currículo escolar. Uma das possibilidades consiste no
tratamento como tema transversal, forma que possibilita a
inserção dessas questões sociais presentes no dia-a-dia do
estudante e em debate na sociedade, sem deixar “de lado” outros
assuntos tão importantes quanto. Muitas dessas questões reve
lam preocupações da sociedade, exigem análise crítica e
posicionamen to do grupo discente, mas podem ser trabalhadas de
forma articulada com outros temas já tratados nas disciplinas
escolares. Se é primordial saber trabalhar gênero e sexualidade,
pois, de mandas sobre a temática surgirão, não sendo possível
abster-se diante delas, também é necessário refletir a respeito do
conhecimento que está sendo reproduzido e construído pela
escola. O rompimento com qual quer determinismo e com padrões
e modelos hegemônicos, abrindo para a aceitação da diversidade
é condição sine qua non para a conso lidação de
propostas pedagógicas que visem à interação das próprias
dimensões humanas, dos sujeitos e a construção de uma
sociedade hu mana e justa.

Considerações Finais
A escola pode ser um espaço gerador de transformação de
comporta mentos e valores. Como parte do contexto social, essa
instituição não ca imune à reprodução de valores presentes na
sociedade, sendo comum a propagação de discriminações e
preconceitos, o que ocorre quando repassa uma visão
androcêntrica de mundo e ensina às mulhe-

43
sexualidade e gênero na escola

res a aceitarem uma suposta inferioridade pelo fato de serem


mulheres. Os meninos, ao aprenderem e não questionarem tal
visão, aceitam uma suposta superioridade pelo fato de serem
homens. Assim, a escola vai consolidando a desigualdade e, sem
problematizar tais questões, conti
nua com suas práticas rotineiras, rea rmando e reforçando valores
dis criminatórios.
A inclusão das temáticas de gênero e sexualidade em
cursos de formação docente contribuiria para essa
problematização e para uma análise crítica do que é reproduzido
pela instituição escolar. A formação cidadã não pode deixar de
considerar que se vive numa sociedade desi
gual, e que tais questões são fatores que contribuem para a
construção das desigualdades sociais. Esse reconhecimento é
essencial para a inter venção e a promoção de mudanças sociais.
Nessa perspectiva, não há lugar para escolas que
reproduzem o machismo, a homofobia e a inferioridade feminina.
Vale lembrar que a categoria docente, em nosso país, é formada
majoritariamente por mu lheres, que precisam da valorização
social da sua pro ssão para que pos sam contribuir para a
valorização e desenvolvimento humano. Em espa ço algum faz
sentido o machismo, a discriminação e a violência contra a
mulher, mas, menos ainda, numa pro ssão composta
majoritariamente por mulheres.
A valorização do trabalho docente e o reconhecimento de
que a escola pode interferir sobre a realidade, construindo a
autonomia de seus alunos e alunas e seu desenvolvimento
integral, contribuirá para a construção de uma sociedade que
respeite as diferenças e que diga não às desigualdades.
Educandos devem aprender a respeitar o ser hu mano em sua
diversidade, aprender a conviver com diferenças e ajudar a
pensar um mundo sem preconceito, racismo, sexismo, homofobia
ou qualquer outro tipo de violência.

Referências

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ABREU, Nuno Cesar. O olhar pornô: a representação do obsceno no
cinema e no vídeo. Campinas, SP: Mercado de letras, 1996.

44
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

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WHITAKER, Dulce. Mulher e homem: o mito da desigualdade. São Paulo:
Moder na,

45
nanci stancki da luz

3
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM DESAFIO À
CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Nanci Stancki da Luz

Introdução
A violência contra a mulher ganhou visibilidade graças à luta e
organiza ção feminista que retirou o tema do âmbito privado,
politizou a discus são e questionou as relações de poder que
reproduziam e naturalizavam esse grave problema social.
A violência doméstica, uma das inúmeras formas de
expressão dessa violência, por longo tempo foi tratada como algo
da esfera fami liar, o que afastava a intervenção do poder público e
permitia que, na ausência de relações de afeto e proteção,
imperasse a lei do mais “forte” em grande medida personi cada
em uma gura masculina que, no uso arbitrário de sua força física,
considerava-se com direitos de subjugar, humilhar ou mesmo
agredir outros familiares.
Relações de poder desiguais entre homens e mulheres e a
inércia do Estado e da sociedade frente a essa realidade di
cultaram a efetiva ção dos direitos fundamentais das mulheres
vítimas de violência, entre os quais o direito à vida, à integridade
física, emocional e psicológica, à liberdade de pensamento e de
escolha, à saúde, à segurança, entre outros.
A violência atinge homens e mulheres, entretanto, as suas
formas de manifestação, em geral, distinguem-se quando se trata
de um ou de outro gênero. Enquanto a violência contra os
homens pode ser asso-

47
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

ciada majoritariamente ao espaço público, grande parte da


violência contra a mulher tem ocorrido no próprio lar e tem, em
grande parte dos casos, como agressor o marido, companheiro ou
namorado, ou ainda esses mesmos, mas na condição de
ex-parceiros.
Este texto discute a violência contra a mulher, apontando
alguns elementos que contribuem para a sua construção e
permanência social. Destaca as resistências frente a esse
processo, bem como as conquistas da luta feminista na
desconstrução da naturalização da violência contra a mulher e no
combate à sua impunidade, contribuindo, dessa forma, para a
efetivação dos direitos humanos que, sem as mulheres não se
concretizam, pois metade da parcela que compõe a humanidade
ca excluída.

A violência
A violência é um fenômeno amplo e que inclui não apenas
comporta mentos entre indivíduos, mas também se refere a
questões como de sigualdades (sejam elas sociais, étnicas, de
gênero ou classe), pobreza, desemprego, intensi cação e
precarização do trabalho, desvalorização pro ssional e salarial,
discriminação, falta de atendimento aos direitos básicos,
abandono, etc.
Para Ristum e Bastos (2004), é difícil abarcar a violência
como um todo, devido a sua complexidade. O próprio conceito
pode sofrer inter ferência do julgamento social, di cultando uma
formulação consensual e ocultando formas de agressão. Embora
a violência possa assumir di versas formas, devido a uma visão
reducionista, muitas vezes, ca rela cionada apenas com a
criminalidade, deixando de incluir a dominação política,
econômica e de gênero e todas as implicações dela decorren tes.
Herkenho (2004) destaca a necessidade de se distinguir
agressi vidade de violência. A agressividade, cujo oposto é a
passividade, tem aspectos construtivos e signi ca dinamismo e
energia vital. A violência, ao contrário, tem sempre implícita a
destrutividade. Essa destrutivida de, todavia, também pode ser
libertadora quando, não havendo outra alternativa, é utilizada
como forma de defesa e de a rmação humana. No entanto, num
sentido restrito, o termo violência explicita o conjunto de
ocorrências que põem em perigo bens da vida e a integridade das
pessoas.

48
nanci stancki da luz

Diante da complexidade e extensão do tema, algumas de


nições e delimitações revelam-se necessárias. Consideramos a
violência como uma construção histórica e social da qual faz parte
as desigualdades de gênero.
O fenômeno da violência, de acordo com Herkenho (2004),
pode se manifestar a partir de três níveis que mantém nítida
conexão:

1) Violência institucionalizada, decorrente da estrutura


socioeco nômica vigente;
2) Violência privada, de indivíduos ou grupos, que se
manifesta por meio de comportamentos considerados
criminosos pelo sis tema legal;
3) Violência o cial, representada pela repressão policial e por
aquela exercida pelo aparelho judiciário e prisional.

Este texto considera a inter-relação entre esses três níveis, no


entanto destaca a violência entre indivíduos e particularmente a
decorrente de comportamentos masculinos contra a mulher.
Violência contra a mulher é entendida, conforme Teles (2006),
como uma relação de poder de do
minação do homem e de submissão da mulher. Ela é resultado de
um processo de socialização, e não um resultado da natureza.
Consideramos ainda, conforme a mesma autora que:

• Violência significa o uso de força física, psicológica ou


intelec tual para obrigar outra pessoa a fazer algo que ela
não está com vontade; é o constrangimento, o impedimento
a outra pessoa de manifestar seu desejo, sob pena de viver
ameaçada, espancada, lesionada ou mesmo ser morta.
• Violência contra a mulher é aquela praticada contra a
pessoa do sexo feminino, apenas por sua condição de
mulher, referindo-se à agressão psicológica, física, sexual
ou patrimonial direcionada exclusivamente à mulher.
• Violência doméstica refere-se às agressões sofridas em
casa ou nas relações intrafamiliares.
• Violência de gênero é um conceito que abrange vítima de am-

49
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

bos os sexos e é praticada por quem detém mais poder na


relação. Deve-se considerar, todavia, que o poder masculino
é incentivado por um sistema de exploração e dominação
que ordena o contro le e o domínio, levando homens, muitas
vezes, a lançar mão do uso da força, seja física ou
emocional.

