Você está na página 1de 256

Departamento Editorial: Instituto de História e Ciências Sociais UFCAT

Editor Responsável
Prof. Dr. José Luís Solazzi, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.

Comissão Editorial Executiva


Profa. Dra. Eliane Martins de Freitas, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Getúlio Nascentes da Cunha, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Profa. Dra. Lilian Marta Grisolio, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.

Conselho Editorial
Profa. Dra. Ángeles Castaño Madroñal, Universidade de Sevilha.
Prof. Dr. Claudio Lopes Maia, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Getúlio Nascentes da Cunha, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Profa. Dra. Eliane Martins de Freitas, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Ismar da Silva Costa, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Jose Lima Soares, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Jose Luis Solazzi, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Profa. Dra. Lilian Marta Grisolio, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Luiz Carlos do Carmo, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Profa. Dra. Luzia Marcia Resende Silva, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Profa. Dra. Marcia Pereira dos Santos, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Paulo Cesar Inácio, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Radamés Vieira Nunes, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Profa. Dra. Regma Maria dos Santos, Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil.
Prof. Dr. Rogerio Bianchi de Araújo, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Rio de Janeiro, 2022
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
(EDOC BRASIL, BELO HORIZONTE/MG)

C968 Cultura, política, sexualidade e gênero na América Latina [livro eletrônico] / Organizadores
Eliane Martins de Freitas, Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto, Vinícius Zanoli. – Rio de
Janeiro, RJ: Autografia, 2022.
Formato: ePUB
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-518-4873-9
1. Identidade de gênero. 2. Homossexuais – Aspectos sociais. I. Freitas, Eliane Martins de. II.
Pinto, Rhanielly Pereira do Nascimento. III. Zanoli, Vinícius.
CDD 305.76
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

Cultura, política, sexualidade e gênero na América Latina


freitas, Eliane Martins de (org.)
pinto, Rhanielly Pereira do Nascimento (org.)
zanoli, Vinícius (org.)

isbn: 978-85-518-4873-9
1ª edição, novembro de 2022.

Programa de Pós-Graduação em História - Mestrado Profissional (PPGH-MP)/INHCS.


Avenida Dr. Lamartine Pinto Avelar, 1120, Setor Universitário, Catalão, Goiás.

Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.


Rua Mayrink Veiga, 6 – 10° andar, Centro
rio de janeiro, rj – cep: 20090-050
www.autografia.com.br

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Autografia.
SUMÁRIO

CULTURA, POLÍTICA, SEXUALIDADE E GÊNERO NA AMÉRICA LATINA� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 7


Eliane Martins de Freitas
Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto
Vinícius Zanoli

Parte I – P OLÍ T I CAS E AT I VI SMOS EM DEBATE

CREAR UNA TRADICIÓN ARCO-ÍRIS - APUNTES SOBRE LOS ORÍGENES


DE LAS MARCHAS CONMEMORATIVAS A LOS DISTURBIOS DE
STONEWALL EN AMÉRICA LATINA � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 17
Felipe Cesar Camilo Caro Romero

A NORMA DO PLURAL: NOTAS SOBRE A NOVA HOMONORMATIVIDADE


NO BRASIL E NA ARGENTINA DO SÉCULO XX-XXI  � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 47
Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto
Jorge Luiz da Silva Alves

ATIVISMOS LGBT EM CAMPINAS (SP): FRAGMENTOS DE UMA TRAJETÓRIA  � � � � � � � � � � � � � 67


Vinícius Zanoli

POLÍTICAS INSTITUCIONAIS VOLTADAS À POPULAÇÃO TRANS* NO


ENSINO SUPERIOR PÚBLICO BRASILEIRO E ALGUNS DE SEUS LIMITES
E DESAFIOS  � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 97
Brume Dezembro Iazzetti

DESPATOLOGIZACIÓN, INTEGRALIDAD Y AUTOGESTIÓN: DEMANDAS E


INICIATIVAS POR LA SALUD TRANS EN ARGENTINA (2012-2019) � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 121
Anahí Farji Neer
Parte II – SEX UA LI DAD ES, DISSIDÊNCIAS
E SUBJET I VI DADES

ANTONIO ADALID PRADEL, ENTRE LA SODOMÍA Y LA HOMOSEXUALIDAD� � � � � � � � � � � � � � � � 151


Miguel Alonso Hernández Victoria

MÃES, FILHAS, IRMÃS E QUEENS: REFLEXÕES SOBRE REDES DE AFETO


ENTRE DRAG QUEENS � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 175
Rubens Mascarenhas Neto

ORÁCULOS DISCOTEQUE: ORIENTACIÓN SEXUAL, CLASE SOCIAL Y


VIOLENCIAS EN LA ÉPOCA DE LA GUERRA INTERNA DE EL SALVADOR � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 203
Amaral Arévalo

ENTRE QUARTOS: HOMENS BRASILEIROS E TRABALHO SEXUAL EM LISBOA  � � � � � � 233


Guilherme R. Passamani
CULTURA, POLÍTICA, SEXUALIDADE
E GÊNERO NA AMÉRICA LATINA
Eliane Martins de Freitas (PPGH-MP/UFCAT)
Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto (Doutorando -PPGH/UFSC)
Vinícius Zanoli (LAI/ FU-Berlin)

Desde o fim do século XX, temos assistido, à ampliação e à con-


solidação dos movimentos, antes denominados homossexuais, e ago-
ra LGBTI+ em partes da América Latina (CORRALES; PECHENY,
2010; ROMERO; SIMONETTO, 2019; PINTO, 2011). O ativismo
LGBTI+ na região foi responsável por importantes conquistas para a
construção da cidadania, em geral, e destas sujeitas/es em particular,
enfrentando paradigmas sociais, culturais e políticas no que diz res-
peito às expectativas em relação a gênero e sexualidade (DEHESA;
PECHENY, 2011). Nesse sentido, ainda que de modo desigual, as-
sistimos à consolidação de algumas políticas públicas e direitos para
LGBTI em distintos países da América Latina. Tais políticas foram
fruto de intensas disputas, mas também de colaborações entre ativis-
tas e agentes estatais em distintos âmbitos (FACCHINI, 2005; ZANO-
LI, 2019; PINTO, 2021; DRUCKER, 2004).1 Além dos esforços locais,
alianças, redes e coalizões transnacionais, muito além do impacto
de Stonewall, também tiveram papel importante na consolidação
do movimento LGBTI+ na região2 (ROMERO, 2020) e dos direitos
LGBTI+ na agenda política dos Direitos Humanos, principalmente

1.  Ver também capítulos de três a cinco deste volume.


2.  Ver capítulo um neste volume.

7
em âmbito internacional (PATERNOTTE; SECKINELGIN, 2015;
THORESON, 2014).
Concomitantemente, em reação a estes avanços, vimos também,
o crescimento de um movimento conservador de ultradireita que
propõe uma agenda de combate à construção da cidadania destas
sujeitas/sujeites por todo o continente e pelo mundo (MACHADO;
MISKOLCI, 2019; MISKOLCI; CAMPANA, 2017; PATERNOTTE;
KUHAR, 2018; SANTANA, 2019). Esse movimento, que agrega sujei-
tos e organizações variadas e está longe de se limitar a organizações
de cunho religioso, pode colocar em xeque as poucas conquistas dos
movimentos por diversidade sexual e de gênero. Tal contexto tem co-
locado novos desafios para a circulação de debates e formulação de
políticas públicas que se apresentavam como um horizonte de conso-
lidação das cidadanias dos corpos dissidentes às normas de gênero e
sexualidades de nossa sociedade (MASCARENHAS NETO; ZANOLI,
2016; FACCHINI; CARMO; LIMA, 2020).
Este livro surge como uma proposta de combate aos negacionis-
mos que têm se instalado na arena política latino-americana, mas
também nos espaços de circulação dos conhecimentos produzidos
dentro da academia. Para compreender os desafios de construção da
cidadania destas sujeitas/es, reunimos um conjunto de textos que
proporcionam um olhar reflexivo deste processo histórico. Observan-
do o passado e reelaborando as questões do tempo presente, esta co-
letânea dialoga com diferentes espacialidades e corpos na tentativa de
evidenciar os desafios, as permanências e os avanços de um processo
de humanização iniciado no fim do século XX.
Ademais, este livro surge do desafio e do desejo de estabelecer re-
lações cada vez mais próximas com pesquisadoras e pesquisadores
de diferentes países da América Latina. Esta obra é, portanto, fruto
de um estreitamento de relações acadêmicas do Grupo de Pesquisa
ANÔMALOS com pesquisadores de diferentes países. Esta aproxi-
mação se dá a partir da necessidade, cada vez mais latente, de voltar

8
nossos olhos a processos históricos que se estabelecem nesta região,
bem como as suas especificidades. Ela é fruto também da participa-
ção de alguns dos organizadores e dos autores na Red Latinoamericana
de Archivos, Museos, Acervos e Investigadores LGBTQIA+ (AMAI LGBT-
QIA+), que atua pelo direito à memória e a história LGBT na Améri-
ca Latina, conectando ativistas, instituições e pesquisadores da região.
Tendo como foco a América Latina, este livro analisa contextos
localizados em diferentes países do continente, mas também em espa-
ços que se estabelecem a partir da fronteira e do trânsito de sujeitos.
Para dar conta deste e de outros deslocamentos – o de ideias, sujeitos,
sujeitas e epistemologias – optamos por manter uma proposta bilín-
gue. A coletânea foi dividida em duas partes: 1) Políticas e Ativismos
em Debate; 2) Sexualidades, Dissidências e Subjetividades. Estes eixos
marcam a interdisciplinaridade da obra, que contém capítulos que
utilizam diferentes chaves de análise partindo das ciências humanas
e sociais.
Introduzindo a primeira parte da coletânea, Felipe Caro apresen-
ta uma proposta de periodização da História do Movimento LGB-
TQIA+ na América Latina durante o século XX. A partir de um
contexto de renovação historiográfica, o autor fornece uma inter-
pretação regional da história dos movimentos do seu início até a
atualidade. Em sua proposta, o autor cruza as especificidades e as
similaridades de diferentes contextos com o propósito de reconhe-
cer as tendências políticas, disputas ideológicas e organizativas do
movimento na região.
Em A norma do plural: notas sobre a nova homonormatividade no Bra-
sil e na Argentina do século XX-XXI, Rhanielly Pereira do Nascimento
Pinto e Jorge Luiz da Silva Alves pensam os processos de constituição
das normatividades e homonormatividades. Em diálogo com Peter
Drucker (2017), Chanter (2011) e Scott (1995), este capítulo é cons-
truído em três eixos que nos permitem pensar como é possível incor-
porar o debate de gênero e sexualidade a partir da História Global

9
tendo a Argentina e o Brasil como um exemplo de contextos locais
em conexão com o global. A nova homonormatividade, categoria uti-
lizada pelos autores, é construída a partir da relação entre estrutura e
subjetividades e, a partir deste capítulo, é analisada a formação destas
normatividades e suas relações.
Em Ativismos LGBTI em Campinas (SP): fragmentos de uma trajetória,
Vinícius Zanoli fornece uma análise sobre a trajetória de distintos
grupos de ativismo LGBT na cidade de Campinas. As trajetórias ana-
lisadas partem da fundação do primeiro coletivo, em 1995, até os dias
atuais. Zanoli apresenta os desafios e as articulações do Movimento
LGBTI campineiro, ressaltando suas particularidades frente a parte da
literatura que ainda se concentra em análises sobre as cidades como
Rio de Janeiro e São Paulo. Ademais, o autor busca demonstrar como
a trajetória do ativismo campineiro foi marcada tanto pelas particu-
laridades do contexto local, quanto por contextos sociais, políticos e
culturais mais amplos.
Já Brume Dezembro, em Tensões e convergências no acesso a perma-
nência de pessoas trans* no Ensino Superior Público Brasileiro, analisa os
desafios e as tensões institucionais do acesso de pessoas trans no en-
sino superior em relação com a expansão do acesso à graduação e à
pós-graduação no Brasil. Tendo como marco inicial o processo de efe-
tivação do uso do nome social para a criação de políticas afirmativas,
Dezembro elenca as dificuldades em acessar os dados oficiais sobre
a presença de pessoas trans nestes espaços, e em definir as políticas
públicas realizadas para a população trans.
Encerrando a primeira parte da coletânea, o texto de Anahí Farji
Neer, Iniciativas de usuarios/as y activistas por la salud trans en Ar-
gentina, marca o debate pelo cumprimento da Lei 26.743 de Iden-
tidade de Gênero no âmbito da saúde. Analisando as demandas da
população trans a partir dos conceitos da biocidadania e da cidadania
biológica desde a aprovação da lei em 2012, Anahí utiliza um corpus
documental marcado por periódicos e postagens em redes sociais.

10
A intenção de seu capítulo é refletir sobre os discursos de ativistas e
usuários a partir do acesso ao sistema de saúde argentino.
Abrindo a segunda parte da coletânea, em Antonio Adalid Pradel
entre la sodomia y la homosexualidad, Miguel Alonso Hernandez apre-
senta um dos personagens fundamentais para refeletir a geração mar-
cada pelo Baile dos 41. Partindo de uma análise sobre a transição da
identidade sometica para homossexual o autor percorre a segunda
metade do século XIX e a primeira metade do século XX para com-
preender qual é a hisotricidade marcada em Pradel.
Em Mães, filhas, irmãs e queens: reflexões sobre redes de afeto entre drag
queens, Rubens Mascarenhas Neto parte de uma etnografia produzida
entre 2015 e 2017 para compreender a configuração das redes familia-
res drag e sua importância para o início e a permanência na carreira
artística. A partir da análise das trajetórias de três artistas campineiras,
Mascarenhas Neto discute como as famílias oferecem um importante
suporte material e afetivo para jovens aspirantes a drag.
O trabalho de Amaral Arévalo, intitulado Oráculos Discoteque: orien-
tación sexual, clase social y violencias en la época de la Guerra Interna de El
Salvador, apresenta as disputas e os espaços de sociabilidade ocupados
por dissidentes sexuais e de gênero entre 1980 e 1992. Partindo da aná-
lise do surgimento de Oráculos Discoteque em San Salvador, este ca-
pítulo toma as bases das narrativas escritas no Nuevo Mundo, órgão
interno publicitário de Oráculos, discutindo temas como HIV/Aids, as
identidades no interior da Comunidade Gay Salvadorenha e os proces-
sos de repressão militar que participantes do Oráculos vivenciaram.
Finalizando a coletânea, em Entre quartos: brasileiros e trabalho se-
xual em Lisboa, Guilherme Passamani reflete sobre o trabalho sexual
a partir de uma análise que se dá na aproximação entre o autor e in-
terlocutores. Compreendendo os quartos como elemento central na
vida cotidiana desses homens, Passamani incorpora os debates inter-
seccionais, tensionando a noção de estrangeiro, o ser/estar em uma
nova cidade/país e as relações daí advindas.

11
REFERÊNCIAS
CARO, Felipe; SIMONETTO, Patrício. Sexualidades radicales: los Movimientos
de Liberación Homosexual en América Latina (1967-1989). Izquierdas, n. 46, 2019,
p. 65-85.
CARO, Felipe. Más allá de Stonewall: el Movimiento de Liberación Homosexual de
Colombia y las redes de activismo internacional, 1976-1989. História Crítica, n. 75,
p. 93-114.
CORRALES, J; PECHENY, M. Introduction: The Comparative Politics of Sexuality
in Latin America. In: ___ (orgs.). The politics of Sexuality in Latin America: A Reader
on Lesbian, Gay, Bisexual, and Transgender Rights. Pittsburgh: University of Pitts-
burgh Press, 2010, p. 1-32.
FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e a produção de identi-
dades coletivas nos anos 1990. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
FACCHINI, Regina; Carmo, Íris Nery; Lima, Stephanie Pereira. Movimentos fe-
minista, negros e LGBTI no Brasil: sujeitos, teias e enquadramentos. Educação &
Sociedade, v. 41, 2020. s/p
MACHADO, Jorge; MISKOLCI, Richard. Das jornadas de junho à cruzada moral: o
papel das redes sociais na polarização política brasileira. Sociologia & Antropologia, v.
9, n. 3, 2019, p. 945-970.
MASCARENHAS NETO, Rubens; ZANOLI, Vinícius. Escola, política, família e re-
ligião: disputas em torno da chamada ideologia de gênero. Novos Debates – Fórum de
Debates em Antropologia, v. 2, n. 2, 2016, p. 77-81.
MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a
genealogia de um pânico moral. Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, 2017, p. 725-747.
PATERNOTTE, David; KUHAR, Roman. Disentangling and Locating the “Global
Right”: Anti-Gender Campaigns in Europe. Politics and Governance, v. 6, n. 3, 2018,
p. 6-19.
PATERNOTTE, David; SECKINELGIN, Hakan. “Lesbian and gay rights are hu-
man rights”: Multiple Globalisations and LGBTI Activism. In: PATERNOTTE, Da-
vid; TREMBLEY, Manon (orgs.). The Ashgate Research Companion to Lesbian and Gay
Activism, London and New York: Routledge, 2015, p. 209-224.
PECHENY, Mario; DEHESA, Rafael. Sexualidades y políticas en América Latina:
un esbozo para la discusión. In: CORRÊA, Sonia; PARKER, Richard (orgs.). Sexua-
lidade e Política na América Latina: histórias, intersecções e paradoxos. Rio de Janeiro:
ABIA, 2011, p. 31-79.

12
SANTANA, Ailynn. De la marea rosa a la marea conservadora y autoritaria en
América Latina: desafios feministas. Friedrich-Ebert-Stiftung Ecuador – Instit. Latinoa-
mericano de Invest. Sociales, 2019.
THORESON, Ryan. Transnational LGBTI Rights Activism: Working for Sexual Rights
Worldwide. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014.
ZANOLI, Vinícius. Mais ativista do que gestora: ativismo institucional no campo
do movimento LGBT em Campinas. Sociologia & Antropologia v. 9, n. 2, 2019. p.
495-517.

13
PARTE I

POLÍTICAS E ATIVISMOS
EM DEBATE
CREAR UNA TRADICIÓN ARCO-ÍRIS -
APUNTES SOBRE LOS ORÍGENES DE
LAS MARCHAS CONMEMORATIVAS
A LOS DISTURBIOS DE STONEWALL
EN AMÉRICA LATINA
Felipe Cesar Camilo Caro Romero 3

Introducción

Uno de los elementos mas populares y reconocidos internacional-


mente del movimiento de disidencias sexuales y de género4 son las
marchas conmemorativas a los disturbios de Stonewall. Conocidas
bajo distintos nombres a través del tiempo como marchas de libera-
ción homosexual, marchas del día de la homosexualidad, marchas por
la diversidad o más recientes marchas del orgullo (traducido del inglés
pride), estas movilizaciones se han convertido en un elemento clave
del movimiento de disidencia sexual y de género en todo el mundo,
incluyendo la mayor parte de América Latina. A pesar de un creciente
número de participantes en las grandes ciudades y con la emergencia
de marchas en pequeñas zonas urbanas, el estudio de las conmemo-
raciones de Stonewall en la región es relativamente débil. Existe un

3.  Historiador. Actualmente doctorando en Historia en la Katholische Universitat Eichstätt-


-Ingolstadt. Correo: fccaror@unal.edu.co
4.  Se define al movimiento de disidencia sexual como el conjunto de esfuerzos sustentados a
través del tiempo que luchan contra la norma heterosexual cisgénero hegemónica, siguiendo
la propuesta de Atilo Rubino en su crítica al menos preciso término de diversidad sexual (2019).

17
volumen considerable de investigaciones nacionales, dividida entre
monografías de grado, artículos y capítulos de libros, pero no se han
construido perspectivas transnacionales al respecto. Aunque la histo-
ria del movimiento de disidencia sexual y de género latinoamericano
ha recibido atención en la última década y algunos estudios regio-
nales han surgido tanto de manera comparativa (DE LA DEHESA,
2010; CORRALES y PECHEN, 2010) o transnacional (MOGROVEJO,
2000; FIGARI, 2009; ENCARNACIÓN, 2016; CARO y SIMONETTO,
2019), estos no han incluido un análisis sistemático de la historia de
estas movilizaciones.5 Buscando saldar esta deuda, este artículo se
centrará en la historia de los primeros intentos de conmemorar públi-
camente Stonewall, las implicaciones de estos fenómenos a nivel local
y las tendencias generales de América Latina.
Al tratarse de una conmemoración relativamente homogénea, la
historia de estas marchas nos permite entender la trayectoria del mo-
vimiento de disidencia sexual y de género en la región y su relación
con otros fenómenos globales. Debido a la emergencia pública del
movimiento en América Latina en los setentas, se ha perpetuado la
noción de que tal surgimiento es una extensión de la experiencia esta-
dounidense. Lejos de ser así, recientes investigaciones han propuesto
que la dinámica de redes de activismo que se desarrolló durante este
periodo y las necesidades de contextos específicos llevaron a la crea-
ción de muy diversas experiencias políticas que no solo incorporaron,
adaptaron o rechazaron ideas de otras partes del mundo, sino que
también crearon sus propios símbolos y estrategias de acción políti-
ca (ENCARNACIÓN, 2016, p. 5; CARO y SIMONETTO, 2019, p. 66;
PETERSON et al, 2018, p. 24). El estudio de los Orgullos (como de
ahora en adelante se denominará a estas marchas) permite ahondar
en esta noción.

5.  Y en los casos donde se toca el tema se hace de manera incompleta, como en el apéndice
cronológico del libro editado por Corrales y Pecheny (2010, p. 429-436).

18
Es importante considerar que este texto interpelará en un proble-
ma historiográfico: la búsqueda por el origen. El estatus fundacional
de cualquier fenómeno es un tema controversial y el caso de las con-
memoraciones de Stonewall no es la excepción, siendo en muchos
países un punto acalorado de debate entre activistas e investigadores.
Se mencionará esta discusión cuando sea necesario reconociendo
que, siendo una tradición fundamentalmente ideológica, estas mar-
chas representan una visión específica del pasado que atiende a nece-
sidades particulares del presente (HOBSBAWN, 2000, p.4).
Este texto se dividirá en cuatro partes, delimitadas por tres perio-
dos en donde surgió la tradición de conmemorar los disturbios de
Stonewall en América Latina. La cronología propuesta en este trabajo
es el resultado del análisis de numerosas fuentes secundarias locales,
investigaciones qué estudian directa o tangencialmente las primeras
manifestaciones de todos los países latinoamericanos. Se ha decidido
desarrollar el texto de manera cronológica y no temáticamente en un
intento por presentar la historia de estar marchas de manera procesu
al, reconociendo la influencia que unas experiencias tuvieron sobre
otras y al mismo tiempo ofreciendo una guía de ubicación espacio
temporal para quien se quiera acercar al tema. Esto es, por supuesto,
basado en una interpretación personal del material consultado, que
por lo demás siempre puede ser mayor. Como todo trabajo histórico,
por lo tanto, debe ser considerado como provisional.
La primera parte del artículo explorará los intentos más tempra-
nos de establecer estas tradiciones, cercanos a la nueva izquierda re-
gional y a la emergencia del movimiento de liberación homosexual.
Este periodo cubre las décadas de los setenta y ochenta. En la segun-
da parte se estudiará el periodo con la mayor cantidad de primeras
marchas: la década de los noventas. Este marco temporal está vincu-
lado a la relativa estabilización política de la región marcada por la
llegada de la democracia en antiguos regímenes dictatoriales y varias
reformas constitucionales. También está relacionado con un cambio

19
de dirección en el movimiento de disidencia sexual y de género, que
dejó las ideas más radicales de liberación por unas más moderadas
vinculadas con el emergente marco de derechos humanos. La terce-
ra parte corresponderá al siglo XXI. Este periodo está caracterizado
por un ambiente bastante hostil en donde quienes organizaron las
marchas se enfrentaron a una fuerte oposición alimentada por las ya
establecidas experiencias en otras partes del mundo. Finalmente se
concluirá con unas notas sobre la naturaleza transnacional y sectorial
de la protesta ritualizada, ofreciendo además posibles líneas de traba-
jo para futuras investigaciones.

La primera etapa, 1979-1989

El vínculo entre América Latina y los disturbios de Stonewall no


es obvio. Aunque hoy la mayoría de relatos que reconstruyen la his-
toria de lo que sucedió en Nueva York las noches del 28 y 29 de junio
de 1969 concuerdan en la importancia de las personas de color, es-
pecialmente de mujeres trans, el componente latino dentro de estas
narraciones está subordinada a la discusión de la estructura racista
estadounidense. A pesar de la presunción de internacionalización cos-
mopolita de la ciudad de Nueva York, los disturbios fueron un fenó-
meno bastante local (PETERSON et al, 2018, p. 18-19). Por lo tanto,
los relatos sobre lo que sucedió en Stonewall llegaron a Latinoamé-
rica de la misma manera que llegaron a países europeos, a través de
contactos personales con activistas estadounidenses. Los grupos lo-
cales afuera de este país vieron a los disturbios como un símbolo po-
tencialmente poderoso en la lucha contra la hetero-normatividad. El
eslogan de “Gay Power” y la confrontación con las autoridades resul-
taron atractivos pues, aunque en todas partes existían problemas loca-
les, la brutalidad policial y la vida clandestina eran elementos compar-
tidos por las experiencias de disidencia sexual y de género en todo el
hemisferio occidental (ADAM, 1995, p.92-93).

20
El otro componente importante para comprender la recepción
de los disturbios de Stonewall es el momento de ebullición política
que se vivía por entonces en América Latina. Al igual que en mu-
chas partes de Europa, la nueva izquierda se había convertido en una
tendencia popular entre los jóvenes durante los sesentas y setentas.
Cansados de los partidos comunistas culturalmente conservadores y
políticamente inactivos, la nueva izquierda se presentaba como una
revolución dentro de la revolución. En Latinoamérica estuvo fuerte-
mente asociada con la emergencia de guerrillas, inspiradas en el éxito
de la Revolución Cubana (ARCHILA y COTE, 2015, p. 86-87). Esta di-
vergencia táctica y estratégica del cambio social creó un ambiente fér-
til para la emergencia de nuevas ideas sobre las relaciones raciales, de
género y sexuales; las cuales no encontraban un apoyo sólido en los
partidos de izquierda ortodoxos que sobrestimaban la lucha de clase
por sobre cualquier otro conflicto social. Sin embargo estas ideas tam-
bién encontraron resistencia en muchos de los proyectos guerrilleros
y fueron siendo marginadas también por la nueva izquierda, sobre
ello se hablará más adelante. Es en este nicho ideológico de ebullición
táctica y estratégica en donde surgió el movimiento de liberación ho-
mosexual (ADAM, 1995 p.84).
Las primeras organizaciones de la ola de liberación homosexual en
América Latina aparecieron tempranamente. Para 1967 ya existía una
agrupación argentina llamada Nuestro Mundo que en 1971 se unió a
otras experiencias políticas para formar el Frente de Liberación Ho-
mosexual Argentino (SIMONETTO, 2017, p.7). Y en México, en 1971
surgió el Frente de Liberación Homosexual Mexicano que, aunque
tuvo una corta vida orgánica, pavimentó el camino para nuevos gru-
pos que eventualmente organizaron la primera demostración pública
en conmemoración de los disturbios de Stonewall en América Latina.
La primera marcha conmemorativa de Stonewall en México se lle-
vó a cabo el 28 de junio de 1979 en la capital del país y fue organiza-
da por el Frente Homosexual de Acción Revolucionario Mexicano,

21
Oikabeth y el grupo Lambda (ROCHA, 2014, p. 263). Tuvo por lema
“socialismo sin sexismo” y no generó altercados violentos con las au-
toridades locales, a pesar de contar con un número considerable de
asistentes, 300 personas (GONZÁLEZ, 2005, 92). Este número rela-
tivamente alto pudo deberse al hecho de que esta no era la primera
aparición pública del movimiento de liberación homosexual en las
calles mexicanas. Algunos miembros de estas organizaciones ya ha-
bían participado públicamente en otras dos manifestaciones: una el
26 de julio de 1978 en el aniversario número 25 de la revolución cuba-
na y otra el 2 de octubre del mismo año en el décimo aniversario de la
masacre de Tlatelolco de 1968 (DE LA DEHESA, 2010, p. 101).
En Colombia, el otro país que realizó un Orgullo durante los
ochentas, la movilización surgió con la consolidación en dos ciuda-
des -Bogotá y Medellín- del Movimiento de Liberación Homosexual
de Colombia (MLHC). Esta agrupación organizó la primera conme-
moración pública de Stonewall en la capital del país el 28 de junio
de 1983 (CARO, 2020, p. 218). Al igual que la experiencia mexicana,
varios miembros del MLHC ya habían participado antes en manifes-
taciones públicas (primeros de mayo) y no eran extraños a las diná-
micas de una marcha (Caro, 2020, p.224). Pero a diferencia de lo que
sucedió en México, la marcha realizada en Bogotá no consolidó una
tradición anual por miedo a alienar a otros sectores sociales. Y aun-
que en los siguientes años los disturbios de Stonewall continuaron
siendo un punto de referencia para el movimiento, solo hasta 1995
que regresaron las marchas conmemorativas al país.
Los primeros grupos de liberación homosexual tenían un fuerte
lazo con la izquierda. La participación en la agenda de movilización
local era fundamental para consolidar un movimiento políticamente
legítimo, ya fuese a través de los desfiles del día de los trabajadores
o en manifestaciones apoyando a regímenes revolucionaros como
Cuba. Pero los disturbios de Stonewall fueron una oportunidad para
que los movimientos de liberación homosexual de América Latina

22
crearan una tradición radical propia, que hiciese parte de una historia
sectorial. Apoyándose en los repertorios de movilización locales, am-
bos Orgullos atravesaron famosas calles en Ciudad de México y Bogo-
tá; balanceando una presencia formal, que se consideraba importante
para que su movimiento fuese considerado relevante por otros acto-
res políticos, con una disposición de alegría y fiesta propia de la libe-
ración sexual (GONZÁLEZ, 2005, p. 93-94). Ambas marchas fueron
acompañadas del símbolo más común del movimiento en esos años:
el triángulo rosa, ya fuese pintado en la cara de los manifestantes o
en pancartas. Esta imagen era importante pues vinculaban la perse-
cución y acoso a gays, lesbianas y trans en sus respectivos países con
la violencia sistemática que sufrieron los homosexuales en la Alema-
nia nazi, no solo creando una narrativa histórica común sino también
haciendo su lucha mucho más empática a quién observava.
La elección de Stonewall como suceso a conmemorar no signifi-
ca que no existiesen episodios de lucha social en la historia reciente
del movimiento de disidencia sexual y de género en América Latina.
Pero la mayoría de estas confrontaciones eran entonces relativamente
desconocidas afuera de sus contextos locales y solo hasta ahora han
empezado a recibir atención internacional, gracias tanto a las nuevas
investigaciones históricas como a los nuevos activismos. Un ejemplo
de ello fue un episodio ocurrido en Chile durante la presidencia de
Allende. El 22 de abril de 1973 un pequeño grupo de personas, entre
las que se resalta el liderazgo trans, protestaron en la Plaza de Armas
de Santiago contra la brutalidad policial en un plantón que terminó
en confrontación con las autoridades locales (PEÑA RUIZ, 2017, p.
26). Como se señalará más adelante actualmente esta protesta es con-
siderada un hito fundamental para el movimiento chileno, pero en
su momento fue rápidamente olvidada en parte gracias a la traumá-
tica experiencia del golpe militar de Augusto Pinochet apenas unos
cuantos meses después y la subsecuente persecución a homosexuales
durante la dictadura (PEÑA RUIZ, 2017, p. 28).

23
Otro ejemplo fue lo que sucedió en el Bar Ferro de Sao Paulo el 19
de agosto de 1983. Conocido hoy como el “Stonewall brasileño”, los
disturbios del Bar Ferro fueron el resultado de una redada policial a
dicho establecimiento, cuya clientela era en su mayoría lésbica (BAC-
CI, 2016, p. 72). La casi absoluta predominancia de mujeres durante
los disturbios fue especial no solo para la historia de las confrontacio-
nes violentas entre el movimiento y la policía, sino que también pudo
haber sido la razón por la cual el episodio fuese tan poco conocido
fuera de Brasil. Esconder el papel de las lesbianas, como el de las per-
sonas trans, era una práctica muy usual en la temprana construcción
de la historia del movimiento de disidencias sexuales y de género.6
A pesar de esta primera ola de manifestaciones, fue Stonewall el
suceso que organizaciones en varios países de la región decidieron
abanderar como eje central de movilización. En este primer periodo,
únicamente en México se consolidó anualmente una tradición de mo-
vilización. Mientras tanto en los otros países las disputas ideológicas
dentro y fuera del movimiento restringieron el tipo de unidad necesa-
ria para realizar tal hazaña, posponiendo la consolidación de las con-
memoraciones por una o dos décadas.

La segunda etapa 1990-2000

Durante la década de los noventas América Latina sufrió varios


cambios. El fin de la Guerra Fría fue un duro golpe para la izquier-
da, pues con la disolución de la Unión Soviética se perdió uno de sus
máximos referentes internacionales. Además, surgieron nuevos con-
flictos políticos en la región, en algunos casos la caída de dictaduras y

6.  Fue el caso por ejemplo de los disturbios de Stonewall, donde por mucho tiempo se des-
conoció la importancia de mujeres trans de color. Esta práctica es denunciada en el ensayo
de Max Apperoth “ The cis-washing of the Stonewall Riots- Why trans* activists can’t be
héroes” publicado en línea: https://www.academia.edu/16241721/The_cis_washing_of_
the_Stonewall_Riots_Why_trans_activists_can_t_be_heroes

24
la transición hacia la democracia, en otros casos reformas o cambios
constitucionales. Esto sumado a la apertura económica librecambista
configuró lo que algunos investigadores han llamado la “doble tran-
sición” (BULL, 2013, p.75). En medio de este agitado panorama de
cambios políticos y económicos el movimiento de disidencia sexual y
de género que se venia formando a través de un ala radical en países
como México, Colombia, Brasil, Venezuela y Perú se enfrentó a una
nueva coyuntura que exigió cambios en sus formas de organización y
movilización.
Además de la doble transición, este periodo coincide con el repun-
te de la epidemia del vih/sida. Esto cambió las prioridades de la or-
ganización política, dejando a un lado las ideas más revolucionarias y
anti-estatales de la liberación homosexual en todo el mundo. América
Latina no fue una excepción, pues la mayoría de gobiernos se rehusa-
ron a reconocer este problema como uno de salud pública. Esta epi-
demia develó la estructura moral que empezaba a implantarse con
el neoliberalismo de la doble transacción en la región a través de una
respuesta que emuló las políticas de países como Estados Unidos o
Reino Unido. Tanto allí como en America Latina la expansión del sida
fue perfilada como un asunto personal y muchas veces un castigo di-
vino; evidenciando una clara percepción de la sexualidad como un
problema privado, que ameritaba poca atención por arte del gobierno
y al mismo tiempo tachando al disidencia sexual de perversión, per-
petuando valores religiosos (en su mayoría provenientes del catolicis-
mo en ese momento) que retomaban viejos prejuicios (ADAM, 1995,
p .97). Como respuesta a este ambiente hostíl, el movimiento de di-
sidencia sexual y de género empezó a tomar un rol de cuidador, for-
mando redes de información y solidaridad para apoyar a las personas
infectadas. Esto motivó a las organizaciones a luchar por un reconoci-
miento pleno de la ciudadanía, con la esperanza de acceder a diversos
servicios que pudiesen hacerle frente al virus. Y en esa búsqueda de
reconocimiento estatal, el movimiento empezó a perfilar necesidades

25
específicas y diferenciadas de comunidades concretas, dando paso, en-
tre otras cosas, al uso de las siglas LGBTIQ+.7
La década inició con la conmemoración de Stonewall en Puerto
Rico. La relación cuasi-colonial de este país con Estados Unidos tuvo
un profundo efecto en la emergencia del movimiento de disidencia se-
xual y de género y por extensión de los Orgullos en la isla. Después
de los disturbios en Estados Unidos se formaron varios grupos de mi-
grantes puertorriqueños que definieron su activismo a través de len-
tes que se podrían llamar interseccionales, siendo un ejemplo el grupo
Third World Gay Revolution (QUEIROZ, 2020). Esto generó un flujo
de ideas entre la isla y Estados Unidos posible solo bajo la relación ya
mencionada, diferenciando a Puerto Rico de otros países latinoameri-
canos. Y aunque existían grupos activos desde los setenta que luchaban
contra la fuerte persecución a homosexuales basada en el Código Penal
de 1973, la primera marcha estuvo fuertemente influenciada por el acti-
vismo estadounidense (Laureano 2016, 32). Celebrado el 23 de junio de
1991 en San José, incluyó la participación de Aids Coalition to Unleash
Power (ACT-UP), la famosa organización radical fundada en medio de
la crisis del sida para combatir la desatención del gobierno estadouni-
dense (GAMSON, 1989). También la celebración contó con el liderazgo
de Cristina Hayworth, una mujer trans puertorriqueña y veterana de
Stonewall (LAUREANO, 2016, p. 36). Este título era controversial, pues
no solo Hayworth luchó por muchos años por ese reconocimiento,
sino también porque en ese momento la interpretación tradicionales de
Stonewall habían borrado la ahora reconocida participación de mujeres
trans de color en los acontecimientos.8 En este caso, la conmemoración

7.  Existen numerosas variables a la agrupación de siglas que dependen de las diversas tra-
yectorias que el movimiento de disidencia sexual y de género tiene en un lugar específico.
Fueron también una forma de cuestionar el protagonismo masculino cisgenerico.
8.  Este es aún un tema controversial. Investigadores como David Carter han sugerido que,
por ejemplo, la participación de Sylvia Rivera en los disturbios es producto de una reformula-
ción del mito del evento y de hecho ella no estuvo presente la primera noche de las jornadas.

26
de Stonewall de Puerto Rico puede verse como un inédito puente entre
el mundo estadounidense y el latinoamericano.
El mismo año Nicaragua también celebró su primer marcha. Fue
organizada en Managua con la ayuda de varias ONGs que llegaron
al país después de la perdida electoral de los sandinistas en 1990, el
primer cambio de régimen desde el triunfo de la revolución en 1979
(BABB 2010, p. 274). Aunque inicialmente los sandinistas fueron per-
cibidos como amigables a la lucha homosexual despenalizando la so-
domía, una vez en el poder el gobierno saboteó a las organizaciones
de disidencia sexual y de género y a sus actividades continuamente
(MOGROVEJO, 2000, p. 335). La primera movilización fue una res-
puesta a esta marginalización. La proyección de la película de 1988
Torch song Trilogy fue la excusa para la protesta en la que se denunció
la hostilidad del gobierno anterior (BABB, 2010, p. 283). Sin embargo,
el cambio de régimen probo ser aún más hostil a la disidencia sexual
y de género y reinstauró la ley anti-sodomítica un año después de la
conmemoración. Así, esta tradición nació en medio de un ambiente
bastante hostil, que como se señalará, va a ser una tendencia en las
experiencias centroamericanas y caribeñas.
Los países que siguieron fueron Argentina en 1992 y Uruguay en
1993. En ambos lugares las fechas coinciden con un periodo de reor-
ganización de estructuras democráticas después de regímenes dic-
tatoriales. En el caso argentino, la marcha fue la representación de
una lucha por el reconocimiento político, en contra de la brutalidad
policial en incremento y como denuncia a la actitud de pasividad del
entonces presidente Carlos Menem respecto a la crisis del sida (EN-
CARNACIÓN, 2016, p. 123). Organizada el 2 de julio, incluyó a la
mayoría de las organizaciones de disidencia sexual y de género del
país, quienes logrando reunir alrededor de quinientas personas fren-
te al Congreso Nacional en Buenos Aires. La ayuda de otros grupos,
como las Madres de la Plaza Mayo, fue fundamental para el desarrol-
lo de la jornada y se convirtió en algo usual en estas manifestaciones

27
(BROWN, 2010, p.98). Aunque se estableció así la tradición, en 1997
se cambió la fecha a noviembre a causa del frío invernal ( JONES, LIB-
SON y HILLER, 2006, p.8). En Uruguay la movilización fue concebi-
da como una oportunidad de presentar la proyección política de un
emergente movimiento. El proyecto fue acogido positivamente por
numerosas organizaciones a lo largo del país y para las primeras mar-
chas se contó con la participación de aproximadamente 300 personas
en Montevideo (LAVERDI, 2015, p. 268). En 2003, la Coordinadora de
la Marcha de la Diversidad se creó para facilitar la organización de las
manifestaciones, que ganaron enorme popularidad con la llegada del
Frente Amplio a la presidencia el mismo año (SEMPOL, 2016/2017,
p. 324). También desde ese mismo año la movilización se movió a las
últimas semanas de septiembre, en parte debido al frío pero también
retomando los aniversarios de fundación de varias organizaciones lo-
cales e incluso el aniversario del nacimiento (1 de octubre) del poeta
Juan Meré, reconocido como pionero de la literatura queer uruguaya.
Con el cambio las movilizaciones empezaron a ser llamadas Marchas
de la Diversidad en un esfuerzo por transformar la percepción ori-
ginal de la marcha asociada exclusivamente a Stonewall y criticando
la idea exclusivamente identitaria del sector abrazando una postura
mucho más inclusiva.9
Brasil y Perú en 1995 representan dos casos opuestos. En Brasil
la marcha fue el último evento de una conferencia de la Internatio-
nal Lesbian and Gay Assosiation (ILGA), la primera en Suramérica.
El respaldo de una organización internacional como esta, más la lar-
ga trayectoria del movimiento de disidencia sexual y de género en
el país en medio de la renovación política de la década de los ochen-
tas, hicieron de la organización de la conmemoración pública algo

9.  “¿Por qué se celebra la Marcha por la Diversidad y no del Orgullo LGBTI?” El Observador,
publicado el 28 de septiembre de 2018, consultado el 2 de noviembre de 2020. En línea: Este
artículo lo puede ver en este link: ¿Por qué se celebra la Marcha por la Diversidad y no la del
Orgullo LGBT?

28
relativamente fácil (VIANNA Y CARRARA, 2017, p. 27). En Perú, en
cambio, la presidencia de Alberto Fujimori recrudeció el conflicto
interno con las guerrillas locales, especialmente desde el auto golpe
de 1992. La organización encargada de la primera manifestación, el
Movimiento Homosexual de Lima, era un pequeño grupo que sur-
gió como respuesta a la violencia homofóbica tanto del estado como
de las guerrillas Sendero Luminoso y Túpac Amaru (HERNDON,
2016, p. 11). La escala de la marcha en Rio de Janeiro, con más de
300 asistentes, fue un duro contraste con la pequeña manifestación
en Lima, en la que participaron aproximadamente 25 personas. Sin
embargo, ambas experiencias pueden ser vistas como un reflejo no
solo de sus contextos políticos, pero también de diferentes tradiciones
de movilización, con la izquierda brasileña siendo bastante amigable
y la izquierda peruana bastante hostil. En Brasil la tradición de movi-
lización fue emulada después en Sao Paulo en 1997 y a partir de allí se
convirtió en una de las conmemoraciones de Stonewall más grandes
del mundo, gracias a que se mezcló con la tradición carnavalesca de
la ciudad (FACCHINI, 2003, p. 111). En Perú debido a la violencia del
conflicto interno, las marchas conmemorativas a Stonewall solo re-
surgieron en el país hasta el 2002 (SENAJ, 2013, p. 43).
En 1997 la brutalidad policial fue el eje sobre el cual giraron dos
nuevas movilizaciones. La organización Entre Amigos, dedicada a
combatir el sida, decidió preparar la primera marcha en El Salvador
intentando inyectar en la manifestación una narrativa histórica local.
La justificación de la manifestación no solo fueron los disturbios de
Stonewall, sino también conmemorar el asesinato de varias muje-
res trans en 1984 a manos de las autoridades locales (MAIRE, 2020).
Con ambas narrativas como justificación el evento tuvo lugar el 28
de junio en San Salvador y contó con aproximadamente 200 perso-
nas (GÓMEZ, 2015, p.57-58). Mientras tanto en Venezuela la prime-
ra marcha conmemorativa de Stonewall tuvo lugar esa misma fecha,
pero de noche debido al miedo a la represión violenta, a lo largo del

29
Boulevard de Sabana Grande en Caracas. Organizado por el Movi-
miento de Ambiente de Venezuela (MAV), esta marcha fue una de
las muchas actividades que la organización realizó, continuando una
tradición política que se remontaba a los setentas (LOZADA y AURI,
2017, p. 165-166). Sin embargo, a pesar de la relativa fuerza del MAV y
el hecho de que ese mismo año la ley que posibilitaba el acoso policial
a la disidencia sexual y de género fue abolida, no hubo una continua-
ción de la tradición de movilización por miedo a la policía. Solo hasta
la elección de Hugo Chávez y la redacción de una nueva constitución
resurgió la tradición en 2001, esta vez a plena luz del día (LOZADA y
AURI, 2017, p. 168).
Como se señaló anteriormente el movimiento de disidencia se-
xual y de género chileno ya había contado con una experiencia de
movilización que fue interrumpida por la llegada de Pinochet en
1973. Aunque no fue sino hasta después del final de la dictadura que
emergió la tradición de movilización en el país, durante el periodo
de transición emergieron varias organizaciones que lucharon por el
reconocimiento de las victimas LGBTI del régimen (Robles, 2008,
p. 215). La primera marcha fue organizada en Santiago en 1999 por
el Movimiento de Integración y Liberación Homosexual, una de las
primeras y más populares organizaciones que surgieron durante la
transición democrática. El evento también fue parte de una campaña
que buscaba la modificación de una ley anti-sodomítica activa desde
1875 (PEÑA, 2016, p. 26). Con el paso del tiempo a las conmemo-
raciones de Stonewall se integraron las memorias de la protesta de
1973, que adquirieron un estatus fundacional para el movimiento,
convirtiéndose en el centro de la conmemoración y desplazando la
referencia a los disturbios de Nueva York.
La década termino con tres nuevas marchas en el 2000. Estas
conmemoraciones fueron organizadas en medio de crisis políticas
y dos de ellas no se realizaron en ciudades capitales. En Bolivia, el
año coincidió con la Guerra del Agua de Cochabamba, que minó la

30
legitimidad del entonces presidente Hugo Banzer. En medio de la cri-
sis del gobierno un pequeño grupo de activistas organizaron la pri-
mera marcha el 27 de junio en la ciudad de Santa Cruz. Tenían dos
razones para no organizar el evento en La Paz. Una era el tenso clima
político de la capital que ponía en riesgo a los manifestantes. La otra
era la prohibición de personas trans en la ciudad durante el festival
del Gran Poder que se celebraba entre mayo y junio, supuestamente
debido a un inesperado beso que una mujer trans, Barbarella, le dio
a Banzer durante esas festividades en 1974 (ARUQUIPA et al, 2012,
223). El miedo a la represión por parte de los activistas probó ser bien
fundado, pues el Orgullo de Santa Cruz fue recibido con hostilidad
por parte de observadores y policías. Aunque la tradición persistió
por dos años más en la ciudad, finalmente se trasladó a la capital en
2003 (ARUQUIPA et al, 2012, 227-228).
En Ecuador la conmemoración a Stonewall fue organizada en
Guayaquil durante el periodo que siguió al golpe de enero contra la
presidencia de Jamil Mahuad. Como el caso boliviano, fue organizado
por un pequeño grupo de activistas y recibido con represión policial
(MANCERO, 2007, p. 96-98). Este ataque fue razón suficiente para
considerar a la conmemoración como fallida y por algún tiempo no
fue reconocida como la primera marcha conmemorativa a los distur-
bios, siendo desplazada por una marcha realizada el siguiente año en
Quito o por un plantón llevado a cabo el 6 de diciembre de 1998 en
conmemoración del aniversario de la despenalización de la homose-
xualidad, muy en la tónica de la protesta chilena de 1973 (RAMOS,
2019, p. 111).
La tercera conmemoración del 2000 fue en Guatemala. Esta ma-
nifestación tuvo la particularidad de ser organizada y liderada en su
mayoría por lesbianas. Llevado a cabo en Ciudad de Guatemala por la
Red Regional Lésbica Centroamericana, a diferencia de las otras dos
marchas del año, no recibió agresión policial de ningún tipo (CHANT
y CRASKE, 2997, p. 279). El movimiento ya contaba con una previa

31
experiencia de movilización pública en 1997, una procesión funera-
ria convertida en protesta en honor a María Conchita, una conocida
mujer trans asesinada en la capital (SANDOVAL, 2016, p. 40). Esta ex-
periencia fue un elemento importante para la construcción de la iden-
tidad del activismo en el país y se convirtió en un punto de encuentro
importante alrededor del cual se continuó organizando los Orgullos
que hasta la década de los 2010s. La primera marcha no fue la excep-
ción, usando además el relativamente calmado lema de “somos parte
de una sociedad con iguales derechos”.
Como se mencionó previamente, los noventas fueron el periodo
con mayor emergencia de marchas conmemorativas a los disturbios
de Stonewall en América Latina, contando con un total de doce paí-
ses. Aunque aparentemente diversos, algunas regularidades o tenden-
cias pueden encontrarse en estas movilizaciones, lo que ayuda a en-
tender el desarrollo del movimiento de disidencia sexual y de género
en la región.
Por un lado, la mayoría de protestas surgieron en ciudades capita-
les. No es sorprendente que en estas ciudades se formaran la mayoría
de organizaciones de disidencia sexual y de género, pues las ventajas
de anonimato e individualidad que las grandes urbanizaciones pre-
sentaban para el desarrollo de una subcultura queer ya ha sido regis-
trada por la historiografia (ADAM, 1995, p.7-11). Sin embargo, como
la experiencia ecuatoriana y boliviana pueden mostrar, una visión ex-
tremadamente centralista del movimiento puede ser limitada.
Respecto a la representación de la protesta, las marchas mas pe-
queñas contaban con pocos elementos performativos, usando solo
carteles hechos a manos, algunas arengas y en menor medida maquil-
laje. Debido a la informalidad del evento los símbolos colectivos no
resultaban ser fundamentales aún, aunque el ocasional triangulo rosa
apareció de vez en cuando. La mayoría de objetos presentes hacían
alusión a problemas locales. La hoy popular bandera arcoíris tímida-
mente empezó a surgir después de las primeras manifestaciones más

32
masivas en lugares como Brasil, Uruguay o Argentina. Quizá más re-
levante para esta discusión, las alusiones a los disturbios de Stonewall
fueron mínimas o inexistentes en la mayoría de las protestas. Esto
puede verse también en el diverso panorama de nombres que estos
eventos tuvieron, ninguno de los cuales incluía alusión alguna a los
disturbios. Aunque la base de la manifestación era la conmemoración
de un evento, pues se escogía la fecha cercana a la de los disturbios
para realizar la movilización, estas marchas tenían poco que ver con
lo que ocurrió en Nueva York en 1969 y mucho con las realidades lo-
cales de cada país en su momento.
Este periodo representa una fractura en la historia del movimiento
de disidencia sexual y de género en América Latina. Las marchas que
emergieron durante esta década, aunque radicalizadas por la crisis del
sida, venían de diferentes influencias ideológicas que las manifesta-
ciones del periodo anterior influenciadas por la nueva izquierda. El
marco de los derechos humanos, popular durante las transiciones de
dictaduras a democracias en muchos países, se convirtió en una her-
ramienta útil en este nuevo escenario político y por muchos años más
continuó siendo un referente importante para el movimiento (EN-
CARNACIÓN, 2016, p.101). Atrás quedaron los reclamos radicales
por la destrucción de las estructuras opresivas y las muestras de soli-
daridad con regímenes revolucionarios.

La tercera etapa, 2001-2014

En esta última etapa se registra el establecimiento de la tradición


en el siglo veintiuno. La mayoría de estos casos emergen en comu-
nidades muy polarizadas donde el apoyo de organizaciones o insti-
tuciones extranjeras es fundamental para el establecimiento de la
tradición. La razón de esta polarización, aunque muchas veces cir-
cunstancial, se debe en parte gracias a la consolidación de la con-
memoración de los disturbios de Stonewall y el fortalecimiento del

33
movimiento de disidencia sexual y de género en América y Europa,
creando referentes tanto positivos como negativos para los movi-
mientos y las reacciones locales.
Otra característica de este periodo es que, salvo por Paraguay, to-
dos los países en donde se iniciaron tradiciones de Orgullo se encuen-
tran en América Central o el Caribe. Como algunos investigaciones
han sugerido, esta región cuenta con una fuerte oposición al movi-
miento de disidencia sexual y de género, lo que crea un ambiente
profundamente conservador que entorpece la organización (FIGARI,
2010, p. 231). Esto no significa que no existiese una fuerte reacción a
las políticas LGBTIQ en otros países latinoamericanos, pero parece
ser que hubo una particularmente dura resistencia en esta parte del
continente vinculadas a la emergencia de grupos religiosos protestan-
tes bastante conservadores (CORRALES, 2017, pp. 74-75).
La década inicia con la primera manifestación de Republica Do-
minicana. En este país la homosexualidad técnicamente no estaba
prohibida desde 1822. Sin embargo, durante la dictadura de Rafael
Trujillo se reforzaron las ideas de masculinidad reinstaurando una ley
anti-sodomítica para oficiales de policía en 1959. La aplicación de di-
cha ley sobre dos agentes en 2001 dio paso al surgimiento de la orga-
nización GayLesDom (GLD) como parte de una campaña contra la
penalización (ALFY, 2017, p. 19). Ese mismo año a GLD se le denegó
un permiso por la administración local de Santo Domingo para usar
la Plaza España en la primera marcha.10 Sin embargo, esto no evitó
que los activistas marchasen afuera de las murallas de la ciudad con
lemas como “Orgullo=Poder” y “nuestro tiempo es ahora”, realizan-
do así la primera marcha del orgullo del país (Betances, 2014, p. 2).
Esta tradición, sin embargo, no se extendió al país vecino Haití. Allí la
fuerte resistencia a un movimiento de disidencia sexual y de género

10.  Aunque hay registro de una previa manifestación, una caminata, el 31 de marzo de
1999 en donde por primera vez en el país se ondea públicamente la bandera arcoíris (ALFY,
2017, 19).

34
provenía de un persistente ambiente hostil. Algunos investigadores
han sugerido que esto es en parte gracias a la mezcla de viejas nocio-
nes religiosas de la sexualidad perpetuadas junto a modernos prejui-
cios homofóbicos agravados desde el terremoto de 2010 y su supuesta
relación causal con la crisis del sida que por muchos años se creyó que
se originó en este país (Migraine-Georges, 2014, p.14-15).
Regresando a Suramérica, en junio de 2004 Paraguay tuvo su pri-
mera marcha, la última del subcontinente. Esta fue el resultado de
una continua campaña abanderada por la organización Acción Gay
Lésbico-Transgénero contra la discriminación en el país que, aunque
no penalizaba la homosexualidad desde 1880, contenía visiones exclu-
yentes del matrimonio y la familia en su constitución post-dictadura
de 1992. Adicionalmente la movilización se perfiló como una respues-
ta a la controversial declaración del entonces presidente Herminio
Cáceres del partido Colorado, quien afirmó que en dicha agrupación
no se permitían homosexuales (GAG-LT, 2005, p.207). La tradición
de las marchas sin embargo cambió en 2010 a celebrarse el 30 de sep-
tiembre en lugar de junio. Esto se dio en parte debido a los fríos inver-
nales, pero también en homenaje al llamado “Manifiesto de los 108”.
Este documento fue publicado en 1959 como respuesta al arresto de
108 hombres acusados de indecencia moral como respuesta al asesi-
nato del famoso locutor radial Bernardo Aranda, también sospechoso
de comportamientos homosexuales (SZOKOL, 2013, p. 38-39). Desde
entonces el número 108 se ha convertido en un símbolo en Paraguay
y tiene un rol central en a la construcción de una identidad del movi-
miento de disidencia sexual y de género nacional.
Panamá siguió a Paraguay en 2005. Para entonces la única or-
ganización pública de disidencia sexual y de género en el país era
Asociación de Hombre y Mujeres Nuevos de Panamá, debido a las
estrictas leyes de penalización de la homosexualidad. Después de
adquirir reconocimiento legal a través de un largo proceso de tres
años, HMNO decidió celebrar dicho triunfo organizando la primera

35
marcha de la disidencia sexual y de género del país llevada a cabo
en Ciudad de Panamá (SCHULENBER, 2013 p.73-89). Y aunque se
consolidó una tradición de movilización, el ambiente hostil se man-
tuvo. Solo hasta 2008 se despenalizó la homosexualidad de la mano
del decreto ejecutivo 322 presentado por el presidente Martín Torri-
jos. La oposición aprovechó la ocasión para acusarlo de ser pro-esta-
dounidense, relacionando los derechos LGBTI con el país del norte
y la invasión de 1989.
Cuba es un caso especial pues en la isla no se realizan marchas
conmemorativas a los disturbios de Stonewall. La violenta historia
entre la revolución y la disidencia sexual y de género está bien do-
cumentada y las experiencias de las Unidades Militares de Ayuda a
Producción son aún una traumática experiencia que se cierne sobre la
historia de la Revolución Cubana (ALDERETE, 2013, p.12). Solo has-
ta 1988 la homosexualidad fue despenalizada y años más tarde Fidel
Castro admitió el maltrato a los homosexuales durante la revolución,
iniciando un nuevo capítulo para el movimiento en la isla. Una nueva
visión de la disidencia sexual y de género fue cimentada en 2008 con
el derecho al cambio de nombre y género en el documento de identi-
dad, celebrado con lo que se convertió en una manifestación anual los
17 de mayo en el día internacional contra la homofobia. Esta conme-
moración difiere de las marchas acá estudiadas, en tanto no referen-
cia o tiene como punto de partida al evento estadounidense y se ha
convertido en un elemento fundamental para el ala del movimiento
avalado por el gobierno de la mano del liderazgo de Mariela Castro
(HAYDULINA, 2010, p. 270)11.

11.  Sin embargo, no ha estado ausente de críticas e incidentes. Aunque la marcha de 2019
fue cancelada por el nuevo presidente, mucha gente decidió salir a las calles resultando en
confrontaciones violencias con la policía. Ver: “Marcha LGBT en La Habana: las inusuales
reacciones tras los arrestos y enfrentamientos en una marcha gay en Cuba” BBC Mundo, pu-
blicado el 13 de mayo de 2019, consultado el 7 de junio de 2020. Disponible en: https://
www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-48261027.

36
Costa Rica tiene un estatus ambiguo respecto a su primera mar-
cha. Entre 2002 y 2008 en la ciudad de San José se llevaron a cabo
anualmente los Festivales del Orgullo, unos encuentros donde con
música, poesía, teatro y baile se celebraba la disidencia sexual y de
género ( JIMÉNEZ, 2017, p. 72-73). Estos eventos eran estacionarios,
llevados a cabo en su mayoría en la Plaza de la Democracia y por
lo tanto no incluían marchas que interrumpieran el orden regular de
la monotonía urbana. Aunque algunes activistas señalan que el acto
principal del último festival, un besatón, fue lo suficientemente dis-
ruptivo como para ser considerado el primer Orgullo, la mayoría de
investigadores y activistas concuerdan con que la primera marcha
conmemorativa de Stonewall se llevó a cabo el 27 de Julio de 2010 ( Ji-
ménez, 2017, p. 81). Esta manifestación fue parte de una campaña que
buscaba modificar la legislación sobre el matrimonio, extendiendo el
derecho a parejas del mismo género, algo que finalmente ocurrió en
2013. A pesar de la hostilidad, la movilización se ha mantenido fuerte
en el país. Además de la campaña por el matrimonio, se presionó por
un reconocimiento público de derechos logrando un decreto nacional
del día contra la homofobia sancionado por el presidente Oscar Arias
en 2008. Y el fuerte activismo durante las elecciones presidenciales de
2018 mereció un disculpa pública ofrecida por el presidente Carlos Al-
varado el mismo año respecto a la histórica exclusión de la disidencia
sexual y de género en el país.12
El último país en iniciar la tradición de las marchas conmemora-
tivas a Stonewall fue Honduras en 2014. Nuevamente existe un caso
de fecha disputada. El 28 de junio de 2009 varias organizaciones de
disidencia sexual y de género se unieron al Frente Nacional de Re-
sistencia Popular saliendo a las calles a protestar el golpe contra José

12.  “Presidente Carlos Alvarado pide perdón a personas LGBTI por persecución del Estado
costarricense”, La Nación, publicado el 1 de julio de 2018, consultado el 4 de agosto de 2020.
Disponible en: https://www.nacion.com/el-pais/politica/presidente-carlos-alvarado-pide-
-perdon-a personas/FIZJFLCNFZDJ ZL CVXTRSEM3YW4/story/

37
Manuel Zelaya. Como la fecha de esta protesta coincidió con la de los
disturbios de Stonewall, para muchas personas representa la primera
manifestación sectorial del país.13 La marcha de l2014 vino después
de una ardua lucha contra una legislación conservadora que en 2005
ilegalizó el matrimonio igualitario y que solo hasta 2013 implementó
una ley antidiscriminación.14 Honduras, junto con Costa Rica y Gua-
temala han recibido presión por parte de la Corte Interamericana de
Derechos Humanos para establecer protección legal a personas LGB-
TIQ+. Aunque dichas demandas se extienden a toda América Latina,
para muchas organizaciones de esta región han sido un apoyo para
presionar por matrimonio igualitario, ley de cambio de nombre/gé-
nero y prohibición de terapias de conversión. Al mismo tiempo son
una excusa para que los discursos conservadores se organicen en con-
tra de “agendas internacionales”.
Para el desarrollo de este último periodo de las marchas en la re-
gión ya se había establecido una tradición de conmemoración de los
disturbios de Stonewall en muchos países dentro y fuera de América
Latina. Esto tuvo una fuerte influencia en la percepción de importan-
cia de estos eventos para los movimientos de disidencia sexual y de
género locales, que usaron la creciente popularidad de la tradición
para empujar sus propias agendas, en medio de fuertes oposiciones.
Es importante notar que las primeras conmemoraciones de Stone-
wall de los periodos anteriores contaron con una oposición distinta,
pues el factor novedoso y desconocido de estos eventos estaba com-
pletamente ausente en estos últimos casos. La “agenda gay” y luego
la “ideología de género” se convirtieron en marco útiles para que la

13.  Así lo creía el intelectual y activista gay Erick Martínez, asesinado por sus posturas ze-
layistas en 2012. Ver “Del camino amarillo a las calles de Tegucigalpa”, El Necio, publicado el
1 de mayo de 2012, consultado el 3 de agosto de 2020. Disponible en: https://estudiosdela-
mujer.wordpress.com/breve-resena-historica-del-movimiento-lgtbi-de-honduras/
14.  “Resistencia LGBTI en Honduras”, DW, publicado el 31 de julio de 2014, consultado
el 8 de junio de 2020. Disponible en: https://www.dw.com/es/resistencia-lgbti-en-hondu-
ras/a-17817206

38
oposición definiera a las marchas y al movimiento de disidencia se-
xual y de género en base a experiencias externas.

