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Marli Marlene Moraes da Costa

Nariel Diotto
Deise Brião Ferraz
(Organizadoras)

GÊNERO, DIREITOS HUMANOS


E POLÍTICAS PÚBLICAS

Volume 4

Editora Ilustração
Cruz Alta – Brasil
2023
Copyright © Editora Ilustração

Editor-Chefe: Fábio César Junges


Revisão: Os autores

CATALOGAÇÃO NA FONTE
G326 Gênero, direitos humanos e políticas públicas [recurso
eletrônico] / organizadoras: Marli Marlene Moraes da
Costa, Nariel Diotto, Deise Brião Ferraz. - Cruz Alta :
Ilustração, 2023.
v. 4

ISBN 978-65-85614-46-7
DOI 10.46550/978-65-85614-46-7

1. Igualdade de gênero. 2. Feminismo. 3. Políticas


públicas. I. Costa, Marli Marlene Moraes da (org.). II.
Diotto, Nariel (org.). III. Ferraz, Deise Brião (org.).

CDU: 396.2
Responsável pela catalogação: Fernanda Ribeiro Paz - CRB 10/ 1720

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Dra. Odete Maria de Oliveira UNOCHAPECÓ, Chapecó, SC, Brasil
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Dr. Tiago Anderson Brutti UNICRUZ, Cruz Alta, RS, Brasil
Dr. Vantoir Roberto Brancher IFFAR, Santa Maria, RS, Brasil

Este livro foi avaliado e aprovado por pareceristas ad hoc.


Sumário

Prefácio����������������������������������������������������������������������������������������������11
Bibiana Terra

Capítulo 1 - Quando as mulheres disserem “chega!” o mundo para:


reflexões sobre a economia do cuidado�����������������������������������������������15
Simone Andrea Schwinn
Etyane Goulart Soares

Capítulo 2 - A sub-representatividade como barreira de acesso das


mulheres na política brasileira�������������������������������������������������������������33
Marli Marlene Moraes da Costa
Georgea Bernhard

Capítulo 3 - “Aqui mora autoridade ou mulher?”: retratos da


desigualdade estrutural de gênero no Brasil e seus novos contornos����51
Deise Brião Ferraz
Nariel Diotto

Capítulo 4 - A possibilidade de aplicação da lei nº 11.340/06 em crimes


digitais de gênero: reflexões e ponderações������������������������������������������71
Marli Marlene Moraes da Costa
Letícia da Fontoura Tomazzetti

Capítulo 5 - A atualidade do pensamento de Josué de Castro e a volta


do Brasil ao mapa da fome: um flagelo socialmente produzido�����������89
Fábio Fabrício Silva
Luana Funck
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Capítulo 6 - Quanto custa o padrão de beleza irreal? Uma abordagem


da pressão estética sobre as mulheres�������������������������������������������������113
Marli Marlene Moraes da Costa
Stéffani das Chagas Quintana

Capítulo 7 - Políticas públicas de prevenção à violência no ambiente


escolar sob o viés do policiamento comunitário e da justiça
restaurativa ��������������������������������������������������������������������������������������131
Fernando Oliveira Piedade
Theodoro Luís Mallmann de Oliveira

Capítulo 8 - O direito fundamental à educação inclusiva de crianças e


adolescentes com transtorno do espectro autista no Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul�����������������������������������������������������������������������153
Junia Nunes Hasselmann
Analice Schaefer de Moura

Capítulo 9 - Uma análise da tolerância sociojurídica referente à


violência de gênero frente à lei 12.318/2010������������������������������������175
Luíse Pereira Herzog
Júlia Della Nina Reichel

Capítulo 10 - Homoparentalidades e os dilemas jurídicos das novas


configurações familiares �������������������������������������������������������������������197
Lucas Otesbelgue Henes
Cíntia Eloísi da Silva

Capítulo 11 -A prisão domiciliar como instrumento de efetivação da


proteção à maternidade das mulheres presas ������������������������������������221
Clarice Maria de Moura Assmann
Julia Patrícia Staub

Sobre os/as autores/as�����������������������������������������������������������������������241


Prefácio

A autora Maria Paula Dallari Bucci define o termo políticas


públicas como sendo programas de ação do governo
para a realização de objetivos políticos socialmente relevantes
e determinados em um certo espaço de tempo, podendo essas
direcionar tanto atividades estatais quanto atividades privadas.1
Por sua vez, pensando na temática da presente obra, as políticas
públicas com recorte de gênero possuem foco, especificamente, na
promoção da igualdade de gênero e no combate das desigualdades
e discriminações – e, imprescindível aqui mencionar, desigualdades
essas que atravessam não apenas gênero, mas também raça, classe,
sexualidade, etnia, dentre outras opressões que se interseccionam.
No entanto, no contexto brasileiro, cabe ressaltar que a
inserção dessa pauta aconteceu de maneira bastante tardia na
agenda pública, haja vista que as questões e direitos das mulheres
eram vistos como relativos apenas à esfera privada, não cabendo
ao Estado discutir sobre isso.2 Apesar disso, na medida em que os
movimentos feministas e de mulheres foram se fortalecendo no
país, principalmente na década de 1980, a aderência à perspectiva
de gênero também aconteceu, politizando questões que eram
tratadas apenas como privadas – tais como a violência doméstica
– e, sobretudo depois da promulgação da Constituição Federal de
1988, os direitos das mulheres e outros direitos humanos passaram
a ser cada vez mais reconhecidos.3
E, em um contexto histórico, pensando em políticas

1 BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas e Direito Administrativo. Revista de


Informação Legislativa: Brasília V. 34, N. 133, P. 89-98, Jan./Mar. 1997.
2 PINTO, Celi Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Perseu Abramo, 2003.
3 TERRA, Bibiana. A Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes: o movimento
feminista e a participação das mulheres no processo constituinte de 1987-1988. São
Paulo: Editora Dialética, 2022.
12 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

públicas de gênero, bem como no reconhecimento dos direitos


humanos e direitos das mulheres no Brasil, posteriormente ao
texto constitucional de 1988 e início dos anos 2000, muitos
novos avanços passaram a ser visualizados, sendo que em termos
de políticas públicas de gênero, foi justamente nessa época que
elas passaram a ser então encaradas como prioridade pela agenda
pública.4
Desse modo, tendo abordado esse contexto de delonga
na inserção de uma perspectiva de gênero nas políticas públicas
no Brasil, cabe ressaltar a importância da presente obra, “Gênero,
Direitos Humanos e Políticas Públicas” – já em seu quarto volume
–, que reúne uma coletânea de dez artigos que demonstram
um esforço de seus autores, participantes do grupo de pesquisa
“Direito, Cidadania e Políticas Públicas”, em demonstrar um
esforço coletivo, uma construção acadêmica e com rigor teórico,
sobre a emergência do debate acerca das questões que envolvem
gênero, direitos humanos e as políticas públicas no Brasil.
Cabe aqui ressaltar que a criação de políticas públicas
que visem prevenir e combater as violências, desigualdades e
discriminações de gênero é um dever de assistência do Estado, pois
cabe a ele atender as urgentes reivindicações das mulheres e outras
minorias por seus direitos, igualdade e justiça e que vem, há séculos,
sofrendo sistemáticas violações e outras formas de violência. Assim,
cabe o seu reconhecimento e reparação.5
Diante dessas compreensões, essa obra nos desperta uma
perspectiva de gênero para o campo jurídico dos direitos humanos
e social das políticas públicas, traduzida através de discussões que
dialogam esses eixos e nos aponta uma sociedade baseada nas
opressões de gênero (bem como de raça e classe), que regulamenta

4 OLIVEIRA, Francisca Moana Araújo de. Políticas Públicas de Gênero. In: TERRA,
Bibiana (Org.). Dicionário Feminista Brasileiro: conceitos para a compreensão dos
feminismos. São Paulo: Editora Dialética, 2022. P. 307-312.
5 OLIVEIRA, Francisca Moana Araújo de. Políticas Públicas de Gênero. In: TERRA,
Bibiana (Org.). Dicionário Feminista Brasileiro: conceitos para a compreensão dos
feminismos. São Paulo: Editora Dialética, 2022. P. 307-312.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 13

os direitos das mulheres e estabelece privilégios para poucos –


homens, ricos e brancos. Essa é uma falha democrática que carece
urgentemente de ser corrigida e não apenas para as mulheres, mas
para o desenvolvimento de uma sociedade pautada nos direitos
humanos, na pluralidade e no respeito à dignidade humana.
Sendo assim, esse livro oferece artigos que demonstram,
de maneira crítica, debates sobre temas que ferem essa democracia
e que carecem de discussões para que possam ser encontradas
soluções e elas sejam, assim, superadas. Dentre eles, foram temas
dos dez capítulos que compõem a presente obra: economia do
cuidado; sub-representatividade das mulheres na política; Lei
Maria da Penha e violência doméstica contra as mulheres; violência
no ambiente escolar; direito fundamental à educação inclusiva;
desigualdades estruturais; pressão estética; a volta do Brasil ao mapa
da fome; alienação parental; e dilemas jurídicos nas configurações
familiares. Essas foram as temáticas que os seus autores e autoras
procuraram trabalhar na obra e que expõem a sua preocupação
com as questões de gênero, direitos humanos e políticas públicas.
Apresentadas brevemente suas temáticas, desejo a todos e
todas uma excelente leitura, parabenizo seus autores e autoras por
suas importantes contribuições e agradeço as organizadoras desse
importante projeto – professoras Marli Marlene Moraes da Costa,
Nariel Diotto e Deise Brião Ferraz – pelo convite de prefaciar uma
obra com contribuições tão relevantes.

Bibiana Terra
Professora na Escola de Formação Jurídica (EFJ).
Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo
e Democracia, na Linha de Pesquisa Relações Sociais e
Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas
- FDSM (2021). Especialista em Direitos das Mulheres
(Lelage, 2023). Advogada, pesquisadora e organizadora
de livros. Para contato: bibianaterra@yahoo.com e
escoladeformacaojuridica@gmail.com
Capítulo 1

Quando as mulheres disserem “chega!” o


mundo para: reflexões sobre a economia do
cuidado

Simone Andrea Schwinn


Etyane Goulart Soares

Considerações inicias

O s acentuados processos de mudança no ambiente


do trabalho têm repercutido fortemente na vida das
mulheres, adquirindo um grande peso sobre as condições e inserções
de trabalho no segmento feminino. O crescimento do desemprego,
as exaustivas jornadas de trabalho, a não valorização da mão-de-
obra, a discriminação, desnivelamento salarial, jornadas parciais, a
dupla jornada, entre outras, se concentram em um desamparo às
mulheres.
Diante disso, o artigo foi construído a partir da seguinte
pergunta: em que pese as construções sociais que permeiam a vida
das mulheres, quais os aspectos que norteiam uma emancipação em
relação a ética do cuidado e divisão sexual do trabalho?
Como objetivo geral, o artigo busca analisar a participação
das mulheres sobre o prisma da economia do cuidado. Para dar
concretude ao objetivo geral, os objetivos específicos da pesquisa,
são dispostos em três seções: a) conceituar as consequências do
trabalho não remunerado e a divisão sexual do trabalho; b) estudar
sobre a economia do cuidado; c) investigar o que aconteceria se as
mulheres decidissem cruzar os braços.
O seguinte estudo se apresenta como pesquisa qualitativa,
16 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

característica das ciências sociais, e tem como método o hipotético-


dedutivo, pois parte de uma hipótese inicial para, posteriormente,
realizar suas deduções acerca da confirmação da hipótese em casos
gerais. A pesquisa bibliográfica foi realizada nas bases de dados do
banco de teses da Capes, periódicos avaliados no Qualis da Capes,
bibliografia nacional e internacional. A pesquisa também possui
finalidade exploratória, mediante o emprego de técnica de pesquisa
bibliográfica, a partir de livros, matérias, revistas e artigos científicos
sobre a temática.

Trabalho não remunerado e a divisão sexual do trabalho

A realidade das mulheres no sistema capitalista, diante das


predisposições econômicas convencionais, estatísticas nacionais
utilizadas no Brasil e o recorte das políticas macroeconômicas, não
contabiliza e não considera o universo do trabalho não remunerado.
Ademais, o fruto desse trabalho é de fato invisível, também não é
instrumento de políticas públicas.
A história evidencia que as mulheres estiveram presentes
à dominação masculina, o que evidenciou em múltiplos atos
discriminatórios devido a seu gênero, levando-as à margem da
sociedade simplesmente por serem mulheres. Estas desigualdades
são incontestáveis, tendo afetado todas as áreas de suas vidas,
inclusive suas relações de trabalho e os tipos de atividades que
desempenham em seus empregos (SCOTT, 1990).
O debate sobre o trabalho doméstico começou a ganhar
destaque no final dos anos 70 e focou principalmente em dois
aspectos distintos. O primeiro aspecto se concentra em uma
discussão conceitual sobre a natureza do trabalho doméstico e como
ele se relaciona com o modo de produção capitalista. O segundo
aspecto aborda a questão política da posição de classe das mulheres
e sua relação com o movimento socialista (BEAUVOIR, 2016).
Por vários anos o ambiente trabalhista foi destinado aos
homens, de modo que as mulheres eram responsáveis pelo cuidado
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 17

da casa, da família e dos filhos (COSTA; DIOTTO, 2022). Nesse


sentido:
O grande handicap da mulher foi um fato histórico. Aconteceu
quando o homem saiu à caça e ela se deixou ficar na caverna,
cozinhando, procriando, em plena vegetatividade. O homem
lutou, cresceu, criou a charrua e depois a astronave. A ação
assegurou o seu desenvolvimento mental. Enquanto isso,
a mulher, sempre na caverna (que passou a chamar de lar),
esperava, imutavelmente, a volta do caçador. (STUDART,
1987, p. 10).
O debate em torno da natureza do trabalho doméstico
passou por uma mudança significativa com a publicação do artigo
“Sobre a Economia Política do Trabalho Doméstico”, de Benston,
em 1969, no qual é enfatizada a função econômica do trabalho não
remunerado.
Diante disso, apesar dos avanços na vida das mulheres,
ainda persiste a percepção no mercado de trabalho, onde são
rejeitadas simplesmente por serem mulheres e consideradas
incompetentes devido à associação histórica com o trabalho
doméstico. Nesse contexto, fica evidente que as desigualdades,
discriminações e obediências de gênero permeiam todas as esferas
da vida das mulheres, inclusive no ambiente de trabalho e em seus
empregos. Com isso, torna-se essencial estudar e compreender as
discriminações de gênero no âmbito do trabalho, assim como a
proteção legal para as trabalhadoras e as consequências da divisão
sexual do trabalho (COSTA; GOULART, 2022).
Ademais, mesmo que nem todos os autores envolvidos no
debate fossem seguidores da corrente marxista, esta teoria teve
uma influência significativa durante as discussões. O debate inicial
desempenhou um papel importante ao fornecer comprovativo
para a aplicação dos conceitos marxistas na análise de um tipo de
trabalho que, até então, não era considerado dessa forma. A tese
principal era que o trabalho doméstico realizado pelas mulheres
como donas de casa seguia a lógica do capitalismo, portanto, o
trabalho doméstico era uma forma de trabalho intrínseca ao sistema
18 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

capitalista (FEDERICI, 2019).


Além de ser uma definição no campo da epistemologia,
essa questão também tem um caráter político. Os movimentos
feministas estão desempenhando um papel fundamental ao
conscientizar a sociedade de que, em grande parte, o trabalho de
reprodução social é realizado apenas pelas mulheres. Eles levantam
questionamentos sobre as tarefas femininas que são frequentemente
ignoradas e aceitas como algo natural, sendo vistas como expressões
de amor e dever materno (PINTO, 2003).
Outra questão importante é o desenvolvimento do conceito
de divisão sexual do trabalho e o aprofundamento do debate
a respeito, que permitem uma reavaliação das relações de poder
envolvidas no trabalho produtivo e reprodutivo, reconhecendo sua
evolução histórica e geográfica, assim como a interconexão com a
divisão do trabalho socialmente construída. A análise crítica das
relações de poder apresentada no desempenho dessas atividades
possibilitou avanços teóricos e empíricos em várias áreas, como
cuidados infantis e com idosos, obstáculos enfrentados pelas
mulheres em posições de liderança, restrições e oportunidades
para a participação política feminina, violência de gênero e outros
assuntos relacionados à vida pública e privada das mulheres
(HIRATA, 2007).
De acordo com as teóricas do campo feminista, a divisão
sexual do trabalho se manifesta através de relações sociais opressivas,
que trabalham as mulheres em uma posição de vulnerabilidade,
sobrecarga constante, violação de direitos e silenciamento. É por
meio da divisão de tarefas baseadas em gênero, raça e classe que as
relações de opressão e exploração se revelam. No caso das mulheres,
isso significa assumir as responsabilidades não remuneradas, que
exigem força e um trabalho contínuo sem reconhecimento, ao
mesmo tempo em que são forçadas a praticar atividades remuneradas
de menor prestígio e valorização (SAFFIOTI, 2014).
A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho
social decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 19

isso, é um fator prioritário para a sobrevivência da relação social


entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem
como características a designação prioritária dos homens à esfera
produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente,
a apropriação pelos homens das funções com maior valor social
adicionado (políticos, religiosos, militares etc.) (HIRATA, 2007).
Também, a divisão sexual do trabalho não é mera
coincidência, uma vez que as mulheres são as principais responsáveis​​
pela reprodução social. Essa realidade se expressa nas atividades
consideradas pequenas, simples e frequentemente desvalorizadas
no cotidiano. É nos gestos como preparar o café da manhã, passar a
roupa do companheiro ou patrão, e cuidar dos afazeres relacionados
aos filhos, como prepará-los para a escola, que as mulheres iniciam
sua jornada de trabalho. São essas atividades que mantiveram o
sistema capitalista em funcionamento (HIRATA, 2007).
Para o atual modo de produção, é do interesse que essas
atividades sejam desvalorizadas, não remuneradas e, mesmo assim,
realizadas diariamente. Isso porque o trabalho doméstico das
mulheres serve aos propósitos de aumentar a admissão de capital
e garantir a existência de sua comercialização mais valiosa, a força
de trabalho. O capitalismo tem interesse em manter as mulheres
executando essas atividades incessantes, que requerem tempo e
esforço, sem nenhuma compensação financeira (SAFFIOTI, 2014).
Com isso, o que se constata é que os avanços até então
obtidos, mais especificamente no ordenamento jurídico, não
têm sido acompanhados por avanços na prática do mundo do
trabalho, como por exemplo, as discriminações, o assédio, menores
salários, etc. Os acentuados processos de mudanças no ambiente
do trabalho têm repercutido fortemente na vida das mulheres,
devido a vários fatores, tais como: o crescimento do desemprego,
as exaustivas jornadas de trabalho, a não valorização da mão de
obra, a discriminação, o desnivelamento salarial, jornadas parciais,
exploração do trabalho feminino não remunerado, a mulher ser a
responsável pelo cuidado não só dos filhos, mas de toda família, dos
idosos, é cultural e não natural, também uma sociedade capitalista
20 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

sob a acepção do corpo feminino (COSTA; GOULART, 2022).


Assim, à medida que as mulheres se dedicam ao trabalho fora
de casa, elas também precisam enfrentar o trabalho doméstico, que,
em sua maioria, continua sendo exclusivamente responsabilidade
delas, devido à imposição cultural às mulheres. Diante dessas
reflexões, na próxima seção, abordaremos o estudo da economia
do cuidado.

Sobre a economia do cuidado

O trabalho de cuidado pode ser definido como aquele


necessário à saúde, ao bem-estar, manutenção e proteção de todas
as pessoas, crianças, jovens e idosos, saudáveis ou que necessitem de
atenção especial. Apesar de ser uma definição ampla, cabe observar
que o cuidado é, em essência, uma necessidade humana básica
e, para além disso, recebida e praticada diariamente, de forma
remunerada ou não.
Já a economia do cuidado, é um setor da economia
responsável pela prestação de cuidados e serviços que contribuem
com as gerações atuais e futuras. Especificamente, envolve os
cuidados com crianças, idosos, educação, saúde, serviços sociais e
domésticos, prestados de forma remunerada e não remunerada, de
maneira formal e informal.
A economia do cuidado envolve a produção e o consumo
de bens e serviços necessários para o bem-estar físico, social, mental
e emocional de grupos dependentes de cuidados, como crianças,
idosos, doentes e pessoas com deficiência, bem como saudáveis,
em idade ativa adultos. As atividades de produção econômica
relacionadas ao cuidado são amplas, incluindo serviços indiretos e
produção de bens.
A prestação direta de cuidados envolve tarefas relacionais
individuais entre o cuidador e o receptor de cuidados, como
amamentar um bebê, ajudar uma criança com o dever de casa,
cuidando de um idoso acamado ou dando apoio emocional a
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 21

alguém diagnosticado com uma doença terminal. Tal provisão


direta é apoiada por atividades indiretas de cuidado, que não
requerem o envolvimento de pessoa para pessoa, mas são, no
entanto, componentes indispensáveis da prestação de cuidados.
Isso inclui tarefas domésticas comuns – por exemplo, cozinhar,
limpar, lavar, fazer compras e reparos e manutenção domésticos –
bem como atividades adicionais em áreas rurais de regiões menos
desenvolvidas, como coleta de água e lenha ou processamento de
alimentos. (UN WOMEN, 2018).
Se por um lado, trata-se de um importante trabalho
que sustenta a vida, por outro, é um dos setores econômicos de
maior expansão, impulsionando o crescimento do emprego e do
desenvolvimento econômico no mundo. Um exemplo é que, nos
países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico – OCDE, a economia do setor de serviços representa
mais de 70% do emprego total e do Produto Interno Bruto – PIB.
Em países de renda média e baixa, a estimativa representa 60%
do PIB. Dentro do setor de serviços, os serviços de assistência é
um dos subsetores que mais cresce. (CARE WORK AND THE
ECONOMY, 2021).
A Organização Internacional do Trabalho – OIT, estima
que relativamente ao emprego global do setor de cuidados
aconteça um crescimento de 206 milhões para 358 milhões até
2030, relacionados a mudanças sociodemográficas. Esse número
pode chegar a 475 milhões, caso os governos invistam em recursos
para atingir as metas de desenvolvimento sustentável das Nações
Unidas em educação, saúde, cuidados de longo prazo e igualdade
de gênero1.
No Canadá, por exemplo, o setor de serviços já representa

1 Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – Objetivos do Milênio - são


uma agenda mundial adotada durante a Cúpula das Nações Unidas sobre o
Desenvolvimento Sustentável em setembro de 2015, composta por 17 objetivos e
169 metas a serem atingidas até 2030. Entre os objetivos está o ODS5, que trata da
igualdade de gênero e traz um conjunto de metas a serem alcançadas para efetivar essa
igualdade.
22 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