A construção da violência
A violência contra a mulher e, particularmente, a doméstica nem
sempre foi punida. Para isso, tentou-se justi cá-la com argumentos
de que essa violência é constitutiva da cultura de um povo, parte
da natureza hu mana ou de menor poder ofensivo. Situação
questionada por mulheres do mundo todo, e cujo reflexo
percebemos em mudanças, sejam na in terpretação e de nição do
que é a violência, sejam no comportamento individual e nas ações
institucionais que demonstram não mais aceitá-la com
naturalidade e buscam resgatar a dignidade e os direitos femini
nos.
Entretanto a violência contra a mulher tem se revelado
bastante enraizada em nossa sociedade. A sua naturalização e
reprodução con tam com importantes apoios. Desvelar esses
mecanismos que con tribuem para a sua reprodução social pode
ser o primeiro passo para desconstruí-la.
Comportamentos violentos dos adultos ou formas de
convivên cia e organização familiar que reforçam a subordinação
feminina con sistem em um desses mecanismos. Fazer parte de
relações em que a violência é rotineira pode levar as crianças a
considerá-la natural. Se no âmbito familiar as crianças vivenciam a
hierarquia/dominação entre os sexos, relações violentas e se o
silêncio e o conformismo são apresenta dos como forma de
proteção, a violência pode ser aceita, suportada e também
reproduzida.
No Brasil é comum a propagação de ditados que reforçam e man
têm a idéia de que a violência doméstica consiste em um problema
do espaço privado, ninguém poderia se opor a ela ou mesmo
envolver-se e, por mais absurdo que pareça, que poderiam fazer
bem ao relaciona mento afetivo: “em briga de marido e mulher
ninguém mete a colher”; “a mulher é minha e eu faço dela o que
eu quiser”; “eu não sei porque eu bato, mas ela sabe porque
apanha”; “mulher gosta de apanhar”, “mulher

50
nanci stancki da luz

é como pão, quanto mais bate, melhor ca”, entre tantos outros
absur dos.
Todas essas frases, repetidas reiteradamente, podem levar
al guns a acreditarem que isso seja verdadeiro, entretanto, as
situações de violência vivenciadas pelas mulheres e suas
conseqüências deixam evidente a inverossimilhança de tais
afirmações. É ilógico pensar que alguém possa gostar de
apanhar, de viver sob constante ameaça, de ser agredida ou
humilhada. Talvez uma mente doentia que deseja fazer ou faz tais
crueldades busque assim justificar seus atos, mas a sociedade
aceitar e repetir tais disparates não faz sentido.
Além da inverídica afirmação de que mulher gosta de
apanhar, a sociedade cria outros mitos sobre a violência,
buscando mostrar que as mulheres agredidas consistem em um
pequeno percentual da população; que a razão das agressões é o
consumo de álcool e drogas; que os agressores têm baixa
escolaridade e são pobres. A realidade desmente tudo isso: o
número de mulheres agredidas não é pequeno, o consumo de
drogas, embora possa intensificar a agres
são, não é a sua causa; há agressores em todas as classes
sociais, po dendo inclusive ser um intelectual, conforme relata
Teles (2006). Essa falsa realidade é reproduzida nas instituições
sociais, in cluindo a escola que não se mantém imune a esse
processo. Esse espaço deveria se voltar prioritariamente para o
desenvolvimento pessoal, acadêmico e social de mulheres e
homens, entretanto pode ser um espaço reprodutor da violência
ao desenvolver uma formação generificada e androcêntrica ,
reforçando assim a dominação mas culina, secundarizando as
atividades da mulher e contribuindo para a baixa resistência à
violência de gênero, culminando na sua aceita ção.
Os heróis, cientistas, intelectuais e políticos podem ser
apresentados como parte de um mundo masculino e, as mulheres
podem simplesmen te desaparecer dos grandes feitos, das
grandes descobertas, en m, serem apagadas da História. Mas,
onde elas estariam quando a história foi vivida? Os homens não
conseguiriam construir nações, desenvolver ciência, inven tar ou
inovar tecnologicamente sozinhos, pois a realidade sempre foi feita
de homens e mulheres.
Além da invisibilidade feminina, outro aspecto que aparece
em ma teriais didáticos é a secundarização das suas atividades.
Segundo Moreno

51
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

(1999), elas aparecem nas páginas dos livros fazendo atividades


do mésticas, aguardando o esposo que está viajando, “ajudando”
os cien tistas, en m, desempenhando papéis considerados
adequados ao seu sexo e mostrados como secundários.
As mulheres não desempenhem apenas atividades desse
tipo e, mesmo que assim fosse, caberia a escola discutir a
relevância de las para a reprodução da vida, para a construção
dos conhecimentos, para as estratégias e as vitórias nas guerras,
etc. A hierarquia das ati vidades tem contribuído para a
desvalorização do trabalho feminino, pois, “coincidentemente”,
aquelas desempenhadas pelas mulheres têm sido menos
valorizadas. Assim, faz-se necessário tanto o resgate da história
de tantas mulheres que foram revolucionárias, cientistas,
guerreiras, etc., quanto à valorização das atividades ainda
associadas ao universo feminino.
As linguagens oral e escrita presentes na escola também
podem refletir a discriminação sexista e ignorar a presença
feminina:

As meninas, mais precoces no uso da linguagem que os meninos,


desco brem antes deles que, quando os adultos se referem a um
grupo infantil que inclui indivíduos de ambos os sexos, o fazem
quase sempre usando unicamente a forma masculina, em nenhum
caso somente a feminina e muito poucas vezes as duas. Quando
esta última ocorre, invariavelmente a masculina ocupa o primeiro
lugar na frase. A professora dirá: “os meni nos e as meninas que vão
à excursão...”. “Venham até aqui um menino e uma menina”, e nunca
se equivocará com a relação à ordem (MORENO, 1999, 38).

A ocultação das mulheres em expressões como “todos os


alu nos” ou “o homem”, a exposição em piadas machistas, a
ocupação de posições hierarquicamente inferiores e secundárias
em livros e exem plos de professores e professoras, entre tantas
outras questões, pre sentes no dia-a-dia escolar, não favorecem o
pleno desenvolvimento das mulheres e constituem um terreno
bastante fértil para a reprodu ção das desigualdades de gênero.
No processo de reprodução da violência contra as mulheres,
somam-se cotidianamente outras contribuições, entre elas as
imagens femininas estereotipadas apresentadas pela mídia. A
televisiva, por exemplo, tem um alcance extraordinário, atingindo
grande parte dos lares brasileiros e contribuindo muito na
socialização das crianças, que

52
nanci stancki da luz
desde pequenas, assistem a programas que naturalizam a
violência e as desigualdades de gênero.
A mídia apresenta, em diversas ocasiões, mulheres como objeto
de consumo, sendo as inúmeras propagandas de cerveja um
exemplo disso. À mulher não é dado nem mesmo o status de
potencial consumidora do produto. Elas passam a ser “algo” que
complementa a própria bebida e que é oferecida ao público
masculino como uma espécie de “bônus” pela com pra da
mercadoria. A mulher e a cerveja passam a ser “coisas” para
serem consumidas e à disposição do prazer masculino.
Propagandas como essas deveriam ser proibidas por contribuir
para a desvalorização da mulher, es timular a idéia de mulher
objeto e reforçar desigualdades de gênero.
A música, importante expressão cultural e que tem grande
popula ridade em nosso país, também pode ser um veículo de
propagação e ba nalização da violência contra a mulher. A música
Um Tapinha não Dói, por exemplo, difunde a imagem de mulher
objeto sexual, passa a mensagem de que mulher gosta de
apanhar, que agressão física coincide com prazer, e que apanhar
não dói:

“Dá uma quebradinha


E sobe devagar
Se te bota maluquinha
Um tapinha eu vou te dar
Porque:
Dói, um tapinha não dói
Um tapinha não dói
Um tapinha não dói
Só um tapinha...”

Não há dúvida: um tapa dói. A dor, inclusive, não é só física,


pois a mulher que apanha passa por um processo de humilhação,
no qual se demonstra a ausência de igualdade, a subordinação
feminina, o descaso com o seu sofrimento e a imposição da
vontade, que não é a dela, pela força bruta. Tais questões se
refletem no psicológico, na auto-estima e na confiança em si
própria, além das seqüelas físicas. Mensagens como a re passada
nessa música acabam por retirar a culpa do agressor e facilitar a
aceitação social da violência, di cultando, por sua vez, a sua
denúncia e punição.

53
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

A incitação à violência, no caso da música Um Tapinha não


Dói, é tão explícita que gerou uma ação judicial movida pelo
Ministério Público Federal (MPF) e pela organização
não-governamental (ONG) Themis Assessoria Jurídica e Estudos
de Gênero, alegando que a letra justi cava a violência masculina a
partir do comportamento sexual da mulher. A Justiça Federal de
Porto Alegre condenou a empresa que lançou a música ao
pagamento de uma multa de R$ 500 mil por enten der que a letra
banalizava a violência, estimulava a sociedade a inferio rizar a
mulher, causando assim dano moral difuso à mulher (OGLIARI,
2008).
Assim, podemos veri car que a construção da violência
contra a mulher passa por diversos âmbitos. A reprodução da
imagem feminina como um ser “secundário” ou um objeto de
consumo e a sua invisibi lidade acaba por colocar as mulheres
numa posição de inferioridade, afasta a idéia da igualdade entre
homens e mulheres e di culta a reali zação dos direitos individuais
e sociais.