Conclusiones

Como se pudo notar la mayoría de las primeras marchas conme-


morativas en América Latina surgieron en ciudades capitales, inician-
do en los países más cercanos a Estados Unidos (México y Puerto
Rico), luego en el Cono Sur, seguido del resto de Suramérica y termi-
nando en América Central y el Caribe (Ver tabla 1). Por supuesto exis-
ten matices a esta tendencia, como las marchas de Guayaquil y Santa
Cruz y la tardía experiencia paraguaya de 2004. Un estudio sistemáti-
co más profundo de las tendencias de movilización locales permitirá
explicar este orden.

Tabla No. 1
Primeras marchas conmemorativas de Stonewall en América Latina

Año País Ciudad

1979 México Ciudad de México

1983 Colombia Bogotá

1991 Puerto Rico San Juan

1991 Nicaragua Managua

1992 Argentina Buenos Aires

1993 Uruguay Montevideo

1995 Brasil Rio de Janeiro

1995 Perú Lima

1997 El Salvador San Salvador

1997 Venezuela Caracas

1999 Chile Santiago

2000 Bolivia Santa Cruz

2000 Ecuador Guayaquil

2000 Guatemala Ciudad de Guatemala

39
Año País Ciudad

2001 República Dominicana Santo Domingo

2004 Paraguay Asunción

2005 Panamá Ciudad de Panamá

2010 Costa Rica San José

2014 Honduras Tegucigalpa

Fuente: Elaboración del autor.

Como también se pudo observar, aunque la mayoría de manifes-


taciones usaron la fecha de los disturbios de Stonewall como excusa,
la alusión a este evento era mínima. Incluso rápidamente los países
del Cono Sur cambiaron su fecha de conmemoración a un momen-
to del año más cálido. En algunos casos este cambio se justificó de la
mano de la construcción de relatos históricos locales, como el caso
de Chile y Paraguay. En otros casos como México, Guatemala y Sal-
vador los relatos locales se unieron con los de Stonewall creando un
mestizaje conmemorativo que mantiene un sabor local al mismo
tiempo que continua una tendencia internacional. Por lo tanto, aun-
que existieron varias experiencias de movilización locales, fue Sto-
newall el punto de reunión de la tradición de movilización en toda
la región a excepción de Cuba.
Con el paso del tiempo muchas marchas se volvieron masivas,
pero la mayoría de primeros intentos fueron bastante limitados en
número. Algunos investigadores han intentado enmarcar a estas mo-
vilizaciones como una forma de presión política marcada por la “ló-
gica de los números” (PETERSON et al, 2018, 124) pero como se vio
las primeras conmemoraciones eran más sobre la auto-identificación
que sobre masividad. El relativamente pequeño número de partici-
pantes, entre 25 y 300, la presentación de símbolos, la narrativa histó-
rica necesaria para justificar la fecha y el riesgo físico que les activistas
tomaron al salir públicamente del closet en la calle contribuyeron a
la consolidación de una identidad de la disidencia sexual y de género,

40
siendo este el propósito y logro más grandes de estos eventos. Más
que números, estas manifestaciones fueron sobre autopercepción, ra-
bia, y no poco coraje.
Es peligroso asumir que las marchas conmemorativas de Stone-
wall son iguales a un fuerte movimiento o representan el inicio de
uno. Como se registró, muchas primeras manifestaciones emergie-
ron en ambientes bastante hostiles y no pudieron sobrevivir con el
tiempo, siendo forzados a posponerse hasta que un clima político más
favorable permitiera tales manifestaciones, como los casos de Colom-
bia, Perú y Venezuela. Por ello la particularidad de América Central
y el Caribe debe atenderse bajo estudios mucho más minuciosos que
puedan dar cuenta de la relación entre el emergente movimiento de
disidencia sexual y las concepciones de sexualidad más amplias de las
respectivas comunidades.
De igual manera la creciente popularidad de las marchas se debe
en parte a la inversión de capital privado que cada año aumenta. La
industria turística y el llamado “dinero rosa” que ha empezado a mo-
verse alrededor de diversos productos y servicios diseñados específica-
mente para el consumo LGBTIQ+ abundan en las conmemoraciones
de Stonewall, transformando lo que antes fue un evento exclusiva-
mente político en algo distinto, aunque no completamente opuesto
aún. Una investigación rigurosa respecto a este fenómeno permitirá
un reconocimiento de la creciente diferenciación ideológica en el cen-
tro de estos eventos y los riesgos de la ritualización.
Finalmente, algo que debe quedar claro después de este repaso es
que estas manifestaciones no fueron una simple copia de una con-
memoración extranjera. La tradición de conmemorar los disturbios
de Stonewall fue usada por movimientos locales como un punto de
partida, pero no fue irreflexivamente copiado. A diferencia de los pri-
meros de mayo o las movilizaciones del día internacional de la mujer
trabajadora, estas marchas no surgieron por un mandato de una vo-
luntad centralizadora que decidiera su importancia. Su emergencia

41
fue más bien espontánea fuera de Estados Unidos y en su mayoría
solo como una excusa, sin hacer alusión directa a los disturbios. Quie-
nes organizaban eran casi siempre pequeños grupos que por una ra-
zón y otra decidieron usar la fecha, una representación de una lucha,
como un punto de unión para presentar agravios locales. Las marchas
conmemorativas a los disturbios de Stonewall iniciaron como una
tradición desde abajo hacia arriba, completamente dependientes de
los esfuerzos de activistas locales y por lo tanto su continua presencia
en la esfera pública es un logro, resultado de este trabajo.

REFERENCIAS
ALDERETE, Matías. Masculinidad revolucionaria: represión de maricones y la
construcción del hombre nuevo en Cuba posrevolucionaria. Ponencia presentada
en X Jornadas de Sociología, Buenos Aires, Universidad de Buenos Aires, 2013.
ARCHILA Mauricio y COTE Jorge. Historia de las izquierdas colombianas entre
1958 y 2010. Revista Tempo e Argumento, vol. 7, no. 16, 2015, p. 81-107.
ARUQUIPA, David; Estenssore, Vargas. Memorias Colectivas. Miradas a la Historia del
Movimiento TLGB de Bolivia. La Paz: Conexión Fondo de Emancipación, 2012.
ASTREA LESBIAN FOUNDATION FOR JUSTICE, “República Dominicana: Aná-
lisis de las codiciones políticas, económicas y sociales del panorama LGBTT”. Oa-
kland: Design Action Collective, 2017.
BABB, Florence. Out in Public. Gay and Lesbian Activism in Nicaragua. En COR-
RALES, Javier CORRALES y PECHENY, Mario (Dir.). The Politics of Sexuality in
Latin America. A Reader on Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender Rights. Pittsburg:
University of Pittsburg Press, 2010.
BACCI, Irina. Vozes Lésbicas no Brasil. A busca e os sentidos da cidadania LGBT. Tesis de
maestria en Human Righst and Citizenship, Brasilia, Universidad de Brasilia, 2016.
BETANCES, Diurios. El orgullo gay en República Dominicana. (En línea) Observa-
torio Político Dominicano. Unidad de Sociedad Civil. Santo Domingo, 2014, consultado
el 8 de julio de 2020. Disponible en: http://www.opd.org.do/images/PDF_ARTI-
CULOS/Sociedad _Civil/el-orgullo-gay-en-republica-dominicana.pdfn.
BROWN, Stephen. “Con Discriminación y Represión no hay Democracia” The
Lesbian and Gay Movement in Argentina. En CORRALES, Javier y PECHENY,

42
Mario (Dir.) The Politics of Sexuality in Latin America. A Reader on Lesbian, Gay, Bise-
xual and Transgender Rights. Pittsburg: University of Pittsburg Press, 2010.
BULL, Benedicte. “Social Movements and the ‘Pink Tide’ Governments in Latin
America: Transformation, Inclusion and Rejection. En STOKKE, Kristian y TÖRN-
QUIST, Olle (Ed..). Democratization in the Global South. The Importance of Transforma-
tive Politics. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013, Pp. 75-99.
CARO, Felipe. ’Ni enfermos, ni criminales, simplemente homosexuales’ Las pri-
meras conmemoraciones de los distrubios de Stonewall en Colombia, 1978-1982.
Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura, no. 47, 2020/1, p. 201-229.
y SIMONETTO, Patricio. Sexualidades Radicales: Los Movimientos de Liberación
Homosexual en América Latina (1967-1989). Revista Izquierdas, no. 46, 2019, p. 65-85.
DE LA DEHESA, Rafael. Queering the Public Sphere in Mexico and Brazil. Sexual Rights
Movements in Emerging Democracies. Durham: Duke University Press, 2010.
CHANT, Sylvia; Craske. Género en Latinoamérica. México D. F.: Centro de Investiga-
ción y Estudios Superiores de Antropología Social, 2007.
CRUCES, Francisco. El ritual de la protesta en las marchas urbanas. En GARCIA,
Néstor (dir.) Cultura y comunicación en la ciudad de México. Segunda parte: la ciudad y
los ciudadanos imaginados por los medios. México D.F.: Editorial Grijalbo, 1998.
CORRALES, Javier. Understanding the uneven spread of lgbt rights in Latin Ame-
rica and the Caribbean, 1999-2013. Journal of Research in Gender Studies, 7, 2017,
p. 52-82.
________ y PECHENY Mario (Dir.). The Politics of Sexuality in Latin America. A
Reader on Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender Rights. Pittsburg: University of Pitts-
burg Press, 2010.
ENCARNACIÓN, Omar. Out in the Periphery. Latin America’s Gay Rights Revolution.
New York: Oxford University Press, 2016.
FACCHINI, Regina. Movimiento homosexual no Brasil: recompondo um histórico.
Cad. AEL, vol.10, no.18/19, 2003, p.:83-123.
FIGARI, Carlos. El movimiento LGBTI en América Latina: Instituciones oblicuas.
En VILLANUEVA, Ernesto; MASSETTI y GOMEZ (dir.). Movilizaciones, protestas e
identidades políticas en la Argentina del Bicentenario. Montevideo: Nueva Trilce, 2010.
____________Eróticas de la Disidencia en América Latina. Brasil Siglos XVII-XX. Bue-
nos Aires: CLACSO, 2009.
GAMSON, Josh. Silence, Death, and the Invisible Enemy: AIDS Activism and Social
Movement “Newness”. Social Problems, vol. 36, no.4, 1989, p. 351-367.

43
GÓMEZ, Amaral. La marcha por la diversidad sexual en El Salvador ¿Continuidad
o Ruptura? REALIS, v.5, no. 2, 2015, p. 57-74.
GONZÁLEZ, María de Jesús. Marcha del orgullo por la diversidad sexual. Mani-
festación colectiva que desafía las políticas del cuerpo. El Cotidiano, no 131, 2005,
p. 90-97.
GRUPO DE ACCIÓN GAY LÉSBICO TRANSGÉNERO. Hacia una sociedad para-
guaya sin discriminación. En Coordinadora de Derechos Humanos del Paraguay
(dir.), Derechos humanos en Paraguay 2005. Asunción: CODEHUPY, 2005.
HAYDULINA, Anastasia. Interview with Mariela Castro on the Future of Sex and
Socialism in Cuba. En Corrales, Javier y PECHENY, Mario (Dir.) The Politics of Se-
xuality in Latin America. A Reader on Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender Rights.
Pittsburg: University of Pittsburg Press, 2010.
HERNDON, Marco. Soy Moderno y No Quiero Locas: Queer Citizenship in Lima,
Perú”. Senior Seminar Paper Urban Studies Program (En línea), Pensilvania: Universi-
dad de Pensilvania, 2016, conslutado el 5 de julio de 2020. Disponible en: http://
repository.upenn.edu/senior_seminar/18
HOBSBAWM, Eric. Introduction: Inventing Traditions. En HOBSBSAWM, Eric y
RANGER, Terence (Dir.). The Invention of Tradition. Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 2000.
JIMÉNEZ, José. De lo privado a lo público: La celebración del Orgullo LGBTI en
Costa Rica, 2003-2016. Diálogos, vol. 18, no. 1, 2017, p. 65-90.
JONES, Daniel; Lisbon y Hiller. Sexualidades, política y violencia. La marcha del orgullo
GLTTBI Buenos Aires 2005. Segunda Encuesta. Buenos Aires: Antropofabia, 2006.
LAUREANO, Javier. Creación de la ciudad política gay en la década de los 70. En
VÁZQUEZ, Miguel; MARTÍNEZ, FRANCIA y TORO (Dir.) LGBT 101: Una mirada
introductoria al colectivo. Hato Rey: Publicaciones Puertorriqueñas, 2016.
LAVERDI, Robson. “Por primera vez en mi vida me sentí uruguayo”. Ditadura,
matrimonio igualitário, teoría queer e outras lutas LGBT no Uruguai. Memórias e
leituras do ativista e profesor Diego Sempol. Revista Tempo e Argumento, vol. 7, no.
16, 2015, p. 266-283.
LOZADA José; Ramírez. Entre el estigma homofóbico y orgullo gay: una aproximación
a la historia del movimiento lgbti en Venezuela. Tesis de pregrado en historia, Mérida,
Universidad de los Andes, 2017.
MANCERO, Cristina. La construcción del movimiento gay y sus manifestaciones sociales,
culutrales y políticas en la ciudad de Quito. Tesis de pregrado en antropología social,
Quito, FLACSO Ecuador, 2007.

44
MAIRE, Thierry. La marcha del orgullo en El Salvador: (Re) Construcción de la me-
moria, del mito fundador a la realidad histórica. Revista Controversia, no. 125, 2022.
En proceso de edición.
MIGRAINE-GEORGE, Thérèse. From Masisi to Activist: Same-Sex Relations and
the Haitioan Polity. Journal of Haitian Studies, vol. 20, no. 1, 2014, p. 8-33.
MOGROVEJO, Norma. Un amor que se atrevió a decir su nombre. La lucha de las lesbia-
nas y su relación con los movimientos homosexual y feminista en América Latina. México
D.F.: Plaza y Valdes Editories, 2000.
PEÑA, Javiera. Hitos y trayectoria del movimiento de Lesbianas, Gays, Transe-
xuales y Bisexuales (LGTB) en Chile. Tesis de pregrado en historia, Valdivia, Univer-
sidad Austral de Chile, 2016.
PETERSON Abby; Wahlström, Wennerhag. Prides Parades and LGBT Movements:
Political Participation in an International Comparative Perspective. New York: Routled-
ge, 2018.
QUEIROZ, Juan. Third World gay revolution. A cincuenta años de su fundación.
Moléculas. Archivos y memorias fuera del margen (en línea), 2002, consultado el 20 de
julio de 2020. Disponible en: https://www.moleculasmalucas.com/post/el-third-
-world-gay-revolution.
RAMOS, Paulino. Memorias Mecas. Archivo, imágenes y cuerpo en el vigésimo aniversa-
rio de la despenalización de la homosexualidad en Ecuador. Tesis de maestria en antro-
pología visual, Quito, FLACSO Ecuador, 2019.
ROCHA, Juan Carlos. Una mirada histórica y cultural del movimiento LGBTTTI
mexicano. Romance Notes, vol. 54, no. 2, 2014, p.263-273.
ROBLES, Víctor. Bandera Hueca. Historia del Movimiento Homosexual de Chile. Santia-
go: Editorial Cuarto Propio, 2008.
RUBINO, Atilo. Hacia una (in)definición de la disidencia sexual. Una propuesta
para su análisis en la cultura. Revista LUTHOR, no. 39, 2019, p. 62- 80.
SANDOVAL, Tania. Análisis de la cooperación internacional en Guatemala en el marco
del derehco internacional de la comunidad de personas lesbianas, gays, bisexuales, trasn-
genero, transexuales, travestis, intersexuales, queer y más (LGBTIQ+) para la no discri-
minación 2011-2015. Tesis de pregrado en ciencias políticas, Ciudad de Guatemala,
Universidad San Carlos de Guatemala, 2016.
SCHULENBERG, Shawn. Same-sex Partnership Rights in Central America: The
Case of Panama. En PERCESON, Jason; PIATTI-CROCKER y SCHULENBERG
(Dir.). Same Sex Marriage in Latin America. Promise and Resistance. London: Lexington
Books, 2013.

45
SECRETARIA NACIONAL DE LA JUVENTUD. Por una Sociedad Inclusiva: Compila-
ción de Trabajos Sobre Jóvenes Trans, Lesbianas, Gays y Bisexuales. Lima: SENAJU, 2013.
SEMPOL, Diego. La diversidad en debate. Movimiento LGTBQ uruguayo y algu-
nas tensiones de su realineamiento del marco interpretativo. Psicología, Conocimien-
to y Sociedad, vol. 6, no.2, 2016/2017, p. 321-342.
SIMONETTO, Patricio. Entre la injuria y la revolución. El Frente de Liberación Homose-
xual. Argentina, 1967-1976. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2017.
SZOKOL, Erwin. 108. Ciento ocho. Asunción: Arandura, 2013.
VIANNA, Adriana; Carrara. Sexual Politics and Sexual Rights in Brazil: A Case Stu-
dy. En PARKER, Richard; PETCHESKY y SEMBER (Dir.). Sexpolitics: Reports from
the Front Lines. Rio de Janeiro: Sexuality Policy Watch, 2007.

46
A NORMA DO PLURAL: NOTAS SOBRE A
NOVA HOMONORMATIVIDADE NO BRASIL
E NA ARGENTINA DO SÉCULO XX-XXI
Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto 1
Jorge Luiz da Silva Alves 2

Uma urgência global

Gênero é sem dúvida uma chave de análise ainda importante para


nossa sociedade Butler (2003), Scott (1995), Chanter (2011), no entan-
to acreditamos que a categoria não dê mais conta de abarcar todos
os corpos e vivências abjetas que circunscrevem o paralelogramo de
forças da história3. Pensar de maneira mais profunda a sexualidade
parece se tornar um caminho cada vez mais urgente para o estudo

1.  Doutorando em História Global pela Universidade Federal de Santa Catarina. É pes-
quisador do grupo de estudos e pesquisa ANÔMALOS/CNPQ/UFCAT e editor da Revista
Anômalas. Desempenha pesquisa na área das homossexualidades masculinas na América La-
tina do século XX utilizando o queermarxismo e a perspectiva queer of color entrecruzada
com a modalidade da História Global das Sexualidades. rhanielly0884@gmail.com
2.  Mestranda em História Global pela Universidade Federal de Santa Catarina. Graduada
em História pela Universidade Federal de Goiás. É cofundadora do ANÔMALOS – Grupo de
pesquisas e estudos em gênero, sexualidades, classe e etnicidades/raça vinculado à Universi-
dade Federal de Catalão. É membra do IEG/UFSC – Instituto de Estudos de Gênero. Atual-
mente a pesquisadora tem se aprofundado nos debates em torno da Teoria queer, aplicativos
de pegação, homonormatividades, História Global e queermarxismo. E-mail: jorgeluizdasil-
vaalves@gmail.com
3.  Hannah Arendt (2011) em seu trabalho Entre passado e o futuro descreve que os sujeitos
vivenciam um paralelo de forças em que ao mesmo tempo são empurrados do passado para
o futuro e do futuro para o passado.

47
e resistência de corpos desejantes, abjetos, subalternos, insubmissos
enfim corpos dissidentes.
Desde o início deste século a comunidade LGBT global vem acu-
mulando um número considerável de vitórias. O debate sobre sexua-
lidade e gênero é hoje uma das temáticas mais comentadas nos meios
de comunicação e nas relações sociais de grande parte das socieda-
des ocidentais. E foi a partir da sistemática busca por representação
que hoje 29 dos 139 países catalogados pela ONU incorporaram em
seus códigos de leis a aprovação do casamento igualitário tendo como
exemplo o pioneirismo holandês em 2001.
Já na América Latina a primeira lei de casamento igualitário foi
protagonizada pela Argentina ainda em julho de 2010 sendo segui-
da pelo Uruguai em 2013, Brasil em 2013 e Colômbia em 2016. No
entanto, o avanço nos direitos LGBT’s não pode, nem deve ser visto
como um movimento unilateral. A primavera de ascensão quase pro-
gressiva dessa comunidade tem sido fortemente ameaçada por um
movimento conservador que sob a mesma escala, global, tem opera-
do pelo desmantelamento dos ganhos historicamente adquiridos.

As vitórias das pessoas LGBTI são reais e importantes, mas se entrelaçam, ao


mesmo tempo, às derrotas expressivas. Por terem sido conquistadas em um
mundo crescentemente desigual, polarizado e violento, elas assumiram uma
coloração perturbadora. A liberdade que gozam as pessoas LGBTI é cada vez
mais dependente de um mercado que é sobretudo acolhedor para pessoas
com dinheiro. Os resultados são uma crescente comercialização da cena gay
e um desvio à direita dos movimentos LGBTI. (DRUCKER, 2017, p.189)

O quadro aqui elencado por Drucker4 pode ser visto, por exemplo,
com a alta circulação de capitalização do turismo LGBT. Segundo a

4.  Para Drucker (2015;2017) há uma identidade conformada com a possibilidade de assimila-
ção social que tem prejudicado a inserção de outros sujeitos da sopa de letrinhas a vida plena.

48
consultora Out Now5, atualmente cerca de U$ 218 bilhões de dólares
estão anualmente em circulação, essa movimentação monetária se dá
pela constante ascensão de uma dada cultura hegemonicamente gay
dentro da sopa de letrinhas. Enquanto o mercado se alimenta, o backla-
she político também se espalha pelo globo. As movimentações da ul-
tradireita têm ganhando força nos últimos anos sob diversas bandeiras,
dentre elas estão a perseguição ao debate sobre gênero e sexualidades.
Por trás desse pânico moral6 (RUBIN,2017), inscreve-se cada vez
mais a necessidade de se retomar a linha histórica. Compreender o
ponto em que nós estamos é ao mesmo tempo elencar os sucessivos
processos históricos que possibilitaram o contexto atual e de alguma
forma ampliar a nossa capacidade de leitura sobre o presente. É a par-
tir de tal empreitada que voltaremos os nossos olhos para o que acre-
ditamos ser elemento fundamental de agência deste processo.
O contexto histórico de criação, expansão e fim do gueto homos-
sexual parece-nos, pelo menos inicialmente, um contexto de rearti-
culação das identidades homo pelo globo. Neste sentido, recupe-
raremos aqui as trajetórias comuns e singulares da Argentina e do
Brasil. Compreendemos que ambos os movimentos homossexuais e
LGBT’s, bem como a articulação das identidades nestes países figu-
ram, na realidade, uma espécie de sincronia que culmina numa forte
movimentação política.

Os sujeitos da nova homonormatividade são aqueles que adotam uma performance aproxima-
da da matriz heteronormativa.
5.  A empresa Out Now Global é especializada em pesquisas para o segmento LGBT e lan-
çou até agora um conjunto 4 relatórios que analisam de forma quantitativa a expansão do
mercado LGBT bem como a condição de existência desses sujeitos em inúmeros países. Em
seu último relatório, o intitulado LGBT 2030 Study foram exploradas para além da discussão
de mercado, os problemas relativos ao “sair do armário” ou coming out e questionamentos
sobre segurança e união civil.
6.  Originalmente publicado em 1982, o ensaio da antropóloga Thinking Sex fez uma longa
descrição sobre como foram perseguidas através do incentivo de leis sujeitos e práticas se-
xuais divergentes da normativa de gênero e sexo até a década de 1980. A primeira parte de
seu texto notadamente nominada como Guerra do Sexo parece se encaixar perfeitamente
com o cenário global do século XXI.

49
Dessa forma, recuperar o histórico desses países é uma tentativa
real de traçar como esse processo se delineou em parte da América
Latina. E em específico, compreender estes países é também trazer
em cena que a reelaboração de tais identidades não foram frutos de
um processo hegemonicamente democrático tal como os Estados
Unidos e a Europa Ocidental no século XX. Uma História Compara-
da7 desses países podem nos auxiliar na compreensão do processo de
capitalização das homossexualidades em países que ainda sofrem pro-
fundamente com as relações provenientes da matriz de colonialidade
dos poderes8.

Argentina e Brasil: da colonialidade à mediação de identidades

Empreender uma análise sobre a História das Sexualidades na


América Latina é sobretudo um processo de revisão epistêmica sobre
a própria área dos estudos de gênero e sexualidade. Há uma especi-
ficidade que a análise tradicional ainda não tem voltado seu devido
olhar. Para além da invenção, os processos de inscrição de gênero e
sexualidade são sobretudo, na América Latina, um resquício sistêmi-
co de reincorporação das relações de poder baseadas no controle da
colonialidade.
As sexualidades e os gêneros locais, foram ao longo do tempo re-
dimensionadas, repensadas, reprogramadas e a sua diversidade foi re-
duzida a uma inscrição binária naturalizada pelo processo colonial e

7.  Inúmeros trabalhos têm voltado seus olhos para História Comparada e principalmente
na América Latina. Ver: PRADO, Maria Lígia Coelho. Repensando a História Comparada na
América Latina. Revista de História. São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, nº153, 2º semes-
tre de 2005, p.11-34; FAUSTO, Boris; DEVOTO, J. Brasil e Argentina. Um ensaio de história
comparada (1850-2002). São Paulo: Editora 34, 2004; PEDRO, Joana Maria; Wolff, Scheibe.
Gênero, feminismos e ditaduras no Cone Sul. Florianópolis: Ed.Mulheres, 2010.
8.  Conforme destacam Ballestrin (2013), Mignolo (2010) e Quijano (2009) a matriz de colo-
nialidade do poder se manifesta em diversas formas que tangem a nossa organização social e
nosso modo de ser/estar e moldar o mundo.

50
mantida através da colonialidade dos poderes. A lente decolonoial nos
auxilia a desvelar ambos os processos.
As colonialidades dividem-se numa ordem do poder, do ser, e do
saber conforme nos lembra Ballestrin (2003). Este processo é sobre-
tudo um rearranjo diário de manutenção de redes de poder que or-
ganizam as sociedades, uma vez colonizadas, e também as formas de
pensar e agir. Proveniente do projeto da modernidade, até hoje uma
relação hierárquica de poder tem capturado as possibilidades de exis-
tência no mundo, seja através da economia, seja do controle sobre a
natureza, seja sobre a sexualidade (MIGNOLO; OLIVEIRA, 2017).
Se pensarmos no processo que em específico repensa a inscrição
colonial das sexualidades e de gênero podemos dividi-lo em dois mo-
mentos distintos. Um primeiro que se estabelece através da inscrição
da ordem de gênero, e um segundo através da diferenciação da sexua-
lidade através do olhar binário hetero/homo.
Como bem menciona Gayle Rubin (2017), o processo de desen-
volvimento de um sistema sexo/gênero nas sociedades é na realidade
um processo histórico e moral. O binarismo homem/mulher pode
então ser compreendido como uma escritura9 dos corpos sexuados
baseados na ordem do pensamento, no controle e na mediação da re-
sistência destes mesmos pilares. Em ambas as Américas10 este primei-
ro processo, quando pensamos o desejo homoerótico, na nomeação,

9.  O sistema sexo/gênero é retomado anos depois de sua gênese, feita por Rubin ainda na
década de 80 do último século, pelo teórico Preciado (2014). A partir de uma nova lente
teórica, o filósofo compreende que o processo de escritura se dá através de tecnologias do
sexo. Dessa forma, na lógica colonial, a aposta binária é fundamentalmente escrita através de
sofisticadas tecnologias sociais heteronormativas. Em uma relação hierárquica do poder ho-
mens detêm um privilégio de poder sobre as mulheres e a heterossexualidade, força motriz
de manutenção deste primeiro, detêm poder, geralmente na forma de violência, sob outras
sexualidades possíveis. Ver: PRECIADO, Paul. B. Manifesto Contrassexual: práticas subversivas
de identidade sexual. São Paulo: n1-edições, 2014.
10.  Um dos processos que marcam boa parte da América Latina foi o processo da Inquisi-
ção. Ainda que menos eficaz que nas metrópoles coloniais, os julgamentos e o regime de
confissão foram fundamentais na relação de vigia e autocontrole sobre os comportamentos
sexuais. Ver: TREVISAN. João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da

51
perseguição e julgamento do pecado nefando popularmente reconhe-
cido como sodomia.
Já num segundo momento, mais próximo a nosso tempo, a inven-
ção da homossexualidade e heterossexualidade através do desenvolvi-
mento de uma gama de características já descritas por Foucault (1990)
em seu trabalho A Vontade de Saber. Aqui, o elemento decolonial per-
mite compreendermos os desenvolvimentos locais e as pontes geral-
mente construídas no sentido do Norte para o Sul global. A criação,
ainda no século XIX, de um dispositivo de sexualidade através de uma
construção médico-legal sobre o desejo homoerótico foi desenvolvi-
do na Europa para Europa.
Entretanto, o projeto da modernidade faz-se presente em ambos
os países da América Latina quando o controle sobre o saber e so-
bre o sexo se intercambiaram. Em primeiro lugar, a eleição da scientia
sexualis11 como saber possível do sexo. A linguagem, a forma de de-
codificação e interpretação do desejo compreendido como desviante
foi traduzido, tal qual para região. Dessa forma, tal qual a Europa,
os países latino-americanos reiteraram para si o mesmo sistema de
codificação. O dispositivo da sexualidade se inscreve na medida que
o pacto da colonialidade exige uma circulação e para que esta última
ocorra é necessário que se estabeleçam uma mesma linguagem.
Apesar da hegemonia binária entre homo/hetero, outras exis-
tências por vezes subverteram tal lógica e como tal ato estiveram a
margem como preço pago por sua ousadia de desmantelamento de
ordem. Episódios de subversão por vezes instauram uma relação de

colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018; BAZÁN,Osvaldo. Historia de la homose-


xualidad en la Argentina. Buenos Aires: Marea, 2010.
11.  Conforme menciona Foucault (1990), enfrentar a sexualidade através de uma busca pela
verdade e pela regulação tornou-se fundamental para a construção de um modus operandi
de uma pretensão científica, que pela colonialidade do saber, tornou-se fundamental para
a tradução de modos hierárquicos de interpretação da sexualidade. Esta relação de hierar-
quia sexual e de verdade sobre a sexualidade estão evidentes nos trabalhos de Drucker (2015;
2017) e de Rubin (2017).

52
mediação por existência. É neste sentido que retomamos as possibi-
lidades de existências homo na Argentina e Brasil. Ainda na década
de 1950, parece-nos que um rizoma de identidades do mal sexo12 se
estabeleciam em centros de homossociabilidades frequentemente de-
nominados de guetos homossexuais, nas cidades mais populosas de
ambos os países como Rio de Janeiro, São Paulo e Buenos Aires.
Nesses centros as socialibilidades homoeróticas propiciaram dife-
renciações do sujeito homossexual. Diferente do binarismo hetero-
centrado, identidades que hoje são catalogadas desestabilizam o ar-
ranjo normativo. Em Argentina esse processo estabeleceu a partir dos
anos 50 um movimento de desenvolvimento de homossexuais distin-
tos. Entre chongos, maricas, homosexuales e por vezes pelo entendido
as ruas dos guetos homossexuais de Buenos Aires pareciam se agitar
entre 1950-1960. A condição clandestina, pautada pelo controle da
violência social e institucional, não significou a redução e a exclusão
da circulação de tais identidades homossexuais.
O chongo13 foi construído para ser aquele homem que estabelecia
relações sexuais com os maricas14 mas não eram reconhecidos como
homossexuais (INSAUSTI, 2016). Esse quadro assemelha-se na díade
bofe/bicha, estabelecida nesse mesmo período histórico conforme
destacaram Green (2000), Trevisan (2017), Fry e MacRae (1985). Estas
identidades correspondentes foram estabelecidas pelos papeis sexuais
vinculados no gueto homossexual.

12.  Gayle Rubin (2017).


13.  O chongos tem sido amplamente estudado através das pesquisas ainda em desenvovli-
mento de Máximo Javier Fernandez. Uma de suas análises poder ser vista em: FERNAN-
DÉZ. Máximo Javier. Sociabilidad homoerótica en la ciudad de Buenos aires: maricas y ma-
rineros durante los sesenta y los setenta. In: D’ANTONI, Débora (org). Deseo y represión.
Sexualidad, género y Estado en la historia argentina reciente. Imago Mundi: Buenos aires.
2015. p.21-42.
14.  Já os maricas foram analisados nas obras de Cutuli, Maria Soledad; Insausti, Santiago Joa-
quín. Cabarets, corsos y teatros de revista: espacios de transgresión y celebración em la me-
moria marica. In: Peralta, Jorge Luis; Merida, Rafael. (orgs). Memorias, idnetidades y expe-
riencias trans:(in)visibilidades entre Argentina y España. Biblios: Buenos Aires.2014. p.19-39.

53
Tais identidades são de maneira geral estabelecidas através dos pa-
peis sexuais pré-estabelecidos nesses guetos. O homem que desempe-
nha o papel de ativo era compreendido como chongo e bofe e respec-
tivamente não eram reconhecidos como homossexuais. Já as bichas e
maricas eram frequentemente vistas pela sua performance afeminada
bem como sua posição sexual de passivo. Nestas duas últimas identi-
dades é possível considerarmos como sendo a figura que se aproxima
a normativa do que é a identidade homossexual para o Estado e para
a sociedade heterocentrada.
A produção estético-discursiva dessa díade produziu um imagi-
nário no gueto gay em que “ a ideia de dois bichas praticando sexo
era tão repugnante para as bonecas quanto era intensão a aversão da
maioria da população ao comportamento homossexual em geral”(-
GREEN,2000, p.302).Apesar da existência predominante deste bina-
rismo homo, as identidades homossexuais devem ser encaradas, mes-
mo nesse período, como múltiplas com existência de outras formas
ainda que periféricas e pouco compreendidas como as maricas monta-
das, travestis15, transformistas e bonecas.
É ainda nesse período que as identidades homossexuais vão iniciar
um processo de profunda mudança em ambos os países. Na Argen-
tina e no Brasil, uma identidade homossexual compreendida como
entendido tornou-se a expressão de homossexuais que questionavam
a relação entre a representação de si e os papeis sexuais. Frequente-
mente a dinâmica dessa identidade estabeleceu como problemática a
relação entre passivos-afeminados.
Esse questionamento dos papeis de gênero foi fundamental para
o desenvolvimento dos primeiros movimentos homossexuais na
América Latina e sobretudo, tornou-se uma espécie de agenda sob

15.  Elencamos as travestis e transformistas no Brasil e as maricas montadas em Buenos Aires


como homossexuais porque elas eram compreendidas como variações da homossexualidade
no período. Hoje, com os avanços epistemológicos sabe-se que suas identidades são construí-
das muito mais na relação de escritura do gênero como destaca Butler (2003).

54
o reconhecimento de uma espécie de homossexualidade assimilada.
Entretanto é importante ressaltar que há sob alguma medida uma di-
ferenciação entre os entendidos argentinos e brasileiros.
Em seu trabalho Insausti (2016) assume que a identidade do enten-
dido sem dúvidas uma identidade em que o recorte de classe está mais
do que evidente. Já para Green (2000;2014) apesar dos elementos cla-
ros de diferenciação das identidades estarem ligados a classe, esta não
era um fator exclusivo para a formação da identidade dos indivíduos.
Entretanto, visto a partir de um saldo histórico, o momento de rein-
venção da homossexualidade e de afirmação do entendido deu-se so-
bretudo através dos movimentos de liberação homossexual.
Na Argentina, em 1967, um grupo de sindicalistas provenientes do
Sindicato dos Correios e Telecomunicações se encontravam na zona
sul de Buenos Aires, após as reuniões políticas na sede do Correio Cen-
tral, e nos cafés discutiam uma intersecção que os outros camaradas ou
evitavam, ou condenavam. A homossexualidade levou a esses sujeitos
uma criação de pauta, inicialmente de convergência, aos movimentos
de esquerda na tentativa de elaboração de uma liberação sexual.
Neste ano surgia o grupo Nuestro Mundo e em 1971, em aliança
com um grupo de estudantes da Faculdade de Filosofia da Univer-
sidade de Buenos Aires, fundava-se ali um movimento denominado
de Frente de Liberação Homossexual (SIMONETTO, 2017).E anos
depois, no Brasil, a fundação de um movimento homossexual de pri-
meira onda através do ambiente propiciado pelo jornal Lampião da
Esquina (1978-1981) e a formação do pioneiro grupo de militância
paulista, Somos/SP (1978-1983). Também mergulhado dentro de um
processo profundo de violências, o grupo desenvolve uma identidade
coletiva que perpassa a figura do entendido (PINTO,2018).
Ambos os movimentos, argentino e brasileiro, apesar de possuí-
rem discursos diferentes, se utilizam de tal identidade para a tentativa
de coalização com as esquerdas. Este modus operandi político do gru-
po, frequentemente se alia a uma tentativa de assimilação social que

55
dá pontapé para um processo profundo de ressignificação das homos-
sexualidades.
Ao se utilizar do entendido como uma plataforma política criou-se
um processo de cristalização de hierarquias sexuais do mal sexo. Fre-
quentemente, o entendido era também lido como o sujeito que cami-
nhava entre os espaços públicos, ele conhecia as discussões científicas,
políticas e culturais. Dessa forma, a supressão da feminilidade tornou-
-se um elemento fundamental para as homossexualidades brasileiras.
Apesar de não se apegar a masculinidade hegemônica como um
padrão, o comportamento do entendido passou-se ainda na década de
1980 a figurar como uma estética higiênica da homossexualidade. É a
partir daí que se traçam as dinâmicas de uma nova homonormatividade
(DRUCKER, 2015).
O processo que antes surgira como um elemento de contestação
de normas foi capitaneado pelas estruturas do sistema sexo/gênero e
sob as estratificações das práticas sexuais, como uma nova jaula das
homossexualidades. Se antes, a exclusão se dava pela total eliminação
da homossexualidade masculina dos espaços públicos e da sociedade,
agora, o gay deve seguir um determinado padrão, por vez inalcançá-
vel que intercambia a interdição e a estética heteronormativa.

A nova homonormatividade e o enfoque global

Um dos principais desafios dos estudos e pesquisas sobre a sexuali-


dade é compor um retrato panorâmico de sua polissemia, pois, mes-
mo sendo uma noção bastante conhecida, ela ainda se encontra aber-
ta a novos sentidos que variam de acordo com diferentes contextos e
situações, o que torna a pretensão de historiar ou dissecar esse tema
em sua ilimitada abrangência uma tarefa difícil (CURADO, 2015, p.
604). Apesar de ser objeto de análise frequente nas análises socioló-
gicas (HEILBORN, 2006), a sexualidade ainda possui fragilidades no
que tange sua metodologia de análise e suas aplicações. No entanto,

56
para a proposta apresentada aqui a sexualidade torna-se de suma
importância para entender as relações que estabelecem a dicotomia
homo/hetero além das dinâmicas internas das relações homo, já que
a esfera da sexualidade também tem sua política interna, desigualda-
des, e modos de opressão. (RUBIN, 2017).
A partir do panorama levantado na primeira parte deste artigo,
percebemos que durante a segunda metade do século XX um movi-
mento importante se desencadeou a respeito do homossexualismo no
Brasil e na Argentina promovendo um rearranjo das identidades ho-
moeróticas masculinas. Em um período marcado por um fluxo laten-
te de novas ideias, novas palavras, novos espaços e novas identidades,
é que surge tanto no Brasil como na Argentina a figura do entendido.
Desde 1966 várias críticas foram levantadas com relação à mode-
lo bicha/bofe, o que começou a acentuar uma movimentação onde
alguns gays reivindicavam o lugar de homossexual em oposição ao
binômio constituído até então. Neste sentido, Green (2000) destaca
que segundo trabalhos produzidos principalmente na antropologia,
os entendidos rejeitavam de certa forma os termos depreciativos li-
gados ao gênero feminino, tais como louca, viado, bicha, assim como
uma performance mais vistosa e afetada.
Nesse sentido, é imperioso para nós pensarmos a articulação en-
tre essas vozes dissidentes e a evolução política vivenciada deste en-
tão. Juntamente com esse rearranjo das identidades homoeróticas é
desenvolvido um debate político sobre a situação de variados países,
regimes políticos, movimentos sociais dentre outros acontecimentos
que se desenvolviam de certa maneira pelo globo. Logo, é perceptível
que a figura do entendido emerge juntamente com um apelo político
e social mais evidente por parte da sexualidade dissidente.
É a partir desse ponto que propomos perceber a figura do enten-
dido como o protótipo da nova homonormatividade. Pensando a
partir do interior da lógica capitalista, percebemos que o entendido
será a gênese do processo apontado por Drucker (2015) como a nova

57
homonormatividade, que segundo o autor marca a experiência LGBTI
de maneira distinta em diferentes partes do globo na contemporanei-
dade. Ao propormos a percepção da nova homonormatividade como
uma reatualização do entendido, buscamos a partir da interação entre
estrutura e evento, compreender o processo paradoxal em que os gays
adentraram na estrutura do capital enquanto consumidores, mas não
alcançaram boa parte dos direitos políticos pelos quais lutaram tanto.

Nos últimos 50 anos, os movimentos de lésbicas/gays/bissexuais/ trans-


gêneros/intersexos (LGBTI) em boa parte do mundo obtiveram uma
série de vitórias. Em 2011, o Conselho de Direitos Humanos das Nações
Unidas aprovou, por maioria de votos, a proteção às minorias sexuais. O
direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo não foi apenas con-
quistado na África do Sul, Argentina e nos Estados Unidos, mas também
tem sido considerado no Nepal e no Vietnã. (DRUCKER, 2017, p. 198).

Nesse contexto, onde o conservadorismo cresce de maneira assom-


brosa negando cada vez mais as “minorias” é que situamos o que Druc-
ker (2017) chama, a partir de um prisma global e eurocêntrico, de nova
homonormatividade. Segundo o autor, em países onde os movimentos
parecem ter sido mais bem-sucedidos as vidas LGBT+ estão cada vez
mais circunscritas por uma política de reconciliação com o neolibera-
lismo, que Lisa Duggan (2002) (apud Drucker, 2017) chamou de “nova
homonormatividade”: uma mentalidade que não “contesta as suposi-
ções e instituições heteronormativas dominantes, mas que as apoia e
sustenta” (DUGGAN, 2002 apud DRUCKER, 2017, p.199).
O autor desenvolve seu trabalho a partir do alinhamento de três
seções onde busca contribuir com o que ele chama de política queer
de transformação anticapitalista ou Queer Marxism16. Primeiro o autor

16.  O marxismo queer tem fundado uma episteme que sintetiza conceitos marxistas como
classe, reificação e totalidade juntamente com conceitos de outros paradigmas, principal-
mente queer, como a performatividade, o homonacionalismo e a interseccionalidade. Para

58
situa a questão da liberação lésbica/gay, de 1968 a 1973, que ocorre
no cerne da história mais ampla das sexualidades entre pessoas do
mesmo sexo. Em segundo, o autor pondera como, por volta dos anos
1990, a normalidade gay, quase imperceptivelmente, comprimiu o
potencial dos libertadores lésbicos/gays. Em terceiro, o autor esque-
matiza cinco particularidades do novo padrão hegemônico da nor-
malidade gay: a auto definição da comunidade lésbica/gay como uma
minoria estável; uma crescente conformidade de gênero; a margina-
lização das pessoas trans e de outras minorias no interior da minoria;
a cada vez maior integração à nação; e a formação de novas famílias
lésbicas/gays normalizadas (DRUCKER, 2017, p. 200). Para o autor
esses cinco traços delinearam uma nova ordem hegemônica de mes-
mo sexo.
Entender os processos identitários, individuais e coletivos, que se
formaram a partir da atuação do movimento homossexual que se-
gundo Drucker (2017) fazem parte do motor de partida do processo
de constituição da nova homonormatividade se torna cada vez mais
imperioso. Para tanto, é preciso compreender especificamente os pro-
cessos identitários resultantes de uma possível renegociação do espa-
ço ocupado pelos homossexuais na pirâmide social, negociação esta
que segundo Drucker (2015; 2017) ocorrera no alvorecer dos movi-
mentos homossexuais e no fortalecimento do neoliberalismo.
Abordar a figura do entendido tanto no Brasil como na Argentina
como o protótipo da nova homonormatividade se configura de suma
importância para entendermos melhor a cristalização dessa normali-
dade gay vivenciada na atualidade. Assim colocamos a figura do en-
tendido como a transição da homonormatividade gay17 a nova homo-

um detalhamento maior ver: Alan Sears (2000), Kevin Floyd (1998) Peter Drucker (2015),
Holly Lewis (2016) e Petrus Liu (2015).
17.  Consideramos que a homonormatividade é um processo de mediação entre representa-
ção e identidade. Dentro do primeiro modelo de representação da homossexualidade os ele-
mentos, performance, que caracterizam essa normativa se intercambiam entre a hegemonia

59
normatividade gay. Esta última marcada por um processo de extrema
negociação com a direita e com a ordem heteronormativa, além de
estar intimamente ligada ao neoliberalismo e a um processo de glo-
balização contínuo. É a partir dessa percepção que apontamos neste
trabalho tanto a decolonialidade discutida na primeira seção, quanto
a História Global como possíveis caminhos para uma percepção mais
abrangente e não eurocêntrica a respeito das sexualidades dissidentes
no Brasil e na América Latina.
Muito tem-se discutido a respeito das possibilidades, limites, abor-
dagens e perigos de uma História Global como abordagem histórica
que vem crescendo cada vez mais ao redor do globo. Segundo Mar-
quese (2019) a reordenação geopolítica e econômica que se seguiu ao
término da Guerra Fria, as lutas emancipatórias de diferentes grupos
ao redor do planeta, a revolução nas formas de comunicação trazida
pela disseminação da internet, a magnitude das crises recentes do ca-
pitalismo mundial, os fluxos internacionais de trabalho e de capital e
a correspondente tensão entre a abertura e o fechamento de frontei-
ras são fatores que pressionam para a construção de uma abordagem
historiográfica mais abrangente. (MARQUESE, 2019, p. 16)
É sabido que o debate em torno da história global enquanto
abordagem historiográfica é imenso. Uma abordagem mais abran-
gente, não significa apenas uma expansão geográfica, ou mesmo
bloquear conflitos, contradições e acrescentaríamos aqui também
sujeitos. Uma das grandes críticas feitas a esta abordagem, tem sido
a de a mesma parecer ser o retorno de uma macro-história, ou até
mesmo uma redução da história a um processo de globalização que
já se encontra de certo modo desgastada. Sebastian Conrad (2016)

da figura das bichas/maricas e a produção de sentido da ordem heterocentrada. Já a nova


homonormatividade é um processo de deslocamento do sujeito mediador e receptor do sen-
tido de representação, ela caracteriza uma escolha consciente de elementos e performances
que se alinham a heteronormatividade, mas que não correspondem a ela de forma direta.
Ela é sobretudo uma identidade que organiza de forma hierarquizada as outras homosse-
xualidades.

60
em um texto que tem sido tomado como uma das produções mais
esclarecedoras a respeito desta abordagem historiográfica, realiza
várias acepções importantes principalmente a respeito de indaga-
ções caras aos historiadores, que segundo Gary Wilder (2012) desde
a virada linguística tem se atentado a eventos locais e suas manifes-
tações locais ou o que o autor irá chamar de uma saída da ótica a
tópica. Conrad (2016) aborda a história global como algo necessário
para se pensar e repensar uma perspectiva do passado que seja mais
inclusiva, menos estritamente nacional, e que aliado a um debate
histórico mundializado alterou/altera a forma de se pensar e produ-
zir História no século XXI.
Sandra Kuntz Ficker (2014) realizou um dos trabalhos que tem
tomado a cena também no centro das discussões acerca da história
global. Com o objetivo de clarificar o campo, a autora mostrou o uso
indistinto da terminologia na literatura atual e identificou uma das
origens dos estudos em história global. Discutindo a diferença entre
história global, mundial e universal, a autora fez um dilatado levan-
tamento de obras historiográficas e de ciências sociais publicadas en-
tre a década de 1960 e o começo do século XXI contendo a palavra
“global” no título além de apontar as obras de Braudel e Wallerstein
como precursoras de certa forma da abordagem.
Giovanni Levi (2018) apontou também vários pontos que precisam
ser pensados e repensados com relação a história global. No entanto,
Levi além de deferir sérios ataques a alguns pontos da abordagem glo-
bal, realizou uma comparação teórica metodológica entre a história
global e a micro história. Com certeza o debate em torno dessa com-
paração é absurdamente interessante, no entanto o que nos interessa
é entender como a micro história pode se configurar como uma lente
de aumento para a história global em um mundo mais conectado,
porém também mais fragmentado e diverso. Logo, a micro história
utiliza um microscópio que identifica aspectos importantes invisíveis
a uma olhada e uma leitura de grandes dimensões.

61
Nesse sentido, o texto de Giovanni Levi apesar de construir críticas
fortes em relação a história global, parece apontar uma interação que
se realizada da maneira correta pode gerar resultados promissores
para uma interação entre estruturas e indivíduos. Segundo Henrique
Espada Lima (2018) é preciso reconhecer que é uma tarefa essencial
da História não abandonar a ambição de levar os atores sociais a sé-
rio, pois só dessa maneira será possível a criação de antídotos para
uma operação cara a história global que em um processo paradoxal
celebra o capitalismo e a globalização mesmo quando os mesmos são
os objetos criticados. Para Lima (2018)

Relacionado a isso, me parece revelador que um dos resultados imedia-


tamente reconhecíveis em algumas dessas histórias “globais” e a nova
narrativa da história do capitalismo, por exemplo, é que ela também
parece dispensar algumas das abordagens que julgávamos que tivessem
sido incorporadas de uma vez por todas em nosso questionário de pes-
quisa e campo de investigação. Um exemplo disso é a dinâmica do gêne-
ro e da sexualidade, que trouxe contribuições formidáveis, mas que nes-
ses estudos parece retornar à periferia dessa “grande” história, ameaçada
de ser vítima da “enorme condescendência” do presente “globalizado”
(LIMA, 2018, p. 65).

É perceptível que as críticas a história global são contundentes e pos-


suem uma matriz bem justificada. No entanto, acreditamos que não
podemos descartar todas as possibilidades que a mesma oferece como
abordagem historiográfica. Nos parece que o retorno a estrutura é ex-
tremamente negativo e perigoso a ponto de nos levar de volta a uma
história macroestrutural, porém acreditamos que este retorno será rea-
lizado à medida em que as estruturas forem percebidas como estáticas.
Nesse sentido, nos parece necessário que antes de descartarmos a
história global como uma abordagem historiográfica profícua é neces-
sário rediscutir a partir de um processo dialético o papel das estruturas

62
e suas agências em interação com os sujeitos e suas agências. É preciso
promover a interação entre estruturas e sujeitos visando construir uma
perspectiva que seja capaz de contemplar diferentes dimensões tempo-
rais e espaciais, variando escalas de observação, articulando estruturas,
eventos e sujeitos tomando cuidados devidos com relação a etnocen-
trismos, determinismos e sobreposições de todo tipo.
Assim nós apontamos aqui tanto a decolonialidade discutida na
primeira seção deste texto quanto a micro história como possíveis
chaves de abordagem para pensar a sexualidade e as homossexualida-
des no prisma da história global. Como Henrique Espada Lima (2018)
apontou as discussões sobre gênero e sexualidades são periféricas
dentro da episteme global, no entanto propomos uma tomada des-
ta abordagem com vistas a uma possível interação entre estruturas e
sujeitos sem sobreposições, mas uma dialética entre as agências. Lem-
brando do texto de Spivak (2010) pode um subalterno falar? Salientamos
que aqui não colocamos os estudos sobre gênero e sexualidades no
local de subalternidade, mas chamamos estes para ocuparem o lugar
de insubmissos dentro de uma perspectiva global.

REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A quebra entre o passado e o futuro. Entre o passado e o futuro.
Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2016.
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de
Ciência Política, Brasília, nº11, 2013, p.-87-117. Disponível em: < http://www.scielo.
br/scielo.php?sc ript=sci_arttext&pid=S0103-33522013000200004>. Acesso em: 2
de fev. 2019.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução
de Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
BARROS, José D’ Assunção. História Comparada: um novo modo de fazer e ver a
história. Revista História Comparada, Rio de Janeiro, v.1, n.1, 2007, p.1-30. Disponí-
vel em: < https://revistas.ufrj.br/index.php/RevistaHistoriaComparada/article/
view/144>. Acesso em 02 de agosto de 2018.

63
BAZÁN, Osvaldo. Historia de la homosexualidad en la Argentina. Buenos Aires: Ma-
rea, 2010.
CHANTER, Tina. Gênero: conceitos-chave em filosofia. Tradução de Vinicius Figueira.
Porto Alegre: Artmed, 2011.
CONRAD, Sebastian. What is global history? Princeton: Princeton University
Press, 2016.
CURADO, Jacy Corrêa. Sexualidade. IN: COLLING, Ana Maria; TEDESCHI.
Losandro Antônio. (Org.). Dicionário Crítico de Gênero. Dourados-MS: Ed. UFGD,
2015. 682p.
DRUCKER, Peter. Warped: Gay Normality and Queer Anti-Capitalism. Leiden,
Brill, 2015.
DRUCKER, Peter. ‘Homonationalism, Heteronationalism, and LGBTI Rights in
the EU’, Public Seminar, available at: <http://www.publicseminar.org/ 2016/08/
homon ationalis m-heteronationalism-and-lgbti-rights-in-the-eu/#.WISfn4V-
9G3c>. 2016.
DRUCKER, Peter. A normalidade gay e a transformação queer. Cadernos Cemarx.
Campinas, n.10, 2017, p.197-217. Disponível em :<https://www.ifch.unicamp.br/
oj s/index.php/cemarx/ article/view/2945>. Acesso em 10 de fevereiro de 2018.
DUGGAN, Lisa. The New Homonormativity: The Sexual Politics of Neolibera-
lism. In: CASTRONOVO, R. e NELSON, D. Materializing democracy: toward a revita-
lized cultural politics. Londres: Duke University Press, 2002.
FAUSTO, Boris & DEVOTO, Fernando J. Brasil e argentina. um ensaio de história com-
parada (1850-2002). são Paulo: editora 34, 2004.
FERNANDÉZ. Máximo Javier. Sociabilidad homoerótica en la ciudad de Buenos ai-
res: maricas y marineros durante los sesenta y los setenta. In: D’ANTONIO, Débo-
ra (org). Deseo y represión. Sexualidad, género y Estado en la historia argentina reciente.
Imago Mundi: Buenos aires. 2015. p.21-42.
FLOYD, Kevin. ‘Making History: Marxism, Queer Theory, and Contradiction in the
Future of American Studies’, Cultural Critique, 1998, 40: 167-201.
GREEN, James. Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX.
Tradução de Cristina Fino e Cássio Arantes Leite. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
GREEN, James N; QUINALHA, Renan (Orgs.). Ditadura e homossexualidades: repres-
são resistência e a busca da verdade. São Carlos; Editora da UFSCar, 2014.
HEILBORN, Maria Luiza. Entre as tramas da sexualidade brasileira. Revista Estudos
Feministas, Florianópolis, v.14, n.1, p.43-59, jan/abr. 2006.

64
INSAUSTI, Santiago Joaquín. Cabarets, corsos y teatros de revista: espacios de
transgresión y celebración em la memoria marica. In: Peralta, Jorge Luis; Merida,
Rafael. (orgs). Memorias, idnetidades y experiencias trans:(in)visibilidades entre Argenti-
na y España. Biblios: Buenos Aires.2014. p.19-39.
INSAUSTI, Santiago Joaquín. De maricas, travestis y gays: derivas identitárias en Buenos
Aires (1966- 1989). Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Buenos Aires, Universida-
de de Buenos Aires, 2016.
KUNTZ FICKER, Sandra. Mundial, trasnacional, global: un ejercicio de clarifica-
ción conceptual de los estudios globales. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne],
Débats, mis en ligne le 27 mars 2014. Disponível em: http://journals.openedition.
org/ nuevomundo/66524. Acesso em: 07 fev. 2018.
LEVI, Giovanni. “Micro-história e História Global”. História Crítica, n. 69, p. 21-
35, 2018.
LEWIS, Holly. The Politics of Everybody: Feminism, Queer Theory and Marxism at the
Intersection, London: Zed. 2016.
LIMA, Henrique Espada. “História Global do Trabalho: um olhar desde o Brasil”.
Revista Mundos do Trabalho, vol. 10, n. 19. Edição Especial 2018, p. 59-70.
LIU, Petrus. Queer Marxism in Two Chinas, Durham: Duke University Press. 2015.
MACRAE, Edward. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da
“abertura”. Campinas: Editora Unicamp,1990.
MARQUESE, Rafael de Bivar. “A história global da escravidão atlântica: balanço e
perspectivas”. Revista Esboços: histórias em contextos globais, Florianópolis, v. 26, n. 41,
jan. 2019, p. 14-41.
MIGNOLO, Walter. Desobediencia esptémica: retórica de la modernidade lógica de la co-
lonialidad y gramática de la descolonialidad. Argentina: Ediciones del signo, 2010.
PEDRO, Joana Maria; WOLF, Cristina Scheibe. Gênero, feminismos e ditaduras no
Cone Sul. Florianópolis: Editora Mulheres, 2010.
PRADO, Maria Lígia Coelho. Repensando a História Comparada na américa lati-
na. Revista de História. São Paulo: Humanitas/FFlCH-usP, n. 153, 2º semestre de
2005, p. 11-34. Disponível em: < https://www.revistas.usp.br/revhisto ria/article/
view/19004/21067 >. Acesso 15 de março de 2018.
PRECIADO, Paul Beatriz. Manifesto contrassexual. São Paulo: n-1, edições, 2014.
PINTO, Rhanielly Pereira do Nascimento. Estourando a bolha: o cotidiano LGBT entre
identidades, violências e resistências no jornal o Lampião da Esquina (1978-1981). Mo-
nografia (Graduação em História) – Catalão, Universidade Federal de Goiás. 2018.

65
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boa-
ventura de Sousa; MENESES, Maria de Paula. Epistemologias do Sul, Coimbra: CES
Editora, 2009, p.73-118.
RUBIN, Gayle. Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, Por-
to Alegre, v.16, n.2, p. 5-22, jul/dez., 1990. Disponível em:< https://edisciplinas.
usp.br/pluginfile. php/185058/mod_resource/content/2/Gênero-Jo an%2 0 Scott.
pdf> . Acesso em 4 de janeiro de 2018.
SEARS, Alan. ‘Queer in a Lean World’, Against the Current, 2000. Disponível em:
<http://www.solidarity-us.org/site/node/965> Acesso em 2 de outubro de 2021.
————— ‘Queer Anti-Capitalism: What’s Left of Lesbian and Gay Libera-
tion?’ Science and Society, 69, 1: 92–112, available at: <https://www.jstor.org/sta-
ble/40404230?seq=1#pa ge_scan_tab_contents&gt;. 2005.
SIMONETTO, Patricio. Entre la injuria y la revolución: El Frente de Liberación Homose-
xual. Argentina, 1967-1976. Bernal: Universidad Nacional Quilmenes, 2017.
SIMONETTO, Patricio. Somos. La escritura a contrapelo de la historia del Frente
de Liberación Homosexual (1973-1976). Contenciosa, Santa Fé, n.3. p.1-19. 2014.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Tradução de Sandra R. Gou-
lart Almeida; Marcos Feitosa; André Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
WILDER, Gary. “From Optic to Topic: The Foreclosure Effect of Historiographic
Turns.” The American Historical Review, v. 117, n. 3, p. 723–745, 1 jun. 2012.

66
ATIVISMOS LGBT EM CAMPINAS (SP):
FRAGMENTOS DE UMA TRAJETÓRIA
Vinícius Zanoli 1

INTRODUÇÃO

Este capítulo tem como objetivo recuperar fragmentos da trajetó-


ria dos ativismos LGBT (de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e tran-
sexuais)2 em Campinas. A cidade se situa no interior de São Paulo,
distando cerca de cem quilômetros da capital estadual3. Com pouco
mais de 1,2 milhões de habitantes, Campinas é sede de uma região
metropolitana composta por vinte municípios. Na cidade, atuam ou
atuaram distintas organizações que, além de realizarem atividades

1.  É pesquisador no Instituto de Estudos Latino-Americanos (Lateinamerika-Institut) da Uni-


versidade Livre de Berlim (Freie Universität Berlin), onde atua como pós-doutorando na área
de Antropologia Social e Cultural, com financiamento da Agência de Pesquisa Alemã (Deuts-
che Forschungsgemeinschaft – DFG). Atua também como pesquisador associado ao Núcleo de
Estudos Néstor Perlongher – Cidade, Geração e Sexualidade, da Universidade Federal do
Mato Grosso do Sul (NENP/UFMS). É Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Antropologia
Social e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
E-mail: vzanoli@gmail.com.
2.  Apesar de saber que formas mais atuais da sigla no Brasil têm adotado mais categorias
identitárias, optei pela manutenção de LGBT por não ter, durante a realização da pesquisa,
encontrado grupos compostos por pessoas que se definem ou são definidas como intersexo
(I) ou queer (Q), por exemplo.
3.  Esse texto se baseia em investigações que ocorreram entre 2010 e 2019. Todas focaram-
-se na relação da política LGBT local com processos mais amplos e nas particularidades do
ativismo LGBTI em Campinas. Os métodos empregados foram: observação participante,
análise documental e entrevistas em profundidade.