75% dos empregos e 78% do PIB. Neste setor, os serviços de saúde,


assistência social e educação são os principais impulsionadores do
crescimento econômico e do emprego. Nos Estados Unidos, a saúde
já é o maior empregador, ultrapassando as indústrias siderúrgica e
automobilística. Assim, seguindo essa tendência, a economia atual
e futura será cada vez mais dominada por serviços de cuidado e
trabalho de cuidado. (CARE WORK AND THE ECONOMY,
2021).
Mesmo assim, grande parte do trabalho de cuidado continua
a ser realizado gratuitamente, por familiares e amigos, em casa e nas
comunidades. Esse trabalho de cuidado não remunerado não está
incluído nos indicadores econômicos nacionais e internacionais,
que apenas consideram o trabalho remunerado e formal. Portanto,
se a medida da economia for apenas o PIB e o crescimento
econômico, uma parte considerável das atividades econômicas se
perde. A pandemia demonstrou que sem o trabalho de cuidado,
remunerado ou não, a economia não seria capaz de funcionar de
forma eficaz, nem de se sustentar. (CARE WORK AND THE
ECONOMY, 2021).
O trabalho de cuidado é um elemento essencial para o
bem-estar humano, e um importante elemento para uma economia
em desenvolvimento e sustentável, com uma força de trabalho
produtiva. O trabalho de cuidado garante uma complexa teia que
sustenta a vida e pela qual as mulheres são as principais responsáveis.
Elas assumem uma parcela desproporcional do trabalho não
remunerado em todo o mundo, e os desequilíbrios de gênero na
distribuição do trabalho de cuidado são uma das principais causas
do desempoderamento econômico e social das mulheres.
De acordo com a OIT, a economia do cuidado está
crescendo à medida que a demanda por cuidados infantis e cuidados
com os idosos está aumentando em todas as regiões. Assim, criará
um grande número de empregos nos próximos anos. No entanto,
o trabalho de cuidado em todo o mundo continua caracterizado
pela falta de benefícios e proteções, baixos salários ou não
remuneração e exposição a danos físicos, mentais e, em alguns
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 23

casos, sexuais. Desta forma, são necessárias novas soluções para o


cuidado em duas frentes: no que diz respeito à natureza e à oferta de
políticas e serviços de cuidado e aos termos e condições do trabalho
de cuidado. (INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION,
2023).
Assim, entende-se por economia do cuidado (care economy),
o trabalho majoritariamente realizado por mulheres, dedicado à
manutenção da vida e bem-estar das pessoas no meio em que estão
inseridas. Quando realizado no âmbito doméstico é invisibilizado,
ao passo em que no meio profissional, em geral terceirizado, é mal
pago (MENA, 2020).
De acordo com Mena (2020, online),
Em linhas gerais, trata-se da imposição social às mulheres
da criação dos filhos, do cuidado com parentes idosos e do
gerenciamento da casa sem que as tarefas exercidas e o tempo
demandado por elas sejam financeiramente recompensados,
reconhecidos ou apoiados da porta de casa para fora (ou até
para dentro), como por governanças, legisladores e a sociedade
em geral.
Historicamente, o mercado de trabalho relega às mulheres
a um papel secundário, onde cargos e salários mais elevados são
destinados aos homens, fazendo com que a pauta da economia do
cuidado esteja nas discussões de organizações feministas em todo o
mundo. Mena (2020, online) observa que
A lógica entre esses dois fatores é simples: quanto mais tempo
e energia a mulher despende trabalhando em casa, menos
horas e disposição ela tem para se dedicar à carreira. Dentro da
dinâmica familiar, muitas vezes “compensa” que seja a pessoa
que ganha mais e com maior possibilidade de ascensão, ou
seja homem, que saia para trabalhar. Já o Estado se exime do
papel de ajudar a transformar essa cultura desigual, reforçando
o círculo vicioso.
Tem-se, portanto, que as mulheres carregam um fardo
desproporcional. Além disso, os dados sobre o trabalho de cuidado,
dão conta da imensidão do número de horas que é preciso para
manter a economia do cuidado funcionando e a extensão da
24 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

diferença de gênero neles contida. Do total mundial de horas de


trabalho remuneradas mais não remuneradas, 41% são gastos em
trabalho de cuidado não remunerado e a participação das mulheres
é de 76%. Em média, a carga de trabalho semanal não remunerada
das mulheres é de mais de três vezes a dos homens. (UN WOMEN,
2018).
Há um consenso generalizado em pesquisas acerca
das desigualdades de gênero que as mulheres assumem
desproporcionalmente no trabalho de cuidado não remunerado.
Isso constitui uma causa fundamental de sua economia e
desempoderamento social. As enormes disparidades de gênero
em tempo de trabalho de cuidado não remunerado se traduzem
em lacunas paralelas ao tempo de trabalho remunerado e gera
sistematicamente desigualdades, incluindo a disparidade de gênero
no emprego, segregação horizontal e vertical de empregos de
gênero, a ganhos em razão de gênero e disparidade de riqueza, bem
como lacunas de gênero na representação política e na tomada de
decisões. (UN WOMEN, 2018).
Este cenário, que sobrecarrega desproporcionalmente as
mulheres, traz à tona o questionamento sobre o que aconteceria se
elas decidissem não mais ocupar o topo do ranking nos trabalhos de
cuidado.

O que aconteceria se as mulheres decidissem cruzar os


braços?

O trabalho de cuidado é essencial. Cuidadores


remunerados e não remunerados cuidam de milhares de pessoas,
incluindo crianças, idosos e pessoas com deficiência. Os cuidados
incentivam o desenvolvimento na primeira infância , permitem uma
maior qualidade de vida e proporcionam um trabalho significativo.
Hoje, entretanto, a maior parte do trabalho de cuidado
em todo o mundo não é remunerado ou subvalorizado e recai
desproporcionalmente sobre mulheres e meninas. A pandemia de
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 25

Covid-19 piorou essa disparidade de gênero, empurrando milhões


de mulheres para fora do mercado de trabalho como cuidadoras
de crianças ou familiares doentes. Simultaneamente, os cuidadores
remunerados enfrentam falta de apoio, benefícios limitados e
pouco controle sobre as condições do local de trabalho.
A economia do cuidado ganha contornos diferentes ao
redor do mundo. Onde os cuidados formais estão mais disponíveis,
o alto custo pode limitar o acesso e, ainda assim, os cuidadores
são mal pagos. Em muitas áreas, o cuidado infantil é muitas vezes
informal ou indisponível, limitando as opções para as mulheres
buscarem outros empregos. Em outros lugares, o trabalho de
cuidado muitas vezes recai sobre os trabalhadores domésticos,
muitos deles migrantes, que têm poucos direitos legais e podem ser
explorados .
Se todos os profissionais de saúde do mundo fossem uma
economia nacional, ela estaria entre as maiores do mundo em horas
trabalhadas. Também consistiria principalmente de mulheres, e
elas seriam em sua maioria não remuneradas. Em grande parte do
mundo, a tradição confia o cuidado das crianças, dos doentes e dos
idosos às mães, esposas e filhas, e essas obrigações não remuneradas
perpetuam as desigualdades no trabalho, na sociedade e no lar,
privando mulheres de seu próprio florescimento humano e seus
países de uma grande fatia do PIB potencial. No entanto, o trabalho
de cuidado também é uma pedra angular da vida econômica e
social. (THE ASIA FOUNDATION, 2023).
Pesquisa realizada no Brasil durante a pandemia da
COVID-19, mostrou que as condições de trabalho se transformaram
durante a pandemia, sobrecarregando, especialmente, as mulheres.
“Metade das brasileiras passou a cuidar de alguém durante
esse período, e 41% das mulheres com emprego afirmam estar
trabalhando mais do que antes.” (FIOCRUZ, 2020).
E o que aconteceria se as mulheres, as cuidadoras, não
estivessem mais disponíveis para executar tarefas essenciais para o
funcionamento da vida em sociedade, mas invisibilizadas?
26 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

É preciso lembrar, como observa Pinto (2023, online)


que a “desigualdade de gênero é uma bola de neve na vida das
mulheres.” Some-se a isso o teto de vidro2 no mercado de trabalho,
especialmente se forem mães ou estiverem em idade reprodutiva.
Por outro lado, é às custas do trabalho não remunerado que o
mundo sobrevive e que os homens progridem em suas carreiras e em
seu crescimento econômico. Mesmo assim, o trabalho de cuidados
ainda é considerado secundário, justamente porque sempre foi
realizado pelas mulheres, que não são encorajadas a questionar o
valor do seu esforço (PINTO, 2023).
Mas as mulheres começam a questionar o lugar que lhes
foi socialmente imposto com algumas iniciativas grevistas. Em
2016, na Polônia, mais de cem mil mulheres organizaram marchas
e paralisações, questionando a proibição do aborto no país. Em
2017, o movimento grevista ganhou o mundo, quando milhares de
mulheres entraram em greve juntas ao redor do globo (ARRUZZA;
BHATTACHARYA; FRASER, 2019).
[...] as greves feministas de hoje estão recuperando nossas
raízes nas lutas históricas pelos direitos da classe trabalhadora
e pela justiça social. Unindo mulheres separadas por oceanos,
montanhas e continentes, bem como por fronteiras, cercas
de arame farpado e muros, elas dão novo significado ao lema
“Solidariedade é nossa arma.” Abrindo caminho em meio
ao isolamento dos muros interno e simbólicos, as greves
demonstram o enorme potencial político do poder das mulheres:
o poder daquelas cujo trabalho remunerado e não remunerado
sustenta o mundo. (ARRUZZA; BHATTACHARYA;
FRASER, 2019, p. 32-33. Grifo das autoras).
No cerne desses novos movimentos grevistas, está a discussão
sobre a ampliação da categoria trabalho, “ao tornar visível o papel
2 Mesmo em se tratando de uma metáfora, o teto de vidro é uma barreira real que
impede as mulheres de chegar aos pontos mais elevados da carreira, em cargos de
nível gerencial e executivo dentro de uma organização ou indústria. O termo se
refere às dificuldades enfrentadas especialmente por mulheres para alcançar os cargos
mais prestigiados na hierarquia corporativa, dominados por homens. Essas barreiras
não são escritas, o que significa que é mais provável que as mulheres sejam impedidas
de avançar por meio de normas aceitas e preconceitos implícitos, em vez de políticas
corporativas definidas.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 27

indispensável desempenhado pelo trabalho determinado pelo


gênero e não remunerado na sociedade capitalista, esse ativismo
chama atenção para atividades das quais o capital de beneficia,
mas pelas quais não paga.” (ARRUZZA; BHATTACHARYA;
FRASER, 2019, p. 33).
Pinto (2023, online) lembra que “hoje, a Islândia está na
vanguarda de igualdade de género, e foi este o momento simbólico
que fez com que as mulheres fossem vistas de outra forma.” De
acordo com a autora, o país, sob muitos aspectos, parou, fazendo
com que muitos homens fossem confrontados com a necessidade
de realização de tarefas estranhas ao seu cotidiano.
De fato, em nenhum lugar do mundo os homens fazem
tanto trabalho de cuidado quanto as mulheres. Globalmente,
as mulheres realizam mais de três quartos de todo o trabalho de
cuidado não remunerado e representam dois terços da força de
trabalho de cuidados pagos. As mulheres realizam 12,5 bilhões de
horas de trabalho de cuidado não remunerado todos os dias, o que
equivale a 1,5 bilhão de pessoas trabalhando oito horas por dia sem
remuneração (OXFAM, 2020).
Quando o trabalho de cuidado remunerado e não
remunerado é considerado em conjunto, globalmente o trabalho
das mulheres equivale a seis semanas por ano de trabalho em tempo
integral a mais do que os homens. Não é que as mulheres não
trabalham, é que trabalham demais, e a maioria do seu trabalho
não é remunerado, desconhecido e invisível (OXFAM, 2020).
Isso não é acidental. É causado por um modelo econômico
patriarcal e extrativista que dirige uma vasta acumulação de
riqueza para as mãos do 1% mais rico, enquanto impulsiona
simultaneamente a marginalização das mulheres, com base
na percepção de falta de valor e subinvestimento crônico em
cuidados. Neste sistema econômico, os governos continuam a
subtributar os ricos às custas dos pobres, especialmente mulheres
de classe socialmente desfavorecidas, que continuam a sofrer com
rendimentos reduzidos, maior tempo de pobreza e níveis pesados e
28 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

desiguais de trabalho invisível e não pago. (OXFAM, 2020).


De acordo com a ONU Mulheres (UN WOMEN,
2018) a centralidade do trabalho de cuidado não remunerado e
a economia para a política de desenvolvimento, se estrutura sobre
três pilares fundamentais: primeiro, o trabalho de cuidado não
remunerado constitui quase metade do tempo de trabalho global
total, contribuindo com insumos físicos e sociais essenciais para a
reprodução saudável das pessoas diariamente, mas a maior parte do
fardo recai sobre as mulheres. Em segundo lugar, os desequilíbrios
de gênero na carga de trabalho de cuidado não remunerado atuam
como uma fonte sistemática de desigualdades de gênero em uma
série de outros resultados econômicos e sociais (UN WOMEN,
2018).
A reorganização da economia do cuidado deveria corrigir os
desequilíbrios de gênero no trabalho de cuidado não remunerado
sendo, portanto, um componente indispensável de qualquer
intervenção política para a igualdade de gênero. Terceiro, além do
gênero e das desigualdades, a economia do cuidado desenvolve a
questão política, que também diz respeito à redução da pobreza,
eliminação das desigualdades por status socioeconômico, criação de
empregos decentes e desenvolvimento sustentável e inclusivo. (UN
WOMEN, 2018).
Portanto, se as mulheres decidissem cruzar os braços, não
assumindo mais a quase total responsabilidade pelo trabalho de
cuidados, certamente o mundo iria parar.

Considerações finais

Antes de tudo, é importante destacar que as mulheres


sempre estiveram envolvidas em atividades de trabalho. As mulheres
brasileiras enfrentaram desafios, conquistas, vitórias, casamentos,
divórcios, sofrimentos e também perpetraram violências. Elas
resistem uma resistência notável ao longo da história.
A história das mulheres brasileiras é caracterizada por
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 29

mudanças constantes, especialmente nas suas posições como


esposas, mães e trabalhadoras. As mulheres foram protagonistas de
uma das transformações sociais mais do século XX: a resistência
feminina contra violências, a ocupação de espaços públicos e o
reconhecimento constitucional dos direitos das mulheres. Durante
o período da colonização do Brasil, as mulheres tiveram uma
variedade de papéis, como agricultoras, vendedoras, doceiras,
lavadeiras, parteiras, dentre outros.
A evolução das mulheres no mercado de trabalho permitiu
que elas ocupassem postos e lugares tidos somente como masculinos.
Os cuidados do lar e dos filhos já não são exclusivamente as únicas
atividades que as mesmas desempenham no âmbito econômico e
social.
Dessa forma, a resposta para a problemática dessa pesquisa:
Em que pese as construções sociais que permeiam a vida das
mulheres, quais os aspectos que norteiam uma emancipação em
relação a ética do cuidado e divisão sexual do trabalho? Portanto,
um dos principais aspectos é uma educação pautada na inserção
do recorte de gênero e raça, políticas públicas efetivas, que visem à
transformação da condição desigual das mulheres. Por outro lado,
cabe ao Estado reconhecer que a economia do cuidado gira em
torno das mulheres e que elas devem ser devidamente remuneradas
por isso. Para tanto, são necessárias políticas públicas direcionadas
ao suprimento dessa lacuna, erroneamente alicerçadas na concepção
de uma ética do cuidado que apenas sobrecarrega as mulheres.

Referências

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Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 31

Acesso em 28 jun. 2023.


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mulheres entrassem em greve? Expresso 50, 2023. Disponível
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the-care-economy Acesso em 28 jun. 2023.
Capítulo 2

A sub-representatividade como barreira de


acesso das mulheres na política brasileira

Marli Marlene Moraes da Costa


Georgea Bernhard

Considerações iniciais

D esde os primórdios das relações humanas, a mulher


sempre foi inferiorizada nos espaços sociais, refletindo
os aspectos culturais enraizados no pensamento patriarcal e sexista
de uma sociedade que a enxergava apenas como um ser reprodutivo,
incumbida de realizar as tarefas pertinentes ao lar e responsável por
zelar pelos filhos, à medida que desempenhar essas atividades estava
pré-determinada pela sua condição biológica. Essas atribuições,
direcionadas exclusivamente ao desempenho feminino se baseavam
de forma genuína na inferioridade das mulheres perante os
homens, se fortalecendo através de diversos discursos opressores,
que buscavam legitimar a desigualdade de gênero, em que todas as
atividades relacionadas ao poder e gestão da família deveriam ser
destinadas exclusivamente ao sexo masculino e todas as mulheres
obrigatoriamente deveriam se submeter a ele.
Diante disso, reclusas em seus lares e reféns de um sistema
androcêntrico e opressor, as mulheres começaram a compreender
a origem desse cenário reprodutor de desigualdades, percebendo
que as formas de controle pelo patriarcado não eram restritas
unicamente aos seus lares, mas sim, a todas as mulheres.
Portanto, as feministas propagaram a ideia de que o social
é político, tratando-se de uma organização onde as mulheres
até podem participar, porém, com diversas restrições, pois o
34 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

entendimento entre os homens era de que elas não possuíam o


conhecimento necessário para participar ativamente da sociedade
através da tomada de decisões. Trata-se de um poder que visa
reprimir todos os movimentos em prol da igualdade entre os
gêneros, repleto de discursos misóginos e sexistas.
A partir dessa tomada de consciência, as mulheres se
encorajaram a lutar pelo seu espaço na sociedade, onde até então
era caracterizado por uma visão androcêntrica, corroborando
para sua permanência em situações de inferioridade em razão do
gênero. Decididas a transformar essa realidade com o fundamento
na perspectiva de equiparação entre os sexos, se iniciaram diversos
movimentos feministas, protagonizados por mulheres que
rejeitaram a ideia de que a sua identidade era determinada pelo
fator biológico, pois todas tinham sonhos que ultrapassavam a
esfera doméstica.
Diante disso, surge de forma intensa reinvindicações
feministas com a finalidade de reconhecer e conquistar os espaços
femininos, dando voz às suas demandas e possibilitando uma vida
digna e igualitária às mulheres e que esta ultrapassasse as fronteiras
do lar.
Assim, compreender os fatores que fortalecem essa estrutura
patriarcal, responsável por tentar calar tantas vozes femininas que
lutam por direitos mínimos, não é apenas relevante, mas necessário
para conseguir identificar os meios que fortalecem e alimentam
as práticas sexistas, a fim de legitimar discursos discriminatórios
contra o sexo feminino, refletindo nas desigualdades de gênero nos
espaços sociais, econômicos e políticos.
Uma das principais causas responsáveis pela ínfima
participação das mulheres nos espaços políticos é a divisão sexual do
trabalho, sendo mais um reflexo da desigualdade de gênero diante
da divisão de tarefas desempenhadas pelos homens e mulheres no
âmbito familiar, atribuindo essa responsabilidade apenas ao público
feminino, reforçando os ideais patriarcais ainda presentes em nossa
sociedade.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 35

Os impactos causados por essa prática cultural enraizada


nos modelos de comportamentos machistas, influenciam nos
baixos índices de participação de mulheres na política, pois tornam
o seu tempo escasso para desempenhar outras atividades a fim de
aperfeiçoar habilidades necessárias para trilhar esta caminhada.
Assim, exige-se disponibilidade para se preparar para o pleito
eleitoral, bem como, para desempenhar atividades relacionadas
a campanha em si, para que tenham condições de competir com
o sexo masculino e posteriormente, fazer parte desses espaços de
decisão.
Portanto, mesmo sentindo que a igualdade nos espaços
políticos pareça ser uma realidade distante, as lutas feministas se
intensificaram a fim de eliminar as desigualdades de gênero em
todas as esferas da vida das mulheres, para que elas possam usufruir
de uma liberdade plena de poder ser quem são em uma sociedade
que respeite isso, sem trazer prejuízo à sua existência pelo simples
fato de nascer mulher.

Evolução dos direitos políticos das mulheres

As lutas feministas trouxeram significativas mudanças


para a causa, sendo o sufrágio feminino uma dessas conquistas
extremamente relevantes. No Brasil, esse direito foi garantido em
1927 no Estado do Rio Grande do Norte, apesar das proibições
expressas ao voto feminino na Constituição Federal. Articulações
entre Bertha Lutz, importante ativista feminista e conhecida por
ser uma grande líder na luta pelos direitos políticos das mulheres e
Juvenal Lamartine, governador do Rio Grande do Norte naquela
época, permitiram a concessão do voto feminino às mulheres
(BRASIL, 2015).
A primeira eleitora registrada foi Celina Guimarães Viana,
a qual pleiteou o seu direito ao voto através da fundamentação
baseada no texto constitucional do estado que mencionava o direito
ao voto “sem distinção de sexo”. Logo após, em 1929, o Rio Grande
do Norte elegeu a primeira prefeita da América Latina, sendo ela
36 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Alzira Soriano, residente na cidade de Lajes. A eleição de Alzira


teve a sua validade questionada, contudo, o conservadorismo da
época sucumbiu às grandes manifestações feministas em busca da
representatividade feminina nos espaços políticos (BRASIL, 2015).
Dessa forma, em 1932, com a implementação do Estado
Novo e pelas mãos de Getúlio Vargas, o sufrágio feminino é
concedido às mulheres brasileiras. Apesar dos significativos avanços
nas áreas dos direitos políticos, educação, trabalho, entre outras,
as desigualdades ainda permaneceram, podendo ser ilustradas,
por exemplo, na sub-representatividade feminina na Câmara de
Deputados, totalizando um percentual de 15% após as eleições de
2018, quando na verdade, mais da metade da população brasileira
é composta por mulheres.
Conforme Delphy (1994), a industrialização transferiu uma
parte da produção exercida no espaço doméstico para as fábricas,
contudo, o lar não ficou restrito a um espaço reprodutivo, pois a
desigualdade de tarefas no trabalho não remunerado se caracteriza
como a base do patriarcado no mundo capitalista. Desta forma,
se vislumbra o modo como o público feminino é explorado
pelo sexo masculino, estando intimamente ligado à distinção do
trabalho remunerado e não remunerado, uma vez que o trabalho
exclusivamente desempenhado pelas mulheres e realizado de forma
gratuita (relacionado ao ambiente familiar no desempenho das
funções domésticas e na criação dos filhos), libera os homens de
suas obrigações no âmbito familiar, possibilitando assim que se
dediquem por mais tempo ao serviço remunerado.
A divisão do trabalho é decorrente das relações sociais
entre os gêneros, sendo regida por fatores históricos e culturais da
própria sociedade, priorizando a ocupação dos espaços produtivos
pelos homens, ficando as mulheres designadas apenas ao setor
reprodutivo. Concomitantemente, essa prática privilegia o sexo
masculino ao permitir que eles se apropriem de atribuições em
áreas com maior prestígio e valor social, podendo ser na política,
religião, serviço militar, entre outros.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 37

Nesse entendimento, Firmino e Silva (2015) abordam


sobre os efeitos impiedosos desse processo de distinção, podendo
ser observados desde o nascimento, onde as mulheres são vistas
ocupando profissões relacionadas ao cuidado com as pessoas e na
ínfima representação feminina nos espaços de poder e tomada
de decisões, bem como nas diferenças salariais entre homens
e mulheres, na jornada dupla de trabalho e na invisibilidade da
violência doméstica, onde muitas são vítimas.
O direito ao voto feminino no Brasil de forma plena foi
instituído em 1934, porém já em 1932 as mulheres podiam votar.
Foi durante o governo de Getúlio Vargas que este direito foi
reconhecido a fim de garantir o exercício da cidadania nos espaços
políticos. Contudo, após esse marco histórico na democracia
brasileira, o percentual de mulheres na política ainda é ínfimo.
Diante deste cenário, mulheres de todo o país lutam diariamente
para mudar essa realidade que traz consequências graves para
toda a população. Mulheres sub-representadas nos espaços de
poder indicam a inexistência de um olhar para as demandas,
particularmente femininas, que são silenciadas por aqueles que
exercem a maior parcela da representatividade: o sexo masculino.
Após uma breve contextualização sobre a evolução dos
direitos políticos das mulheres no Brasil, será feita uma análise sobre
o financiamento público da campanha eleitoral, bem como sobre
o percentual de representatividade feminina no sistema eleitoral do
país, tido como democrático.