O assassinato de mulheres
Vale destacar que as representações femininas tratadas
anteriormente contribuem para o desenvolvimento do sentimento
de posse demons trado por alguns homens em suas relações
afetivas e que, em muitos casos, culminam em atos de extrema
violência: assassinatos, agressões, seqüestros e cárcere privado
de mulheres vítimas daqueles que justifi
cam suas atrocidades em um dos mais nobres sentimentos: o
amor. Uma importante reflexão a respeito dessa temática é
apresenta da pela autora Eva Blay em seu livro Assassinato de
mulheres e direi tos humanos, no qual se discute por que os
crimes contra as mulheres continuam tão disseminados em nossa
sociedade. A autora revela que não obstante as exigências de
punição dos agressores há concomitan temente um aumento da
taxa de homicídios de mulheres, crime que se faz presente em
todas as classes sociais. Embora esse tipo de violên cia possa
parecer menor na camada alta, isso decorre do fato de que os
criminosos com maior poder aquisitivo têm maiores facilidades
para fugir ao flagrante ou mesmo de desaparecerem, auxiliados
por advo gados, clínicas de saúde ou amigos influentes. Os dados
desmentem a visão de que a violência contra a mulher só existe
entre os mais pobres e menos escolarizados.

54
nanci stancki da luz

Inúmeros são os casos em que homens matam ou tentam


matar as mulheres que decidem nalizar relações “afetivas” que
mantém com esses agressores. Blay (2008) apresenta alguns
casos que geraram gran de repercussão e acabaram ocupando
espaços de destaque na mídia. Um deles é o de Angela Diniz,
assassinada, em 1976, por Doca Street. Após três meses de
convivência, Angela, por não suportar o companhei
ro ciumento e agressivo, rompeu o relacionamento e mandou que
este saísse de sua casa em Cabo Frio, no estado do Rio de
Janeiro. Ele saiu da residência, mas minutos depois retornou e
matou-a com vários tiros, especialmente no rosto e no crânio.
A autora destaca o modelo de defesa dos assassinos “por
amor”, ensinado por Evandro Lins e Silva em seu livro A defesa
tem palavra. O autor ensina aos advogados como defender tais
criminosos e toma como referência a defesa que ele próprio fez
do assassino de Angela Diniz. Nesses ensinamentos, o jurista
apresenta duas estratégias prin cipais:

1. Demonstrar o bom caráter do assassino;


2. Caracterizar a vítima por valores negativos e
desaboná-la, mos trando que ela levou o assassino ao ato
criminoso.

Para justi car o “impulso” criminoso, apresenta a paixão


como sentimento que guiaria a mão que, na verdade, não teria a
intenção de matar. Para o jurista, a defesa deveria sobretudo
penetrar nos sentimen tos que levam o homem a cometer um
crime passional e, para isso, su gere que o defensor sirva-se da
literatura (inclusive, sugere livros). Isso muniria o defensor de
elementos a respeito do sentimento de rejeição, do desvario da
paixão, en m, sobre o sofrimento de uma pessoa cujo único
pecado teria sido amar demais e que, no entanto, recebeu em tro
ca a ingratidão da pessoa amada. Tais elementos deveriam
comover o júri e levá-lo a inocentar o assassino, levando a crer
que a morte seria a única resposta à “ingratidão” feminina frente a
tanto “amor”.
Nada mais absurdo, induzir um júri a pensar dessa forma. O as
sassinato deixa de ser um crime para ser uma conseqüência
aceitável da resistência da mulher à posse e aos desejos
masculinos. Raciocínio que equivale dizer que a “vítima é autora
da própria morte”, portanto, o assassino não teria participação no
crime que cometeu e, dessa forma,

55
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

não precisaria ser punido. Lógica parecida prevalecia nas justi


cativas de assassinatos em “legítima defesa da honra” e que
abria o caminho para a impunidade.
Como falar em amor em casos como esses? Talvez fosse
mais apropriado falar em “morte por ódio”, “morte por não saber
perder”, “morte por desconsideração com a vítima”, “morte para
manter a pos se”, “morte por desprezo”... Não há que se falar em
amor numa atitude criminosa que demonstra sentimento de posse
e total desconsideração com a vítima, tratando-a como objeto que,
na iminência de perdê-lo, o agressor prefere destruir.
Mobilizações feministas ocorreram a partir do caso Angela
Diniz, lutando contra a impunidade dos crimes feitos sob alegação
do “amor” ou da “defesa da honra”. Dessa organização nasceu um
importante lema: “quem ama não mata”.
Embora hoje ainda percebamos a presença desses mesmos
ar gumentos e justi cativas para criminosos passionais, temos
mudanças no sentido da não aceitação de uma violação tão
explícita ao direito de viver das mulheres.

A continuidade da violência contra a mulher


A violência contra a mulher não tem classe, raça ou etnia, nível de
ins trução, religião, geração, geogra a... A hierarquia entre os
gêneros, aliada a uma cultura que naturaliza e justi ca a violência,
possibilitou uma verdadeira democratização desse mal social.
O silêncio, o consentimento, a impunidade e a justi cação mar
caram a história da exclusão dos direitos femininos e da negação
da cidadania das mulheres. Por muito tempo, foram consideradas
de me nor gravidade, ou mesmo uma “não violência”, questões
como:

• As relacionadas ao trabalho feminino: dupla ou tripla


jornada de trabalho e todas as suas conseqüências para a
saúde da mu lher; divisão sexual do trabalho, no qual as
mulheres se inserem em atividades consideradas
“femininas” e que justi cam salários menores e menor
prestígio social dessas profissões; processo de segregação
do trabalho feminino, alocando-as em atividades e setores
precários e com pouca mobilidade pro ssional; femini zação
da pobreza; salários femininos inferiores aos salários mas-

56
nanci stancki da luz

culinos no exercício das mesmasfunções; assédio sexual e


moral no trabalho, no qual as mulheres são as principais
vítimas.
• O descaso com a saúde da mulher, como o que ocorre em
re lação ao número de mulheres que morrem ou sofrem
seqüelas devido a abortos “clandestinos” e falta de
assistência médica adequada.
• A transformação da mulher em objeto de uso: a) comercial
– para venda de produtos das mais variadas espécies; b)
sexual – mera fonte de prazer; c) doméstico – para
realização de ati vidades no âmbito privado sem qualquer
tipo de valorização e reconhecimento de seu trabalho.
• A percepção da mulher vítima de violência como a
culpada pela ação do agressor, como nos casos de abuso
sexual, atenta do violento ao pudor, estupro, assédio sexual,
crimes passionais, violência doméstica, nos quais se busca
excluir a culpa masculi na, colocando em foco o
comportamento feminino como supos to causador de tal
violência.
• O grande número de assassinatos de mulheres e os
crimes de violência física, moral e psicológica cometidos por
maridos, companheiros ou namorados, ou ainda desses,
mas na situação de ex.
• O controle da sexualidade e impedimento do prazer
feminino, inclusive, por meio de práticas de mutilações do
corpo da mu lher (cliteridectomia e in bulação , por
exemplo).
• O femicídio (ou feminicídio) – assassinato massivo de
mulhe res em razão de seu sexo, inclusive, envolvendo
tortura, violên cia sexual, queimaduras, mutilações e des
gurações.
• Tráfico de mulheres com objetivo de “vendê-las” para
explora ção sexual, execução de trabalhos forçados e
escravidão.
• O abandono que muitas mulheres se sujeitam aos se
depara rem com uma gravidez ou, quando por falta de
cumprimento das obrigações paternas, elas se vêem
obrigadas a assumir sozi nhas o sustento e a educação de
seus lhos e lhas.

57
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

Esse rol não taxativo de violações de direitos, ao receberem


o con sentimento e a tolerância social, contribui para a
impunidade desses crimes. Essa impunidade, segundo Teles
(2006), é fator que mantém a violência que é acomodada na idéia
de que esse fenômeno é próprio da natureza humana.
A violência contra a mulher no Brasil ainda pode ser
observada nos dados oriundos de uma pesquisa realizada pela
Fundação Perseu Abramo, em 2001, com 2.502 mulheres de 187
municípios (24 esta dos). O estudo traça um panorama a
respeito da questão no país e mostra que esse tipo de violência
ainda está bastante presente em nossa sociedade:

• Aproximadamente uma em cada cinco brasileiras declara


ter sofrido algum tipo de violência por parte de algum homem
– 16% relatam casos de violência física, 2% citam alguma
violência psíquica e 1% lembra do assédio sexual.
• Dentre as formas de violência mais comuns, destacam-se
a agressão física, sob a forma de tapas e empurrões,
sofrida por 20% das mulheres; a violência psíquica,
caracterizada por xinga mentos, com ofensa à conduta moral
da mulher, vivida por 18%, e a ameaça por meio de coisas
quebradas, roupas rasgadas, ob jetos atirados e outras
formas indiretas de agressão, vivida por 15%.
• 12% das mulheres declaram ter sofrido a ameaça de
espanca mento a si próprias e aos lhos, e também 12% já
vivenciaram a violência psíquica do desrespeito e
desqualificação constantes ao seu trabalho, dentro ou fora
de casa. Espancamento com cor tes, marcas ou fraturas já
ocorreu a 11% das mulheres, mesma taxa de ocorrência de
relações sexuais forçadas (em sua maioria, o estupro
conjugal, inexistente na legislação penal brasileira), de
assédios sexuais (10% dos quais envolvendo abuso de
poder), e críticassistemáticas à atuação como mãe (18%,
considerando-se apenas as mulheres que têm ou tiveram
lhos).
• 9% das mulheres já ficaram trancadas em casa; 8% já
foram ameaçadas por armas de fogo, e 6% sofreram abuso,
forçadas a práticas sexuais que não lhes agradavam.