67
locais, estão ou estiveram engajados na política LGBTI em distintos
níveis. Além disso, por meio de alianças com outros coletivos, os ati-
vistas da cidade fazem ou fizeram parte de redes nacionais e trans-
nacionais, incluindo a criação da primeira rede de LGBT jovens do
Brasil, que contava com uma sucursal campineira (TOMIZAKI; DA-
NILIAUSKAS, 2018).
Campinas é espaço de análise deste texto por sua singularidade e
importância para o movimento LGBTI no país. A cidade sediou, em
2003, a criação da primeira política pública brasileira a oferecer as-
sistência social, jurídica e psicológica a LGBT, o Centro de Referên-
cia (CR) LGBT de Campinas (ZANOLI, 2015; 2019). Tal política foi
conquistada a partir da interlocução entre ativistas e executivo mu-
nicipal. Ademais, o município foi a casa de um dos primeiros grupos
organizados de transexuais do Brasil, o Movimento Transexual de
Campinas, fundado em 1997 e já extinto (CARVALHO; CARRARA,
2013). Ainda, Campinas é conhecida, principalmente, no interior de
São Paulo, como uma “cidade gay”4. Mesmo assim, poucos estudos
sobre movimento LGBT, ou mesmo sobre gênero, sexualidade e so-
ciabilidade, se focam na cidade5.
O município conta com diferentes coletivos LGBT, incluindo
aqueles de caráter universitário. Parte deles teve vida curta. Outros
extrapolaram os muros da universidade. Aqui, considerando o escopo
original das pesquisas, o foco recai sobre aqueles que não tinham ou
não têm a universidade como foco de sua atuação. O objetivo é ana-
lisar formas de ativismos mais usuais do período, como grupos que

4.  Quanto à origem do título de cidade gay, uma das teorias mais aceitas entre ativistas
com quem tive contato aponta para a figura de Carlito Maia (1924-2002), filho de Orosimbo
Maia (1861-1939), que foi prefeito e vereador de Campinas. Carlito era ator de radionovelas e
carnavalesco. Boêmio e, segundo alguns ativistas, gay, Carlito ficou conhecido por organizar
excursões para o carnaval carioca, o que teria influenciado a fama do município.
5.  Essa realidade tem se modificado lentamente. Para trabalhos sobre a cidade, cf. capítulo
de Mascarenhas Neto nesta obra, bem como Mascarenhas Neto (2020), Pelúcio e Duque
(2013), Santos (2010) e Cilento, Garcia e Freitas (2020).

68
atuam por meio de parcerias com o Estado6. Considerando que não
é objetivo do trabalho abarcar todas as organizações ou iniciativas,
recupero aqui fragmentos da história do ativismo LGBT da cidade,
que ainda está por ser feita7.
As análises acadêmicas com foco no movimento LGBT têm privi-
legiado as capitais estaduais, concentrando-se em cidades como Rio
de Janeiro e São Paulo. Por isso, pouco tem sido produzido sobre mu-
nicípios do interior. Dadas suas proporções, Campinas não costuma
ser pensada como interiorana. Ainda assim, ao analisar a trajetória do
ativismo LGBT campineiro, busco diversificar a produção de conheci-
mento sobre essa forma de ação política a partir da análise de dinâmicas
locais e especificidades de municípios que ficam às margens de análises
centradas, supostamente, em ações coletivas em âmbito nacional.
Assim, nas páginas que seguem, recupero a trajetória do ativismo
LGBT campineiro. O foco recai sobre as formas organizativas dos
grupos, seus modos de atuar, as relações entre ativistas e as relações
com o Estado. Para tanto, na seção seguinte, apresento uma breve
contextualização acerca da história do ativismo LGBTI8 no Brasil. Nas
posteriores, exploro fragmentos da trajetória de alguns grupos em
Campinas, ressaltando suas especificidades e conexões com processos
sociais e políticos mais amplos. Na conclusão, apresento dois impor-
tantes momentos de interlocução entre as organizações locais. Além
disso, retomo os principais argumentos do capítulo e apresento, de
maneira sucinta, os atuais desafios dos ativistas na cidade.

6.  Para um trabalho sobre Campinas que versa sobre organizações universitárias, cf. Falcão
(2017). Já Iazzetti (2021), analisa, dentre outras coisas, a atuação política de ativistas trans* na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e para além dela.
7.  Ressalto que é possível encontrar o acervo do Identidade e do Mo.Le.Ca. no Arquivo
Edgard Leuenroth, da Unicamp. O restante do material documental se encontra espalhado
pelas casas e arquivos de diferentes grupos ativistas.
8.  Optei por utilizar a sigla que inclui pessoas intersexo (LGBTI) para me referir ao movi-
mento nacional, considerando que essa é a sigla que tem sido mais utilizada por ativistas no
Brasil.

69
Percursos do movimento LGBTI no Brasil

A literatura sobre movimento LGBTI no Brasil ressalta o surgi-


mento do Somos de São Paulo e do jornal Lampião da Esquina, em
1978, como marcos do nascimento dessa forma de ativismo (FAC-
CHINI, 2005; MACRAE, 1990). Essa forma de ação coletiva, em seu
início, era chamada de Movimento Homossexual Brasileiro (MHB).
Isso ocorria, pois se compreendia que a categoria “homossexual”
seria abrangente o suficiente para definir os sujeitos políticos que a
compunham. Apesar disso, tensões internas existiam e sujeitos po-
líticos, como as mulheres lésbicas, lutaram para que sua identidade
fosse inserida na sigla do movimento (MACRAE, 1990), que é instável
e está em constante transformação (FACCHINI, 2005, 2018). O MHB
passou a ser chamado de Movimento de Gays e Lésbicas e, mais re-
centemente, de LGBTI.
Com o fim do Lampião e do Somos, os anos 1980 marcam o início
de uma nova fase do movimento, caracterizada pela redução numéri-
ca dos grupos ativistas, pelo combate à epidemia de HIV/Aids e pelo
início da institucionalização de algumas das organizações (FACCHI-
NI, 2005). Uma das mais reconhecidas organizações desse período foi
o Triângulo Rosa do Rio de Janeiro, que ficou conhecida por liderar
a campanha pela inclusão da não discriminação por orientação sexual
na Constituição de 1988 (CÂMARA, 2002). Apesar da falta de êxito,
essa tentativa foi uma das primeiras experiências de participação polí-
tica do movimento LGBTI.
O novo regime democrático brasileiro e o processo de enfrenta-
mento da epidemia de HIV/Aids colaboraram para a intensificação
das relações entre o movimento LGBTI e o Estado. Tais relações, por
sua vez, impulsionaram o processo de institucionalização dos grupos
ativistas (FEITOSA, 2018). Isso fez com que o movimento LGBTI bra-
sileiro crescesse e se tornasse um dos mais visíveis no cenário nacional
(FACCHINI; FRANÇA, 2009). Durante esse período, foram imple-
mentadas ferramentas de participação política nas quais a sociedade

70
civil tinha a possibilidade de propor, avaliar e fiscalizar políticas pú-
blicas (HEREDIA; BARREIRA; BEZERRA et al., 2012; LOPES; HE-
REDIA, 2014). Além desses espaços, diferentes formas de ação cole-
tiva criaram ou estreitaram seus laços com agências governamentais,
passando a atuar em Conselhos e Conferências de Direitos Humanos
(LOPES; HEREDIA, 2014). Alguns deles chegaram a ocupar postos
nomeados, principalmente no executivo, em distintos níveis (FAC-
CHINI; CARMO; LIMA, 2020; GOMES, 2017; ZANOLI, 2015).
Isso está ligado a uma série de fatores da política nacional. Com
a eleição do Presidente Luís Inácio “Lula” da Silva (Partido dos Tra-
balhadores – PT) em 2002 e o início de seu mandato em 2003, as in-
terações entre ativistas e o Estado se modificaram. Tais interações já
estavam presentes desde pelo menos a ditadura militar (RECH; SIL-
VA, 2016). É impossível não reconhecer, contudo, que, com a nova
gestão do PT, sujeitos que militavam em diversas formas de ação co-
letiva estreitaram seus laços com o Estado. Isso se deu por meio de
distintas políticas participativas no período que Feitosa (2018) chama
de “tsunami da participação”. Isso fez com que o movimento passas-
se por um processo de “reconhecimento” de suas demandas (FAC-
CHINI, 2018), bem como, por aquilo que Carrara (2016) chama de
“cidadanização”.
Segundo Carrara (2016), a cidadanização é um projeto de incor-
poração social e política de categorias sociais marginalizadas que
visa legitimar os direitos de sujeitos que se compreendem ou são
compreendidos a partir dessas categorias. Tal processo foi essencial
na constituição dos LGBT enquanto sujeitos de direito no Brasil
(AGUIÃO, 2018) e foi acompanhado do reconhecimento estatal das
demandas de diversas formas de ativismo (FACCHINI, 2020), como
os movimentos LGBT, feministas e negros, por exemplo (FACCHI-
NI; CARMO; LIMA, 2020; GOMES, 2017; RIOS, 2014). É verdade que
esse reconhecimento aconteceu de modo parcial, sempre com sua
legitimidade contestada por alguns sujeitos e por meio de políticas

71
públicas frágeis, que foram, em sua maioria, descontinuadas ou su-
cateadas (MELLO; AVELAR; MAROJA, 2012; ZANOLI; FALCÃO,
2015). Ainda assim, o movimento passou a estreitar seus laços com o
Estado (AGUIÃO, 2020; FEITOSA, 2018).
Outra característica do período foram os processos que a literatu-
ra sobre ativismo LGBTI chamou de multiplicação e especificação do
sujeito político do movimento. A multiplicação pode ser representa-
da pela metáfora da “sopa de letrinhas”, que se refere à proliferação
de orientações sexuais e identidades de gênero representadas na sigla
do movimento (FACCHINI, 2005). Já a especificação diz respeito à
formulação de sujeitos políticos que não estão associados apenas às
orientações sexuais e identidades de gênero, mas a outras marcas de
diferença, como raça, gênero e sexualidade.
O termo “especificação”, que tem sido utilizado pela literatura
brasileira sobre ativismo LGBTI, deriva do discurso de ativistas.
Tais ativistas apontam que suas questões específicas como mulheres
ou como negros, por exemplo, são deixadas de lado ou pouco dis-
cutidas no que chamam de movimento hegemônico. Em meus tra-
balhos mais atuais (ZANOLI, 2020a; 2020b), tomo o que tem sido
denominado de especificação como processos por meio dos quais
se produzem “ativismos interseccionais”. Isto é, formas de atuação
política que não estão restritas apenas a “um movimento social”,
mas à relação entre o que a literatura tem analisado como distintas
formas de ativismo, como os movimentos feministas, negros e LGB-
TI, por exemplo.
Em contexto nacional, o processo de cidadanização dos LGBT no
Brasil parece perder sua força a partir da gestão petista de Dilma Rou-
sseff (2011-2016). Por um lado, temos o avanço das ofensivas antigê-
nero (CORRÊA; KALIL, 2020; MISKOLCI; CAMAPANA, 2017), uma
articulação política entre distintos atores contrários a direitos sexuais
e reprodutivos, incluindo aí os direitos de pessoas LGBTI. Por outro,
com a ascensão desses sujeitos na esfera pública e por pressão deles,

72
o governo Dilma, aos poucos, foi se fechando ao movimento LGB-
TI, buscando dissociar sua imagem de tal forma de ativismo. Além
do cancelamento de políticas públicas, como um kit educativo para
combater a homofobia nas escolas, ressalto a ausência de Rousseff na
solenidade de abertura da II Conferência Nacional de Políticas Públi-
cas para LGBT em dezembro de 2011 como marcas dessa dissociação
(AGUIÃO, 2018).
Até aqui, abordamos a periodização da trajetória do movimento
LGBTI no Brasil até meados de 2016, ano em que o início da crise de-
mocrática foi marcado pelo impeachment da Presidenta Dilma Rou-
sseff (PT). O período atual, caracterizado pelo avanço do autorita-
rismo, tem sido debatido acaloradamente por acadêmicos. Contudo,
devido à intensa instabilidade política, pesquisadores têm evitado ti-
rar conclusões precipitadas. Ainda assim, a maioria deles ressalta que
estamos vivendo um momento não apenas de crise democrática, mas
de ascensão de contra-movimentos de caráter conservador, por vezes
religioso, que se opõem à agenda dos direitos humanos e aos direi-
tos recém conquistados por algumas “minorias” e que culminou na
eleição do atual Presidente da República (AGUIÃO, 2020; FACCHINI,
2018, 2020; FEITOSA, 2018). No entanto, abordaremos o contexto
atual nas considerações finais, depois de retomar a trajetória dos ati-
vistas LGBTI em Campinas.

O movimento LGBT em Campinas

O primeiro coletivo político homossexual de que se tem notícia


em Campinas, o Expressão, surgiu entre 1995 e 1997. Esse grupo inte-
gra, assim, o processo de crescimento, expansão territorial e interiori-
zação do movimento que caracteriza o período denominado por Fac-
chini (2005) de “terceira onda” do movimento LGBTI brasileiro. O
Expressão era responsável pela edição de um jornal, “O Babado”, que
circulava em espaços de sociabilidade homossexual da cidade. Seus

73
fundadores frequentavam um grupo de vivência9 no âmbito do Progra-
ma Municipal de DST/AIDS, o Conviver (SANTOS, 2010). Segundo
interlocutores, em outubro de 1995, depois de uma palestra oferecida
na Unicamp por Luiz Mott, antropólogo e fundador do Grupo Gay
da Bahia (GGB), frequentadores do Conviver decidiram fundar um
grupo ativista. Entretanto, segundo Paulo Reis dos Santos (2010), o
grupo teria sido fundado em 1997.
É importante salientar o papel dos programas de prevenção de
DST/Aids na “terceira onda” do movimento, pois ele foi um dos
principais canais de interlocução entre ativistas e governo federal.
Ademais, o programa foi importante fomentador de novos coletivos
(FACCHINI, 2005). No caso campineiro, o Conviver colaborou com
o surgimento do primeiro grupo ativista LGBTI da cidade, demons-
trando assim o impacto das políticas de Aids na expansão do movi-
mento LGBTI. A influência de políticas públicas focalizadas na cria-
ção de novas organizações não está ligada apenas àquelas de combate
ao HIV. Trabalhos mais recentes, como o de Aguião (2018), ressaltam
que ferramentas participativas como conferências de políticas públi-
cas e programas de governo, acabam também fomentando a orga-
nização e a participação política de LGBT. A autora demonstra isso
a partir do caso do Programa Brasil sem Homofobia (2004), que fo-
mentou o surgimento de grupos no Rio de Janeiro.

Identidade

A fundação do Identidade está ligada à edição do jornal “O


Babado”. Um setor do Expressão, considerando que deveria dia-
logar mais com as lésbicas, decidiu que a capa de março de 1998
deveria estampar um casal de mulheres. Entretanto, contrariando

9.  Optei pelo uso de itálicos para ressaltar categorias êmicas durante o texto. Categorias
êmicas são aquelas categorias que assumem sentido específico em meio a um grupo de in-
terlocutores.

74
negociações prévias, o conteúdo do jornal fora modificado sem
aviso, minimizando o enfoque dado às lésbicas, o que causou um
desgaste entre os integrantes do grupo. Em decorrência desse epi-
sódio, os membros do setor que propôs a edição voltada para lés-
bicas notificaram os demais membros de sua saída. Em 19 de maio
de 1998, o estatuto foi registrado em cartório e o Identidade passou
então a existir oficialmente.
O evento que deu origem ao Identidade não foi um momento iso-
lado. Os ativistas que deixaram o grupo afirmavam que o Expressão
era pouco político. Vemos que esse evento expressa uma tensão pré-
-existente que diz respeito à própria concepção de política de duas par-
celas da organização militante. Desse modo, o Identidade foi fundado
em decorrência de divergências na concepção do que seria o papel de
um movimento social.
Como muitos outros coletivos que surgiram no fim dos anos 1990,
o Identidade se estruturou, por muito tempo, como uma organiza-
ção não governamental (ONG). Ainda assim, no período em que as
pesquisas foram realizadas (entre 2009 e 2019), seus ativistas eram crí-
ticos a esse formato e se consideravam como parte de um movimen-
to social. Essas características aparecem nos discursos dos militantes
como antagônicas. Enquanto o papel de um movimento social seria
contestar o Estado e cobrar dele, uma ONG funcionaria mais com um
braço do Estado que cumpre funções que são deixadas de lado pelos
órgãos estatais (ZANOLI, 2019).
Essa ideia de que o papel do movimento social é contestar o Estado
está ligada à ideia de autonomia. Ativistas do Identidade ressaltaram
que, ao executarem políticas públicas com financiamento estatal, tor-
navam-se um braço do Estado, o que poderia afetar as possibilidades de
críticas. Além disso, afirmaram que existia uma demanda por profis-
sionalização e um direcionamento das ações para projetos financia-
dos. Isso acabava por impossibilitar a realização de outras atividades
consideradas relevantes.

75
Essa é uma reclamação recorrente. Uma líder do Mo.Le.Ca., coleti-
vo lésbico da cidade que será apresentado mais adiante, ressaltou que o
trabalho burocrático resultante da atuação financiada por projetos era
complexo e tomava muito tempo, impedindo-as de realizar outras ati-
vidades. Militantes do Aos Brados, coletivo que também será apresen-
tado posteriormente, ressaltaram problemas semelhantes no que diz
respeito à participação no conselho do Orçamento Participativo.
Em pesquisa sobre o Conselho Nacional de Promoção da Igualda-
de Racial (CNPIR), Sonia Maria Giacomini e Paulo Terra (2014) de-
monstram as dificuldades encontradas por ativistas quando buscam
se adaptar aos canais de participação. De maneira análoga ao que
ocorreu em Campinas, exigia-se que ativistas se comportassem como
funcionários do governo e que se adequassem ao formato dos conse-
lhos e à linguagem estatal. Desse modo, muitos grupos abandonaram
essa via por não se adequarem às demandas ou por acreditarem que
seus objetivos seriam colocados em segundo plano devido a tal ade-
quação (GIACOMINI; TERRA, 2014).
Voltando ao Identidade, apesar de ser crítico ao formato de ONG,
o grupo possuiu caráter institucionalizado. Isso se expressa por seu
registro em cartório, pelas reuniões periódicas e pela elaboração de
projetos para concorrer em editais públicos. Essa característica, no
entanto, se modificou nos últimos anos. Um dos primeiros aconteci-
mentos que demonstram a desinstitucionalização do grupo foi a per-
da da sede, que, até meados de 2012, se localizava no centro da cida-
de. A partir de então, os ativistas passaram a se encontrar em espaços
de organizações parceiras, como sindicatos, cursinhos populares, en-
tre outros. Isso impactou também a periodicidade das reuniões, que
passaram a ser menos frequentes.
Outra característica presente no movimento no período é a vincu-
lação a redes nacionais, o que também acontecia com o Identidade.
Apesar das críticas, o grupo foi filiado à ABGLT, associação nacional de
organizações LGBT criada em 1995. O coletivo também influenciou o

76
movimento nacional e teve papel importante na criação do Fórum Pau-
lista LGBT, a mais antiga rede ativista do estado de São Paulo.
Como demonstra Facchini (2005), cisões motivadas por diferenças
e desigualdades estão presentes desde o surgimento do ativismo LGB-
TI. Um traço que aproxima o Identidade do que a literatura registra
acerca de seu período de atuação diz respeito a tensões relacionadas a
relações de poder no interior do movimento que resultaram na cisão
do grupo e no surgimento do primeiro coletivo formado por mulhe-
res lésbicas e bissexuais de Campinas.

O Movimento Lésbico de Campinas

Apenas dois anos após sua fundação, em 2000, uma cisão no Iden-
tidade deu origem ao Mo.Le.Ca. (Movimento Lésbico de Campinas).
Parte das fundadoras frequentava o Identidade e buscava um espaço
onde as discussões fossem voltadas para sua especificidade enquanto
lésbicas e bissexuais. Composto majoritariamente por mulheres cisgê-
nero, durante seu período de atuação, entre 2000 e 201010, o Mo.Le.
Ca. operou a partir de Campinas, construindo parcerias com grupos
locais, regionais e nacionais e adquirindo financiamentos públicos e
privados advindos de fontes nacionais e internacionais. Até conquis-
tarem sua sede própria por meio de financiamentos em meados de
2002, as ativistas se encontravam semanalmente no Museu da Ci-
dade11, localizado na região central, próximo a uma antiga estação

10.  Considerando o argumento de Cilento, Garcia e Freitas (2020), tomo o período definido
pelas autoras de “existência do grupo” enquanto o período em que atuou até sua fusão com
o Identidade. Contudo, como veremos, a fusão não implicou exatamente na extinção da or-
ganização lésbica.
11.  Segundo informações disponíveis na página na internet da Prefeitura Municipal de Cam-
pinas, “inaugurado em 3 de abril de 1992, no edifício da empresa Lidgerwood Manufacturing
& Co., [na Avenida Andrade Neves, n.33, no Centro de Campinas], [o Museu da Cidade (MC)
é um] exemplar emblemático da industrialização propiciada pela economia cafeeira, funcio-
nou no local até 2016. [O MC] Resultou da fusão entre os museus Histórico, do Índio e do
Folclore, que funcionavam no Bosque dos Jequitibás, a partir de concepções museológicas

77
ferroviária, que abriga, atualmente, uma série de eventos culturais
(CILENTO; GARCIA; FREITAS, 2020).
Referências ao grupo na mídia nacional, incluindo uma menção na
série de televisão “Os Normais”, transmitida pela Rede Globo, contri-
buíram com sua visibilidade (CILENTO; GARCIA; FREITAS, 2020).
Dentre as atividades que realizava, destacam-se as mostras de arte lés-
bica e exibições de filmes. Ademais, as ativistas realizaram cursos de
formação voltados aos direitos de mulheres lésbicas. O Mo.Le.Ca. foi,
ainda, membro atuante na antiga Associação da Parada do Orgulho
LGBT de Campinas e esteve envolvido nas dinâmicas políticas locais
que resultaram na implementação do Centro de Referência LGBT de
Campinas (CILENTO; GARCIA; FREITAS, 2020; ZANOLI, 2019). Ain-
da, após a dissolução do grupo, parte das mulheres que compunham o
Mo.Le.Ca. se manteve organizando a Parada do Orgulho LGBT.
O grupo esteve envolvido, também, em eventos e articulações da
primeira rede de mulheres lésbicas do Brasil, a Liga Brasileira de Lésbi-
cas (LBL) (SILVA, 2017). Para Maria Célia Orlato Selem (2007) o surgi-
mento da Liga Brasileira de Lésbicas se deu, no início dos anos 2000, em
um contexto de crescimento e proliferação de grupos de lésbicas em
âmbito nacional. Ademais, para ela, o Fórum Social Mundial (FSM)12,
em sua edição de 2003, foi importante na criação da LBL por ter propi-
ciado o encontro de mulheres lésbicas de diversas regiões do país.
A LBL é fruto de uma oficina intitulada Visibilidade Lésbica, um espa-
ço proposto e autogerido por mulheres lésbicas e bissexuais que lutaram,
desde a organização do Primeiro FSM, para conseguir um espaço políti-
co para lésbicas no Fórum. Essa atividade aconteceu no Espaço Arco-Íris,

mais contemporâneas, dinâmicas e integradoras, voltadas para a valorização da diversida-


de cultural. Disponível em: <https://www.campinas.sp.gov.br/governo/cultura/museus/
muci/>. Acesso em 09.10.2021.
12.  O primeiro Fórum Social Mundial foi realizado entre 25 e 30 de janeiro de 2001 em Porto
Alegre. Esse encontro surgiu como contraposição ao Fórum Econômico Mundial de Davos.
Sua criação foi uma ideia brasileira com o objetivo de avançar na resistência contra o neoli-
beralismo (LEITE, 2003).

78
organizado pelo movimento LGBT (SILVA, 2017). De acordo com Se-
lem (2007), o surgimento da LBL é visto por algumas de suas fundadoras
como uma resposta à atuação política de redes nacionais como a ABGLT
(Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transe-
xuais), que, na visão dessas fundadoras, acabava por apagar bandeiras e
questões lésbicas e por reforçar a hegemonia dos gays no movimento.
Além da LBL, o grupo se envolveu ativamente em duas edições
do Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), mais precisamente, da
quinta e da sexta edições, que ocorreram em 2003 e 2006 respectiva-
mente. Atualmente, o SENALE é denominado SENALESBI, Seminá-
rio Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais (CILENTO; GARCIA;
FREITAS, 2020). O quinto SENALE aconteceu em 2003, na capital pau-
lista, e foi um importante momento de mobilização para distintos gru-
pos em Campinas, incluindo não apenas o Mo.Le.Ca., como também o
Aos Brados, coletivo sobre o qual discutiremos na seção seguinte.
Em entrevistas e conversas informais, ativistas do Aos Brados – gru-
po misto liderado por mulheres lésbicas no período – ressaltaram sua
participação em diversas reuniões em Campinas e São Paulo com o ob-
jetivo de organizar o SENALE de São Paulo. Isso demonstra que, mes-
mo ocorrendo na capital do estado, o seminário impactou o ativismo
campineiro, fortalecendo discussões sobre ativismo de lésbicas, inclu-
sive em grupos mistos como o Aos Brados. Durante levantamento de
documentos sobre o Aos Brados para minha investigação doutorado,
encontrei também materiais de pelo menos quatro reuniões prepara-
tórias realizadas em Campinas para articular a participação de lésbicas
e bissexuais campineiras no SENALE de São Paulo (ZANOLI, 2020a).
No fim de sua trajetória de atuação, o Mo.Le.Ca. logrou obter fi-
nanciamento por meio do Programa Pontos de Cultura do Governo
Federal13. Se, por um lado, isso significou autonomia financeira para

13.  Segundo a página do Ministério da Cultura, o referido programa promove o estímulo


às iniciativas culturais da sociedade civil já existentes por meio da consecução de convênios

79
realizar suas atividades, por outro, gerou tensões que acabaram por di-
minuir o número de ativistas: uma parcela das militantes que não con-
cordava com a transformação em um Ponto de Cultura deixou o grupo
(CILENTO; GARCIA; FREITAS, 2020). Essa drástica redução de ativis-
tas acabou influenciando na reaproximação com o Identidade.
Depois da fundação do grupo de lésbicas, Identidade e Mo.Le.
Ca se distanciaram. Contudo, ainda na primeira década de 2000, as
duas organizações se reaproximaram. No fim do período de atuação
do Mo.Le.Ca, ambos passaram a dividir a mesma sede no centro de
Campinas. Em meados de 2010, a coordenadora do coletivo lésbico e
única fundadora que ainda permanecia nele solicitou apoio das mu-
lheres que integravam o Identidade para ocupar vagas remanescentes
na direção. Isso ocorreu também, pois a existência formal do Mo.Le.
Ca. estava ameaçada pela falta de quadros. Naquele ano, as duas orga-
nizações passaram a compartilhar a sede e alguns integrantes. O ter-
mo reabsorção foi utilizado para definir esse processo. Ao olhar para
o ocorrido, cabe lembrar que as próprias relações entre Mo.Le.Ca. e
Identidade estavam pautadas pelo contexto da “terceira onda” do mo-
vimento. Para explicar tal afirmação, recorro a uma fala de Mateus14,
membro do Identidade:

É... e como a gente tinha uma militância feminina, ou de mulheres, é...


no Identidade, e a gente já tava com um discurso bem tranquilo, prática
aí de dois três anos de aproximação sem conflitos, grandes conflitos, foi

celebrados após a realização de chamada pública. Disponível em: <http://www.cultura.gov.


br/pontos-de-cultura1>. Acesso em 21.mar.2014.
14.  A maioria dos nomes utilizados aqui são pseudônimos. O único nome real é o de Lúcia
Castro, pois esse era seu desejo quando realizei as pesquisas com o Aos Brados (2015-2019),
grupo no qual Lúcia atua. Os demais, quando entrevistados, optaram pelo uso de nomes
fictícios. Concordo que, em se tratando de um capítulo que visa recuperar a trajetória dos
ativistas da cidade, seria interessante citá-los nominalmente (NEWTON, 1993). Contudo,
mantenho os pseudônimos em decorrência dos procedimentos em ética de pesquisa que de-
vem ser seguidos.

80
fácil a gente chegar na conclusão de: “vamos dividir a sede”, “vamos nos
ajudar”. Elas tinham dinheiro, tinham financiamento, conseguiam se
manter, a gente tava precisando (entrevista com Mateus, julho de 2011).

Além da possibilidade de interlocução ser baseada, segundo Ma-


teus, em um discurso harmonizado, ela mobiliza também a importân-
cia dos financiamentos do Mo.Le.Ca. para o Identidade. Este último
realizou algumas parcerias com Programas de DST/Aids em diferen-
tes âmbitos – municipal, estadual e federal. Apesar disso, como vi-
mos, em um desses projetos, o grupo teve dificuldades relacionadas à
prestação de contas. Por isso, seus membros já não podiam concorrer
em processos seletivos para realização de novos projetos. Uma das
fundadoras do Mo.Le.Ca. ressalta a importância do CNPJ limpo para
o Identidade:

Teve uma época que o Identidade tava com problema no CNPJ (...) e eu
falei assim: “Olha, o Mo.Le.Ca. tem um CNPJ que por enquanto ainda
está ordem, né. Não sei até quando que vai durar isso aí, né. Então é
interessante vocês assumirem essa... a herança do Mo.Le.Ca.”. Porque
você vê lá, os móveis, os bens, os computadores. As coisas que estão lá,
a maior parte, ou grande parte, ou pelo menos metade das coisas que
estão lá [na sede] são do Mo.Le.Ca. (Entrevista com Ana, junho de 2011).

Como boa parte dos grupos que existiram no período denomina-


do por Facchini (2005) de “terceira onda” do movimento, o Identida-
de possuía caráter institucionalizado, com registro de pessoa jurídica.
Uma vez que esse registro se encontrava com algumas pendências,
poder utilizar o registro de outro grupo poderia ser de fundamental
importância para que o Identidade pudesse realizar algumas ações.
O Mo.Le.Ca. foi fundado a partir da ideia de que lésbicas e bisse-
xuais necessitavam de um espaço específico para discutir suas questões.
Denúncias de desrespeito ou de falta de atenção às especificidades não

81
são provenientes apenas de pessoas que se compreendem a partir de
uma das siglas referentes às orientações sexuais e identidades de gêne-
ro que compõem o movimento LGBTI. Além disso, o processo de es-
pecificação dos sujeitos políticos do movimento em Campinas passou
a considerar também outros marcadores sociais da diferença como
raça, classe e geração, como veremos nas seções a seguir.

Aos Brados

Assim como se passava em âmbito nacional, discussões referen-


tes a articulações entre diferenças, desigualdade e relações de poder
no movimento deram origem a coletivos que pautam sua identidade
política para além das orientações sexuais e identidade de gênero que
compõem a sigla LGBT, baseando-se, também, em outras marcas da
diferença, como raça, classe e geração, como no caso do Aos Brados
e do E-Jovem. O primeiro será tema desta seção. O segundo será dis-
cutido na seguinte.
O Aos Brados surgiu em 1998, a partir de desavenças de alguns
militantes que faziam parte do Identidade. Liderados por duas mili-
tantes lésbicas, Lúcia e sua companheira na época, os dissidentes do
Identidade se organizaram em torno da publicação do Jornal Aos Bra-
dos ( JAB), criado como uma crítica ao modo de atuação do Identida-
de. A criação do JAB estaria ligada ao foco do Identidade na utilização
da rede mundial de computadores para se comunicar com ativistas
nacionais e internacionais. Para os fundadores do Aos Brados, isso
excluía os LGBTI periféricos que tinham pouco ou nenhum acesso a
internet. Assim, ao romperem com o Identidade, criaram uma publi-
cação com o objetivo de alcançar esses sujeitos.
O periódico era distribuído pelos membros do coletivo em comu-
nidades carentes. Além de contar com matérias sobre direitos LGBTI,
discutia questões ligadas a direitos trabalhistas, a movimentos de
moradia, dentre outros. O conteúdo do jornal demonstrava, assim,

82
a forte ligação entre o grupo e esses movimentos, incluindo a parti-
cipação do Aos Brados em uma série de manifestações e atividades
ligadas aos movimentos referidos acima, bem como ao Partido dos
Trabalhadores (PT).
Apesar de conceber, na atualidade, como um coletivo LGBTI, ne-
gro e periférico, em seus primeiros anos de atuação, o Aos Brados não
se definia a partir da negritude, mas como um grupo LGBTI periférico.
Entretanto, isso não significa que a discussão racial não estivesse pre-
sente. Na verdade, desde seu surgimento, a ampla maioria dos partici-
pantes e fundadores era composta por LGBTI negros. Contudo, havia
a ideia entre eles, de que a categoria periferia abarcava também discus-
sões sobre racismo. O grupo chegou, inclusive, a realizar eventos de
formação com foco em cultura e tradição negra antes de ter conta-
to com o que chamam de movimento cultural negro. Entretanto, esses
eventos sempre pensavam a cultura e tradição negra mais associada à
ideia de periferia, a partir da qual construíram sua identidade política.
O trabalho de produção do jornal uniu mais pessoas em torno do
Aos Brados, o que as levou a buscar um lugar para seus encontros. Mo-
bilizando suas redes de ativismo ligadas aos movimentos de moradia e
ao PT, as fundadoras conseguiram uma sala na sede da Central Única
dos Trabalhadores (CUT) de Campinas. As relações com a CUT e o
PT, bem como a atuação no Orçamento Participativo de Campinas15,
em 2002, são ressaltadas pelos interlocutores como impulsionadores
da busca pela institucionalização, bem como pela diversificação de sua
atuação. Naquele momento, além de publicar o jornal, o grupo passou
a realizar também intervenções em comunidades periféricas, as atividades
sociais. Essas intervenções consistiam principalmente em debates sobre
direitos LGBTI, denominadas de Brados Papo. Como reitero alhures
(ZANOLI, 2020b), assim como acontece na atualidade com a relação

15.  Lúcia foi a primeira conselheira a representar os homossexuais na temática da cidadania no


Conselho do Orçamento Participativo (OP) de Campinas. Segundo o Jornal Aos Brados, tra-
ta-se da primeira vez que o movimento LGBTI organizado participou de um conselho de OP.

83
do coletivo com o movimento negro, os repertórios de atuação16 com
foco na periferia tinham influência dos sindicatos, dos movimentos de
moradia e dos movimentos periféricos.
Em 2008, o grupo estabeleceu alianças com o ativismo cultural ne-
gro. Essa categoria êmica – ativismo cultural negro – é utilizada por
meus interlocutores para se referir a uma série de organizações que
atuam em torno da salvaguarda e da difusão da história, da memória
e de práticas culturais afro-brasileiras. Influenciado por essas relações,
o Aos Brados repensou algumas de suas atividades, passando a atuar
principalmente através do que seus ativistas denominam de atividades
culturais. Além disso, o grupo, que até então se via como periférico,
passou a se autodenominar como LGBTI, negro e periférico.
A partir daí, o Aos Brados passou a ser responsável pela criação de
diversas atividades culturais. As principais foram a Feijoada da Diversi-
dade e o Pedal@ Bicha, ambas com foco em apresentações que sinte-
tizam o que o grupo compreende como cultura LGBTI, negra e periféri-
ca. O mais consolidado dentre os eventos é a feijoada, que aconteceu
entre 2013 e 2019 e teve sua realização afetada pela pandemia de Co-
vid-19. Já o Pedal@ Bicha, foi organizado como parte das comemo-
rações do Mês da Diversidade Sexual de Campinas entre 2011 e 2016.
De modo geral, a maior parte das atividades culturais faz uso de
apresentações artísticas, congregando música, dança e performances
de drag queens. A discussão acerca da necessidade de sua realização
se baseia em argumentos ligados à falta de representatividade, termo
importante em distintas formas de ativismo contemporâneas. Tanto

16.  Segundo Tilly (1993, p. 264, tradução minha), “a palavra repertório identifica um conjun-
to limitado de rotinas que é aprendido, compartilhado e traduzido em ações por meio de um
processo relativamente deliberado de escolhas”. De maneira mais simples, podemos tomar
repertórios como modos de atuar. O importante dessa concepção é compreender que esses
modos de atuar são social e culturalmente construídos e que, muitas vezes, eles circulam
entre redes que costumamos conceber como ativismos distintos (ZANOLI, 2020a). Ademais,
como reitera Tilly, repertórios podem ser aprendidos e adaptados de acordo com os objetivos
de um movimento.

84
a de sujeitos LGBTI, negros e periféricos em espaços tidos como de
cultura LGBTI, quanto da falta de representatividade LGBTI em espa-
ços de cultura negra e periférica. O combate a distintas formas de opres-
são se daria não apenas a partir da denúncia da falta de representati-
vidade, mas também da ocupação desses espaços por sujeitos LGBTI,
negros e periféricos. Ou seja, lutando para que esses sujeitos fossem,
de fato, representados. Ademais, as relações com o movimento negro
têm levado o grupo a adotar gramáticas que circulam no campo das
políticas culturais, principalmente aquelas voltadas às comunidades tra-
dicionais e comunidades negras. Assim, na escrita de pedidos de apoio,
reitera-se a promoção da tradição e da cultura negra e do encontro de
jovens LGBTI, negros e periféricos com suas raízes e tradições.
Na construção de suas atividades, o Aos Brados opera a partir da
junção de repertórios de atuação característicos de dois dos movi-
mentos em que atua: o LGBTI e o negro. A influência deste último
não está apenas na adesão de um discurso ligado à cultura, mas nas
próprias formas de atuar e na identidade política do coletivo. Ou seja,
além de valorizar a cultura como política, o Aos Brados passou a repen-
sar certas atividades como culturais, como é o caso das apresentações
de drag queens, que já eram realizadas desde seu surgimento. Não
obstante, o contato com o movimento negro foi central em proces-
sos subjetivos a partir dos quais alguns dos integrantes do grupo pas-
saram a se compreender também enquanto negros. Ademais, vemos
também um forte investimento na estética como forma específica de
combater o racismo em meio a LGBTI e a LGBTIfobia em meio aos
demais sujeitos políticos com os quais se relaciona. Portanto, podemos
dizer que existe um aprendizado mútuo. Isto é, o grupo, ao “empres-
tar” certos repertórios do movimento negro, os remodela com o ob-
jetivo também de “ensinar” esse movimento discussões provenientes
do movimento LGBTI. Houve também adesão a repertórios e lingua-
gens advindas do movimento LGBTI por parte de alguns coletivos que
compõem o ativismo cultural negro campineiro (ZANOLI, 2020a).

85
E-Jovem

Diferentemente das iniciativas citadas até aqui, o E-Jovem não re-


sulta de uma cisão de um coletivo anterior. Não se trata também
de um grupo, como as demais organizações ativistas campineiras,
mas de uma rede, que, segundo Tomizaki e Daniliauskas (2018), é
a primeira de seu tipo no Brasil. Nesta seção, trato da sucursal cam-
pineira da rede, que era liderada por um casal gay, Leandro e Lauro.
Lauro é drag queen e trabalhou em casas noturnas campineiras. Além
disso, foi presidente do E-Jovem. Leandro é seu marido e um dos
fundadores da rede.
O E-Jovem surgiu como um website voltado para jovens LGBT
para, posteriormente, se firmar enquanto uma rede que congrega
grupos ativistas (os E-grupos) em diversas cidades do país. Segundo
Leandro, sua frequência em fóruns e bate-papos LGBT na internet
o levou a indagar sobre a falta de informações acerca da homosse-
xualidade na adolescência e na juventude. A percepção da carência
de informações levou-o a administrar, junto com outros amigos, o
ejovem.com, criado em 2001.
Além do site, os criadores e usuários passaram a se comunicar
por uma lista de e-mails. Segundo Leandro, em 2002, a lista chegou
a ter mais de cinco mil pessoas de todas as partes do Brasil. Essa
interação deu origem à produção de um curta-metragem intitulado
“Meu Cachorro Gay”. As discussões para a criação do roteiro fo-
ram feitas por meio da internet, apenas as gravações aconteceram
off-line. Segundo Leandro, o encontro para escolha dos atores e o
seguinte, para gravação do filme, foram as primeiras oportunidades
de contato presencial dos usuários e idealizadores do ejovem.com.
Apesar da importância da página, o baixo acesso da população bra-
sileira à internet, naquele período, levou os futuros ativistas a pen-
sar em alternativas de atuação off-line. Quando começaram a discu-
tir a formação de um grupo, perceberam que isso não seria possível,
uma vez que as pessoas interessadas estavam distribuídas nas mais

86
diversas regiões do país. Então, decidiram formalizar a rede entre
2003 e 200417.
O E-Jovem se definia como uma rede de adolescentes e jovens ati-
vistas no combate à homofobia e à hebifobia, o preconceito contra
jovens. Pouco menos de um ano depois de sua fundação, já conta-
va com vinte E-grupos espalhados pelo Brasil. Havia regras para for-
malizar a existência de um grupo. Dentre elas, figurava a exigência
de realizar encontros nacionais para escolha da presidência da rede.
O primeiro desses encontros ocorreu em 2004 (TOMIZAKI; DANI-
LIAUKAS, 2018).
O E-grupo de Campinas era o E-Camp. Lauro foi, por algum tem-
po, presidente do E-Camp e do E-Jovem. Campinas também foi a
sede nacional da rede durante a realização das pesquisas. Esses fatos
apontam para a centralidade do E-Camp na rede. Entretanto, a sucur-
sal campineira deixou de existir em 2014, quando Leandro e Lauro se
mudaram para São Paulo.
No que tange à relação do E-Jovem com outros atores sociais,
Leandro elenca principalmente o Conselho Nacional da Juventude,
do qual Lauro fora conselheiro, a União da Juventude Socialista (UJS)
e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Como de-
monstro em minha dissertação de mestrado (ZANOLI, 2015), exis-
tia também uma intensa influência do pertencimento de Leandro ao
Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Não apenas no discurso políti-
co de membros do E-Camp, mas também em parte do material publi-
cado no antigo website da rede. Destaco textos nos quais, a partir de
um diálogo com Karl Marx e Friedrich Engels, Leandro demonstrava
como as opressões relacionadas a gênero e sexualidade estariam in-
trinsecamente ligadas a ideias de família, de posse e de herança.

17.  Em artigo sobre a trajetória da rede, Tomizaki e Daniliaukas (2018) apontam 2004 como
o ano de sua formalização. Quando realizei pesquisa com o grupo, em entrevista, fui infor-
mado de que 2003 teria sido o ano da formalização. Por esse motivo, afirmo que ela teria
ocorrido entre 2003 e 2004.

87
Dentre as ações do E-Camp, ressalto a Escola Jovem LGBT, finan-
ciada, assim como as atividades do Mo.Le.Ca., através do programa
Pontos de Cultura. A Escola tinha como objetivo combater a homo-
fobia e as altas taxas de suicídio entre jovens e adolescentes gays. Os
cursos oferecidos variavam entre: Sociologia da Homossexualidade,
WebTV, Dança, Música, Criação de Fanzines, Criação de Revistas,
Teatro, Literatura, Cinema e Drag Queens. Tomizaki e Daniliauskas
(2018) destacam ainda outros projetos realizados pelo E-Jovem em
âmbito nacional. Um desses projetos visava incentivar atividades de
combate a homofobia em escolas, o outro era baseado no formato es-
tadunidense das Gay-Straight Alliances, ou Alianças entre gays e hete-
rossexuais em tradução livre. Trata-se de grupos formados por jovens
LGBTI e seus “aliados” com o objetivo de combater a LGBTIfobia.
O foco do grupo na educação passou a ser mais latente, segundo
Leandro, no período posterior à realização de uma série de Conferên-
cias Livres. Essas conferências faziam parte das etapas locais da I Con-
ferência Nacional LGBT e podiam tratar de temas específicos. Então,
o E-Jovem decidiu que seria importante realizar a discussão em torno
da juventude LGBT. A principal demanda levantada pelos participan-
tes teria sido a sobrevivência na escola, o que levou a direção da rede a
pensar em iniciativas educacionais.
O anúncio da criação da Escola não aconteceu sem alguma polê-
mica. Entre os boatos, um dos mais fortes era de que se tratava de
uma escola de ensino médio exclusiva para LGBT, em uma espécie
de modelo segregacionista. O projeto chamou atenção também dos
veículos de comunicação. Além de receber destaques em grandes jor-
nais do país e na mídia especializada, a Escola chegou a ser tema de
programas humorísticos, sofrendo com esquetes LGBTIfóbicas.
O projeto teve início em 2010 e foi finalizado em 2013. Seu térmi-
no ocorreu por dois motivos. O primeiro foi o fim do financiamento.
O segundo, a mudança de Laura e Leandro para São Paulo, o que
acarretou também no fim do E-Camp. Parte dos jovens que atuavam

88
no E-Camp buscou se aproximar de outros espaços e grupos políti-
cos LGBTI, como a Associação da Parada do Orgulho LGBT (APOL-
GBT) de Campinas e o Aos Brados. Este último, segundo militantes
das duas organizações, era o coletivo que mais tinha proximidade
com o E-Camp.

Considerações Finais

Neste trabalho, busquei recuperar a trajetória de parcela dos co-


letivos LGBTI de Campinas. Dentre os analisados, apenas dois con-
tinuam a existir durante o processo de escrita deste capítulo: o Iden-
tidade e o Aos Brados. Além disso, quatro deles podem ser pensados
como contemporâneos entre si: Identidade, Mo.Le.Ca., Aos Brados e
E-Jovem. Os ativistas que atuam ou atuaram nesses grupos mantive-
ram relações em distintas ocasiões. Dentre elas, as reuniões da APOL-
GBT de Campinas e o Orçamento Participativo (OP).
A organização da Parada em Campinas foi influenciada pelo envol-
vimento dos ativistas campineiros na organização da Parada do Or-
gulho LGBT de São Paulo. Já o OP, foi implementado em Campinas
em 2001 por uma administração petista influenciada por experiências
participativas anteriores. O OP é uma ferramenta de gestão participa-
tiva que se baseia em conselhos que fiscalizam e propõem destino aos
gastos públicos (HEREDIA et al., 2012; WAMPLER, 2008). No mode-
lo campineiro, o OP seria composto por um conselho com represen-
tantes divididos em eixos temáticos e regionais. Os eixos temáticos
eram: saúde; assistência; cidadania; cultura e esporte; desenvolvimento eco-
nômico; e educação e gestão.
Apesar de ser uma política participativa pautada nos movimen-
tos sociais, um deles havia ficado de fora, o movimento LGBTI. Em
decorrência disso, os ativistas deram início a uma intensa mobiliza-
ção local para participarem do OP. A denominada luta pela inclusão
dos homossexuais no OP teve êxito e se deu a partir do eixo temático

89
dedicado a questões de cidadania. Dessa maneira, os homossexuais
dividiam esse eixo com negros, idosos, jovens, portadores de deficiência
e mulheres. Cada um desses grupos escolhia seu representante para
compor o conselho da cidadania do OP. A partir de sua atuação no
OP, os ativistas da cidade implementaram uma série de projetos,
medidas e políticas públicas. Destaco aqui o CRLGBT de Campinas,
inaugurado em 2003 como o primeiro serviço público brasileiro a
ofertar assistência social, jurídica e psicológica a LGBT, e um serviço
municipal de acolhimento de denúncias de homofobia, o Disque-De-
fesa Homossexual (DDH), implementado em 2002.
É importante ressaltar esse momento particular da história de
Campinas, não apenas porque ele retrata ocasiões de interlocução en-
tre os grupos, mas também porque demonstra como a cidade, apesar
de menos central nos circuitos ativistas e na literatura sobre a temá-
tica, conta com um movimento LGBT atuante e pioneiro. A imple-
mentação das políticas citadas é importante também, pois, a partir da
promulgação do Programa Brasil sem Homofobia, em 2004, serviços
de estilo semelhante ao DDH e ao CR passaram a ser uma tendência
nacional. Entretanto, muitos desses serviços não foram implementa-
dos como em Campinas. O CR campineiro, apesar de seus problemas
e suas dificuldades (ZANOLI; FALCÃO, 2015; ZANOLI, 2019), é um
serviço gerido pela prefeitura municipal, enquanto muitos dos CR
implementados posteriormente foram instalados a partir de parcerias
público-privadas envolvendo ONGs e distintos níveis governamentais
(AGUIÃO, 2018; FEITOSA, 2019).
Ao recuperar a trajetória dos ativistas de Campinas, parti de uma
perspectiva que privilegia as relações estabelecidas entre os grupos
ativistas da cidade e entre estes e outros atores políticos – como sindi-
catos, partidos e outros movimentos sociais –, bem como sobre aque-
las que se dão entre ativistas e gestores estatais relacionados às políti-
cas LGBT. Apesar da ênfase no nível local, não se trata de pensar este
campo como algo desconectado de uma rede mais ampla de relações

90
ou de compreendê-lo sem referência a um contexto mais abrangente,
que se estende para os âmbitos estadual, regional, nacional e, por ve-
zes, internacional.
Dentre as tendências a nível nacional, dois processos inter-relacio-
nados destacados pela literatura estão presentes nas trajetórias aqui
abordadas. O primeiro diz respeito à maior participação de militantes
na elaboração e avaliação de políticas públicas, bem como no impacto
dessa aproximação com o Estado na institucionalização e nas expecta-
tivas de profissionalização ativista, principalmente na primeira década
dos anos 2000. O segundo está relacionado à produção de identidades
coletivas. Nele, parece se aprofundar um processo de especificação de
sujeitos políticos influenciado por atores que circulam em mais de um
movimento social, mas também em partidos e outras organizações.
O contexto local aqui analisado é diverso do encontrado por
Aguião (2018) ao se atentar à implementação de políticas para LGB-
TI no Rio de Janeiro. Em Campinas, a despeito da criatividade e do
pioneirismo dos ativistas, nota-se considerável precariedade na imple-
mentação das políticas. Diferentemente dos poucos casos de organi-
zações LGBT brasileiras que conseguiram sobreviver a partir da dupla
promessa de institucionalização de profissionalização de ativistas, os
coletivos campineiros que seguiram a trilha dos projetos tiveram des-
tinos distantes das expectativas que guiaram o “reflorescimento” do
movimento (FACCHINI, 2005). O primeiro deles foi a dificuldade em
manter os procedimentos administrativos de prestação de contas, o
que resultou na interdição da contratação de novos convênios e até
em fusões entre grupos, como foi o caso do Identidade e do Mo.Le.
Ca. para garantir a sobrevivência institucional de ambos. O segundo,
foi uma constante tensão entre a necessidade de apoio financeiro para
tocar atividades tidas como estratégicas e fundamentais para o movi-
mento e a possibilidade de perder a autonomia perante o Estado.
O contexto descrito acima é o que marca a emergência dos “ati-
vistas-gestores” que, em alguns casos, podem também se configurar

91
como “gestores-ativistas”. Buscando fazer algo a mais em prol dos
seus e sobreviver da atuação política, ativistas migraram para a ges-
tão. No caso campineiro, ressalto também a presença de gestores que,
influenciados por suas relações com o movimento, pelo caráter po-
lítico do trabalho que exercem e pela situação de “desmanche” nas
políticas públicas municipais (ZANOLI; FALCÃO, 2015), acabaram
também passando a se compreender enquanto ativistas (ZANOLI,
2019). É também o contexto em que, dada a inviabilidade de manter-
-se atuante pela via de projetos, ganham importância tanto a aliança
com partidos e com movimentos mais consolidados – que apenas se
fortalecem, dado que já existiam anteriormente – quanto a participa-
ção nos espaços de controle social.
Para finalizar, é possível apontar que essas singularidades de Cam-
pinas em relação a outros contextos foram se tornando tendências.
Se alguns dos grupos da cidade preferiam não concorrer em editais
públicos, como era o caso do Aos Brados, outros optaram por aban-
donar essa forma de atuar, como o Identidade. Contudo, quando es-
tes mesmos grupos passaram a buscar se relacionar novamente com
agências estatais, principalmente durante as gestões federais de Dilma
Rousseff, uma nova conjuntura política passaria a se formar. Nela,
o Executivo estaria menos aberto a atender as demandas do movi-
mento. Esse fenômeno está também ligado às crises políticas que cul-
minaram no impeachment de Dilma Rousseff e na eleição do atual
presidente, o que modificou as relações dos ativistas com o Estado.
Esse novo momento, como demonstra Facchini (2020), não é apenas
de crise democrática e de combate aos direitos de LGBTI por con-
tra-movimentos, mas também de forte luta e de interlocução entre
movimentos tidos como minoritários (FACCHINI; CARMO; LIMA,
2020; ZANOLI, 2020a).
Além do contexto político pouco favorável, a pandemia de Co-
vid-19 tem colocado uma série de desafios aos ativistas. No caso cam-
pineiro, além do surgimento de novas organizações e de novas formas

92
de atuar, os ativistas do Identidade e do Aos Brados têm buscado in-
vestir nas redes sociais. Eles têm também, sempre que possível, es-
treitado seus laços e atuado em conjunto. Ainda, principalmente no
caso do Aos Brados, novas articulações com distintas organizações do
movimento LGBTI e do movimento negro têm influenciado a grupo
a se institucionalizar a partir das políticas culturais por meio de apoio
e reconhecimento nacional e internacional.

REFERÊNCIAS
AGUIÃO, Silvia. O processo contínuo de (re)fazer-se no Estado. Leitura de um ciclo
de constituição dos LGBT(I+) no Brasil. In. FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isado-
ra Lins (org.). Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo.
Campinas: Editora da Unicamp, 2020, p. 139-164.
AGUIÃO, Silvia. Fazer-se no “Estado”: uma etnografia sobre o processo de constitui-
ção dos “LGBT” enquanto sujeitos de direito no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro:
EDUERJ, 2018.
CÂMARA, Cristina. Cidadania e orientação sexual: a trajetória do grupo Triângulo Rosa.
Rio de Janeiro: Academia Avançada, 2002.
CARRARA, Sérgio. A antropologia e o processo de cidadanização da homossexuali-
dade no Brasil. Cadernos Pagu, n. 47, 2016, e164717.
CARVALHO, Mario; CARRARA, Sérgio. Em direção a um futuro trans? Contribui-
ção para a história do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Sexualidad,
Salud y Sociedad, n. 14, 2013, p. 319-351.
CILENTO, Bruna Pimentel; GARCIA, Cássia Santos; FREITAS, Maria Helena de Al-
meida. MO.LE.CA. sai do armário: experiência de uma militância lésbico-feminista nos
anos 2000. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v. 3, n.10, 2020, p. 378-397.
CORRÊA, Sonia; KALIL, Isabela. Políticas antigénero en América Latina: Brasil. Rio de
Janeiro: SPW/ABIA, 2020.
FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora Lins. De cores e matizes: sujeitos, conexões
e desafios no Movimento LGBT brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 3, 2009,
p. 54-81.
FACCHINI, Regina. De homossexuais a LGBTQIAP+: sujeitos políticos, saberes,
mudanças e enquadramentos. In. FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora Lins

93
(org.). Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campi-
nas: Editora da Unicamp, 2020, p. 31-70.
FACCHINI, Regina. Múltiplas identidades, diferentes enquadramentos e visibilida-
des: um olhar para os 40 anos do movimento LGBTI. In. GREEN, James; CAETA-
NO, Márcio; QUINALHA, Renan (org.). História do Movimento LGBT no Brasil. São
Paulo: Alameda Editorial, 2018, p. 311-329.
FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e a produção de identi-
dades coletivas nos anos 1990. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
FACCHINI, Regina, CARMO, Íris; LIMA, Stephanie. Movimentos feminista, negro
e LGBTI no Brasil: sujeitos, teias e enquadramentos. Educação e Sociedade, v. 41,
2020, e230408.
FALCÃO, Thiago. Memes, textões e problematizações: sociabilidade e política a partir
de uma comunidade de LGBT universitários no Facebook. Dissertação (Mestrado
em Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2017.
FEITOSA, Cleyton. A participação social nos 40 anos do movimento LGBT brasilei-
ro. In. GREEN, James; CAETANO, Márcio; QUINALHA, Renan (org.). História do
Movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda Editorial, 2018, p. 435-448.
FEITOSA, Cleyton. Políticas públicas LGBT no Brasil: um estudo sobre o Centro
Estadual de Combate à Homofobia de Pernambuco. Sexualidad, Salud y Sociedad, n.
32, 2019, p. 90-118.
GIACOMINI, Sônia Maria; TERRA, Paulo. Participação e movimento negro: os
desafios do racismo institucional. In. LOPES, José Leite; HEREDIA, Beatriz (org.).
Movimentos Sociais e esfera pública: o mundo da participação: burocracias, confrontos,
aprendizados inesperados. Rio de Janeiro: CBAE, 2014, p. 189-211.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.
HEREDIA, Beatriz; BARREIRA, Irlys Alencar Firmo; BEZZERA, Marcos Otávio.
Introdução. In: HEREDIA, Beatriz; BARREIRA, Irlys Alencar Firmo; BEZZARA,
Marcos Otávio et al. (org.). Política, governo e participação popular: conselhos, orçamen-
to participativo e outras experiências. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012, p. 11-44.
IAZZETTI, Brume Dezembro. Existe universidade em pajubá? Transições e intersec-
cionalidade no acesso e permanência de pessoas trans*. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Es-
tadual de Campinas, Campinas, 2021.

94
LEITE, José Corrêa. Fórum social mundial: a história de uma invenção política. São Pau-
lo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 2003.
LOPES, José Leite; HEREDIA, Beatriz. Introdução. In. LOPES, José Leite; HERE-
DIA, Beatriz (org.). Movimentos Sociais e esfera pública: o mundo da participação: bu-
rocracias, confrontos, aprendizados inesperados. Rio de Janeiro: CBAE, 2014, p. 19-40.
MACRAE, Edward. A construção da igualdade: identidade homossexual e política no Bra-
sil da abertura. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
MASCARENHAS NETO, Rubens. Da praça aos palcos: caminhos da construção de uma
carreira drag queen. Salvador: Devires, 2020.
MELLO, Luiz; AVELAR, Rezende Bruno de; MAROJA, Daniela. Por onde andam
as Políticas Públicas para a População LGBT no Brasil. Sociedade e Estado, v. 27, n.2,
2012, p. 289-312.
MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a
genealogia de um pânico moral contemporâneo. Sociedade e Estado, v. 3, n. 2, 2017,
p. 725-747.
NEWTON, Esther. Cherry Grove, Fire Island: Sixty Years in America’s First Gay and
Lesbian Town. Boston: Beacon Press, 1993.
PELÚCIO, Larissa; DUQUE, Tiago. “...Depois, Querida, Ganharemos o Mundo”:
reflexões sobre gênero, sexualidade e políticas públicas para travestis adolescentes,
meninos femininos e outras variações. Revista de Ciências Sociais (UFC), v. 44, n. 1,
2013, p. 10-43.
RECH, Carla Michele; SILVA, Marcelo Kunrath. Ativismo institucional como cate-
goria analítica para o estudo das práticas políticas dos movimentos sociais no Brasil.
In: Anais do I Seminário Nacional de Sociologia da UFS, 2016.
RIOS, Flávia. Elite política negra no Brasil: relação entre movimento social, partidos
políticos e Estado. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
SANTOS, Paulo Reis dos. Tensões e desafios: lgbts e o poder público?. Revista de
Psicologia da Unesp, v. 9, n. 2, 2010, pp. 147-164.
SELEM, Maria Célia Orlato. A Liga Brasileira de Lésbicas: produção de sentidos na
construção do sujeito político lésbicas. Labrys, Estudos Feministas, 2007.
SILVA, Zuleide Paiva. LBL – Liga Brasileira de Lésbicas: organização e luta política.
Periodicus, Salvador, n. 7, v. 1, 2017, p. 20-53.
TILLY, Charles. Contentious Repertoires in Great Britain, 1758-1834. Social Science
History, v.17, n. 2, 1993, p. 253-280.

95
TOMIZAKI, Kimi; DANILIAUSKAS, Marcelo. A pesquisa sobre educação, juventu-
de e política: reflexões e perspectivas. Pro-Posições, v. 29, n. 1, 2018, p. 214-238.
WAMPLER, Brian. A difusão do Orçamento Participativo brasileiro: “boas práti-
cas” devem ser promovidas?. Opinião Pública, Campinas, v. 14, n. 1, 2008, p. 65-95.
ZANOLI, Vinícius; FALCÃO, Thiago. “Desmanche”: notas sobre as disputas em
torno da legitimidade das políticas LGBT no Brasil. Cadernos de Campo, n. 24, 2015,
p. 264-289.
ZANOLI, Vinícius. Fronteiras da política: relações e disputas no campo do movi-
mento LGBT em Campinas (1995-2013). Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Cam-
pinas, Campinas, 2015.
ZANOLI, Vinícius. “Mais ativista do que gestora”: ativismo institucional no campo
do movimento LGBT em Campinas. Sociologia & Antropologia, v. 09, n. 02, 2019, p.
495-517.
ZANOLI, Vinícius. Bradando contra todas as opressões: ativismos LGBT, negros, po-
pulares e periféricos em relação. Salvador: Devires, 2020a.
ZANOLI, Vinícius. Negros, LGBTI e periféricos: o impacto das relações entre mo-
vimentos na consolidação de ativismos interseccionais. Revista Controversia, n. 215,
2020b, p. 111-157.