O financiamento público da campanha eleitoral

O financiamento de campanha gera um debate no mínimo


curioso sobre o sistema eleitoral e tem gerado discussões sobre o
sistema de financiamento público, uma das principais bandeiras
das mulheres brasileiras em busca da igualdade de direitos. Nesse
cenário, cabe destacar a Lei n.º 13.165/2015, que alterou o inciso
V do artigo 44 da Lei n.º 9096/95 e o art. 9.º da Lei n.º 4.737,
de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral) que, à primeira vista,
38 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

parecem apontar para um caminho frutífero para financiamento


de campanhas eleitorais para as mulheres, visto que foi a primeira
legislação a determinar expressamente a reserva de um percentual de
recursos do Fundo Partidário para mulheres candidatas (SENADO
FEDERAL, 2016).
Entretanto, segundo Gonzatti (2018), a partir de um
olhar mais acurado sobre as disposições expressas na referida lei,
é possível identificar alguns aspectos mais prejudiciais do que
benéficos, conforme exposto em seguida. Ao alterar o art. 44
da Lei n.º 9096/95, a referida lei determinou que os partidos
políticos criassem e mantivessem programas de promoção e difusão
da participação política das mulheres, por meio da secretaria da
mulher do respectivo partido político ou, em caso de inexistência
por instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação
política, destinando no mínimo, 5% (cinco por cento) do total.
Em regra, essa alteração atende a uma demanda das
mulheres e uma necessidade focada na formação política de
mulheres. Portanto, representa um avanço porque financia uma
política interna dos partidos de recrutamento e formação política
de suas filiadas, preparando-as para uma futura disputa eleitoral.
Ocorre que, na mesma disposição, vai se permitir que este
recurso, quando não utilizado em programas de formação política
de mulheres, possa ser destinado ao financiamento de campanhas
femininas:
[...] V - na criação e manutenção de programas de promoção
e difusão da participação política das mulheres, criados e
mantidos pela secretaria da mulher do respectivo partido
político ou, inexistindo a secretaria, pelo instituto ou fundação
de pesquisa e de doutrinação e educação política de que trata
o inciso IV, conforme percentual que será fixado pelo órgão
nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5%
(cinco por cento) do total;
§ 5o O partido político que não cumprir o disposto no inciso V
do caput deverá transferir o saldo para conta específica, sendo
vedada sua aplicação para finalidade diversa, de modo que o
saldo remanescente deverá ser aplicado dentro do exercício
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 39

financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5%


(doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor previsto no
inciso V do caput, a ser aplicado na mesma finalidade.
§ 5o-A. A critério das agremiações partidárias, os recursos a
que se refere o inciso V poderão ser acumulados em diferentes
exercícios financeiros, mantidos em contas bancárias
específicas, para utilização futura em campanhas eleitorais de
candidatas do partido (BRASIL, 2015).
Ou seja, a legislação permite pela redação do §5.º, que
os recursos sejam utilizados para campanhas eleitorais e logo na
sequência, disciplina, em alteração ao art. 4.º do Código Eleitoral,
a destinação de recursos para as campanhas eleitorais, nas três
eleições subsequentes, determinando a destinação de 5% (cinco
por cento) e no máximo 15% do montante do Fundo Partidário
para as campanhas de candidatas, incluídos nesse valor os recursos
dos programas de formação (GONZATTI, 2018).
Evidente, portanto, que a legislação abriu a brecha para
que os partidos políticos, ao invés de definirem recursos específicos
para a formação política e para o financiamento de campanhas
femininas, autorizou a utilização daqueles para estes. Logo,
foram autorizados a usar 100% dos recursos para as candidaturas
masculinas. Um subterfúgio que ao invés de ampliar os recursos,
criou um mecanismo de não obrigatoriedade de programas de
formação política.
Segundo Gonzatti (2018), há uma evidente diferença
entre formação política e campanhas eleitorais. A campanha está
diretamente ligada ao processo de disputa eleitoral e a possibilidade
de eleição das mulheres, enquanto que a formação política é mais
ampla, destinada para a participação política ativa em todos os
âmbitos da sociedade, muito embora possa levá-la àquela.
Logo, o legislador não criou uma forma de financiamento
de campanhas e, sim, criou uma possibilidade de compartilhar
os poucos ou parcos recursos já existentes, possibilitando que os
recursos de formação política pudessem ser usados para campanha
eleitorais. Além disso, determinou um limite máximo de recursos
40 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

para as campanhas femininas, limitando a autonomia partidária


caso decidisse em aplicar recursos em montante superior ao definido
em lei. No mínimo, há uma clara interferência na autonomia
partidária, por um lado, e benefício direto aos candidatos homens,
que no mínimo se beneficiariam de 85% dos recursos do fundo
partidário para o financiamento de suas campanhas.
O avanço significativo ocorreu com a decisão do STF
na Ação Direta da Inconstitucionalidade - ADI n.º 5.617,
proposta pela Procuradoria-Geral da República que questionou
a constitucionalidade de determinar a destinação de percentual
mínimo (5%) e máximo (15%) dos recursos do Fundo Partidário,
frente à obrigatoriedade de que as mulheres sejam, no mínimo, 30%
das candidatas em face à lei de cotas. Também questionou a fixação
da vigência por apenas três eleições consecutivas, considerado
período insuficiente para superar a história da sub-representação
feminina.
A ADI, que foi julgada em sessão de 15 de março de
2018, reconheceu a inconstitucionalidade do art. 9º da lei em
debate. Determinou que a destinação de recursos às campanhas
das candidatas mulheres deveriam ser na proporcionalidade das
candidaturas, considerando o percentual mínimo de 30% dos
recursos do Fundo Partidário. Da mesma forma, foi reconhecida
a inconstitucionalidade da fixação do prazo, cuja medida deve
perdurar enquanto for justificada a necessidade de cotas de gênero
para candidaturas (GONZATTI, 2018).
Não há como negar que essa decisão representa um grande
avanço na perspectiva da superação da barreira econômica que
impacta negativamente no sucesso eleitoral das mulheres.
Com a decisão, não compete mais ao partido decidir sobre
percentual dos recursos do Fundo Partidário a ser destinado, nem
em utilizar os recursos de formação política. Trata-se de um novo
recurso, de origem pública, a financiar as campanhas eleitorais
femininas. Essa decisão passou a valer para o processo eleitoral de
2018. Os dados de financiamento das campanhas já demonstram a
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 41

alteração na forma de financiamento das campanhas femininas. Se


antes desta decisão, as mulheres, em regra, alcançavam percentual
inferior a dois dígitos, nesta passaram a usufruir de 30% do recurso
partidário (GONZATTI, 2018).
As mudanças trazidas pela Lei n.º 13.165/2015 foram
positivas no que se refere especialmente ao financiamento
de campanha, não pelas próprias disposições, mas por terem
motivado uma decisão judicial que promoveu maior equidade na
disputa eleitoral e enfrentou a barreira econômica que prejudica
as candidaturas femininas. Ainda sobre financiamento eleitoral,
em 2017, o Congresso Nacional aprovou a Lei n.º 13.473/2017
que instituiu o Fundo Especial de Financiamento de Campanha
– FEFC, cujos recursos serão exclusivamente destinados ao
financiamento das campanhas eleitorais. No entanto, essa lei não
dispôs sobre discriminação positiva paras as mulheres ao não definir
percentual de financiamento de campanhas femininas.
Em consulta formulada por parlamentares ao TSE, acerca da
aplicabilidade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal
em sede da ADI nº 5.617 na destinação dos recursos do FEFC,
houve decisão unânime favorável, determinando que os partidos
políticos devem garantir ao menos 30% do Fundo Especial de
Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda
gratuita para candidaturas femininas.
Constata-se que, mesmo após a implementação de iniciativas
que visam fomentar a participação da mulher na política, como a
criação das cotas e a destinação de 30% dos recursos advindos do
Fundo Eleitoral às mulheres, a fim de viabilizar financeiramente as
campanhas políticas das candidatas em todas as suas etapas, ainda
há um longo caminho a ser percorrido, apesar das várias conquistas
até aqui obtidas.
42 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Fatores que corroboram para a desigualdade de condi-


ções entre homens e mulheres nas mais diversas esferas
da vida

Compreender e identificar os fatores que dificultam o


acesso das mulheres na vida política não é apenas relevante, mas
necessário para conseguir visualizar a forma como os fatos ocorrem
a fim de enfraquecer as práticas sexistas que contribuem para as
desigualdades de gênero nos espaços políticos. Uma das principais
causas atinentes à tímida participação das mulheres nesses espaços
é a divisão sexual do trabalho, que centraliza as tarefas pertinentes
ao lar apenas ao público feminino, tornando o tempo escasso para
desempenhar outras atividades e aperfeiçoar habilidades.
Ao homem é atribuída a representação da humanidade, o
mundo se define em masculino, e este fenômeno é denominado
androcentrismo, consistente em considerar o homem como medida
de todas as coisas (GARCIA, 2015). Segundo esta concepção,
o pensamento masculino é muito valorizado, e origina e instiga
pensamentos machistas, conservadores e moralistas, procurando
manter a ordem desigual estabelecida entre os sexos.
A organização política, religiosa, econômica e social também
possui um papel relevante na perpetuação das desigualdades
existentes, pois são baseadas na ideia de autoridade e liderança do
homem, na qual se dá a dominação dos homens sobre as mulheres,
o que é considerado, pelas feministas dos anos 70, como o novo
conceito de patriarcado. Por sua vez, o patriarcado moderno utiliza
um conjunto de métodos para manter a situação de subordinação
e exploração do sexo feminino dominado, chamado de sexismo,
segundo o qual uma parcela da sociedade é discriminada pelo seu
gênero ou orientação sexual. Desta forma, para estudar e explicar
a opressão das mulheres, com o intuito de alterar a desigualdade
existente, se faz necessário incorporar o estudo de gênero nas
relações sociais (MIGUEL, 2010).
Para Beauvoir (2016b, p. 11) o “sujeito” é sempre já
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 43

masculino, fundido com o universal, pois “o homem representa


a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de se dizer “os
homens” para designar todos “os seres humanos”. Afirma que a
“humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em
si, mas relativamente a ele”, ela não é pensada sem o homem e é
considerada o que ele decida que seja. A mulher é determinada e
diferenciada em relação ao homem e não em relação a si própria,
mais precisamente “o homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro”
(BEAUVOIR, 2016a, p. 12).
Para Beauvoir, o gênero feminino é fruto de uma construção
social, razão pela qual a luta das mulheres pela igualdade consiste
“numa das mais longas lutas da história da humanidade, porque
o tratamento desigual e a ‘marca de inferioridade’ acompanham-
nas desde os primórdios, excluindo-as do pleno gozo e exercício
dos direitos inalienáveis do ser humano”. A identidade de gênero
é determinada por, entre outros fatores, não somente pelo sexo
biológico, mas também pelas experiências vividas a partir do
assinalamento do sexo (CARVALHO, 2006, p. 17).
Segundo Bourdieu (2018), aquilo que parece eterno na
história não é mais do que o produto de um trabalho de eternização
que compete a instituições interligadas, tais como a Família, a
Igreja, a Escola, e também, em outra ordem, a política.
Carvalho (2006), ao analisar o papel da família na ação
histórica da relação entre os sexos, afirma que esta instituição não
é um grupo natural, mas sim cultural, pois é através dela que se
transmitirá a cultura que norteará as condutas dos indivíduos e o
papel que ambos os sexos representarão no meio social. Ao analisar
as desigualdades sociais entre os gêneros como uma consequência
cultural, é possível entender porque as demandas das mulheres
também no campo político, variam consideravelmente de acordo
com a cultura, religião, condições políticas de cada sociedade, além
de sua instrução e classe social.
Desta forma, a vida social, política, econômica, religiosa,
são influenciadas pelas diferenças sexuais, colocando, de forma
44 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

natural e quase inquestionável, os homens nos espaços públicos e


limitando as mulheres aos espaços privados, além de perpetuar a
dominação masculina.
Segundo Biroli (2013, p. 13), as democracias liberais
promoveram a universalização dos direitos, mas privaram um
grande contingente de indivíduos das condições que possibilitam
o exercício da autodeterminação e autonomia, através das
desigualdades estruturais existentes na sociedade. “O controle dos
recursos materiais e simbólicos corresponde diretamente a posição
de classe, de gênero, ao pertencimento a grupos étnicos e raciais e às
identidades sexuais”, razão pela qual na análise dos mecanismos de
reprodução da desigualdade classe, gênero, raça e sexualidade não
podem ser tomadas separadamente.
A referida autora, ao analisar os limites da democracia,
define as instituições e os pensamentos liberais como incompletos
e inadequados, pois “o pressuposto normativo de igual valor dos
indivíduos é rompido sistematicamente no cotidiano das sociedades
democráticas liberais contemporâneas”. Tal conclusão se deve ao
fato de considerar que são desiguais as condições, tanto simbólicas
como materiais, nas quais os indivíduos buscam determinar
autonomamente as suas vidas e exercem sua liberdade, assim como
considera “desiguais as garantias de integridade individual (física
e psíquica) e de igual participação nas decisões que lhe afetam”
(BIROLI, 2013, p. 12).
Beauvoir, também expressou sua preocupação com a
sobrecarga feminina quando da necessidade de conciliar o ofício
com a vida doméstica (refeições, compras, cuidado das roupas,
limpeza), que segundo ela, na época, lhes tomavam três horas e meia
de trabalho cotidiano e no mínimo seis horas do domingo, o que
lhes impôs outra servidão, por continuar responsável também pela
casa e pelos filhos. Percebe-se, pois que os “deveres” com os afazeres
domésticos e com o cuidado para com os familiares ainda tornam
a posição da mulher no mercado de trabalho desigual, por exigir
dela no mínimo um turno a mais de trabalho fora do ambiente
profissional e por depositar sob sua reponsabilidade os cuidados
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 45

com os seus, que geram, por vezes, necessidade de se ausentar do


ambiente laborativo (PRIORI, 2014).
Diante do exposto, percebe-se que a responsabilidade
das mulheres aos encargos domésticos e de cuidado interferem
diretamente na sua vida pública, na sua qualidade de vida e
emancipação social. Reforçar ideais de famílias tradicionais
patriarcais em virtude dos retrocessos da ação estatal à proteção
social não é um caminho desejado pelos que buscam igualdade
entre os sexos, pelo contrário, é um caminho que perpetua mais
uma vez a ordem desigual estabelecida, contra a qual se luta.

Considerações finais

Constatou-se no decorrer da elaboração deste artigo, que


as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no campo político
são decorrentes das relações sociais entre os gêneros, sendo
regida por fatores históricos e culturais da própria sociedade,
priorizando a ocupação dos espaços públicos pelos homens. Os
direitos de cidadania são os direitos humanos, que devem nortear
os pressupostos da igualdade e do respeito entre todos os seres
humanos de forma que possam ter acesso ao espaço público e
condições dignas para sua sobrevivência.
As dificuldades enfrentadas pelas mulheres para ocupar os
espaços públicos, (espaços de poder), também são reflexos da tomada
de decisões, resultantes de processos sociais, os quais estabelecem o
lugar que a mulher deve ocupar, de acordo com o sexo biológico.
Portanto, o baixo índice de mulheres na política não advém de uma
escolha individual, mas sim, dos arranjos estruturais que legitimam
a desigualdade entre os gêneros.
A sub-representação feminina nos espaços políticos de nosso
País, revela que a política institucional ainda permanece como um
espaço sexista e patriarcal, onde as decisões públicas são tomadas
pelos homens e são submetidas as mulheres. Cidadania significa
o exercício pleno dos direitos sociais, políticos e civis, de forma
46 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

que a não participação das mulheres nos processos decisórios, é um


cerceamento aos seus direitos políticos de cidadania.
Com a dupla ou tripla jornada de trabalho (especialmente
frente às demandas da vida privada atendidas após o horário
do trabalho remunerado), a mulher não dispõe de tempo para
participar da vida pública. Além dessa barreira imposta pela
construção social dos papéis de gênero, a voz feminina tem menos
credibilidade pública porque ao longo da história, a voz masculina
esteve vinculada ao exercício do poder, enquanto que a voz feminina
esteve vinculada à sensibilidade, a amorosidade com os filhos, ao
“recatado” espaço do lar. Portanto, é necessário um esforço muito
maior para que a voz feminina seja respeitada e “ouvida” nos espaços
públicos.
Deve-se considerar ainda, o fato de a mulher receber menos
dinheiro público (apenas 30%) do que o homem para realizar sua
campanha fere o princípio da igualdade constitucional. É óbvio
que aquele que tiver mais recursos financeiros conseguirá ampliar
a divulgação de sua campanha, tendo uma maior visibilidade
junto aos eleitores. A reserva de 30% do Fundo Eleitoral para
financiamento das campanhas femininas, sua modalidade de
aplicação e distribuição dos recursos destinados é discricionária,
ou seja, cada partido direciona os valores de acordo com critérios
instituídos pela própria sigla partidária. Na prática, recursos que
serviriam para fomentar a representatividade feminina, acabam
sendo direcionados para os candidatos que apresentam mais
chances de se elegerem e no contexto atual, os contemplados, em
sua maioria, são os homens.
Portanto, existem ações a fim de dar amparo e condições para
as mulheres concorrerem ao pleito, contudo, a sua aplicabilidade
precisa ser regulamentada e não submetida as vontades partidárias.
Neste aspecto, defende-se que a política de cota de 30% nas
eleições proporcionais deve ser rigorosamente cumprida por todos
os partidos políticos.
Como demonstrado no decorrer deste trabalho, embora
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 47

nem sempre as demandas das mulheres tenham sido exitosas


no âmbito das discussões no parlamento brasileiro, foi a partir
de importantes decisões judiciais, que advieram os verdadeiros
avanços na busca pela igualdade material nos processos de disputa
eleitoral. Um avanço significativo ocorreu com a decisão do
STF na Ação Direta da Inconstitucionalidade - ADI n.º 5.617,
proposta pela Procuradoria-Geral da República que questionou
a constitucionalidade de determinar a destinação de percentual
mínimo (5%) e máximo (15%) dos recursos do Fundo Partidário,
frente à obrigatoriedade de que as mulheres sejam, no mínimo, 30%
das candidatas em face à lei de cotas. Também questionou a fixação
da vigência por apenas três eleições consecutivas, considerado
período insuficiente para superar a história da sub-representação
feminina.
Também foi um avanço a possibilidade de utilização do
Fundo Partidário para financiamento de campanhas por meio da Lei
13.165/2015. Esta legislação determinou a destinação de recursos
para formação política e para a campanha de mulheres. Ressalta-
se que um subterfúgio foi usado pelos legisladores na redação da
referida lei, possibilitando que, não sendo usados os recursos para
a formação política, os mesmos poderiam ser usados para financiar
campanhas femininas. Logo, foi destinado um mesmo recurso para
fomentar duas ações distintas.
Conclui-se que ainda há resistências para a ocupação de
espaços de poder pelas mulheres na política. As forças conservadoras
sexistas e patriarcais continuam a criar barreiras político-jurídicas,
culturais e sociais que colocam as mulheres numa situação desigual
na disputa eleitoral. É necessário construir uma democracia
substantiva a partir da participação equitativa de homens e
mulheres em todos os âmbitos da vida pública, consubstanciando
uma perspectiva de igualdade material para além da igualdade
formal prevista em lei.
48 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

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Capítulo 3

“Aqui mora autoridade ou mulher?”: retratos


da desigualdade estrutural de gênero no Brasil
e seus novos contornos

Deise Brião Ferraz


Nariel Diotto

Considerações iniciais

O processo de opressão da mulher foi construído ao longo


de milênios. A história da humanidade demonstra que
a figura feminina sempre ocupou uma situação inferior em relação
à masculina: foram consideradas destituídas de razão, emotivas,
pouco racionais e organizadas, servis a procriação e afazeres
domésticos. De acordo com Costa e Diotto (2021), a pandemia
da Covid-19 trouxe ainda mais forte o debate das desigualdades
sociais, sobretudo, em relação às mulheres.
Conforme o estudo Panorama Social da América Latina
2020, o número de pessoas pobres aumentou em um total de 209
milhões no final de 2020, evidenciando uma piora dos índices de
desigualdade e das taxas de ocupação e participação no mercado de
trabalho, sobretudo das mulheres. O estudo também demonstrou
a prevalência da divisão sexual do trabalho e organização social
do cuidado, que são reflexos de um modelo político-econômico
baseado em hierarquias estruturais. Isso evidencia a condição de
vulnerabilidade das mulheres, inseridas, na maioria das vezes, em
posições inferiores no mercado de trabalho, atreladas a funções
naturalizadas como um destino biológico: o cuidado e a esfera
privada, funções pouco ou nada remuneradas.
52 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Outra preocupação evidenciada na pandemia foi a sobrecarga


feminina. Mulheres inseridas no mercado de trabalho, em um
contexto de isolamento social, passaram a cuidar, também, de seus
filhos, durante o período de aulas remotas, além dos cuidados da
casa - que passou a ser mais frequentemente ocupada - e de todas
as funções laborais rotineiras, o que evidentemente, causou uma
reconfiguração do ambiente doméstico. A prevalência de uma
divisão sexual de tarefas, que destina às mulheres todas as decisões
do ambiente doméstico, intensificou o cansaço e a sobrecarga física
e mental, além de se ter identificado o aumento dos índices de
violência doméstica e familiar e a perda de emprego de muitas
mulheres que não conseguiram dar conta desta nova realidade.
Todo esse cenário demonstra que a desigualdade é
estrutural e afeta todas as mulheres, principalmente aquelas
pertencentes a classes sociais mais vulneráveis. Mulheres que
tiveram suas vidas pessoais e profissionais afetadas pela pandemia,
que foram desqualificadas enquanto trabalhadoras e prejudicadas
por possuírem funções sociais distintas. Quando uma sociedade
está estruturada de maneira desigual, as mulheres e as minorias se
encontram em condições estruturalmente piores e isso é ainda mais
agravado ao longo dos anos pela má distribuição de renda.
Para analisar a desigualdade estrutural, este artigo parte da
análise da condição sociocultural das mulheres no Direito e no
sistema de justiça. Por óbvio, essas mulheres as quais este artigo
se refere estão inseridas em locais de maior privilégio, ao estarem
ocupando posições mais valoradas socialmente. Contudo, não
deixam de apresentar uma vivência de resistência e luta pelo seu
local de existência, o que serve de referencial para identificar as
nuances da desigualdade no Brasil.
Um exemplo bastante recente dessa desvalorização das
mulheres em sociedade foi o relato proferido na sessão plenária do
Supremo Tribunal Federal do dia 23 de março de 2022, em que a
Ministra Cármen Lúcia explanou a situação por ela – ocupante de
uma cadeira na mais alta Corte do Brasil – vivenciada. Narrou na
ocasião que um entregador foi à sua casa e perguntou para quem o
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 53

atendeu: “Eu vim entregar um documento e me disseram que era


para uma autoridade. Mas agora me disseram que aqui mora uma
mulher. Afinal, aqui mora uma autoridade ou uma mulher?”
(MIGALHAS, 2022, grifo nosso). Conforme propõe o título deste
apanhado, esse é apenas um fragmento do mosaico que compõe a
desigualdade estrutural de gênero no país.
Neste trabalho, parte-se da hipótese inicial de que tal
realidade é tão arraigada na sociedade que se reflete, inclusive, em
espaços privilegiados de poder como o judiciário. Aliás, seguindo
Serafim (2010) tem-se que o Poder Judiciário é o espaço de poder
mais impermeável à participação feminina e que a inserção das
mulheres na magistratura tenha auxiliado pouco na desconstrução
da ideologia dominante.
Embora o Direito possa servir como instrumento para
a mudança social e emancipação dos sujeitos, ainda cumpre
majoritariamente uma função de manutenção da ordem vigente e
reforça práticas discriminatórias. No que tange à desigualdade de
gênero, pode se verificar que isso se reflete na própria estrutura do
Poder Judiciário, em que há significativo aumento de mulheres na
carreira da magistratura, por exemplo, sem que haja um aumento
proporcional nos cargos de maior prestígio no judiciário.
Diante do cenário ora apresentado, o objetivo desse trabalho
é discutir, a partir do recorte da inserção feminina no Direito, a
desigualdade de gênero como fator estrutural da organização social
no Brasil, inclusive nos espaços privilegiados do poder. Para tanto,
será brevemente apresentada a contextualização da inserção tardia
das mulheres enquanto profissionais do Direito, acompanhada de
um aporte teórico que fundamenta a realidade ora denunciada
e ainda expõe a intensificação das desigualdades a partir da
sobrecarga feminina verificada na pandemia. Trata-se de pesquisa
exploratória e descritiva, conveniente para o relato de fenômenos
pouco estudados e com assentamento doutrinário escasso, com
técnica de pesquisa bibliográfica e documental.
54 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