58
nanci stancki da luz

• Entre as mulheres que já sofreram espancamento, 1/3


afirma que isso só aconteceu uma vez, enquanto outras 20%
dizem ter ocorrido 2 ou 3 vezes. A declaração de
espancamento por mais de 10 ou várias vezes é comum em
11% das mulheres. Há mu lheres que sofrem ou sofreram
espancamentos por mais de 10 anos, ou mesmo durante
toda a vida (4%, ambos os casos).
• A responsabilidade do marido ou parceiro como principal
agressor varia entre 53% (ameaça à integridade física com
ar mas) e 70% (quebradeira) das ocorrências de violência
em qual quer das modalidades investigadas, excetuando-se
o assédio.
Outros agressores comumente citados são o ex-marido, o
ex companheiro e o ex-namorado, que somados ao marido
ou par ceiro constituem sólida maioria em todos os casos.
• Em quase todos os casos de violência, mais da metade
das mu lheres não pede ajuda. Somente em casos
considerados mais graves, como ameaças com armas de
fogo e espancamento com marcas, cortes ou fraturas,
pouco mais da metade das vítimas (55% e 53%,
respectivamente), recorrem a alguém para ajudá las. Em
todos os casos de violência, o pedido de ajuda recai prin
cipalmente sobre outra mulher da família da vítima – mãe ou
irmã – ou sobre alguma amiga próxima.
• Os casos de denúncia pública são bem mais raros,
ocorrendo especialmente diante de ameaça à integridade
física por armas de fogo (31%), do espancamento com
marcas, fraturas ou cortes (21%) e de ameaças de
espancamento à própria mulher ou aos lhos (19%).
• O ciúme desponta como a principal causa aparente da
violên cia, assim como o alcoolismo ou o estar alcoolizado
no momen to da agressão (mencionados por 21%, ambos
os casos).
• A projeção da taxa de espancamento (11%) para o
universo investigado (61,5 milhões) indica que pelo menos
6,8 milhões de mulheres, dentre as brasileiras vivas, já
foram espancadas ao menos uma vez. Considerando-se
que, entre as que admitiram terem sido espancadas, 31%
declararam que a última vez em que isso ocorreu foi no
período dos 12 meses anteriores, projeta-se

59
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

cerca de, no mínimo, 2,1 milhões de mulheres espancadas


por ano no país (ou em 2001, pois não se sabe se este
número aumentou ou diminui ao longo dos anos), 175
mil/mês, 5,8 mil/dia, 243/hora ou 4/minuto – uma a cada 15
segundos.

Se grande parte dessa violência ocorre em relações


familiares, por que tantas mulheres agredidas, desrespeitadas e
desvalorizadas perma necem em relações tão perigosas?
Existe uma tendência no senso comum de atribuir a culpa à
própria mulher. Pensemos nesse sentido: se a vítima é culpada
da sua própria desgraça, então, porque a sociedade deveria se
preocupar, pois, a nal, não se costuma punir o autoflagelo.
Entretanto, esse raciocínio sofista oculta um pólo da relação – o
agressor. Tal lógica retira do centro do pro blema o protagonista da
ação, o que faz desaparecer a própria ação. Se considerarmos
que a mulher agredida é a causadora da agressão, logo, não
existe agressor, ou ele vira vítima. Essa interpretação se faz
presente em casos de violência sexual, quando mulheres são
questionadas a res peito do tipo de roupa que usavam, do lugar
que estavam, do compor tamento que adotavam, buscando
transferir a culpa do agressor para a vítima. Culpar a mulher por
algo que ela não fez, além de injusto, isenta o agressor, reforça a
impunidade, en m, contribui para agravar a violência social e de
gênero.
Lima (et al, 2007), no livro Homens pelo m da violência contra a
mulher: educação para a ação, nos apresenta fatores que podem
ajudar a entender a realidade das mulheres que vivem relações
“afetivas” basea das na violência. Assim, revela que nesse
processo devemos considerar:

• A contribuição da história familiar: o modelo familiar


violento pode contribuir para a escolha de um parceiro
violento, reprodu zindo modelos; situações de violência como
parte das vivências infantis; casamento como fuga da
situação familiar e idealização do parceiro e do
relacionamento.
• A contribuição da auto-estima da mulher: auto-estima
baixa pode levar a mulher a ter dúvidas a respeito de suas
próprias capa cidades; sentimento de desvalorização;
incertezas diante da sepa ração, mantendo-as em relações
violentas.

60
nanci stancki da luz

• A situação emocional da mulher: afeto


deprimido,sentimento de inferioridade, insegurança,
desamparo e retraimento social; proje ção de expectativas
irreais de afeto, proteção, dependência e esta bilidade no
casamento; esperança de mudar as atitudes do marido
ou companheiro; sentimento de responsabilidade pelo
comporta mento agressivo do companheiro.
• A tendência de justificar o comportamento violento do
marido ou companheiro por fatores externos, como di
culdades nancei ras, desemprego, drogas, en m, tirando
dele qualquer responsabi lidade sobre a agressão.
• A valorização excessiva do papel de provedor e pai,
justificando a tolerância da violência; medo de represálias
por parte do marido ou companheiro; crença de que o
marido ou companheiro cumpri rá as ameaças em relação a
si, seus lhos e seus familiares (morte,
perda da guarda do lho ou lha, destruição da casa,
transtornos no local de trabalho, etc.).
• A situação econômica da mulher: carência de apoio
financeiro e oportunidade de trabalho, gerando dependência
econômica e falta de autonomia; medo das di culdades para
prover o seu sus tento econômico e de seus lhos.
• A carência de recursossociais e familiares: isolamento
social, des crédito e falta de apoio familiar; ausência de uma
rede de apoio e caz no que se refere à moradia, escola,
creche, saúde e proteção policial e judiciária.

Todos esses fatores apontam para necessidade da


construção da autonomia feminina, da valorização das mulheres e
da concretização de seus direitos fundamentais. Entender o
motivo que as levam a permane cer em relações que colocam em
risco a própria integridade física deve ser o início de um caminho a
ser trilhado para sua erradicação.

O enfrentamento da violência contra a mulher


O movimento feminista em sua luta histórica de defesa dos direitos
das mulheres mostrou que as desigualdades entre homens e
mulheres são socialmente construídas, permitindo a
desconstrução da naturalização e

61
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

da subordinação das mulheres. As mulheres organizadas


desenvolveram ações de denúncia da violação dos direitos
femininos e deram visibilida de à violência contra a mulher e aos
seus efeitos, permitindo que essa violência passasse a ser
percebida como um problema social e que como tal pudesse ser
enfrentado.
Neste sentido, Teles (2006) argumenta que a naturalização
da violência contra a mulher foi desmisti cada devido à ação
mundial do feminismo e da introdução da categoria gênero nos
estudos sobre o tema. Isso possibilitou mostrar que a violência é
resultado da construção de pa
péis sociais impostos a homens e mulheres e não fruto das
diferenças bioló gicas, o que quebra a lógica patriarcal da violência
e aponta caminhos para a construção de mudanças. Um grande
problema foi que, nos movimentos de direitos humanos, não se
assumia a defesa dos direitos das mulheres. Não se concebia, por
exemplo, que a violência dos maridos ou companhei ros, os
espancamentos ou assassinatos de mulheres, sob alegação de pai
xão ou defesa da honra, consistissem em violações dos direitos
humanos. A organização e pressão das mulheres, entretanto,
possibilitaram avançar e colocar em pauta tais questões.
No que tange à defesa dos direitos humanos na ordem
internacional, a partir da Declaração Universal de 1948,
formou-se, no âmbito das Nações Unidas, um sistema de proteção
normativo global. Esse sistema é integrado por instrumentos de
alcance geral – Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos
e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – e por instrumentos
específicos como as convenções internacionais que buscam
responder à discriminação racial, à discriminação contra a mulher,
à violação dos direitos das crianças, entre outras formas de
violação (PIOVESAN, 2002).
Dessa forma, assegura-se às mulheres um tratamento
específico que dê conta das particularidades e das diferenças,
visando com isso assegurar que os direitos humanos sejam
concretizados também para essa parcela da população. Nessa
perspectiva e com a influência da proclamação do Ano
Internacional da Mulher (1975) e da Conferência Mundial sobre a
Mulher (1975), as Nações Unidas aprovarem, em 1979, a
Convenção sobre a Elimi nação de todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (PIOVESAN, 2002).
No preâmbulo, entre outras questões, a Convenção

reafirma: • A igualdade de direitos entre homens e

mulheres.