96
POLÍTICAS INSTITUCIONAIS VOLTADAS
À POPULAÇÃO TRANS* NO ENSINO
SUPERIOR PÚBLICO BRASILEIRO E
ALGUNS DE SEUS LIMITES E DESAFIOS 1
Brume Dezembro Iazzetti 2

Introdução3

Este artigo traz alguns dos resultados de pesquisa de graduação e


pós-graduação4 junto a estudantes trans*5 em universidades públicas
brasileiras, com ênfase nas universidades paulistas. Tendo como foco
as questões de acesso e permanência e os modos como a universidade
se abre (ou não) a presença desses novos sujeitos de conhecimento,

1.  Uma primeira versão desse artigo foi apresentada no “VI Congreso de la Asociación Lati-
noamericana de Antropología”, realizado em novembro de 2020 de modo remoto.
2.  Mestra em Antropologia Social (UNICAMP), mestranda em History in the Public Sphe-
re (HIPS) (Erasmus Mundus) e pesquisadora discente do Núcleo de Estudos de Gênero –
PAGU/Unicamp. É associada ao IBTE (Instituto Brasileiro Trans de Educação) e atua em
diversas ONGs e coletivos no campo da educação e dos direitos LGBTQIAP+ sob uma pers-
pectiva interseccional. E-mail: brume.dezembro@gmail.com.
3.  Agradeço à Profa Dra Regina Facchini, minha orientadora de mestrado, e a Profa Dra Isa-
dora Lins França, orientadora de minha primeira pesquisa de iniciação científica. Agradeço
também a Profa Carla Higashi pela cuidadosa revisão dos resumos em português e espanhol.
4.  As pesquisas de graduação tiveram apoio do PIBIC/CNPq e a pesquisa de mestrado, apoio
da FAPESP e da CAPES. Ressalto que aspectos da permanência universitária de estudantes
trans* são melhores desenvolvidos nessa segunda pesquisa, intitulada “Existe ‘universidade’ em
pajubá?: Transições e interseccionalidades no acesso e permanência de pessoas trans*”.
5.  O termo trans* (com asterisco) tem sido utilizado por intelectuais trans* de modo a en-
globar diferentes identidades (travesti, mulher/homem trans, pessoas não-binárias...), consi-
derando que muitas pessoas trans* se afirmam e se entendem enquanto tais, e também com
algum/ns desses termos. Exemplos de seu uso na bibliografia latino-americana incluem Blas
Radi (2019) e Viviane Vergueiro (2018).

97
foram realizadas vinte entrevistas semiestruturadas com estudantes
e docentes trans*, aliadas com o acompanhamento de eventos orga-
nizados por/para pessoas trans* nas universidades e seus arredores,
além do mapeamento a nível nacional de políticas afirmativas volta-
das a essa população no país, no âmbito da educação pública.
Segundo dados produzidos pelo GEMAA (Grupo de Estudos Mul-
tidisciplinares em Ações Afirmativas) (PORTELA & FERES JÚNIOR,
2021) a partir de dados coletados em pesquisa nacional da ANDIFES
(Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensi-
no Superior), o número absoluto de estudantes trans* nas universida-
des federais brasileiras gira em torno de 0,3%, em relação ao núme-
ro total, com 2924 estudantes trans*. Esse número se assemelha aos
dados obtidos, em minha pesquisa de mestrado, a partir dos dados
relativos ao uso do nome social em universidades federais, quando
comparadas ao número total de estudantes dessas instituições de en-
sino superior (IES) (IAZZETTI, 2021b). Dado uma estimativa que o
total percentual de uma população trans* no Brasil, em relação à po-
pulação como um todo, gira em torno de 2% (SPIZZIRRI et al, 2021),
percebe-se uma desigualdade marcante no que se refere a um eixo de
identidade de gênero no acesso a esses espaços.
Esses dados atravessam uma série de violências sociais, econômi-
cas e políticas que atravessam e excedem o campo da educação públi-
ca (IBTE, 2019). Os casos de violência extrema se concentram no en-
trecruzamento de eixos de desigualdade estrutural. Entre os números
relativos aos assassinatos cometidos no Brasil contra uma população
trans*, por exemplo, mulheres trans e travestis negras (82%), profissio-
nais do sexo (67%) e jovens entre 15 e 29 anos (59,2%) são as que mais
sofrem esses crimes (ANTRA, 2020). Ainda, segundo a mesma Associa-
ção, estima-se que, em média, pessoas trans* no país, principalmente
travestis, são expulsas de casa por suas famílias aos 13 anos de idade. Já
em relação aos suicídios, temos que 85,7% dos homens trans e trans-
masculinos já pensaram em suicídio ou tentaram cometê-lo (NÚCLEO

98
DE CIDADANIA E DIREITOS LGBT, 2016), principalmente homens
trans e transmasculinos negros e de baixa renda, entrecruzados em de-
sigualdades sociais e econômicas. Assassinatos e suicídios são os exem-
plos extremos da violência sofrida por pessoas trans* como um todo
no Brasil, que inclui, ainda, para além das violências verbais e físicas
explícitas, violências simbólicas e institucionais.
Embora haja uma profundidade de violências estruturais e suas
raízes históricas, notam-se mudanças marcantes nos últimos anos ao
pensarmos no acesso e permanência de pessoas trans* no ensino su-
perior público brasileiro. Duas frentes legais estão associadas a esse
movimento, descritas nesse artigo sob uma breve perspectiva crono-
lógica: o espraiamento do nome social e o advento de políticas afir-
mativas em programas de graduação e pós-graduação (chamadas
informalmente de “cotas trans”). Ao mesmo tempo, tais mudanças
são atravessadas por limites e desafios, tendo em vista a continuidade
de casos de violência e guinadas conservadoras na política institucio-
nal brasileira. Ao longo desse artigo, também verso sobre a ausência
histórica de dados oficiais sobre uma população trans* no Brasil, as-
sim como esboço algumas aproximações com a realidade de pessoas
trans* em outros países latino-americanos, trabalhando com aborda-
gens teóricas que propõem a atenção às particularidades desse con-
texto e sua historicidade sem encerrá-los em si mesmo.

Espraiamento do uso do nome social no Brasil

A primeira dessas duas frentes legais envolve o espraiamento da


possibilidade de uso do nome social em IES brasileiras ao longo dos
anos 2010. O nome social surgiu como uma demanda histórica do
movimento trans* brasileiro frente a então dificuldade de alterar o
registro civil, o que gerava situações vexatórias em âmbitos adminis-
trativos e era um elemento catalisador da exclusão de pessoas trans*
em espaços institucionais (incluindo o espaço educacional formal).

99
A demanda por uma política de reconhecimento legal do nome de
pessoas trans* data desde a década de 90 no movimento social prota-
gonizado por travestis no Brasil (ARAÚJO, 2020), mas passa a ser as-
segurado e implementado legalmente apenas ao final dos anos 2000,
inicialmente no Sistema Único de Saúde (SUS).
Até 2018, a alteração do registro civil era possibilitada apenas ju-
dicialmente, e exigia a apresentação de laudos médicos e, muitas ve-
zes, a comprovação de determinadas cirurgias, além de ser morosa e
ambígua em seus processos legais (BESEN, 2018). Ao mesmo tempo,
pessoas cisgêneras (não-trans) podiam alterar seus nomes legalmente
através da justificativa de reconhecimento social de seu uso e/ou por
constrangimentos causados pelo nome dado ao nascer, configurando
a desburocratização da retificação do registro civil no Brasil como um
dos principais eixos do chamado movimento de despatologização das
identidades trans*.
Embora a retificação do registro civil tenha sido facilitada a par-
tir de 2018 via decisão do Supremo Tribunal Federal (RE 670.422), o
nome social permanece um direito fundamental no acesso e perma-
nência estudantil, sendo utilizado por menores de idade no âmbito
escolar e universitário6 e, por vezes, como um meio de experimen-
tação inicial anterior ao processo de retificação, conforme observei
nas entrevistas junto à estudantes trans*. Além disso, alterar os docu-
mentos no registro civil não é desejado por todas as pessoas trans*,
e pode haver empecilhos práticos em sua efetivação – por exemplo,
a demanda econômica para embolsar esse processo, ou a existências
de conflitos familiares que impossibilitam o processo de retificação
civil. O nome social permanece amplamente utilizado por estudantes
trans* de universidades públicas – assim, embora haja a possibilidade

6.  Apenas pessoas maiores de idade podem realizar a alteração em cartórios. Para menores
de idade a decisão ainda passa pelas vias judiciais. Mesmo assim, o uso do nome social entre
menores de idade é por vezes conflituoso, como, a depender da instituição de ensino, é exigi-
da a aprovação dos pais do pedido.

100
de retificação civil, o nome social configura ainda um direito funda-
mental a essa população, nesse âmbito (IAZZETTI, 2021b).
Em universidades públicas o primeiro registro de possibilidade de
uso do nome social foi dado na UNIFAP (Universidade Federal do
Amapá) em 2009. A universidade é uma das únicas cinco7 que assegu-
raram o direito de uso do nome social antes da criação da portaria no
1612 do Ministério da Educação (MEC), de 2011, e da portaria no 333,
de maio de 2010, no âmbito da administração pública federal (DAL-
LAPICULA & FONSECA, 2016).
Paralelo a esse movimento, resoluções estaduais passam a se
expandir pelo país. Iniciada por uma primeira resolução estadual
no Pará, outros estados da federação passaram a estabelecer de-
cretos que garantem e regulamentam o uso do nome social. Em
São Paulo, onde minha pesquisa etnográfica se concentra, o de-
creto n o55588 foi promulgado em 17 de março de 2010. Quase
cinco anos mais tarde, em janeiro de 2015, são estabelecidos os
primeiros parâmetros a nível nacional para a implementação do
nome social, através da Resolução CNCD/LGBT no 12, do Con-
selho Nacional de Combate à Discriminação/LGBT. A resolução
traz orientações quanto ao reconhecimento institucional da iden-
tidade de gênero e sua operacionalização. A regulamentação é rea-
lizada pouco tempo após sua implementação no Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM), maior exame para ingresso no ensino
superior no Brasil, em 2014 – que configura um importante marco
do espraiamento da possibilidade de uso do nome social no âmbi-
to da educação formal.
A inserção no ENEM e a criação da resolução do CNCD/LGBT
vem alguns meses antes do decreto federal no 8727, de 28 de abril de

7.  Nominalmente, além da própria UNIFAP, IFSC (Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de Santa Catarina), IFC (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Ca-
tarinense), UFABC (Universidade Federal do ABC) e UFMT (Universidade Federal do Mato
Grosso).

101
2016, que finalmente possibilita o uso do nome social a nível federal.
O decreto é curto, sendo escrito em sete artigos, e apresenta algu-
mas ambiguidades possíveis em sua leitura – por exemplo, o que é
considerado enquanto “estritamente necessário” e como é realizado
o acompanhamento entre nome civil e nome de registro (previstos
no decreto, nesses termos), abrindo margem para diferentes leituras
possíveis, a depender de cada setor ou mesmo de cada agente ad-
ministrativo, no interior de universidades e outras instituições públi-
cas8. Dito isso, o direito ao próprio nome – e a possibilidade de uso
do nome social, visando o fim de situações vexatórias – permanece
em disputa no interior dessas instituições.

Nome social e as possibilidades de uma “contra-produção” de


dados

Outro efeito importante da implementação do uso do nome


social é a possibilidade de expansão da produção de dados oficiais.
Conforme aponta Thiago Coacci (2018), há uma histórica ausência
de estatísticas oficiais sobre uma população trans* no Brasil. O au-
tor traz como ONGs protagonizadas por pessoas trans*, particular-
mente travestis (como a já citada Associação Nacional de Travestis
e Transexuais – ANTRA), têm produzido dados quantitativos como
resposta à ausência de estatísticas produzidas pelo Estado e pela aca-
demia. Ao mesmo tempo, embora, de modo geral, haja uma ausência
de dados oficiais sobre pessoas trans*, havendo o risco de subnotifica-
ção, vale destacar que essa ausência é ainda mais marcante nos dados
sobre transmasculinidades – o que também tem levado a criação de

8.  Em meu trabalho de campo em universidades públicas brasileiras, há, por vezes, con-
flitos entre as leituras do decreto feitas pelo corpo discente, de um lado, e de órgãos admi-
nistrativos e burocráticos, de outro. Outro ponto de tensão está em sua implementação em
instituições privadas, como grande parte dos decretos (tanto o decreto federal quanto os
decretos estaduais e municipais) se referem exclusivamente a instituições públicas.

102
iniciativas, no interior de organizações e coletivos, de produção des-
ses dados até então ausentes ou incompletos.
Esse foi um caminho inesperado no desenrolar de minha pró-
pria dissertação de mestrado, que teve como um de seus eixos uma
“contra-produção” de dados referentes à presença de iniciativas
relativas a uma população trans* no ensino superior público (IAZ-
ZETTI, 2021b). A produção de uma historização de processos legais
(a partir do nome social) e de um mapeamento de políticas afirma-
tivas voltadas a pessoas trans* em IES brasileiras foi algo que não
havia sido feito até então na bibliografia que tive contato, inserida
em um ciclo mais amplo onde a ausência histórica de dados gera
uma dificuldade de criação e fomento de políticas públicas, e vice-
-versa, além de re/produzir uma lógica de invisibilidade, ou mesmo
de ininteligibilidade.
Além de resultado de uma importante luta e ainda de notável re-
levância no dia-a-dia de estudantes trans*, é necessário destacar ainda
que o nome social possibilita a produção de algum tipo de dado sobre
o ingresso e sobre a presença de pessoas trans* nas universidades, em
diferentes escalas. É a partir de sua implementação que sabemos, por
exemplo, que o uso do nome social salta de 95 pedidos, em 2014, para
431, dois anos depois, e 2184, em 20209. Tal expansão também pode
ser percebida no ensino básico em diversos estados do país: no estado
de Pernambuco, por exemplo, o número de alunos utilizando o nome
social duplicou em quatro anos, subindo de 78 em 2017 para 151 em
201910. Já no estado de São Paulo os pedidos aumentaram em quatro
vezes entre 2017 e 2019, somando 755 estudantes11.

9.  Fonte: FERREIRA, Lola. Uso de nome social no Enem salta 450% em relação a 2019. Car-
ta Capital, 29 de janeiro de 2021.
10.  Fonte: TEIXEIRA, Marcionila. Aumenta número de estudantes trans e travestis usando
nome social nas escolas estaduais. Diário de Pernambuco, 25 de janeiro de 2020.
11.  Fonte: LEÃO, Ana Letícia. Alunos com nome social quadruplicaram em cinco anos em
São Paulo. O Globo, 30 de novembro de 2019.

103
Em minha própria pesquisa, solicitei informações relativas ao
nome social para 60 universidades federais brasileiras. Em todas, o
nome social havia sido implementado na instituição e já havia pelo
menos um pedido de nome social vigente, indicando a presença de ao
menos uma pessoa trans* em, virtualmente, todas as universidades
federais brasileiras, em uma ampla gama de cursos e áreas de forma-
ção. Essa implementação ocorreu, em grande medida, entre os anos
2015 e 2017, em consonância com a periodicidade dos decretos aqui
citados (IAZZETTI, 2021b).
Vale ressaltar, no entanto, que os números são ainda tímidos frente
aos números globais – a última edição do ENEM teve mais de cinco
milhões de inscrições, por exemplo. Além disso, sua implementação
prática passa por dificuldades, conforme visto anteriormente, tais
como empecilhos gerados pela burocracia e administração de concur-
sos públicos e no interior de IES, incluindo casos em que estudantes
trans* tem suas solicitações de nome social negadas pelas instituições
(IAZZETTI, 2021b).
É também a partir dos anos 2010 que temos os primeiros re-
gistros de defesas de dissertações e teses de pessoas que utilizam
ou utilizavam o nome social, muitas vezes re/conhecidas como as
“primeiras”, ou algumas das primeiras, pessoas trans* a adentrar
esse espaço. Novamente, há uma precariedade (COACCI, 2018)
na produção desses dados – conforme observado em campo, há
pessoas trans* que ingressaram e se graduaram antes dessa atual
geração – mas sua visibilidade é importante em termos de cons-
tituição de um marco histórico. Indica-se, ainda, a partir desses
dados, as áreas de concentração, e também de ausência, de uma
população trans* (e quem é, afinal, essa população trans*) no âm-
bito da universidade.
Além disso, nesse mesmo período, temos também as assim re/
conhecidas “primeiras” pessoas trans* ingressando no ensino supe-
rior público nacional utilizando o nome social, após a admissão em

104
exames vestibulares – ou seja, que já haviam se afirmado enquanto
pessoas trans* no ensino básico. Esse ingresso se dá nos mais varia-
dos cursos, que por vezes extrapolam as áreas de formação. Mes-
mo assim, podemos observar um número elevado de gargalos nas
áreas das engenharias, ciências da saúde e ciências sociais aplicadas,
quando comparada a cursos de ciências exatas e da terra, ciências
biológicas, ciências agrárias e, principalmente, ciências humanas e
linguística e letras e artes (IAZZETTI, 2021b; PORTELA & FERES
JÚNIOR, 2021).
Vale destacar, no entanto, que foi observado que o número de
estudantes trans* cai drasticamente em cursos de pós-graduação
em praticamente todas as áreas de formação (IAZZETTI, 2021b).
Ao mesmo tempo, os dados sobre evasão são reduzidos, o que in-
dica que estudantes trans* estão hoje concentrados na graduação
(de modo amplo, embora existam gargalos) e que, possivelmente
e potencialmente, tais estudantes se formarão nos próximos anos e
ingressarão no mercado de trabalho ou na própria academia.
Por fim, reforço que, embora devam ser reconhecidos os riscos de
traçar essa história a partir desse tipo de marcos legais, é necessário
levar em consideração o impacto desse reconhecimento institucio-
nal no que tange à produção de algum tipo de mapeamento, mesmo
que ainda precário, das presenças e ausências de pessoas trans* no
ensino superior público brasileiro, compilar (e, efetivamente, produ-
zir) estatísticas se torna um meio de produzir engajamentos, ou, dito
de outro modo, um modo de criação de um arcabouço estratégico
politicamente, na mobilização dessas demandas em diferentes insti-
tuições, principalmente no fomento de políticas públicas. Também
envolve a criação de um aparato epistemológico, no sentido que se
torna inteligível, possível, portanto, que pessoas trans* adentrem es-
ses espaços de produção de conhecimento e que ali produzam por si
próprias (VERGUEIRO, 2015).

105
Advento de políticas afirmativas e algumas considerações a
partir de seu mapeamento

Não por acaso, dada essa linearidade de acesso à graduação, o final


dos anos 2010 acompanha um desdobramento desses primeiros mo-
vimentos de reconhecimento institucional, com pessoas trans* que
entraram na graduação se formando e ingressando em programas de
pós-graduação, além de estudantes trans* que retornam à escola e a
universidade nesse novo cenário12.
A bibliografia sobre ações e políticas afirmativas no Brasil, assim
como produções sobre sua constituição e implementação em diferen-
tes universidades e sob diferentes recortes em termos de uma popu-
lação-alvo (pessoas negras, indígenas, quilombolas e com deficiência)
é extensa e se emaranha com as particularidades de cada uma dessas
historicidades. Caminhando dos anos 2000 até os anos 2010 têm-se
importantes passagens na adoção de ações afirmativas. Primeiro, seu
perfil se altera, inicialmente concentradas em universidades estaduais,
passando a se concentrar em universidades federais. Segundo, sua
base legal também sofre transformações: originalmente difusa e he-
terogênea em sua implementação efetiva, baseada em leis estaduais,
há um marco legal a nível federal com o advento da Lei de Cotas em
2012 (DAFLON; FERES JÚNIOR; CAMPOS, 2013; KAWAKAMI &
JODAS, 2013). Outros marcos históricos nesse percurso são dados em
meados de 2010, com a centralização do ingresso no ensino superior
via ENEM e com a criação de novas universidades federais por meio
do ReUni (programa de Reestruturação e Expansão das Universida-
des Federais). Tais passagens nos indicam o contexto de implementa-
ção de ações afirmativas para uma população trans*.
Anos mais tarde, em 2021, temos 34 instituições públicas com po-
líticas afirmativas para uma população trans* no ensino superior – a

12.  Vale pontuar que há um número elevado de estudantes trans*, quando comparado aos
ensinos fundamental/médio/superior, nas escolas de jovens, adultos e idosos (EJAI) (SAN-
TOS, 2020).

106
grande maioria em programas de pós-graduação, embora haja seis ini-
ciativas na graduação13. Muitas dessas universidades, criadas via ReUni,
contam já amplos programas de políticas afirmativas, propostas peda-
gógicas interdisciplinares e, por vezes, a presença de docentes trans*.
Entre essas 34 instituições, 3 se localizam no Centro-Oeste, 13 no
Nordeste, 5 no Norte, 8 no Sudeste e 5 no Sul:

O estado com número mais elevado de instituições com ações afirmati-


vas para pessoas trans* é a Bahia, com 6 iniciativas. Além disso, as duas
universidades com campi multiestaduais tem um campus localizado no
estado – e 4 das 6 universidades com políticas afirmativas na gradua-
ção estão na Bahia. Como um todo, as iniciativas incluem os estados de
Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro,
Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e
Tocantins, além do Distrito Federal. Se incluirmos ainda as universida-
des multiestaduais, temos ainda a entrada de Ceará e Piauí. Dito isso,
apenas 5 dos 26 estados da federação brasileira – Acre, Paraíba, Ron-
dônia, Roraima e Sergipe – não contam com políticas afirmativas para
pessoas trans* no mapeamento aqui realizado, o que indica a expansão
espacial dessas iniciativas pelo país. (IAZZETTI, 2021b, p.91)

Em relação aos cursos, nota-se, ainda a partir da distinção entre


áreas da CAPES (Tabela de Áreas de Conhecimento) uma prevalência
de iniciativas nas áreas das ciências humanas e no campo de linguísti-
ca, letras e artes, cursos específicos nas áreas das ciências humanas e
no campo de linguística, letras e artes, além das áreas das ciências da
saúde (com destaque para a saúde coletiva) e ciências sociais aplicadas

13.  São elas a Universidade Federal do ABC (UFABC), a Universidade Federal da Bahia
(UFBA), a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), a Universidade do Estado da Bahia
(UNEB), a Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e a Universidade do Estado do
Amapá (UEAP).

107
(com destaque para comunicação e serviço social). Não há casos de
iniciativas do tipo nas áreas de ciências exatas e da terra e das enge-
nharias, além de exemplos pontuais nas áreas de ciências biológicas e
ciências agrárias. Como um todo, acompanha-se uma tendência da
existência de políticas afirmativas onde estudantes trans* já estão pre-
sentes na graduação, ao mesmo tempo em que esses dados acompa-
nham o fato de que a existência de ações afirmativas no país, a partir
de decisões internas de cada programa, se concentram nas áreas das
humanidades ou campos multidisciplinares, seguido das ciências bio-
lógicas, ciências agrárias, ciências da saúde e, por fim, engenharias
(VENTURINI, 2019).
Grande parte dessas universidades utilizam o modelo de reserva de
vagas suplementares, ou seja, são criadas vagas adicionais para o alo-
camento de estudantes trans*, tanto na graduação quanto na pós-gra-
duação – ou, por vezes, há uma reserva de vagas remanescentes. Na
pós-graduação a presença desse tipo de política ainda é, em algumas ins-
tituições, restrita a poucos programas – como é o caso de universidades
estaduais paulistas, enquanto, em determinadas universidades federais
na região Norte/Nordeste, ela é amplamente distribuída, com todos os
programas de pós-graduação contando com esse tipo de iniciativa.
Ao mesmo tempo, sua efetividade é variada, e sua existência am-
pla no interior de uma universidade não necessariamente acompanha
um efetivo impacto social. Por vezes, tais políticas afirmativas apre-
sentam tamanha dificuldade prática (restritas a uma pequeníssima
parcela de vagas remanescentes, e com regras relativas à renda, for-
mação escolar ou mesmo desempenho acadêmico) que elas material-
mente não impactam na realidade de pessoas trans* e permanecem
ociosas. Além disso, em muitas instituições, as políticas afirmativas
para pessoas trans* são dadas de modo conjunto a outras populações
historicamente marginalizadas, o que faz perder sua especificidade e
dificulta a criação de medidas e políticas direcionadas às necessidades
concretas dessa população (IAZZETTI, 2021b).

108
Em outras universidades, no entanto, sua implementação tem
mostrado resultados positivos na presença constante de matrículas
e ingressos de estudantes trans*. Conforme visto anteriormente, há
um contingente amplo de estudantes trans* egressos da graduação,
ou que irão se formar nos próximos anos, o que indica a necessidade
de uma abertura efetiva dos cursos de pós-graduação e, com isso, o
aprimoramento dessas políticas afirmativas, compreendidas enquan-
to um processo em andamento e não um fim em si mesmo. Assim,
o não-preenchimento dessas vagas indica menos um desinteresse
de estudantes trans* pelo ingresso na pós-graduação e mais uma in-
completude dessas políticas afirmativas, além de ser indicativo, mui-
tas vezes, dos elementos de violência estrutural que acompanham a
trajetória de estudantes trans* desde a educação básica, apontando a
necessidade de ações mais amplas, tais como a criação de cursinhos
comunitários pelas IES.
Embora ainda recentes, os poucos dados existentes referentes ao
ingresso de estudantes trans* via políticas afirmativas é provocativo
na atenção a seus limites e desafios. Conforme observado a partir do
trabalho de campo, nota-se que grande parte das pessoas trans* na
universidade se afirmam assim publicamente já inseridas nesse espa-
ço, relatando em entrevistas as dificuldades enfrentadas na escola e
no ambiente familiar (IAZZETTI, 2021b). Por sua vez, segundo re-
latório do Instituto Brasileiro Trans de Educação (2019), temos que
grande parte do corpo discente trans* parou em algum momento os
estudos, e cerca da metade estudam e trabalham, o que reforça um
eixo específico de classe e o impacto do apoio (ou não) familiar nessas
trajetórias. Esses dados resultam de desigualdades estruturais, prin-
cipalmente de raça e classe, que afetam diferentemente e desigual-
mente pessoas trans* – assim, “a” população-alvo dessas políticas se
torna “uma” população, na medida em que seu acesso efetivo per-
passa por uma dimensão interseccional de diferenças e desigualdades
(IAZZETTI, 2021b). Dito isso, é necessário refletir e atuar sobre a

109
implementação de políticas públicas e afirmativas dentro das universi-
dades como o estopim de uma mudança substantiva de várias frentes,
inclusive para além do espaço da universidade e da educação formal.

Traçando histórias e conexões nos (e além dos) direitos con-


quistados

Entre outubro de 2018 e setembro de 2019 foram cometidos 130


assassinatos contra pessoas trans* no Brasil, que segue na liderança
como o país com o maior número absoluto de homicídios contra pes-
soas trans*. Segundo informações do TGEU (Transgender Europe),
dos 2982 casos de assassinatos computados no mundo entre janeiro
de 2008 e setembro de 2018, cerca de 40% (1238) ocorreram no país.
No segundo lugar mundial dos assassinatos entre 2018 e 2019 está o
México, com 63, seguido dos Estados Unidos da América, com 31.
Embora o Brasil lidere em absoluto essa lista, percebe-se a presença
de diversos países latino-americanas entre os mais violentos contra
pessoas trans*.
Perspectivas teórico-políticas têm procurado se atentar às parti-
cularidades da constituição de identidades de gênero nesse contexto,
compreendendo os modos como já no período colonial havia imposi-
ções violentas contra pessoas que destoavam da binaridade de gênero
em certo padrão europeu e colonial (VERGUEIRO, 2015). No Brasil,
seu marco estaria, nessa leitura, no assassinato de Xica Manicongo
ainda no século XVI, uma congolesa escravizada morta a mando da
Inquisição por vestir roupas “do sexo oposto”, crime equivalente à
lesa a majestade ( JESUS, 2019).
A história brasileira – o que também, em certa medida, se aplica
a outros países latino-americanos que passaram por períodos ditato-
riais recentes – é permeada pela aberta perseguição policial contra
pessoas trans* e gênero-dissidentes, principalmente contra travestis.
Autoras como Cavalcanti, Barbosa e Bicalho (2018) enfatizam, nesse

110
percurso histórico, a chamada “Operação Tarântula”, vigente no Re-
gime Militar nos anos 80 na cidade de São Paulo, ação civil-estatal de
perseguição a travestis, tidas como centro da então epidemia de HIV/
AIDS, ao mesmo tempo em que ações semelhantes foram realizadas
em todo o país (ARAÚJO, 2020)14. Não por acaso, se nos atentarmos
aos primórdios do que viria a ser o movimento trans* organizado no
país, ainda na década de 90 – naquele momento centrado nas travestis
– temos que sua principal reivindicação, para além das demandas de
prevenção contra o HIV/AIDS e outras ISTs (infecções sexualmente
transmissíveis), era o fim da violência policial (CARVALHO, 2011).
Anos mais tarde, foi em resposta a mesma epidemia que travestis
foram reconhecidas legalmente em seu combate no âmbito da saúde
no Brasil. Foi inicialmente no campo da saúde que direitos como o do
nome social foram implementados inicialmente (CARRARA, 2010,
2015), ainda na década de 2010 se expandindo para o campo da educa-
ção, que hoje surge como um eixo central da constituição de direitos
da população trans* no país.
Ao mesmo tempo, esses processos acompanham o surgimento de
pânicos morais e de propostas de lei diretamente contrárias à uma
população trans*, particularmente no que é enquadrado enquanto
uma “ideologia de gênero” (ROSADO-NUNES, 2015). Um marco im-
portante, aqui, é o veto do governo federal do projeto “Escola sem
homofobia”, em 2011 (ARAÚJO, 2020) – ainda revivido, uma década
mais tarde (no que viria a ser chamado posteriormente de “Kit gay”),
em mobilizações contrárias ao advento de direitos de uma popula-
ção trans*. Ao mesmo tempo, pessoas trans* surgem no epicentro
de uma continuidade de controvérsias públicas no que é por vezes

14.  Os meandros da história e suas re/memórias no espaço e discurso público, particular-


mente no período ditatorial latino-americano, tem sido o tema de meu novo projeto de
mestrado, “Between tarantulas and travestis”, com apoio da Erasmus Mundus Joint Masters.
Também trabalharei com aproximações do contexto brasileiro com outros países latino-a-
mericanos.

111
descrito enquanto uma ameaça aos valores tradicionais da nação (IA-
ZZETTI, 2021a) – sua própria existência é tida como uma espécie de
ideologia encarnada, gerando, em determinados grupos sociais rea-
cionários, pânicos morais sobre temas que vão da presença de pessoas
trans* em competições esportivas a banheiros públicos.
Caminhando ao final dos anos 2010 tem-se ainda uma intensificação
da precarização do investimento na educação pública brasileira, incluin-
do no ensino superior, afetando principalmente universidades federais.
Se tomarmos como exemplo a UFSB (Universidade Federal do Sul da
Bahia), a primeira universidade do país a adotar reserva de vagas para
pessoas trans* na graduação, temos uma ameaça constante de seu fe-
chamento definitivo. A universidade ficou conhecida nacionalmente
como a mais afetada pelos cortes federais nesse período. Em maio de
2019, a reitoria da universidade anunciou que havia sido bloqueado
38% do orçamento de custeio e capital, afetando recursos básicos da
universidade (como água e luz), além de bolsas de pesquisa e o paga-
mento de funcionários. Outro ponto importante, enfatizado na mesma
nota, é o fato de a universidade ter sido recentemente criada, exigindo
o bloqueio de investimentos e o congelamento de planos de expansão15.
Além disso, guinadas conservadoras no âmbito da política estatal
têm nas políticas afirmativas para pessoas trans* um ponto de ataque.
Em julho de 2019, a UNILAB (Universidade da Integração Internacio-
nal da Lusofonia Afro-Brasileira) atrelou um programa de ação afir-
mativa para as vagas remanescentes de seu processo seletivo. O pro-
cesso seletivo incluía um vestibular específico para uma população
trans* e intersexo, onde as pessoas candidatas poderiam versar sobre
sua história de vida. O MEC interveio no edital, afirmando que ele
iria de encontro a Lei de Cotas, que não preveria a reserva de vagas
para pessoas trans*, vetando o vestibular. Inicialmente, a UNILAB de-
clarou que as vagas seriam ociosas do Sisu e que, por isso, não seriam

15.  Fonte: UFSB. Nota oficial sobre cortes no orçamento da UFSB. UFSB, 3 de maio de 2019.

112
cotas ou reserva de vagas. O caso incluiu o pronunciamento, via rede
social, do presidente da república, Jair Bolsonaro, de que o MEC ha-
via sido acionado e o vestibular seria suspenso imediatamente. No
dia 17 de julho, a UNILAB anulou oficialmente o edital. Críticos da
decisão judicial apontam que a interferência do MEC fere o princípio
de autonomia universitária, e temem que a decisão possa criar cená-
rios de jurisprudência na anulação de outros editais16. O caso da UNI-
LAB surge na sequência de um ocorrido no ano anterior, em abril, na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde um edital com
reserva de vagas para pessoas trans* foi suspenso após uma ação po-
pular movida por um pastor evangélico17. Tempo depois, no mesmo
ano, o mesmo pastor moveu mais uma ação – dessa vez contra a UFF
(Universidade Federal Fluminense) – mas perdeu na Justiça.
Embora esses sejam casos explícitos de oposição, se não persegui-
ção, ao advento desse tipo de iniciativa nas universidades públicas (se
não as universidades públicas em si mesmas, em sua existência con-
creta), vale destacar que o advento de tais medidas tem avançado no
país ao longo dos anos 2010. Mesmo assim, observar tais controvér-
sias é necessário para, em sua densidade, adensar uma história linear
desses direitos e, especificamente, da existência e da efetividade des-
sas ações afirmativas.
Mesmo com o advento desses direitos, dados relativos à violência
extrema contra pessoas trans* tem crescido a cada ano no Brasil. Mes-
mo no período de isolamento social frente à pandemia do COVID-19,
os assassinatos subiram em 13% em relação ao ano anterior, segundo
dados da ANTRA. Os dados sobre transfeminicídio – e seus eixos de
raça, classe e trabalho – devem ser pensados junto ao aumento nas
taxas de feminicídio no Brasil como um todo (e, em grande medida,

16.  Fonte: VILELA, Pedro Rafael. Bolsonaro diz que vestibular específico para transgêneros
será anulado. Agência Brasil, 16 de julho de 2019.
17.  A ação está disponível em: https://sarawagneryork.medium.com/despacho-decis%-
C3%A3o-contra-cotas-para-trans-c83ddb6bb286

113
na América Latina), embora haja particularidades no transfeminicí-
dio, comumente acompanhado de requintes de crueldade (83%), sem
relação direta com as vítimas (80%) e ocorrido nas ruas (64%) (AN-
TRA, 2020).
Outro dado importante de ser entrecruzado está no aumento do
suicídio entre homens jovens, principalmente entre a população jo-
vem negra e indígena. Enquanto a taxa entre adolescentes brancos
se manteve entre 2018 e 2019, houve um aumento de 12% entre
adolescentes negros, que, no total, é 45% maior que a de adoles-
centes brancos18. Entre indígenas, a taxa é três vezes superior à mé-
dia do país tanto para homens (onde estão concentrados os casos)
quanto para mulheres19.
O número de assassinatos e de suicídios se entrecruza com outros
dados de violência extrema no Brasil e na América Latina, tais como
os dados de encarceramento em massa, genocídio da população ne-
gra, letalidade policial e a destruição e invasão de terras indígenas. A
partir dessas estatísticas podemos tensionar processos de re/conhe-
cimento estatal e certa história baseada em marcos legais – ou seja,
tensionar certa narrativa de progresso e a centralidade da leitura do
Estado em sua esfera legal. Podemos questionar em que medida as
passagens entre governos, por exemplo, representam mudanças efe-
tivas nessas estatísticas e nas vidas que procuram visibilizar e, efetiva-
mente, impactar, para além do âmbito estritamente legal.
Por fim, pontuo que o espraiamento do uso do nome social e o ad-
vento de políticas afirmativas no ensino superior público atravessam
particularidades da história brasileira e latino-americana, mas devem
ser levados em conta, também, a partir de um contexto internacional
mais amplo, tais como a convenção de Yogyakarta, realizada em 2006,

18.  Fonte: FIGUEIREDO, Patrícia. Índice de suicídio entre jovens e adolescentes negros
cresce e é 45% maior do que entre brancos. Geledés, 25 de maio de 2019.
19.  Fonte: CAMPELO, Lilian. Taxa de suicídios entre indígenas é três vezes superior à média
do País. Brasil de Fato, 24 de setembro de 2018.

114
que aplica a legislação internacional de direitos humanos em relação à
identidade de gênero, mesmo que permeado de disputas e tensões, nas
relações entre nacional/internacional, local/global (BARBOSA, 2015).
Embora casos de violência sejam também comuns em países vizi-
nhos, países como o Uruguai criaram leis direcionadas a uma popu-
lação trans* nos últimos anos que se configuram como algumas das
mais bem-trabalhadas do mundo, se atentando às violências históri-
cas contra essa população (principalmente contra travestis) e medidas
reparatórias não apenas na educação, mas também no ambiente de
trabalho e em cargos políticos. Em 2009 é aprovada no Uruguai a lei
de identidade de gênero, possibilitando a alteração no registro civil
(inclusive de menores de idade, mediante autorização dos pais), em-
bora ainda restrita a mediação e autorização judicial. Nove anos mais
tarde, em 2018, é aprovada a Lei Integral para Pessoas Trans (Ley In-
tegral para Personas Trans), que possibilita a alteração do registro ci-
vil pela via administrativa. A Lei reconhece ainda a violência histórica
contra pessoas trans* no país, particularmente no período ditatorial,
seguindo o princípio de reparação histórica, incluindo a garantia de
restituição financeira a vítimas. Afirma como responsabilidade do Es-
tado a garantia de acesso psicológico, social, financeiro e educacional
e o acesso a cultura e a saúde, e, por fim, reserva postos de trabalho
e vagas em projetos de formação e capacitação para pessoas trans*.
Lei semelhante surge, em 2021, na Argentina – em sequência a outros
marcos legais anteriores – onde há a reserva de 1% dos cargos públi-
cos para pessoas trans*, além de incentivos fiscais à iniciativa privada.

Considerações Finais

Ao longo do artigo, atravessei duas frentes legais relacionadas à


presença de pessoas trans* no ensino superior público brasileiro a
partir dos anos 2010: o espraiamento do nome social no âmbito edu-
cacional formal e o advento de políticas afirmativas ao final dessa

115
década. Pontuei, ainda, em meio a esse percurso histórico, os mo-
dos como o nome social permite algum tipo de “contra-produção”
de dados quantitativos sobre a presença de pessoas trans* no ensino
superior público, tendo em vista um processo histórico de ausência
de dados produzidos pelo Estado e pela academia e seu consequente
impacto na criação e fomento de políticas públicas. Trouxe, a partir
do nome social e dos dados sobre políticas afirmativas para uma po-
pulação trans*, dados sobre sua presença no ensino superior público
brasileiro, indicando também limites e desafios.
Na sequência, trouxe algumas considerações sobre a história e a
contemporaneidade brasileira e latino-americana, principalmente
em seus adventos legais (criação de políticas afirmativas no ensino
superior brasileira e a expansão de direitos à uma população trans*
a partir do âmbito da saúde) e nos dados sobre violência extrema
em seus eixos de gênero, raça, classe e trabalho. Trouxe, com isso,
alguns tensionamentos em uma leitura a partir de marcos legais e
institucionais, indicando, por fim, certa limitação das leis brasileiras
quando comparadas a outras leis vigentes na América Latina (tra-
zendo o exemplo uruguaio). Nesse momento final, também esbocei
aproximações com aparatos teóricos que se atentam as particularida-
des desse contexto (sem se limitar estritamente a ele), seja na aten-
ção a processos outros de re/conhecimento estatal através de políti-
cas de fazer morrer, seja no retorno a um período colonial que, nessa
leitura, haveria aqui fincado estruturas de desigualdade em profun-
das raízes históricas. Reforço, por fim, dois pontos que permearam,
direta e indiretamente, esse artigo.
Uma primeira consideração final importante de ser destacada é a
compreensão de que a educação está sempre enredada com relações
familiares, acesso ao serviço de saúde, segurança nas ruas, e assim
em diante – e que pensar e atuar sobre o ensino superior, necessaria-
mente, é pensar e atuar sobre o ensino básico. Refletir sobre o aces-
so e permanência de pessoas trans* na educação, e particularmente

116
no ensino superior público, implica em uma reflexão e uma atuação
coletiva mais ampla, dentro e fora desses espaços – o que, enquanto
fundamentação teórica e política, nos exige uma atenção cuidadosa a
suas fronteiras.
Relacionado a esse primeiro elemento está um segundo fato, da
necessidade de adotarmos uma perspectiva que se atente as interco-
nexões de desigualdades sociais (que podemos, em diálogo com a bi-
bliografia e movimentos sociais, denominar de “interseccional”), de
modo a reconhecer limites estruturais e tomá-los como desafios, le-
vando a sério os modos como desigualdades, tais como gênero, raça
e classe, emergem nessas relações. Isso não implica em hierarquizar
essas violências e opressões, mas pensar em estratégias – ou seja, em
pensar em como refletir e agir sobre os efeitos dessas diferentes desi-
gualdades e suas interconexões, sempre atentando-se ao fato de que
pessoas trans* não são “apenas” pessoas trans. Não só porque essa
experiência de vida não se reduz a uma “transição de gênero”, mas
porque elas estão imbricadas em eixos de desigualdade que implicam
em diferentes acessos e permanências no ensino superior público.
Compreender isso não apenas nos permite uma leitura teórica re-
finada, mas nos possibilita estabelecer alianças políticas e atuar efe-
tivamente na composição de ações e transformações coletivas que
sejam de fato efetivas.

REFERÊNCIAS
ANDIFES. V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos
(as) das IFES – 2018, maio de 2019. Relatório online, disponível em: http://www.
andifes.org.br/v-pesquisa-nacional-de-perfil-socioeconomico-e-cultural-dos-as-gra-
duandos-as-das-ifes-2018/.
ANTRA (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS). Dossiê:
assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019, 2019. Relatório
online, disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/01/dossic3aa-
-dos-assassinatos-e-da-violc3aancia-contra-pessoas-trans-em-2019.pdf.

117
ARAÚJO, Maria Clara. Pedagogias das Travestilidades. Trabalho de conclusão de cur-
so em Educação. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2020 (no prelo).
BARBOSA, Bruno César. Imaginando trans: saberes e ativismos em torno das regulações
das transformações corporais do sexo. Tese de Doutorado, Universidade de São Pau-
lo, 2015.
BESEN, Lucas. ‘Pode tudo, até ser cis’: Segredo de justiça, cisgeneridade e efeitos de estado
a partir de uma pecigrafia dos processos de retificação do registro civil em Porto Alegre/RS.
Tese de Doutorado, 2018.
CAVALCANTI, Céu; BARBOSA, Roberta; BICALHO, Pedro. Os Tentáculos da Ta-
rântula: Abjeção e Necropolítica em Operações Policiais a Travestis no Brasil Pós-
-redemocratização. Psicologia: ciência e profissão, vol. 38 no.2, 2018.
CARRARA, Sérgio. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil con-
temporâneo. Mana, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015.
__________. Políticas e direitos sexuais no Brasil contemporâneo. Bagoas-Estudos
gays: gêneros e sexualidades, v. 4, n. 05, 2010.
COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução
dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese de Doutora-
do, Universidade Federal de Minas Gerais, 2018.
DAFLON, Verônica; FERES JÚNIOR, João; CAMPOS, Luiz Augusto. Ações afirma-
tivas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico. Cadernos
de pesquisa, v. 43, n. 148, p. 302-327, 2013.
DALLAPICULA, Catarina; FONSECA, Miguel. Enredamentos enunciativos nas pri-
meiras IFES a adotarem o nome social no Brasil. Anais do 4º Seminário Internacional
de Educação e Sexualidade e 2º Encontro Internacional de Estudos de Gênero, 2016.
KAWAKAMI, Érica; JODAS, Juliana. Políticas de Ação Afirmativa no Ensino Su-
perior Brasileiro e o Acesso de Povos Indígenas. Políticas Educativas–PolEd, v. 6, n.
2, 2013
JESUS, Jaqueline de. Xica Manicongo: a transgeneridade toma a palavra. ReDoc: Re-
vista Docência e cibercultura. 2019.
NÚCLEO DE DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA LGBT. Projeto transexualida-
des e saúde pública no Brasil: entre a invisibilidade e a demanda por políticas públicas para
homens trans. Relatório online, 2016. Disponível em: http://www.nuhufmg.com.
br/homens-trans-relatorio2.pdf.
IAZZETTI, Brume Dezembro. Direitos humanos em pajubá?: Controvérsias, en-
quadramentos e agenciamentos no acesso e permanência de pessoas trans* no ensi-
no superior público. Antropologia e Direitos Humanos 9, 2021 (no prelo).

118
__________. Existe “universidade” em pajubá?: Transições e interseccionalidades no
acesso e permanência de pessoas trans*. Dissertação de mestrado, Universidade Es-
tadual de Campinas, 2021 (no prelo).
INSTITUTO BRASILEIRO TRANS DE EDUCAÇÃO (IBTE). As fronteiras da edu-
cação: A realidade dxs estudantes trans no Brasil. Relatório online, 2019. Disponível
em: http://observatoriotrans.org/pesquisa.
PORTELA, Poema; FERES JÚNIOR, João. Pessoas trans nas universidades federais do
Brasil, GEMAA: Grupo de Estudos Multidisciplinares em Ação Afirmativa, 2021.
Disponível em: gemaa.iesp.uerj.br/infografico/pessoas-trans-na-universidades-fe-
derais-do-brasil/.
RADI, Blas. Políticas del conocimiento hacia una epistemología trans*. IN: SEOA-
NE, Mariano López (ed.). Los mil pequeños sexos: Intervenciones críticas sobre políti-
cas de género y sexualidades. Universidad Nacional de Tres de Febrebo, 2019.
ROSADO-NUNES, Maria José. A “ideologia de gênero” na discussão do PNE. A in-
tervenção da hierarquia católica. HORIZONTE: Revista de Estudos de Teologia e Ciên-
cias da Religião, p. 1237-1260, 2015.
SANTOS, Dayanna Louise dos. “Sobrevivi para contar”: Experiências escolares trans-
gêneras na educação de jovens, adultos e idosos (EJAI). Dissertação de mestrado,
Universidade Federal de Pernambuco, 2020.
SPIZZIRRI, Giancarlo et al. Proportion of people identified as transgender and non-bi-
nary gender in Brazil. Scientific Reports (11), 2021.
VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero incon-
formes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação
de mestrado, Universidade Federal da Bahia, 2015.
VENTURINI, Anna Carolina. Ações Afirmativas nos Programas de Pós-graduação
Acadêmicos de Universidades Públicas. Levantamento das políticas afirmativas GE-
MAA, 2019.

119
DESPATOLOGIZACIÓN, INTEGRALIDAD
Y AUTOGESTIÓN: DEMANDAS E
INICIATIVAS POR LA SALUD TRANS
EN ARGENTINA (2012-2019)
Anahí Farji Neer 1

Introducción2

En este trabajo abordo las iniciativas de activistas y usuarixs trans


del sistema de salud argentino para garantizar el cumplimiento de la
Ley 26.743 de Identidad de Género en el ámbito sanitario. Analizo
dichas iniciativas a la luz de los conceptos de biociudadanía y ciuda-
danía biológica. El corpus se compone de entrevistas en profundidad
a referentes de organizaciones trans de Argentina, notas periodísti-
cas publicadas en medios gráficos impresos y digitales, posteos en
redes sociales y contenidos de sitios web elaborados por activistas y
usuarixs trans del sistema de salud entre 2012 y 2019 para socializar
experiencias, recursos e información con el fin de promover el cum-
plimiento de sus derechos. El análisis de dicho corpus busca abordar
los discursos y acciones de activistas y usuarixs trans del sistema de
salud argentino para garantizar el acceso a su salud en el marco de un

1.  Doctora de la Universidad de Buenos Aires en Ciencias Sociales. Investigadora Asistente


del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas con lugar de trabajo en el
Instituto de Estudios Sociales en Contextos de Desigualdades de la Universidad Nacional de
José C. Paz. anahi.farji@gmail.com
2.  Una versión parcial de este trabajo fue publicada en Farji Neer (2019).

121
proceso global de transformación del rol de lxs pacientes y crítica a la
autoridad médica.
La Ley 26.743 de Identidad de Género argentina fue sancionada
el 9 de mayo de 2012. La misma regula el cambio de nombre y sexo
registral y el acceso a intervenciones y tratamientos médicos para
construir una imagen corporal acorde a la identidad de género. Para
mayores de edad, el trámite de cambio de nombre y sexo registral
requiere presentarse en una sede del registro civil con la partida de
nacimiento y completar una declaración jurada en la que se manifies-
te el pedido. No requiere ninguna instancia de evaluación ni la pre-
sentación de material probatorio de ninguna índole. Para menores de
edad, la Ley establece que el trámite sea realizado por intermedio de
sus representantes legales con la expresa conformidad de la persona
solicitante y la asistencia de un “abogado del niño”, conforme lo esti-
pula la Ley 26.061 de protección integral de los derechos de las niñas,
niños y adolescentes (Ley 26.743, Art. 5°). El artículo 11º de la Ley de
Identidad de Género establece que quienes así lo deseen puedan acce-
der a intervenciones quirúrgicas y/o tratamientos hormonales para
“adecuar su cuerpo, incluida su genitalidad, a su identidad de género”
(Ley 26.743, Art. 11°). Dispone que dichos tratamientos sean cubier-
tos por los efectores de los tres subsistemas de salud (público, privado
y obras sociales) sin necesidad de autorización judicial o administrati-
va. La normativa establece que para mayores de edad el único requi-
sito para acceder a los mismos es la firma de un consentimiento infor-
mado. Para menores de edad que soliciten intervenciones quirúrgicas
sí es requisito contar con una autorización judicial.
La Ley de Identidad de Género presenta dos innovaciones respecto
a los criterios legales anteriormente vigentes en Argentina. En pri-
mer lugar, la autorización judicial y las pericias médicas de evaluación
diagnóstica dejan de constituirse como requisitos legales para acceder
al cambio de nombre y sexo registral. Al no existir instancia evaluado-
ra que indague en la corporalidad de las personas, la identidad legal

122
se separa de la apariencia corporal. La Ley desarticula los criterios
médico-legales de asignación sexo-genérica basados en la genitalidad
anteriormente vigentes: no es necesario tener vagina para que una
persona sea legalmente asignada al sexo femenino ni pene para que
sea asignada al masculino. En segundo lugar, legaliza las intervencio-
nes quirúrgicas genitales voluntarias anteriormente ilegales en virtud
de lo dispuesto por la Ley 17.132 de Ejercicio de la Medicina. Hasta
la sanción de la Ley de Identidad de Género, la justicia ocupaba el rol
de árbitro y evaluador frente a las solicitudes de realización de las mis-
mas (CABRAL, 2007; LITARDO, 2010; FARJI NEER, 2017).
La sanción de la Ley de Identidad de Género fue resultado de la de-
manda sostenida de las organizaciones de travestis, transexuales, transgé-
neros y trans de Argentina. Desde su aparición en el espacio público en la
década de 1990, estas organizaciones reclamaron el cese de la persecución
y discriminación social e institucional. Frente al campo médico, deman-
daron el acceso a una atención de calidad sin prácticas discriminatorias,
ya que las burlas y el desconocimiento de la propia identidad eran mo-
neda corriente en su tránsito por las instituciones de salud (BERKINS Y
FERNÁNDEZ, 2005; BERKINS, 2007; MINISTERIO PÚBLICO DE LA
DEFENSA DE LA CIUDAD AUTÓNOMA DE BUENOS AIRES, 2017).
En el presente trabajo abordo las iniciativas de activistas y usuarixs
trans del sistema de salud para garantizar el cumplimiento de la Ley
de Identidad de Género en el ámbito sanitario en dos momentos. Por
un lado, analizo los debates suscitados al interior del activismo trans
en el período abierto entre la sanción de la Ley en 2012 y la reglamen-
tación de su artículo 11° en 2015. Por otro, abordo las iniciativas e
intervenciones desplegadas ante el inminente desabastecimiento de
medicación hormonal en los efectores del sistema público de salud en
octubre de 2019. Propongo conceptualizar dichas acciones y discur-
sos como iniciativas que adquieren las características de la “ciudada-
nía biológica” o “biociudadanía” (RABINOW, 1996; ROSE y NOVAS,
2005; NOVAS, 2006; ROSE, 2012).

123
Metodología

En el presente trabajo desarrollo un enfoque cualitativo basado


en la realización y análisis de entrevistas en profundidad a activistas
trans, así como en el relevamiento y análisis de notas periodísticas en
medios gráficos impresos y digitales de Argentina, posteos en redes
sociales y contenidos de sitios web elaborados por activistas y usua-
rixs trans del sistema de salud. En el marco de mi investigación doc-
toral, entre 2014 y 2015 entrevisté cinco referentes de organizaciones
trans de Argentina que participaron activamente de la demanda de
la Ley de Identidad de Género y que llevaron adelante actividades o
iniciativas para su cumplimiento en el ámbito sanitario (FARJI NEER,
2020). La muestra estuvo compuesta por referentes de organizacio-
nes de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, la provincia de Buenos
Aires y la provincia de Córdoba. Entrevisté una mujer trans y cuatro
activistas que se identificaban con distintas categorías vinculadas a
las masculinidades trans. El criterio de selección de las personas en-
trevistadas fue de tipo intencional. Entrevisté a quienes tuvieron una
presencia activa en actividades públicas, eventos activistas e interven-
ciones en medios de comunicación solicitando la reglamentación del
artículo 11º de la Ley de Identidad de Género y la despatologización
de las identidades trans en los ámbitos de salud. En las entrevistas
indagué en sus trayectorias activistas, sus percepciones sobre los lí-
mites y posibilidades para la implementación de la Ley en el ámbi-
to sanitario y sus experiencias en el marco de tratamientos médicos
para construir una imagen corporal acorde a su identidad de géne-
ro. Las entrevistas tuvieron una duración aproximada de cuarenta y
cinco minutos, fueron grabadas con previo consentimiento oral y a
lo largo del presente artículo resguardo la confidencialidad de los da-
tos de las personas entrevistadas. Las grabaciones fueron trascriptas,
codificadas y analizadas manualmente. A su vez, relevé notas perio-
dísticas de medios gráficos impresos y digitales (Página/12, Tiem-
po Argentino y Comunicar Igualdad) publicadas entre 2012 y 2015.

124
Seleccioné aquellas notas en las que se plasmaron los debates acer-
ca de las distintas estrategias y discursos delineados por activistas y
usuarixs trans del sistema de salud en pos de lograr la reglamentación
del artículo 11° de la Ley de Identidad de Género. Posteriormente,
relevé notas periodísticas publicadas en medios gráficos impresos y
digitales, así como en portales de noticias online (Filo.news, Agencia
presentes, Revista Cítrica, La Izquierda Diario y Agencia de Noticias
REDacción), posteos en la red social Facebook y entradas del sitio
web Recursero Trans* publicadas entre octubre y diciembre de 2019
que referían a las demandas y reivindicaciones de la Asamblea Trans
Trava No Binarie por la salud integral frente a la noticia del inminente
desabastecimiento de medicación hormonal en los efectores del siste-
ma público de salud. Para el análisis del corpus utilicé la técnica del
análisis de contenido cualitativo (ANDRÉU ABELA, 1998/2003). Las
notas periodísticas y los posteos en redes sociales y sitios de internet
fueron codificados y analizados manualmente de manera individual.
Posteriormente, la totalidad del material recabado fue codificado y
analizado de manera global.
A continuación, repongo los debates teóricos que nutren este trabajo
y que focalizan en las transformaciones del campo médico desde la dé-
cada de 1980. Hago especial hincapié en los desarrollos que abordan los
procesos por medio de los cuales lxs pacientes se reposicionaron como
usuarixs activxs del sistema de salud para luego ponerlos en juego en el
análisis de la relación entre lxs usuarixs trans y el sistema de salud argen-
tino posterior a la aprobación de la Ley de Identidad de Género.

El rol de lxs pacientes en el orden biopolítico contemporáneo

Siguiendo a Peter Conrad (2007), a partir de la década de 1980


se dieron cambios a escala global en la organización de la medici-
na que alteraron el régimen biopolítico vigente. Es decir, el modo
en que la regulación de lo biológico se constituye como eje de las

125
tecnologías y dispositivos de poder. Conrad (2007) destacó tres
aspectos de este proceso: la erosión de la autoridad médica, la
mercantilización de la atención y la incorporación de los avances
científico-tecnológicos al campo de la salud. En lo que refiere a la
reconfiguración de la autoridad médica, afirmó que si bien lxs pro-
fesionales de la medicina mantuvieron su dominio y soberanía en el
campo de la salud, nuevos actores reconfiguraron su rol: la industria
farmacéutica y lxs pacientes. Estxs últimxs comenzaron a tomar un
rol activo en la búsqueda de tratamientos, profesionales y servicios
en base a sus deseos, necesidades y posibilidades (CONRAD, 2007).
De este modo, lxs pacientes –categoría social que remite a la expe-
riencia sistemática de la espera, la paciencia y la perseverancia (AU-
YERO, 2012)- dejaron de ocupar un lugar pasivo para posicionarse
como usuarixs activxs del sistema de salud.
Muchos de estos cambios fueron subsidiarios de los avances en la
investigación médica y la tecnificación de los tratamientos. Para Adele
Clarke, Janet Shim, Laura Mamo, Jennifer Fosket y Jennifer Fishman
(2003) la integración de las tecnociencias al campo de la salud pro-
movió el pasaje de la medicalización a la biomedicalización. Los dis-
positivos médicos de producción, control y regulación de las subjeti-
vidades propios de la modernidad se vieron modificados frente a los
cambios del estatus de la materialidad biológica y sus posibilidades de
transformación en base a los avances tecnocientíficos. Estos procesos
tuvieron efectos en la subjetividad, en las formas de colectividad y
sociabilidad, en la relación médicx-paciente y en las políticas públicas.
Para Carlos Novas (2006), que lxs pacientes del sistema de salud ha-
yan tomado un rol activo en la producción y avance del conocimiento
transformó las reglas del juego de la biomedicina. Otrxs autoxs pro-
fundizaron esta idea y afirmaron que dicha participación reconfiguró
el concepto mismo de ciudadanía. Nikolas Rose (2012) sostuvo que
todo proyecto de Estado Nación delimita la ciudadanía en térmi-
nos somáticos. Su concepto de “ciudadanía biológica” apuntó a las

126
creencias, representaciones, actitudes y prácticas cotidianas desar-
rolladas por los sujetos frente a sí mismos, frente a otrxs y frente a
las instituciones, bajo los términos de una definición somática de la
identidad basada en las nociones de riesgo, sufrimiento y vulnerabili-
dad. En sintonía con estas reflexiones, Paul Rabinow (1996) utilizó el
término “biociudadanía” para describir el proceso de conformación
de grupos y asociaciones que tenían por objeto demandar políticas
públicas al Estado. Nikolas Rose y Carlos Novas (2005) afirmaron que
estos grupos podían ampararse en categorías médicas para llevar ade-
lante sus reclamos o bien enfrentarse a ellas y discutirlas en la arena
pública. Señalaron que sus integrantes se vinculaban entre sí a través
del conocimiento e identificación de una condición somática común.
En base a categorías y procesos de vulnerabilidad corporal, sufrimien-
to o riesgo, conformaron espacios de sociabilidad cuyo objetivo podía
ser la demanda de políticas públicas específicas, investigaciones médi-
cas y/o la elaboración de campañas para promover que el resto de la
población conozca las características de sus necesidades de salud. Re-
clamaban tener una participación activa en el desarrollo de sus trata-
mientos, movilizaban demandas y podían colaborar en la producción
y avance del conocimiento médico (ROSE y NOVAS, 2005).
Todos estos desarrollos ofrecen aristas analíticas para compren-
der el proceso de conformación de la Red Internacional por la Des-
patologización Trans y su Campaña Stop Trans Pathologization 2012
lanzada en octubre de 2007 en la ciudad de Barcelona, España. La
misma fue creada con el fin de criticar la vigencia de categorías diag-
nósticas que patologizaban las formas de vida trans. Por medio de
movilizaciones y acciones públicas desarrolladas de manera coor-
dinada en distintas ciudades del mundo, la campaña reclamaba eli-
minar la categoría de “Trastorno de la Identidad sexual o de géne-
ro” de la quinta versión del Manual Diagnóstico y Estadístico de los
Trastornos Mentales (DSM) de la Asociación Americana de Psiquia-
tría a editarse originalmente en 2012 y acceder a los tratamientos

127
hormonales, cirugías y otras tecnologías médicas de modificación
corporal por fuera de evaluaciones diagnósticas. A su vez, sus accio-
nes tenían por objetivo concientizar a la comunidad médica sobre
la importancia de otorgar un rol activo a las personas trans en sus
tratamientos y respetar su autonomía de decisión (COLL-PLANAS,
2010). Las consignas de la Campaña Stop Trans Pathologization 2012
fueron retomadas por el activismo travesti, transexual, transgénero
y trans de Argentina al demandar la aprobación de una Ley de Iden-
tidad de Género (FARJI NEER, 2020). Las tensiones entre el sistema
médico y la población trans dieron un nuevo giro tras la sanción de
la Ley de Identidad de Género en 2012 y la demora en la reglamen-
tación del artículo 11º que legalizó e incorporó al Plan Médico Obli-
gatorio los tratamientos e intervenciones de modificación corporal.
Es posible afirmar que los discursos y acciones desarrolladas por un
sector del activismo y la comunidad trans frente al campo médico
adquirieron las características de la biociudadanía ya que reivindi-
caron el ejercicio de la autonomía de decisión en el marco de los
tratamientos y demandaron una atención de calidad por parte de
los equipos de salud.
Teniendo en cuenta estos desarrollos, a continuación abordo las
principales demandas y críticas elaboradas por parte de activistas
y usuarixs trans del sistema de salud hacia los equipos de salud y
las políticas de salud en dos momentos. Primero, analizo el período
transcurrido entre la aprobación de la Ley de Identidad de Género
en 2012 y la reglamentación del artículo 11° de dicha normativa
en 2015. Luego, indago en los reclamos articulados entre octubre
y diciembre de 2019 cuando se llevaron a cabo distintas asambleas
autoconvocadas para reclamar por el faltante de hormonas para los
tratamientos de construcción corporal trans. Afirmo que este con-
junto de demandas y críticas son el terreno en el cual se asientan
acciones individuales y redes comunitarias que asumen las caracte-
rísticas de la biociudadanía.