O tempo é cronometrado de forma diferente para as mu-


lheres: inserção histórica no ensino jurídico

A história das mulheres no ensino jurídico e na prática


profissional dos cargos decorrentes dessa instrução, principalmente
a advocacia, é muito diferente a depender do gênero. Afirmar que o
tempo é cronometrado de forma diferente para as mulheres, assim
como exposto no título desta seção, é compreender que muito
tardiamente as mulheres tiveram acesso à educação jurídica, sendo
assim, não podem estar inseridas da mesma forma na história que
retrata a evolução do ensino jurídico e do Direito no Brasil. Refletir
acerca desse cenário é necessário para averiguar as desigualdades
ainda predominantes na esfera jurídica e suas origens, para então,
pensar em formas de sua desarticulação.
No momento em que se discutia, no país, a lei fundante
do Ensino Jurídico– que criava dois cursos jurídicos, um na cidade
de São Paulo e outro em Olinda -, em meados do ano de 1826, o
projeto enviado ao Senado e convertido em lei em 11 de agosto
do mesmo ano, com a sanção de Pedro I, dispunha, em seu art. 10
que os Estatutos do Visconde de Cachoeira regulariam a matéria
naquilo em que fossem aplicáveis, desde que não se opusessem à
lei (RODRIGUES, 1988). O referido Estatuto foi cristalino ao
apontar os motivos pelos quais deveria ser criado um curso jurídico
na Corte: para se formarem “[...] homens hábeis para serem um dia
sábios Magistrados, e peritos Advogados, de que tanto se carece;
e outros que possam vir a ser dignos Deputados e Senadores, e
aptos para ocuparem os lugares diplomáticos, e mais empregos do
Estado” (OLIVO, 2000, p. 58).
O registro da história não deixa qualquer dúvida de que
a vocação sob a qual nasceu os cursos de Direito é de caráter
eminentemente elitista e patriarcal, com a finalidade de formar
privilegiados que poderão ocupar lugares de destaque nas repartições
públicas. Relevante mencionar, ainda, que o Estatuto visou
formar homens hábeis para que estes sejam magistrados, peritos
e advogados ou deputados e senadores. Homens. Não mulheres.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 55

As mulheres sequer constam no texto, o que não pode ser tratado


como mera coincidência.
Apesar da criação dos cursos jurídicos ter ocorrido
oficialmente em 1837, somente se ouviu falar na possibilidade de
as mulheres ascenderem ao ensino superior na Reforma do Ensino
Primário e Secundário do Município da Corte e do Superior em
todo o Império, redigida pelo Decreto n. 7.247 de 19 de abril de
1879, também conhecida como Reforma Leôncio de Carvalho. As
mulheres que, de outro modo, pretendessem frequentar o ensino
jurídico, só teriam esse direito oficializado a partir do decreto
n. 3.890 de 1º de janeiro de 1901 que aprovou o Código dos
Institutos Oficiais de Ensino Superior e Secundário, que trazia em
seu art. 121 que seria facultada a matrícula aos indivíduos do sexo
feminino (BRASIL, 1901).
Note-se que se passaram 64 anos da criação do ensino
jurídico para que, então, as mulheres conquistassem um direito
que foi criado para ser desfrutado pelos homens. Há de se ressaltar,
ainda, que para a devida inscrição nos cursos era imprescindível o
pagamento de taxa de matrícula. Considerando que as mulheres
ocupavam uma função social bem definida no Império, adstrita em
grande parte aos afazeres domésticos e sem renda, o acesso tornava-
se ainda mais dificultoso. Mais ainda pela escandalização em torno
das mulheres que não desejavam ser apenas donas de casa e esposas,
o que ia na contramão dos padrões sociais esperados pelo gênero
feminino.
A pesquisa realizada pela professora Nailda Marinho – que
coordenou um estudo sobre a inserção e permanência feminina
nos cursos superiores do Rio de Janeiro ao longo dos séculos XIX
e XX, junto à Universidade Federal do estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), aponta que a primeira mulher brasileira a possuir
diploma de ensino superior foi Maria Augusta Generoso Estrela,
que se graduou em Medicina nos Estados Unidos, em 1881, tendo
sido, entretanto, Rita Lobato Velho Lopes, em 1887, a primeira
mulher a se graduar no Brasil (MOTTA, 2014). No âmbito do
ensino jurídico, foi Maria Augusta Saraiva a primeira mulher
56 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

a ingressar e colar grau na Faculdade de Direito do Largo São


Francisco (ALCÂNTARA, 2002).
Dessa brevíssima passagem no tempo, desde a criação
oficial dos primeiros cursos de Direito no Império, datada do ano
de 1827, até o início do século XX, tem-se a partir de registros
históricos, a informação estarrecedora de que, somente em 1888
surgem figuras femininas nas faculdades de Direito: Maria Fragoso,
Maria Coelho e Delmira Secundina da Costa são os nomes dessas
mulheres que foram as precursoras da luta pelo ingresso das
mulheres no ambiente eminentemente patriarcal das faculdades.
Em seguida, Maria Augusta Meira Vasconcelos, em 1889, também
passa a fazer parte deste grupo, todas na Faculdade de Direito de
Recife. Contudo, nunca chegaram a exercer a profissão (FERRAZ;
OLEA, 2019).
Entretanto, conta a história que o título de bacharela
conferido a essas senhoras se tratava de uma miragem, um holograma,
pois, não lhes garantia o exercício da profissão. Comparecer aos
tribunais e patrocinar causas soava como um desatino para as
mulheres que deveriam – no pensamento predominante da época,
estar em suas casas, cozinhando para que seus maridos - estes sim,
tornassem-se doutores e para que seus filhos crescessem. O padrão
de domesticidade imposto às mulheres impediu a sua emancipação
na esfera profissional, ao passo que não eram consideradas capazes
de desempenhar funções diferentes daquele destino biológico de
passividade que fora naturalizado no comportamento social.
Em uma ruptura no paradigma estabelecido, a primeira
mulher a conseguir finalmente exercer a advocacia foi Myrthes
Gomes de Campos. A fluminense, natural da cidade de Macaé,
concluiu o curso de Direito na Faculdade Livre de Ciências
Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, em 1898. Entretanto, teria
ainda de enfrentar os desafios para ser aceita no Instituto da Ordem
dos Advogados Brasileiros. Trata-se de um interregno de tempo
superior a 60 anos para que uma mulher buscasse seu ingresso no
quadro de advogados, dado que não pode ser desconsiderado na
discussão, a função social esperada das mulheres na sociedade da
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 57

época (GUIMARÃES; FERREIRA, 2009).


Segundo registros do Tribunal de Justiça do estado do Rio
de Janeiro, por óbvio que, à época, era incomum que uma mulher
construísse uma carreira sólida ou desejasse algo para além do
casamento. A própria família da advogada mostrou-se escandalizada
diante de seu desejo de ingressar na faculdade e a rejeição de seu pai
à ideia foi grande. Nas palavras de Guimarães e Ferreira (2009, p.
136) “O mister de advogado parecia facultado apenas aos homens,
já que era qualificado como ‘ofício viril’ pelo Direito Romano”,
direito que também era fundamentado por valores patriarcais e de
estereótipos femininos pré-estabelecidos.
Não bastassem todos os obstáculos enfrentados desde
a decisão de frequentar as classes de Direito, após a conclusão
do curso, Myrthes teria de enfrentar outros tantos: precisava
reconhecer seu diploma de bacharel no Tribunal da Relação do Rio
de Janeiro, o que só conseguiu porque contou com a ajuda de um
colega (homem) de faculdade. Feito isso, havia a necessidade de
reconhecimento do diploma na secretaria da Corte de Apelação
do Distrito Federal, o que encontrou muita resistência por parte
do presidente da Corte, o desembargador José Joaquim Rodrigues,
para quem parecia um desatino que uma jovem mulher exercesse
a advocacia, pois o foro era um ambiente impróprio para as frágeis
mulheres, segundo sua concepção (GUIMARÃES; FERREIRA,
2009).
O próximo passo era buscar sua filiação ao Instituto da
Ordem dos Advogados Brasileiros, o que nenhuma mulher havia
tentado até então. No ano de 1899 data a primeira tentativa de
ingresso de Myrthes no referido Instituto, foi orientada a candidatar-
se como estagiária, pois de acordo com estatuto vigente, esse era o
cargo destinado aos formados há menos de dois anos. Cada vez
mais obstinada e sem esmorecer diante das circunstâncias, Myrthes
estabeleceu escritório no centro do Rio de Janeiro e conseguiu
permissão para ser admitida no Tribunal do Júri, assinada pelo
presidente juiz Viveiros de Castro. Em meio a um grande alvoroço,
Myrthes estreou no Tribunal como a primeira mulher a ocupar
58 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

essa posição de fala em uma tribuna. Defendeu um réu acusado


de haver agredido outro homem com golpes de navalha, o que não
trazia nenhuma importância ou destaque especial para o caso que
era comum, não fosse o fato de a causa estar sendo patrocinada pela
irreverente advogada (MIGALHAS, 2015).
Guimarães e Ferreira (2009, p. 139) detalham que na manhã
do dia 29 de setembro, havia uma multidão composta por mais de
quinhentas pessoas de olhares curiosos na sala do Júri, o que só
havia sido visto em casos de grande comoção. Um importante
jornal da época, chamado A Notícia publicou reportagem citando
atributos da aparência da advogada e nada acrescentando em
relação a sua capacidade intelectual: “[...] É bastante moça e
muito simpática. Apresentava-se de ‘toilette’ de gorgorão preto,
guarnecido de ‘plissé’ branco na gola e nos punhos”. Logo no
prólogo, a advogada introduziu brilhantes palavras acerca do papel
da mulher na sociedade:
[...] Envidarei, portanto, todos os esforços, a fim de não
rebaixar o nível da justiça, não comprometer os interesses
do meu constituinte, nem deixar uma prova de incapacidade
aos adversários da mulher como advogada. [...] Cada vez que
penetrarmos no templo da justiça, exercendo a profissão de
advogada, que é hoje acessível à mulher, em quase todas as
partes do mundo civilizado, [...] devemos ter, pelo menos, a
consciência da nossa responsabilidade, devemos aplicar todos
os meios, para salvar a causa que nos tiver sido confiada. [...]
Tudo nos faltará: talento, eloquência, e até erudição, mas
nunca o sentimento de justiça; por isso, é de esperar que a
intervenção da mulher no foro seja benéfica e moralizadora,
em vez de prejudicial como pensam os portadores de antigos
preconceitos (GUIMARÃES; FERREIRA, 2009, p. 140).
Desbancando aqueles que esnobavam o potencial da jovem,
sua defesa venceu, dando liberdade ao réu. Como critério utilizado
para medir a capacidade de seu trabalho baseava-se claramente no
fator biológico de seu sexo, a vitória no tribunal do Júri inflamou
a opinião pública que não queria ver mulheres dividindo espaços
antes somente ocupados por homens. Obviamente, Myrthes foi
considerada uma mulher subversiva, por algumas bandeiras que
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 59

carregava, como o divórcio, em que foi acusada de intentar o


término da família brasileira, apesar de não ter sido a propulsora do
debate. Em sua atuação como jurista, defendeu tantas outras causas
como o fim da incapacidade civil da mulher casada e o alistamento
eleitoral feminino (GUIMARÃES; FERREIRA, 2009).
A única atividade profissional que era conduzida por
mulheres sem grande espanto era aquela de professora do ensino
infantil, pois era compreendia como uma extensão de suas práticas
na criação de filhos e com os afazeres domésticos. No mesmo
sentido, Patrasso e Grant (2007) lembram que a mulher descrita
pelas literaturas do século XIX era aquela que obedecia aos códigos
de conduta sobre como ser uma mulher valorosa, religiosa,
responsável pelo bem-estar do lar e que busca a concretização de
suas expectativas românticas no casamento.
Esse cenário em muito influenciou os dados atuais que
indicam a sub-representatividade das mulheres no espaço jurídico,
principalmente quando se trata de locais de maior poder de decisão
e mando. Conforme se depreende da Figura 1, a qual indica os
índices, em porcentagem, das mulheres inseridas nos tribunais
superiores, verificam-se preocupantes estatísticas:
Figura 1 – Participação feminina nos tribunais superiores

Fonte: Migalhas, 2020.

O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, tem atualmente,


de seus onze cargos de ministros, apenas dois ocupados por
mulheres. Da mesma maneira, no Superior Tribunal de Justiça,
que é composto por 33 ministros, apenas seis são mulheres. O
Tribunal Superior Eleitoral, dos seus sete ministros efetivos, não
60 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

conta com nenhuma mulher em sua composição. Já entre os 15


ministros do Superior Tribunal Militar, há apenas uma mulher
(MIGALHAS, 2020). A realidade não é diferente no contexto de
participação feminina nos tribunais estaduais, conforme Figura 2:
Figura 2 – Participação feminina nos tribunais estaduais

Fonte: Migalhas, 2020.

É inegável que a inserção tardia das mulheres no


ensino jurídico e na prática profissional, causada por uma
sociedade mantenedora de padrões sociais patriarcais, é um dos
motivos para que as mulheres, até hoje, ainda se encontrem em
situações desfavorecidas e excludentes, ou sejam desqualificadas
exclusivamente em virtude de seu gênero, fazendo de sua trajetória
profissional ainda mais trabalhosa na aquisição de cargos de
poder. Por este viés, a seguir, parte-se para a análise teórica sobre a
manutenção dessas relações de poder que, mesmo com a passagem
de décadas e séculos de lutas pelos direitos femininos, ainda
não foram descontinuadas, ensejando a reflexão e denúncia das
desigualdades ainda naturalizadas em sociedade.

Gênero e desigualdades: um aporte teórico-feminista


necessário

Durante a pandemia, a desigualdade de gênero ficou ainda


mais evidente. O isolamento social, embora necessário para conter
a disseminação do vírus, trouxe outros efeitos, como o aumento
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 61

dos casos de violência doméstica e dos números de feminicídio.


Mas outra questão tornou-se, também, indicativo da desigualdade,
mesmo que de forma menos visível: a sobrecarga feminina,
originária de uma sociedade que institui papéis sexuais e atribui as
tarefas de cuidado exclusivamente às mulheres. Conforme a Folha
de São Paulo (2020, p. 1), anteriormente à pandemia, as mulheres
já faziam tripla jornada e o home office ampliou ainda mais o
desequilíbrio de gênero, ao passo que “magistradas, advogadas,
promotoras e servidoras do Judiciário lidam com temas urgentes e
a invisibilidade de atribuições domésticas”.
Os desafios do acesso a estrutura do trabalho remoto,
somado ao acúmulo das tarefas domésticas e dos cuidados com os
filhos, o distanciamento das redes de apoio e as novas dinâmicas
de trabalho aumentaram o abismo entre homens e mulheres.
Enquanto homens seguiram dominando livres suas áreas, as
mulheres passaram por uma sobrecarga doméstica tão grande que
interferiu em sua participação no espaço público, tendo em vista
que foram absorvidas pelo âmbito privado (FOLHA DE SÃO
PAULO, 2020). As oficialas de justiça também referiram que além
do risco de contrair e disseminar o coronavírus (diante das funções
inerentes a profissão), ainda tiveram que administrar as demandas
familiares e domésticas, trabalhar com o estresse de gerenciar
mandados sem perder as diligências urgentes, adequar a rotina de
trabalho em home office com os outros integrantes da família e se
adequar aos novos sistemas e aplicativos (SINDOJUS, 2021).
Nesse cenário, relevante observar que boa parte dos estudos
no Brasil, feministas ou não, apresentam uma visão evolucionista a
respeito da trajetória das mulheres. Referidos estudos representam,
em muitos casos, uma evolução linear da condição das mulheres,
que estariam passando de uma grande opressão para uma visível
libertação. Todavia, essa não é uma proposição verdadeira. Os
estudos sobre colonialidade e gênero de María Lugones (2008)
mostram um exemplo da trajetória não-linear sobre as concepções
de gênero antes e depois da invasão da América. Assim, acredita-
se que a história das mulheres e de seus direitos não é escrita de
62 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

forma linear, mas são diferentes avanços e retrocessos obtidos em


um campo de luta constante.
Os sujeitos jurídicos são produzidos através de práticas
de exclusão “invisíveis” quando do estabelecimento jurídico da
política. Isso quer dizer que a construção política dos sujeitos está
ligada a determinados propósitos de exclusão e de legitimação, e
essas operações são naturalizadas através de uma análise política
que toma estruturas jurídicas como fundamento (BUTLER,
2003). Dessa forma, o poder jurídico acaba por produzir o que
diz apenas representar. Daí a necessária preocupação com a função
dual do poder: produtiva e jurídica. De acordo com Butler (2003,
p. 18-19):
[...] os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que
subsequentemente passam a representar. As noções jurídicas
de poder parecem regular a vida política em termos puramente
negativos – isto é, por meio de limitação, proibição,
regulamentação, controle e mesmo “proteção” dos indivíduos
relacionados àquela estrutura política, mediante uma ação
contingente e retratável de escolha. Porém, em virtude de a
elas estarem condicionados, os sujeitos regulados por tais
estruturas são formados, definidos e reproduzidos de acordo
com as exigências delas.
Considerando essa análise, a formação jurídica da linguagem
e da política que representa mulheres enquanto “o sujeito” do
feminismo é em si mesma uma formação discursiva e efeito de
uma dada versão da política representacional. Por essa razão, os
feminismos precisam entender como seus sujeitos (mulheres) são
produzidos1 e reprimidos “pelas mesmas estruturas de poder por
intermédio das quais busca-se a emancipação” (BUTLER, 2003,

1 Nesse sentido é necessário ressaltar o problema político encontrado pelos feminismos


na suposição que a palavra “mulheres” expresse uma identidade comum. A pretensão
de uma “base universal única” para o feminismo, com um único sujeito (mulher), está
associada a falsa ideia de que a opressão sofrida pelas mulheres se dá de forma uniforme
por uma estrutura de dominação masculina universal. Essa noção de patriarcado
universal fracassa, na medida em que não consegue explicar as diversas formas de
opressão de gênero em contextos culturais específicos, tampouco a transversalidade
das opressões de gênero, junto à classe, raça, etnia e outras.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 63

p. 19). Nesse sentido, não basta que mulheres conquistem seus


espaços dentro das ciências jurídicas. O direito ao ingresso em um
bacharelado, à inscrição na OAB, ou ao ingresso em qualquer outra
carreira jurídica, embora significativos, por si só, não alteram as
estruturas patriarcas nas quais o próprio Direito foi construído e é
um de seus mantenedores.
Fraser (2009) aponta para o fato de as mudanças promovidas
pelo feminismo virem servindo para finalidades bastante diferentes
das quais ele se propõe. Por isso é necessário atentar, ao falar de
justiça e empoderamento, qual justiça se busca e qual o significado
de empoderamento que deve ser construído. Se antes, o sonho da
emancipação das mulheres foi apropriado e subordinado à máquina
de acúmulo capitalista, servindo para intensificar a valorização do
trabalho assalariado no capitalismo, certamente, empoderamento,
não significa apenas tomada de conhecimento e dos mesmos
espaços antes tidos apenas como masculinos, mas sim, a tomada
de consciência das opressões, de suas transversalidades (relações
entre opressão de gênero, discriminação racial e capital) e de um
enfrentamento ao seu conjunto.
As ações e medidas destinadas à emancipação das mulheres
e à mitigação das desigualdades no Brasil também devem ser
pensadas a partir de um olhar pluridimensional, principalmente
em decorrência da herança histórica e colonial do país, que também
intensificou as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para ganhar
(e se manter) o espaço jurídico. Fazendo um panorama geral em
relação às mulheres, é nítido que as suas representações foram
orientadas por uma desqualificação como indivíduo capaz de atuar,
em igualdade de condições, na prática jurídica profissional.
As ideologias dominantes colocaram as mulheres em uma
posição subalterna e secundária, não só nas relações domésticas
propriamente ditas, como, sobretudo, nas relações sociais,
políticas, econômicas e trabalhistas. A dificuldade histórica da
mulher em inserir-se no espaço público e encaixar-se na sociedade
de forma justa e igualitária, em obter cargos de liderança e as
próprias discrepâncias salariais entre os gêneros, foram motivadas
64 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

pela estrutura social patriarcal e colonial imposta. As constantes


manifestações e lutas em busca de direitos são o maior reflexo da
cultura discriminatória enraizada em âmbito nacional e global.
Por isso, a forma como se produz e reproduz o conhecimento
é um tema urgente para a proposta transformadora do ensino
jurídico e do próprio Direito. Para tanto, é necessário solidificar
teorias preocupadas com a visibilidade dos problemas de gênero nos
diversos campos das ciências jurídicas, que contrastem a igualdade
disposta nos instrumentos legais com as práticas sociais em vigor.
Trata-se, então, de aprender e “fazer” direito considerando as facetas
de sujeitos de direito plurais e multifacetados.
E nessa trilha se consolida a necessidade de pensar em
uma educação jurídica contra-hegemônica, tendo em vista que
assim como a história bem demonstra, notadamente na primeira
seção deste artigo, desde a formação do conhecimento jurídico,
predominam processos epistemológicos baseados apenas na
realidade singular dos homens em sociedade, silenciando as
vivências de vários grupos não compreendidos nessa concepção
(como as mulheres) e emanando, assim, um direito atento apenas
à realidade vivenciada pelo homem branco (DIOTTO; BRUTTI;
DORNELES, 2021).
Essa lógica e ideologia patriarcal, capaz de condicionar o
ensino e a prática jurídica e, consequentemente, a construção das
instituições, consolidou regras e hierarquias sociais que, muitas vezes,
tornam-se tão naturalizadas a ponto de não haver uma percepção
clara disso. O sistema patriarcal, que impõe a superioridade do
gênero masculino e se faz presente nos mais diversos aspectos,
vai muito além de influenciar as relações interpessoais, na esfera
doméstica. A dominação masculina está presente na própria
construção do direito e de todo o sistema de justiça, incluindo
o acesso aos espaços de decisão e poder (DIOTTO; BRUTTI;
DORNELES, 2021).
A forma com que o ensino jurídico ainda se configura
nas universidades não tem se mostrado suficiente para averiguar
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 65

as variadas relações de poder que influenciam na sociedade,


principalmente quando se trata das posições sociais ocupadas por
homens e mulheres. Somado a isso, pouco se fala sobre a adoção de
uma interdisciplinaridade, induzindo a uma ideia de que o direito
seria autossuficiente, não necessitando de outros saberes (SANTOS,
2007). Um dos principais problemas decorrentes desse contexto
é o privilégio do poder por parte de alguns e o distanciamento
entre o direito e a sociedade, tendo em vista que a interpretação
da realidade é prejudicada com a permanência exclusiva de uma
dogmática burocraticamente formatada e acrítica.
Nesse sentido, é inegável a necessária adoção de políticas e
ações que possam influenciar no papel que as mulheres ocupam em
sociedade, mas que também, possam refletir no ambiente jurídico.
Evidentemente, isso requer que a educação superior também adote
novos posicionamentos, que haja uma crítica à educação jurídica
tradicional, pois para que o direito possa atender as novas demandas
sociais, precisa ser reformulado, englobando novas (e feministas)
teorias e epistemologias, necessárias para a atuação jurídica em uma
sociedade que é complexa e plural. Não há um único caminho para
promover tamanhas mudanças, a ponto de mitigar a desigualdade
de gênero, nem uma única abordagem possível. Contudo, a partir
de uma reflexão cautelosa sobre o ensino jurídico, origem de toda
a formatação dos sistemas de justiça, usando de diagnósticos
e pesquisas, será possível pensar em ações mais concretas para
viabilizar as mudanças que as mulheres, as minorias e toda a
sociedade necessitam para que possuam suas demandas atendidas.