62
nanci stancki da luz

• A obrigação dos Estados em garantir a homens e


mulheres a igual dade de direitos.
• Adiscriminação contra a mulher como uma violação dos
princípios da igualdade de direitos e do respeito à dignidade
humana, assim como um impedimento à participação
feminina na vida política, so cial e cultural;
• A discriminação contra a mulher como um obstáculo
para o bem-estar da sociedade e da família, para o
pleno desenvolvi mento das potencialidades da mulher, para
o desenvolvimento de um país, e para a manutenção do
bem-estar do mundo e da paz;
• A necessidade, para alcançar a plena igualdade entre
homens e mulheres, de se modi car o tradicional papel tanto
do homem como da mulher na sociedade e na família;

Nesse sentido, a Convenção sobre a Eliminação de todas as


For mas de Discriminação contra a Mulher considera em seu art.
1º que a dis criminação contra a mulher é “toda distinção, exclusão
ou restrição ba seada no sexo e que tenha por objeto ou resultado
prejudicar ou anular
o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher,
independentemente de seu estado civil, com base na igualdade
do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades
fundamentais nos campos político, eco
nômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.” Com
objetivo de eliminar a discriminação e acelerar a busca pela
igualdade entre homens e mulheres, a Convenção prevê, em seu
art. 4º., a adoção de ações de discriminação positiva visando
compensar des vantagens já existentes: São medidas temporárias
destinadas a acelerar a igualdade de fato entre homens e
mulheres e que cessarão quando os objetivos forem alcançados.
Os Estados que a rati caram, entre eles o Brasil, concordam
em seguir uma política destinada a eliminar a discriminação
contra a mu lher, comprometendo-se a consagrar em suas
Constituições o princípio da igualdade entre os gêneros e
assegurar, por meio de lei, outros meios cabíveis à concretização
desse princípio.
O reconhecimento dessa igualdade foi consagrado no texto
cons titucional de 1988, representando um marco na efetivação
dos direitos

63
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

fundamentais da mulher e uma vitória da luta pela mudança das


condi ções de vida das brasileiras.
Todavia, esse reconhecimento formal impôs à sociedade um
gran de desa o: concretizar essa igualdade no cotidiano de
homens e mu lheres. Para Silva (2008), o reconhecimento formal
de uma condição de igualdade e cidadania plenas, por si só, não
foi, nem poderia ser, capaz de modi car a realidade socialmente
posta ao longo de toda a história. Entretanto, esse
reconhecimento, além de criar a possibilidade jurídica de
efetivação das conquistas, foi também símbolo do resultado
alcançado e alcançável por um processo de intervenção social
organizada, contun dente e efetiva.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Vio lência contra a Mulher – conhecida como Convenção de
Belém do Pará, adotada pela Assembléia Geral da Organização
dos Estados Americanos em 1994, e rati cada pelo Brasil em 1995
– também contribui nesse sen tido.
Ela conceitua a violência contra a mulher de forma ampla,
tratan do-a como uma ofensa à dignidade humana e uma
manifestação de rela ções de poder historicamente desiguais entre
mulheres e homens. Reco nhece que a violência contra a mulher é
generalizada, transcende todos
os setores da sociedade, independe de classe, raça ou grupo
étnico, nível salarial, cultura ou educacional, idade e religião, e que
a sua eliminação é condição indispensável para o
desenvolvimento individual e social da
mulher e sua participação igualitária em todas as esferas da vida.
Assim, de ne, em seu art. 1º., a violência contra a mulher como
“qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte,
dano ou sofrimento físico,sexual ou psicológico à mulher, tanto no
âmbito pú blico como no privado”. Nesse sentido, inclui a violência
física, sexual e psicológica ocorrida dentro da família ou numa
outra relação interpessoal em que o agressor conviva ou tenha
convivido no mesmo domicílio que a mulher. Considera como
violência o estupro, a violação, os maus-tratos, o abuso sexual, a
tortura, o trá co de mulheres, a prostituição forçada, o se qüestro e
o assédio sexual no ambiente de trabalho ou a violência ocorri da
em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou
qualquer outro lugar.
Reconhece que a mulher tem direito a uma vida livre de
violência, de discriminação e inclui o direito de ser valorizada e
educada livre de

64
nanci stancki da luz

padrões estereotipados de comportamento e práticas sociais e


culturais baseados em conceitos de inferioridade e de
subordinação. Estados que a rati caram, entre eles o Brasil,
concordam com a adoção de medidas que visem modi car os
padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres,
incluindo a construção de programas de educação, formais e
não-formais, apropriados a todo nível de pro cesso educativo,
para contrabalançar preconceitos e costumes e todos os tipos de
práticas que se baseiem na premissa da inferioridade ou
superioridade de qualquer dos gêneros ou em papéis
estereotipados para o homem e a mulher, ou ainda que legitimam
e/ou exacerbam a violência contra a mulher. Comprometem-se
com a implementação de ações para prevenir, punir e erradicar a
violência contra a mulher, ado tando em sua legislação interna
normas penais, civis e administrativas necessárias para esse fim,
estabelecendo procedimentos jurídicos justos e e cazes para a
mulher que tenha sido submetida à violência, e que incluam, entre
outros, medidas de proteção, um julgamento oportuno e o acesso
efetivo a tais procedimentos.
No Brasil, entre as medidas já adotadas, destaca-se a Lei
Maria da Penha.

A Lei Maria da Penha


A Lei no. 11.340 de 07 de agosto de 2006, conhecida como Lei
Maria da Penha, foi assim chamada em homenagem à
farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, uma das vítimas
da violência doméstica no país.
O motivo pelo qual a lei recebeu esse nome nos remete ao
ano de 1983, em Fortaleza, estado do Ceará, época em que
Marcos Anto nio Herredia, então marido de Maria da Penha, em
ato flagrantemente premeditado, tentou matá-la por duas vezes.
Na primeira vez, simulou um assalto e, enquanto ela dormia,
desferiu-lhe um tiro de espingarda que a deixou paraplégica. Não
contente, ele ainda tentou eletrocutá-la no banho, por meio de
uma descarga elétrica, pouco tempo após essa primeira tentativa
de homicídio.
A luta de Maria da Penha foi essencial para que seu agressor fos
se preso 20 anos depois do crime. Entretanto, Herredia cumpriu
apenas dois anos de prisão e foi colocado em liberdade. O caso
chegou à Co missão Interamericana dos Direitos Humanos, da
Organização dos Es-

65
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

tados Americanos (OEA), cuja tarefa consiste em analisar


denúncias de violações de direitos humanos. A Comissão,
segundo relatam Cunha e Pinto (2008), acatou a denúncia do
crime de violência doméstica apre
sentado por Maria da Penha, pronunciando-se da seguinte forma:
A Comissão recomenda ao Estado que proceda a uma investi
gação séria, imparcial e exaustiva para determinar a
responsabilidade penal do autor do delito de tentativa de
homicídio em prejuízo da Senhora Fernandes e para determinar se
há outros fatos ou ações de agentes estatais que tenham
impedido o processamento rápido e efetivo do responsável;
também recomenda a reparação efetiva e pronta da vítima e a
adoção de medidas, no âmbito nacional, para eliminar essa
tolerância do Estado ante a violência doméstica contra mulheres.
Frente à omissão do Estado e demora na punição do
agressor, o Brasil, em 2001, foi condenado pela OEA, cuja pena
pecuniária, im posta ao estado do Ceará, era equivalente a 20 mil
dólares.
A Lei Maria da Penha representa um grande avanço no comba te à
violência doméstica, contribuindo para mudanças de cultura no lar.
Ela revela-se inovadora ao expandir o conceito restrito de violên
cia e considerar como violência não só a física, mas também a
psico lógica, a sexual, a patrimonial e a moral, assim definidas na
lei:

• A violência física, entendida como qualquer conduta que


ofenda sua integridade ou saúde corporal.
• A violência psicológica, entendida como qualquer conduta
que cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou
que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento, ou que
vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
cren ças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilha ção, manipulação, isolamento, vigilância constante,
persegui ção contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro
meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação.
• A violência sexual, entendida como qualquer conduta que
constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação
se xual não desejada, mediante intimidação, ameaça,
coação ou
66
nanci stancki da luz

uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de


qual quer modo, a sua sexualidade, que impeça de usar
qualquer método contraceptivo ou que a force ao
matrimônio, à gravi dez, ao aborto ou à prostituição,
mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou
que limite ou anule o exercício dos direitos sexuais e
reprodutivos.
• A violência patrimonial, entendida como qualquer conduta
que con gure retenção, subtração, destruição parcial ou total
de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pesso ais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
• A violência moral, entendida como qualquer conduta que
con- gure calúnia, difamação ou injúria.