128
Momento 1: las demandas por la reglamentación del artículo
11º de la Ley de Identidad de Género

Tras la aprobación de la Ley 26.743 de Identidad de Género, orga-


nizaciones trans y usuarixs trans del sistema de salud se acercaron a
distintos servicios de salud para solicitar atención. Se encontraron con
profesionales que en algunos casos no estaban al tanto de la sanción de
la Ley ni de las características de los tratamientos de construcción cor-
poral requeridos. A través de notas periodísticas, exposiciones y char-
las públicas, distintxs activistas trans denunciaron que en algunos casos
los equipos de salud seguían exigiendo un diagnóstico como requisito
obligatorio para el ingreso a los tratamientos. En ese marco, sus expec-
tativas eran que la reglamentación del artículo 11° de la Ley avanzara
en los siguientes aspectos: disponer financiamiento público para cubrir
medicación, prótesis y recursos hospitalarios, capacitar profesionales a
escala federal y asegurar la cobertura de los tratamientos e interven-
ciones por parte de obras sociales y empresas de medicina prepaga sin
imponer requisitos patologizantes. También reclamaban que la regla-
mentación incluyera la elaboración de un protocolo o guía de atención
que unificara los criterios de acceso y tratamiento frente a la hetero-
geneidad de perspectivas. Así lo expresaba un activista entrevistado al
comparar la atención en dos hospitales en la provincia de Córdoba:

Bueno, la atención es totalmente distinta en los dos hospitales. En el hos-


pital “A” no hemos tenido ningún tipo de inconveniente. Nos dan los
medicamentos gratuitos, nos hacen los controles, el tratamiento psico-
lógico es optativo como establece la Ley. Uno puede ir a tratamiento
psicológico no por cuestiones trans, sino por lo que sea. En cambio, en
el Hospital “B” el consultorio de sexología es sumamente patologizante
(…) Al no haber protocolo, se bajan protocolos de otros países: lo que
dice la (Ex) Asociación (Internacional Harry Benjamin) o el DSM y noso-
tros nos quedamos sin ese derecho y estiran las terapias (con) el psicoa-
nálisis (Diego, entrevista personal, enero de 2015).

129
La vigencia de la Ley de Identidad de Género no impedía a los
equipos de salud elaborar sus propios criterios clínicos de atención
y solicitar la evaluación psicoterapéutica de modo obligatorio para
ingresar a los tratamientos hormonales y quirúrgicos en caso de
considerarlo necesario. Por ello, lxs activistas aspiraban a que la re-
glamentación estableciera explícitamente la no obligatoriedad de la
evaluación psicológica para acceder a los tratamientos.
Otra dimensión de los reclamos públicos dirigidos al campo mé-
dico hacía hincapié en recibir una atención de calidad y conocer ple-
namente los riesgos y contraindicaciones de los tratamientos. En lo
que refiere a los tratamientos hormonales, sus expectativas giraban
en torno a las siguientes dimensiones:

Que exista un protocolo previo al tratamiento hormonal (…) y que los


propios servicios de salud puedan empezar a hacer un seguimiento so-
bre qué pasa… por ejemplo, un pibe trans diabético, que es que el pán-
creas no le re conoce el azúcar ¿no? En el caso de tomar testosterona, el
páncreas trabaja dos o tres veces más forzado ¿qué pasa con eso? Una
pregunta que me hago ¿Se entiende? No sabemos qué pasa con todo
eso. Entonces, el protocolo lo que va a poder es escribir y dejar en cla-
ro determinadas cosas. Alguien que tiene problemas cardíacos no puede
hacer un tratamiento hormonal, como de la misma forma un médico
no va a intervenir a alguien que tenga las defensas más bajas (…) bue-
no, todo bien, vos podés querer tener más barba, ahora, previo a eso, la
responsabilidad del médico es informarte que vas a tener un problema
de salud. (…) Muchos médicos no saben ni siquiera todos esos cambios
(Germán, entrevista personal, septiembre 2014).

Frente a estas experiencias y debates, una parte del activismo trans


se focalizó en promover la importancia del autocuidado y la participa-
ción activa en las decisiones respecto a los tratamientos. La concien-
tización sobre los riesgos y posibles consecuencias no deseadas de los

130
tratamientos e intervenciones se desarrolló a través de redes sociales y
en notas en medios gráficos impresos y digitales. Un activista trans di-
fundió en una nota periodística la existencia de un grupo de hombres
trans usuarios del sistema de salud creado en la red social Facebook tras
la sanción de la Ley de Identidad de Género. Refirió que allí compartían
dudas y información sobre los tratamientos. Para conocer las caracterís-
ticas de los procedimientos no recurrían a profesionales sino a sus pro-
pios pares, valiéndose de las posibilidades ofrecidas por las redes sociales:

Si sos un trans masculino/hombre trans, podés buscar información en


un grupo de Facebook que se llama “data de cirugías/ tratamientos
hormonales para chicos trans de Argentina”. Esta página fue creada por
Francisco, un compañero de la provincia de Santiago del Estero que vio
y entendió la necesidad de estar más informados sobre lo que está pasan-
do con las operaciones y los tratamientos, la necesidad de colectivizar la
información, de compartir fotos de cómo van evolucionando las opera-
ciones, qué equipo médico las realizó, experiencias y opiniones de cosas
a tener en cuenta previo a realizarse una cirugía o un tratamiento, ya
que muchas personas han expresado disconformidad luego de la inter-
vención médica porque no les dijeron qué técnica iban a utilizar, cuán-
to tiempo iba a llevarles el posoperatorio, cómo iba a quedar el pecho,
cuánto tiempo tarda en desinflamar, cómo iba a ser reconstruida la tetil-
la, en qué lugar, entre otra infinidad de cosas que debemos y tenemos el
derecho de saber (PRIETO, 2014).

Siguiendo a Rose y Novas (2005), el ejercicio de la ciudadanía bio-


lógica suele implicar la adquisición de conocimiento experto y su difu-
sión entre pares. Las herramientas virtuales, tales como listas de correo,
comunidades virtuales, redes sociales y sitios web favorecen el contacto
entre individuos con las mismas inquietudes, deseos y necesidades cor-
porales. Este proceso es caracterizado por los autores como “biociuda-
danía digital”. Como afirman Petracci y Pecheny (2007):

131
Los ámbitos de sociabilidad de las redes constituyen también espacios
privilegiados para obtener información y multiplicar sus conocimientos
tanto sobre los aspectos médicos de la enfermedad como sobre los dere-
chos de los pacientes. De esta manera, la participación en redes posicio-
na a los pacientes de otra manera ante el médico y ante las dificultades
de la vida diaria (PETRACCI y PECHENY, 2007, p. 212).

Estas acciones tenían como destinatarixs a lxs usuarixs trans de


los servicios de salud. Otros materiales y actividades se dirigían a los
equipos de salud. En 2013, la organización Capicúa elaboró una Guía
denominada “Aportes para pensar la salud de las personas trans. Ac-
tualizando el paradigma de derechos humanos en salud” (Capicúa Di-
versidad, 2014)”. Uno de los integrantes de la organización describió
los objetivos de estas iniciativas del siguiente modo:

Hay que generar sensibilización en todo el servicio, en todo el equipo


médico, desde la persona que te atiende en la mesa de entrada, el de
seguridad, (…) servicio de maestranza, enfermeros, médicos, todo el
mundo. Porque vos caíste internada porque tuviste un accidente ¿Dónde
caés? En la guardia. Y cuando estás en la guardia ¿Cuál es el relato de
muchas compañeras y compañeros trans? Que sos el chiste, que vienen
a mirarte y a ver qué hay ahí y pasás a ser el circo (Germán, entrevista
personal, septiembre de 2014).

En 2014, la organización Hombres Trans Argentinos de la provin-


cia de Córdoba elaboró la campaña “Normatrón” con el objetivo de
concientizar a los equipos de salud sobre la perspectiva despatologi-
zante de la Ley de Identidad de Género. En palabras de un entrevis-
tado, la campaña tenía como fin realizar un “trabajo cultural” para
promover que revisaran sus prácticas y concepciones en torno a las
necesidades sanitarias de la población trans. La actividad se desar-
rollaba en los pasillos de los hospitales y consistía en la entrega de

132
un envase similar al de un medicamento, denominado “Normatrón”
(MENDIETA, 2014). La distribución de este medicamento apócrifo,
que contenía un prospecto similar al de un medicamento y un confite
mentolado simulando un comprimido, era una oportunidad para el
diálogo entre profesionales y activistas trans.
En el período transcurrido entre la aprobación de la Ley de Identi-
dad de Género y la reglamentación de su artículo 11º, organizaciones
y usuarixs trans del sistema de salud tomaron en sus manos la imple-
mentación por carriles informales y autogestionados: contactaron a
los equipos de salud para que comenzaran a formarse en los trata-
mientos, realizaron campañas de concientización al interior de las ins-
tituciones de salud sobre el contenido de la Ley y la perspectiva despa-
tologizante, denunciaron la vigencia de mecanismos patologizantes
en las instituciones de salud y pusieron a circular información entre
sus pares. Esta reconfiguración del rol de lxs usuarixs trans del siste-
ma de salud frente al campo médico puede ser inscrita en un mapa
más amplio de transformaciones en el orden biopolítico contempo-
ráneo en el que se asiste a mutaciones en los discursos de verdad so-
bre el carácter biológico de los seres humanos, las formas de producir
conocimiento, la regulación e intervención sobre esa materialidad y
modos específicos de formación de subjetividades (ROSE, 2012).
El 20 de mayo de 2015, el artículo 11º de la Ley de Identidad de
Género fue reglamentado por medio del Decreto 903/2015 del Poder
Ejecutivo Nacional. El mismo incluyó un listado orientativo de pres-
taciones y tratamientos a ser cubiertos por parte del sistema público
de salud, obras sociales y empresas de medicina prepaga. Determinó
la puesta en marcha de un programa de capacitación, actualización
y sensibilización de profesionales de la salud del sector público, así
como de campañas de información a fin de promover la salud integral
de la población trans en los tres subsistemas de salud. En junio de
ese mismo año, el Programa Nacional de Salud Sexual y Procreación
Responsable del Ministerio de Salud elaboró el documento “Atención

133
de la salud integral de personas trans. Guía para los equipos de salud”
(MINISTERIO DE SALUD DE LA NACIÓN, 2015), cuyo contenido
contempló algunas de las demandas anteriormente expuestas. En
2020, el contenido de la guía fue actualizado y se incorporaron as-
pectos vinculados a la atención de la salud de travestis y personas no
binarias (MINISTERIO DE SALUD DE LA NACIÓN, 2020).

Momento 2: La Asamblea trans trava no binarie por la salud


integral

En octubre de 2019, cuatro años después de la reglamentación del


artículo 11° de la Ley de Identidad de Género, se dio a conocer la
noticia de un inminente desabastecimiento de medicación hormonal
(principalmente testosterona) en el sistema público de salud causado
por el incumplimiento de los compromisos del laboratorio que había
ganado la licitación. Esta noticia se dio en un contexto de retracción
del gasto público y con posterioridad a la unificación de los Ministe-
rios de Salud y Desarrollo social, medida que implicó la devaluación
del Ministerio de salud a Secretaría. El Laboratorio que había ganado
la licitación para proveer de “Androlone” (Testosterona 1% en gel) a
los efectores del sistema público de salud incumplía sus compromisos
asumidos frente a la reducción de sus márgenes de ganancia debido a
la devaluación de la moneda nacional. La noticia, que circuló rápida-
mente en las redes sociales, activó la alarma entre lxs usuarixs trans
del sistema de salud, quienes se autoconvocaron de forma inmediata
frente al Ministerio de Salud y Desarrollo Social ubicado en el centro
administrativo de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires.
A partir de la realización de la primera asamblea autoconvocada
el 18 de octubre de 2019, la “Asamblea Trans Trava No Binarie por
la salud integral” se reunió sucesivas veces bajo la consigna “Nues-
tras Hormonas No Se Recortan” con el objetivo demandar la in-
mediata restitución de la provisión de hormonas. El alto nivel de

134
convocatoria que tuvieron las asambleas desarrolladas desde octu-
bre de 2019 permite deducir que luego de siete años de la sanción
de la Ley 26.743 de Identidad de Género muchas personas se encon-
traban accediendo a los efectores de salud del sistema público para
realizar sus procesos de construcción corporal en el marco de lo
dispuesto por la Ley. Sin embargo, el sostenimiento de dichos trata-
mientos peligraba frente a un ejercicio precario y deficitario de las
políticas públicas en materia de salud.
La organización suscitada a partir de los faltantes de hormonas
permitió articular discursos acerca de la forma de entender el carác-
ter integral de la salud en el marco de la “atención transespecífica”
(RECURSERO TRANS*, s.f.-a), la importancia del acceso a la medica-
ción hormonal para las personas trans que la solicitaban y la respon-
sabilidad del Estado en ese proceso. Esos discursos se plasmaron en
notas periodísticas y entrevistas publicadas en diarios de circulación
nacional, medios digitales alternativos y redes sociales, en especial la
red social Facebook a través de la página Resistencia Transs cuya des-
cripción reza “Visibilización de eventos de la comunidad TTNB por
la Asamblea TTNB por la Salud Integral - Argentina” (RESISTEN-
CIA TRANSS, s.f.). Los ejes discursivos articulados en dichos soportes
pueden ser desdoblados analíticamente en dos dimensiones: a) la con-
ceptualización del carácter integral de la salud en el marco de la aten-
ción transespecífica y b) el contexto político-ideológico más amplio
en el que se desplegaron acciones estatales que impedían el acceso a
la salud integral por parte de la población trans.
En lo que refiere al primero de los ejes, en los distintos posicio-
namientos discursivos plasmados en notas periodísticas y posteos en
redes sociales se expresaron las diferentes dimensiones que compo-
nían la integralidad de la salud en el marco de la atención transespe-
cífica. En principio se destacó un componente subjetivo vinculado al
ejercicio de la autonomía corporal y la posibilidad de tener una ex-
periencia positiva del propio cuerpo en base a las transformaciones

135
posibilitadas por las tecnologías biomédicas. Así lo expresaba el soció-
logo, futbolista y activista deportivo Moyi Schwartzer al relatar sus
experiencias en el marco de su tratamiento hormonal:

Nunca me sentí tan contento con mi raquítica musculatura, con la pe-


lusa que crece cortita y suave pero a paso constante por la ladera de mi
cara que cada vez está más cuadrada. Lo que más me gusta de todo es
eso, que se me puso más cuadrada la cara, siempre quise tener cara cua-
drada (…) Siento que siempre estuve ahí, que la tinta por fin se ve grue-
sa, que ahora es más nítida mi sombra. Esto puedo decir de lo que signi-
fica hoy para mí acceder a las hormonas. Son pocas de hora de vuelo en
este viaje, pero ya tan fundamentales (RESISTENCIA TRANSS, 2019b).

En otra entrevista, el mismo activista sostenía:

Estoy en un encuentro conmigo mismo que me fortalece en un mon-


tón de circunstancias y si me dijeran ahora que no puedo seguir ponién-
dome el gel a la mañana, me derrumbaría emocionalmente. No puedo
imaginarlo en este momento. Prefiero pensar que eso no va a suceder
porque creo en la capacidad de organizarnos como comunidad y encon-
trar soluciones (ZANI, 2019).

El conflicto originado por la inminente falta de medicación hor-


monal habilitó la puesta en discurso de la celebración de los cuer-
pos trans y el modo en que los tratamientos hormonales permitían
el reencuentro con el propio cuerpo desde una óptica de disfrute.
Frente a la posibilidad de que esos procesos se vieran interrumpidos
abruptamente, la organización colectiva fue vislumbrada como el ca-
mino para sostener los tratamientos hormonales. A su vez, se destacó
el carácter múltiple y plural de los modos de experimentar el trata-
miento hormonal entre las personas que lo transitaban, marcando
distancia de la mirada homogeneizadora y totalizante de los discursos

136
patologizantes. Así lo expresaba Juan Duncan, integrante del Movi-
miento de Juventudes Trans, en una entrevista periodística:

Hay gente para la cual hormonarse significa estabilidad psicológica


y emocional, para otros es fundamental por temas de salud (como los
que se realizaron la histerectomía), y también hay gente que lo ve como
una cuestión de autonomía corporal, me hormono porque así lo decido.
También, mucha gente, por A o por B, en algún momento decide inter-
rumpir el tratamiento, lo cual es personal. Cada experiencia en hormo-
nas es única (ZANI, 2019).

También se destacaba la dimensión somática y material de la aten-


ción transespecífica. En este sentido, el activista trans masculino Ese
Montenegro, afirmaba:

No es lo mismo interrumpir un tratamiento a una persona que tiene


hecha una histerectomía que a una persona que no. No es lo mismo la
afectación a una persona que cuenta con una contención afectiva y eco-
nómica que a una que no (FILO.NEWS, 2019).

El conflicto no solo visibilizó las disímiles vivencias subjetivas de


los tratamientos hormonales. También articuló críticas a las políticas
de salud vigentes en ese momento que dificultaban u obstaculizaban
el acceso a la salud de la población trans. La falta de medicación hor-
monal en los efectores en los que lxs usuarixs trans y no binaries se
atendían regularmente lxs llevó a buscar atención en efectores que
aún disponían un remanente. Ello promovió un inusitado aumento
en la demanda de atención en algunos centros de salud. Así lo descri-
bía Montenegro en otra nota periodística:

hay compañeras travestis y trans a las que ya les están cambiando la me-
dicación y nos enteramos que la semana pasada a una de ellas le dieron

137
un diurético en vez de hormonas. El Estado se ausentó, hace meses
dijo que esto iba a pasar, y no salió a licitar de nuevo. En el dispensario
en donde me atiendo yo, que es en La Matanza, me dijeron que desde
hace dos meses les está entrando una demanda de un montón de gente
de capital. Esto genera que vamos a explotar los recursos de otra pro-
vincia que debería estar garantizada por el Estado Nacional por Ley
(ZANI, 2019).

En lo que refiere al segundo de los ejes discursivos, se identificaron


como causas del conflicto el avance del conservadurismo religioso y
las medidas de ajuste económico articuladas con lógicas estructurales
transfóbicas y cisexistas:

El faltante de hormonas y bloqueadores responde a una política del


actual gobierno, quien apuesta directa e indirectamente a nuestro ex-
terminio. Esta política cuenta con el aval de amplios sectores de la so-
ciedad, quienes nos quieren imponer permanentemente su régimen
de género. Es evidente que el avance de las iglesias evangélicas en la
región, un gobierno neoliberal que considera la salud pública como un
gasto (y por demás prescindible), el conservadurismo católico y colo-
nial que se mantiene potente en Latinoamérica y los medios de comu-
nicación que continúan criminalizando a travestis y trans*, nos siguen
empujando a la precariedad y los márgenes. Sin embargo, hay dentro
de nuestros espacios discursos más sutiles que también le hacen el jue-
go a estos frentes conservadores a través de otras herramientas como
la patologización o la crítica impune sobre la autonomía corporal del
colectivo trans*/trava, poniendo el foco en nuestros cuerpos y no en el
ajuste neoliberal (MONTENEGRO, 2019).

Este diagnóstico permitió establecer articulaciones con las luchas de


otros colectivos que venían denunciando la obstaculización de su ac-
ceso a la salud, como el colectivo de personas viviendo con VIH. En el

138
marco de la Asamblea también se reivindicó la sanción de una Ley que
legalizara la interrupción voluntaria del embarazo como parte de fun-
damental del derecho a la salud. En este sentido, Montenegro sostenía:

Espero que con el cambio de Gobierno volvamos a tener un Ministerio


de Salud a nivel nacional que repare todo lo que venimos denunciando
con nuestras luchas. Hormonas, retrovirales, aborto legal, seguro y gra-
tuito. Todo. La salud es una de las formas en la que la Justicia Social se
materializa. Sin salud pública, gratuita y de calidad no hay justicia social
(FILO.NEWS, 2019).

En paralelo a la exposición de las demandas y reivindicaciones de


la Asamblea en medios de comunicación y redes sociales, se formula-
ron estrategias colectivas y autogestionadas para hacer frente al fal-
tante de hormonas. El Recursero Trans* y el uso de la app Habitapp
fueron dos iniciativas utilizadas para informar acerca de la disponibili-
dad de remanente de medicación hormonal en los distintos efectores
del sistema de salud.
El Recursero Trans* era un sitio de internet creado en una pla-
taforma de software libre para recabar y poner a disposición “infor-
mación útil para personas trans*, agrupadas en varias categorías re-
copiladas y organizadas mediante contribuciones de la comunidad”
(RECURSERO TRANS*, 2020a). En la misma página se reconstruía
la historia del sitio del siguiente modo:

El sitio nace en 2018 y crece junto con la plataforma en la que lo de-


sarrollamos, Sutty. Desde entonces, hicimos varios encuentros y hacka-
tonas3 tanto para pensar la participación, relevamiento, carga de datos

3.  “La palabra `hackathon´ está compuesta por las palabras `marathon´ y `hack´: maratón,
en tanto es un evento en el cual programadores y otros actores en el campo del desarrollo
web como diseñadores gráficos y diseñadores de interfase se reúnen en un mismo espacio
físico y en un corto lapso de tiempo -de 24 a 72 horas, por lo general en un fin de semana- de

139
como su organización, campos a crear, formas de disponibilizar los da-
tos, diseño y tecnologías de accesibilidad, etc.
En el 2019 nos encontramos con que no se estaba cumpliendo con la
entrega de medicación. Junto con la Asamblea Autoconvocada ante el
Faltante de Hormonas nos organizamos para priorizar métodos de rele-
vamiento colectivo ante la emergencia, juntando en una hackatona a ac-
tivistas trans*, transhacktivistas, hacktivistas y desarrolladorxs queer, cis,
trans, travestis, nb, héteros, tortas y bi, en un diálogo al menos atípico
entre estas comunidades. El proyecto Habitapp nos facilitó su tecnología
y su infraestructura para realizar los mapeos, que compartimos en el
sitio (RECURSERO TRANS*, 2020b).

Si bien se creó con anterioridad al conflicto de octubre de 2019,


con las movilizaciones y asambleas autoconvocadas frente al faltante
de hormonas la herramienta revitalizó su función. Resulta de inte-
rés señalar la dinámica colaborativa propia de esta estrategia que se
proponía utilizar las herramientas digitales para poner en circulación
información y recursos necesarios para el cumplimiento de los dere-
chos. La información sistematizada se nutría de las experiencias de
quienes compartían la información. Para lxs activistas que sostenían
el espacio virtual del Recursero Trans* esta herramienta no era “un
mero repositorio de información” sino un espacio de vínculo, acom-
pañamiento y cuidado mutuo y colectivo:

un medio para generar estrategias de resistencia mutua, colectivizar


experiencias, relevar datos significativos para la comunidad, construir y
fortalecer redes de asistencia entre pares, acompañar proyectos mutuos

forma ininterrumpida para desarrollar aplicaciones de software (en adelante, apps) de forma
colaborativa. Hack o hacking, es utilizado en el sentido amplio para referirse a un modo de
aproximación a los objetos, tanto del mundo digital como analógico, marcada por el ánimo
de abrirlos, ver cómo funcionan, repararlos y/o resignificarlos para darles nuevas funciona-
lidades. En términos generales se suele utilizar para referirse a una forma de programación
lúdica y exploratoria” (BORTZ, 2013: p. 134).

140
de resistencia y organizarnos para exigir el cumplimiento de nuestros
derechos (RECURSERO TRANS*, 2020b).

La experiencia del Recursero Trans* fue analizada por An Millet


(2020) al reflexionar acerca de la accesibilidad al sistema de salud por
parte de la población trans y su articulación con relaciones de poder
y desigualdad. Señaló la centralidad que ocupa el “boca en boca” en
el acceso inicial en el sistema de salud por parte de dicha población:

lo que hace que un dispositivo de salud sea accesible (en términos de


acceso inicial) es que hayan tratado bien a otra persona trans* antes que
a mí. Tan bien que esa persona trans* halló que valía la pena dedicar
tiempo a analizar esa experiencia, valorarla y compartirla (MILLET,
2020, p. 80).

Para Millet (2020), la existencia de plataformas diseñadas por in-


tegrantes de la propia comunidad para compartir sus experiencias de
atención en las instituciones de salud constituye un eslabón definitorio
en las posibilidades de acceder y permanecer en el sistema de salud.
HabitApp, por su parte, era “una aplicación de celular que en forma
gratuita permite la realización y georreferenciamientos de relevamien-
tos, encuestas y denuncias en forma colectiva sobre cualquier tema
que se requiera” (AGENCIA DE NOTICIAS REDACCIÓN, 2018). Fue
creada por organizaciones sociales4 que, desde la perspectiva del mapeo
colectivo y valiéndose el software libre, promovía la realización de

relevamientos, denuncias y encuestas en forma colectiva de diversas pro-


blemáticas sociales, económicas y ambientales, como inmuebles ocio-
sos, desalojos, personas en situación de calle, privatizaciones del espacio

4.  El Movimiento Popular La Dignidad (MPLD), el Observatorio del Derecho a la Ciudad,


Destapiadas y La Inventoría (AGENCIA DE NOTICIAS REDACCIÓN, 2018).

141
público, cortes de servicios públicos esenciales, entre otras, y georrefe-
renciarlas en un mapa (AGENCIA DE NOTICIAS REDACCIÓN, 2018).

En las asambleas y en los espacios virtuales de encuentro de acti-


vistas y usuarixs trans del sistema de salud se incentivó su descarga en
los teléfonos celulares para recabar información acerca de la disponi-
bilidad de medicación hormonal en los distintos efectores de salud en
los que las personas participantes de las asambleas se atendían (RE-
SISTENCIA TRANSS, 2019a). El objetivo era evitar la interrupción
de los tratamientos hormonales. A través de la app, cualquier persona
podía acceder a información de primera mano sobre de la disponibi-
lidad de medicación hormonal en los distintos centros de salud y diri-
girse a aquellos efectores en los que la misma sí estuviera disponible.
El 10 diciembre de 2019 asumió una nueva gestión de gobierno na-
cional liderada por la coalición Frente de Todos. Una de las primeras
medidas de la gestión fue restituir el Ministerio de Salud. Otras de las
medidas fue la creación del Ministerio de las Mujeres, Géneros y Di-
versidad. Con la pandemia del Covid-19 y las medidas de Aislamien-
to Social Preventivo y Obligatorio (ASPO) iniciadas en Argentina en
marzo de 2020, las iniciativas activistas se orientaron a garantizar el
sostenimiento de la vida cotidiana de las personas trans (RECURSERO
TRANS*, s.f.-b), teniendo en cuenta los modos en los que la pandemia
global impactó críticamente en la economía, los vínculos y el acceso
a derechos básicos por parte de dicha población (BOY, RODRÍGUEZ,
BASUALDO, FARJI NEER, NEWTON Y PEDRANI 2020a; 2020b).
Las estrategias e iniciativas organizativas creadas en octubre y di-
ciembre de 2019 permanecieron vigentes articulando redes de cuida-
do comunitarias puestas al servicio de las necesidades activadas en
el marco de la pandemia del Covid-19, monitoreando de manera co-
lectiva y autogestiva el cumplimiento de la Ley de Identidad de Gé-
nero en los tres subsistemas de salud, demandando activamente la
sanción e implementación de normativas que garanticen el acceso a

142
los derechos de la población trans, en especial el derecho al trabajo, y
denunciando la violencia estructural ejercida sobre la población trans
(ASAMBLEA TRANS, TRAVESTI Y NO BINARIE POR LA SALUD
INTEGRAL, 2021).

Conclusiones

En este trabajo abordé las iniciativas de activistas y usuarixs trans del


sistema de salud argentino para garantizar el cumplimiento de la Ley
26.743 de Identidad de Género en el ámbito sanitario. Analicé las de-
mandas de la población trans a la luz de los conceptos de biociudadanía
y ciudadanía biológica desde la sanción de la Ley 26.743 de Identidad de
Género en 2012. El corpus se compuso de entrevistas en profundidad
a referentes de organizaciones trans de Argentina, notas periodísticas
publicadas en medios gráficos impresos y digitales, posteos en redes
sociales y en sitios web elaborados por activistas y usuarixs trans del
sistema de salud para socializar recursos e información con el fin de
garantizar el cumplimiento de sus derechos. El análisis de dicho cor-
pus permitió abordar los discursos y acciones de activistas y usuarixs
trans en el marco de un proceso global de transformación del rol de lxs
pacientes en usuarixs activxs del sistema de salud, crítica a la autoridad
médica y expansión del uso de redes sociales y TICs. Se analizaron las
principales demandas elaboradas por parte del activismo trans y usuari-
xs trans hacia las políticas de salud en dos momentos: el período trans-
currido entre la aprobación de la Ley de Identidad de Género en 2012 y
la reglamentación de su artículo 11° en 2015 y los reclamos articulados
entre octubre y diciembre de 2019 cuando se organizaron asambleas
autoconvocadas en reclamo por el faltante de hormonas para los trata-
mientos de construcción corporal trans.
En diciembre de 2020 y junio de 2021 se sancionaron dos normati-
vas que ampliaron los derechos en materia de salud sexual y no repro-
ductiva y los derechos sociales para la población trans: la Ley 27.610

143
de Acceso a la interrupción voluntaria del embarazo y La Ley 27.636
de Promoción del acceso al empleo formal para personas travestis,
transexuales y transgénero “Diana Sacayán - Lohana Berkins”. La
continuidad y profundización de las iniciativas, redes y lazos aborda-
dos en este trabajo seguramente constituirán instancias estratégicas
para garantizar el cumplimiento y efectivización de los nuevos dere-
chos conquistados.

REFERENCIA
AGENCIA DE NOTICIAS REDACCIÓN. 18 de octubre de 2018. HabitApp: la apli-
cación para relevar y denunciar problemáticas sociales. Disponible en <https://www.
anred.org/2018/10/18/habitapp-la-aplicacion-para-relevar-y-denunciar-problema-
ticas-sociales> Acceso el 24 de agosto de 2021.
ANDRÉU ABELA, Jaime. Documentos de trabajo S2001/03. Sevilla: Centro de Estu-
dios Andaluces, 1998/2003.
ASAMBLEA TRANS, TRAVESTI Y NO BINARIE POR LA SALUD INTEGRAL.
Julio - agosto 2021. Asamblea Trans, Travesti y No Binarie por la Salud Integral. Trans-
gender Professional Association for Transgender Health Conference “Converging Crises in
Transgender Activism, Health, and Rights in 2021”, Virtual.
AUYERO, Javier. Patients of the State. The politics of waiting in Argentina. Durham:
Duke University Press, 2012.
BERKINS, Lohana y FERNÁNDEZ, Josefina. La gesta del nombre propio: Informe sobre
la situación de la comunidad travesti en la Argentina. Buenos Aires: Ed. Madres de Plaza
de Mayo, 2005.
BERKINS, Lohana. Cumbia, copeteo y lágrimas. Informe nacional sobre la situación de las
travestis, transexuales y transgéneros. Buenos Aires: ALITT, 2007.
BORTZ, Gabriela Mijal. El hackatón como metodología de producción de bienes
informacionales: Limitaciones y desafíos en la producción de aplicaciones de soft-
ware para la resolución de problemas sociales y ciudadanos. Revista Hipertextos, vol.
I, n. 1, Buenos Aires, julio-diciembre, 2013.
BOY, Martín; RODRÍGUEZ, María Florencia; BASUALDO, Solange; FARJI NEER,
Anahí: NEWTON Camila y PEDRANI Alejandra. Vivir y (trans)itar la cotidianidad
en contexto de COVID-19. Un informe sobre la situación de la población travesti y
trans en el noroeste del Conurbano Bonaerense. En: GOREN, Nora y FERRÓN,

144
Guillermo R. (Comps.). Desigualdades en el marco de la pandemia. Reflexiones y desa-
fíos. José C. Paz: EDUNPAZ, 2020a, 83-94.
BOY, Martín; RODRÍGUEZ, María Florencia; BASUALDO, Solange; FARJI NEER,
Anahí: NEWTON Camila y PEDRANI Alejandra. Población travesti y trans: la po-
tencia de las redes colectivas frente al COVID-19 en tiempos del ASPO. En: GO-
REN, Nora y FERRÓN, Guillermo R. (Comps.). Desigualdades en el marco de la pan-
demia. Universidad y territorio. José C. Paz: EDUNPAZ, 2020b, 57-63.
CABRAL, Mauro. Post scriptum. En: BERKINS, Lohana (Ed.). Cumbia, copeteo y lá-
grimas. Informe nacional sobre la situación de las travestis, transexuales y transgéneros.
Buenos Aires: ALITT, 2007, 140-146.
CAPICÚA DIVERSIDAD. Aportes para pensar la salud de las personas trans. Actualizan-
do el paradigma de derechos humanos en salud. Buenos Aires, 2014.
CLARKE, Adele; SHIM, Janet; MAMO, Laura; FOSKET, Jennifer & FISHMAN, Jen-
nifer. Biomedicalization: Technoscientific Transformations of Health, Illness and
U.S Biomedicine. American Sociological Review, vol. 68, 2003, 161-194.
COLL-PLANAS, Gerard. La policía del género. En MISSÉ Miquel y COLL- PLA-
NAS, Gerard (Eds.). El género desordenado. Críticas en torno a la patologización de la
transexualidad. Barcelona: Egales, 2010, 55-67
CONRAD, Peter. The Medicalization of Society: On the Transformation of Human Con-
ditions into Treatable Disorders. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2007.
FARJI NEER, Anahí. Biociudadanías trans: demandas e iniciativas frente al sistema
de salud argentino (2012-2015). Athenea. Revista de pensamiento e investigación social,
vol. 19, n. 1, Barcelona, 2019.
FARJI NEER, Anahí. Sentidos en disputa sobre los cuerpos trans: los discursos médicos,
judiciales, activistas y parlamentarios en Argentina (1966-2015). Ciudad Autónoma de
Buenos Aires: Teseo, 2020.
FARJI NEER, Anahí. Travestismo, transexualidad y transgeneridad en los discursos del
estado Argentino: Desde los edictos policiales hasta la Ley de Identidad de Género. Ciudad
Autónoma de Buenos Aires: Teseo, 2017.
MONTENEGRO, Ese. 25 de octubre de 2019. Faltantes de hormonas para trata-
mientos de hormonización: abandono de estado. Página/12. Disponible en <ht-
tps://www.pagin a12.com.ar/227236-faltantes-de-hormonas-para-tratamientos-de-
-hormonizacion-aba> Acceso el 24 de agosto de 2021.
NOVAS, Carlos. The Political Economy of Hope: Patients Organizations, Science
and Biovalue. BioSocieties, vol. 1, 2006, 289–305.

145
PETRACCI, Mónica y PECHENY, Mario. Argentina: Derechos Humanos y Sexualidad.
Buenos Aires: Cedes, 2007.
PRIETO, Alan Otto. 24 de agosto de 2014. Cirugías en construcción. Página/12.
Disponible en <https://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/soy/1-3584-
2014-08-22.html> Acceso el 24 de agosto de 2021.
RABINOW, Paul. Essays on the anthropology of reason. New Jersey: Princeton Univer-
sity Press, 1996.
RECURSERO TRANS*. 22 de septiembre de 2020a. ¿Qué es el Recursero Trans*? Dis-
ponible en <https://recursero.info/qu%C3%A9-es-el-recursero-trans/> Acceso el
24 de agosto de 2021.
RECURSERO TRANS*. 22 de septiembre de 2020b. Historia. Disponible en <ht-
tps://recursero.info/historia/> Acceso el 24 de agosto de 2021.
RECURSERO TRANS*. s.f.-a. Atención Transespecífica. Disponible en <https://re-
cursero.info/atención-transespecífica> Acceso el 24 de agosto de 2021.
RECURSERO TRANS*. s.f.-b. COVID-19. Disponible en <https://recursero.info/
covid/> Acceso el 24 de agosto de 2021
RESISTENCIA TRANSS [resistencia.transs]. 26 de octubre de 2019a. Les compas
siguen trabajando duro para que todes tengamos garantizado el derecho a la salud
integral. [Imagen adjunta] [Publicación de estado]. Facebook. Disponible en <ht-
tps://www.facebook.com/resistencia.transs/posts/105757760860201> Acceso el
24 de agosto de 2021.
RESISTENCIA TRANSS [resistencia.transs]. 4 de noviembre de 2019b. “¿QUÉ SIG-
NIFICA PARA MÍ ACCEDER A LAS HORMONAS?” [Imagen adjunta] [Publica-
ción de estado]. Facebook. Disponible en <https://www.facebook.com/resisten-
cia.transs/posts/116869646415679> Acceso el 24 de agosto de 2021.
RESISTENCIA TRANSS. s.f. Inicio [Página de Facebook]. Disponible en <https://
www.facebook.com/resistencia.transs> Acceso el 24 de agosto de 2021.
ROSE, Nikolas y NOVAS, Carlos. Biological citizenship. En: ONG, Aihwa & COL-
LIER, Stephen (Eds.). Global assemblages: Technology, politics and ethics as anthropologi-
cal problems, Malden: Blakwell Publishing, 2005, 439-463.
ROSE, Nikolas. Políticas de la vida: biomedicina, poder y subjetividad en el siglo XXI. La
plata: UNIPE, 2012.
ZANI, Alejandra. 21 de octubre de 2019. Denuncian faltantes de hormonas: “Esta-
mos ante una emergencia de vida”. Agencia Presentes. Disponible en <https://agen-
ciapresentes.org/2019/10/21/denuncian-faltantes-de-hormonas-estamos-ante-una-
-emergencia-de-vida/> Acceso el 24 de agosto de 2021.

146
NORMATIVA
Ley 26.743. Identidad de Género. 9 de mayo de 2012. Argentina. Disponible en
<http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/195000-199999/197860/
norm a.htm> Acceso el 9 de noviembre de 2021.
Ley 27.610. Acceso a la interrupción voluntaria del embarazo. 30 de diciembre de
2020. Argentina. Disponible en <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/
anexos/345000-349999/346231/norma.htm> Acceso el 9 de noviembre de 2021.
Ley 27.636. Promoción del acceso al empleo formal para personas travestis, tran-
sexuales y transgénero “Diana Sacayán - Lohana Berkins”. 24 de junio de 2021.
Argentina. Disponible en <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/ane-
xos/350000-354999/351815/norma.htm> Acceso el 9 de noviembre de 2021.
Decreto Nº 903/2015. Ley Nº 26.743. Apruébase Reglamentación. 20 de mayo de
2015. Argentina. Disponible en <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/
anexos/245000-249999/247367/norma.htm> Acceso el 9 de noviembre de 2021.

147
PARTE II

SEXUALIDADES, DISSIDÊNCIAS
E SUBJETIVIDADES
ANTONIO ADALID PRADEL, ENTRE LA
SODOMÍA Y LA HOMOSEXUALIDAD
Miguel Alonso Hernández Victoria 1

En nuestras historias, existen personajes “bisagras”, personajes que


sirven de puente entre épocas o procesos históricos, en ese sentido Anto-
nio Adalid Pradel es un personaje donde se puede observar el proceso de
secualización de una sociedade. Durante la primera mitad del siglo XIX,
consignar historias sobre sodomía o pederastia en México no es algo
común, las fuentes proceden principalmente del sistema penitenciario
o del ámbito judicial, ¿Cuáles eran los delitos asociados a las prácticas
homosexuales en aquel momento? estupro (relaciones sexuales con me-
nores), incontinencia (las prácticas sexuales en la calle y lugares públi-
cos los cuales eran muy frecuentes) prostitución sin patente (es decir sin
permiso) y desde luego la sodomía (OCHOA, LOPÉZ, 2019). Tan solo,
de enero a diciembre de 1866, se reportaron 14 aprehensiones por sodo-
mía2, esta era la situación que fue reportada en la cárcel de Belén:

“…el ecsecrable (sic) crimen de la sodomía al que son tan propensos


hombres desmoralizados, bien alimentados, abandonados en el día a la
más completa ociosidad, y aglomerados durante doce horas en locales

1.  Licenciado en Historia por la Escuela Nacional de Antropología e Historia; Director de Archivos
y Memorias Diversas y miembro fundador de AMAI; archivosymemoriasdiversas@gmail.com
2.  ANÓNIMO “Estadística en General. Estado que manifiesta el número de personas remiti-
das a las nueve comisarías de policía y a otros puntos de prisión por parte del resguardo, con
expresión de sus delitos y otras causas, desde el 1º de enero al 31 de diciembre de 1866”, Boletín
de la Sociedad de Geografía y Estadística, México, Imprenta del Gobierno, 1867 p. 265.

151
[pequeños y estrechos] donde están rosándose los cuerpos por necesi-
dad… es demasiado común entre los presos, algunos de los cuales ya
están marcados por su propensión a cometerlo por lo que el Alcaide ya
los tienen separados en el dormitorio de la policía, ya que no se les pue-
de probar ningún hecho para castigarlos…” (FUENTES, 2002, p. 80-81).

La familia Adalid, fue una importante propietaria de haciendas,


que le conectaron con el poder político durante el siglo XIX. Los Ada-
lid, trabajarían activamente en el establecimiento del II Imperio Me-
xicano desde la Junta de Notables3, en el caso del coronel José María –
quién sería recompensado por el emperador Maximiliano al otorgarle
la Imperial y Distinguida Orden de Guadalupe el 21 de enero de 1867,
seguramente por su defensa de la ciudad de Toluca ante las fuerzas de
Riva Palacios y Muñoz4- , o de su esposa Concepción quién dentro de
la Corte, fue Dama de Palacio además de Dama de la Orden Imperial
de San Carlos (PEZA,1867). De los siete hijos que procreó don José
Adalid en ambos matrimonios, solo tuvo un varón Don Joaquín Ada-
lid Sánchez de Tagle, padre de Antonio Adalid Pradel.
Don Joaquín casó en la parroquia de Santo Domingo de Mixcoac
el 1 de febrero 18635 con María del Refugio Pradel Herrera (1839-
1919) –hija de Juan de Dios Pradel Fernández y María del Refugio
Herrera Acevedo-. El II Imperio mexicano honró a la esposa del joven

3.  ANÓNIMO, Advenimiento de SS.MM. II Maximiliano y Carlota al trono de México: do-


cumentos relativos y narración del viaje de nuestros soberanos de Miramar á Veracruz y del
recibimiento que se les hizo en este último puerto y en las ciudades de Cordoba, Orizava,
Puebla y México, Impr. De J.M. Andrade Y P. Escalante, 1864 p 23.
4.  ANÓNIMO, Asuntos del día, El Diario del Hogar, sábado 9 de enero de 1886, prime-
ra plana.
5.  Boda celebrada el 2° de febrero de 1863 en la parroquia de Mixcoac tuvo que se ser vali-
dada por un Juicio de Jurisdicción voluntaria en el Juzgado Quinto de lo Civil según consta
en Archivo General de la Nación (AGN)/ Instituciones Gubernamentales: época moderna y
contemporánea/ Órganos Autónomos y Archivos Judiciales/ Tribunal Superior de Justicia
del Distrito Federal/ Siglo XX/ Archivo Histórico/ 1917/ Caja 1399/Título: TSJDF Folio:
246999 / Fecha(s): 6/julio/1917 / Vol 7 Fojas

152
Joaquín; Refugio Pradel de Adalid, como Dama de Palacio (CONDE
DEL VALLE, 1866, p.64). En aquel entonces la joven familia vivía en
la calle de Calvario No. 7.6 Cuando el poeta y cronista mexicano Sal-
vador Novo7 escribe sus primeras memorias, lo hace con la mente
fresca y los recuerdos vívidos, no así cuando vuelva a redactar su ya
conocida “Estatua de Sal” donde el cronista pudiera confundir la his-
toria familiar de su profesor Salvador Novo nos explica a su manera:

“Don José Adalid lo tomó bajo su protección y lo tuvo de huésped [José


Zorrilla], ya en una hacienda suya en los Llanos de Apan, ya en la hacien-
da de Goycoachea que es hoy San Ángel Inn. Allí escribió y escribió muy
a gusto […] no me pareció necesario ni prudente decir, es que con toda
probabilidad este don José Adalid protector de Zorrilla sea el mismo a
quien alcance a conocer por 1920. He hecho cuentas y creo que si era
el mismo. Porque suponiendo que en 1855 tuviera veinte años, tendría
ochenta y cinco en 1920, y aspecto de tenerlos lucía el robusto anciano,
padre de mi amigo el profesor Antonio Adalid, de su hermano Pepe y de
sus hermanas la Toto, la Tarra y la Pita, todos ellos, según me lo contó el
propio Antonio, bautizados por los emperadores de los cuales don José
fue caballerango mayor” (NOVO, 1998, p. 174).

El matrimonio Adalid Pradel, procrearon a: María del Refugio (1864-


1951), María Teresa (1867–1910), Joaquín (1868-1870), José Antonio

6.  Almanaque de la Corte, Imprenta del Gabinete Imperial, México, 1866, p 64


7.  Salvador Novo López (Ciudad de México, 1904-1974) fue hijo del español emigrado
Andrés Novo Blanco y de la zacatecana Amelia López Espino, quien formaba parte de una
numerosa familia de perfil matriarcal instalada en la Ciudad de México. Entre sus obras más
importantes se encuentran: Nueva grandeza mexicana, Nuevo amor, La estatua de sal, En defensa
de lo usado, Return ticket, Los diálogos y la serie de crónicas periodísticas reunidas –en la actua-
lidad– bajo la denominación general de La vida en México en el periodo presidencial de… que
abarca desde el sexenio de Lázaro Cárdenas hasta la primera mitad del sexenio de Luis Eche-
verría. Se desempeñó como poeta, dramaturgo, ensayista, crítico cultural, cronista, traduc-
tor, autobiógrafo, director teatral, publicista y funcionario público del área cultural. (http://
www.elem.mx/autor/datos/768 )

153
(1873-1939), María de la Concepción (1877-), Guadalupe y José Ignacio.
A pesar de que las dos hijas mayores, nacieron durante el Segundo Impe-
rio, ninguna de ellas gozó con el apadrinamiento imperial, del que Novo
comentara. El coronel Adalid, quién vivió el esplendor de la corte y las
glorias del gobierno, defendió el Imperio con determinación en su ocaso
(PIQUERO, 1867).
Tras el triunfo de la república restaurada: los Adalid Valdivieso, los
Adalid Sánchez de Tagle y los Torres Adalid, sobrevivieron por su im-
portancia económica, de tal forma que durante el Porfiriato su peso
político y económico los mantuvo dentro de la élite social finisecu-
lar (RAMÍREZ RONCAÑO, 2000, p. 28). Sin embargo hubo algunas
cosas que nunca cambiaron, aún con la separación de la Iglesia y el
Estado y la secularización de la sociedad, el adulterio, el estupro, la
bestialidad y la sodomía eran causas que formaban expedientes para
la Corte Suprema de Justicia (ANÓNIMO, 1867, p.3).
Antonio, segundo hijo del matrimonio nació en la ciudad de Méxi-
co el 23 de enero de 18738 y se le bautizó el 1º de febrero del mismo
año en la Iglesia de la Santa Veracruz –cuatro años después de que
Karl María Kertbeny empezara a utilizar la palabra “homosexual”
para referirse al amor entre varones9-, el viviría un proceso entre
descubrirse sodomita y vivirse homosexual. Un año antes de su na-
cimiento se publicó el Código Penal que, recogiendo la herencia de
la legislación francesa durante la intervención, no penalizaba la ho-
mosexualidad, ni los actos homosexuales, pero si criminalizaba: “los
delitos contra el orden de las familias, la moral pública o las buenas
costumbres” (ISLAS, 2010).

8.  Archivo, Javier Sánchiz Ruiz. Fe de Bautismo, febrero, 1873, folio 64


9.  Es importante señalar que los términos y categorías “homosexual” y “heterosexual” na-
cieron al mismo tiempo con el fin de definir la conducta no hegemónica, sin embargo hay
que anotar que décadas antes Karl Heinrich Ulrich entre 1863 y 1879 impulsa las categorías
“uranistas” y “dionitas” ZUBIAUR, Ibon (Ed), Pioneros de lo Homosexual Barcelona, Ed.
Anthropos, 2007,p 94

154
Es probable que durante su infancia Antonio haya sido educado
por preceptores particulares y finalmente enviado a Inglaterra a estu-
diar, mientras que su hermano José aprendía a administrar las hacien-
das y los bienes de la familia (NOVO, 1998, p.109). Según Kickza, los
padres intervenían directamente en la educación de sus hijos varones
sobre todo en el paso de la infancia a la juventud donde tenían una
relación más estrecha y les preparaban llevándoles consigo en los via-
jes sociales y en los negocios (KICZA, 2005, p. 147-149). La educación
en México era deficiente aún para las clases altas, como dice Alfonso
Valenzuela Aguilera:

“El régimen porfirista privilegiaba la educación en universidades euro-


peas, las habilidades administrativas y la pertenencia a la élite social y
económica del país, con lo cual el sistema excluía a las clases medias y
sus aspiraciones por escalar peldaños más altos en la política o la posi-
ción social” (VALENUZA, 1876 , p.1).

Algunos representantes de la élite porfiriana como: los Martínez


del Río, los Romero de Terreros, el propio Ignacio de La Torre y
Mier y los hermanos María José Antonio Pablo Amor y María José
Alejandro Amor ingresaron al colegio jesuita Stonyhurst en Lancashi-
re, Inglaterra, después de haber estudiado en la Escuela Santa María
en París, otros escogerían Sta. María de Oscott.10 Para los jóvenes de
las élites los ambientes homosociales no les eran extraños, ya que en
la sociedad mexicana estaba prohibidos los encuentros privados con
miembros del sexo opuesto para evitar que las mujeres perdieran su
reputación (KI CZA, 2005, p.147-149). Los internados ingleses eran en
aquel entonces una opción bastante aceptable a pesar de escándalos
como el del Harrow School décadas atrás:

10.  Información del Historiador Víctor Manuel Macías-González en conversación del 9 de


abril del 2012.

155
“Todos los niños de buen ver tenían nombre de mujer y eran recono-
cidos bien como prostitutas públicas o bien como pertenecientes a al-
gún alumno mayor. Se utilizaba habitualmente la palabra “perra” para
señalar a los chicos que se entregaban a un amante. En los dormitorios y
en los estudios, las conversaciones eran de una obscenidad increíble. Por
todas partes se veían actos de onanismo, masturbaciones mutuas, chicos
desnudos jugueteando en la cama. Pero en estas actividades no habría
ni refinamiento, ni sentimiento, ni pasión; tan sólo una lujuria animal”
(RUSSEL, 1997, s/p).

A finales del siglo XIX imperó un movimiento dentro de ciertos


círculos académicos ingleses que veían con nostalgia la era dorada
de los griegos, es probable que el joven Adalid tuviese accesos a do-
cumentos como: A problem in Greek Ethics y A problem in Modern Ethics
(1896) de John Addington Symonds. Tanto hombres como mujeres
homosexuales recurrieron a la literatura griega y en el caso de los va-
rones a la antigua tradición de la pederastia renacida con las obras de
Winckelmann, así como la libertad que conllevaban los viajes por las
costas mediterráneas con sus jóvenes griegos e italianos, además del
entorno helenístico en las Universidades de Oxford y de Cambridge
que arrojaban luz favorable sobre el deseo homoerótico y ofrecían
una alternativa a la represión del matrimonio y de la vida doméstica
propio de la época victoriana (ALDRICH, 2008, p.170).
Durante esta época seguramente tanto Ignacio de la Torre y
Mier como Antonio Adalid Pradel, conocerían el lenguaje de la clan-
destinidad homosocial inglesa denominado como “polari”11. Para
aquellos días los británicos habían conocido distintos escándalos de

11. El polari era un argot inglesa, particularmente londinense, mezcla del romaní, yidish,
lingua franca, jerga rimada cokney y parlas codificadas mediante la inversión de las sílabas
o letras a las que aún hay que añadir las germanias que los vagabundos, ladrones y rufia-
nes vienen usando desde hace mucho tiempo. ACKROYD, Peter; Londres Gay; Barcelona
EDHASA, 2018, p 278-279.

156
personas travestidas, así como los deleites de las clases bajas y militares
(ACKROYX, 20219, p.274-281). Durante la estancia de Antonio Adalid,
Nacho y otros “aristócratas de Sodoma” en Inglaterra, se volvió de uso
común el que caballeros acaudalados se disfrazaran de menesterosos
para entrar a las zonas donde la pobreza les proveyera de compañía
sexual, práctica que en México continuarían en el futuro ya fuera con
la servidumbre o con jóvenes bajo su protección, es probable que estu-
viesen de acuerdo con las palabras John Addington Symonds:

“Nunca he podido comprender, porque ha de impedirse que la gente que se


ama pueda mantener una sana relación de camaradería por el mero hecho de
pertenecer a dos estratos sociales diferentes” (ACHROYD, 2018, p.282-283).

En aquel entonces las sociedades homófilas clandestinas británicas


contaban ya con lugares de ligue como: parques, calles, letrinas, resto-
ranes o burdeles, donde se podía facilitar los encuentros sexuales en-
tre mendigos, menesterosos, militares, telegrafistas, este submundo
provocó los debates en 1885 en la Cámara de los Comunes, sobre una
Ley de Enmienda al Código Penal donde Henry Labourchere propu-
siera la introducción de una modificación para conseguir que:

“a todo varón que, en público o en privado, cometa, o participe en la


comisión, o bien procure o intente que otra persona de sexo masculino,
realice cualquier acto de grave indecencia con otro hombre, se le impu-
tará un delito y será condenado como considere oportuno el tribunal,
que podrá enviarle a prisión por un plazo que no exceda de dos años,
con o sin trabajos forzados” (ACKROYD, 2018, p.286)

El tiempo que Antonio, pasó en Inglaterra sirvió para que profun-


dizara sus conocimientos de la lengua inglesa, algo que le abriría en
el futuro varias oportunidades sociales y sexuales como apunta el cro-
nista Salvador Novo:

157
Regresó a México en plena, alegre juventud –y en pleno, opulento porfi-
rismo. Era la época en que los exquisitos aristócratas celebraban fiestas,
aunque privadas, sin dudas trascendidas a la murmuración y el escánda-
lo de una pacata ciudad pequeña: la época, en fin, del famoso baile de los
41. (NOVO, 1998, p. 109)

Cabe señalar que al final del Porfiriato, y con el fin de dar una apa-
riencia más civilizada, la dictadura se rodeó de jóvenes gallardos de
aspecto caucásico y atractivo (MACÍAS-GONZÁLEZ, 2003, p.241).
La versatilidad de Antonio, le llevaba a concursar tanto en el cricket
12
como en salto de largo o la carrera de a píe en la efervescencia del
espíritu olímpico del Barón de Coubertin formándose la “Mexican As-
sociation of Games” (ANÓNIMO, 1892, p.3). A finales del siglo XIX An-
tonio Adalid era ya parte del clan aristocrático de Ignacio de la Torre
y Mier como lo mencionan El Siglo Diez y Nueve y El Tiempo:

Rectificación- Hemos recibido la siguiente carta:


“Mexican Association of games”.- Señor Director de El Tiempo.- Pre-
sente.-Muy señor mío:
He leído un párrafo publicado con esta fecha en su apreciable diario titu-
lado “Beneficio a los pobres”, en el cual se hace saber que en el próximo
domingo 2 de octubre vamos a dar una fiesta de cricket a beneficio del
comedor de caridad; el partido que forma el Sr. D. Ignacio de la Torre
contra los del Mexican A of Games. Como esta fiesta a beneficio de los
pobres no es el domingo 2 sino el día 9 del próximo mes, mucho le agra-
deceré a vd lo mande rectificar […] Los señores que van a tomar parte
del juego son los siguientes: Sres. Ignacio Tomás de la Torre, Sres. I.W

12.  En México, el cricket se practica, al menos, desde 1827. Durante el Porfiriato, esta disci-
plina cobró fuerza gracias a la llegada de un gran número de ciudadanos británicos. En 1894
se fundó The Reforma Cricket Club y, en 1896, el Mexico City Cricket Club, primer equipo
creado por mexicanos y que actualmente ostenta el título de campeón de la liga mexicana.
https://www.excelsior.com.mx/opinion/london-eye/el-espiritu-del-cricket-crece-en-mexi-
co/1309970

158
Landa, Carlos Landa, José Rubín, Sres. Amor, Sres. Partida, Sr. D. Redo y
Sr. Joaquín Palomo contra Antonio Adalid, Ernesto e Ismael Iriarte Dru-
sina, Pedro, Alfonso y Gabriel Somallera, Luis Lascuraín, Salvador del
Puerto, José Fuentes y Fernando Pontones […]. (YRIARTE Y DRUSINA,
1982, p.3)

El 12 de julio 1893, en la capilla del Arzobispado, contrajo matri-


monio el Sr. Lic. Don Agustín María Lazo y del Pino, con la Srita. Re-
fugio Adalid y Pradel, este enlace será importante para el futuro de jo-
ven Antonio Adalid. A fines del siglo XIX y principios del XX se dio el
fenómeno de “las sociedades de baile” lo mismo en Londres, Madrid,
San Petersburgo, Nueva York estas sociedades de baile estaban forma-
das por jóvenes de clases altas, medias, bajas e incluso mixtas donde se
comisionan el buscar un local e imprimir algunas entradas, de hecho
tanto la novela de Eduardo Castrejón como la prensa consigna que la
invitación para el baile, no fue cerrada, circuló en cantinas –que desde
muy temprana existencia eran lugares de homosociabilidad:

“Había algunos individuos que fueron víctimas de un verdadero chasco


pues que, en las primeras horas de la noche del domingo se repartieron
en varias cantinas unas tarjetas firmadas por una Sra. Vinchi en las que
se invitaba a un baile en la casa citada esa misma noche”. (EL POPU-
LAR, 1901, s/p).

Es probable que la aristocracia porfiriana trajera del extranjero es-


tas festividades donde los hombres pudieran conocer a otros con los
mismos intereses y afiches (FUENTES, 1999, p.15). A la par de estos
bailes se daban otros bailes travestis, más de la alta sociedad, como el
de septiembre de 1894 protagonizado por el Gobernador del Distrito
Federal Pedro Rincón Gallardo, en su mansión de la Calle de la Cade-
na y al que asistió el presidente de la República, el Gral. Díaz sin que
hubiera escándalo de por medio:

159
“Verdadero acontecimiento mundano que puso desde hace muchos días
en movimiento a la flor y nada de nuestra sociedad…aquella mezcla he-
terogénea de lo lujoso y lo ridículo, de lo gracioso y lo sorprendente
[…] Luis Escalante… según la opinión general, era quien lucía el más
original travesti que consistía en un atavío en que la mitad era de “indio
pollero” y la otra mitad de correctísima etiqueta; Santiago Morfi, de bai-
larín; Agustín Torres de “bonne d’enfants”, F. Algara de “demoiselle de
compagnie” (ANÓNIMO, 1984, s/p).

Poco a poco se fue perdiendo la inocencia y/o tolerancia de la so-


ciedad mexicana, aunque pareciera en un primer momento, no haber
impactado, el juicio a Oscar Wilde que recorrió al mundo entero y
pudiera haber significado un golpe para las cofradías, grupos de bai-
le u “ordenes” de homosexuales en todo el mundo, incluido nues-
tro país, como lo demuestra el periódico El Nacional del viernes 3 de
mayo de 1895:

“Proceso escandaloso EN LONDRES


El Marqués de Queensburry y Oscar Wilde – Declaraciones graves –
una carta
El tribunal del jurado de la capital de Inglaterra acaba de dar veredic-
to en un escandaloso proceso seguido por el Marqués de Queensburry
contra el extravagante Oscar Wilde, tan conocido por sus proyectos de
reforma de las ideas estéticas, como por sus viciosas costumbres.
Los hechos que han motivado el proceso son los siguientes.
El Marqués de Queensburry tiene un hijo, unido á Wilde por tales y tan
íntimos lazos de amistad, que no podía romperlos, á pesar de cuantos
esfuerzos había realizado.
Harto ya de aquellas intimidades, el Marqués se decidió a publicar una car-
ta acusando a Oscar Wilde de cometer actos de repugnante inmoralidad
Oscar Wilde contestó llevando á los Tribunales al Marqués, bajo la acu-
sación de injuria y calumnia.