Considerações finais

Não obstante ao crescimento do percentual de mulheres em


algumas áreas, principalmente no Direito, ainda há muitos desafios
a serem enfrentados para a abertura do espaço público às mulheres
de forma equânime. Um grande problema, nas mais variadas
formas de inclusão da mulher no espaço público e na aquisição
das mesmas posições e cargos que homens com formação igual,
66 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

é o preconceito fundado no sexismo. As raízes de uma sociedade


patriarcal, originária da dominação e submissão do gênero feminino
pelo gênero masculino, são predominantemente responsáveis pelo
silenciamento das mulheres que, em suas trajetórias, não enfrentam
apenas os obstáculos das violações que podem ocorrer em suas vidas
privadas, mas precisam estar em constante luta contra o sexismo e
a misoginia, que tendem a desqualifica-las como mulheres na vida
pública, em cargos jurídicos.
Mesmo que suas vozes e reivindicações tenham sido
silenciadas e, até hoje, persistam pensamentos que não permitam
que a mulher saia da esfera privada e deixe de estar limitada ao espaço
doméstico, muitos paradigmas já foram rompidos, enfrentando
os preconceitos entranhados na sociedade patriarcal. Mas o que
se percebe é que, por muito tempo, objetivou-se apenas inserir as
mulheres em espaços considerados masculinos, tendo a partir disso,
alcançar a igualdade almejada. Contudo, mesmo que mulheres a
frente de seu tempo tenham conseguido alcançar referidas posições,
e hoje seja mais rotineiro ver mulheres em cargos de poder e decisão,
não houve um rompimento com a estrutura patriarcal vigente,
apenas uma adequação aos métodos sociais vigentes. Isso implica
muitas consequências: como a sobrecarga das mulheres, que ainda
precisam se esforçar muito mais para atingir os mesmos espaços;
a permanência de privilégios por parte de mulheres brancas, que
conseguem adentrar nos espaços públicos e políticos com maior
facilidade que mulheres negras, que sofrem opressão de gênero
e raça; além da continuidade da desigualdade, visto que apenas
estão sendo adotadas ações que remediam a situação atual, mas
ainda não houve uma ruptura com o modelo patriarcal vigente, o
que acredita-se que será alcançado por meio da educação jurídica
crítica, reflexiva e emancipatória.
Desta forma, visualiza-se que muitas rupturas já
aconteceram, contudo, desconstruir a estrutura patriarcal e a
desigualdade que atinge não apenas as relações interpessoais, mas
todo o sistema jurídico-institucional, consolidado há tanto tempo,
requer muito mais do que conquistar os espaços e locais já pré-
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 67

estabelecidos. É um processo contínuo e ainda em andamento, que


enseja uma revisão estrutural de muitas concepções introjetadas
e naturalizadas no cotidiano, concepções que promovem a
continuidade das relações desiguais. A educação, nesse cenário,
assume o mais relevante papel, tendo em vista que a mudança de
hábitos parte da crítica social originária de um ensino consciente de
seu papel transformador.

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Capítulo 4

A possibilidade de aplicação da lei nº


11.340/06 em crimes digitais de gênero:
reflexões e ponderações

Marli Marlene Moraes da Costa


Letícia da Fontoura Tomazzetti

Considerações iniciais

O presente trabalho tem por objetivo central analisar


a possibilidade da aplicação da Lei 11.340/06, a Lei
Maria da Penha, nos casos de violência digital de gênero, isto é,
em casos de cometimento de crimes digitais de gênero, para fins de
garantir uma maior efetividade do sistema protetivo constitucional
como um todo de forma mais célere e eficaz.
Para a concretização de tal hipótese, faz-se necessária a análise
dos contextos históricos e sociais que abrangeram a formulação da
referida lei, bem como da natureza jurídica dos crimes digitais de
gênero. Para tanto, a metodologia utilizada é a bibliográfica, e o
método de procedimento é o hipotético-dedutivo, com técnica de
pesquisa histórico-documental.
Tal perspectiva ocorre a partir do entendimento de que a
violência de gênero é múltipla, sendo possível observar sua origem
na cultura patriarcal constituída e propagada geração após geração
de subjugação das mulheres pelos homens, de forma a caracterizar o
que se entende, atualmente, por violência simbólica, com os ideais
de dominação e opressão, que vêm reforçados no âmbito das novas
tecnologias de informação e comunicação.
Diante disso, foram analisados os contornos dados pela
72 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Constituição Federal vigente, na busca de materialização, bem


como a necessidade ampliação interpretativa dos crimes de gênero,
inserindo as perspectivas feministas como bases teóricas aos
intérpretes, considerando a impossibilidade de criação de novos
tipos penais, sob pena de uma certa inflação legislativa, isto é,
da constante necessidade de se constituir leis ao invés de ampliar
interpretações a partir das novas conotações sociais.

Lei 11.340/06: contextualização histórica e principioló-


gica a partir da ótica feminista

A violência de gênero não é um fenômeno social novo. Pelo


contrário, trata-se de uma reprodução histórica de mecanismos de
manutenção do poder, buscando subjugar um gênero em prol de
outro, designando papéis pré-estabelecidos a partir do gênero do
individuo, reafirmando posições como patriarca da família, que
pressupões a ideia de “chefe”. No mesmo sentido, a mulher possui
a função precípua de cuidar do lar e gerir as questões domésticas
dentro do ambiente privado, com submissão, prestando o seu dever
de obediência ao homem. No Brasil, a violência contra a mulher
é, da mesma forma, produto de heranças culturais de natureza
patriarcal – bem como colonial - que compreendem o masculino
como superior ao feminino, ancoradas pelas instituições sociais
como Família, Estado e Igreja.
Diante desse contexto histórico sexista de dominação
do feminino pelo masculino, algumas legislações surgem como
resultados de tais pensamentos, buscando legitimar tais opressões.
Não obstante as demais legislações anteriores e suas respectivas
raízes, a investigação inicial parte diretamente da análise do Código
Civil de 1916, considerando que este teve sua vigência até o ano de
2022, isto é, até o século XXI. O referido código civilista, que regia
as principais disposições sociais brasileira, sobretudo em tempos
de forte insegurança jurídica constitucional, abraçava e valorizava
fortemente as referidas instituições citadas acima, principalmente
o ideal de Família, tendo como característica principal o
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 73

patrimonialismo.
Tal característica tratava de valorizar bens em detrimento
dos seres humanos, deixando a preocupação com os indivíduos,
sobretudo os que apresentavam em posição de vulnerabilidade
social – diretamente conectada ao ideal capitalista de acumulação
de bens – desamparados, bem como rebaixados a categorias de
absolutamente incapazes, como foi o caso das mulheres. Nesse
caso, tal legislação tratava de demonstrar fortemente a ausência de
qualquer tipo de ideal de igualdade de gênero, sobretudo ao colocar
as mulheres como propriedade, primeiramente de seus pais e, após,
de seus maridos, naturalizando a ideia de prestar obediência ao
masculino.
Não obstante a isso, a inserção dos movimentos sociais
feministas que lutavam pela igualdade de gênero e emancipação
feminina ganharam notória repercussão, balançando as estruturas
sociais sexistas consolidadas e sendo capazes de modificar as ordens
no âmbito legal. Conforme menciona Santos (2010), o tema da
violência contra a mulher já havia ganhado contornos em 1980
– através da força dos referidos movimentos – com a criação das
Delegacias da Mulher.
Nesse sentido, a promulgação da Constituição Federal de
1988 - no contexto de redemocratização e, portanto, de afirmação
à proteção de direitos sociais e reconhecimento de minorias, em
prol da igualdade – trouxe significativas modificações às demais
legislações posteriores, diante de sua força vinculante. Nesse
contexto, no ano de 2002 sobreveio a promulgação do novo Código
Civil, que trouxe de forma expressa a igualdade entre gêneros,
bem como garantindo direitos não contemplados pelo Código
anterior, sobretudo em razão de seu viés mais humano e menos
patrimonialista, vinculado diretamente ao ideal constitucional
social.
Ocorre que, em que pese a presença de uma nova força
constitucional vinculante, bem como novas legislações que
garantissem o avanço na materialidade dos direitos formais de
74 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

igualdade e emancipação, sua efetividade dependia da criação de


mecanismos de proteção na esfera objetiva. Isto é, trazendo ao
âmbito da violência doméstica as legislações existentes não possuíam
o necessário enfoque de gênero capazes de responder às violações aos
seus direitos mais básicos, tais como o da própria integridade física.
Dessa forma, o crescimento exponencial da violência doméstica,
trouxe à tona a necessidade de criação de novos meios repressão
de condutas misóginas, a partir do ideal de políticas públicas de
amparo, principalmente em razão da necessária desconstrução da
cultura patriarcal.
Para tanto, após a condenação do Estado brasileiro na
Corte Interamericana de Direitos Humanos pela omissão diante
das violências domésticas sofridas por Maria da Penha Maia
Fernandes, sobreveio a promulgação da Lei 11.340 de 07 de agosto
de 2006 (BRASIL, 2006), que possui como objetivo precípuo a
criação de mecanismos de atuação para coibir a violência doméstica
contra as mulheres. Tal legislação vem embasada no artigo 226,
parágrafo 8º, da Constituição Federal, bem como na Convenção
sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher,
promulgada pela ONU no ano de 1979 acatada pelo Brasil no ano
de 2022, mediante o decreto nº 4.377/2002 (BRASIL, 2002).
Nesse sentido, o artigo 5º da referida Lei denominada
de “Lei Maria da Penha” delineia o que será considerado como
violência doméstica e familiar contra a mulher, de forma que não
possui respectiva correspondência com os demais tipos penais
presentes no Código Penal vigente.
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica
e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada
no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual
ou psicológico e dano moral ou patrimonial:     
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como
o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem
vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade
formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados,
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 75

unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade


expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o
agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida,
independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo
independem de orientação sexual. (BRASIL, 2006).
Sendo assim, a referida legislação prevê diferentes tipos
de agressão como condutas capazes de ensejar a tipificação penal,
quais sejam violência física, psicológica, sexual, patrimonial e
moral (BRASIL, 2006). Ocorre que o primeiro desafio encontrado
é a desmistificação de que a violência, nesse caso de gênero, se
configura somente quando há a agressão física. Isso porque, diante
do exercício de um poder de dominação simbólico, em grande
parte das vezes a vítima não percebe que as agressões verbais que
geram cada vez mais o seu silenciamento, bem como os atos de
manipulações, são configurados como atos de violência domésticas
aos olhos da legislação aqui analisada.
Para fins de elucidação das questões ora tratadas, em
pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão (2020) identificou-
se que 37% das entrevistadas declararam já haver sofrido violência
de um parceiro ou ex-parceiro. Contudo, quando colocadas diante
de situações hipotéticas de violência doméstica - que talvez não
possuíssem ideia de que se tratava, efetivamente, de violências – o
número salta para 50%, o que representa uma média de 41 milhões
de brasileiras.
Dessa forma, o primeiro passo a ser tomado em caso de
violência doméstica é identificar a conduta que configura tal tipo
penal em correspondência à legislação supracitada. Nesse ponto,
merece atenção a menção legislativa que considera o gênero como
ponto chave ao deslinde da adequação da conduta à tipificação.
Após, é necessário definir os espaços em que tais condutas são
capazes de configurar a violência doméstica de gênero, isto é, no
âmbito da unidade doméstica, da família ou, como bem menciona
a legislação, em qualquer relação de afeto.
76 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Diante desse contexto, considerando a preconcepção de que


violência doméstica de gênero se trata somente de uma violência
física, é que se faz necessário uma abordagem jurídica ampla de
sua aplicação, considerando os atuais contornos da sociedade em
rede pós-moderna. Isso porque, há inúmeras violências de gênero
que vem ocorrendo no âmbito do ambiente digital e que merecem
especial atenção diante da (falsa) ideia de não haver mecanismos
capazes de proteger as vítimas.

Violência simbólica: crimes digitais e a reprodução de


violências digitais de gênero

A Sociedade Pós-Moderna é caracterizada pela presença


das tecnologias de informação e comunicação, sobretudo em suas
novas formas de sociabilidade, trazendo novos contornos às relações
sociais. Contudo, em que pese alguns avanços, principalmente
na seara das liberdades individuais, o ciberespaço também vem
carreado de concepções pré-definidas, bem como do ideal de tratar-
se de “terra sem lei”.
É diante desse novo contexto social tecnológico, em que a
tecnologia assuma novo patamar, que surgem os crimes cibernéticos,
como características da pós-modernidade. Nesse cenário, os crimes
digitais podem ser definidos como próprios e impróprios, sendo
que sua classificação depende da forma como se utiliza os aparatos
tecnológicos para a consumação do crime.
Nesse sentido, ao se tratar de crimes digitais, sobretudo
com o viés de gênero, os mais conhecidos são aqueles que tratam
da exposição não consentida. Assim, inicialmente, as primeiras
decorrências já conceituadas, trata-se da pornografia de vingança
que ocorre quando da exposição pública de fotos íntimas de
terceiros, por questões de vingança, como o próprio nome já sugere.
Cabe mencionar que pornografia de vingança não se confunde com
exposição não consentida de imagens íntimas.
Ainda, tais crimes possuem subdivisões em condutas que
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 77

ocorrem dentro do ambiente virtual, ou seja, em crimes que já eram


anteriormente conhecidos e tipificados e passaram a ser realizados
no ambiente online. Assim, há a presença do cyberbullying,
cyberthreats – que se trata de ameaças dentro do ciberespaço -
cyberstalking (perseguição digital), assédio cibernético, extorsão
cibernética – que, atualmente, vem tomando novos contornos a
partir da ideia do estelionato sentimental virtual – estupro virtual e
sextorsão. Neste último, o individuo utiliza conteúdos de conotação
sexual de pertencimento e protagonismo da vítima e o utiliza como
mecanismo de exploração sexual.
Ademais, há que se ressaltar a presença de condutas como
discurso de ódio na internet, que também se trata de uma variação
de crimes contra a honra. Nessa mesma seara, estes últimos
também são muito conhecidos e utilizados, não só por meio dos
discursos de ódio, mas também a partir da utilização das próprias
plataformas de redes sociais, que dão aos agressores a possibilidade
de degradar a imagem – em seu sentido amplo – da mulher para
terceiros, mediante calúnia e, até mesmo, injúria.
Em todas as condutas acima mencionadas, o que se percebe
é a presença de uma conduta já existente, contudo, em uma nova
forma de operação ou atuação, ou seja, a forma de realizar tais
crimes mudou, sendo que com as novas tecnologias de informação
e comunicação tais crimes são passíveis de serem realizados no
ambiente virtual e sem que, necessariamente, haja a presença física.
Ademais, faz-se necessário destacar o supramencionado crime de
estelionato sentimental virtual, pois não só se trata de um crime
de extorsão realizado mediante as redes sociais, como também
uma variação que atinge a perspectiva de gênero, ao ser realizado,
principalmente, mediante as redes sociais de relacionamentos.
Diante disso, os cibercrimes vêm tornando-se cada vez mais
comuns e presentes nas novas dinâmicas sociais, principalmente
na rotina de mulheres, ganhando a cada dia novos contornos ante
o desenvolvimento rápido da tecnologia. Isso ocorre diante de
uma narrativa fluída entre o ambiente virtual e o ambiente real,
ou seja, da ausência de separação entre esses ambientes. Da mesma
78 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

forma, se configuram como uma característica típica da sociedade


pós-moderna em que as mulheres adquiriram liberdades e certa
emancipação, sendo apresentando como forma de manutenção das
antigas raízes conservadoras.
A pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos em
Criminologias Contemporâneas, corrobora os dados extraídos do
canal de denúncias do SaferNet, apontando que a ciberviolência
vitimiza principalmente mulheres (PASSOS et al., 2018). Em
âmbito global, o canal SaferNet apurou que, quando do recorte a
respeito de conteúdos que contenham violência ou discriminação
contra mulheres, as redes sociais Facebook, TikTok, Twitter
e Instagram, respectivamente, foram as que mais contiveram
denúncias por violência (SAFERNET, 2022). Ainda, quando
analisada a situação brasileira, restou demonstrada que as páginas
hospedadas dos países que mais contém conteúdos de violência ou
discriminação de gênero são Uol e Globo (SAFERNET, 2022).
Dessa forma, merece destaque que o padrão verificado
quando da realização de tais crimes é, justamente, o inconformismo
com términos de relacionamento, de forma que a visão dos crimes
digitais como violência de gênero surge a partir da análise de dados
que demonstram que a maior parte das vítimas são mulheres.
Diante disso, tais condutas criminosas, reafirmam o pensamento
de Beavouir (2016, p.18) de que “os dois sexos nunca partilharam
o mundo em igualdade de condições”, uma vez que as mulheres
são concebidas e construídas em uma sociedade de concepções de
valores históricos e culturais de desigualdades, em que a utilização
do ideal de dominação se apresenta como forma de manutenção
do poder e característica predominante no cometimento de novas
condutas violentas.
Nesse sentido, Butler (1993, p. 384) aponta que os sujeitos
são nomeados, quando da sua existência, por um discurso que
os coloca em hierarquia social, incluindo-os ou excluindo-os,
explicando, portanto, como a diferença sexual é transformada em
desigualdade e subordinação social. Assim, Mendes afirma que
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 79

[...] o simbolismo de gênero age com uma poderosa estereotipia


e com uma identificável carga estigmatizante a partir de valores
construídos e enraizados estruturalmente nos quais a figura do
feminino é relacionada a subordinação e a figura do masculino
é associada a dominação. (MENDES, 2020, p. 93).
Por tais razões é que a violência de gênero, tal como a
violência doméstica como um todo, percorre o caminho da violência
simbólica, que advém justamente desse ideal de dominação. Dessa
forma, cabe ressaltar que a concepção de violência não ocorre
somente quando há a violência física, de forma que em muitos
momentos a vítimas não percebe que está sendo agredida por
outros meios. Sendo assim, o processo de dominação masculina
pressupõe a dominação ideológica de desvalorização e submissão da
mulher em relação ao homem, de forma a serem repassadas pelas
gerações, como um ideal impossível de ser descontruído.
Diante disso, ao analisar as motivações dos crimes digitais
de gênero, é possível perceber que detêm grande semelhança
aos crimes de violência doméstica, uma vez que que em todos
os crimes de gênero é possível perceber o ideal de dominação e
poder, sobretudo nas relações. Assim, “A violência constantemente
surge como forma de reafirmar poder em situações de ameaça a
representações ligadas à identidade, que surgem especialmente em
relações próximas e íntimas.” (VALENTE; NERIS, 2019, p. 36).
Sendo assim, ao se tratar de crimes virtuais se está, necessariamente,
trabalhando com uma complexidade de definições, e que, por conta
da rápida evolução tecnológica, torna-se difícil à proteção.
Portanto, os crimes digitais de gênero, tal como os demais
crimes contra a mulher, são, em sua realidade, um problema
cultural, de propagação do ideal de superioridade masculina sobre
a feminina. Diante disso, a mera formulação de novas legislações
não é capaz de acabar com o ideal patriarcal de dominação, sendo
que justamente em razão da violência simbólica exercida, em uma
grande maioria das vezes o agressor não entende estar cometendo
crimes, por tratar-se de reproduzir comportamentos que vêm sendo
passados de geração para geração, de forma a ser capaz de sempre
80 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

criar novas condutas violentas.


Dessa maneira, é possível associar os cibercrimes diretamente
às raízes brasileiras patriarcais, coloniais e raciais, ou seja, às raízes
da intolerância que concebem o feminino como objeto de posse
do masculino, de forma que tal protótipo, principalmente no que
tange às motivações, devem ser levados em consideração. Assim,
percebe-se a premente necessidade de análise dos crimes digitais
de gênero como resultado das concepções históricas patriarcais,
que pressupõe a ampliação dos crimes digitais, com consequências
diretas na vida das vítimas.

A aplicação da Lei Maria da Penha em crimes digitais:


possibilidades jurídicas e ponderações teóricas

Embora trate-se de cibercrimes, grande parte das condutas


acima mencionadas não se tratam de condutas tipificadas pelo
Código Penal. Não obstante, o viés do presente trabalho não é a
inserção de novas tipificações penais, mas sim de uma nova forma
de interpretação e aplicação sistemática da legislação já existente,
com a finalidade de garantir uma maior proteção às mulheres
vítimas de violências de gênero.
Isso porque, no âmbito da sociedade tecnológica, os crimes
digitais crescem em velocidade exponencial, ou seja, todos os dias
surgem novas condutas tanto realizadas por meio do ambiente
digital, como realizadas no próprio ambiente digital, de forma que o
processo legislativo se torna incapaz de acompanhar tais evoluções.
Sendo assim, é necessário que as próprias legislações existentes se
adaptem, considerando justamente a possibilidade de utilização das
tecnologias de informação e comunicação como mecanismos de
perpetuação de violências de gênero.
Para tanto, as vias interpretativas de aplicabilidade das
legislações precisam estar preparadas para o enfrentamento dessas
questões, de forma que no caso de violências de gênero digitais, a
interseccionalidade com os estudos de gênero se fazem necessárias.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 81

Nesse âmbito, considerando o contexto cultural e sociológico que


levam ao cometimento dos crimes digitais, é possível traçar um
paralelo com as mesmas concepções históricas e bases estruturantes
patriarcais, de ideal de dominação, que acarretam na violência
doméstica. Para além, o fato de as condutas violentas serem
praticadas no ambiente virtual, ou por meio de tal ambiente,
não significa que não podem serem consideradas como violência
doméstica.
Tal entendimento advém da própria definição de violência
doméstica expostos da legislação 11.340/2006, que pressupões,
em seu artigo 5º que para sua caracterização basta que as referidas
condutas sejam baseadas no gênero (BRASIL, 2006). No mesmo
sentido, incorpora, em seu artigo 7º diversos tipos de atos como
violência, não se limitando somente à violência física, com destaque
às violências de cunho psicológico.
Art. 7°. São formas de violência doméstica e familiar contra a
mulher, entre outras:
[...]
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta
que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou
que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que
vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças
e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição
contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e
limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe
cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
[...]
V – a violência moral, entendido como qualquer conduta que
configure calúnia, difamação ou injúria. (BRASIL, 2006)
Nessa perspectiva, cabe mencionar que conforme Fernandes
(2015, p. 82) a violência psicológica é aquela que causa dano
emocional e que diminua a autoestima, bem como promova o
controle do comportamento, sobretudo o feminino, e decisões. No
mesmo sentido, Dias (2012, p. 67) entende tal expressão como
82 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

a agressão realizada por meio de ameaças, rejeição, humilhação


e outras atitudes que amedrontem a vítima a faça sentir-se
inferiorizada.
Nesse contexto, também há a presença da violência moral,
que trata dos próprios crimes contra a honra, com o viés de gênero
e, na presente abordagem que se propõe, realizados facilmente por
meio do ambiente digital, sendo inclusive potencializados diante
da facilidade de disseminação de conteúdos pelas redes sociais.
Cabe mencionar, ainda, a existência da violência patrimonial, que
consiste da prática de ações que retenham ou destruam bens e
objetos pessoais, de valores econômicos, monetários ou emocionais,
bem como incluindo controle de dinheiro (INSTITUTO MARIA
DA PENHA, 2021).
A partir da análise da lei denominada Maria da Penha,
é possível compreender que esta não visa proteger somente
a integridade física, mas também inúmeros outros fatores,
considerando os mecanismos de opressão e dominação de gênero, a
partir de um viés social e histórico. No mesmo sentido, a violência
doméstica prevista em tal legislação não vem limitada apenas
ao ambiente doméstico, uma vez que tem sua ampliação a toda
e qualquer relação íntima de afeto, do que se pode depreender
a possibilidade de utilização para além deste espaço. Tal questão
toma relevante contorno, quando se considera as novas formas de
relacionamento íntimo que vem se desenvolvendo por meio do
ambiente virtual.
A título exemplificativo de comprovação da hipótese ora
levantada, menciona-se a respeito da pesquisa realizada pelo “Projeto
Vazou”, desenvolvido pelo Grupo de Estudos em Criminologias
Contemporâneas, da Universidade Estácio, que constatou que
nos casos de exposição de imagens íntimas não consentidas, 84%
das participantes são mulheres e 19 anos foi a idade média das
vítimas de cibercrimes. Sendo que 81% das mulheres sabem quem
compartilhou os arquivos, 82% das vítimas tinham ou tem relação
com a pessoa que compartilhou os arquivos e 84% das pessoas que
compartilharam os arquivos são homens (PASSOS et al., 2018). No
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 83

mesmo sentido, restou constatado que a maioria dos ciberagressores


são pessoas conhecidas da vítima, retirando a ideia de hackers que
invadem celulares e computadores.
Diante disso, primeiramente, cabe mencionar que nos
crimes digitais de gênero, tal como nos casos enquadrados pela Lei
Maria da Penha, há um padrão de comportamento, que pressupõe
a mulher como inferior e submissa. Ademais, é necessário entender
os bens jurídicos violados por meio dos crimes digitais, geralmente
se tratam do corpo da mulher, seja corpo como psique, seja corpo
físico, com a consequente degradação moral da mesma. Isto é,
em grande parte, apesar dos meios utilizados para disseminação, -
considerando que as novas tecnologias de informação e comunicação
possuem o potencial de disseminação muito maior – há legislação
que busca a proteção, com o devido viés de gênero.
Esse é o caso da Lei Maria da Penha. Assim, não é necessário
que se formule novas legislações para cada nova tipificação penal,
sobretudo porque o Direito não conseguirá, por si só, acompanhar
as rápidas mudanças que as tecnologias trazem à uma sociedade em
rede. Dessa forma, é necessário que se amplie o viés de interpretação
da legislação já existente que possui o escopo de proteger as mulheres,
sobretudo em casos de violências que ocorrem na esfera doméstica,
tal qual as que ocorrem no contexto de um relacionamento, com
a finalidade de abarcar as novas condutas perpetradas capazes de
causar lesão aos bens jurídicos protegidos legalmente. Para tanto,
no âmbito dos estudos Constitucionais de possibilidades de
interpretativas concedidas pela hermenêutica jurídica.
Como antes já assinalado, a constitucionalização do direito
infraconstitucional não tem como sua principal marca a
inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios,
mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma
ótica constitucional. (BARROSO, 2005, p. 27).
Sendo assim a Lei 11.340/2006 é uma legislação que
pressupõe as inúmeras formas de violência de gênero, ao mesmo
tempo que não se trata de rol um rol taxativo, deixando aberta a
possibilidade de se constituírem novas formas ou novos meios de
84 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

perpetuação de condutas, justamente por se tratar de uma legislação


que abarca os contornos sociais de dominação presentes há alguns
séculos na sociedade. Isso porque, conforme já referido, ano após
ano, há a reinvenção de novas condutas que violam diretamente
os direitos fundamentais mais ínfimos das mulheres, sendo que o
ambiente digital se constitui como ferramenta à criação de novas
condutas. Para tanto, torna-se imprescindível que se alinhe o viés
interpretativo da Lei 11.340/06 aos contextos constitucionais de
sua formulação.
As denominadas cláusulas gerais ou conceitos jurídicos
indeterminados contêm termos ou expressões de textura
aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um início de
significação a ser complementado pelo intérprete, levando em
conta as circunstâncias do caso concreto. [...] Como a solução
não se encontra integralmente no enunciado normativo, sua
função não poderá limitar-se à revelação do que lá se contém;
ele terá de ir além, integrando o comando normativo com a
sua própria avaliação. (BARROSO, 2005, p.12)
Dessa maneira, percebe-se a importância da interpretação
sistêmica, sobretudo por parte do Judiciário na figura de intérprete
da norma, inserindo as perspectivas de gênero nas análises. Portanto,
para além da mera adoção de condutas repressivas, verifica-se a
necessidade de equiparar as condutas realizadas no ambiente virtual,
tais como os crimes de gênero, à Lei Maria da Penha, reconhecendo
seu contexto de política pública transversal de gênero, de forma
a abranger todos os tipos de violência de gênero contidos dentro
do ambiente doméstico e/ou das relações íntimas de afeto, com
a finalidade precípua de reduzir as vulnerabilidades às quais as
mulheres se encontram expostas.