Para Cunha e Pinto (2008), a partir da Lei Maria da Penha, a


mu lher passa a contar com um precioso estatuto, não só
repressivo, mas, sobretudo, preventivo e assistencial, sendo sua
aplicação uma exigên cia das estatísticas que demonstram a
situação de verdadeira calami dade pública que assumiu a
agressão contra as mulheres.
Pode parecer óbvio e desnecessário lembrar que as
mulheres são detentoras de direitos fundamentais de todo ser
humano, entre tanto, estatísticas revelam que o direito à vida, à
segurança, à saúde, à educação não tem se efetivado para um
número signi cativo de mu lheres. Assim, nada mais lógico que a
lei reforce esses direitos que no cotidiano têm sido negados às
mulheres:
Art. 2 Toda mulher, independentemente de classe, raça,
etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade
e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades
para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e
seu aperfeiçoamento moral, inte lectual e social.
Art. 3 Serão asseguradas às mulheres as condições para o
exer cício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à
alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça,
ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à
dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

67
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos
Para garantia desses direitos não se prevê apenas medidas
puniti vas. A lei inova ao prever medidas de prevenção à violência.
Em seu art. 8º., apresenta diretrizes de uma política pública que
visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, que
deverá ocorrer por meio de um conjunto articulado de ações da
União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e de
ações não-governamentais, visando entre outras questões:

• A busca das causas, conseqüências e freqüência da


violência do méstica e familiar contra a mulher que
considerem gênero, raça ou etnia.
• O respeito, nos meios de comunicação social, dos valores
éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir
papéis estereotipa dos que legitimem ou exacerbem a
violência doméstica e familiar.
• A implementação do atendimento policial especializado
para as mulheres, em particular nas Delegacias de
Atendimento à Mulher, e a capacitação permanente das
Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de
Bombeiros e dos pro ssionais pertencen tes aos órgãos e às
áreas do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria
Pública, Segurança Pública, Assistência Social, Saúde,
Educação, Trabalho e Habitação quanto às questões de
gênero e de raça ou etnia.
• A promoção e a realização de campanhas educativas de
preven ção da violência doméstica e familiar contra a mulher,
voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, bem
como a promoção de programas educacionais que
disseminem valores éticos de irrestri to respeito à dignidade
da pessoa humana com destaque aos cur rículos escolares,
aos conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade
de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência
doméstica e familiar contra a mulher.

Observamos nos itens anteriores um destaque para os


processos educacionais. A educação é percebida como uma
forma de desconstruir a violência e criar novos valores na
sociedade. Isso impõe aos educadores o desafio de eliminar do
âmbito escolar todos os mecanismos que con
tribuem para a reprodução e naturalização da violência contra a mulher,

68
nanci stancki da luz

substituindo todo esse “entulho” por um projeto educacional com


novas perspectivas nas quais estejam presentes o respeito à
dignidade humana, à diferença e à diversidades, bem como a
construção de uma igualdade real entre homens e mulheres. Isto
exige a efetivação de um dos objetivos educacionais: o pleno
desenvolvimento humano, conforme disposto no art. 2º. da Lei n.
9394 de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – LDB):
Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada
nos prin cípios de liberdade e nos ideais de solidariedade
humana, tem por finali dade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercí cio da cidadania e sua quali
cação para o trabalho.
Tal desa o não é posto tão somente aos educadores. A
violência está presente em todos os espaços sociais, cabendo a
toda a sociedade assumir um posicionamento claro e inequívoco
de que chegou o momen to de um “basta”, demonstrando que o
círculo da violência pode e deve serrompido. Esse rompimento
começa com o fim da tolerância à violência contra a mulher e,
particularmente, contra a violência doméstica para que as novas
gerações possam ter esperança de um mundo justo e aprender
isso já nos primeiros momentos de sua vida, ou seja, em seus
lares ou em ambientes onde prevaleçam afeto e proteção.

Considerações nais
A aceitação social da violência contra a mulher é a própria
negação dos direitos fundamentais de toda uma população. A sua
manutenção preju dica não só as mulheres, visto que contribui
para o agravamento das injus tiças sociais, e isso afeta a todos,
afastando-nos da justiça e da democracia. O desenvolvimento
social, econômico, cultural e político de uma nação depende de
homens e mulheres que, respeitados em suas diferenças, te nham
a garantia de direitos inerentes ao ser humano, entre eles o de
viver sem violência.
Historicamente temos avanços signi cativos no sentido de
enfren tar essa violência, particularmente, na ampliação do seu
conceito e na implementação de ações que visem coibir tal
prática. Todavia, a gravida de do tema exige continuidade na
reflexão, persistência nas ações e que políticas públicas nessa
área sejam prioritárias para o Governo Federal, Estadual ou
Municipal, reconhecendo a importância da construção de re lações
de gênero baseadas no respeito às diferenças.

69
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

A vida é frágil, e exige que seja preservada em sua


plenitude. Há que se desconstruir a naturalização da violência na
sociedade, educando homens e mulheres para relações solidárias
e para a convivência familiar, baseada no respeito aos direitos
individuais e coletivos. Esse desa o deve ser prioridade individual
e institucional. Espera-se que governantes e edu cadores, sejam
esses homens ou mulheres, pais, mães, en m, toda a so
ciedade assuma a proteção da vida e da dignidade de nossas
mulheres. O ser humano não é naturalmente violento e, dessa
forma, se os processos de socialização podem contribuir para a
construção da vio lência, também podem reverter essa realidade,
educando para a sua er radicação. É uma escolha que a
sociedade pode fazer.
A eliminação da violência, especialmente a de gênero, exigirá mu
danças nas relações de poder entre homens e mulheres e uma
aliança entre esses com o objetivo de construir uma sociedade
com justiça so cial. A mulher vítima da violência pode e deve
quebrar esse ciclo, de nunciando e exigindo a punição de seus
agressores. Homens e mulheres podem e devem construir
relações que respeitem os direitos individuais e coletivos e
contribuir na luta pelo m da violência de gênero.
Prevenir, educar para a não-violência e construir relações
huma nas baseadas em parâmetros nos quais não caiba a
violência, seja ela qual for, é um caminho que exigirá mudanças
nem sempre fáceis de se rem concretizadas, entretanto, a opção
de nada fazer é muito perigosa, pois violência não tem “cerca” e
se, num determinado momento, aceita mos que ela atinja uma
parcela da população, em outro, poderá atingir a nós mesmos.
Devemos considerar nalmente que a aprovação de leis,
como a Lei Maria da Penha, e a rati cação de tratados e
convenções internacio nais, como a Convenção de Belém do Pará,
constituem apenas o princí pio do enfrentamento da violência
contra a mulher no país. Devemos continuar exigindo que o
Estado cumpra a sua parte na implementação de ações de
prevenção, combate e punição à violência contra a mulher. Faz-se
necessário que a sociedade mantenha-se mobilizada para scali
zar essas ações e combater a violência e, que, sobretudo, a sua
preven ção ocorra em comportamentos e atividades diárias e no
compromisso com um projeto de sociedade livre da violência.

70
nanci stancki da luz

Notas
1 O androcentrismo consiste em considerar o ser humano do sexo masculino como
centro do universo, como a medida de todas as coisas, como o único observador
válido de tudo o que ocorre no nosso mundo, como o único capaz de ditar as leis,
de impor a justiça, de governar o mundo (MORENO, 1999, p. 23)
2 Extirpação do clitóris acompanhada, muitas vezes, da retirada dos lábios internos
da vul va.
3 Sutura ou introdução de anel ou colchete nos lábios genitais para impedir o coito
ou tor nar a relação sexual um ato de extremo sofrimento; essa costura dos lados da
vulva pode ocorrer após a remoção do clitóris e dos pequenos e grandes lábios.

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TELES, Maria Amélia de Almeida. O que são direitos humanos das
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cíntia de souza batista tortato
4
QUESTÕES DE GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL: AS
POSSIBILIDADES DA LITERATURA INFANTIL

Cíntia de Souza Batista Tortato

Introdução
A abordagem das questões de gênero e diversidade sexual, tendo
a lite ratura infantil como elemento disparador das reflexões e
discussões, foi pensada como uma das estratégias de
sensibilização valendo-se de cur sos de capacitação dirigidos a
pro ssionais da educação da rede munici pal de ensino da cidade
de Matinhos e, posteriormente, da rede estadu al de ensino do
Paraná. O trabalho foi elaborado de forma a contemplar as mais
diversas situações que acontecem em uma escola, e que podem
proporcionar momentos preciosos para a abordagem, com as
crianças ou jovens, de questões de gênero ou de diversidade
sexual. Atendendo ao objetivo geral do curso: Preparar
pro ssionais para a re exão sobre as
questões de gênero e diversidade
sexual na sociedade em geral e na
escola em particular, a m de que
promovam uma educação
democrática e inclu siva, sem
preconceitos nem discriminações. A
equipe responsável optou por trabalhar os conceitos selecionados
para o módulo por meio de di
versas atividades,1 e uma delas foi o uso de livros de literatura
infantil, reconhecendo o trabalho com a literatura como uma forma
consagrada de prática pedagógica no espaço escolar.

Gênero e educação
Como conseqüência das lutas históricas do movimento feminista,
políti cas públicas relacionadas à inserção da perspectiva de
gênero na educa ção começaram a surgir nos documentos legais
a partir da Constituição de 1988, e, depois, com a elaboração dos
Parâmetros Curriculares Nacio nais (1997) e dos Referenciais
Curriculares Nacionais para a Educação In-

73
questões de gênero e diversidade sexual: as possibilidades da literatura infantil
fantil (1998). Essas políticas representaram um avanço, porém,
segundo Vianna e Unbehaun (2006, p. 407):

(...) embora esses documentos constituam importantes instrumentos


de referência para a construção de políticas públicas de educação
no Brasil, a partir da ótica de gênero, contribuindo com a formação e
com a atuação de professoras e professores, essas políticas não são
devidamente efetivadas pelo Estado.