160
En la vista del proceso instruido con tal motivo contra el Marqués, éste
ha presentado documentos y testigos cuyas revelaciones, del género más
escandaloso que puede imaginarse, han probado que no era infundada
la acusación lanzada por el aristócrata contra el corruptor de su hijo…”
(ANÓNIMO, 1895, p.2)

Con Oscar Wilde, se da forma a la categoría del homosexual mo-


derno y un modelo para seguir y no seguir para sus contemporáneos.
En la segunda mitad de la década de los 90’s, el nombre de Antonio
Adalid se leía en los periódicos, mezclándose con las élites políticas y
económicas del país (ANÓNIMO, 1897, p. 8) e incluso aquellas anglo-
sajonas que gustaban de jugar el cricket (ANÓNIMO, 1896, p.8). Tras
el fallecimiento de la esposa, de Don Ignacio Torres Adalid, se dio la
oportunidad a Refugio Pradel, esposa de su primo Joaquín Adalid,
de hacerse cargo de los quehaceres de la casa y a su muerte dejó una
fortuna considerable al matrimonio y a sus hijas valuado en veintiséis
mil pesos.13 Refugio dio un calor de hogar necesario para su primo
Ignacio, amén de darnos luces sobre las mentalidades y tabúes dentro
de esta familia y de cierta aceptación a la vida “no convencional” de
su hijo Antonio:

“La tía Toti, como paso a llamarse Refugio Pradel se encargaba del
manejo de su casa, juntaba a sus propios nietos y a los adoptivos en
la hacienda de Ometusco o en la casa de la Alameda. Se trataba de las
hijas de su hija Refugio Adalid de Lazo: Antonia, Lupita y la Rorra;
la hija de Juan Rivas Mercado: María Remedios Rivas, previsiblemen-
te apodada La Beba; Alicia y Antonieta, y uno que otro recogido que
Don Antonio solía llevar a su propia casa o a la de sus parientes. (…)
La tía Toti no sabía cómo responder sus preguntas sobre temas tan

13.  En dicho testamento no están incluidos Antonio o José Adalid Pradel, del primero pode-
mos suponer la razón de la exclusión, pero no del segundo. RAMÍREZ, RONCAÑO Mario,
Ignacio Torres Adalid y la Hacienda Pulquera, México, Ed. Plaza y Valdés, 2000, pp 268-273

161
delicados como el adulterio y la calumnia. Para no ahondar en esos
asuntos, insistía en la épica del sacrificio que había hecho de ellas unas
santas” (BRADU,1991, p.27-28).

El tiempo pasaba para el joven Adalid y sus amigos, varios de el-


los conocidos como lagartijos, una versión tropicalizada del dandy
europeo14, que conservaban quienes seguramente escandalizaban en
ciertos puntos de la ciudad como, el Zócalo, la calle de Plateros, la
Alameda (ANÓNIMO, 1901, p.1), los encuentros furtivos en el Hotel
Iturbide, las escapadas a la Alberca Pane y las fiestas:

Era la época en que los exquisitos aristócratas celebraban fiestas; aunque


privadas, sin duda trascendidas a la murmuración y el escándalo de una
pacata ciudad pequeña: la época, en fin, del famoso bailes de los 41.
Antonio era el alma de aquellas fiestas: Toña la Mamonera, como
recordaba que le apodaban par su afición a una caricia que debe de
haber sido entonces poco ordinaria, o que Antonio practicaría con
mayor europea destreza o predilección. Estimulado por la segunda
taza de café, haciendo buches de humo del cigarrillo que no sabía
fumar, pero sostenía entre sus manos regordetas de cardenal, evoca-
ba con risa sus excursiones colectivas y tempraneras a Xochimilco,
en tranvía, todos con sacos azules y sombreros de jipijapa. (NOVO,
1999, p. 109)

14.  “El dandy es un hombre solitario y triste, desclasado, que ha optado por el lado del Mal,
pero que –hedonista- tiene miedo del dolor y de la miseria […] la elegancia, la fantasía, la
sorpresa son su escudo protector. El dandy funda su escuela de valores en lo que los demás
juzgan inútil. Su camino es el mal, la negación. El dandy no es un hombre con ideales, sus
ideales están en sí mismo […] El dandy más puro es aquel que menos hace […] El dandy qui-
siera estar ajeno al amor, porque se ama a si mismo […] el homoerotismo no es en el dandy
un mero escándalo, o un solo aspecto de su rebeldía, sino algo más […] El dandy es andrógi-
no. Su seducción no tiene barreras de sexo. Su brillo es el brillo ambiguo de los danzarines de
una secta del Uttar Pradesh”, en DE VILLENA, Luis Antonio; Corsario de guante amarillo;
Barcelona, Tousquets Editores, 1983, pp 22-24.

162
El Baile de los 41, está rodeado de rumores, mitos, verdades a me-
dias, para ser el hecho fundacional de la homosexualidad en México.
Como hemos señalado las sociedades de baile se daban en las distintas
capitales de los países occidentales y por lo menos existían dos “excu-
sas” para realizar este tipo de encuentros: los pastoreos –simulación
de matrimonios, que venían de una tradición italiana- y el nacimiento
del niño –donde el feliz “matrimonio” festejaba con un nacimiento y
bautismo simulado, su estabilidad marita (FUENTES, 1999, p. 12-15).
No sabemos si la rifa del “Pepito” o del joven militar, es una ade-
cuación nacional dentro de este tipo de fiestas o también viene de
una “tradición” de iniciación tanto de nuevos elementos del circuito
homosocial y/o de prostitución masculina. Hasta ahora el único par-
ticipante reconocido en documentos oficiales, es el joven Pouppard,
mientras que: Ignacio de la Torre y Mier, Antonio Adalid Pradel o
Alejandro Redo de La Vega han sido reconocidos por conjeturas, ru-
mores de la época o confirmaciones, sin que exista un listado oficial
de una redada ilegal. Cierto es que las residencias de Ignacio de la
Torre y Antonio Adalid estaban muy cerca de la famosa 4ta. Calle de
La Paz, donde se dieron los hechos y la redada famosa.
La prostitución masculina o los ritos de iniciación estaba aso-
ciados a estos bailes, no solo en México, al mismo tiempo que se
sucedían este tipo de sociedades y bailes, en otras latitudes tenían
similares “tradiciones dancísticas” como las reportadas en el impe-
rio ruso, donde existían fiestas de “hombres que odiaban a las mu-
jeres” con una tradición travestí para solventar la falta de damas,
como bailes de “pederastas por dinero”15, cabe decir que el modus
operandi era muy similar al descrito en el famoso Baile de los 41,

15.  Así como en México tenemos ciertas etiquetas culturales como el de “joto” o “mari-
cón” para los hombres afeminados que se relacionan afectiva y/o sexualmente con otros
hombres y el de mayates y chichifos para enunciar a prostitutos masculinos y chacales para
hombres masculinos que tienen sexo con otros hombres, en aquellos días existían los “hom-
bres que odiaban a las mujeres” [zhenonenavistnik] termino que invocaba la camaradería

163
lo cual nos habla de sociedades homofilas globalizadas, donde se
podía dar el ascenso social:

En la denuncia contra las tetki de Petersburgo de fines de 1880, inicios


de 1890, su mojigato autor describe (con el detalle propio de un testigo
ocular) un “baile de disfraces” que se convirtió en “una orgía espantosa
y vergonzante” en el hogar de una tetka rica (…) “No son para nada tí-
midos frente a los sirvientes en estas fiestas” notaba el observador, “por-
que los eligen entre personas que son como ellos [iz svoikh]”. El mismo
documento registra que un residente no tan rico de la capital operaba
como “tratante” [svodnia] de “muchachos, soldados y sirvientes domés-
ticos para las tetki de buena posición. Este hombre emprendedor usaba
su departamento como una discreta bolsa de trabajo para jóvenes que
buscaban acceder al mundo de las tetki de clase alta. Los jóvenes le pa-
gaban al tratante un arancel por sus servicios (HEALEY, 2019 p. 98-99).

Seguro el modus vivendi se adecua a estas tropicales tierras, de ahí


que Salvador Novo y tal vez el propio Antonio Adalid, quienes en sus
conversaciones habían platicado de estas fiestas sui géneris donde se
mezcla la crónica y la historia, la verdad y la ficción literaria o tal vez
la invención del mito:

“Había alcahuetes – ¿la propia Madre Meza?- que procuraban mucha-


chos para la diversión de los aristócratas. Una noche de fiesta, Toña ba-
jaba la gran escalera con suntuoso atavió de bailarina. La concurrencia
aplaudió su gran entrada; pero al pie de la escalera, el reproche mudo
de dos ojos lo congeló, lo detuvo. Parecía apostrofarlo: “¡Viejo ridícu-
lo!” Toña volvió a subir, fue a quitarse el disfraz, bajo a buscar al her-
moso muchacho que lo había increpado en silencio. En ese momento

masculina rechazando el afeminamiento, en contraposición del “pederasta por dinero” [te-


tka] HEALEY, Dan; Homosexualidad y Revolución; Argentina, Ed A final Abierto; 2019;
pp 97-99.

164
se ponía al remate al mejor postor la posesión de aquel jovencito. An-
tonio lo compró.
Se llamaba también Antonio. No llegaba a los veinte años…” (NOVO,
1999, p.109).

Lo único cierto es que el lazo entre Antonio Adalid y Antonio “El


Chico” fue duradero. Antonio Dodero Perecaula –conocido como
Antonio “El Chico” (Barcelona, España 1897-México, Distrito Federal
8 de agosto de 1957), era hijo del abogado y corredor de comercio
(LA VANGUARDIA, 1887, p.15), Ramón María Dodero y Montob-
bio y de María de La Mercedes Antonia Ramona Perecaula y Martí,
originarios de Barcelona16 Buscando nuevas oportunidades, la familia
Dodero, decidió migrar a principios del siglo XX. Es casi seguro que
la construcción del mito de “Antonio Adalid”, por parte de Novo, se
base en: “el baile de los 41 u otro baile similar”, en el trauma y expe-
riencia de la homofobia dentro del seno familiar a manera de justifica-
ción y a la vez guin de vida:

“Sea en el famoso baile de los 41, sea en otro, estalló el escándalo. Don
José Adalid desheredó y desconoció a este hijo degenerado, mancha de
la familia que huyó desconcertado, aturdido, invalido, llego a San Fran-
cisco, California, con unos cuantos dólares en el bolsillo y sin saber qué
hacer. Entró en una iglesia, se acercó al confesionario, drenóse de todas
sus culpas. “Dios te ha enviado aquí –le dijo el sacerdote- Necesitamos
un profesor de castellano en el St. Mary’s College. Te ofrezco un sueldo,
un cuarto, comida y ropa limpia.” Antonio vio el cielo abierto, empezó
a dar clases, desde su buen inglés de Inglaterra, y a rumiar sus recuer-
dos en la soledad de su pequeño apartamiento. Nada sabía, nada quería
saber de México. Le parecía haber muerto, o hallarse en medio de una
pesadilla.” (NOVO, 1999, p. 109)

16.  https://gw.geneanet.org/sanchiz?lang=en&p=ramon+maria&n=dodero+montobbio

165
Lo cierto, es que la verdad histórica se impone a la crónica, y des-
dice la sugerencia de Salvador Novo, no fue el baile de los 41, ni otro
similar, sino un escándalo mayúsculo lo que colmó la paciencia de la
familia Adalid Pradel. El 11 de junio de 1906, Antonio se vio impli-
cado en los delitos de robo, abuso de confianza y fraude a la Casa de
Roberto Boker y Cía.17 Antonio Adalid vivía en carne propia el siste-
ma penitenciario porfiriano, es muy probable que haya pasado de la
prisión preventiva en la famosa Cárcel de Belén al recién inaugurado
Palacio Negro de Lecumberri, donde existía por lo menos en papel
una política de rehabilitar al delincuente (FIGUEROA VIRGEGUA,
2017, p.108-111), en ese sentido no solo fue su buen comportamien-
to y su trabajo dentro de la cárcel como sastre logró que le dieran la
libertad anticipada, el 27 de septiembre de 1907 y el permiso para ir
a radicar a San Francisco California18, pues contó con la intercesión y
aval del abogado Agustín M Lazo:

Lic. Agustín M. Lazo


CORDOBANES N 2. TELEFONO 1605
MÉXICO, D.F.
C. PRESIDENTE DEL TRIBUNAL SUPERIOR

17.  Archivo General de la Nación / Instituciones Gubernamentales: época moderna y con-


temporánea / Órganos Autónomos y Archivos Judiciales / Tribunal Superior de Justicia del
Distrito Federal / Siglo XX / Archivo Histórico / 1906 / Caja 0562 / Título: TSJDF Folio:
099657 /Fecha(s): 11/junio/1906
18.  En 1776, una expedición mandada por Juan Bautista de Anza eligió el lugar donde José
Joaquín Moraga pronto fundaría el Presidio Real de San Francisco. A finales de ese año, el
misionero franciscano Francisco Palou fundó allí la Misión de San Francisco de Asís (cono-
cida en la actualidad como “Misión Dolores”).​La tribu yelamu de los ohlone, que poseía
algunos poblados en la zona, se unió a los españoles para vivir y trabajar en la misión y sus
miembros fueron convertidos al catolicismo. Tras la independencia, este territorio pasó de la
jurisdicción novohispana a la mexicana, perdiéndose durante la guerra de 1847 a favor de los
Estados Unidos de Norteamérica. Hacia 1849 fue descubierto oro, lo que provocó una gran
migración conocida como “La Fiebre del Oro” que condujo a un crecimiento y urbanización
del Estado de California, que se vio interrumpido tras el terremoto de 18 de abril de 1906.
https://es.wikipedia.org/wiki/San_Francisco_(California)#Barrios

166
ANTONIO ADALID, en Libertad Preparatoria, ante Ud.- respetuosamente
expongo: que tengo necesidad para salir para San Francisco California, Es-
tados Unidos del Norte, en donde se me proporciona trabajo más remune-
rativo que me permita acaso asegurar un porvenir, y en esa virtud,
A ese H. Tribunal respetuosamente suplico, se sirva el permiso de con-
cederme el permiso indispensable para trasladar mi residencia al men-
cionado punto, en el concepto de que, mi fiador, el Señor Lic. Agustín
M. Lazo, - está conforme con dicho cambio y en comprobación suscribe
conmigo el presente ocurso. En lo que recibiré señalada gracia.
México, octubre de mil novecientos siete.
[Rubricas de Antonio Adalid Pradel y Lic. Agustín M. Lazo]
Recibido el día 11 de octubre de 1907 a las diez de las mañanas (TSJDF,
1907).19

Después del baile de los 41, la prensa trató de ser más discreta con
este tipo de escándalos aunque no siempre pudo taparlos del todo y
algunas pequeñas notas escaparon de la censura, alimentando el mor-
bo o dando ciertos guiños sobre un devenir silenciado:

Berlín, Enero 18.- Una agencia de Noticias, cuyo director goza de rela-
ciones confidenciales con el canciller Von Bülow [Bernhard von Bülow],
asegura que se ha descubierto cierto número de escándalos militares
sensacionales, del mismo carácter que los que han causado el proceso de
los condes Hopenau [Wilhelm Graf von Hohenau] y Lynar, en Postdam.
Añade la citada Agencia que ahora va a procederse contra dos oficiales
de alta graduación, cuyos nombres serán conocidos muy en breve.
Esta energía de parte de las autoridades, no es más que el resultado de
las órdenes dadas por el Káiser, el primero de Enero, para que se purgue

19.  Archivo General de la Nación / Instituciones Gubernamentales: época moderna y con-


temporánea / Órganos Autónomos y Archivos Judiciales / Tribunal Superior de Justicia del
Distrito Federal / Siglo XX / Archivo Histórico / 1907 / Caja 0588 / Título: TSJDF Folio:
103717 / Fecha(s): 20 / septiembre / 1907

167
el ejercito de todos los elementos que sean moralmente anormales”
(REGAGNON, 1908, p. 6).

De los primeros registros que existen en la prensa mexicana de la pa-


labra homosexual, se publicaría en Guadalajara una nota sobre el caso
Harden-Moltke en el que puso en duda la idea de “la sanidad alemana”
a partir del escándalo surgido de la prensa de Harden, enemigo de la
política del canciller von Büllow y de la camarilla que rodea al Káiser,
acusó de homosexualidad al conde Kuno de Moke, gobernador militar
de Berlín, el príncipe de Eulemborg y otros militares y que, sin salir de
la idea generalizada de aquel entonces de un desorden moral, von Bül-
low hace una reflexión aún válida en nuestra sociedad:

“No se puede acusar, no basta con acusar de viles costumbres unise-


xuales á un hombre: es necesario probar la acusación. No basta con de-
cir: “Fulano es homosexual”; es necesario decir: “Fulano, tal día, á tal
hora, en tal punto, hizo esto ó aquello”. Este es el caso del canciller Bül-
low; y por eso su acusador ha ido á dar, por varios años en la cárcel.
(BLANCO-FOMBONA, 1908, p.1)”20

Es un hecho que ya fuera la familia misma o el despacho del Lic.


Lazo quienes le encontraron el trabajo en el Colegio de St. Mary21,

20.  BLANCO-FOMBONA, R, Frases Hechas, en La Gaceta de Guadalajara, domingo 8 de


marzo de 1908, p 1
21.  El Arzobispo José Alemany, fue enviado a California por el papa Pio IX para llevar “la
Cruz”. El arzobispo abrió las puertas del Saint Mary’s College en 1863. Después de cinco
años de lucha, hizo un difícil viaje a Roma para pedir ayuda a los Lasallistas, cuyo superior
envió a nueve hermanos, en su mayoría irlandeses, en 1868 para viajar desde Nueva York por
mar a San Francisco para administrar la nueva escuela. Pronto, los Hermanos pudieron au-
mentar las inscripciones, estabilizar las finanzas del Colegio y establecer Saint Mary’s como
el instituto de educación superior más grande de California en ese momento. Los primeros
títulos de licenciatura se otorgaron en 1872.
El Colegio se mudó de su campus frío y azotado por el viento en San Francisco a Oakland en
1889, ubicándose en la esquina de la Calle 30 y Brodway y cariñosamente conocida como “La
pila de ladrillos”. El inmueble, fue dañado por un devastador incendio en 1894 y el famoso

168
la anécdota teatral del encuentro con el sacerdote en la Iglesia, sirve
para la narrativa de Salvador Novo, pero no deja de ser ficción tal vez
adornada por ambos Antonios, sin embargo dentro de la ficción hay
también realidad, ambos se reencontraron (MACÍAS GONZÁLEZ,
2015, p.139), en San Francisco y vivieron juntos entre 1907 y 1914,
muy posiblemente en Álamo22, San Francisco:

“…Una tarde llamaron levemente a su puerta. Abrió. “Aquí estoy” –le


dijo Antonio: “Tu comprendes que desde ese momento…no me separa-
ré nunca de él”. Antonio Chico aprendió inglés. Juntos hicieron una vida
sencilla, libre y cómoda en San Francisco.” (NOVO, 1999, p.109)

Es muy probable que la reconstrucción de la Ciudad de San Fran-


cisco, haya jugado un importante papel, para el “exilio” de Antonio
Adalid, algunas instituciones, como el Colegio St. Mary, migró hacia

terremoto de 1906, -en ese lugar se encuentra una placa señalándolo como Monumento His-
tórico de California No. 676. Saint Mary’s decidió mudarse al Valle de Moraga en 1928, don-
de lo aloja un edificio en el distintivo: Renacimiento Californiano español. Estilo de arqui-
tectura misionera que distingue al campus hoy. Tomado de https://www.stmarys-ca.edu/
about-smc/history-heritage
22.  A principios del siglo XIX, el álamo solitario en Alamo Hill marcaba un abrevadero a lo
largo del sendero a caballo desde Mission Dolores hasta Presidio. El alcalde James Van Ness
apartó 12,7 acres en 1856 y lo nombró Alamo Square. Confirmado por la legislatura estatal al
año siguiente como un parque público, Alamo Square y sus residencias victorianas comenza-
ron abrirse camino hacia el distrito Histórico, un camino lleno de baches sin duda.
En 1860, el secretario del condado Thomas Hayes extendió el Market Street Railway hasta
la frontera sur de la plaza y le dio su nombre a la calle. Aun así, este barrio era en sí era
peligrosamente inaccesible, habitada por el “holandés Charlie Duane”, un conocido asesi-
no y tenaz ocupante ilegal. Hasta que las autoridades de la ciudad lo atraparon en 1868.
Hacia 1892, comenzó se a nivelar y ajardinar la colina rocosa, trazar los caminos curvos y
construir escaleras y un muro de mampostería. Los comerciantes, abogados, médicos y pro-
fesores acudieron en masa, contrataron arquitectos y construyeron casas, volviéndose un
barrio de clase media. Entre ellos se encontraba “Postcard Row” de las casas de la reina Ana,
reproducida sin cesar, de Matthew Kavanagh, las famosas: “Painted Ladies”. Desde el Alamo
Square, en 1906 y durante 3 días, los ciudadanos, muchos de ellos con solo la ropa puesta, se
reunieron para ver la destrucción de la ciudad de San Francisco. https://web.archive.org/
web/20100416015051/http://www.sfnpc.org/alamosquarehistory

169
Oakland, situada en la Bahía de San Francisco, su puerto invitaba no
solo al ligue homosexual con los marinos, abrió caminos al trabajo
sexual y también al crimen, un componente sórdido que pudo haber
conocido el joven aristócrata mexicano. Su nombre está registrado en
los periódicos de San Francisco desde el 24 de agosto de 1909 como
profesor de español, siendo compañero de trabajo, William Thile,
asistente en griego23.
En 1908, abrió “The Dash”; fue el primer bar homosexual “noto-
rio” en San Francisco. Es probable, que la ciudad pudo tener bares ho-
mosexuales antes que “The Dash”, pero ninguno era tan visible. Los
camareros estaban travestidos y por $ 1 (una suma respetable, en esos
días) realizaban actos sexuales en las cabinas cercanas. Fue clausura-
do por “La Brigada Anti vicio” casi tan pronto como abrió, luego de
que un juez de alto perfil fuera vinculado al bar, lo que llevó a cerrar
la igualmente infame Costa de Berbería (ANÓNIMO, 2021, p.1). El
censo de los Estados Unidos de 1920 enumera a Adalid como huésped
que vive en St. Mary’s College (MÁCIAS GONZÁLEZ, 2015, p.155),
es algo interesante, tomando en cuenta que Adalid había regresado al
país desde 1914.
Es probable que Antonio Adalid haya podido hacerse de una co-
lección única como lo hizo Alfonso Reyes: Oscar Wilde en 15 lujosos
tomos, Nueva York, 1909; Sunflower edition, limitada a mil ejempla-
res, Alfonso Reyes, consiguió los número 909 a 45.00 pesos en The
Aztec, gracias a ello le permitió a Pedro Henríquez Ureña, conservar
un ejemplar que le había prestado: Earnest. (QUINTANILLA, 2008,
p.272) No sería la primera y última vez que el futuro compañero de
magisterio de Antonio Adalid mostrara su interés sobre Oscar Wilde
o la homosexualidad.
La pasión, el deseo entre ambos Antonios se fue convirtiendo en
amistad, complicidad, en una suerte de pareja estable que encontró la

23. https://newspaperarchive.com/tags/?pf=anthony&pl=adalid/

170
manera de perdurar al sexo, una fórmula que muchas generaciones
posteriores a ellos, buscarían, entre ellos se tejió un amor verdadero,
sólido, que encontraría una dirección inequívoca y fructífera, alejado
de apasionamientos:

La carne entre ellos –me confió- había callado hacía tiempo. Era la suya
una amistad que podría llamarse fraternal si la edad no los separase y si no
hubiera tenido su remoto origen en un episodio que al conocerlo, configu-
ro la imagen antigua, subyacente, de la persona de Antonio Adalid y de la
época de oro que había vivido en su juventud (NOVO, 1999, p.108).

Como podemos apreciar, el contacto con el mundo anglosajón, in-


fluyó en el proceso de secularización de la sexualidad. Antonio Adalid
como Ignacio de la Torre y Mier tuvieron experiencias que les permitió
alejarse de la percepción de una sexualidad pecaminosa, a una sexualidad
socialmente no convencional durante su estancia en Inglaterra. Antonio
a su vez tuvo la oportunidad de sobrevivir a los vaivenes de la revolución
mexicana gracias a un exilio que le permitió acercarse a otra cultura.

REFERENCIAS
ACKROYD, Peter; Londres Gay; Barcelona, EDHASA, 2018, pp 282-283
ALDRICH, Robert [Ed], Gays y Lesbianas vida y cultura un legado Universal, San Se-
bastián, Ed. Nerea, 2008, p 170.
AGUILAR OCHOA, Arturo y Juan Alfonso Milán López en Una cárcel que se decía
penitenciaría: la cárcel de Belem en la Ciudad de México durante el Segundo Impe-
rio 1863 – 1867, en Revista de Historia de las Prisiones No. 9, México, Julio-Diciembre
de 2019 p 15.
ANÓNIMO, Suprema Corte, El Monitor Republicano, 20 de noviembre de 1867, p 3.
ANÓNIMO, El Siglo Diez y Nueve, 10 de agosto de 1892, p 3.
ANÓNIMO, Un singular baile travesti del Gobernador del Distrito, El Universal 7
de septiembre de 1894, http://www.cmq.edu.mx/libreria/docinvesnuevodisc/

171
documentos-deinvestigacion.html?page=shop.product_details&flypage=flypage.
tpl&category_id=18&product_id=299 .
ANÓNIMO; Proceso escandaloso en Londres; El Nacional, viernes 3 de mayo de
1895, pág. 2 Colección de la Hemeroteca Digital de la UNAM.
ANÓNIMO, Passing day, The Mexican Herald, Sunday April 12, 1896, p 8.
ANONIMO, President Díaz acompanied by a distinguish company goes to Pachu-
ca, The Mexican Herald, 8 de marzo de 1897, Vol. III, No. 8, p8 Hemeroteca Nacional
Digital UNAM.
ANÓNIMO, Espumosos y degenerados. Libertinaje Inaudito; El Universal 1º. de oc-
tubre de 1901; pág. 1, Colección Hemeroteca Digital UNAM.
BLANCO-FOMBONA, R, Frases Hechas, en La Gaceta de Guadalajara, domingo 8
de marzo de 1908, p 1.
ANÓNIMO, “Always Proud San Francisco Brief Gay History”; 8 de junio 2021, en
https://www.sftravel.com/article/always-proud-san-francisco-brief-gay-history.
BRADU, Fabienne; Antonieta 1900-1931, México, FCE,1991, pp 27-28
CONDE DEL VALLE, El; Casa de la Emperatriz; Diario del Imperio, sábado 7 de
abril de 1866, primera plana.
El Popular, 24 de noviembre de 1901.
FIGUEROA VIREGUA Edmundo Arturo y Minerva Rodríguez Licea, La Peniten-
ciaría de Lecumberri en La Ciudad de México, en Revista de Historia de Las Prisiones
No. 5, julio-diciembre 2017, p 108-111.
FUENTES, Pamela J, en Mujeres criminales en la ciudad de México: 1863-1867. Tesis de
licenciatura, UAM-Iztapalapa, México, 2002, pp. 80-81.
FUENTES Pablo, En Marcha en Homo tod@ la historia. El cambio finisecular, v. 9, Bar-
celona, Bauprés Ediciones, 1999, p 15.
FUENTES, Pablo; Restauración y regeneración. Bodas, “pastorios” y bautismos/
Las sociedades de baile; en Homo tod@ la historia. El Cambio Finisecular, Tomo 9 Bar-
celona, Baupres Ediciones, 1999 pp. 12-15.
HEALEY, Dan; Homosexualidad y Revolución; Argentina, Ed A final Abierto; 2019;
pp 98-99.
ISLAS DE GONZÁLEZ MARISCAL, Olga, El desarrollo del derecho penal mexicano en
el siglo XX, en http://www.bibliojuridica.org/libros/1/114/20.pdf, p. 8 (consultado
18/VIII/2010).

172
KICZA, E John; Familias Empresariales y su Entorno, 1750-1850, p 164-165, en STA-
PLES, Anne (coord.) Historia de la Vida Cotidiana en México, Tomo IV. Bienes y viven-
cias. El siglo XIX. México; FCE/CM; México; 2005, pp 147-149.
La Vanguardia, jueves 22 de septiembre de 1887, p 15
MACÍAS-GONZÁLEZ, Victor Manuel; “The Lagartijo at The High Life: Masculine
Consumption, Race, Nation, and Homosexuality in Porfirian Mexico en McKEE
IRWIN, Robert. “The Famous 41. Sexuality and Social Control in Mexico, 1901. ENew
York: Palgrave MacMillan, 2003 p 241
MACÍAS GONZÁLEZ; Víctor Manuel; The Transnational Homophile Movement
and the Development of Domesticity in México City’s Homosexual Community,
1930-1970; en MIESCHER Stephan F, Michele Mitchell, Naoko Shibusawa; Gender,
Imperialism and Global Exchanges; Londres, Blackwell Publishing Ltd; 2015, p 139.
NOVO, Salvador, La vida en México en el periodo presidencial de Gustavo Díaz Ordaz,
tomo I México, CONACULTA, 1998, p 174.
NOVO, Salvador, La Estatua de Sal, México, CONACULTA, 1999, p 109.
PEZA, El Gran Canciller; Gran Cancillería de las Ordenes Imperiales, El Diario del
Imperio, viernes 8 de febrero de 1867, primera plana.
PIQUERO, A. Parte no oficial, operaciones militares, Diario del Imperio, lunes 11 de
febrero de 1867, primera plana.
RAMÍREZ RONCAÑO Mario, Ignacio Torres Adalid y la Hacienda Pulquera, México,
Ed. Plaza y Valdés, 2000, pp 28-31.
QUINTANILLA, Susana, Nosotros. La juventud del Ateneo de México, México, Tus-
quets Editores, 2008, p. 272.
REGAGNON, Agencia, Nuevos Escándalos en Alemania, El Diario, enero 20 de
1908, p 6
RUSSEL, Paul, 100 gays, Barcelona, Editorial Juventud, 1997.
VALENZUELA, Aguilera Antonio; Racionalidad y poder. Las élites en la Ciudad de Méxi-
co, 1876-1940; Aceso en https://www.iai.spkberlin.de/file admin/dokumentenbiblio-
thek/Iberoam ericana/472012/47_Valenzuela_Aguilera.pdf consultado 30/12/2020.
YRIARTE Y DRUSINA, Ernesto, Rectificación, El Tiempo, 1º de octubre de 1892, p
3 HNDM.

173
MÃES, FILHAS, IRMÃS E QUEENS:
REFLEXÕES SOBRE REDES DE
AFETO ENTRE DRAG QUEENS
Rubens Mascarenhas Neto 1

“Mães, amigas, irmãs, avós, bisavós... mães 30 vezes... primas, tias...


mães de novo... elas me ajudam, me seguram, me aguentam, me adu-
lam, me amam, as vezes... me odeiam, quase sempre... conselheiras, par-
ceiras, ombros amigos... mães novamente... bases, sustento, segurança,
carinho, proteção e mães eternamente... obrigado por existirem, me en-
sinarem, me ajudarem, me amarem... eu tenho a certeza que tenho as
melhores mães do mundo feliz dia das mães” (homenagem pública de
uma drag queen na rede social Facebook em maio de 2015).

O filme cubano “Viva” do diretor Paddy Breathnach, conta a his-


tória de Jesús (vivido por Héctor Medina), um jovem cabeleireiro gay
que vive em Havana. Sobrevivendo com dificuldades, Jesús, além de
cortar cabelos de senhoras, também ganhava um pouco de dinhei-
ro arrumando perucas para um grupo de drag queens e travestis co-
mandados por Mama, uma experiente drag queen (interpretada por
Luis Alberto García). Cativado pelo mundo da interpretação e dos
shows de drag e muito afeito aos discos de vinil deixados por sua mãe
já falecida, Jesús é convidado por Mama a se apresentar em sua casa

1.  Doutorando em Antropologia Social e Cultural na Freie Universität Berlin e Lateina-


merika-Institut, membro do Núcleo de Estudos Néstor Perlongher da UFMS, e bolsista do
Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD).

175
noturna. Ali, nascia a drag queen Viva. Em sua primeira performan-
ce, Viva, que já arrancava lágrimas do público, é surpreendida por um
soco vindo de alguém da plateia. Era seu pai, Ángel (interpretado por
Jorge Perugorría), ex-boxeador consagrado que havia abandonado Je-
sús e sua mãe.
A partir desse infausto encontro, Ángel se muda para o pequeno
apartamento onde Jesús morava. Os dois passam a tentar reconstituir
um laço afetivo perdido e a lidar com as expectativas de suas carreiras.
Sob ameaças de violência por parte do pai, Jesús é proibido de fazer
shows. Ángel não conseguira mais se inserir no ramo esportivo como
treinador. Com a descoberta de um câncer de pulmão em estágio gra-
ve no pai, Jesús tem sua relação com ele modificada, e os dois passam
a tentar construir alguma forma de afeição que se perdera no tempo
de abandono. Por fim, Ángel acaba aceitando os shows de Viva e fale-
ce nos braços do filho.
O filme é bastante tocante em vários sentidos. Retrata uma preca-
riedade na vida de Jesús/Viva que luta para sobreviver com o pouco
dinheiro que consegue na profissão de cabeleireiro. Os shows para
Jesús não são apenas a realização de um desejo oriundo do fascínio
pelas grandes cantoras cubanas, que o rapaz ouvia nos discos de vinil
deixados pela mãe, são também uma forma de obter um pouco mais
de dinheiro. Para complementar seus escassos recursos e sustentar o
pai doente e que não lhe permitia exercer o ofício que tanto almejava,
Jesús recorre também à prostituição, o que parece por vezes colocar
em comparação as duas atividades, e que instala na personagem de Je-
sús uma dúvida sobre suas formas de sobreviver. No final, Viva se so-
brepõe e as emoções contidas são canalizadas em suas performances.
A família é o motor da trama narrada no filme. Para Jesús, Mama
é a figura que se opõe ao pai que o abandonou. Mama é justamente
aquela que descortina ao jovem rapaz uma rede de apoio e afeto de
que a vida o havia privado. É também uma figura a quem se recorre
para tentar entender o que se passava com o pai, alguém que oferece

176
a Ángel a possibilidade de ter um novo lar, longe dos abusos e agres-
sões, e a possibilidade de dar vida a Viva. Arrisco dizer que o “biológi-
co” e o “social” chegam a se chocar nas cenas de discussão de Mama
e Jesús, e creio que seja justamente nessa mistura entre os dois que a
história se desenrola.
Neste capítulo2, partindo de uma pesquisa etnográfica conduzi-
da em Campinas, entre os anos de 2015 e 2017, procuro explorar os
sentidos que a família drag assume, bem como as negociações que a
produzem e o manejo dos conflitos. Apresento as famílias drag como
uma metáfora descritiva de redes de suporte afetivo, material e po-
lítico que viabilizam a ascensão e manutenção na carreira drag. Ins-
pirado em trabalhos sobre as famílias de escolha (WESTON, 1997;
PERILO, 2017; WEEKS ET AL., 2001; COOK, 2014; GUIMARÃES,
CALIXTO, 2012), busco apresentar as dinâmicas das famílias a partir
de relatos de três interlocutoras principais: Helena, Teresa e Jane3.
Em minhas incursões a campo, pude perceber como o uso das ca-
tegorias é frequente também entre as pessoas que compõem a família
drag. Nas redes sociais, é possível ver o uso público das terminologias,
especialmente nas homenagens e nos anúncios de chegada de novos
filhos e filhas. Tal mobilização sugere momentos públicos das relações
familiares. Os termos são utilizados de forma semelhante ao modo
como imagino serem feitos nas famílias biológicas daquelas pessoas,

2.  Uma versão mais aprofundada deste texto está disponível em Mascarenhas Neto (2020).
3.  Utilizo pseudônimos para me referir às interlocutoras e interlocutores a fim de resguar-
dar suas identidades. Ao mencionar as drag queens utilizo o feminino conforme o uso que
minhas interlocutoras e interlocutores fazem no dia a dia. Emprego, em alguns momentos,
o masculino, como forma de me referir às drags desmontadas e outros interlocutores que
assim se identificam. Na reprodução de excertos publicados no Facebook, em seus perfis
públicos registrados com o nome da personagem drag, alterei nomes no caso de menção de
interlocutoras ou interlocutores. Não optei pelo uso do termo sic quando as citações não se-
guem a norma culta da língua portuguesa, haja vista que tais diferenças em relação à norma
“culta” não possuem relevância para a compreensão do texto. Ademais, não pretendo aqui
reproduzir preconceitos linguísticos. As categorias êmicas e estrangeirismos serão grafados
em itálico. Utilizo aspas para me referir a trechos de falas de interlocutoras e interlocutores.

177
não se manifestando a princípio uma distinção no nível das categorias,
mas sim outras possibilidades de seu uso e arranjo, naquilo que Kath
Weston (1997) denominou “famílias que escolhemos”4. A discussão
de Weston vai além do parentesco classificatório caro aos estudos
mais clássicos da Antropologia, observando as complexas relações e
arranjos familiares entre LGBT nos EUA no contexto do avanço da
epidemia de HIV/Aids na segunda metade da década de 1980 e no co-
meço da década de 1990. Weston observou a tessitura de novas redes
de parentesco a partir das fragmentações e rupturas causadas nos nú-
cleos familiares biológicos em função da homofobia e do abandono.
Desse modo, os “exilados do parentesco”5 encontraram na formação
de novas famílias por escolha o suporte afetivo, psicológico e material
que lhes foi negado.
O trabalho de Weston inspirou os desenvolvimentos feitos por Ja-
net Carsten (2000), sobretudo no que se refere ao seu conceito de re-
latedness, cuja tradução para o português, feita pela antropóloga Clau-
dia Fonseca (2003), seria conectividade. Carsten, ao cunhar o conceito,
propôs uma superação das teorizações sobre parentesco, a partir de
uma perspectiva que priorize a formação das redes nas quais as outras
formas de se aparentar emergem.
A ideia de família drag que busco explorar aqui se assemelha em
partes às famílias LGBT que conquistaram maior visibilidade recen-
temente6, como mostram Marcelo Perilo (2017) e Eros Sester Gui-
marães e Maria Eugênia Calixto (2012). São compostas por jovens
moradores das periferias da região metropolitana de São Paulo, que
frequentam a região central da cidade, notadamente o Largo do

4.  No original “families we choose”, sendo também utilizado o termo “families of choice”
(famílias de escolha).
5.  Weston nomeia assim o seu segundo capítulo (no original “Exiles from kinship”).
6.  Em janeiro de 2016, a BBC Brasil fez uma reportagem sobre as Famílias LGBT do centro
de São Paulo (cf. TAMAMOTO, Vinícius, “Jovens gays da periferia se reúnem em ‘famílias’
de ativismo e diversão”, BBC Brasil, São Paulo, 23 de janeiro de 2016).

178
Arouche e adjacências. Podendo chegar a números expressivos de
membros, as famílias oferecem uma rede de proteção às e aos jovens,
e se organizam em torno de uma figura paterna central.
As famílias drag são também compostas por jovens que moram
nos bairros afastados da região central. Por conta de suas aspirações,
circulam pela região central da cidade em busca de possibilidades de
emprego e de lazer. Esses jovens se auto identificam a partir de uma
das identidades que compõem a sigla LGBT. São pessoas que se unem
para enfrentar as dificuldades financeiras e afetivas, desenvolvendo es-
tratégias e meios de lidar com as restrições em termos de condições
materiais. Boa parte deles tem empregos como caixa de supermerca-
do, vendedores de loja, maquiadores e não estão inseridos no meio
universitário. Os poucos que estão, o fazem, muitas vezes, através do
ensino superior privado.
Ainda que existam algumas semelhanças com as famílias LGBT
acima referidas, algumas especificidades se apresentam nas famílias
drags. A família drag se configura como um grupo composto também
por pessoas que aspiram à carreira drag, no qual uma drag queen as-
sume a figura central de mãe, sendo ela a responsável por orientar,
acolher, aconselhar e montar as filhas e filhos que participam da família.
Assim, tomo a família drag como fio condutor que perpassa e viabi-
liza a carreira artística e os deslocamentos realizados pelas interlocuto-
ras. Além do suporte afetivo, representado pelo apoio e cuidado tanto
nos momentos de show, quanto nos momentos de intimidade, a famí-
lia drag serve como um suporte material, uma vez que, além da par-
tilha de uma habitação comum e dos recursos financeiros para o seu
sustento, possibilita nos momentos de show que uma drag possa levar
o seu público consigo, aumentando suas chances de avançar em uma
competição quando a decisão se dá por aclamação, despertando o in-
teresse do empresariado GLS dada a quantidade de pessoas que chegam
junto com a drag em uma casa noturna, ou ainda ajudando no custeio
do transporte coletivo para os shows e concursos fora da cidade.

179
Rosemary Lobert, em “A palavra mágica” (2010), pesquisa semi-
nal sobre os Dzi Croquettes, discute os processos que conformam a
relação familiar entre Dzis e tietes, fãs que acompanhavam o grupo
em seus espetáculos, com seus distintos graus de aproximação e um
conjunto de obrigações e constrangimentos decorrentes. Os tietes
assumiram em certa altura um papel de suporte material do grupo
teatral, viabilizando moradia, alimentação e alguns deslocamentos
dentro e fora do Brasil. Dentre as consequências das trocas intensas
entre Dzis e tietes havia a incorporação dos fãs como membros do es-
petáculo, assumindo posições nos bastidores e no palco.
No caso das famílias drag com as quais trabalhei, pude observar
como a relação com as drags se constituía em três níveis de aproxima-
ção. Como representação, penso em órbitas elípticas ao redor de uma
estrela, nas quais cada um dos anéis representa maiores ou menores
possibilidades de aproximação com a drag. Ainda, há momentos es-
pecíficos, como as excursões, que possibilitam uma aproximação mais
forte com a drag. Nesses momentos de maior aproximação, é possível
saltar de uma órbita a outra com mais facilidade através do estabeleci-
mento de um vínculo mais íntimo.
No anel exterior se localizam todas e todos aqueles que compõem
o entourage7 de uma drag, pessoas que acompanham o trabalho e os
shows daquela artista e que eventualmente participam das excursões,
como eu. No anel intermediário, se localizam as e os membros da fa-
mília que foram recentemente incorporados e que assumem posições
de filho e neto. Tais membros possuem algum vínculo afetivo com as
drags (consultam-nas nos assuntos relacionados à vida amorosa, por

7.  O termo corresponde a um grupo de pessoas que estão no entorno de alguém, imagem
recorrente em minhas idas a campo. Em geral, as drags chegam às casas noturnas rodeadas
de admiradoras e admiradores. A popularidade das artistas é um fator explorado pelos es-
tabelecimentos comerciais, afinal quanto maior o entourage, maior será o público. Assim, a
entourage pode representar um grupo maior de pessoas que podem ou não ser incorporadas
na família drag. Tal como entre os Dzi e os tietes, a órbita na qual se localizam as pessoas que
estão no entourage admite a entrada e saída de membros sem grandes constrangimentos.

180
exemplo), podem carregar o sobrenome drag ou mesmo o sobrenome
de boy, eventualmente se montam ou são montados pela drag mãe,
são frequentadores do maior número de atividades possíveis e, por ve-
zes, as auxiliam nos shows como dançarinos ou acompanhantes no
camarim8. No anel mais interno, localizam-se as pessoas que aspiram
a uma carreira drag e que carregam o sobrenome da família em seus
nomes artísticos, sendo, em geral, os membros mais velhos. Eles têm
acesso ao camarim em quase todas as ocasiões de show e, ocasional-
mente, moram com a drag ou mantêm com ela uma relação íntima,
seja como irmã ou irmão, seja como filha, filho ou marido.
Importante observar que o papel de marido, ocupado pelos parcei-
ros afetivos, não é essencial para a família drag. Sendo que o marido,
não necessariamente assume o papel de pai, mas possui uma impor-
tância singular para a drag mãe, uma vez que oferece suporte afetivo
e/ou financeiro, pode representar os interesses da drag entre as mais
experientes, e é uma pessoa de confiança para guardar os objetos de
show. Geralmente, o marido carrega a mala de roupas e perucas da
artista, e tem acesso ao camarim.
Algumas tensões podem ocorrer quando o acesso do marido ao ca-
marim é vetado. Presenciei episódios de visível indignação diante da im-
possibilidade de que eles entrassem junto com as drags. A justificativa
apresentada, em muitos casos, é a invasão de um espaço íntimo que é
compartilhado pelas artistas, ou as limitações espaciais do camarim. Em
geral, os maridos acompanham as drags para vigiarem não apenas os
objetos, mas também os corpos de seus parceiros durante a montaria.
Os maridos talvez ocupem as posições mais instáveis dentro da família,
muitas vezes pelo risco do término dos relacionamentos com as drags.

8.  Entre os Dzi Croquettes, algumas e alguns tietes poderiam ser incorporados ao show,
como no caso da própria Rosemary Lobert que chegou a ocupar um posto na iluminação
dos shows. Contudo, como a autora mostra, há uma negociação prévia para que uma ou
um tiete seja admitido como participante do espetáculo. E nos casos em que a/o tiete con-
trariavam os acordos de show ou mesmo se intrometiam em questões mais íntimas, os Dzi
deliberavam sobre sua expulsão.

181
Entre as jovens drag queens com quem tive contato durante a pesquisa,
ouvi diversas vezes reclamações sobre o desinteresse que muitos parcei-
ros em potencial demonstravam ao saberem de sua atividade artística.
Muitas chegaram a considerar o abandono ou interrupção da carreira
para tentarem construir relacionamentos. Se, por um lado, a montaria de
drag é uma conquista ou um sonho, como veremos adiante; seu lado ne-
gativo parece ser o risco de rejeição por parte dos parceiros em potencial.
Há uma série de possíveis explicações para esse acontecimento,
como a reprodução de normatividades e uma aversão à feminilidade,
corporificada, de certo modo, pela drag, como assevera Newton (1979).
Penso que, em parte, o temor e o estigma dos meios artísticos, vistos
pelo senso comum muitas vezes como obscenos nos bastidores, pos-
sam nos informar também alguns dos motivos. Ainda, os sacrifícios ne-
cessários para prosseguir e sustentar a carreira artística drag são muitos,
e não se restringem às dimensões financeiras e materiais, as relações
também são colocadas à prova pela necessidade de frequentar boates e
casas noturnas, lugares nos quais o flerte ocorre comumente.
Na organização das famílias drag com as quais eu convivi, a figura
materna é central. Como veremos, é dela que emana o suporte neces-
sário para filhos e filhas drag começarem os seus primeiros passos. E
é dos filhos e filhas que vem o apoio nas horas de show, nas disputas e
nas confusões. É também para a mãe drag que os afetos do marido são
dirigidos; são eles que dão suporte afetivo-sexual para as mães. Os ma-
ridos ainda podem receber o suporte materno de suas próprias mães
drag, quando também fazem parte de outras linhagens.

“Cadê as mães desse grupo?”

“Cadê as mães desse grupo? Parabéns, Helena e Teresa que mesmo na brin-
cadeira tem uma grande família e um grande nome. Dá bronca, dá conse-
lho e mantem todos ao seu redor” (transcrição de uma mensagem de um
membro enviada a um grupo no WhatsApp, dia das Mães, maio de 2015).

182
Lembro-me de uma saudação calorosa às mães “de verdade” e às
mães drag que faziam parte de um grupo de conversa no WhatsApp,
no Dia das Mães, em 2015. Havia, no grupo, algumas pessoas que se
consideram e são consideradas filhas das duas drags que foram ho-
menageadas, Teresa e Helena, e que fizeram coro à manifestação da-
quele membro. Vale mencionar que o autor da homenagem não se
considera e nem é considerado filho de nenhuma drag.
As famílias drag possuem uma organização centrada na figura
materna. É da mãe que emana o sobrenome, os estilos, circulam
os objetos e os saberes. Assim, a matrifocalidade da família drag se
aproxima das relações entre travestis na feitura dos corpos pelas
bombadeiras. Como nos mostra Marcos Benedetti (2005), as bomba-
deiras são, geralmente, travestis mais velhas que, a partir de uma
série de técnicas, como a injeção de silicone, têm papel central na
construção dos corpos.
Joseylson Fagner dos Santos (2012) também discute, em sua etno-
grafia, a organização das drag queens em torno de famílias nas quais
os processos de aprendizado e transformação corporal são transmiti-
dos das drags mais experientes às mais novas e menos experientes. O
autor faz um paralelo interessante com os estudos sobre travestis ao
observar correlações entre os projetos de modificação corporal das
travestis guiadas por suas madrinhas e a supervisão das mães drag so-
bre suas filhas.
Anna Paula Vencato (2013) observou relações análogas de ama-
drinhamento entre as crossdressers (CDs), nas quais as mais versadas
nos processos de montaria trocavam experiências no âmbito do extin-
to Brazilian Crossdresser Club (BCC). Havia entre as CDs um mane-
jo do segredo e da proteção da imagem do sapo, sua identidade des-
montada, de modo que algumas delas, em geral as de maior poder
aquisitivo, se organizavam para manter apartamentos na cidade de
São Paulo onde poderiam guardar suas roupas, se montar, e se reunir
em festas privadas.

183
Assim, ao considerar “brincadeira” um conjunto de relações, o
membro daquele grupo parecia revelar sua posição de exterioridade
diante daquele sistema. Por outro lado, reconhecia a centralidade das
redes, afinal, era visível que Teresa e Helena agregam em torno de si
um grande número de filhos e filhas. Aquele membro e eu estávamos
fora das relações tecidas pelas drags e seus filhos e filhas. Entretanto,
era impossível não perceber a importância e o conjunto de significa-
dos que aquelas homenagens carregavam.

“A rainha do Sucão”

Helena se identifica como negra, na época tinha cerca de 25 anos,


nasceu em Campinas, vivendo boa parte da juventude com sua mãe.
Entende-se como “travesti/transgênera”, mas em alguns momentos
se considera “gay”. Não são incomuns os momentos em que Hele-
na anuncia publicamente uma identidade travesti, no entanto, existe
uma espécie de tensão identitária decorrente do medo de que a figu-
ra de Helena se sobreponha à de quem a criou. Nesses momentos,
costuma fazer publicações em que anuncia publicamente que é um
homem gay e que Helena é uma personagem. É bastante conhecida
entre os frequentadores da Praça do Sucão, e possui com vários deles
uma relação de maternidade. Com mais de seis anos de carreira, con-
quistou alguns prêmios importantes no meio drag campineiro e re-
gional, como o Concurso de Novos Talentos da Vila Padre Anchieta
e o Concurso de Melhor Show da Boate Fourton House, em Jundiaí.
As apresentações públicas de drag queens são eventos importan-
tes na formação das novatas. A produção de um show, as músicas e
luzes, e, claro, a imagem cuidadosamente pensada para aquela oca-
sião inspiram admiração nos jovens que assistem ao show. Em várias
ocasiões, as drags interagem com o público antes e depois de suas
apresentações, tirando fotos e cumprimentando seus espectadores.
As redes sociais são também um espaço importante de contato, em

184
especial nos perfis criados com a personagem drag, onde é notável a
quantidade de fotos, pequenos textos, agenda e vídeos de shows pu-
blicados. Os admiradores das drags estabelecem laços e contato, além
de compartilhar fotos tiradas com elas. É ali que também se observa
o lado público das relações de família.
Contudo, o espaço por excelência de interação entre drags e seus
filhos (e possíveis filhos), no contexto etnográfico em que analisei, foi
a praça do Sucão. Quando Helena chegava, às sextas-feiras à praça,
era possível ver como era respeitada e como sua atenção era dispu-
tada, afinal ela tinha cerca de trinta filhos (entre drags neófitas e garo-
tos gays). Tais obrigações sociais, como cumprimentar filhos e netos,
ser fotografada com seus admiradores, reencontrar amigos e outras
drags, tomam algum tempo e, dado o fluxo de pessoas, não era de
se espantar que, durante uma conversa, alguém aparecesse pedindo
uma foto, ou cumprimentando sua mãe ou avó.
Um grande entourage traz consigo alguns benefícios para as drags.
Nos concursos promovidos por casas noturnas, como os de melhor
show ou dublagem, possuir uma boa quantidade de torcedores in-
fluência nos resultados. Os concursos são uma forma de competição
mediada, nas quais as drags disputam por prêmios ou títulos. Chamo
de mediada, pois há casos em que drags desafiam umas às outras em
disputas de dança e show, sem necessariamente ocorrer por razão de
um concurso, em especial, nas performances de bate-cabelo. Nessas
performances, como sugerem alguns interlocutores, gestos provocati-
vos são realizados para se comunicar com drags rivais.
As provocações não são exclusividade do bate-cabelo, é mais usual
observar conflitos quando uma drag apresenta um número com
a música de outra, ou encena no palco elementos da vida pessoal,
sendo que o caso observado mais emblemático foi uma provocação
devido a uma relação amorosa rompida entre drags. Nos conflitos,
quando uma drag se sente ofendida, seu entourage sai prontamente
em sua defesa, ou engrossa o coro de vaias iniciado pela drag. Mas,

185
como veremos mais adiante, seja para reagir a uma provocação, ou
para sobreviver em Campinas, a amizade entre artistas é fundamental
para progredir na carreira.

Amigas, amigas... negócios à parte

“No meio drag isso é bem incomum, nossa amizade é bem incomum,
porque é uma falando mal da outra, é uma tentando derrubar a outra”
(trecho de conversa informal com Teresa, Campinas, julho de 2015).

Teresa nasceu em Campinas, tinha cerca de 21 anos e se entende


como negra. Trabalhava como drag queen há apenas 3 anos. Identifi-
ca-se como “gay”. Sua mãe e sua avó biológicas apoiam sua atividade
como drag, o que ela considera um privilégio. Fez teatro durante a
adolescência e considera que a atividade teatral lhe deu boas ferra-
mentas para fazer drag. Para ela, a atividade drag é tida como artística
e profissional.
O meio drag tem como um traço marcante: o alto grau de competi-
tividade entre suas participantes. À falta de inserção no mercado GLS
(esse, por si só, marcado por certo grau de instabilidade), somam-se
as rivalidades que surgem durante a carreira. Desse modo, a fala de
Teresa retrata o incômodo que ronda as drags mais novas, afinal, a
alta competitividade do setor resulta em oportunidades mais escassas
para as neófitas apresentarem-se nos palcos.
Tenho observado que as famílias drag são formadas também como
meio de superar os obstáculos da carreira. A menção à amizade tem
um papel importante, complementando os usos de família entre mi-
nhas interlocutoras. Weeks e outros (2001), estudando as transfor-
mações no Reino Unido a partir das novas leis de adoção e do casa-
mento, demonstram como as famílias de escolha representam as suas
configurações através da amizade, no sentido de assumirem amigos
como familiares, e, por conseguinte, engendrando todas as relações

186
tomadas como “inerentes” à família. Desse modo, as famílias de esco-
lha seriam formadas nas e a partir das relações entre os sujeitos, lidan-
do com constrangimentos, ausências e resistências tanto nas famílias
biológicas, quanto na sociedade. Nesse sentido, os autores se atentam
à performatividade da família. Ou seja,

é menos importante se estamos em uma família, do que se fazemos coisas


de família. Na linguagem utilizada por Judith Butler (1990) para falar so-
bre gênero, práticas familiares são ‘performativas’, e famílias são, desse
modo, construídas através da sua atuação. Nós vivemos a família ao in-
vés de ocupá-la. Essa abordagem enfatiza a atividade e agência humanas:
família é o que fazemos (WEEKS et al., 2001, p. 38)9.
 
Desse modo, a ideia de família seria formada pela prática e reiterada nas
relações tecidas entre as pessoas que a compõem. Essa reflexão ajuda a
compreender as famílias drag de uma forma mais ampla, na qual se pro-
duzem em íntima relação com as amizades. Os trabalhos de Matt Cook
(2003, 2014) nos ajudam a pensar nesse sentido. Neles, o autor observou
como redes familiares se formavam entre homens homossexuais ingle-
ses, desde o século XIX, através da absorção dos parceiros afetivos nas
famílias tradicionais como forma de escapar da perseguição legal que se
alastrou pelo século XX.

Pensando em exemplos brasileiros, Thiago Soliva (2012), em “A


confraria gay: um estudo de sociabilidade, homossexualidade e ami-
zades na Turma OK” apresenta uma etnografia bastante rica sobre
um grupo de homens que fazem sexo com homens que começaram

9.  No original: “it is less important whether we are in a family than whether we do family-
-type things. In the language used by Judith Butler (1990) to talk about gender, family practi-
ces are ‘performative’, and families are therefore constructed through their enactment. We
live family rather than dwell within it. This approach emphasises human self activity and
agency: Family is what we do” (WEEKS et al., 2001, p. 38).

187
a se reunir em turmas nos idos dos anos 1950 e que posteriormente
fundaram a Turma OK, um espaço de sociabilidade homossexual na
Lapa, na cidade do Rio de Janeiro. Soliva discute como os membros
da Turma OK adotaram ideias de família como metáfora para descre-
ver suas relações de amizade, cuidado e afeto dentro do grupo.
Assim, relações de amizade e de família se misturam na tessitura
das redes de apoio criadas pelas drags. Insisto em colocá-las em para-
lelo, uma vez que as relações de família drag extrapolam os limites da
amizade, criando um conjunto de obrigações e constrangimentos de
natureza diferente daqueles das relações de amizade. Não obstante,
as relações de família drag, em certo sentido, derivam das relações de
amizade, quase como um estágio mais intenso.
Em uma de nossas conversas informais, Teresa mencionou sua as-
sociação com as demais drags. Naquela época, Teresa, Helena e Nor-
ma dividiam a mesma casa. Úrsula, mesmo não morando lá, se iniciou
como drag com a ajuda delas. O apartamento foi herança do pai bioló-
gico de Teresa, que faleceu quando ela ainda era criança. Desse modo,
os custos de moradia eram reduzidos pela ausência da necessidade de
pagar o aluguel. Como Teresa me relatou naquele dia, as três dividiam
as despesas de alimentação e contas comuns. Ao acompanhar suas pu-
blicações nas redes sociais, reparava que a casa estava sempre cheia de
filhos e filhas, criando um ambiente bastante festivo e receptivo.
Durante aquele período, as três se apoiaram mutuamente tanto
no fazer drag, quanto no sustento diário. Assim, não dar conta con-
grega as dificuldades de ser drag com as dificuldades do dia a dia. As
drags estabelecem redes de divulgação de oportunidades de emprego
e, como no caso de Teresa e Helena, procuraram emprego juntas. As
duas trabalharam por um tempo como maquiadoras em uma mes-
ma loja no centro da cidade, além de negociarem shows uma para
a outra. São laços mencionados e relembrados com muito carinho.
Teresa, em um de nossos encontros, relatou que sentia muita falta de
morar com Helena, afinal, como disse, “somos irmãs, né”.

188
Dificuldades financeiras e tensões nas relações afetivas são alguns
dos fatores que estimulam o movimento intenso de mudança de do-
micílio. Desse modo, as casas das drags podem ser pensadas também
como espaços que se reconfiguram ao longo da carreira. É possível
ver que a permanência em um domicílio específico pode ter um tem-
po limitado.
A maioria das drag queens que contribuíram para essa pesquisa
nasceu ou morou em Campinas por algum tempo. Em alguns casos,
suas famílias de origem residem nas cidades da região metropolita-
na. No entanto, há um aspecto comum a todas elas, Campinas é um
local onde se encontra maior oferta de trabalho, seja como drag ou
não. Durante o meu período em campo, percebi um movimento sig-
nificativo de mudança de residência das drags. Algumas regiões da
cidade, em sua maioria nas periferias, são locais onde as mais jovens
encontram moradia. É o caso da Vila Padre Anchieta, do Ouro Verde,
dos DIC (Distrito Industrial de Campinas) e do Campo Grande, por
exemplo. Todos esses bairros têm em comum os preços mais baixos
de aluguel, o que facilita a mudança das drags.
Em geral, as mais novas organizam suas casas em conjunto com
outras pessoas próximas. Nessas habitações, muitas vezes as despesas
e a comida são compartilhadas. Não é raro ver nas redes sociais al-
guma menção às habilidades culinárias de algumas drags, ou mesmo
fotos em que as e os membros da casa se encontram reunidos para
uma refeição. Assim, além da comensalidade (CARSTEN, 2004), há um
princípio de coletividade e afeto que une as e os moradores. Quando
este princípio é rompido, como, por exemplo, em casos de abuso da
boa vontade das dos demais companheiras e companheiros de casa
por parte de uma ou um membro, as relações familiares são afetadas.
A menção à casa das drags tem relevância para essa pesquisa na
medida em que o espaço doméstico assume um conjunto mais am-
plo de significados. É também nas casas onde é possível guardar seus
materiais de show em segurança, onde se inicia a preparação da

189
maquiagem e das transformações corporais. Mas a casa não se resu-
me a uma extensão do camarim, ou apenas a uma etapa que antecede
o palco. Nela, se manifestam dois aspectos centrais para essa pesqui-
sa: a família drag e a circulação de saberes e objetos.

“Tiro o que é meu e dou para eles”

“Tiro o que é meu e dou para eles sabe, eu sou bem desses, mas se pisar
na bola também eu tiro da família” (trecho da entrevista com Jane, Cam-
pinas, outubro de 2015).

Quando Jane me concedeu a entrevista, ela ainda residia na região


do Campo Grande, em Campinas. Seu apartamento ficava em um
conjunto de edifícios da COHAB. Na sala de estar onde fizemos nossa
entrevista, os sofás estavam dispostos em L, sendo que o sofá de 3
lugares estava voltado para a televisão. Nele, sentavam-se o marido
de Jane e um de seus filhos. Havia dois pufes ao lado da porta de en-
trada, nos quais uma das filhas de Jane, uma travesti, e outro filho, um
homem gay que se monta eventualmente, estavam confortavelmente
acomodados. Assim que começamos a gravar a TV foi desligada e as
filhas e filhos dedicaram sua atenção a nossa conversa.
O modo parcialmente coletivo como a entrevista transcorreu não
atrapalhou em nada nossa conversa. Ainda, era possível sentir que o
ambiente era bastante aconchegante e receptivo, inclusive para mim.
Naquela altura, já tínhamos estabelecido uma relação mais próxima
em função de nossa participação nos eventos promovidos pela Asso-
ciação da Parada do Orgulho LGBT de Campinas (APOLGBT) e pelo
Aos Brados!!10. Como ela me relatou na entrevista, mais filhos chega-
riam naquele dia para visitá-la, e eles estavam organizando um jantar

10.  Grupo campineiro que atua na intersecção entre ativismos LGBT, negros, populares e
periféricos. Para mais informações, conferir capítulo de Zanoli neste volume, bem como seu
livro (ZANOLI, 2020).