Considerações finais

A sociedade capitalista, e no mesmo sentido se insere


a sociedade brasileira, foi constituída com base nos pilares de
dominação de gênero e subjugação do feminino pelo masculino,
a partir de ideais de dominação que constituem o patriarcado.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 85

Sendo assim, a legislação brasileira foi construída sob esses moldes,


reforçando tais contexto, de forma que sua evolução no âmbito dos
direitos femininos começou a aparecer conjuntamente aos ideais de
redemocratização do país.
Ocorre que, em que pese a presença de uma nova força
constitucional vinculante, bem como novas legislações que
garantissem o avanço da materialidade dos direitos formais de
igualdade, era necessária uma legislação que pudesse conferir
a materialidade de tais garantias; contexto no qual surge a
denominada Lei Maria da Penha, a qual busca proteger mulheres
da violência doméstica, bem como de violências no âmbito das
esferas dos relacionamentos íntimos. Ainda, nesse mesmo contexto,
surge também a ideia de violência simbólica, como sendo práticas
cotidianas que reforçam os referidos ideais e são tão naturalizadas
no cotidiano que não são percebidas como práticas opressivas.
Diante disso, visualiza-se que a violência de gênero é
múltipla, podendo ocorrer em diversos contornos e práticas
sociais, tais como as que ocorrem no ambiente digital, por meio
das tecnologias de informação e comunicação. Dessa forma, foram
identificadas que, em que pese alguns avanços sociais nessa seara,
as práticas opressoras em relação ao gênero continuam as mesmas
tendo, contudo, encontrado novas formas de se manifestar. Prova
disso são os crimes digitais, em que foi possível identificar que
possuem o gênero feminino como principal vítima.
Sendo assim, a interpretação legislativa da violência de
gênero, deve ser feita seguindo os princípios constitucionais de
igualdade e emancipação, de forma que foi verificada a possibilidade
de aplicação de mecanismos legais já existentes no combate a velhas
práticas que, no entanto, somente encontraram novas formas de
se regenerar frente ao desenvolvimento da sociedade. Portanto,
o que se percebe é que não há tanto a necessidade de criação de
novos tipos penais, quanto há de ampliar a percepção a respeito
da aplicabilidade da norma jurídica já existente, que coaduna com
os contextos históricos e sociais que deram origem a formação da
respectiva legislação.
86 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Dessa forma, é verificou-se a premente necessidade de


ampliar a margem interpretativa, percebendo a possibilidade da
cobertura da referida legislação às novas condutas que os novos
contornos sociais vão gerando, sobretudo diante da ideia de
constitucionalização do Direito, advinda a partir da promulgação
da atual Constituinte em 1988.

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Capítulo 5

A atualidade do pensamento de Josué de


Castro e a volta do Brasil ao mapa da fome:
um flagelo socialmente produzido

Fábio Fabrício Silva


Luana Funck

Considerações iniciais

O debate sobre a fome, a pobreza, a miséria e a iniquidade


social nem sempre fez parte das grandes discussões
públicas no Brasil, em que pese estes temas representarem a realidade
de flagelo sócio nacional e vivência dolorosa de muitas pessoas.
Não se encontra na agenda pública brasileira grandes tomadas de
decisões governamentais, raro um passado não tão pretérito, que
possa alterar o status quo da realidade brasileira geradora do drama
da fome.
O médico e pensador pernambucano Josué de Castro, já na
década de 1940, deu grandes contribuições para desconsiderar o
tema da fome como “tema proibido”, ou ainda, “bastante delicado
e perigoso”. Josué de Castro, a nível nacional e internacional,
buscou quebrar a chamada “conspiração do silêncio” sobre a fome.
Vencer a fome, como se identifica nas obras de Castro,
estava diretamente vinculado ao pensamento desta como um
flagelo produzido pelas condições e escolhas econômicas sociais e –
já naquele momento! – ecológica. Fome, para Josué de Castro, não
é um dado natural, fruto do acaso ou do infortúnio, mas “expressão
biológica de males sociais”.
A Geografia da Fome (1946), Geopolítica da Fome
90 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

(1951) e o Livro Negro da Fome (1960), compõem a trilogia


das obras de Josué de Castro traduzidas para vários idiomas, na
qual o autor além de fazer uma denúncia sobre a fome, apresenta
algumas alternativas que englobam a reorganização da política de
produção de alimentos, o mapeamento da fome, a identificação de
potencialidades das comunidades e a necessidade de um sistema
nacional de segurança alimentar.
É neste contexto que a obra de Josué é importante e se
reveste de grande pertinência atual, no momento em que o Brasil
retorna ao mapa da fome e tem muitas pessoas em situação de grave
insegurança alimentar, ou mais claramente, em situação de fome,
resultando de um processo de escolhas do estado Brasileiro que
violenta a mesa e os pratos de seus nacionais.
O presente artigo, resultante de pesquisa bibliográfica e
análise de dados recentes sobre a insegurança alimentar no Brasil
pós pandemia, iniciará apresentando informações biográficas sobre
Josué de Castro e situando sua produção intelectual no contexto
social da época. Na sequência serão abordadas as questões
desenvolvidas pelo autor para considerar a fome como um flagelo
socialmente produzido e quais as perspectivas de superação
apontadas. Por fim se discutirá sobre o atual contexto brasileiro de
volta do trágico mapa da fome e desestruturação das políticas de
segurança alimentar e nutricional pelo Estado brasileiro.

Josué de Castro e seu ecletismo intelectual na luta con-


tra a fome

Josué Apolônio de Castro, mais conhecido como Josué


de Castro, nasce no Recife em 05 de setembro de 1908, no seio
de uma família de classe média de origem sertaneja. Na infância
e adolescência estudou em importantes colégios de Recife como
o Instituto Carneiro Leão e Ginásio Pernambucano, por onde
passaram escritores e políticos como Manoel Borba, Epitácio
Pessoa, Agamenon Magalhães e outros.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 91

Josué de Castro vai para o Rio de Janeiro estudar na


Faculdade de Medicina, uma das primeiras fundadas no Brasil no
século XIX, de onde retorna em 1929 para o Recife, já formado,
e apto a exercer suas atividades profissionais. Especialista em
fisiologia humana, logo iniciou a clinicar e ingressa como professor
na recém-fundada Faculdade de Medicina do Recife.
Ainda nesta época, o jovem médico é contratado por uma
fábrica para examinar trabalhadores com distintos problemas de
saúde e acusados de serem indolentes e inaptos ao trabalho. Castro
identifica um só mal: a fome. Reportando-se aos patrões assim
escreve: “Sei o que meus clientes têm. Mas não posso curá-los
porque sou médico e não diretor daqui. A doença desta gente é
fome” (SILVA, 2021, p. 35).
Esta experiência possibilitou a Josué de Castro vislumbrar a
dimensão social da doença, ocultada em preconceitos e perspectivas
autoritárias. Inicia inúmeros trabalhos de campo, nas áreas dos
mangues, comunidades e mocambos1. Desenvolve uma pioneira
pesquisa sobre as condições de vida do operariado pernambucano
publicando em 1932 o Inquérito sobre a Condições de Vida das
Classes Operárias do Recife. Este estudo, mais tarde, é importante
na discussão sobre o salário mínimo.
De acordo com Andrade (2005) entre os anos 30 a 45,
Castro publicou vários livros no Brasil e no exterior, como O
problema da alimentação no Brasil, em 1933; Alimentação e raça,
em 1936; documentário sobre o Nordeste e Alimentação brasileira
à luz da geografia humana, em 1937; Science e Technique, em 1938.
Com Cecília Meireles, publicou o livro Festa das Letras em 1938,
ano em que vai para Itália na condição de professor visitante das
universidades de Roma e Nápoles. Neste momento, Josué de Castro
já é reconhecido como prestigiado cientista e escritor.
Além da medicina, da nutrição e da ciência social, dedica-se

1 Mocambos são as edificações em palafitas nas regiões alagadiças de mangues e


córregos. São aglomerações urbanas marcadamente vulneráveis quer do ponto de
vista habitacional quer do ponto de vista social.
92 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

ao estudo da geografia visando analisar, primeiro no Recife, depois


no Brasil e posteriormente em todo o mundo, dirigindo seus
estudos para além da fome em si e das pessoas em condições de má
alimentação, mas buscando identificar as áreas de fome endêmicas e
as implicações provocadas pelas condições sociais e fatores naturais
(ANDRADE, 2005).
Radicado no Rio de Janeiro desde o ano de 1935, em plena
produção intelectual e com contatos com movimentos populares,
dedica-se aos estudos no campo da sociologia e da economia
política, relacionando estas ciências com o problema da fome em
âmbito mundial. Sua produção, conforme apontam Silva e Nunes
(2017), detêm visão mais abrangente sobre o problema da fome
que norteia seus estudos e sua atuação técnica e política.
Na década de 1940, com a criação do Serviço de Alimentação
e Previdência Social, órgão subordinado ao Ministério do Trabalho
do Governo Vargas, Josué de Castro assume como primeiro diretor
podendo organizar politicamente suas teses acadêmicas e pôr em
prática seus conhecimentos teóricos. Funda a Sociedade Brasileira
de Alimentação e dá início, segundo Andrade (2005), a uma
organização para o estudo da fome e dos problemas causados por
ela no Brasil.
Importante situar, mesmo que de forma não aprofundada,
os acontecimentos nacionais deste período histórico. Nos anos
iniciais da década de 1930 o Brasil viveu momentos de forte
agitação política. Conforme Carvalho (2007), ao passo que os
direitos sociais e trabalhistas tiverem maior espaço, os direitos
civis e políticos progrediram mais lentamente. O país, no período
Vargas, aliado aos fatores externos como a guerra e a quebra da Bolsa
de Nova York de 1929, acentuou a carestia, desta forma gerando
maior precariedade e piora nas condições de vida de grande parte
da população nacional. (CARVALHO, 2007, p. 88).
As regiões Norte e Nordeste, historicamente mais afastadas
da produção da riqueza nacional do sul e sudeste brasileiro,
apresentavam indicadores de fome acentuados, mortalidade infantil,
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 93

baixo acesso à saneamento básico e dificuldades na aquisição e


manutenção dos bens necessários à vida com dignidade. Muitos
intelectuais, artistas populares, acadêmicos e alguns movimentos
campesinos se insurgem com esta situação. É o momento,
principalmente no Nordeste, da crítica social acentuada que se fez
sentir na produção intelectual e literária denunciando a situação de
extrema pobreza, principalmente do sertanejo assolado pela fome.
Como ilustração, ao lado de outros pensadores populares
e acadêmicos, Castelar (2010) apresenta Solano Trindade. Este
militante político, poeta, pintor e teatrólogo, amava as artes e
usos destas habilidades e tinha vocação como instrumento de
organização social popular e de luta contra as injustiças.
Contemporâneo e conterrâneo de Josué de Castro, Solano
Trindade, muda-se para o Rio de Janeiro na década de 1940 e cria
o Teatro Folclórico Brasileiro em 1945. Já nesta época é conhecido
internacionalmente por suas pinturas e poemas. Posteriormente
funda o Teatro Popular Brasileiro. Como alguém que denunciava
o status quo da realidade precária do Brasil e a letargia do Estado,
Trindade foi preso por algumas vezes (CASTELAR, 2010).
No ano de 1944, com a publicação “Poemas d´uma vida
simples”, repleta de críticas sociais, após grande repercussão nacional
e internacional de sua obra, Trindade foi perseguido e preso pela
ditadura do Estado Novo e o livro, apreendido (GELEDES, 2022).
O poema “Tem Gente com Fome” foi o motivo da repressão estatal:
Trem sujo da Leopoldina correndo, correndo parece dizer:
tem gente com fome, tem gente com fome, tem gente com
fome. Piiiiii [...] Tantas caras tristes querendo chegar em
algum destino, em algum lugar. [...]Só nas estações quando vai
parando lentamente começa a dizer se tem gente com fome: dá
de comer, se tem gente com fome: dá de comer, se tem gente
com fome: dá de comer. Mas o freio de ar, todo autoritário,
manda o trem calar. Psiuuuuuuuuuuun (TRINDADE, 1944,
p. 12).
Josué de Castro, seguia em duas frentes importantes, na
produção de conhecimento científico lecionando nas academias
94 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

de medicina, nutrição e geografia e escrevendo e lançando obras


importantes e na administração pública federal. No ano de 1939
publica a obra Fisiologia dos Tabus na qual analisa os hábitos
alimentares brasileiros e os mitos de proibição da combinação de
alguns alimentos ou algumas restrições de consumo, a partir de uma
base cultural. Para Andrade (2005) tal obra é um ensaio etnográfico
com base na geografia humana, como junção da geografia às ciências
sociais e a etnologia como expressão dos estudos antropológicos.
Toda esta trajetória é base, cientificamente eclética e
socialmente comprometida2 que Josué de Castro inicia a escrita do
que seria mais tarde chamado pelos poucos estudiosos de suas obras
de: trilogia sobre a fome. A obra Geografia da Fome: a fome no Brasil,
publicada em 1946, foi, sem dúvida, um divisor de águas na obra e
no pensamento social brasileiro. Com sua formação multifacetada,
Josué de Castro, apresenta um conceito multidisciplinar sobre
a fome (NASCIMENTO, 2022) e desmascara-a como grande
problema nacional.
Magalhães (2005) aponta que Castro apresenta a fome
não como uma tragédia que se abate sobre os povos, mas como
um flagelo produzido socialmente. Não uma causa, mas uma
consequência do processo de colonização autoritária e sufocante
que o país se submeteu.
Assim, Josué de Castro define que,
A fome é, conforme tantas vezes tenho afirmado, a expressão
biológica de males sociológicos. Está intimamente ligada
com as distorções econômicas, a que dei, antes de ninguém,

2 Na obra Ensaio de Biologia Social (1959), Josué de Castro critica como os estudos
sociológicos produziram uma ditadura pitoresca dentro da sociologia nacional. Faz
críticas direcionada à Gilberto Freyre acusando-o de, em que pese a importância da
discussão racial, apresentar informações faltantes e críticas sobre a alimentação das
populações pobres. A análise de Castro questiona a sociologia que apenas descreve,
e – em seu entender – descreve de forma incompleta os problemas sociais e estruturais
advindos da má alimentação e/ou da ausência dela, chama tal sociologia (e Gilberto
Freyre) de um desserviço intelectual descomprometido com a nação. Daí surge a
necessidade de uma “Sociologia Comprometida”, vez que além de uma análise
multicientífica tem uma diretriz ética de superar a realidade de iniquidade analisada.
(SILVA, 1998).
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 95

a designação de “subdesenvolvimento” (CASTRO, 1946,


p.08). [...] O subdesenvolvimento não é, como muitos
pensam equivocadamente, insuficiência ou ausência de
desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um produto ou um
subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da
exploração econômica colonial ou neocolonial, que continua
se exercendo sobre diversas regiões do planeta (CASTRO,
1946, p.25).
Na Geografia da Fome, Josué de Castro analisa o espaço
brasileiro dividindo-o em cinco regiões: Amazônia, Nordeste
açucareiro, Sertão nordestino, Centro-Oeste e Sul. Diverge,
portanto da divisão regional do IBGE, tendo em vista que apresenta
na obra um estudo individualizado das características alimentares
próprias de cada região e as carências da população.
Analisa a questão alimentar, os déficits, as doenças, as
condições climáticas, relevo, ocupação do solo, sistema de exploração
econômica e organização social e constata que o problema da fome
era mais acentuada na Amazônia e nos “dois nordestes” (sertão e
nordeste litorâneo açucareiro) do que nas demais regiões do país.
(ANDRADE, 2005).
Neste sentido, o autor defende que o país inteiramente
é assolado pela fome, sendo que na Amazônia e no Nordeste
açucareiro a fome seria endêmica, no Sertão, epidêmica e as demais
áreas se notabilizariam como área de carências alimentares. Josué
descontrói as ideias de que a fome seria resultado da seca, mas
apresenta que são as condições econômicas, sociais, laborais do
sistema dominante e da má repartição das riquezas. (CASTRO,
1996).
A obra Geografia da Fome foi traduzida para 19 idiomas e
causou um forte impacto em grupos conservadores que buscavam
apresentar uma imagem do Brasil diferente no exterior. Em 1948,
Josué publica o livro Geopolítica da Fome, passando a usar a mesma
metodologia de análise que fez no Brasil em escala muito maior,
estuda a fome em todos os continentes.
Andrade (2005, p. 180), resume o intento de Castro na
96 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

obra Geopolítica da Fome aduzindo que:


[...] chamou a atenção para o fato de a maioria da população
do mundo estar subalimentada e, com frequência, pessoas
morriam de fome em todos os hemisférios, sobretudo no
Sul, onde se localizavam os países então classificados como
subdesenvolvidos. Desenvolveu também as teses de não se
poder aceitar um maltusianismo mecanicista e de o aumento
da natalidade se acentuar com a expansão da fome, de vez que o
subnutrido é mais prolífero do que o homem bem alimentado.
Alertou para a existência de uma fome oculta, representada pela
deficiência alimentar em proteínas, sais minerais e vitaminas,
afirmando que se a pobreza é a maior responsável pela fome
aguda, a incidência de fome oculta se deve a problemas ligados
aos sistemas de exploração econômica, aos hábitos alimentares
consagrados, aos costumes e às religiões. Daí a complexidade
da problemática da fome e a necessidade de que intelectuais e
governos se voltassem para o seu estudo e para o combate e a
erradicação do flagelo. (ANDRADE, 2005, p. 180).
Nestas obras, Josué de Castro, como pensador envolvido
na resolução dos problemas e não apenas como produtor de
conhecimento apartado da realidade3, aponta caminhos de
superação da fome no mundo, principalmente pautando-se
pela necessidade de corrigir as distorções da economia de países
colonizados e dos efeitos negativos, historicamente e culturalmente
retroalimentados em que a fome é reproduzida e aceita como dado
natural de determinadas sociedades. Estão, por certo, lançadas as
bases de um sistema mundial de segurança alimentar.
Contando com inúmeras incompreensões da elite brasileira
por pautar a necessária mudança de estruturas sociais arcaicas
que necessitam de todas os elementos da neocolonialidade para
manter-se, Josué desperta, cada vez mais a atenção internacional.
Importante notar que o mundo pós-guerras busca, por distintos
meios, dar respostas humanitárias aos povos.

3 “Não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia que travei
conhecimento com o fenômeno da fome. A fome se revelou espontaneamente aos
meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis do Recife – Afogados,
Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta foi a minha Sorbonne”. (CASTRO, 1996).
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 97

É assim que o brasileiro Josué de Castro, em 1951 é


escolhido para a presidência do Conselho Executivo da FAO –
Foord and Agricultural Organization4, e leva para este importante
órgão de amplitude internacional as ideias – avançadas para seu
tempo – de que a fome seria de ordem socialmente construída,
cuja solução passaria pela mudança de estruturas que a mantém.
Entende como uma das soluções o investimento na agricultura por
meio de programas e políticas de seguridade alimentar, de políticas
agrícolas e de reformas sociais, como a reforma agrária (SILVA,
2020).
Andrade (2005, p. 08) aponta que após 04 anos de gestão
à frente da FAO (1952-1956), Josué de Castro “concluiu que os
países desenvolvidos, que estavam à frente da FAO, não tratavam
com atenção os problemas de segurança alimentar dos países
subdesenvolvidos. Assim, deixou o cargo sem tentar a reeleição”.
Após sair da FAO funda, em Paris, a Associação Mundial de
Combate à Fome (ASCOFAM). Inicialmente surgida como um
manifesto de 30 páginas e, posteriormente foi ampliado e se tornou
a obra O Livro Negro da Fome publicado em 1960.
Nos anos 50, mais precisamente em 1954, já de retorno
ao Brasil candidata-se a uma vaga de deputado federal por
Pernambuco por meio do Partido Trabalhista Brasileiro. Segundo
Andrade (2005), sua atuação parlamentar é marcada pela defesa das
causas populares e com isso, em 1958, reelege-se como o candidato
mais votado de todo o Nordeste. Prossegue Andrade (2005, p. 14)
aduzindo que algumas de suas defesas foram a “reforma eleitoral
que minimizasse a influência dos chefes políticos na decisão dos
eleitores, idéias (sic) democráticas e populares, como o direito
de voto ao analfabeto e às praças e o reatamento das relações
diplomáticas entre o Brasil e União Soviética”.
4 No dia 16 de outubro de 1945 foi criada a Organização para a Alimentação e
Agricultura (FAO), uma agência especializada da ONU. Seu objetivo é combater a
fome através de esforços internacionais, alcançar a segurança alimentar para todas as
pessoas e garantir o acesso à alimentos de alta qualidade e em quantidades o suficiente
para que as pessoas possam ter uma vida saudável e ativa. Essa organização possui
mais de 194 Estados-membros e atua em mais de 130 países ao redor do mundo.
98 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Atuou na volta ao sistema presidencialista, restaurado


em 1961 e apoiou as reformas sociais iniciadas no Governo de
João Goulart, as chamadas “reformas de base”. Em 1962 volta
ao cenário internacional sendo designado embaixador do Brasil
junto à Conferência Internacional de Desenvolvimento. Com a
tomada de poder pelo Governo Militar, em março de 1964, entre
personalidades como Celso Furtado, Darci Ribeiro, também Josué
de Castro teve seus direitos políticos cassados, sendo destituído do
cargo de embaixador do Brasil em Genebra. (ANDRADE, 1989).
Sintetizando o resultado deste processo de ruptura democrática
para os trabalhos de Castro, Andrade (2005, p. 15) infirma que
“não tendo condições de voltar à pátria, resolveu se estabelecer em
Paris e continuar a sua luta contra a fome e o subdesenvolvimento
e em favor da paz. Desejava para o mundo a paz que seu país lhe
negara”.
Na França, Josué é reconhecido pelo Governo Francês que
o integra à Universidade de Paris. Estende sua trajetória acadêmica
para outras universidades europeias, cria e preside instituições
como o Centro Internacional de Desenvolvimento e o Comitê
para a Constituição dos Povos. Recebe, ainda, diversos prêmios
internacionais, como o Prêmio Internacional da Paz em 1954. O
exílio o abate, já não é possível retornar ao país. Josué morre na
capital francesa em 24 de setembro de 1974. Posteriormente seu
corpo é transladado para o Brasil sendo sepultado no Rio de Janeiro.