Entre as questões levantadas pelas autoras, na análise de


docu mentos de políticas públicas no Brasil, está o questionamento
acerca da sistematização e aprofundamento das questões que
compõe a perspec tiva de gênero e outras, como as de classe
etnia, orientação sexual e geração, num trabalho constante e
permanente junto aos educadores e ao currículo.
Para uma efetiva inclusão de questões voltadas para o
combate às desigualdades sociais, ações como o curso que está
sendo comentado neste trabalho deveriam se multiplicar tantas
vezes quantas fosse neces sário. Trabalhar conceitos, noções,
construções e desconstruções2 leva tempo e demanda um esforço
conjunto, não basta constar nas orienta ções ou legislações, é
preciso aproximar a escola e todos que participam dela às
contribuições dos especialistas e suas construções teóricas. Para
AUAD (2006, p. 86):

A escola, para que haja aprendizado, interfere nas hipóteses das


crianças sobre os conhecimentos matemáticos, científicos e
lingüísticos. Da mesma maneira, há de se intervir nos
conhecimentos relativos às relações de gêne ro, às relações
étnico-raciais, geracionais e de classe, para que as discrimi nações e
desigualdades acabem.

E ainda mais, é preciso extrapolar os limites da sala de aula


e en volver todos que fazem parte da escola, pois “cada espaço da
instituição – as salas de aula, a sala de professores, a cozinha, o
saguão, o corredor ou o pátio – tem características comuns e,
também, particularidades que lhe são próprias, con gurando sua
própria cultura” (STIGGER e WENETZ, 2006, p. 733.
A abordagem do conceito de gênero procurou proporcionar o
entendimento da construção social e histórica que se fez em torno
dos sexos e das desigualdades que decorreram dessa
construção, enfatizan-

74
cíntia de souza batista tortato

do o aspecto relacional e social do conceito e considerando o


“gênero como constituinte da identidade dos sujeitos” (LOURO,
1997). Apoiou se em Meyer (2003, p. 16), que contextualiza o
conceito de gênero fun damentado numa abordagem feminista
pós-estruturalista, com base em Michel Foucault e Jacques
Derrida, considerando o corpo “como um construto sociocultural e
linguístico, produto e efeito de relações de po der”. Houve uma
grande preocupação em trabalhar a idéia de que tanto as
questões de gênero como as de sexualidade são social e historica
mente construídas e, portanto, podem ser transformadas e
modificadas. Segundo Louro (1997, p. 28):

Em suas relações sociais, atravessadas por diferentes discursos,


símbolos, representações e práticas, os sujeitos vão se construindo
como masculinos ou femininos, arranjando e desarranjando seus
lugares sociais, suas dis posições, suas formas de ser e estar no
mundo. Essas construções e esses arranjos são sempre transitórios,
transformando-se não apenas ao longo do tempo, historicamente,
como também transformando-se na articulação com as histórias
pessoais, as identidades sexuais, étnicas, de raça, de classe (...).

Sobre a literatura infantil


Optou-se por trabalhar com literatura infantil por ser uma prática
bas tante comum nas atividades pedagógicas, seja na escola ou
no meio fa miliar. A literatura infantil compreende um universo de
simbolizações e signi cações que se situam numa posição
privilegiada de comunicação com a criança. Os tipos de
linguagem, ilustrações e formatos têm sido pensados e testados
para esse m entendendo que – a partir da centra lidade que a
criança assumiu na cultura contemporânea – ela também se
constituiu em um grande mercado consumidor (FELIPE, 1999,
2000,
2003; GOUVÊA, 2005; ZILBERMAN e LAJOLO, 1991;
ZILBERMAN, 2003). Os setores acadêmicos ligados à crítica da
literatura infantil como recurso pedagógico ressaltam que o uso de
livros e histórias infantis como pretexto para abordar questões
pedagógicas compromete o cará ter artístico dessa modalidade de
literatura (SILVEIRA, 2003). Para alguns autores a literatura
pertence ao campo do lúdico e da emoção, e sua subordinação
ao discurso científico-pedagógico pode até aniquilá-la
(BURGARELLI, 2005).

75
questões de gênero e diversidade sexual: as possibilidades da literatura infantil

No entanto, a criação e a consolidação da literatura infantil


estão historicamente ligadas a questões de cunho pedagógico.
Gouvêa (2005, p. 81), fazendo um resgate da construção histórica
da literatura infantil, coloca:

De maneira característica, a literatura infantil definiu-se


historicamente pela formulação e transmissão de visões de mundo,
assim como mode lo de gostos, ações, comportamentos a serem
reproduzidos pelo leitor. Construiu-se a concepção de um texto
literário em que o caráter pedagó gico fez-se especialmente presente.
Ao mesmo tempo, à menoridade da infância associou-se a
menoridade da produção literária, no interior desse campo cultural.

Sabe-se hoje que a literatura infantil tem uma trajetória


históri ca vinculada ao contexto social em que surgiu e se
consolidou e que, a partir daí, conquistou um espaço próprio e
importante como um gêne ro literário. Salientamos que neste
trabalho não estamos reduzindo a função da literatura infantil a
um recurso pedagógico, mas estamos nos valendo de um
universo em que as questões principais desse trabalho – as
questões de gênero e da diversidade sexual – possam ser
abordadas com as crianças de forma lúdica e sem modelos de
nidos.4 Como a rma Zilberman (2003, p. 12):

O fato de a literatura infantil não ser subsidiária da escola e do ensino


não quer dizer que, como medida de precaução, ela deva ser
afastada da sala de aula. Como agente de conhecimento, porque
propicia o questionamento dos valores em circulação na sociedade,
seu emprego em aula ou em qual
quer outro cenário desencadeia o alargamento dos horizontes
cognitivos do leitor, o que justi ca e demanda seu consumo escolar.

Silveira (2003) destaca a idéia de que mesmo sem finalidade


explí cita de ensinar, os livros infantis carregam uma ideologia
implícita com estruturas sociais assumidas e valores. Silveira e
Santos (2006, p.1) com plementam:

Assim, mesmo a literatura infantil produzida nos anos mais recentes


que se pretende “emancipatória”, ou “não pedagogizante”, “não
moralizante”, não foge à contingência de carregar consigo
representações de mundo, cons ciente ou inconscientemente nela
plasmadas pelo autor, assim como não pode so sticar demais seus
recursos, sob pena de ser rejeitada pelo leitor infantil.

76
cíntia de souza batista tortato

Em muitos casos, porém, está explícita a intenção de


problema tizar e oferecer possibilidades de leituras de mundo para
as crianças de forma a questionar os padrões hegemônicos.5 A
literatura infantil tam bém está relacionada ao desenvolvimento da
linguagem. Por meio do ludismo e das linguagens simbólica,
imagética e verbal, a criança entra em contato com uma série de
estímulos que vão auxiliá-la em seus pro cessos de aprendizagem
e em sua formação como um todo (CANDIDO, 2003).

Vivendo a literatura infantil


Uma das atividades desenvolvidas com os grupos que
participaram das capacitações foi iniciada com a leitura do livro
Por que meninos têm pés grandes e
meninas têm pés pequenos, de Sandra
Branco. Após a leitura desse livro, é possível fazer uma discussão
acerca de como a autora uti liza estereótipos a respeito das
relações de gênero e, posteriormente, questiona-os. Levantar os
pontos positivos e negativos dessa obra e como ela poderia ser
utilizada em sala de aula, para desconstruir pa
drões socialmente construídos quanto ao comportamento de
meninas e meninos, é também um exercício muito válido na
abordagem das questões de gênero.6
A autora propõe uma reflexão sobre as representações de
gênero valendo-se dos pés e as situações corriqueiras em que as
desigualdades são reforçadas e naturalizadas no discurso. É
preciso prestar atenção na forma de abordagem da autora e na
ilustração do livro, destacando a delicadeza com que o tema foi
exposto.7
A leitura do livro Diversidade, de Tatiana Belinky também
propor ciona uma abertura para discutir as diferenças entre as
pessoas. Esse livro mostra que não importa como as pessoas
são, elas devem ser res peitadas, e que a diferença não deve ser
traduzida em desigualdade. A ilustração do livro, feita com
colagens, de maneira muito lúdica e colo rida, propõe uma
alternativa aos modelos estereotipados, tão comuns em livros
infantis. Todo livro que servir de base ou estímulo para refle xões
acerca de questões de gênero ou diversidade deve ser analisado
em seus pontos positivos e negativos, lembrando que a literatura
infan til não é um mero recurso da pedagogia. Não sendo pensado
para tratar diretamente dessas questões, vão comumente
haver questões a serem consideradas por quem está buscando
na literatura sua fonte de recur-