190
coletivo: “(...) a gente tá sempre unido, hoje mesmo eles vêm todos
para cá... vai ser um jantar de família, é muito legal, eu gosto muito”
(fala de Jane em entrevista, outubro de 2015).
A casa torna-se para a família drag uma referência nesse sistema de
afetos compartilhados – um local seguro, onde por vezes é possível
escapar das dificuldades encontradas em seus lares de origem e em
suas famílias biológicas. Muitas vezes, pela não aceitação de sua se-
xualidade, ou pelo fato de se montarem, os membros da família drag
se veem forçadas e forçados a sair de casa e procurar outros lugares
para morar.
Levando em consideração que membros das famílias drag tam-
bém se consideram LGBT, sendo que alguns aspiram à carreira de
drag queen, a aceitação da sexualidade e da carreira artística nem
sempre é tranquila. Desse modo, muitas e muitos jovens buscam lo-
cais onde possam ser recebidas e recebidos com a aceitação e o afeto
que nem sempre encontram em suas famílias de origem. Em alguns
casos, seja pela expulsão de casa ou pela dificuldade de se sustenta-
rem financeiramente, essas e esses jovens se organizam em casas para
levarem uma vida mais independente. A mãe drag, geralmente mais
experiente, acolhe filhas e filhos.

J: (...) É o dia inteiro (risos), é em casa, é no trabalho, é no banho o


WhatsApp tocando ‘mãe, preciso falar com você’, lembro daquela cari-
nha de choro, aí eu vejo o que que tá acontecendo, dou um conselho e
tento ajudar, entendeu? Mas a gente acaba ajudando sim, todos eles. Eu
gosto muito, porque é um carinho muito grande né... (fala de Jane em
entrevista, outubro de 2015).

Jane ressaltou que, por vezes, os recebe quando relatam que a “si-
tuação tá ruim em casa”, ou seja, nos momentos em que precisam da
acolhida que suas casas e famílias biológicas não podem (ou querem)
oferecer. Assim, a casa das drags, como espaço, condensa os aspectos

191
internos das relações de parentesco, tais como observadas por Janet
Carsten (2004) em outros contextos etnográficos. O parentesco entre
as drags se tece pouco a pouco na partilha da intimidade, da comida e
do afeto possibilitado pelo convívio.
No fim dos anos 1960, Esther Newton (1979) já observava que
muitas street fairies11 moravam em hotéis baratos ou habitações irre-
gulares, tendo como um de seus traços mais significantes a coabita-
ção. Dessas pequenas unidades decorriam relações de cuidado e afe-
to, em especial pelo fato de muitas fairies serem jovens e de grupos
raciais marginalizados. Newton, no entanto, não menciona a organi-
zação dessas jovens drags em torno de famílias, léxico que se tornaria
corrente na cena drag norte americana a partir dos anos 1980.
Observei um conjunto de questões que me permitiram traçar apro-
ximações entre o contexto etnográfico com o qual tenho trabalhado
e o contexto norte-americano. Concordo, no entanto, que há de se le-
var em consideração as diferenças contextuais e históricas entre Bra-
sil e EUA, sobretudo no que se refere às questões raciais e LGBT. Não
obstante, a chamada “cultura drag” estadunidense parece influenciar
alguns padrões de comportamento, fato que se tornou mais visível nos
últimos anos também com o sucesso do reality-show RuPaul’s Drag
Race. Desse modo, tomo as discussões produzidas por pesquisadores
norte-americanos e as correlações entre casa, raça, pobreza e segrega-
ção social no enfrentamento das dificuldades de sobrevivência de jovens
em grandes centros urbanos como um referencial comparativo.
Na chamada ballroom culture, a qual se remetem as algumas das
origens do drag na primeira metade do século XX, drag queens se re-
uniam em salões fechados e organizavam desfiles e performances. O

11.  Segundo Newton as street fairies andavam no dia a dia maquiadas, não faziam shows com
frequência, foram ou estavam excluídas do mercado, além de possuírem envolvimento com
drogas e prostituição. Não busco aqui realizar uma comparação com minhas interlocutoras,
mas ressaltar a forma de se organizarem em conjunto para resistir à exclusão social a que
estavam submetidas.

192
documentário “Paris is Burning”, de 1990, dirigido por Jennie Livings-
ton, explora de forma fascinante o modo como esses bailes fechados
se configuravam entre moradores dos bairros pobres de Nova Iorque
no final dos anos 1980. O que se depreende da ballroom culture estadu-
nidense é a estrutura familiar formada em torno das casas (houses ou
haus), cujos nomes12 são utilizados pelos seus membros como símbo-
los de pertencimento.
Marlon Bailey (2013) analisou o modo como o parentesco é arti-
culado nas casas organizadas por drag queens norte-americanas, tais
como as retratadas em Paris is Burning. Cada uma das casas possui
uma mãe (geralmente um homem gay, travesti ou mulher trans que
faça drag) e um pai (homem gay). Tais casas se dividem em seções
(sections) espalhadas pelos centros urbanos dos EUA e possuem seus
respectivos pais e mães que se reportam diretamente à mãe e ao pai
do núcleo central. Bailey, que realizou sua pesquisa em Detroit, ar-
gumenta que as casas oferecem um lugar seguro para LGBT que são
marginalizados, especialmente jovens negras e negros, e em situação
de desemprego e pobreza.
A ideia de casa mobilizada, tanto no trabalho de Bailey, quanto
no documentário de Livingston, ultrapassa a ideia do espaço físico,
assumindo novos sentidos. bell hooks (1991) reflete sobre o modo
como a casa entre negros e negras norte-americanos se torna um
lugar de resistência às dificuldades do cotidiano. Inspirado em
hooks, Bailey utiliza a metáfora do “lar como lugar de resistência”
para pensar a conjunção entre a exclusão do emprego formal, o
preconceito racial e a discriminação por orientação sexual e identi-
dade de gênero. As ideias de casa apresentadas por Bailey e hooks

12.  Marlon Bailey (2013) mostra que os nomes são originados de marcas famosas de carros,
roupas e joias ou mesmo novas formas de escrita de palavras. No documentário, Livingston
mostra algumas dessas casas como: House of LaBeija, House of Ninja, House of Xtravaganza,
House of St. Laurent e House of Pendavis, que, naquela época, já possuíam certa projeção den-
tro e fora dos Estados Unidos.

193
tem interessantes conexões com o que minhas interlocutoras pare-
ceram sugerir. Evidente que, em termos de comparação, Brasil e
EUA possuem formações históricas, sociais, urbanas e raciais dis-
tintas. Contudo, penso que tomar as casas das drags como “luga-
res de resistência” faz sentido ao observarmos a importância que
o espaço doméstico assume nas relações entre as drags e seus filhos
e filhas. Mas essa ideia de espaço doméstico da casa das drags não
se conecta automaticamente a um local determinado, é talvez uma
forma que se organiza em diferentes lugares13.
Além de o espaço doméstico exercer um papel importante nas
relações familiares, ele é também um espaço necessário para a ati-
vidade drag. Materiais de show, como maquiagens e perucas, são
guardados em segurança, roupas podem ser confeccionadas e mo-
dificadas, coreografias são ensaiadas, quando da impossibilidade
de utilizar um espaço maior. As casas são também espaços onde
alguns dos segredos da profissão podem ser aperfeiçoados. Ali,
técnicas mais íntimas são transmitidas, como aquendar a neca14, ou

13.  Em 2016, por ocasião da Parada do Orgulho LGBT cedi o espaço de minha casa para que
algumas drags pudessem se montar em um local mais próximo de onde ocorreriam os shows.
Naquele momento, minha sala tinha se tornado um camarim especial, no qual Jane mostrava
às aspirantes a drag alguns truques. Outra drag mais experiente que também estava em mi-
nha casa chegou a nos explicar detalhadamente como fazer seios de espuma para preencher
o corpete que ela usaria no show. Meu apartamento tornara-se a casa de Jane e sua família e
também um local onde técnicas circulavam.
14.  Aquendar/Acuendar a neca é uma técnica de modificação corporal momentânea na ge-
nitália, com o intuito de criar uma forma semelhante à da vulva. O termo vem do bajubá
(pajubá). Consiste na ação de pressionar o saco escrotal, de modo a empurrar os testículos
em direção à cavidade localizada na região pubiana, escondendo-os (aquendando), o pênis
(chamado de neca), que não deve estar ereto, é dobrado na direção do períneo e fixado com
esparadrapos, ou fitas adesivas resistentes, deixando a glande mais livre para permitir que
a drag urine sem retirar as fitas. A técnica possui variações, de modo que a forma descrita
acima foi relatada em campo. Nem todas as drag queens aquendam a neca, visto que é um
processo que envolve um desconforto, sendo possível reduzir o volume da genitália através
do uso de cuecas e calcinhas justas, tal como as travestis como mostra Benedetti (2005). De
todo modo, um bom manejo das técnicas corporais é um diferencial no momento de show,
especialmente nas vestimentas em que o corpo é exibido, como maiôs, vestidos justos ou
macacões.

194
mesmo truques de maquiagem, que não devem ser divulgados. Na
casa, por exemplo, pode ser realizada a primeira montaria de um/
uma filho/filha drag, uma das formas de “nascimento” e nomeação.
Como demonstra a fala de Jane:

J: Eles chegam em mim e vão perguntando “aí eu queria tanto me


montar, eu consegui umas coisinhas aqui outras ali, umas maquia-
gens, eu queria tanto me montar, mas não tem ninguém para me
montar”, e eu falo assim “olha, eu posso te ajudar né, te montar, rea-
lizar seu sonho né, porque isso é um sonho para mim é um sonho né
que eu tenho que manter ele, posso te ajudar sim”, aí conversa vai
conversa vem e acaba sendo meu filho. Daí eu falo para ele como é
que entra nesse mundo GLS, de drags, eu expliquei para ele e falei
“olha a pessoa que tá te ajudando, te maquiando, para você dar uma
pinta ali ou fazer um show ali, a pessoa tá te lançando na noite, en-
tão todas as drags vão falar a mesma coisa, aquela que tá te ajudando
vai tá te lançando na noite. Então você vai tá carregando o nome da
drag que tá te ajudando entendeu?”. Daí é bem isso mesmo a gente
tá ajudando uma pessoa que tá se montando pela primeira vez, e ela
acaba virando drag e vai dela manter isso. (fala de Jane em entrevista,
outubro de 2015)

O relato mostra muito bem o significado que ser montado por


alguém possui. Mais do que poder se apresentar publicamente como
drag (dar pinta, na fala da interlocutora) ou fazer um show, a drag,
ao ser nomeada, passa a carregar um sobrenome que indica uma re-
lação de filiação a outra drag mais experiente. Desse modo, no caso
das neófitas, parece haver com as mães uma obrigatoriedade de res-
peito e dedicação que deve permanecer na carreira. Em contrapar-
tida, parece caber às mães orientar e intervir em algumas situações
recorrentes na atividade artística, tal como aquela que exploraremos
a seguir, os conflitos.

195
“Cuidem do seu que eu cudo do meus”

Em uma das minhas observações de campo, por ocasião do Big


Juice em 201515, no qual Teresa se apresentou, dois jovens começa-
ram uma discussão nas proximidades do palco e dos camarins. Teresa,
que já havia feito seu número, estava terminando de recolocar sua
roupa da noite, e, ao saber da confusão, dirigiu-se rapidamente ao
público. Ela percebeu que um de seus filhos estava bastante abalado
e nervoso. O motivo era que seu ex-namorado, que o havia traído e,
por isso, terminado o relacionamento, estava na praça desfilando com
o amante. Sentindo-se humilhado, o filho de Teresa teria agredido o
ex-companheiro. Logo que os socos e pontapés começaram, Teresa
rapidamente interveio e separou a briga, indo logo em seguida partir
em defesa do filho insultado.
“Cuidem do seu, que eu cuido dos meus”, disse Teresa para os
amigos do outro jovem. Seu tom era enérgico o suficiente para que
o agressor e seus amigos se aquietassem e se retirassem. Alguns dos
jovens que estavam ali e presenciaram a cena gritavam coisas como
“vai, dona Teresa, põe ordem na casa!” ou “isso, mãe, arrasou!”. A
atitude rápida de Teresa reestabeleceu certa tranquilidade. A situa-
ção não apenas afetou o filho traído, mas abalou também seus ir-
mãos e irmãs que estavam em sua companhia. Suponho que, para
além do susto com o ocorrido, pairava no ar também um temor
de que a Guarda Municipal ou a Polícia Militar também pudessem
intervir, o que poderia resultar em mais violência. Logo em seguida,
ela tratou de acalmá-los e apaziguar os ânimos mais exaltados. Por
fim, ela conversou com o filho insultado e, apesar de repreendê-lo

15.  O Big Juice era um evento organizado anualmente pelo E-Camp, sucursal campineira
da rede E-Jovem, com foco em juventude LGBT (cf. capítulo de Zanoli neste volume). Seu
objetivo era dar espaço no palco a jovens artistas LGBT que buscavam inserção na cena local,
incluindo jovens drag queens (MASCARENHAS NETO, 2020; ZANOLI, 2020). Com o fim
do E-Camp em 2013, a atividade passou a ser disputada pelos demais membros da Associação
da Parada do Orgulho LGBT de Campinas.

196
pelo ocorrido, acalentou-o. Em questão de minutos, a briga estava
terminada sem nenhuma intervenção exterior à família de Teresa.
O episódio me permitiu observar a ascendência que a mãe drag
possui sobre seus filhos, e sobre outros jovens que convivem com
aquela família drag. Teresa, em especial, possui uma personalidade
bastante expansiva e acolhedora que facilita a resolução de situações
de conflito. Assim, seja mediando conflitos ou apaziguando os âni-
mos mais exaltados, a mãe drag toma para si um conjunto de atitudes
relacionadas a certas ideias e representações da maternidade como
fonte de afeto, segurança e disciplina.
Em ocasiões de shows e competições em boates, as drags reúnem
seus filhos e seu entourage e se deslocam para o estabelecimento acom-
panhadas, quando possível, por temor de agressões físicas. Mesmo
aquelas que não vão competir, seguem às vezes montadas em apoio
às irmãs ou mães que estejam participando. Dentro do espaço de uma
casa noturna, em caso de competição, os filhos devem apoiar a mãe
drag ou aquela por quem ela esteja torcendo.
É desejável que uma drag e seus filhos não dêem bafão16, isto é, não
protagonizem ou participem de brigas e conflitos, o que na prática
nem sempre se realiza. A mesma lógica de endosso ao apoio a uma
drag se aplica aos casos de reprovação de desafetos da mãe, cujas vaias
devem, sempre que possível, ser engrossadas pelo coro dos filhos.
Contudo, a lealdade e a adesão das filhas e filhos aos desentendimen-
tos da mãe drag podem também afetá-la e afetá-los negativamente.
Soube, através de postagens no Facebook e de conversas infor-
mais, que um bafão envolvendo uma drag conhecida ocorreu dentro
de uma casa noturna em 2015. Uma drag, ao se apresentar no palco
durante o concurso, foi vaiada por outra drag e seus filhos na plateia.
Segundo relatos, a motivação foi de cunho pessoal: a drag no palco

16.  Sinônimo de confusão. Utiliza-se bafo também quando se refere a uma fofoca, ou a algo
muito interessante ou impressionante.

197
tivera, no passado, um relacionamento amoroso com a autora das
vaias e, na performance – onde contracenava com seu atual parceiro
– beijou o anel de compromisso. O ato foi interpretado como provo-
cativo, e a reação foi imediata.
Um interlocutor, que me relatou o caso, disse que conversou com
a drag que capitaneou as vaias e chamou atenção para o fato de que
uma atitude como aquela poderia causar danos à sua relação com
os donos da boate, que passariam a ter receio em contratá-la. Desse
modo, se por um lado a lealdade dos filhos e filhas com a mãe drag
(e vice-versa) é desejável, por outro uma “boa conduta” é necessária,
uma vez que possibilidades de show estão em jogo. Dentro das boates
é fundamental causar uma boa impressão, seja pelo bom comporta-
mento, pela diplomacia ou pelo número de pessoas que ingressam no
local em sua companhia.

“E ela acaba virando drag, e vai dela manter isso”

Neste capítulo, apresentei algumas situações de campo que me


permitiram observar as articulações e negociações envolvendo a fa-
mília drag, tanto no aspecto afetivo, quanto no aspecto artístico e pro-
fissional. Em se tratando de carreiras artísticas muito marcadas pela
dificuldade em encontrar trabalho, é recorrente a opção de algumas
drags pelo abandono dos palcos. Desde o início de minhas observa-
ções de campo, vi possíveis interlocutoras interromperem a carreira,
inclusive publicamente. Felizmente, também assisti à reversão das in-
terrupções. Assim, Jane, Teresa e Helena emergiram como interlo-
cutoras também por terem conseguido manter certa estabilidade em
suas jovens e promissoras carreiras.
A partir de seus exemplos, vimos que a família drag lhes possibilitou
participar e progredir em concursos fora de Campinas, encontrar empre-
go, sustentar uma moradia ou mesmo conseguir uma casa para dividir. As
redes familiares estão intimamente relacionadas com as carreiras artísticas

198
e profissionais, mas sua influência se estende aos outros domínios, como
o afetivo. Arrisco dizer aqui que as famílias drag não são apenas parte com-
plementar da vivência das drag queens, elas dão substrato, ordenam e
complexificam a existência dessa expressão artística e de seus adeptos.
Para Helena, a chefia de uma grande família drag traz um conjunto
de benefícios para a carreira, assim como obrigações. Sua populari-
dade entre as e os frequentadores do Sucão lhe rende um número
grande de admiradores, que mais tarde podem se tornar filhos e filhas.
Mas, a boa impressão causada por um grande entourage pode ser ma-
culada por conta de conflitos. A mesma união das famílias que forta-
lece uma carreira pode também enfraquecê-la.
Com Teresa, vimos que as associações e amizades entre drags não
se fazem longe dos conflitos. Na mesma medida em que ajudam no
sustento diário, seja de boy, seja de drag, também podem suscitar rup-
turas. As jovens drags precisam enfrentar o desafio de manejar suas
carreiras, amizades e afetos para conservá-los e progredir na carreira.
Jane nos mostrou como se deu a tessitura das suas relações fami-
liares. Seu relato é interessante para pensarmos o lugar que a família
drag ocupa para seus membros. Ela abriu sua casa para receber as fi-
lhas e filhos que precisam de um suporte emocional, de um conselho
ou que buscam ali a realização do sonho de se montar, oferecendo am-
paro àqueles que não possuem o apoio de suas famílias biológicas em
decorrência da LGBTfobia.
Ao glamour do show, se une o desconforto de seguir uma viagem
em pé. O luxo das vestimentas apresentadas não está dissociado da
improvisação coletiva. A precisão dos corpos moldados com sutiãs,
calcinhas e fitas adesivas está em sintonia com o desconforto causado
por sondas ou lesões corporais. E o riso, sucesso, fascínio, admiração
e close conquistados em cima do palco dialogam, de uma forma ou de
outra, com a instabilidade econômica vivida, o perigo da violência, os
padrões corporais perseguidos com maquiagens e perucas e a ausên-
cia de relações de trabalho mais formalizadas.

199
REFERÊNCIAS
BAILEY, Marlon. Engendering space: Ballroom culture and the spatial practice of
possibility in Detroit. Gender, Place & Culture: A Journal of Feminist Geography, v. 21,
n. 4, 2013, p. 489-507.
BENEDETTI, Marcos Rodrigues. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de
Janeiro, RJ: Garamond, 2005.
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Londres:
Routledge. 1990.
CARSTEN, Janet, Cultures of Relatedness: New Approaches to the Study of Kinship.
Cambridge: Cambridge University Press, 2000
CARSTEN, Janet. After Kinship. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
COOK, Matt. London and the Culture of Homosexuality, 1885 – 1914. Cambridge:
Cambridge University Press, 2003.
COOK, Matt. Queer Domesticities: Homosexuality and Home Life in Twentieth-Century
London. London: Palgrave MacMillan, 2014.
FONSECA, Cláudia. De afinidades a coalizões: uma reflexão sobre a ‘transpoliniza-
ção’ entre gênero e parentesco em décadas recentes da antropologia. Ilha: Revista de
Antropologia, v. 5, n. 2, 2003, p. 5-31.
GUIMARÃES, Eros Sester Prado; CALIXTO, Maria Eugênia Perez. “O que compra
alguém no largo: identidades e homossociabilidades no largo do Arouche domingo
à noite”. In: Anais do Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de
Gênero da ABEH, v. 1, n. 1. Salvador: UFBA, 2012, p. 1-13.
hooks, bell. “Homeplace: A Site of Resistance”. In ___. (org.). Yearning: Race, Gen-
der, and Cultural Politics (1991), Londres: Turnaround. 1991, p. 45-53.
LOBERT, Rosemary. A palavra mágica: A vida cotidiana do Dzi Croquettes. Campinas:
Unicamp, 2010.
MASCARENHAS NETO, Rubens. Da praça aos palcos: caminhos da construção de uma
carreira drag queen. Salvador: Devires, 2020.
NEWTON, Esther. Mother Camp: Female Impersonators in America. Chicago: Univer-
sity of Chicago Press, 1979.
PARIS IS BURNING. Direção de Jennie Livingston. EUA: Academy Entertainement
Off White Productions e Miramax Films, 1990. DVD (71min) Son. Col. Inglês.
PERILO, Marcelo. Sob o impacto da visibilidade: juventude, (homo)sexualidade e mudan-
ça social. Tese (Doutorado em Antropologia Social) Programa de Pós-Graduação

200
em Antropologia Social – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Estadual de Campinas, 2017.
SANTOS, Joseylson Fagner dos. Femininos de montar - Uma etnografia sobre experiên-
cias de gênero entre drag queens. 2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia So-
cial), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2012.
SOLIVA, Thiago Barcelos. A Confraria gay: um estudo de sociabilidade, homossexualida-
de e amizades na Turma OK. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia),
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.
TAMAMOTO, Vinícius. Jovens gays da periferia se reúnem em ‘famílias’ de ativis-
mo e diversão, BBC Brasil, São Paulo, 23 de janeiro de 2016. Disponível em <http://
www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160119_familias_lgbt_sao_paulo_
vt_rb> (Acesso em 18 de agosto de 2016).
VENCATO, Anna Paula. Sapos e princesas: prazer e segredo entre praticantes de cross-
dressing no Brasil. São Paulo: Annablume, 2013.
VIVA. Direção de Paddy Breatnach, Irlanda: Treasure Entertainment, Radio Tele-
físÉireann (RTÉ), Windmill Lane Pictures, Island Films e Irish Film Board, 2015.
Versão digital (100min). Son. Col. Espanhol.
WEEKS, Jeffrey; HEAPHY, Brian; DONOVAN, Catherine. Same-Sex Intimacies: Fa-
milies of Choice and Other Life Experiments. Londres: Routledge, 2001.
WESTON, Kath. Families we choose: Lesbians, gays, kinship. Nova Iorque: Columbia
University Press, 1997.
ZANOLI, Vinícius. Bradando contra todas as opressões: ativismos LGBT, negros, popula-
res e periféricos em relação. Salvador: Devires, 2020.

201
ORÁCULOS DISCOTEQUE: ORIENTACIÓN
SEXUAL, CLASE SOCIAL Y VIOLENCIAS
EN LA ÉPOCA DE LA GUERRA
INTERNA DE EL SALVADOR
Amaral Arévalo 1

La década de 1970 en El Salvador, a nivel político, se caracterizó


por la consolidación del poder de los militares junto a la oligarquía
por medio de fraudes electorales; y al mismo tiempo, existió una di-
versificación de la resistencia social. Ante el cierre de espacios demo-
cráticos legítimos, nuevos actores sociales surgieron; organizaciones
político-militares y frentes revolucionarios de masas; tuvieron como
objetivo impulsar la lucha armada popular para la toma del poder po-
lítico. Entre estos nuevos actores cabe destacar a las Fuerzas Populares
de Liberación (FPL), el Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP), la
Resistencia Nacional (RN) y el Partido Revolucionario de los Trabaja-
dores Centroamericanos (PRTC). A lo largo de toda la década de 1970
existieron disputas teóricas y militares entre estas organizaciones y
todas las anteriores con el Partido Comunista Salvadoreño (PCS) que
no deseaba modificar su postura de toma del poder por la vía elec-
toral-democrática. Pero tras los fraudes electores de 1972 y 1977, la
llegada al poder del General Humberto Romero y el aumento de las

1.  Investigador asociado del Centro Latinoamericano en Sexualidad y Derechos Humanos


(CLAM/UERJ). Postdoctorado en Salud Colectiva y especialista en Género y Sexualidad
(IMS/UERJ), Doctor y Máster en Estudios Internacionales en Paz, Conflictos y Desarrollo
(Universitat Jaume I), Licenciado en Ciencias de la Educación (Universidad de El Salvador).
E-mail: amaral.palevi@gmail.com

203
acciones represivas; la lucha armada fue aceptada por el PCS como la
única opción posible para generar cambios estructurales en el país al
final de la década de 1970.
En 1979 se ejecutó un golpe de estado por parte de militares jóvenes.
Esta acción fue una última tentativa para evitar la eclosión de la guerra
interna por parte de sectores reformista. En marzo de 1980 fue martiri-
zado San Óscar Arnulfo Romero, que era la única voz pública disiden-
te al régimen que podía denunciar la represión social que experimen-
taba la sociedad. Los militares y la oligarquía pensaron que el martirio
de San Romero disuadiría al movimiento revolucionario de emprender
una acción militar contra el régimen. Sucedió lo contrario. Las diferen-
tes organizaciones de resistencia populares-político-militares, dejaron de
lado sus diferencias y problemas, unificándose en una sola organización:
Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN). El 10 de
enero de 1981 se lanzó la primera ofensiva armada en el país, iniciando
12 años de una cruenta guerra interna que dará como saldo histórico
más de 75,000 muertes, más de 1 millón de salvadoreños desplazados y
la consiguiente fractura social generada por la violencia armada.
La vida de las personas de la disidencia sexual y género se desarrol-
laba paralelamente entre los procesos de represión política, el accio-
nar de los escuadrones de la muerte2 y la guerra interna. En este tex-
to, que metodológicamente comprende entre los años de 1976 hasta
la firma de los acuerdos de paz en 1992, conoceremos cómo iniciaron
algunos espacios de encuentro y socialidad3 pública para personas ho-

2.  Los escuadrones de la muerte fueron grupos organizados clandestinos con conexiones
con los cuerpos represivos del Estado que se dedicaban a realizar acciones paralelas o encu-
biertas contra la población organizada y civil. La estrategia de terror de los escuadrones de
la muerte para disuadir a la población en el involucramiento de las organizaciones sociales
era la realización de procesos selectivos de eliminación de personas y la exposición de sus
cadáveres con muestras de tortura en vías públicas de constante tráfico, como la carretera
Panamericana que atraviesa el país de occidente a oriente y/o en espacios naturales como
la zona de lava volcánica petrificada del volcán de San Salvador conocida como El Playón.
3.  Esta categoría la comprendo como el simple interés de estar juntos con pares identitarios
semejantes (VEGA, 2015).

204
mosexuales de clase media y trabajadores profesionales, por medio
de la inauguración de Oráculos Discoteque en San Salvador en 1976.
Tomando como guion las narrativas escritas en Nuevo Mundo, órgano
publicitario de Oráculos, se discutirán temáticas como el surgimiento
del VIH-SIDA en el país, la definición de identidades al interior de la
Comunidad Gay Salvadoreña y los procesos de represión militar que los
comensales de Oráculos experimentaron a nivel metropolitano.

Oráculos discoteque: “la casa de todos”

Oráculos Discoteque se creó en el año de 1976 y su fundador fue


Julio Saade4. Julio es originario de la ciudad de Santa Ana, emparen-
tado con familias productoras de café de la zona Occidental del país.
Se graduó de ingeniero industrial en la década de 1970 y después en
artes plásticas, ambos títulos obtenidos en la Universidad de El Salva-
dor. En la década de 1970 trabajó para una empresa internacional de
textiles radicada en el país. En el año de 1976 abrió Oráculos Discoteque
(GAYELSALVADOR, 2008).
La idea de creación de Oráculos nació ante la necesidad de un lu-
gar para reunirse con un grupo de amigos, ya que no había espacios
públicos para que hombres gay de clase media, a no ser en las casas
de cada uno de ellos, con el consiguiente escrutinio familiar o de los
vecinos. En un viaje que realizó a San Francisco, California en 1974,
visitó varios bares “gay” y la idea de replicar algo similar en el país
quedó al interior de su mente. Esta idea se concretizó en 1976 con la
apertura de Oráculos.

4.  Solicité en diferentes momentos realizarle una entrevista a Julio Saade; sin embargo, él no
accedió a dicha petición.

205
Imagen I - Publicidad de Oráculos

Fuente: Diario El Mundo, 14 de diciembre de 1979, p. 55.

El surgimiento de Oráculos tuvo una clara motivación de romper


el modelo de silencio-tabú-injuria de la homosexualidad en el país.
Joaquín Cáceres (2014), activista LGBTI+ y Derechos Humanos so-
bre ser disidente sexual en la década de 1980 comentó:

Nunca manifesté mi orientación sexual gay, aun trabajando en una orga-


nización de Derechos Humanos, por los mismos prejuicios que siempre
existían, ocultaba mi orientación sexual, mis encuentros los hacía clan-
destinamente. Por ejemplo, cuando íbamos a situaciones de diversión,
íbamos a casas particulares, hacíamos fiesta, bailamos, había licor y los
encuentros, ya sea sentimentales o sexuales, pero todo se hacía de forma
clandestina.

En esa misma tónica, Morena Valle (2019), empresaria LGBTI+


comentó sobre los prejuicios y las injurias que las mujeres lesbianas
podían padecer:

206
Tenía miedo, en esa época todo era tabú, era de salir a la calle y recuerdo
que me gritaban “marimacha”, cosas feas, cosas vulgares. Yo sentía que
me estallaba todo cuando escuchaba eso. Tenía miedo de que le dijeran a
mi papá, porque era bastante machista.

Con la inauguración de Oráculos estaríamos ante un impulso pri-


migenio de visibilidad social positiva, en el cual la homosexualidad
trataría de salir de los espacios clandestinos, marginales y privados.
Desde la década de 1940 se puede afirmar que existía una “visibilidad
social” de hombres homosexuales, únicamente que esta estaba res-
tricta a espacios marginales, marginalizantes y en contexto de trabajo
sexual de calle en el sector conocido como La Praviana en el centro
histórico de San Salvador; y que mayoritariamente, transitaban per-
sonas de bajo recursos económicos y en contadas ocasiones, traba-
jadores profesionales y empleados públicos de nivel medio. Para la
burguesía, sus encuentros sexuales disidentes se realizaban a fuera
del país principalmente. Con Oráculos esos trabajadores profesionales,
empleados públicos y algunas personas de la burguesía, tendrían un
espacio para su socialidad sin tener la preocupación o temor de estar
en el centro de San Salvador, lugar que cada lunes era objeto de algu-
na crónica roja en los periódicos de esa época.
En 1993, por medio de una crónica periodística (AYALA, 1993, pp.
7-9), se realizó un registro cotidiano de lo que sería una noche en Orá-
culos Discoteque y los comensales que asistían. La crónica inició a las
10:00 p.m. en la entrada de Oráculos, en donde los reporteros negocia-
ron su entrada al lugar. Al entrar indicaron que era “un mundo de pe-
numbra, música y luces”. Observaron un pequeño espacio en forma-
to de sala de estar, contiguo a este se encontraba la barra y la mayor
parte del pequeño espacio era la pista de baile. Las paredes estaban
tapizadas con espejos y en un extremo se encontraba una bandera
del Arco Iris en una asta metálica. Sobre los comensales sobresale la
descripción con un claro marcador de clase social:

207
A diferencia de los travestis de la 2da. Avenida [zona de La Praviana],
aquí nadie viene vestido de mujer. Algunos incluso lucen unos bigotes
espesos, muy varoniles, y su porte musculoso jamás revelará que son
“gays”. […] Y ¡quién lo iba a decir! De corbata y en pantalones de tela
fina, atraviesa el umbral el médico que alguna vez recetó a alguno de
nosotros medicamentos para la tos (AYALA, 1993, p. 8).

La ubicación de Oráculos en el Condominio “Los Héroes”, el edificio


más alto de la capital para ese momento histórico, sobre la central ave-
nida capitalina del mismo nombre; daba un mejor acceso para personas
profesionales que deseaban evitar, probablemente, los riesgos sociales
de visitar los puntos de encuentro marginales del centro de San Salva-
dor, pero que necesitaban un espacio de encuentro. Oráculos, nació, y
no se puede negar, desde el privilegio de pertenecer a una clase social
acomodada; no obstante, se debe de dejar claro también, Saade y los
comensales asiduos a Oráculos, aunque tuvieran condiciones económi-
cas mejor que la mayoría de la población, esto no impedía que fueran
objeto de discriminaciones por su orientación sexual y expresión de gé-
nero. Por tal circunstancia, al abrir Oráculos, en un primer momento
fue con una fachada heterosexual, la cual con el pasar de los primeros
años se fue diluyendo. La inauguración de Oráculos fue un acto de va-
lentía que se le debe de reconocer a Julio Saade en todo momento.
El nombre de Oráculos surgió de la idea de un oráculo mitológico de
la Grecia Clásica, en el cual, según la información que Saade proporcio-
nó, era el lugar “donde se agrupan todos los signos del zodiaco, lo cual
significaba mucho en ello, entrábamos todos” (GAYELSALVADOR,
2008). Al respecto William Hernández (2014), activista LGBTI+ y de
Derechos Humanos, sobre ese carácter abierto de Oráculos comentó:

Gay que no pasó por Oráculos de nuestra época no es gay. Oráculos


era la casa de todos, no era una disco cualquiera, donde se reunían
los amigos, la gente era como era, luego surgieron muchos espacios

208
comerciales, pero en Oráculos si no tenías dinero, le decías a la “Julia”:
“mira quiero entrar, pero no tengo dinero”, ella decía “¡hay estos hijos
de putas pobres!” …no se negaba el acceso.

En El Salvador, no había una ley que prohibiese taxativamente las


prácticas sexuales entre personas del mismo sexo; pero existía la Ley
de Estado Peligroso que podía ser accionada para censurar cualquier
indicio público de afecto o relación que superara la amistad entre per-
sonas del mismo sexo. Los cuerpos represivos del Estado podían ser
accionados para reprimir cualquier actividad que fuera catalogada
como contraria a la moralidad pública. Al mismo tiempo, el temor
a revelar la orientación sexual a sus familias era grande. Lo anterior
era parte de ese modelo de silencio-tabú-injuria. Este modelo provo-
caba el aislamiento y soledad en personas de la disidencia sexual y de
género, como el caso de Jared (2017) hombre gay que en la década de
1980 comentó como era ser “diferente” en una sociedad de “norma-
les” bajo todos esos dispositivos de vigilancia y represión:

La información me hizo mucha falta, de hecho, una situación como agó-


nica, vivir durante ese período y sentirse aislado, porque creo que era
por la falta de información y acceso a ella, y una educación heteronor-
mativa dominante es precisamente sentirse aislado, sentirse que se es un
ser extraterrestre y que no existe nadie más.

En ese contexto de vigilancia y represión, Oráculos -según comentó


Saade- quedó funcionando como una discoteca heterosexual, “pero a
la medianoche podían bailar parejas del mismo sexo, las parejas hom-
bre-mujer no se retiraban y muchas de ellas iniciaron los comentarios
en todo nivel” (GAYELSALVADOR, 2008). Los dos primeros años de
funcionamiento fueron los mejores, después que los rumores de que
era una discoteca donde parejas de mismo sexo podían estar juntas, la
clientela comenzó a disminuir.

209
Jared me informó que al interior de los círculos sociales de clase me-
dia/media alta, la existencia de Oráculos era conocida con claras con-
notaciones negativas, incluso al interior de centros educativos privados
donde acudían los hijos e hijas de dichas clases sociales, operaban los
chistes y bromas pesadas que manifestaban hacía un sujeto estigmatiza-
do por los otros: “vos que sos maricón te vas a meter a Oráculos, ¿ver-
dad?”. Ese tipo de expresiones, si bien es cierto era una discriminación,
pero también fue una forma con la que se dio a conocer la existencia de
este espacio, y como afirmó Jared: “la curiosidad quedaba”.
Para sortear la baja de clientes, surgió una alianza estratégica con
Pandora’s Box de Guatemala para traer strippers de Miami, lo cual fue
un éxito. No obstante, debido a los altos costos para realizar dicha
actividad no se realizó en ningún otro momento. En el contexto de
recrudecimiento de la represión política a los albores del inicio de la
guerra, Oráculos padeció los infortunios de este periodo histórico:
“Luego vino un incendio que destruyó casi por completo la disco, in-
cendio que nunca se supo de donde provenía. Oráculos permaneció
cerrado por 2 años” (GAYELSALVADOR, 2008).

1980: Construyendo una comunidad

En 1982 Oráculos reabrió. Para volver a traer el interés del público


se optó por la realización de espectáculo de travestis (Imagen 3). Saa-
de especificó que no tenía experiencia sobre estas actividades, y que
únicamente conocía a los “homosexuales” que se encontraban en la
Praviana y que ejercían el trabajo sexual de calle, denominado por
Saade como “fichar” (GAYELSALVADOR, 2008). Oráculos, en este
caso también fue un instrumento pedagógico sobre la construcción
de identidades sexuales y de género en esa época.
En Nuevo Mundo, instrumento publicitario de Oráculos de elabora-
ción manual y de un costo simbólico de un colón de la época, además
de dar a conocer las actividades que se desarrollaban en la discoteca

210
mes a mes, sirvió para educar a los comensales de Oráculos sobre
orientación sexual, identidad y expresión de género, época en la cual
la circulación de información no discriminativa era muy limitada.
Nuevo Mundo trató de satisfacer la necesidad de tener referentes
propios positivos de lo que era la disidencia sexual y de género en esa
época. El pensamiento discriminador hegemónico, reducía las identi-
dades y prácticas sexuales disidentes al terreno de lo pecaminoso, per-
verso y malo. Por tal motivo, Nuevo Mundo fue un espacio, más que
publicitario, contrahegemónico que luchaba en derribar concepcio-
nes discriminadoras sobre la sexualidad, género y la homosexualidad;
dando a sus comensales la oportunidad de poder construir referentes
identitarios diferentes a los que circulaban en la sociedad. Uno de los
temas recurrentes fue sobre identidad y expresión de género, enmar-
cado en la diferenciación entre “travestí” y “trasexual”.

Imagen II - Desfile de modas en Oráculos Discoteque – circa 1987

Fuente: Cortesía del Archivo de Memoria Histórica LGBTI- Amate El Salvador

Saade realizó una primigenia definición sobre la identidad transe-


xual, nombrada como “trasexual” (SAADE, 1989a, abril). Para lograr
su objetivo, contrapuso la identidad “travestí” a la de “trasexual” por
medio de la modificación corporal. Transexual en este caso se adujo

211
que poseería los órganos de una mujer biológica, sabemos que este
tipo de operaciones en ese momento no se realizaban, a lo sumo se
realizaba una vaginoplastía y la colocación de senos artificiales. El
colocar un útero a un cuerpo biológico masculino se asumía como
una posibilidad por parte Saade y los comensales de Oráculos. A nivel
social, fuera de Oráculos (DIARIO EL MUNDO, 1979, p. 50), la iden-
tidad sexual de transexual era asociada a ser “nuevas evas”, “tránsfu-
gas de la virilidad” o “mutación” por querer adecuar el cuerpo a la
identidad y expresión de género autoasumida, por medio de cirugías.
Por otra parte, travesti, en ese momento histórico, sería un proceso
de construcción social con el fin de realizar un espectáculo o entre-
tenimiento (SAADE, 1989a, abril). Esto no implicaba una modifica-
ción corporal permanente, sino que sería una acción momentánea
para imitar a una mujer, sobre todo cantantes populares de esa épo-
ca como Rocío Jurado, Yuri, Pimpinela, María Conchita, Yolanda del
Río, Pointer Sisters, entre otras.
Al inicio de la década de 1990, los medios de comunicación escri-
ta entraron en los procesos de construcción de identidades, al tratar
de definir conceptos e identidades sexuales y de género de forma
discriminatoria (Diario El Mundo, 1991: 13). Por ejemplo, Trans-
vestismo, fue definido como la utilización de ropas del sexo opues-
to, siendo más hombres que mujeres, ya que las mujeres tenían la
libertad de utilizar ropa de hombres más fácilmente. El sujeto indi-
vidualmente fue designado como “transvestista”, este no tendrían el
deseo de cambiar de sexo, ni de formar relaciones homosexuales. Su
“desviación” consistía únicamente en sentir placer vistiéndose como
acostumbra a vestirse el sexo opuesto. También encontramos la de-
finición de categorías autóctonas que entraron en desuso cotidiano
como Nagüilon (DICCIONARIO POPULAR SALVADOREÑO, 1989,
p. 3) siendo sinónimo de llorón, de persona que se pasa gimoteando
todo el tiempo, y por ende relacionado a ser homosexual. Culispipian
(DICCIONARIO POPULAR SALVADOREÑO, 1990a, p. 2), este es

212
un calificativo que se le aplicaba directamente a homosexuales; y el
concepto de Sodoma (DICCIONARIO POPULAR SALVADOREÑO,
1990b, p. 2), que al igual que en la época colonial (ARÉVALO; CAR-
RARA, 2020), no se restringe a personas de la disidencia sexual y de
género exclusivamente, sino que abarcaría la definición de una grite-
ría de personas, bulla o escándalo.
Retomando la categoría que Saade informó anteriormente, hom-
bres que ejercitaban el travestí que poseían un mejor nivel económico,
tuvieron en Oráculos una plataforma para manifestar su orientación
sexual y expresión de género, sin los riesgos que conllevaba estar en la
calle. La utilización del travestí como espectáculo, aunque no escapa
del patrón heterosexista binario, sirvió en este caso, para crear una
capsula de libertad de identidad y paz ficticia en cada noche que la
discoteca estaba abierta. El propio Saade desarrolló una identidad tra-
vestí: Rocío, aunque sus comensales le llamaban de Julia (MARTÍNEZ
ALFARO, 2007; HERNÁNDEZ, 2014).
En este proceso de construcción o de diferenciación de identida-
des, Saade creó el identificativo Comunidad Gay Salvadoreña (C.G.S.)
o Comunidad Gay de El Salvador. Este proceso de identificación, en
primer lugar, podemos notar una clara migración del concepto Gay
de Estados Unidos para El Salvador. Como ya se comentó, el pro-
pio Saade visitó bares y discotecas en San Francisco y de ahí posi-
blemente lo trasladó a El Salvador. Tomando en consideración el
componente de clase social, esta identificación pudo ser utilizada
para resignificar el ya conocido “afeminado” utilizado en las clases
medias y altas para referirse a hombres homosexuales, y al mismo
tiempo, analíticamente, “gay” fue posiblemente interaccionado
para distanciarse del concepto “homosexual” el cual era utilizado,
socialmente, para identificar a hombres que ejercían el trabajo se-
xual de calle con indumentaria, actitudes y ademanes femeninos
en diferentes lugares de San Salvador como La Praviana. Así, tan-
to dueño, equipo de trabajo y los asiduos comensales de Oráculos

213
constituyeron esta primera categoría de autoidentificación colecti-
va como Comunidad Gay Salvadoreña.
La utilización de la categoría “Comunidad” hace referencia a
la creación y utilización de redes afectivas al interior de un colec-
tivo humano específico, en el cual se presentan acciones de soli-
daridad, empatía y acogimiento; estas características las cumplía
Oráculos. Como ya se mencionó, la falta de ingresos económicos
no era un impedimento para pasar una noche al interior de Orá-
culos, en la Comunidad Gay Salvadoreña todos cabían, ya que Orá-
culos era “la casa de todos” donde se podían encontrar personas
de cualquier clase social. Para lograr atraer nuevos clientes, y que
estos sintieran algún tipo de seguridad para ingresar en este es-
pacio, Saade hizo uso de periódicos de circulación nacional, en el
cual colocaba un pequeño anuncio sobre Oráculos. Los dos ejem-
plos de anuncios recuperados muestran la evolución discursiva de
este espacio social. Para 1979 la discoteca fue descrita como “nue-
vo mundo” (Imagen Nº 1), y una década después, en medio de la
guerra, únicamente se manifestaba que la discoteca estaría abierta
(Imagen Nº 2).

Cuerpos represivos y Oráculos

La vida de personas de la disidencia sexual y de género, al igual


que en otros países de América Latina, era sumamente difícil; sin em-
bargo, a toda esa carga de injurias, clandestinidad, silencio y tabú que
representaba la homosexualidad, se le debe de acrecentar el peligro
de vida que representaba estar en un país con una cruel guerra que
era lo cotidiano de todos los días. Oráculos y sus comensales no fue-
ron la excepción de padecer ultrajes provocados por los cuerpos de
seguridad del Estado. En una nota publicada en Nuevo Mundo, Saade
relató una de las tantas veces que los cuerpos de seguridad hicieron
intervenciones en Oráculos:

214
El pasado viernes 28 de julio, la vida nocturna de San Salvador se vio
alterada, debido a que miembros de cuerpos de seguridad, irrumpían
en los Centros Nocturnos de la capital, llevándose a toda persona que
estaba dentro y fuera de ellos, sin pedir ninguna identificación, actuaban
directamente, el hecho era para atrapar persona no-gratas antes de las
Fiestas Agostinas de nuestra capital. Ciertos elementos que integraban
estos cuerpos de seguridad soltaban frases hirientes para nuestro caso,
lugar gay y donde se practica el travesti (SAADE, 1989, julio).

Tomemos como verdadero que este tipo de acciones se realizaban


con cierta periodicidad al interior de la capital, en este caso, por ser el
año de 1989, considero que pudo haber sido una acción contrarrevo-
lucionaria de la inteligencia de estado que tenía conocimiento de una
posible ofensiva que se realizaría en ese año. Por tanto, se puede asumir
-al igual que Saade-, que no fue algo dirigido únicamente a Oráculos
Discoteque. Las injurias e insulto por parte de los cuerpos de seguridad
eran algo común en ese momento, parte de su forma de actuar en esta
época de guerra. Jared (2017) comentó sobre este tipo de acciones:

Yo recuerdo, que uno llegaba al espacio -este que era muy pequeño-,
donde uno estaba bailando, y de repente entraba la guardia/ejercito ahí,
y entonces toda la gente ahí viendo un ojo hacia la puerta y otro en el
baile, pero era muy incómodo y tenso, porque uno no sabía si lo llega-
ban a ver como animal raro o se iba iniciar una requisa u otras cosas […]
También sé qué llegaban a traer personas en los camiones, para confron-
tarlos después con los padres.

Esos momentos fueron de incerteza absoluta, incómodos y de alta


tensión, por no saber el objetivo de la presencia de los militares aden-
tro de Oráculos. A las hipótesis que plantea Jared sobre la llegada de los
cuerpos de seguridad para “verlos como animales raros”, hacer una
requisa u otras cosas, considero que “otras cosas” era lo que llegaban

215
hacer. Ahora queda la pregunta ¿qué eran esas “otras cosas”? Parte de
la respuesta se encuentra en la última frase de Jared: coerciones eco-
nómicas o políticas. Personas eran sacadas de Oráculos para confron-
tarlas con los padres. Coloquemos como hipótesis, antes de confron-
tarlos, podían exigir algún tipo de prebenda para evitar ese disgusto a
la familia; en el caso que no se aceptara, se podía optar por solicitar a
la familia, después de saber de las acciones de su hijo o hija, algún tipo
de regalía para evitar dar conocimiento público del nombre de ella o
él. Sobre la posibilidad de coerciones políticas, William Hernández
(2014) indicó la existencia de personas con algún tipo de influencia o
poder político:

La guardia llegaba, le sacaba a toda la gente de la disco y después Julio


con todo lo que había ganado la noche anterior, pagaba la fianza de to-
dos sus clientes, y pagaba un carro para que todos sus clientes los lleva-
ran a la discoteca, muchos de ellos eran travestis y travestis importantes,
muchos de ellos eran jueces, policías y abogados que ella los defendió,
nunca expuso ningún cliente.

Asumamos esta hipótesis, un alto funcionario público era encon-


trado en Oráculos, con esta información, si este personaje tuviera
enemigos políticos, debió de haber sido fácil conseguir algún tipo de
prerrogativas políticas o económicas, para evitar dar publicidad a los
medios de comunicación con -posibles- titulares como: “Un alto fun-
cionario se encontró en una discoteca de homosexuales”. Pero, tal vez
la respuesta más obvia sea la verdadera, como expresó Mario Martí-
nez Alfaro (2007) en su blog: “[…] las corruptas policías municipal y
nacional hacían redadas en las calles y que con frecuencia entraban
a la discoteca y arrestaban a los homosexuales sin ningún delito que
imputarles, simplemente el hecho de ser gay”.
Cómo estrategia de supervivencia, Saade elaboró una narrativa
higienista, antisubversiva y no-sexual por medio de su lema de “NO

216
DROGAS – NO ARMAS – NO SEXO”. Con ello realizaba un proceso
de prevención para evitar incursiones militares continuadas al interior
de la discoteca. Otra de las acciones fue incorporar a elementos de los
cuerpos de represión en las actividades de Oráculos; como ejemplo, la
entrega de premios a mejor show, en el cual miembros de los cuerpos
de seguridad fungieron como jurados (SILVA, 1988, julio). Al final,
se estaba en medio de una guerra, y todas las estrategias eran válidas
para poder sobrevivir un día más.

¿Una comunidad que crece? Lugares de encuentro en la déca-


da de 1980

A pesar de estar en un contexto de guerra, la necesidad del encuen-


tro entre iguales se mantenía y otros espacios de socialidad y consu-
mo para el público homosexual se crearon. Uno de estos tuvo publi-
cidad en las propias páginas de Nuevo Mundo de Oráculos. Este lugar,
según la información que proporcionó Saade se llamó “The Place”
(SAADE, 1985, diciembre), y estuvo ubicado en la calle El Progreso
#3159 de San Salvador, su horario de funcionamiento era de 7 p.m. a
12 p.m. los días jueves, viernes y sábado, y por la frase publicitaria de
Saade “Un lugar en donde tú puedes hacer una pausa y brindar por
el fin de un día arduo de trabajo”, se puede asumir que se orientaba
a ser un “after office” para los trabajadores profesionales próximos
a esta zona de la capital. En la exclusiva Zona Rosa se comenta que
existió un café de nombre Le Encontre. Este fue un espacio encubierto
para que homosexuales trabajadores profesionales y algunas personas
de la burguesía pudieran relacionarse. De igual forma en las riveras
del Lago de Coatepeque se comenta la existencia de un rancho priva-
do en el cual su dueño era homosexual y permitía la entrada y estadía
de parejas de hombres.
Aunque en un primer momento, pueda parecer que estos lugares
eran frecuentados por un tipo específico de clase social, Jared (2017)

217
indicó la existencia de una movilidad y tránsito de las mismas perso-
nas en los diferentes espacios que existían para encuentros sociales
o sexuales:

En la discoteca comencé a conocer personas, también en cines pornos,


ya que prácticamente era una rutina social de irse a meter al Darío [cine
en el centro de San Salvador], y la misma gente que encontrabas en el
Darío, después los encontrabas en la noche en la discoteca bailando, por
supuesto no te hablaban, eran personalidades diferentes.

Los cines en las ciudades y la presencia de personas de la disi-


dencia sexual se tiene conocimiento por medio de denuncias des-
de la década de 1960 (TRIBUNA LIBRE, 1960, p. 2; CRUZ, 1970, p.
33). Las palabras de Jared confirmarían esta situación en la década
de 1980, en cines específicos donde se exhibían películas conside-
radas pornográficas, dada la penumbra, se podía hacer algún tipo
de insinuación a una persona, si esta aceptaba, podía ocurrir algún
tipo de contacto sexual en el propio cine o salir de ese cine para
otro espacio y consumar un acto sexual. Aunque esto puede pare-
cer fácil, existían una serie de contradicciones como el propio Jared
manifestó: “Procurar el contacto sexual, era necesario hacer crui-
sing, levantarse a alguien, pero siempre con la culpa acuesta”. Al ser
un proceso clandestino, el miedo, era un compañero inseparable en
estas incursiones de “cruising”. En la terminología gay masculina
“Cruising”, se refiere al proceso de encuentro intencionado con una
posible pareja sexual en espacios públicos. Teniendo en considera-
ción esta definición, podemos comprender por qué se convertían
en “personalidades diferentes” aunque eran las mismas personas, ya
que cada espacio tenía sus propias dinámicas de interacción, en los
cines el silencio y contacto corporal predominaban y en la discoteca
la extroversión y una aparente felicidad.

218
Imagen III - Publicidad de Oráculos - 1989

Fuente: El Diario de Hoy, 28 de abril de 1989, p. 32.

Los lugares de cruising al aire libre, fuera de los cines del centro
de la ciudad, no se tienen registros en esta época. La razón de ello
se asume que fue debido a la guerra que vivía el país. Wockner, en
un reportaje sobre la “vida gay” en Centroamérica en 1990, informó
que “la escena gay salvadoreña consiste en un bar, Oráculos, que está
abierto los viernes y sábados. El cruising en las calles es poco común,
debido a una fuerte presencia militar en todo el país” (WOCKNER,
1990, p. 20 [traducción propia]). El hacer cruising con una persona
equivocada podría provocar ser catalogado como un “guerrillero” por
los cuerpos de seguridad y como “espía” por los “compas” de la guer-
rilla. En tal contexto era mejor no correr ningún riesgo de procurar
parejas sexuales fuera de los espacios conocidos de encuentro para
personas del mismo sexo. Bajo este mismo contexto, en esta época
no existió ningún espacio social o de consumo exclusivo para mujeres
lesbianas (ARTETA; POVES, 1999).
A lo largo de la década de 1980, en diferentes hoteles capitalinos,
espacios comerciales y deportivos se inauguraron saunas, las cuales
se especificaban poseer turnos diferentes de uso como “tarde para
caballeros” (LA PRENSA GRÁFICA, 1983b, p. 35) o ser únicamente
“para caballeros” (LA PRENSA GRÁFICA, 1983a, p. 18). Estos espa-
cios considero que fueron posibles lugares de cruising encubiertos

219
para profesionales trabajadores. Para algunos hombres de clase media
era posible transitar por Oráculos, cafés, bares y los cines del centro
de San Salvador en la procura de parejas sexuales; sin embargo, exis-
tía otro grupo de hombres que deseaba mantener en la más absoluta
clandestinidad sus prácticas sexuales con otros hombres. Las saunas
representarían una opción ideal para mantener la discrecionalidad,
pero al mismo tiempo la posibilidad de convenir algún tipo de contac-
to sexual entre los clientes de estos espacios. En la novela Heterocity de
Mauricio Orellana Suárez (2011) recreó la imagen de hombres en una
sauna de un hotel en la década de 1980, con “miradas furtivas” que
denotaban una búsqueda, pero al mismo tiempo no eran explicitas a
las demandas de sus deseos sexuales.

SIDA: un nuevo enemigo de la comunidad gay salvadoreña

A partir del año 1980 se comenzaron a registrar casos en hombres


homosexuales de una extraña condición que los llevaba a la muerte
en Estados Unidos. A partir de 1982 comenzó a circular información
sobre los primeros casos del Síndrome de Inmunodeficiencia Adquiri-
da – SIDA en los periódicos locales. Para 1984 se conocía la existencia
de un virus y su transmisión por medio del contacto sexual, incluso
se estudió la trayectoria sexual del “paciente 0” y se verificó la trans-
misión a 40 hombres en diferentes ciudades en Estados Unidos (AP,
1984, p. 25). El inicio de la epidemia de SIDA se estigmatizó nueva-
mente a los homosexuales al ser incluidos en la enfermedad de “Las
Cuatro H”: homosexuales, haitianos, hemofílicos y heroinómanos
(FLORES, 1985, p. 2).
En 1985 se dio la noticia de haber descubierto el primer caso de
SIDA en El Salvador en un hombre homosexual de 33 años que ha-
bía regresado de Estados Unidos cuatro meses antes de ser internado
en el Hospital Rosales (BELTRÁN, 1985, p. 21). Se informó que este
hombre sufrió una violación sexual en Estado Unidos. En la nota se

220
manifestó que este paciente en menos de una semana perdió 20 libras
de peso y otras consecuencias físicas del deterioro del sistema inmu-
nológico. Un país en guerra no poseía las condiciones para afrontar
esta nueva epidemia, no se contaba ni con la prueba Elisa para la de-
tección del virus. Para la confirmación de este caso fue necesario,
mandar la sangre a Estados Unidos para analizarla y pidiendo ayuda a
la Cruz Roja Internacional para este fin.
Dos meses después de este hecho, en Oráculos circuló información
sobre el SIDA. En la nota sobre la inauguración del nuevo local de
ambiente The Place en la Calle El Progreso, Saade informó que “Mien-
tras en otras ciudades, principalmente los Estados Unidos, los lugares
de “AMBIENTE” se cierran por pánico al “AIDS”, en El Salvador nace
un nuevo bar “EL LUGAR” “THE PLACE” (SAADE, 1985, diciem-
bre). Este comentario denota una actualización de lo que estaba ocur-
riendo a nivel internacional sobre esta enfermedad, y que los afec-
tados más visibles eran hombres homosexuales. También en el país
se llegó a considerar -primigeniamente- que únicamente los homose-
xuales eran portadores de la enfermedad, y que con su aislamiento el
problema del SIDA se podría acabar, después se pasó a comprender
que esta enfermedad se podría desarrollar en cualquier persona.
Desde 1985 se iniciaron tímidas acciones gubernamentales para de-
tener la epidemia. Una de esas acciones fue que el Batallón de Sanidad
Militar contará con un equipo médico móvil de 10 personas capacitadas
para dictar conferencias sobre este tema al interior de las guarniciones
militares y también se realizará trabajo con la población civil (LA NO-
TICIA, 1987a, p. 6). En esta época se argumentaba a nivel institucional
de que los casos de VIH reportados eran “importados” y que no existía
circulación comunitaria (LA NOTICIA, 1987b, Contraportada).
Para tratar de optimizar los pocos recursos disponibles en ese mo-
mento para detener la epidemia, se tenía que estimar la población de
posibles afectados. Para el segundo quinquenio de la década de 1980
se informó que en San Salvador existían 4,500 homosexuales (LA

221
PRENSA GRÁFICA, 1987, p. 13). Esta cifra, aunque importante, no
era apegada a la realidad, ya que estaría relacionada al ejercicio del
trabajo sexual, y “homosexual” en esta época aludía a una identidad
social determinada y no a la orientación sexual de una persona, ni
mucho menos a sus prácticas sexuales; por lo cual existió un subregis-
tro de hombres que tenían encuentros sexuales con otros hombres.
Para 1987 las autoridades del Ministerio de Salud estimaban 7,500
caso de infección (CORNEJO, 1987, p. 18).
En 1988 se produjo el primer trabajo de grado conocido sobre di-
sidencia sexual y de género en el país, relacionando el VIH y la ho-
mosexualidad (VILLATORO; QUINTERO, 1988). Como primer
elemento de interés se encuentra el título de esta obra, ya que la ho-
mosexualidad no se manifestó como “orientación sexual”, y sí como
“práctica sexual”. En este estudio se contactaron 120 sujetos, pero al
final solo participaron 100 voluntarios con “características homose-
xuales”. Prácticamente fueron adolescentes y jóvenes los que partici-
paron en este estudio, muestra de ello era que el 40 % del total fueron
estudiantes universitarios, aunque también existieron profesionales
universitarios y no universitarios, estudiantes de bachillerato y de
educación básica, además de un 24% que no especificó su nivel aca-
démico. Otro aspecto relevante de este estudio fue la autopercepción
de aceptación o rechazo a la homosexualidad en El Salvador de 1987.
El mayor porcentaje de aceptación fueron los amigos, con un 86 %, y
el mayor rechazo se encuentra en la sociedad en general, con el 39 %.
Entre los lugares donde se desarrollaron las entrevistas encontramos
la discoteca Oráculos, aunque no se nombró explícitamente como uno
de los lugares donde se pasaron las encuestas, pero por las descripcio-
nes, rápidamente se da a conocer que fue el lugar para encontrar a
sus informantes.
Desde 1988 la temática SIDA parece que se volvió un tema recur-
rente al interior de Oráculos Discoteque. En un contexto, donde ser ho-
mosexual era discriminatorio y ahora con la epidemia del SIDA era

222
prácticamente una sentencia de muerte para un homosexual que es-
tuviera infectado. Publicaciones sensacionalistas no colaboraban en
la prevención, sino que aumentaban el pánico sobre esta enfermedad
y la estigmatización de los homosexuales salvadoreños de esa época
(GARCÍA, 1991, p. 7). Por tal circunstancia, al interior de Oráculos se
trató de generar un proceso interno de ayuda mutua entre sus co-
mensales. Este hecho se evidencia por este tipo de solicitudes:

Amigos Médicos: Necesitamos de tu colaboración danos tu nombre-nú-


mero de teléfono-dirección- donde podamos localizarte ya que, si eres
gay, hay más confianza en acudir a ti, por alguna enfermedad o chequeos
de rutina. La Comunidad Gay de El Salvador te lo agradecerá además si
nos puedes proporcionar folletos de ilustración de enfermedades vené-
reas – SIDA – etc. (SAADE, 1988, junio).

También se desempeñó una labor pedagógica al interior de Nuevo


Mundo, al igual como se hizo sobre las identidades sexuales y de géne-
ro, en esta oportunidad era sobre las formas de prevenir ser infectado
por SIDA (SAADE, 1988, julio):

- Disfruta de la vida sexual con una sola persona


- Evitando las relaciona sexuales con personas desconocidas
- Evitando el contacto sexual con personas enfermas de SIDA
- Usando condón
- Utiliza jeringas descartables
- No compartiendo objetos de uso íntimo personal con otras personas

Las acciones de alianza internacional para obtener mayor cliente-


la que se habían desarrollado con organizaciones de Guatemala en
el inicio de Oráculos, reorientaron su foco para tratar de contener la
expansión de la epidemia del SIDA. Tal como lo muestra la siguien-
te nota:

223
Recibimos una invitación de la Asociación Guatemalteca de Educación
Sexual, AGES-CA’SLEN para el certamen “MISS SEXY GAY 89-90” que
se llevará a cabo en KASHE DISCO BAR GAY (Coordinadora de cap-
tación de fondos y servicios), el día Sábado 26 de Mayo a las 8 ½ p.m.
y cuyos fondos será para la Asociación Beneficiada (C’ASLEN) quienes
están llevando un programa para la prevención del SIDA en Guatemala
(SAADE, 1989b, abril).