Fome e as complexas dimensões de um flagelo social-


mente produzido

A abordagem teórica sobre a fome encampada por Josué


de Castro reclamava uma dimensão política de aplicação destes
conteúdos, multidisciplinarmente discutidos, de forma que é
comum encontrar referencias ao trabalho de Castro por esta síntese
de ecletismo intelectual, humanismo social e de luta contra a fome
pela via da perspectiva da crítica ao neoliberalismo e a proposta da
alteração da realidade. (SILVA; NUNES, 2016).
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 99

Logo no início da Geografia, Castro (1946) afirmou que


interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem política
e econômica de civilização ocidental tornaram a fome um tema
proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado. Ele
enfrentaria com rigor técnico metodológico e com compromisso
sociopolítico.
Ao desvincular a temática de uma concepção moralizante
e culpabilizante e dos demais enfoques parciais, diminutos e
caricatos, Castro expande-o e concebe a questão da alimentação
(ou da falta ou qualidade dela) como “complexo de manifestações
simultaneamente biológicas e sociais” (NASCIMENTO, 2022).
Para compreender tal fenômeno aduzia Josué de Castro que:
[...] são precisos, de um lado, estudos aprofundados da
fisiologia da nutrição, dos caracteres físicos e morais do povo
dessa região, de sua evolução demográfica, de sua capacidade
e resistência orgânica e, de outro lado, estudos das condições
físicas do meio, das suas condições econômicas, da organização
social e dos gêneros de vida dos seus habitantes. Abarca, assim, o
estudo da alimentação, capítulos de biologia, de antropologia,
física e cultural, de etnografia, de patologia, de sociologia, de
economia política e mesmo de história. (CASTRO, 1937, p.
22).
No início de sua vida profissional e acadêmica, o autor
inova as discussões clínicas sobre nutrição, agregando temas/
características importantes como raça, evolução social, e, até
aspectos da identidade nacional. Como apresenta Nascimento
(2022), a fome perpassa até a identidade como nação, vez que
poder ser compreendida, à luz do pensamento de Castro como
fenômeno social total.
Uma das primeiras atitudes de Castro foi relacionado a
questão da raça e da fome. Aborda que a ração não poderia ser a
responsável pelos males do país, e sim, a fome, que atinge grande
parte da classe operária e mais pobre, assim:
Se a maioria dos mulatos se compõe de seres estiolados, com
déficit mental e incapacidade física, não é por efeito duma tara
racial, é por causa do estômago vazio. Não é mal de raça, é
100 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

mal de fome. É a alimentação insuficiente que não lhe permite


um desenvolvimento completo e um funcionamento normal.
(CASTRO, 1968, p. 67).
Castro inicia a reconstituição do biológico ao social, ao
cultural, ao histórico. Aproxima-se das ideias de Euclides da Cunha
(1902) que, nos Sertões, apresenta que há um Brasil real, “atrasado”
e um Brasil ideal, “moderno”, ou seja, um descompasso, um fosso,
a desigualdade. Assim está enterrada a tese do determinismo social
e climático em relação às agruras da fome.
Aprofundando o estudo da geografia, o autor segue seu
intento acadêmico de determinar as causas e consequências da
fome nas diversas regiões do Brasil, baseando sua abordagem
metodológica em duas grandes vertentes: a multidisciplinaridade, já
vista acima, e o que modernamente chama-se de geoprocessamento
ou mapeamento.
Nascimento (2022) ao analisar a forma que Castro usou
a metodologia do mapeamento aponta que o autor se distancia
da redução dos dados em termos econômicos estatísticos, pois
considera que estes mascaram a realidade heterogênea, desigual
e injusta. Desta forma Castro elege o método geográfico, que
“considera a terra como um todo e que ensina a saber ver os
fenômenos que se passam e classifica-los em vista de sua localização,
extensão, coordenação e causalidade” (CASTRO, 1937, p. 25).
O mapeamento de toda a distribuição e concentração da
fome no Brasil serviu para derrubar alguns mitos: de que a fome
decorria de influências climáticas ou de que tal processo era culpa da
improdutividade da população que optava pelo ócio, argumentos
ainda usados na contemporaneidade, inclusive por altas autoridades
da República. A regionalização da fome e as constatações de Castro,
ainda não foram superadas, tendo em vista ainda no contexto atual,
as questões apontadas por ele continuam sendo reproduzidas e as
desigualdades regionais crescem vertiginosamente.
No olhar multidimensional sobre a fome, conclui não ser a
fome e a miséria resultantes do excesso populacional ou da escassez
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 101

de recursos naturais e, consequentemente, do quantitativo de


alimentos, mas sim dá má distribuição, da concentração da renda
e da riqueza socialmente produzida. Apenas ampliar produção não
significa acabar a fome, mas é preciso distribuir, inclusive a terra.
Castro foi um defensor da reforma agrária e de uma
mudança na estrutura agrícola do Brasil. Tecendo críticas
contundentes ao latifúndio, defende uma reforma agrária não
apenas como distribuição, mas moderna, racional, de base familiar,
com acesso à crédito, apoio técnico e comercialização. Apresenta-
se, deste modo, a “reforma agrária como uma necessidade histórica
nesta hora de transformação social que atravessamos, como um
imperativo nacional” (CASTRO, 1995, p.266).
O autor analisa, principalmente na obra Geopolítica da
Fome, a questão do subdesenvolvimento apontando que o baixo
nível alimentar que flagela os continentes pobres tem a ver com o
processo colonial seguido pelo imperialismo e, em termos atuais,
pela globalização que desvia a produção agrícola aos mercados
construindo uma barreira do acesso à alimentação de qualidade
que só pode ser transponível pelo poder de compra. O problema
não é o crescimento, a economia, mas as bases de acumulação do
que é gerado e produzido.
Josué entra em rota de colisão com as autoridades públicas
e acadêmicas, que atendendo aos anseios pouco democráticos
de setores ligados à especulação fundiária e à manutenção dos
privilégios, manifestam-se silentes face ao flagelo famélico. Neste
sentido o autor diz que,
Querer justificar a fome do mundo como um fenômeno
natural e inevitável não passa de uma técnica de mistificação
para ocultar as suas verdadeiras causas que foram, no passado,
o tipo de exploração colonial imposto à maioria dos povos
do mundo, e, no presente, o neocolonialismo econômico
a que estão submetidos os países de economia primária,
dependentes, subdesenvolvidos, que são também países de
fome. (CASTRO, 1967, p. 14).
Seguindo neste pensamento, demonstra como os processos
102 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

de colonização e dependência econômica estão diretamente ligados


à geração de pobreza e miséria extrema no mundo. E, a despeito
de considerar a fome apenas como fator objetivo, Josué de Castro
defende que “nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade
humana tão profundamente e num sentido tão nocivo quanto a
fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição” (CASTRO,
1967, p. 32).
Uma outra questão importante apresentada pelo
pernambucano Castro (1996) diz respeito à questão ecológica. Já na
década de 1970, afirma que seria inviável a manutenção do modelo
de crescimento até então posto. Como solução, Josué propõe que
as nações ricas compreendessem a realidade dos países pobres assim
como os aspectos relacionados a seu crescimento, sem jamais por o
homem e sua cultura no ostracismo.
Em síntese o pensamento social de Josué de Castro é frontal
para a explicação da persistência da fome nas últimas quadras
da história, notadamente quando se identifica altos índices de
produção de alimentos e altos indicadores de grave insegurança
alimentar mundial aviltando a condição da sobrevivência
humana e submetendo povos à um extermínio seletivo em face
da manutenção das exigências das relações de produção capitalista
e neoliberal. (CASTRO, 1960). Vive-se o que, modernamente,
Chul-Han (2018), designa como psicopolítica em suas novas
formas de controle de poder e da liberdade.

A inconstância do enfrentamento à fome no brasil e o


reingresso do país ao mapa da fome da ONU

O processo de desenvolvimento do Brasil, notadamente na


colonização e exploração para manutenção das metrópoles europeias
do século XVI, marca definitivamente a relação do país, de seus
povos e comunidades com a insegurança alimentar. Vasconcelos
(2005) aponta que o enfrentamento à fome pelo Estado brasileiro é
um fenômeno recente, e ganha maior corpo no momento em que
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 103

se configura a transição do regime rural para o industrial. Neste


contexto, a fome – e consequentemente seu alívio – reclamam
ações para além da caridade e filantropias religiosas.
Até pela década de 1940, a fome no Brasil era tratada de
forma natural como consequência da ignorância ou da indolência
dos pobres. Josué de Castro escancara a fome no Brasil e denuncia
o país como um local de famélicos agrupados por núcleos regionais
que detinha certas características que ampliavam os fatores de risco
e de inanição.
Vasconcelos (2005) ilustra que durante o período varguista
do Estado Novo (1937-1945) houve uma maior discussão sobre a
política social de alimentação e nutrição a partir da “instituição do
salário mínino, da criação do Serviço de Alimentação e Previdência
Social (SAPS) e da Comissão Nacional de Alimentação”
(VASCONCELOS, 2005, p. 441).
A função destes recém-criados órgãos estatais foi implantar
as primeiras iniciativas nacionais de alimentação no Brasil. Os
restaurantes populares são criados para atender os trabalhadores e
os órgãos iniciam a distribuição de alimentos básicos visando suprir
o déficit nutricional entre a população mais pobre.
Na obra Geografia da Fome, de 1946, Josué de Castro
mapeia as regiões brasileira no que tange à nutrição e já apresenta
um resultado do perfil epidemiológico nutricional brasileiro,
caracterizado, pela elevada ocorrência de doenças associadas à
miséria, à pobreza e ao atraso econômico. Era o início do período de
industrialização e urbanização do país. (VASCONCELOS, 2005).
Com o advento do regime autoritário a partir de 1964, as
políticas de Estado, mesmo incipientes, são interrompidas e entra
em cena uma nova abordagem sobre a questão da fome: a concessão
de alimentação como objeto de controle dos questionamentos
contra o status quo do país.
Prossegue Vasconcelos (2005, p. 443), apontando que o
período de 1964-1984 é “marcado pelas contradições do milagre
brasileiro”. Com a exploração da mão de obra trabalhadora, mesmo
104 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

que entremeados por crises econômicas, o país apresenta um


“milagre econômico” em que se vivencia uma fase de retomada da
expansão econômica.
No intervalo de 1968 a 1974, o Brasil experimenta tal
situação que já se mostra de declínio aos fins de 1974, acentuando a
pauperização das massas trabalhadoras e a degradação da condição
de vida da população. Por exemplo, conforme apresenta Vasconcelos
(2005, p. 444), “em 1974/1975, o Estudo Nacional de Despesas
Familiares (ENDEF) atestava que 67% da população apresentava
um consumo energético inferior às necessidades nutricionais
mínimas exigidas pela OMS”. Em 1974 a FAO convoca a Primeira
Conferência Mundial de Alimentação face ao cenário de início da
crise estrutural do capital. O lobby das indústrias de alimentos
apresenta como diagnóstico a insuficiência da produção. Susan
George (1976) em seus escritos critica os interesses do mercado da
fome fortemente ancorado na venda de soluções para maximizar a
produção do agronegócio.
Neste mesmo sentido, Nascimento (2021, p.17), aduz
que “procurava-se convencer que o flagelo da fome no mundo
desapareceria com o aumento significativo da produção agrícola,
o que estaria assegurado com o alto emprego de fertilizantes e
agrotóxicos”. Com a redemocratização do Brasil os programas até
então existentes foram abolidos e outros projetos são pensados e
postos em curso visando a melhora do abastecimento alimentar.
Mas ressalte-se que a década 1980 no Brasil, marcada por uma
intensa crise econômica, aumentou vertiginosamente o número de
pessoas vivendo em condições de vulnerabilidades.
O Governo Collor de Melo manteve apenas o Programa
Nacional de Alimentação Escola (PNAE) e buscou legitimidade
a partir de outras perspectivas. Em 1992, com grave crise política
nacional, após o desencadeamento do impedimento do presidente
Collor de Melo, o chamado “Movimento pela Ética na Política”
encampa uma nova luta da sociedade civil e constitui o movimento
social Ação da Cidadania contra a Fome, à Miséria e pela Vida. A
grande liderança do movimento fundando em 08 de março de 1993
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 105

foi o sociólogo Hebert de Souza, o Betinho. (VASCONCELOS,


2005).
A organização da sociedade civil brasileira organizou
diversos comitês em todo o Brasil e logrou mobilizar a opinião
pública e institucional em relação à necessidade da adoção de
políticas públicas de combate à fome e a miséria, como ação de
Estado, com participação e controle social.
Desta forma, em 1993, o presidente Itamar Franco assume o
compromisso de criar a Política Nacional de Segurança Alimentar.
Em abril do mesmo ano é lançado o Plano de Combate à Fome e
à Miséria e lançada a proposta de criação do Conselho Nacional de
Segurança Alimentar (CONSEA). Segundo Vasconcelos (2005),
o CONSEA foi instituído em 26 de abril de 1993, formado por
ministros de estado e representantes da sociedade civil, objetivando
o assessoramento do governo na “implementação de ações em
busca de soluções para o problema da fome e da miséria no Brasil.”
(VASCONCELOS, 2005, p. 448).
Muitas ações são propostas e realizadas em todo o Brasil
com a implantação do CONSEA alinhando alguns esforços
governamentais e a metodologia de trabalho das distintas
organizações da sociedade civil. Porém, não houveram grandes
transformações mais estruturais que apoiassem a minimização
do flagelo da fome, sendo, grande parte do esforço conjunto
empregado na resolução de emergências. No início dos anos 90, o
Brasil contara com 32 milhões de pessoas pobres passando fome.
Com o advento do governo neoliberal de Fernando
Henrique Cardoso na presidência da República, nova interrupção
é realizada em algumas ações que vinham sendo desenvolvidas.
O governo FHC delega à sociedade civil a atuação no combate à
miséria e cria o Programa Comunidade Solidária, o CONSEA é
extinto.
Vasconcelos (2005) aponta que outras ações foram
pensadas e postas em prática pelo Comunidade Solidária, que era
gerido nacionalmente pela primeira dama Sra. Ruth Cardoso. Tais
106 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

ações foram: Programa de Combate às Carências Nutricionais


(Leite é Saúde), e no segundo governo de FHC (1999-2002), a
aprovação da Política Nacional de Alimentação, assim como o
Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à Saúde (Bolsa
Alimentação, que depois tornou-se Bolsa Família e atualmente
chama-se Auxílio Brasil).
Nos anos de 2001 e 2002, uma coalização de movimentos
sociais e partidos políticos de orientação mais progressista, vendo
que mesmo com todo o esforço empreendido, os números da fome
e da miséria no Brasil não retrocediam e o país estava figurando
a mais de uma década no Mapa da Fome da ONU, começaram
a discutir as bases de uma nova política nacional de segurança
alimentar e nutricional, inclusive com uma ideia de um sistema
nacional. No ano de 2003, o operário Luiz Inácio Lula da Silva
assume a presidência da República e, conforme seus compromissos
de campanha, coloca o combate à fome e a miséria como agenda
prioritária de seu governo. Em sua posse, no Congresso Nacional
em 1º de janeiro de 2003, o presidente Lula pontificou:
[...] Por isso, defini entre as prioridades de meu governo um
programa de segurança alimentar que leva o nome de “Fome
Zero”. Como disse em meu primeiro pronunciamento após
a eleição, se, ao final do meu mandato, todos os brasileiros
tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e
jantar, terei cumprido a missão da minha vida. É por isso que
hoje conclamo: Vamos acabar com a fome em nosso País.
Transformemos o fim da fome em uma grande causa nacional,
como foram no passado a criação da Petrobrás e a memorável
luta pela redemocratização do País. Essa é uma causa que pode
e deve ser de todos, sem distinção de classe, partido, ideologia.
Em face do clamor dos que padecem o flagelo da fome, deve
prevalecer o imperativo ético de somar forças, capacidades e
instrumentos para defender o que é mais sagrado: a dignidade
humana. (SILVA, 2003).
Estavam lançadas as bases para um novo momento do
combate à fome do Brasil que resultaria 11 anos depois, em 2014,
na retirada do Brasil do mapa da fome da ONU. O Programa
Fome Zero reinseriu, na agenda pública brasileira, o discurso do
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 107

pacto social, do direito à segurança alimentar e nutricional e do


combate à fome como uma prioridade da gestão de forma integral
e integrada.
Vasconcelos (2005) apresenta que o programa foi definido
em três modalidades de intervenção: políticas estruturais, específicas
locais. O CONSEA foi reativado e foi definido o público alvo do
programa, os 46 milhões de brasileiros que dispunham de menos
de um dólar per capta/dia para sobreviver.
Transferência direita de renda, com condicionalidades
específicas no campo da saúde e educação, rede de proteção social
ampliada com a criação do Sistema Único de Assistência Social,
formação profissional, agricultura familiar, compra direta, acesso ao
microcrédito, controle da inflação inclusão do mercado de trabalho,
foram algumas apostas do Programa Fome Zero que aglutinou
diversas ofertas públicas neste campo. A sociedade civil ficou como
complementariedade e apoio às ações de primazia estatal.
No ano de 2011 é criado o Plano “Brasil sem Miséria”
como mecanismos de garantia da sustentabilidade dos resultados
já alcançados. Nos anos 2009 a 2013, houve no Brasil níveis mais
baixos de insegurança alimentar grave, sendo que em 2014 o
Relatório Global da ONU para Alimentação e Agricultura” divulga
a saída do Brasil do mapa da fome. (FAO, 2014).
As crises políticas que se sucederam no Brasil nos anos
seguintes permeadas por corrupção, processo de impedimento da
presidente Dilma, instabilidade econômica, institucional e política,
infelizmente, não conseguiram manter as conquistas e melhoras
nos indicadores.
Os cortes orçamentários do governo Temer desidrataram
áreas essenciais no combate à fome no país. É importante ressaltar
que o cenário brasileiro anterior à pandemia da COVID-19 que teve
início em 2020, apresentava uma conjuntura política polarizada,
uma crise econômica, com altas taxas de desemprego e reformas
no aparato institucional de proteção social, além de demonstrar de
acordo com dados do IBGE (2019), um aumento no número de
108 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

pessoas vivendo em situação de extrema pobreza, totalizando 13,5


milhões. Ainda se observou o progressivo desmonte dos programas
e políticas relacionados a projetos de segurança alimentar e combate
à fome (FREITAS, 2020).
No ano de 2019, no primeiro dia de mandato, o presidente
Jair Messias Bolsonaro, assinou a Medida Provisória 870/19,
extinguindo o CONSEA, colegiado responsável pelas políticas
de combate à fome nos últimos 15 anos. A sanha de desmonte
destas políticas agravou a situação social do Brasil, e aliada com as
dificuldades advindas da pandemia COVID-19, fez com que o país
retroagisse a indicadores superados e, no de fome, batesse um triste
e vergonhoso recorde.
Assim, “com a privação ao acesso regular aos alimentos,
associado a uma renda insuficiente, tem se dilatado o quadro de
insegurança alimentar no país”. (GALINDO, et al, 2021; SOUZA,
et al, 2021). No ano de 2019, o presidente Jair Bolsonaro, atendendo
à imprensa, verbalizou que “falar que se passa fome no Brasil é uma
grande mentira, é um discurso populista” (EL PAÍS, 2019).
Os dados apontam uma outra realidade distinta daquela
apresentada pelo presidente do Brasil. Ao contrário, a fome avança
cada vez mais rápido pelo país e sua mitigação não encontra mais
destaque entre as políticas empreendidas pelo executivo federal.
O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no
Contexto da Pandemia da Covid – 19 no Brasil, realizado pela
Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar
e Nutricional (Rede PENSSAN), apontou que o Brasil tem cerca
de 33, 1 milhões de pessoas sem ter o que comer diariamente.
Este número é mais que o dobro do contingente do ano de 2020
e representa em termos absolutos 14 milhões a mais de pessoas
passando fome no Brasil. (REDE PENSSAN, 2022). “O país
regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990 [...] a
continuidade do desmonte de políticas públicas, a piora do cenário
econômico, o acirramento das desigualdades sociais e pandemia
tornaram o quando mais perverso” (REDE PENSSAN, 2022).
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 109

Importante destacar que a pesquisa apresenta a prevalência


da fome nas regiões norte (25,7%) e nordeste (21%), assim
como maior na área rural (18%), quadro muito parecido com o
mapeamento que Josué de Castro fez na Geografia da Fome de
1946. A pandemia encontrou, no Brasil, uma desorganização
completa das políticas de segurança alimentar e nutricional, de
forma deliberada e estrutural. As denúncias feitas por Josué de
Castro, para quem a fome é um flagelo social produzido, encontram
extrema consonância com o retrato atual do Brasil.

Considerações finais

O pensamento multidisciplinar e eticamente comprometido


de Josué de Castro, ao analisar distintas possibilidades acerca da
questão da fome no Brasil e no mundo, apontou para a necessidade
de um comprometimento em mudanças estruturais na forma de
organização da sociedade, das relações de trabalho, da ocupação do
solo, do exercício da agricultura e da repartição do que é socialmente
produzido.
Este brasileiro, médico nordestino, conclamou Estados
(sim, por meio de sua representação na ONU) e o próprio Brasil
a implantar políticas públicas previamente pensadas e organizadas
para fazer frente à questão da fome. No Brasil, Castro já antevia em
sua ciência e práxis a alimentação como um direito fundamental,
assim como está consagrado pelo Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, que apenas em 2003, por meio da
PEC 047, positivou constitucionalmente o disposto no artigo 25
da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
As escolhas políticas atuais no Brasil, no exercício claro e
nobre da democracia, favoreceram a assunção de grupos vinculados
ao agronegócio e ao capital especulativo fundiário e bancário. Não
há, em nosso sentir, possibilidade de revisitar de forma operacional
os caminhos propostos por Josué de Castro na atual conjuntura
brasileira.
110 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

A negação da fome, mais que a apatia institucional sobre ela,


faz parte de uma agenda de desorganização do Estado prestacional
(Peter Haberle), afastamento da primazia pública sobre a proteção
dos direitos fundamentais e refundação do Estado sobre as bases
neoliberais, o que Boaventura de Sousa Santos tem chamado
de capitalismo abissal, isto é, aquele que gera um cataclisma de
desigualdades consentidas.
Revisitar o pensamento de Josué de Castro à luz da realidade
social brasileira, com os indicadores disponíveis, é uma importante
ferramenta para ofertar ao país um novo rumo no que concerne à
segurança alimentar e nutricional, recolhendo na história recente do
país o que foi importante e sólido neste campo e renunciando aos
arroubos autoritários e desqualificados de técnica e compromisso,
realmente, nacional.