77
questões de gênero e diversidade sexual: as possibilidades da literatura infantil

sos. No caso do livro citado, dois pontos negativos foram identi


cados: o fato de o livro estar escrito todo no masculino e a única
menção às meninas trazer o adjetivo “pequeninas”. A percepção
desses detalhes demonstra que o leitor, seja ele de que sexo for,
já está atento e crítico às questões de gênero.
Com a leitura desses livros, pode-se discutir as
representações neles apresentadas, questionar outros livros de
literatura infantil com o intuito de sensibilizar acerca das
representações de gênero presentes em diversos tipos de
publicação – que podem ser utilizadas como apoio às atividades
de ensino/aprendizagem – bem como levantar questiona mentos a
respeito da desconstrução de modelos presentes nos livros de
literatura. Como a rma Louro (1997, p. 59) “Os sentidos precisam
estar a ados para que sejamos capazes de ver, ouvir, sentir as
múltiplas for
mas de constituição dos sujeitos implicados na concepção, na
organiza ção e no fazer cotidiano escolar”.
E as famílias?
Para introduzir a discussão a respeito dos tipos de famílias é
válido pen sar em alguns questionamentos, como:
O que é uma família? O que transforma pessoas em família?
Fa mília pressupõe proximidade física? E quanto aos que vivem
em outro lugar, não são considerados como família? Família
pressupõe laços de sangue?
Nos depoimentos das pessoas, comumente, ca muito
marcada, num primeiro momento, a visão de um modelo ideal
de família8 – a chamada família nuclear – composta de pai, mãe
e filhos com papéis pré-de nidos. Segundo Narvaz e Koller (2006,
p. 52):

Estudos com famílias brasileiras (Bernardes, 1995; Hileshiem, 2004;


Narvaz, 2005; Szymansky, 1977) apontam estereótipos acerca da
divisão do tra balho dentro do ambiente doméstico de acordo com o
sexo da pessoa e demonstram a tradicional distinção entre os papéis
do pai e o da mãe na chamada família nuclear, formada pelos pais e
seus filhos dependentes.

Isso marca a força da visão patriarcal9 de família, que foi historica


mente construída e ideologicamente mantida por meio da
dominação masculina (NARVAZ e KOLLER, 2006). Essa
construção diz respeito tam bém às questões de gênero. É
preciso, com apontamentos e explana-

78
cíntia de souza batista tortato

ções, pensar sobre os papéis desempenhados dentro das famílias,


pois, como já foi mencionado, o modelo patriarcal construiu
também todo um campo de ação, comportamentos e
responsabilidades para os ho mens, para as mulheres e para as
crianças de acordo com seu sexo. A forma de perceber a criança
dentro da família e a atribuição de papéis a serem
desempenhados por ela, dentro da dinâmica familiar, também é
resultado da mesma construção histórica10 que elegeu um modelo
de família e normatizou os papéis familiares. Kamers (2006, p.
109) enfatiza que “desde os clássicos estudos de Áries (1981) e
Postmann (1999) sabe
mos que a modernidade, ao instituir um novo lugar para a criança,
inau gura, em relação à família, novos discursos em que as
funções parentais adquirem novas exigências imaginárias.”
No desenvolvimento do trabalho com o tema família é
repe tidamente ressaltada a questão histórica da construção social
que foi elaborada pela sociedade para sustentar um determinado
modelo de família em seu discurso normativo. A idéia é flexibilizar
a forma de pen sar a família e as relações familiares de modo a
compreender que não há necessidade de um modelo
pré-estabelecido, entendendo que essa compreensão é
necessária para sustentação e manutenção do respeito à
diversidade e às formas de família que não sigam o padrão
patriar cal.11 Assim, “é preciso revisar a idéia hegemônica de
família e de pa péis familiares, dado que o estigma atribuído
aos sujeitos que vivem con gurações e papéis alternativos aos
normativos é opressivo, fonte de sofrimento psíquico e terreno
fértil para desigualdades e violações” (NARVAZ e KOLLER, 2006,
p. 53).12
Sabe-se que, no trabalho, os pro ssionais envolvidos com
edu cação, professores ou não, vão se relacionar com alunos
cujas famílias não necessariamente se encaixam no padrão
mencionado13. Os próprios pro ssionais, no campo individual,
experimentam formas de estrutura familiar que não correspondem
ao padrão que muitas vezes é eleito por eles como ideal. Isso
cou evidente nas falas das pessoas enquanto re
fletem a respeito desse assunto.
A leitura do livro infantil O livro da família, de
Todd Parr, trata de forma lúdica as possibilidades de estrutura e
compreensão de família. A obra apresenta o assunto com frases
simples e curtas14, porém, com grande impacto – resultante da
profundidade do assunto e das ilustra
ções muito coloridas e engraçadas. O traçado dos desenhos que ilus-

79
questões de gênero e diversidade sexual: as possibilidades da literatura infantil

tram o livro tem uma relação com os desenhos infantis, denotando


uma idéia de sinceridade, em que o uso das cores fortes não
segue padrões.15 As famílias são representadas tanto por
desenhos de pessoas como por desenhos de animais, recurso
muito utilizado para despertar o interesse da criança.
O objetivo da leitura desse livro é problematizar a discussão
sobre tipos de famílias, mostrando e ressaltando a diversidade e
questionando o padrão de família hegemônico: pai, mãe, filho e
filha. Essa atividade pode levar à discussão acerca das datas
comemorativas, bem como de que forma essas datas estão sendo
trabalhadas no ambiente escolar, como podem ser adaptadas
para que contemplem as diversas estrutu ras familiares e,
conseqüentemente, a realidade de um maior número de alunos e
alunas.
Com essa atividade também é possível discutir os conceitos
de di ferença e desigualdade, buscando evidenciar que todos são
diferentes, porém, as diferenças de cultura, idade, sexo, classe e
raça não podem ser traduzidas em desigualdade e em situações
nas quais pessoas são valorizadas em detrimento de outras
(SILVA, 2004).
A leitura do livro comumente expõe a comoção de algumas
pes soas diante das a rmações do texto, comentários do tipo:
“Puxa, é mes mo...” representam a necessidade de aprender mais
sobre diversidade, respeito e possibilidades. A construção das
representações referentes aos modos de ser de homens e
mulheres, traduzida na questão de gêne ro, deve ser bastante
trabalhada depois da leitura do livro e da discussão inicial. É muito
importante que, por meio das falas, as pessoas trabalhem com a
noção de que suas concepções sobre gênero e papéis de nidos
para os membros de uma família não são imutáveis, e podem ser
orga nizados de outras formas.
Depois de um tempo de discussão e reflexão, torna-se mais fácil
compreender que a estrutura familiar vem se modi cando ao longo
do tempo e das lutas sociais,16 e que é urgente que a escola e
seus pro ssio nais considerem e procurem contemplar em suas
atividades a diversida de de famílias que possam existir ou serem
ainda construídas17.
Faz-se necessário também mencionar que as famílias que se en
caixam no padrão tradicional não devem ser condenadas ou
criticadas por essa escolha, a questão é reconhecer e respeitar
todas as formas de estruturação familiar sem que uma seja tida
como mais certa ou mais

80
cíntia de souza batista tortato

adequada que outras. A respeito disso Wagner, Predebon,


Mosmann e Verza (2005, p. 186), na pesquisa sobre papéis de pai
e mãe na família contemporânea, complementam:

Os dados refletem de forma clara que as mudanças nas funções e


papéis na família contemporânea não vêm ocorrendo com a mesma
intensidade em todos os núcleos. Co-existem modelos familiares e
há um descompasso nas mudanças (...). Não podemos pressupor
um modelo ideal, igualitário e equilibrado (...).

No que se refere às mudanças na estrutura familiar, a questão da


divisão de papéis, funções e modos de ser de homens e mulheres,
uma forma de abordagem, que tem resultado em muito subsídio
para discus são, são os relatos das pessoas de suas experiências
pessoais. Os rela tos geralmente são muito ricos, e por meio deles
é possível trabalhar as questões de gênero e é uma das
possibilidades de mostrar para as crian ças outras formas de
dividir os papéis e as tarefas dentro da família.
Um aspecto marcante também é o exercício de questionar a
for ma de vida e relações familiares vividas por nossas mães em
compara ção com as nossas avós. O raciocínio pode também ser
direcionado a entender porque nossas mães, pais ou avós
construíram suas relações de uma maneira e não de outra. Esses
questionamentos ilustram que formas de viver são passadas de
uma geração à outra, muitas vezes to talmente desconectadas
com o momento histórico e social vivido por cada geração. Como
complementação, ressalta-se a necessidade de ofe recer outras
oportunidades às próximas gerações, num movimento de
superação e transformação, e não, exclusivamente, de repetição.
O que é bom pode ser mantido e passado para as próximas
gerações, entre tanto, muita coisa precisa ser mudada para que as
relações familiares sejam mais igualitárias.

Ler e apreciar
Para o trabalho com as questões de gênero e diversidade foram
esco lhidos alguns livros de literatura infantil que tratam desses e
outros as suntos das mais diversas formas. No trabalho prático
realizado com pro fissionais da educação, nos cursos de
capacitação já citados, a dinâmica
proposta foi dividir as turmas em pequenos grupos e distribuir um
livro de literatura infantil para que cada grupo zesse a leitura e
identi casse

81

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