Posterior a la nota, se dan informaciones institucionales de la orga-


nización de Guatemala. Además, se informó que habría una delega-
ción de El Salvador integrada por Lady Winter (Sophy) y Silvana que
asistiría en representación de Oráculos Discoteque. Saade al final ma-
nifestó: “Esperamos que este evento sea todo un éxito por el fin tan
loable que lleva”.
En junio de 1989 se reprodujo un artículo informativo sobre el
SIDA en Nuevo Mundo (SILVA, 1988, junio). Dicho artículo fue colo-
cado por Roberto Silva, quien de forma voluntaria colaboró en la edi-
ción de ese número del boletín informativo. El artículo en cuestión se
tituló “Del SIDA”. Este reconstruyó una genealogía rudimentaria que
trató de establecer el inicio de la enfermedad y los procesos de investi-
gación que se realizaron por parte de diversas instituciones. Posterior-
mente, se pasó a enlistar los principales síntomas cuando la enferme-
dad avanzaba a un grado mayor de desarrollo. Para finalizar, aparte
de dar algunos consejos para minimizar los riesgos de infección, se
estableció que las personas asintomáticas eran el mayor riesgo para
propagar la enfermedad.
A pesar de todos estos esfuerzos organizativos e informáticos que
fueron realizados por Saade, considero que la epidemia avanzó entre
los comensales de Oráculos. Esta situación pudo provocar el acerca-
miento con representantes del Ministerio de Salud para realizar algún
tipo de intervención en el propio local de Oráculos. El propio Saade
reconoció que:

224
La década de los 80 se vio marcada por el aparecimiento del sida, como
todos sabemos. Los asiduos a Oráculos se resistían a escuchar conferencias
al respecto y siempre se me tildó que estaba loco, más no fue así a nivel
ministerial. Accedí a que el Ministerio de Salud nos brindara charlas sobre
el tema, esto por las tardes, una o dos veces por semana, y a la vez a reali-
zar la prueba a las personas que se la quisiesen hacer. Estos resultados, por
supuesto, eran confidenciales. Por primera vez, teníamos el apoyo de una
institución de gobierno y nos patrocinaron el evento de Miss Gay 89/90, lo
cual nos fue de mucha ayuda, la condición fue concienciar a la comunidad
a usar el preservativo (GAYELSALVADOR, 2008).

Por la presencia del SIDA, por primera vez, hombres homosexuales


fueron objeto de políticas públicas, aunque desde una perspectiva bio-
-médica de control social para prevenir que la enfermedad se propaga-
ra aún más; sin embargo, fue una política pública para un sector de la
sociedad que había estado invisible ante las acciones gubernamentales.
Sobre la participación del Ministerio de Salud en Miss Gay 89/90, en
Nuevo Mundo quedó registrada la siguiente información:

Amigos lectores: Este 30 de septiembre se llevó a cabo en Oráculos Dis-


coteque el máximo evento del año: la elección de Miss Gay El Salvador
89/90, contando con el patrocinio de CONASIDA por medio del Minis-
terio de Salud.
Diana Gabriela Mis Gay 89/90.
La misión de Miss Gay es representar al país a nivel internacional en esta
clase de eventos y además llevar un mensaje de la C.G.S. (Comunidad
Gay Salvadoreña) a nuestros compatriotas como es “no a las drogas” –
Usa Practica sexo seguro (SAADE, 1989, septiembre).

No obstante, la participación del Ministerio de Salud no se vio re-


ducida al patrocinio de este evento, se programó una conferencia so-
bre los nuevos datos estadísticos de “SIDA” en el país impartida por

225
la Dra. Delmy de Hernández. En ese mismo contexto, se informó la
llegada de correspondencia de Costa Rica sobre folletos que explica-
ban los riesgos de contraer SIDA y un libro sobre la comunidad gay
de Costa Rica, enviados por Tony Santiago y Amigos de la Asociación
de Lucha contra EL SIDA respectivamente. Para finalizar esa edición
de Nuevo Mundo se realizó un agradecimiento:

A CONASIDA por el patrocinio de este evento “Miss Gay 89/90” y sobre


todo a Dra. Delmy de Hernández por su campaña en la “Prevención del
SIDA”. La Comunidad Gay de El Salvador aprecia este gesto y tratará de
hacer cuanto esté a nuestro alcance para ayudar a nuestros amigos enfer-
mos y que nos necesitan (SAADE, 1989, septiembre).

A nivel internacional las acciones realizadas en Oráculos posible-


mente fueron publicitadas por el Ministerio de Salud como acciones
de prevención que se estaban desarrollando, aunque al ser cuestiona-
dos por reporteros internacionales sobre dichas acciones, no lograron
tener contacto con la “La Liga Gay y un grupo de travestis” que eran
supuestamente los grupos en los cuales incidía el Ministerio (WOCK-
NER, 1990, p. 20 [traducción propia]).

Reflexiones finales

En este Capítulo encontramos una primera ruptura del modelo


tradicional de silencio-tabú-injuria de la homosexualidad en El Salva-
dor. Julio Saade al abrir Oráculos Discoteque en 1976, desafió las nor-
mas sociales de la época, tanto de la sexualidad, el género y las reglas
de clase social. Con el surgimiento de Oráculos para muchos de sus
clientes fue el espacio para vivir su orientación sexual, proporcionán-
doles un sentido de vida inmediato; ya que la posibilidad de muerte
en medio de una guerra era tan constante, que las perspectivas a futu-
ro eran realidades oníricas de una utopía quimérica.

226
El surgimiento de este espacio de encuentro para homosexuales,
lesbianas y travestis en San Salvador se puede enmarcar, hasta cier-
to punto, en el fenómeno social de proliferación de organización de
grupos antes del comienzo de la guerra. Desde el análisis de luchas
de clase propuesto por Martín-Baró, “esa proliferación de grupos era
la prueba de que la creciente toma de conciencia de diversos sectores
sociales sobre sus intereses de clase buscaba su canalización organiza-
tiva en unidades grupales dinámicas […]” (MARTÍN-BARÓ, 2008, p.
221). Para el caso de Oráculos y el sentimiento de pertenencia que se
constituyó en este periodo, está muy alejado de los planteamientos de
intereses de clases, más bien se procuraba un espacio que brindara la
libertad de expresar la orientación sexual de sus clientes y propietario,
constituyéndose como un proceso de resiliencia para soportar el am-
biente hostil de la represión política previo al inicio de la guerra inter-
na que toda la población sufría y la liberación del peso asfixiante de
las normas homofóbicas de la cultura salvadoreña, aunque sólo fuera
por unas cuantas horas. Para Saade Oráculos representó:

Lo más satisfactorio que me ha dejado Oráculos es saber que los gays


tuvimos un lugar de encuentro y fuimos una familia. El tener Oráculos,
y sostenerla con mi sueldo de ingeniero, no me dejó la oportunidad de
ahorrar, pero no me arrepiento pues logré ser feliz parte de mi vida ha-
ciendo lo que quería (GAYELSALVADOR, 2008).

Martí-Baró mencionó en la década de 1980, la existencia del fenó-


meno contemporáneo de la “creciente beligerancia asumida por los
grupos homosexuales para ser socialmente reconocidos y aceptados
en su esquema alternativo de sexualidad” (MARTÍN-BARÓ, 2012, pp.
164-165), mencionando los casos paradigmáticos de cambio de sexo
en ese momento: el jugador de tenis René Richards que pasó a ser
conocida como Renée y de la artista española Bibi Andersen. No obs-
tante, en la realidad salvadoreña no se tenía una perspectiva en ese

227
momento de crear un movimiento social de reivindicación de dere-
chos. Para las personas de la disidencia sexual y de género indepen-
diente de la clase social, lo que importaba era sobrevivir a la guerra
interna como todos los salvadoreños de esa época. No obstante, con
el surgimiento del SIDA significó para las personas de disidencia se-
xual y de género un enemigo propio del cual tenían que defenderse
sin tener ningún aliado para ello.
En la época de la guerra interna no existieron espacios para dis-
cutir las manifestaciones disidentes de la sexualidad y el género en
los bandos de contiendas. En el ejército, realizar esta discusión era
imposible, a lo sumo se incluyó en las charlas de prevención de VIH
que dio el Batallón de Sanidad Militar, que una de las formas de trans-
misión del VIH era las prácticas sexuales entre hombres. Por su parte,
en las filas de la insurgencia, los temas sobre sexualidad no entraban
en las discusiones políticas, muy por el contrario, si una persona les-
biana u homosexual daba muestras públicas de su orientación sexual,
era algo anormal que no podía estar ahí, imposibilitado en ocasio-
nes a que este tipo de personas el ascenso a cargos de dirección, todo
lo anterior se ejemplifica perfectamente con las palabras de William
Hernández (2014): “Si en la montaña no parecías hombres, o te pisa-
ban5 o te mataban”. La participación de homosexuales y lesbianas en
los frentes insurgentes fue tolerada “[…] siempre y cuando no pertur-
baran la entrega a la causa y se mantuvieran en silencio” (VÁZQUEZ;
IBÁÑEZ; MURGUIALDAY, 1996, p. 189).
Cuando inició el periodo de postguerra en enero de 1992, nuevos
locales de socialidad comenzaron a surgir. El sector conocido como
la Prolongación de la Avenida Juan Pablo II, se consolido como un
enclave de comercio LGBTI+. Con la existencia de nuevas y varia-
das ofertas de entretenimiento, los comensales se fueron alejan-
do de Oráculos. La estocada final se produjo por medio de acciones

5.  “Pisar” y sus derivados son modismos salvadoreños para referirse al acto sexual.

228
delincuenciales de las Maras. Luego de 25 años de existencia, en 1999,
Oráculos Discoteque cerró. Este cierre, a nivel simbólico, marcó el ini-
cio de un nuevo modelo para comprender la homosexualidad en el
país, ya no desde el silencio-tabú-injuria; sino que desde un modelo
de visibilidad social. Nuevos aires de libertad sexual se auguraban en
la entrada del nuevo milenio; sin embargo, la alianza entre grupos
anti-derechos, fundamentalistas religiosos y políticos ultraconserva-
dores dieron marcha a una reforma constitucional discriminatoria
para prohibir las instituciones civiles del matrimonio y la adopción
a parejas del mismo sexo… pero esa historia es para ser contada en
otro texto.

Agradecimientos

Quiero dejar constancia de mi agradecimiento a Amate – El Sal-


vador por colocar a disposición su archivo histórico, del cual pude te-
ner acceso a los boletines de Nuevo Mundo. También agradezco a
las personas que me compartieron sus memorias para complementar
este texto.

REFERENCIAS
ARÉVALO, A.; Carrara, S. ¿La Sodoma del Reyno de Goathemala?: Sexualidad y
Género en la provincia colonial de San Salvador. VILLAPLANAS, A. (org.). Diversi-
dad sexual: Democracia y Ciudadanía. Alajuela: Editorial Guayacán, 2020, pp. 140-174.
ARTETA, A.; Poves, M. “Entrevista a Lilia García”. Revista Sorginak, nº 3, 1999,
pp. 26-30.
GAYELSALVADOR. La historia de Oráculos. Gaysalvador.com, 2008. Disponible en:
www.gayelsalvador.com/oráculos.htm Acceso en: 16 de abril de 2016.
MARTÍN-BARÓ, I. Acción e ideología: psicología social desde Centroamérica. San
Salvador: UCA Editores, 2012.
____. Sistema, grupo y poder: psicología social desde Centroamérica (II). San Salva-
dor: UCA Editores, 2008.

229
MARTÍNEZ ALFARO, M. (2007). Un monumento a la Tía Julia. Diariodeungaygua-
naco. 2007. Disponible en: http://diariodeungayguanaco.blogspot.com/2007/ Ac-
ceso en: 25 de noviembre de 2019.
ORELLANA SUÁREZ, M. Heterocity. San José: Ediciones Lanzallamas, 2011.
SAADE, J. Otro lugar “gay” en El Salvador. Nuevo Mundo, 1985, diciembre n° 5.
______. Médicos Amigos. Nuevo Mundo, 1988, junio.
______. El Sida se puede evitar. Nuevo Mundo, 1988, julio.
______. El Transexualismo. Nuevo Mundo. 1989a, abril.
______. Desde Guatemala. Nuevo Mundo. 1989b, abril.
______. Entérate. Nuevo Mundo, 1989, julio.
______. Varios artículos. Nuevo Mundo. 1989, septiembre. Archivo de Memoria Histó-
rica LGBTI- Amate El Salvador.
Silva, R. DEL SIDA. Nuevo Mundo. 1988, junio.
______. Crystal mejor show 88/89. Nuevo Mundo. 1988, julio.
VÁZQUEZ, N.; Ibánez, C.; Murguialday, C. Mujeres~Montaña. Vivencias de guerrille-
ras y colaboradoras del FMLN. San Cristóbal: Horas y Horas, 1996.
VEGA, D. Análisis del concepto de sociabilidad en las ciencias sociales. Revista ABRA,
vol. 35, nº 51, jun.-dic., 2015, pp. 1-13. DOI: http://dx.doi.org/10.15359/abra.35-51.6.
VILLATORO, M.; Quintero, R. El sida y su incidencia en el cambio de actitudes hacia la
práctica homosexual de la población masculina en la ciudad de San Salvador [Trabajo de
grado]. Licenciatura en Psicología. 1988. San Salvador, Universidad Francisco Gavidia.

Periódicos
AYALA, E. La ciudad duerme sobre el bien y el mal. La Noticia, 04 de diciembre de
1993, pp. 7-9.
AP. (1984). “40 personas contagió enfermo sexual EU”. Diario El Mundo, 04 de
abril, p. 25.
BELTRÁN, I. Descubren Primer caso de SIDA en El Salvador. El Diario de Hoy, 30 de
octubre 1985, p. 2, 21.
CORNEJO, J. El SIDA destrucción o mensaje. Diario Latino, 17 agosto de 1987, p. 18.
Cruz, M. La prostitución que debe ser perseguida. El Diario de Hoy, 13 de julio de
1970, p. 11, 33.

230
DIARIO EL MUNDO. Transexuales y “Nuevas Evas”. Diario El Mundo. 29 de sep-
tiembre de 1979, p. 50.
DICCIONARIO POPULAR SALVADOREÑO. Nagüilon. La Noticia, 22 de junio de
1989, p. 3.
_____. Culispipian. La Noticia, 2 de enero 1990a, p. 2.
_____. Sodoma. La Noticia, 14 de septiembre 1990b, p. 2.
FLORES, R. “El SIDA”. La Prensa Gráfica-Revista Dominical, 13 de octubre de 1985,
pp. 2-3.
GARCÍA, M. SIDA: 80% de la población salvadoreña estaría contagiada en el año
2000. Diario Latino, 13 de agosto de 1991, p. 7.
LA NOTICIA. Fuerza Armada tiene batallón anti-SIDA. 09 de junio de 1987a, p. 6.
_____. Tenemos SIDA importado. 16 de junio de 1987b, Contraportada.
LA PRENSA GRÁFICA. Anuncio. 17 de agosto 1983a, p. 18.
_____. Anuncio. 22 de octubre 1983b, p. 35.
_____. Médico señala causas de contagio del Sida. 18 de octubre de 1987, pp. 3, 13.
TRIBUNA LIBRE. Campaña contra la inmoralidad en San Miguel. 28 de agosto
1960, p. 2.
WOCKNER, R. Central American Gays Saving Lives. Bay Area Report, vol. 20, nº 39,
27 de septiembre 1990, p. 20.

Entrevista
JARED. Entrevista concedida a Amaral Arévalo. San Salvador. 2017.
JOAQUÍN CÁRECESoaquín Cáceres. Entrevista concedida a Amaral Arévalo. San
Salvador. 2014.
_____. Entrevista concedida a Amaral Arévalo. San Salvador. 2017.
MORENA VALLE. Entrevista concedida a Amaral Arévalo. San Salvador. 2019.
WILLIAM HERNÁNDEZ. Entrevista concedida a Lester, F. & Chávez, N. Archivo de
Memoria Histórica LGBTI- Amate El Salvador, 2014.

231
ENTRE QUARTOS: HOMENS BRASILEIROS
E TRABALHO SEXUAL EM LISBOA
Guilherme R. Passamani 6

Introdução

O presente capítulo reflete sobre o trabalho sexual de homens bra-


sileiros em Lisboa. Elenco o quarto dos trabalhadores sexuais como
local de partida desta reflexão. A partir das primeiras aproximações
com os interlocutores, percebi a centralidade dos quartos na vida co-
tidiana desses homens. Esse fio condutor leva-me a dois eixos que pa-
recem potentes à luz de debates interseccionais: a noção de estrangei-
ro, que articularia o ser/estar em uma nova cidade/país e as relações
daí advindas; os fluxos deles pela cidade para a realização do trabalho
sexual, quase sempre de quarto em quarto.
Dito de maneira muito breve, o tema de minha investigação atual
se ocupa do trabalho sexual de homens brasileiros na Europa, tenho
dado destaque àquilo que estou chamando de “primeira parada” des-
ses homens, que seria no chamado “mercado sexual português”. Des-
se tema amplo, advém uma série de questões outras, como os fluxos
migratórios, o processo de racialização destes sujeitos, a permanência

6.  Doutor em Ciências Sociais (Unicamp). Professor da Universidade Federal de Mato Gros-
so do Sul (UFMS). Atua no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) e
no Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais (PPGCult). Pesquisador associado ao
Núcleo de Estudos Néstor Perlongher (NENP-UFMS); Investigador do Centro em Rede de
Investigação em Antropologia (CRIA) no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. E-mail:
grpassamani@gmail.com

233
de relações constituídas a partir de um imaginário colonial e a parti-
cularidade dos brasileiros nesse contexto.
Desde o começo da investigação, já travei inúmeras conversas in-
formais com alguns interlocutores. Quase todas essas conversas fo-
ram realizadas nos quartos dos meus contatos de campo. Isso desper-
tou-me um alerta sobre como o quarto poderia ser relevante, central
eu diria, na vida deles. É importante frisar, segundo Christian Brom-
berger (2012), que as habitações, ou as casas, são um tema importante
e recorrente nas pesquisas antropológicas. Elas levam em considera-
ção diferentes olhares que aproximam arquitetura, tipologias habita-
cionais, estéticas etc. que problematizam o espaço compartilhado e/
ou vivido pelas pessoas em seus cotidianos (RUSSI e BRUM, 2019).
Dentre algumas questões que acabam por ser suscitadas, interro-
go-me a cerca de como a condição de estrangeiro e o fato de transitar
de forma muito particular pela cidade podem informar sobre os usos
e o consumo da vida urbana por parte desses homens? Na tentativa
de responder a esta e outras indagações, em um primeiro momento,
mobilizo reflexões no sentido de pensar a cidade, suas diferenças e os
“estrangeiros” que a constituem a partir de estratégias variadas. Em
um segundo momento, apresento os quartos de três interlocutores.
Por fim, proponho um diálogo teórico sobre os trânsitos e os fluxos
dos sujeitos da pesquisa. Sejam eles operados por meio de desloca-
mentos geográficos e/ou simbólicos.

Estrangeiros e a vida urbana das cidades

Georg Simmel (1990), no começo do século XX, compreendia o


estrangeiro a partir das experiências dos judeus, desde a errância e
a libertação em relação a um espaço geográfico determinado. O es-
trangeiro seria aquele sujeito que não estaria “preso”, “fixo” a um de-
terminado ponto. Ele não é apenas um viajante. É diferente. Ele não
está sempre de passagem, ele chega e fica, quem sabe muito tempo,

234
estabelece vínculos, cria relações. No entanto, a característica central
desse sujeito seria aquela relativa ao fato de que ele não é daquele lu-
gar, embora esteja naquele lugar. Tratar-se-ia de uma figura ambígua:
próxima e distante. Manteria algumas de suas características de ori-
gem, mas agregaria outras a partir das relações que iria desenvolven-
do aonde chegara. Portanto, a liberdade seria o valor por excelência
do estrangeiro. No final das contas, essa seria a sua grande vantagem.
O contexto propício para a atuação do estrangeiro seria a cidade.
Pode-se dizer que o estrangeiro, não necessariamente internacional,
mas aquele que chega a um lugar que não é o seu de origem, ajuda
a produzir uma outra dinâmica no local aonde chega. Essa mobilida-
de, então, seria um fator determinante para fazer com que a cidade,
geralmente grande e metropolitana, constituísse um novo modo de
vida caracterizado a partir destas diferentes relações entre grupos e
pessoas muito diversos entre si. Seria esse espírito, esse mana, que
daria às cidades a aura de urbanas.
Os primeiros estudos da Escola Sociológica de Chicago apresen-
tam a cidade como um grande laboratório para o cientista social
(PARK, 1973). Influenciada pelos trabalhos de Èmile Durkheim e
Georg Simmel, Chicago representou um novo passo para pensar a
problemática da alteridade no cenário urbano contemporâneo (HAN-
NERZ, 1980). A cidade de Chicago era uma espécie de oásis, no final
do século XIX e princípios do século XX, no trajeto de “conquista do
oeste”. Às margens do gigante lago Michigan, ela ocupa uma posição
estratégica que lhe tornou atrativa a uma multiplicidade de pessoas
originárias de diferentes lugares dos Estados Unidos e do mundo. Isso
fez com que ela explodisse demograficamente na virada do século.
Não por acaso, esse fator faz com que muitas disciplinas comecem
a olhar a cidade como um “problema” científico e tentem desvendar
seus “enigmas” (WIRTH, 1973).
Robert Park foi uma das figuras mais proeminentes da “primeira
geração de Chicago”. Park e seus alunos, ainda que tentando olhar

235
a cidade segundo uma visão positivista (predominante na primeira
metade do século XX nas Ciências Humanas), por meio da noção
de “ecologia humana”, começavam a problematizar a vida citadina,
suas particularidades, seus sujeitos, suas relações, enfim a dinâmica ali
operante a partir da novidade representada pelo grande contingente
de estrangeiros (BECKER, 1996)7. Park os percebe a partir da catego-
ria de “homem marginal”. Ao cunhar tal expressão está a referir-se
ao processo de integração à sociedade norte-americana dos europeus
(geralmente brancos) e dos africanos (negros). Tal como o estrangei-
ro, o homem marginal seria alguém que “vive em dois mundos, mas
que em nenhum deles se sente à vontade” (PARK, 1971, p.73).
Assim, Chicago, essa cidade receptora de tantos estrangeiros (“ho-
mens marginais”), viu a necessidade de construir estratégias de con-
vívio entre as diferenças. Esse processo nem sempre é amigável. A
“ecologia humana” via este imbróglio a partir da noção de “ciclo de
relações étnicas”. Eles acompanhavam, mais ou menos, os diferentes
momentos do “ciclo vital”. Os diferentes grupos étnicos, muitas ve-
zes estrangeiros, competiriam e entrariam em conflito desde uma re-
lação não exatamente desejada. O desdobramento seria a adaptação
e, por fim, a assimilação. Essa teoria assimilacionista mostrava que o
momento final seria a “americanização” dos estrangeiros. Portanto, a
integração do estrangeiro se daria a partir de uma ética do ser ameri-
cano. Há diferenças entre quem chega e quem é do lugar. Algumas di-
ferenças permanecem, mas o que os liga é o que os “faz” americanos,
ou seja, as articulações a partir de saberes comuns.
Quem desorganizaria, diga-se assim, a vida da cidade, mas, ao
mesmo tempo, seria quem garantiria o “salto” para torná-la urbana

7.  Para Park (1973), a noção de ecologia humana empreendida nas pesquisas em Chicago
compreendia a cidade a partir das lógicas de organização e desorganização social. Buscava-
-se, porque orientados por uma visão das “ciências duras”, o equilíbrio social, próprio das
áreas naturais. Ou seja, por tal lógica: as cidades nascem, crescem e se desenvolvem espon-
taneamente.

236
seriam justamente os “homens marginais”. Eles, que chegaram aos
milhares, teriam mudado a “cara” de Chicago e despertado a ciência
social para as complexidades da vida citadina, o que permitiu dar um
passo fundamental para a estruturação de um novo campo de análise
e, quem sabe, disciplinar.
É oportuno problematizar um pouco esse urbano que nascia em
Chicago. Segundo Jean Rémy e Liliane Voyé (1994), a ideia de urba-
nização é devedora de um elemento que se torna- central a organizar
o espaço e a sociedade. Esse elemento é a mobilidade. A mobilidade
é caracterizada como a ação de transitar, o movimento, os fluxos que
permitem contatos e relações entre diferentes sujeitos em diferentes
contextos. Para os autores, a urbanização é entendida como um proces-
so que integra a mobilidade espacial na vida cotidiana (idem, p.13).
Rémy e Voyé agregam alguma complexidade à percepção da Esco-
la de Chicago que, por meio da noção de morfologia sociodemográfi-
ca, caracterizava o modo de vida urbano a partir de volume, densida-
de e heterogeneidade (SILVANO, 2017). Essa complexidade agregada,
que se apresenta como um fator crucial, é justamente a mobilidade. É
como se os elementos apontados pelos pesquisadores de Chicago pre-
cisassem de um componente que colocaria aquelas características a
funcionar. O que daria dinâmica à morfologia sociodemográfica seria
a mobilidade. Ela seria o eixo que produziria o salto para um contex-
to tornar-se urbano. Essa mobilidade fora garantida, sobretudo, pelos
estrangeiros, os “homens marginais” que chegavam ali. Tais fenôme-
nos foram observados em outras cidades do mundo. A chegada des-
ses contingentes populacionais forasteiros muda, de forma temporá-
ria ou mais duradora, as relações desenvolvidas na vida citadina.
Em meu campo de pesquisa, os “homens marginais” de que falo
são homens brasileiros. Esses homens brasileiros, estrangeiros, estão
em Lisboa e em outras cidades de Portugal e da Europa para atuar no
mercado do sexo como trabalhadores sexuais. De alguma forma, eles
desassossegam os modelos “tradicionais” de organização desse espaço

237
e, por meio de diferentes estratégias, criam possibilidades e tramas para
as trocas afetivas, eróticas e sexuais. Aqui, o ser estrangeiro ou “homem
marginal” desses brasileiros no mercado do sexo é um instrumento da
própria profissão. Trata-se, além de uma origem nacional, por óbvio, de
um componente simbólico do produto que é negociado.
Para os estrangeiros desta pesquisa, Portugal é destino privilegia-
do, principalmente, por ter o português como língua oficial. A proxi-
midade das línguas é um sinal positivo para aqueles que não sabem
outros idiomas e mantêm certo medo com o contato com nacionali-
dades “distantes” da brasileira. Além de Portugal estar em uma rota
mais abrangente (TOGNI, 2011), ou seja, não só daqueles que visam
envolver-se com o trabalho sexual. Segundo Igor Machado (2004), por
exemplo, o fenômeno migratório de brasileiros para Portugal foi im-
pulsionado, desde a década de 1980, pelo “sucessivo empobrecimento
do país”, onde Portugal, “por sua vez, torna-se lentamente um país de
imigração desde sua inserção na União Europeia” (p. 121).
A relação intrínseca entre este país com suas ex-colônias particulari-
za o fenômeno migratório. Estes “homens marginais”, de países outro-
ra colonizados, se encontram em relações de poder, agora atualizadas,
em contextos em que o passado colonial ainda influencia as interações
entre diferentes indivíduos. Esse pode ser um elemento que agrega va-
lor ao estrangeiro no estabelecimento das negociações em torno das
relações sexuais precificadas. Falo do fato de ser “ex-colono” como
uma espécie de alteridade que atuaria como tensor libidinal (PER-
LONGHER, 1987). A tensão desejante não reside apenas no fato de ser
do Brasil, mas em tudo que esse sujeito potencialmente poder ser/car-
regar/fazer a partir de um imaginário português sobre as pessoas do
Brasil. Além disso, ela também pode ser agenciada/manipulada pelos
brasileiros no mercado sexual em vista de possíveis “vantagens”.
Néstor Perlongher, em sua pesquisa sobre a prostituição viril na
cidade de São Paulo nos anos de 1980, percebera os tensores libidi-
nais como variantes (ele os chamou de séries) que estimulam desejos,

238
prazeres e, até mesmo, perigos por meio de atribuições classificató-
rias. Nesse sentido, o chamado “negócio do michê”, que dá título ao
livro, levando em consideração a atuação e articulação dos tensores
libidinais, se apresentava como mais complexo que apenas uma tran-
sação sexual. Ele era, ao mesmo tempo, uma transação etário-gera-
cional, racial e de classe. Portanto, dava corpo a uma engrenagem
que, como lembra Júlio Simões (2008), era maior que um “quadro
de mercantilização sexual”. Há uma economia complexa, por parte
dos michês, mas também dos clientes, que articula desejo, busca de
corpos e prazeres. É assim que os tensores libidinais podem constituir
formas variadas de relações de poder entre michês e clientes. Penso
que os diferentes quartos, a que eu tive acesso, de homens brasileiros
(“ex-colonos” no imaginário português) envolvidos com o trabalho
sexual em Portugal, são potentes analiticamente para esta reflexão.

De quarto em quarto

Durante os primeiros meses de incursões exploratórias ao campo,


eu já mantive contato com mais de dez homens brasileiros que fa-
zem trabalho sexual em Lisboa (Portugal). Dessas pessoas, acionadas
a partir de diferentes redes de relações, conheci o quarto de quase
todos eles. Aliás, nossas primeiras conversas, geralmente ocorriam ou
em espaços públicos ou em seus quartos. Conheci quartos diferentes,
mas que guardavam muitas semelhanças.
Adriana Russi e Ceres Brum (2019) nos lembram que a casa é mais
que uma construção física que protege as pessoas das intempéries e/
ou de possíveis ataques de outrem. A casa revela, em diferentes níveis,
as potencialidades da inventividade humana. Ela é mais uma faceta da
materialização da construção cultural de uma sociedade nas relações
estabelecidas entre os grupos humanos e o ambiente, daí a impor-
tância, conforme Amos Rapoport (1972), do viés sociocultural para a
analisar as casas.

239
Há uma gama de trabalhos antropológicos sobre casas. Sem a
intenção de esgotar este contingente, destaco alguns deles: Marcel
Mauss (2003) que analisa a dimensão ecológico-cultural (morfolo-
gia social); Claude Levi-Strauss (1957) 8 que investiga a casa boro-
ro; Peter Rivière (1996) que pesquisa casas na Guiana; Marcel Griaule
(1966) que analisa a casa dogon; Pierre Bourdieu (1980) que investiga
a casa kabyle; François Ruegg (2011) que pesquisa habitações cam-
ponesas na França; e Marta Vilar Rosales (2015) que analisa a casa de
imigrantes na Europa.
Quando fui convidado ao primeiro quarto de um brasileiro envolvi-
do com o trabalho sexual, isso com dois meses de pesquisa, tive a curio-
sidade profundamente aguçada. Tratava-se do quarto de Douglas, um
brasileiro de Pernambuco, que está com 25 anos, se considera branco e
bissexual, com o ensino médio completo. Ele vivia em uma guest house,
que ele chamava de hostel, na Alameda, Bairro de Arroios, distante em
torno de 3 quilômetros do centro de Lisboa e uma região conhecida
pela marcada presença de estrangeiros, sobretudo brasileiros e india-
nos. Segundo me contou Douglas, era uma propriedade administrada
por indianos e que todos os quartos eram ocupados por pessoas que
faziam trabalho sexual: homens e mulheres cis e trans.
Naquela noite de outubro de 2020, depois das 22h, quando está-
vamos entrando ao prédio, lembrei de uma história de Robert Park
contada por Howard Becker em uma conferência. Tratava-se da pri-
são de Park:

Certo dia, os cidadãos de Chicago abriram o jornal e se depararam com


a notícia de que um professor da Universidade de Chicago tinha sido
preso com uma prostituta. Park estava fazendo uma pesquisa com jo-
vens prostitutas, moças que viajavam pelas estradas ou iam de cidade

8.  Sobre pesquisas antropológicas a cerca de casas indígenas, ver Costa e Malhano (1987);
Novaes (1983); Portocarrero (2010); Faria (1951), entre outros.

240
em cidade, onde quer que houvesse um acampamento de soldados para
exercer o ofício da prostituição. Park estava entrevistando uma des-
sas moças dentro de um quarto de hotel quando a polícia o descobriu
(BECKER, 1996, p.184-185).

Eu não estava com um rapaz muito jovem, menor de idade, nem


mesmo em um país ou em uma época que o trabalho sexual fosse
uma atividade ilegal, irregular ou clandestina. No entanto, era per-
manente a sensação de incômodo, como se eu estivesse fazendo algo
que não devia, ou como se eu estivesse me colocando em algum risco
desnecessário. Diferente de Park, eu não fui preso e, pelo contrário,
tivemos uma conversa longa e muito frutífera.
Dito isso, o quarto de Douglas era um quarto minúsculo. Havia
apenas uma cama de casal, um pequeno guarda-roupas, uma janela.
Muitas roupas pelo chão, duas malas abertas e um cheiro de mofo
muito indigesto. Eu pensara: como seria possível erotizar aquele con-
texto no âmbito do trabalho sexual? Nada ali parecia conferir qual-
quer identidade a Douglas, ou a uma ideia de casa. Parece comum, de
maneira geral, associar um quarto a uma casa. Douglas me contara
que ele recém tinha saído de uma “praça” e que por isso seu quarto
estava uma “zona”.
Entre as pessoas envolvidas com o trabalho sexual em contexto
transnacional, a praça é o local onde se desenvolve o trabalho sexual.
Normalmente não é um espaço público, aberto, como define o dicio-
nário em seu sentido literal. A praça é um lugar por onde se passa,
em que não se permanece por muito tempo. É uma ressignificação
do conceito e refere-se a uma casa ou apartamento. O termo ganha
diferentes sentidos quando acompanhado de alguns verbos: “fazer
praça”, por exemplo, é o ato de deslocar-se de um lugar para outro
no intuito de obter mais clientes por ser uma “novidade” onde o tra-
balhador sexual acaba de chegar. Esses trânsitos podem ser dentro do
país ou entre países. Trata-se do ato de viajar de cidade em cidade

241
para trabalhar mais. Já um “apartamento de praça”, é o apartamento
ou casa que se alugam quartos por preços acima do mercado, e geral-
mente de maneira informal, para uma pessoa que irá realizar traba-
lho sexual nele durante um período curto. Quando se diz que “esse
lugar é boa praça” refere-se a um apartamento ou cidade conhecidos
por ter uma clientela numerosa, frequente e que paga acima da mé-
dia. A expressão também pode referir-se a uma esquina numa rua.
No livro Vidas na raia: prostituição feminina em regiões de fronteira
(2007), Manuela Ribeiro et. al. explicam que plaza (termo castelhano)
refere-se a períodos previamente fixados, na maioria dos clubes espa-
nhóis que recebe mulheres para o trabalho sexual, para uma estadia
com duração de 21 dias em média. Essa mobilidade, naquele contex-
to, era uma forma de camuflar a situação irregular das imigrantes,
mas também pode ser uma forma de ter sempre novidade no merca-
do sexual local. Se o termo fora originário do castelhano, teria sido
levado aos lusófonos, sobretudo brasileiros em Portugal envolvidos
com o trabalho sexual. Na linguagem popular, o termo foi generaliza-
do para definir espaço de trabalho sexual temporário.
Portanto, na praça em que Douglas estava, havia uma permanente
sensação de recém-chegado, uma “bagunça”, um quarto sem qual-
quer identidade em relação ao sujeito que o ocupa. Isso me chamou
muito a atenção, além de um trânsito constante entre praças, que ele
me contou em nossas conversas, quando frequentei sua “casa” du-
rante alguns dias em Lisboa. Penso que alguns desses pontos podem
constituir elos de uma rede que acaba por instituir uma espécie de
gramática de certo perfil de homens envolvidos com o trabalho se-
xual na Europa.
Outro quarto que conheci foi o de Claudio, um brasileiro das Mi-
nas Gerais, que tem 34 anos, com ensino superior incompleto e que
se considera branco e gay. Na altura, ele dividia apartamento com um
belga na região do Príncipe Real, próximo a alguns bares e discote-
cas direcionados ao público LGBT e uma região muito valorizada no

242
mercado imobiliário local, próxima ao centro da cidade e que, com o
boom do turismo, tem atraído muito estrangeiros. Conheci Claudio
fazendo voluntariado em uma ONG que atua na prevenção a diferen-
tes ISTs. Nosso primeiro encontro fora da ONG foi em seu quarto.
De início, o que chama a atenção é que o quarto é estrategicamen-
te localizado ao lado da porta de entrada do apartamento, que é tér-
reo. Quer dizer, se o cliente não quiser qualquer contato com a casa,
como, por exemplo, ir ao banheiro, ele pode, muito bem, entrar e sair
sem ser visto e sem ver ninguém. Chama a atenção no quarto a cama.
Ela é muito grande, de casal e aparentemente muito confortável.
Ao lado direito de quem entra no quarto, há uma espécie de mi-
nibar. Lembra muito quartos de motel. Um móvel de madeira, que é
um aparador e, quando aberto, transforma-se em uma mesa. Ali tem
diferentes objetos, além de suportes para taças de vinho e garrafas
de vinho. Também há pratos, uma máquina de café expresso, xícaras
e cápsulas. A pequena adega e as taças de vinhos estão em cima de
um frigobar retrô. No frigobar há água, refrigerantes, comida e doces.
Cervejas. Além dos vinhos. Tudo isso estaria incluído no “atendimen-
to” contratado pelo cliente.
Na parede em frente à cama, é projetada a imagem do Datashow,
que está em um suporte na parte superior da parede em que fica a
cabeceira da cama. Nesse suporte, há também o computador portátil
e outros aparelhos eletrônicos. Há uma caixa de som. Há luzes de led
de diferentes cores no quarto. Elas são acionadas em diferentes mo-
mentos e produzem efeitos distintos. Há todo um clima produzido
pela iluminação. Claudio diz que esta é uma estratégia construída por
ele. Percebi, mais que nunca, que há uma construção de um lugar
de trabalho no processo de adaptação de seu quarto para o exercício
do trabalho sexual. Um quarto, definitivamente, não é só um quarto.
Segundo o interlocutor, tudo isso faria parte de um investimento para
propiciar um atendimento diferenciado aos clientes. Ele chama tudo
aquilo que está além do sexo como “um mimo”, “um agrado” aos

243
clientes. Claudio percebe que isso, inclusive, pode reverter em dinhei-
ro, pois os clientes podem, por estes estímulos, pagar mais.
Tales é um brasileiro do estado do Mato Grosso, tem 32 anos, com
ensino médio completo, se considera moreno claro e gay, ele também
me convidou para conhecer o seu quarto. Conheci Tales a partir dos
contatos de minha rede de relações pessoais. No primeiro dia em que
fui ao apartamento que ele divide com um amigo, que não trabalha
com sexo, e com duas mulheres trans trabalhadoras sexuais, conver-
samos na cozinha enquanto ele preparava comida e depois fomos ao
quintal para seguir a conversa. Apenas na segunda vez que estive com
ele, é que fomos para o seu quarto. Até agora, o menor dos quartos
que eu visitei. Muito pequeno. Muito menor que o quarto de Dou-
glas. A porta do quarto não abre totalmente, pois tranca na cama, que
na verdade é um sofá-cama. A cama só é aberta durante a noite ou
quando ele recebe clientes. Além disso, o quarto não tem janelas. É
constantemente abafado.
Em frente ao sofá-cama, há uma estante com roupas e ao lado
uma cômoda. Na estante, que é aberta, estão roupas, medicamen-
tos, cremes, preservativos, lubrificante e um frasco de PrEp9. Há
uma série de cabides atrás da porta e ao lado da estante com muitas
roupas penduradas. Os sapatos ficam na parte de baixo da estante. E
é só isso que há no quarto. Tudo isso está organizado em um espaço
físico que deve ter em torno de quatro metros quadrados. O quarto
de Tales é menor que o banheiro e era a antiga despensa do aparta-
mento, que fica a poucos metros da Avenida da Liberdade, na região
central de Lisboa.

9.  PrEP é uma profilaxia pré-exposição ao vírus HIV. Trata-se de uma outra estratégia para
tentar prevenir-se do vírus HIV. Tal estratégia tem-se popularizado, nos últimos anos, entre
homens gays e entre homens que fazem trabalho sexual. Embora não seja recomendado o
sexo desprotegido para as pessoas que utilizam PrEP, pois ela não substitui o preservativo, o
uso popular da estratégia parece ter sido esse, pelo menos segundo alguns dados prelimina-
res de meu trabalho de campo. É importante lembrar que a PrEp protege apenas contra o
vírus HIV. Todas as outras ISTs não são cobertas por essa profilaxia.

244
Douglas, Claudio e Tales passam boa parte dos dias nos quartos.
Quando não estão com clientes, estão nos quartos a espera de clien-
tes, conversando pela internet, fazendo e monitorando anúncios em
sites de acompanhantes, ou assistindo séries, filmes, vídeos. Quando
estão com clientes em casa, por óbvio, estão nos quartos. Quando
saem para atendimentos até a casa dos clientes, outra vez, quase sem-
pre vão para quartos. Muitas vezes, os atendimentos ocorrem em
quartos de pensões, hotéis ou motéis.
O que quero dizer é que a cidade consumida por esses e outros
interlocutores é aquela percebida a partir de seus quartos. A vida
cotidiana acontece a partir do quarto. Essa foi uma realidade que,
para eles, por exemplo, não se alterou durante a pandemia. Eles já
estavam dentro do quarto antes da pandemia e continuaram du-
rante os períodos de confinamento. Tal realidade, tende a não se
alterar muito com o levantamento das restrições referentes à Co-
vid-19. É claro que eles andam pela cidade, fazem tarefas cotidia-
nas na rua. Mas o mote central figura nos quartos. Ali passam boa
parte dos dias.
Então, dessa forma, como pensar analiticamente as diferentes fa-
cetas do quarto como lugar social? Tal questão me fora provocada a
partir da investigação de Paula Togni (2015) sobre a trajetória de bra-
sileiros de Mantena, cidade do interior das Minas Gerais, no Cacém
(região da grande Lisboa). Para estes sujeitos, “a Europa é o Cacém”
porque ali constitui-se o centro da vida social por eles articulada em
geografias relacionais constituídas dialogicamente entre diferentes
cidades (prévias à imigração) e diferentes países (Brasil e Portugal,
por exemplo). Assim, a dimensão da Europa, na pesquisa de Togni,
é aquela instituída a partir das relações que as pessoas desenvolvem
e estabelecem no Cacém. Logo, penso que a Lisboa de meus interlo-
cutores pode também ser aquela vista e vivida desde os quartos que
habitam, trabalham e circulam.

245
Entre heterotopias, não-lugares e ethnoscapes

Em 1967, Michel Foucault (1984) proferiu uma conferência em


que problematizou espaço e lugar a partir das noções de utopia e he-
terotopia. As utopias seriam aqueles espaços que não têm lugar real,
enquanto as heterotopias, segundo ele, seriam utopias realizadas. Na
percepção de Filomena Silvano (2017), as heterotopias seriam “espa-
ços em que os outros espaços existentes no interior da cultura a que
pertencem são representados, contestados e invertidos” (p. 91).
Comecei este texto falando sobre homens brasileiros envolvidos
no trabalho sexual em Lisboa percebidos como estrangeiros no lu-
gar que chegam. Ser estrangeiro não se resume aqui a um passaporte
emitido por outro país, mas a todo um “espírito” que marca diferen-
ças. Esses sujeitos jogam com estas marcas e as potencializam como
um estimulante libidinal para a efetivação das negociações em torno
do mercado do desejo sexual. Quase sempre o fazem nos quartos.
Compreendo que o quarto deles pode ser uma heterotopia contem-
porânea no sentido proposto por Foucault. Por que digo isso?
Os quartos desses homens não são apenas quartos onde se dorme
durante algumas horas. Embora ali se durma. Eles são lugares fora
dos lugares, mas localizáveis, tal como um dos pré-requisitos para as
heterotopias na leitura foucaultiana. Os quartos que eu conheci, mes-
mo muito diferentes entre si, são espaços onde o desvio da norma, a
fantasia e a ilusão constituem aquele lugar. Um lugar que existe no es-
paço, que existe fisicamente, mas monta-se e desmonta-se a cada en-
trada e saída de um cliente diferente. Aquele quarto, durante aquele
determinado período, pode ser o que o desejo e o dinheiro do cliente
quiser, desde que acordado previamente com o trabalhador sexual.
Foucault denominou como heterotopia do desvio os compor-
tamentos não esperados ou não desejados pela moral vigente em
diferentes sociedades. Nas sociedades que eram nomeadas como
“primitivas”, ele definiu esses comportamentos como heteroto-
pias de crise. Nesse sentido, entre as heterotopias de crise, chama

246
a atenção a noção de corte temporal cronológico. Nos espaços he-
terotópicos é como se uma espécie de kairós (um tempo especial e
imaginado, fechado em si mesmo) se sobrepusesse ao cronos (geral
e ordinário). Durante este período, nos espaços heterotópicos, vi-
gora a ilusão, a fantasia, que logo depois da porta da rua não tem
condições viáveis de existir. Tal princípio parece adequar-se ao que
os interlocutores de minha pesquisa experimentam no trabalho se-
xual a partir de seus quartos. Entram no espaço do quarto e deslo-
cam-se a um lugar heterotópico por alguns instantes que o dinhei-
ro recebido permite manter.
A despeito da noção de lugar e das problematizações advindas,
Marc Augé (1992), ao fazer uma crítica à noção antropológica de lu-
gar, propõe o conceito de não-lugar. O não-lugar é uma alternativa à
percepção antropológica de lugar como sendo um território que teria
a capacidade de conferir uma espécie de identidade coletiva a um de-
terminado conjunto de pessoas. O não-lugar, para Augé, seria incapaz
de conferir identidade para quem quer que fosse, pois trata-se de um
espaço por onde as pessoas passam. É uma dimensão de trânsito.
Mas de que forma isso pode me ajudar a pensar os quartos de al-
guns homens brasileiros envolvidos com o trabalho sexual em Lis-
boa? Se um quarto nunca é apenas um quarto e ele é transformado
em um lugar social habitado por fantasias e ilusões, podemos dizer
que as pessoas passam por ali quando o negócio do trabalho sexual
está em vigor. O homem que faz trabalho sexual e o cliente passam
por aquele quarto que eles, ao acordar um negócio, transformam em
um não-lugar por um período determinado. O quarto do trabalho se-
xual, ainda que o seja, muitas vezes, o mesmo espaço físico que aque-
le sujeito dorme, não é, definitivamente, o mesmo lugar. Para o clien-
te, pensar esta diferença pode ser mais simples, pois ele, o cliente, ali
é um viajante, um sujeito em trânsito, que, quando dá a sua hora, ar-
ruma-se e desloca-se de volta para o “seu lugar”. Augé mostra como
a noção de não-lugar está bastante associada à uma ideia permanente

247
de lugar, até porque estes trânsitos são simbólicos e podem ser inter-
pretados como percepções:

Na realidade concreta do mundo de hoje, os lugares e os espaços, os


lugares e os não-lugares emaranham-se, interpenetram-se. A possibili-
dade do não-lugar nunca está ausente seja de que lugar for. O regres-
so ao lugar é o recurso de quem frequenta os não-lugares[...] (AUGÉ,
1992, p.90).

Se os não-lugares não conferem identidade, não são espaços de


permanência, se são próprios para passar, para cruzar, para estar e
logo partir, isso ajuda a perceber a relação entre os homens envol-
vidos com o trabalho sexual e os seus clientes a partir dos quartos.
O desejo, a fantasia, a ilusão, a tensão libidinal é uma experiência de
instantes. O que se impõe é o cotidiano, os lugares. Os não-lugares
seriam estas brechas, fugas desejantes, possíveis nos contornos da
norma. Em minha pesquisa, eu compreendo os quartos como po-
tencialmente não-lugares. Percebe-se que não são apenas os quartos
dos homens envolvidos com o trabalho sexual, mas os quartos de
hotel, pensão e motel por onde eles circulam. O trajeto que uns e
outros percorrem, entre quartos, para encontrarem-se também pode
ser lido com um não-lugar.
Algumas páginas cima, dialoguei com Jean Rémy e Liliane Voyé
(1994) sobre como o processo de urbanização é atravessado e consti-
tuído por uma noção de mobilidade. Retomo a ideia de mobilidade,
atrás apresentada, para pensar, a partir de Arjun Appadurai (1997),
sobre ethnoscape. Tal neologismo é uma tentativa de problematizar
um lugar-comum da antropologia que é o representado pelo encon-
tro entre um antropólogo em movimento e um “nativo estático”.
Appadurai defende que antropólogo e “nativo” estão em movimen-
to e pertencem a lugares. O movimento não cessa para ambos e os
lugares estão em permanente constituição.

248
Ethnoscape pode ser uma alternativa interessante para refletir sobre
os meus interlocutores de pesquisa, sobre os fluxos que eles empreen-
dem no interior da cidade, ou mesmo entre cidades europeias, pois,
segundo Appadurai:

Por “ethnoscape”, eu entendo a paisagem de pessoas que constroem os


mundos mutáveis em que vivem (turistas, imigrantes, refugiados, exila-
dos, trabalhadores estrangeiros e outros grupos e indivíduos móveis).
[...] porque cada vez mais pessoas e grupos se relacionam com a rea-
lidade de terem de se mover ou com a fantasia de quererem mover-se
(APPADURAI, 1997, p. 33-34).

Appadurai tenta descontruir a ideia de um nativo associado a um


lugar, que, de alguma forma, foi a maneira clássica que a antropolo-
gia organizou uma leitura da cultura e do social. É assim que se rea-
firma que não temos, no “encontro etnográfico”, o “choque” entre
duas culturas diferentes, pois, afinal, cultura é uma abstração analítica
e abstrações não se encontram. Ethnoscape, desse modo, desterrito-
rializa os sujeitos contemporâneos a partir de um olhar atento aos
fluxos e ao trânsito destas relações que se desenvolvem numa espécie
de devir permanente. E é assim que há, na percepção de Appadurai,
a possibilidade de interpretar a fronteira como uma zona de contato
e não de afastamento entre as diferenças. Porque não estamos mais
olhando para sujeitos e espaços estáticos, mas para algo poroso e desli-
zante, como diria Filomena Silvano (2017).
É assim, entendo, que os brasileiros envolvidos com o trabalho se-
xual com os quais eu estou em interlocução, experimentam diferen-
tes ethnoscapes. Habitam moradias temporárias, seja em guest houses,
hosteles, alojamentos locais, AirB&B, ou as praças de trabalho, como
reportei antes. Em todos estes espaços físicos constituem lugares em
que o que chama a atenção, pelo menos nos quartos que já conhe-
ci, é uma sensação de “recém-chegado” ou de “prestes a partir”. Nos

249
quartos em que eu estive, tive sempre a recorrente impressão de que
eles ou estavam chegando, ou estavam partindo. Malas desarruma-
das, roupas soltas, espaços impessoais. Tudo me lembrava mobilida-
de. Parece que havia uma tentativa de gerar exatamente uma desco-
nexão do sujeito com o lugar, uma espécie de desidentificação.
Para José Esteban Muñoz (1999), desidentificação é um processo
que constitui estratégias entre sujeitos que se percebem minoritários
diante de uma cultura hegemônica; portanto, constituem, de forma
tática, possibilidades subversivas de existência por meio de resistên-
cia. Mas desidentificação é mais que resistência. No mais das vezes, a
desidentificação performa a norma, a hegemonia, de forma crítica e/
ou irônica, é o que o autor chama de um “trabalhar com e contra” as
hegemonias. Muñoz mostra como a desidentificação pode ser um po-
tente instrumento performático de sujeitos em constantes trânsitos,
tal como os homens envolvidos com o trabalho sexual e seus quartos
“cuidadosamente desarrumados”, que dão corpo à minha reflexão
aqui. A todo momento, os sujeitos estão negociando com a normati-
vidade, com as expectativas identitárias.
Minha percepção sobre os quartos, a partir de um processo de de-
sidentificação, ocorria mesmo naqueles “mais estáveis”, como os de
Claudio e Tales. Havia ali qualquer coisa que não associava, de saída,
o sujeito ao lugar. Conversando com alguns destes interlocutores,
acabo por perceber que isso pode ser, inclusive, acionado de manei-
ra consciente. Alguns deles me contaram que era preciso mostrar
aos clientes que eles eram “novidades” na cidade. Ser “novidade”,
recém-chegado, ou em “curta temporada” no lugar, pode ser um es-
timulante para que o cliente queira ser o primeiro a ter com esse
homem. Ou o contrário, aproveitar o trabalhador sexual antes que
este parta para outras praças. Para tanto, um quarto que remonte à
mobilidade, a trânsito, a malas sendo arrumadas, ou desarrumadas,
pode ser, também, uma estratégia que corrobora uma outra dimen-
são do “negócio do desejo”.

250
Considerações Finais

Ao longo do capítulo, procurei, ainda que de forma panorâmica,


pensar o meu tema de pesquisa – o trabalho sexual de homens brasilei-
ros em Lisboa – em diálogo com alguns aspectos de uma antropologia
que se preocupa com a cidade, com o urbano, com o espaço e as rela-
ções ali advindas. Dei destaque aos quartos, como partes de uma casa,
que, para além de questões de ordem prática, são atravessados e consti-
tuídos por meio de aspectos simbólicos e de distinção social.
Em um primeiro momento, tentei perceber como as noções de es-
trangeiro e “homem marginal” são construídas e acompanham a car-
reira dos meus interlocutores. Tais noções, entre os clássicos do pen-
samento urbano, eram vistam como aplicadas àqueles forasteiros que,
de alguma forma, sofriam os impactos do contato entre diferentes rea-
lidades e experiências e que deveriam adaptar-se e assimilar os valores
hegemônicos de onde chegavam. Apesar das agruras de ser estrangei-
ro, carregavam uma suposta vantagem: a liberdade. Uma espécie de
“estrangeiridade” deveria ser superada a partir da “assimilação”. Aten-
ção, no entanto, a manutenção de algumas diferenças era fundamental
para estruturar as relações. No caso de meus interlocutores, ser um
estrangeiro e um “homem marginal” funcionaria também como uma
marca que precisaria ser mantida e reinventada, pois seria uma parte
importante do “negócio do desejo” que lhes confere alguma vantagem
em um cenário completamente povoado por adversidades.
Em um segundo momento, propus problematizar os quartos de
alguns interlocutores. Percebi que o quarto é mais que um espaço da
casa onde se dorme. O quarto – quase nunca em uma casa nos mol-
des hegemônicos, mas ali sim – ganha uma centralidade e passa a ser
o lugar a partir do qual a vida desse estrangeiro, ali de passagem, se
organiza enquanto ele permanece em determinada praça. Esses quar-
tos, parte de uma casa “não tradicional”, revelam distintos contextos
socioculturais, bem como as particularidades do habitar. As diferen-
ças entre os quartos, sejam de estilos, de conforto e de possibilidades,

251
acabam por informar, também, sobre os contextos em que se deu o
processo migratório, bem como sobre a estrutura empreendida no
trabalho sexual. Pode-se perceber questões de classe a partir dos quar-
tos, por exemplo.
No terceiro momento, pensei os quartos, em alguns casos, como he-
terotopias, em outros como não-lugares e até como ethnoscapes. Mais
do que ser conclusivo a este respeito, antes essas percepções funcionam
como insights que ainda precisam de aprofundamento com o adensa-
mento do trabalho de campo, mas já as percebo como rentáveis. Em
relação a isso, o que apontei aqui foram alguns pontos que poderiam
ser problematizados, de forma mais analítica, em reflexões posteriores.
Talvez o que fique destes conceitos aplicados ao contexto de minha pes-
quisa, é a potência de pensar a construção social dos lugares a partir das
experiências dos sujeitos em suas relações mais micro e, depois, com o
seu em torno mais alargado. Trata-se da pertinência de um outro olhar
sobre o espaço público e das relações dos sujeitos com o espaço público
nas cidades. A possibilidade de transitar pela cidade sem contatos (ou
com muito pouco contato) com a sua dimensão pública pode dar pistas
de uma gama variada de estratégia de “viver os lugares”.
Por fim, é preciso dizer que esse olhar para os quartos e para os
seus habitantes, homens brasileiros envolvidos com o trabalho se-
xual em Lisboa, dialoga com uma longa tradição antropológica de
pesquisa sobre as casas e o habitar. No entanto, talvez haja algumas
particularidades no olhar que ora apresento. Se há uma recorrência
em relação à casa, na maior parte das pesquisas, que a destaca como
lugar de repouso, produção ou consumo de alimentos, lugar de rela-
ções parentais etc., aqui temos a casa (o quarto mais especificamen-
te) como local privilegiado de trabalho. Ali também se habita, mas
principalmente ali se trabalha, se gera riqueza. Isso, parece, faz toda
a diferença em como se constrói o restante da casa, em moldes “não
tradicionais”, bem como as relações daí advindas com outros mora-
dores, visitantes ou clientes.

252
REFERÊNCIAS
APPADURAI, A. Modernity at Large. Minneapolis: University of Minesota
Press, 1997.
AUGÉ, M. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Lis-
boa: 90º, 1992.
BECKER, H. A Escola de Chicago. Mana, 2 (2), Rio de Janeiro, 1996, p 177-188.
BOURDIEU, P. Les sens pratique. Paris: Les Editions de Minuit, 1980.
BROMBERGER, C. Habitation. In. Pierre Bonte e Michel Izard (dirs.). Dictionnaire
de l’ethnologie et de l’anthropologie. Paris: Quadrige/PUF, 2012. p317-320.

COSTA, M. H. F., MALHANO, H. B. Habitação indígena brasileira. In. Darcy Ribei-
ro (org.). Suma Etnológica Brasileira. Petrópolis-RJ: Vozes, 1987. p.27-92.

FARIA, L. de C. Origens culturais da habitação popular do Brasil. Boletim do Museu
Nacional: Antropologia. Rio de Janeiro. 12: 1-72, 1951.
FOUCAULT, M. Des espaces autres. Archi Bref. 48, 1984. Genève, École d’architec-
ture. p.5-8,
GRIAULE, M. Dieu d’eau: entretiens avec Ogotemmêli, 1948. Paris: Librarie Arthè-
me Fayard, 1966.

HANNERZ, U. Exploring the City: Inquiries Toward an Urban Anthropology. New
York: Columbia University Press, 1980.
LÉVI-STRAUSS, C. Tristes Trópicos. São Paulo: Editora Anhembi, 1957.
MACHADO, I. J. R. Imigrantes brasileiros no Porto: Aproximação à perenidade de
ordens raciais e coloniais portuguesas. Lusotopie, 2004, p.151-140.
MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

MUÑOZ, J. E. Disidentifications : Queers of Color and the Performance of Politics.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999.
NOVAES, S. C. (org.). Habitações Indígenas. São Paulo: Nobel/EdUSP, 1983.

PARK, R. E. Comunicação. In: PARK, Robert E.; SAPIR, Edward. Comunicação, lin-
guagem, cultura. São Paulo: ECA/ USP, 1971, p. 55-76.
PARK, R. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano
no meio urbano. In. Velho, Otávio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zah-
ar, 1973.
PERLONGHER, N. O negócio do michê. A prostituição viril. São Paulo: Brasilien-
se, 1987.

253
PORTOCARRERO, J. A. B. Tecnologia Indígena em Mato Grosso: Habitação. Cuiabá:
Entrelinhas, 2010.

RAPOPORT, A. Pour une anthropologie de la maison. Paris/Bruxelas/Montréal: Du-
nod, 1972.
RÉMY, J. e VOYÉ, L. A cidade: rumo a uma nova definição. Lisboa: Afrontamen-
to, 1994.
RIBEIRO, M et. al. Vidas na Raia: Prostituição Feminina em Regiões de Fronteira.
Porto: Afrontamento, 2007.
RIVIÈRE, P. Houses, places and people: community and continuity in Guiana.
In. Janet Carsten e Stephen Hugh-Jones (orgs.). About the House: Lévi-Strauss and
Beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p.189-205.

ROSALES, M. V. As Coisas da Casa: Cultura Material, Migrações e Memórias Fami-
liares. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2015.
RUEGG, F. La maison paysanne: histoire d’un mythe. Paris: Infolio, 2011.
RUSSI, A., BRUM, C. K. Sob diferentes tetos: etnografando casas e revelando di-
mensões educativas e patrimoniais. Etnográfica [Online], Lisboa, vol. 23 (3). 2019,
693-715
SILVANO, F. Antropologia do Espaço. Lisboa: Documenta, 2017.
SIMMEL, G. Digressions sur l’etranger. In. Y. Grafmeyer e I. Joseph (orgs.). L’école
de Chicago. Paris: Aubier, 1990. p. 53-59.
SIMÕES, J. A. O negócio do desejo. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 31, p. 535–546,
2016. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/
article/view/864 4891. Acesso em: 12 ago. 2021.
TOGNI, P. C. Que ‘brasileiras/os’ Portugal produz? Representações sobre gênero,
amor e sexo. In. Adriana Piscitelli, Gláucia Assis e José Miguel Nieto Olivar (orgs.).
Gênero Sexo e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. Campinas:
Unicamp/Pagu, 2011. p 385-434.
TOGNI, P. C. A Europa é o Cacém: mobilidades, gênero e sexualidade nos desloca-
mentos de jovens brasileiros para Portugal. Tese de doutoramento. Lisboa: ISCTE-
-IUL, 2015.
WIRTH, L. O urbanismo como modo de vida. In. Velho, Otávio (org.). O fenômeno
urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

254
Este livro foi composto em Dante
MT pela Editora Autografia.

Você também pode gostar