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Nutrição, v. 18, n. 4, pp. 439-457, 2005.
Capítulo 6

Quanto custa o padrão de beleza irreal?


Uma abordagem da pressão estética sobre as
mulheres

Marli Marlene Moraes da Costa


Stéffani das Chagas Quintana

Considerações iniciais

O presente artigo busca analisar as diferentes formas


de pressão estética (culto ao belo) que são exercidas
sobre as mulheres e que, de forma geral, afetam a sua autoestima.
Abordando-se desde os aspectos históricos, sociais e legislações que
envolvam essa temática até os dias atuais. Assim sendo, o objetivo
geral do estudo é demonstrar a gravidade da pressão estética imposta
às mulheres, levando em consideração os seus principais aspectos
e consequências, buscando responder ao seguinte problema de
pesquisa: de que maneira a pressão estética afeta suas vidas?
Elenca-se como hipótese que a pressão estética vem sendo
cada vez mais disseminada na sociedade, afetando mulheres de
diferentes idades, principalmente com o auxílio dos meios de
comunicação e mídias sociais, vulnerabilizando e expondo as
mesmas a diversos riscos, tanto em face da saúde, como diante da
autoestima e do bem-estar.
Nesse sentido, justifica-se a escolha da presente temática,
uma vez que se trata de um tema atual e constantemente agravado
na sociedade, o qual ainda necessita de visibilidade e discussões
para que seja possível promover a disseminação do conhecimento
e o rompimento do atual cenário, reduzindo a prática da pressão
114 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

estética e possibilitando o pleno exercício dos direitos pelas mulheres,


principalmente em relação ao seu próprio corpo e imagem.
A partir disso, ressalta-se que na presente pesquisa o
método aplicado é o dedutivo, vez que inicialmente são analisados
aspectos gerais do assunto para, depois, abordar pontos específicos.
Além disso, são aplicadas as técnicas de pesquisa bibliográfica e
documental, além do método procedimental histórico.
Portanto, para possibilitar a resolução do problema de
pesquisa, assim como visando cumprir com o objetivo geral do
estudo, são elaborados três objetivos específicos, os quais são tratados
em cada um dos tópicos do artigo, sendo: (i) analisar aspectos
históricos e sociais que contextualizam a temática da pressão
estética; (ii) abordar como a pressão estética pode ser enquadrada
na legislação brasileira; (iii) estudar sobre as consequências advindas
da pressão estética sobre as mulheres.

A pressão estética e a busca por um padrão de beleza


irreal

As mulheres já percorreram um grande caminho de lutas


e movimentos em busca da conquista de direitos e garantias.
Contudo, ainda que muitos tenham sido os avanços nesse cenário,
ao longo do tempo os desafios se intensificaram cada vez mais a
partir da utilização e da imposição de imagens da beleza feminina
às mulheres (WOLF, 2018). Sendo assim, no decorrer da vida,
as mulheres são constantemente confrontadas com expectativas
de características e de comportamentos esperados pela sociedade,
na maioria das vezes frutos de estereótipos de gênero (COSTA;
SCHWINN, 2018).
Pierre Bourdieu (2002) considera que, por mais que se
identifique que as mulheres conseguiram romper com diversas
ideias e normas sociais tradicionais que antes eram impostas em
relação às suas vidas, ainda podem ser verificadas limitações.
Uma dessas limitações citadas pelo autor é sobre a autonomia das
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 115

mulheres frente ao uso dos seus próprios corpos, eis que eles estão
constantemente subordinados à dominação masculina, como é
possível se verificar através das próprias publicidades que utilizam o
corpo feminino como sendo um objeto de exploração.
Sendo assim, mesmo que tenham ocorrido diversos avanços
visando a emancipação das mulheres, ainda permanecem as
desigualdades de gênero, as práticas machistas e os ideais sexistas,
corroborando com a direta relação entre o capitalismo e as opressões
de gênero, uma vez que através das associações simbólicas se chega
até a ideia de submissão das mulheres frente à dominação dos
homens (TOMAZZETTI, 2022).
Embora sendo constantes as lutas para promover o
rompimento das ideias machistas e patriarcais ainda propagadas na
sociedade, a fim de se conquistar a autonomia do corpo (OLIVEIRA-
CRUZ; ISAIA, 2022), cada vez mais a indústria da beleza, em seus
diferentes segmentos, passa a ser uma ferramenta de controle das
mulheres, colocando em risco tudo que os movimentos feministas
proporcionaram e avançaram frente aos direitos e garantias das
mulheres (WOLF, 2018).
Em consonância com Wolf (2018), verifica-se a presença
de uma reação ao feminismo de forma violenta, partindo-se do uso
de imagens da beleza feminina como sendo uma espécie de arma
política que impede a evolução das mulheres, ou seja, dando ensejo
ao que a autora denomina como sendo “o mito da beleza”, o qual
é um reflexo social que vem sendo verificado desde a Revolução
Industrial, exercendo uma função de controle da sociedade, em
especial das mulheres.
Assim, juntamente com o avanço das novas tecnologias,
passou-se a reproduzir imagens de um corpo e aparência “ideal”
para todas as mulheres, sendo que dentre as ficções que foram
criadas a partir disso, encontra-se o mito da beleza e a busca por
uma beleza irreal e impossível de ser alcançada (WOLF, 2018). Em
face disso, importa destacar que o corpo feminino é visto em todo
e qualquer lugar, seja através dos comerciais, das revistas, em telas,
116 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

camisetas ou produtos, seja de forma empoderada ou sexualizada,


de maneira comercializada ou controlada (OLIVEIRA-CRUZ;
ISAIA, 2022).
Segundo Wolf (2018) a “beleza” pode ser vista como sendo
uma espécie de sistema monetário, uma vez que possui influência
política e, igualmente, é formada pelas ideias de domínio masculino.
Contudo, tal beleza não é universal e muito menos imutável, não
existindo um padrão de beleza ideal baseado na “Mulher Ideal
Platônica”, por mais que essa ideia tenha sido criada e disseminada
na sociedade como sendo uma forma de controle dos corpos das
mulheres, fundamentada na pressão estética.
Enfatiza-se que as mulheres são, constantemente, vítimas de
julgamentos sobre como devem ser, sobre os seus próprios corpos,
sobre as suas roupas, a respeito de como devem se portar, além de
outras formas que são socialmente e estruturalmente reguladas e
impostas às mulheres, principalmente motivadas pela construção
histórica envolvendo a dominação e submissão (OLIVEIRA,
2022).
Todas essas imposições, notadamente voltadas à regulação
dos corpos das mulheres, podem ser vistas como sendo parte do
que se denomina pressão estética (OLIVEIRA, 2022). Uma vez que
são criados supostos padrões irreais e obrigatórios a serem seguidos
pelas mulheres, os quais são impossíveis de serem alcançados,
afetando e colocando em risco a vida e a saúde de muitas.
Dessa forma, o mito da beleza submete a mulher a um
controle de sua existência em total desrespeito aos preceitos
constitucionais de igualdade e promoção de seus direitos de
cidadania (leia-se direitos humanos) (WOLF, 2018). Diante
dessa perspectiva, levando em consideração a obrigação imposta
às mulheres sobre a necessidade de se atingir os supostos padrões
estéticos de beleza, é possível afirmar que as mulheres permanecem
sendo discriminadas, tratadas como objetos e não como sujeitos
de direito, consubstanciando um cenário ainda marcado pelas
desigualdades (VIANNA, 2005).
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 117

A partir da noção real de que existe uma pluralidade de


corpos, formas e idades, restringir toda a sociedade a um padrão
de beleza irreal é agravar ainda mais as ações comportamentais
discriminatórias, desiguais, cruéis e que violam direitos humanos
e fundamentais das vítimas contumazes de uma estrutura cultural,
patriarcal, machista e sexista que ainda imperam no país (VIANNA,
2005).
A partir dessa abordagem, uma vez analisados os aspectos
históricos e sociais que contextualizam a temática da pressão
estética sobre as mulheres, tendo em vista que se trata de um
fenômeno constantemente identificado na sociedade, no próximo
tópico abordar-se-á como a pressão estética pode ser enquadrada na
legislação brasileira.

Pressão estética: o que dispõe a legislação?

Levando-se em consideração que a pressão estética e a


disseminação de um suposto padrão de beleza imposto às mulheres
pela sociedade ainda são diariamente identificados, uma vez que
os corpos femininos historicamente continuam sendo tratados
como objetos de dominação, poder e exploração, se torna essencial
verificar de que forma tal problema é possível de ser enquadrado no
ordenamento jurídico brasileiro.
Destaca-se, inicialmente, que a Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher,
também conhecida como Convenção de Belém do Pará, promulgada
pelo Decreto n. 1.973, de 1º de agosto de 1996, estabelece em seu
artigo 1º que a violência contra a mulher pode ser compreendida
como sendo qualquer ato ou ação fundada no gênero, podendo ser
causadora de morte, dano ou de sofrimento físico, sexual ou, então,
psicológico à mulher, seja no âmbito público, seja âmbito privado
(BRASIL, 1996).
Além disso, dispõe que toda a mulher possui o direito de
usufruir de uma vida sem violências (artigo 3), possuindo o direito
118 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

ao respeito da sua integridade física (artigo 4, “b”) e de sua dignidade


(artigo 4, “e”), direito à liberdade (artigo 4, “c”), de ser livre de
todas as formas de discriminação (artigo 6, “a”), entre outros.
O artigo 6º da mesma Convenção menciona o direito das
mulheres de serem valorizadas e educadas sem que ocorra qualquer
influência de padrões estereotipados sobre o comportamento e os
costumes sociais ou culturais que tenham como base a inferioridade
ou a subordinação.
Nesse sentido, ao relacionar a pressão estética com as
disposições da referida Convenção, destaca-se que os supostos
padrões de uma beleza irreal impostos às mulheres podem ser
considerados como uma prática que causa danos psicológicos às
mesmas e violam diretamente direitos nacionais e internacionais
acima identificados.
Igualmente, ressalta-se que o artigo 8, “g” da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher, aborda que os Estados Partes devem elaborar medidas que
estejam aptas para incentivar que os meios de comunicação criem
diretrizes que sejam adequadas para promover uma divulgação de
forma a corroborar com a erradicação da violência contra a mulher
e a valorização do respeito pela dignidade das mulheres (BRASIL,
1996).
Contudo, conforme já abordado, enfatiza-se que os meios
de comunicação estão facilitando cada vez mais a propagação
das imagens de uma suposta beleza feminina a ser seguida pelas
mulheres, embora irreal e impossível de ser alcançada, o que nos
leva a constatar que faltam instrumentos para a concretização das
diretrizes propostas na Convenção.
Corroborando, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Políticos, promulgado pelo Decreto nº 592, de 6 de julho
de 1992, aborda no artigo 26 que todas as pessoas são iguais e
possuem direitos a uma igual proteção, sem qualquer discriminação
(BRASIL, 1992).
Além disso, o mesmo artigo estabelece que a lei deve vedar
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 119

qualquer forma de discriminação e garantir que todos os indivíduos


tenham proteção igual e eficaz contra a discriminação em todas as
suas formas, seja por motivos de raça, cor, sexo, língua, religião,
situação econômica ou qualquer outra natureza ou situação
específica (BRASIL, 1992).
No mesmo sentido, a Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988, em consonância com o artigo 5º, estabelece que
todos são iguais em face da lei, vedando distinções de qualquer
natureza e afirmando a garantia de inviolabilidade do direito à vida,
liberdade, igualdade, dentre outros (BRASIL, 2020). Além disso,
dispondo que a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas são direitos invioláveis, em atenção ao inciso X do artigo 5º
da Constituição.
A Lei Maria da Penha, da mesma forma, dispõe que
Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,
orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e
religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades
para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental
e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social (BRASIL,
2021a).
Assim como aborda sobre o dever em relação à garantia de
condições para o exercício pleno de direitos, como à vida, saúde,
alimentação, liberdade, respeito e dignidade de forma efetiva às
mulheres, tendo em vista o artigo 3º da Lei.
Diante disso, levando em consideração as formas de
violência doméstica e familiar praticadas contra a mulher e dispostas
na Lei Maria da Penha, as quais são classificadas em violência física,
psicológica, sexual, patrimonial e moral, cabe destacar, nesse caso,
a respeito da violência psicológica (BRASIL, 2021a).
A violência psicológica, em consonância com a mesma Lei,
pode ser classificada diante de uma conduta que venha a causar
danos emocionais e diminuição da autoestima da mulher ou que
prejudique e perturbe o seu desenvolvimento, além de quando uma
conduta visa prejudicar ou controlar as ações, os comportamentos,
120 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

crenças e decisões da mulher, através de ameaça, constrangimento,


humilhação, manipulação, isolamento, vigilância ou perseguição
constante e contumaz, insulto, chantagem, violação da intimidade,
ridicularização, exploração ou limitação de direito ou outras
formas que prejudiquem a saúde psicológica e autodeterminação
da mulher, com base no artigo 7º, inciso II da Lei Maria da Penha
(BRASIL, 2021a).
No Código Penal, igualmente, o artigo 147-B, incluído
pela Lei n. 14.188, de 28 de julho de 2021, se considera como
crime com pena de reclusão de seis meses a dois anos, e multa, caso
a conduta não constituir crime mais grave, a conduta de causar
dano emocional à mulher, ou seja, casos de violência psicológica
praticada contra a mulher (BRASIL, 2021b).
Ainda que a legislação não trate expressamente dos
padrões estéticos ou da pressão estética, é possível analisar que ela
interfere diretamente na vida das mulheres, sobretudo em aspectos
psicológicos, uma vez que causa danos emocionais e visa controlar
comportamentos, prejudicando o desenvolvimento e afetando a
autoestima das mulheres.
Portanto, diante dessa análise, ainda que dificilmente
reconhecida, é possível enquadrar a pressão estética como sendo
uma forma da violência psicológica, eis que ela possui um caráter
notadamente simbólico, marcado pelas noções de dominação
que são produzidas na sociedade e dificilmente identificadas ou
comprovadas (OLIVEIRA, 2022).
Nesse sentido, uma vez que a dominação masculina
se encontra nas estruturas da sociedade e, igualmente, no
desenvolvimento de atividades reprodutivas e produtivas através da
divisão sexual do trabalho, esses ideais atuam como base em muitos
dos pensamentos e comportamentos da sociedade os quais passam a
ser naturalizados, resultando na violência simbólica (BOURDIEU,
2002). Portanto, é possível que a pressão estética seja visualizada
como sendo uma espécie da violência simbólica, notadamente
psicológica, que vitima inúmeras mulheres (OLIVEIRA, 2022).
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 121

Uma vez abordado sobre como a pressão estética pode ser


visualizada frente à legislação brasileira, passa-se a estudar sobre
as consequências advindas da pressão estética sobre as mulheres,
principalmente por se tratar de um grave problema que ainda assola
a vida de muitas.

As principais consequências da pressão estética sobre


as mulheres

Ao longo do tempo, as mídias sociais passaram a atuar


como uma notória ferramenta utilizada para propagar supostos
padrões de beleza e de comportamentos, os quais são considerados
ideais constantemente impostos às mulheres (CASTRO; PRADO,
2012). O mesmo ocorre através da publicidade, cujos instrumentos
midiáticos utilizam os corpos das mulheres como objetos, de forma
reiterada para atrair os consumidores.
Conforme divulgado em pesquisa publicada pela Forbes,
com base no provedor Euromonitor Internacional, por exemplo,
o Brasil ocupa a quarta posição de maior mercado de beleza e de
cuidados pessoais do mundo (WEBER, 2020). Dessa forma, é
possível mencionar que “a mídia não apenas capta e veicula como
também constrói discursos sobre as identidades legitimando as
diferenças entre os gêneros através do estereótipo” (CASTRO;
PRADO, 2012, p. 254).
Nesse caso, ressalta-se que mais uma vez as mulheres são
vítimas de discriminação, sendo julgadas apenas porque não se
parecem esteticamente com as imagens diariamente expostas na
mídia, seja na televisão, nas redes sociais, nas revistas ou outros
meios (VIANNA, 2005). Em razão disso, dado que na maioria
das vezes não há uma representatividade real divulgada nos meios
de comunicação, além das mulheres não se identificarem com as
imagens que são expostas, elas são afetadas por não se encaixarem
nesses supostos padrões que foram criados e impostos às mulheres.
A pressão estética, diariamente propagada, pode ocasionar
122 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

inúmeros efeitos, sobretudo afetando a vida das mulheres. Conforme


exposto por Naomi Wolf (2018), por exemplo, são crescentes os
casos de transtornos alimentares e de cirurgias plásticas estéticas
em razão do mito da beleza direcionado às mulheres na sociedade.
Dentre os efeitos negativos e prejudiciais à saúde em razão
da pressão estética e todos os fatores que são desencadeados a partir
disso, se destacam os transtornos alimentares, a dismorfia corporal,
a gordofobia, o racismo estético, o fenômeno body shaming, além
de outros possíveis riscos e problemas (BALDISSERA, 2022).
Diante disso, conforme pesquisa global realizada pela
Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética, ressalta-
se que existe um aumento contínuo em relação ao número de
realização de procedimentos cirúrgicos estéticos, assim como
houve um aumento na realização de procedimentos não cirúrgicos
(ISAPS, 2021). Frente a esse dado, em 2021, a lipoaspiração foi
considerada como o procedimento estético mais realizado, sendo
mais de 1,9 milhão, e seguido pelos procedimentos de aumento
dos seios, cirurgia de pálpebras, rinoplastia e abdominoplastia.
Além disso, destaca-se que ao analisar as estatísticas por países,
a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética constata
que o Brasil é considerado como o segundo país que mais realiza
procedimentos estéticos em todo o mundo e, juntamente com os
EUA, apresentando o maior número de cirurgiões plásticos.
Ademais, ressalta-se que a pressão estética também pode ser
vista como sendo uma fonte de poder para atingir negativamente a
imagem feminina, assim como afetando diretamente a autoestima
das mulheres (VIANNA, 2005).
Outro fator importante a ser analisado é que, principalmente
através das redes sociais, cada vez mais são realizadas divulgações
e propagandas atinentes a tratamentos e procedimentos
estéticos por profissionais que, por vezes, não são médicos,
havendo a exposição da mulher a diversos riscos (CONSELHO
FEDERAL DE MEDICINA; SOCIEDADE BRASILEIRA DE
DERMATOLOGIA, 2019). Dentre aos riscos, importa destacar
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 123

que entre 17 de janeiro de 1987 e 15 de setembro de 2015, foram


constatados 102 casos de morte relacionados à lipoaspiração, sendo
na maioria pacientes do sexo feminino de 18 a 62 anos, consideradas
saudáveis (DI SANTIS et al., 2020). Dentre as causas de óbito,
verificou-se a ocorrência de tromboembolismo, perfuração,
infecção, hemorragia, embolia gordurosa, edema agudo de pulmão
ou complicações anestésicas, além dos inúmeros casos em que não
foi possível constatar a causa (DI SANTIS et al., 2020)
Com a busca pela beleza irreal maximizada pelo forte papel
da mídia através da divulgação de supostos padrões estéticos,
procedimentos cirúrgicos e não cirúrgicos, também pode haver
a exposição das mulheres a automedicação, dietas e programas
de exercícios rigorosos, nocivos à saúde e sem acompanhamento
profissional (DUTRA; SOUZA; PEIXOTO, 2015).
Enfatiza-se, também, o impacto da pressão estética diante
de crianças e jovens, uma vez que desde a infância são expostas
a ideias de modificação dos seus corpos visando à aceitação pela
sociedade, havendo discriminações estéticas, violações de direitos e
afetando diretamente o desenvolvimento biopsíquico das mesmas
(VIANNA, 2005). Em consonância com a Sociedade Brasileira de
Cirurgia Plástica (2018), através do Censo 2018, 1,8% das cirurgias
plásticas foram realizadas em pessoas com até 12 anos de idade
e 4,8% foram feitas em pessoas entre 13 e 18 anos, totalizando
6,6% de procedimentos cirúrgicos nessa modalidade realizados em
crianças e adolescentes.
Portanto, a partir dessa análise, torna-se fundamental
considerar que a pressão estética, além de atingir diretamente
a saúde e o bem-estar das mulheres, também é uma forma de
discriminação, desigualdade de gênero e violação de direitos e
garantias das mesmas, afetando o desenvolvimento e expondo
diariamente meninas e mulheres a diversos riscos.
124 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Considerações finais

É possível concluir, de maneira geral, que apesar de todos


os avanços e conquistas das mulheres em relação aos seus direitos
e garantias, a pressão estética, a partir da criação de um suposto
padrão de beleza irreal e inalcançável, é visto como um problema
que afeta a autonomia das mulheres em relação aos seus próprios
corpos, além de culminar em diversos riscos e violações de direitos
e garantias.
Diante disso, quando analisados aspectos históricos e
sociais que contextualizam a temática da pressão estética, constata-
se que os meios de comunicação e a indústria da beleza, aliados aos
aspectos de dominação masculina, provocam uma busca incansável
por um padrão de beleza que é notadamente contrário da realidade
e impossível de ser alcançado.
Extrai-se, além disso, que as imagens e os corpos das
mulheres, baseados em um cenário marcado pela dominação e
submissão, são cotidianamente relacionados com comerciais,
produtos, revistas e propagandas em redes sociais ou televisão,
resultando na objetificação e exploração das mulheres na sociedade.
É urgente e necessário levar a sociedade a refletir sobre as
desigualdades existentes entre mulheres e homens, principalmente
nas questões relacionadas a prevalência da dominação masculina e
das mais diversas opressões, características do patriarcado e ainda
tão presentes na atualidade. A mentalidade da cultura patriarcal
deve ser dizimada do mundo da vida, para que os direitos e as
garantias constitucionais das mulheres possam perdurar de acordo
com regras nacionais e internacionais estabelecidas pelos direitos
humanos e garantias constitucionais.
Não basta apenas criar novas leis, é necessário erradicar
lacunas existentes entre a teoria e a prática. Além disso, cabe
recordar que o direito foi construído com base no olhar masculino,
colocando a mulher em posição secundária e estigmatizada no
ordenamento jurídico brasileiro, evidenciando a perpetuação dos
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 125

estereótipos e desigualdades de gênero sob as quais se fundam o


patriarcado, refletindo nas demandas, mesmo quando não versam
explicitamente sobre gênero.
Como destacado, é notório que as questões de gênero
e sexualidade ganharam um enfoque em legislações e políticas
que se unem tanto no segmento da educação quanto em outros
campos, especialmente no último século. Mas isso, entretanto, não
é segurança de ocorrer mudanças na forma como as mulheres são
vistas e tratadas em questões relacionadas ao mito da beleza ou
diante do excesso de cobranças que a sociedade em geral impõe a
sua existência.
Ademais, frente à discussão sobre como a pressão estética
pode ser enquadrada na legislação brasileira, conclui-se que mesmo
não sendo tratada expressamente, pode ser entendida como uma
violência psicológica, pois afeta diretamente o desenvolvimento e
autoestima das mulheres, através de danos emocionais e do controle
imposto e exercidos sobre elas.
Da mesma forma que a pressão estética viola direitos e
garantias previstos em diferentes disposições legais, como da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência Contra a Mulher, do Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos, da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, da Lei Maria da Penha e, ainda, do Código Penal.
Diante das consequências advindas da pressão estética,
extrai-se que são inúmeros os riscos provocados às mulheres diante
dos supostos padrões de beleza impostos às mesmas. Como, por
exemplo, a violação do direito ao respeito e exercício da dignidade
e liberdade; a violação da garantia de ser livre da discriminação e de
estereótipos comportamentais, sociais ou culturais; a vulnerabilidade
a transtornos alimentares e cirurgias estéticas; a baixa autoestima;
a exposição a tratamentos e procedimentos por profissionais não
médicos; automedicação; além de outras formas de riscos à saúde.
Cabendo destacar, igualmente, que a pressão estética não
afeta tão somente mulheres adultas, mas ocasiona reflexos também
126 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

sobre o desenvolvimento de crianças e adolescente, uma vez que


desde a infância ficam expostos e vulneráveis aos padrões estéticos,
principalmente divulgados nas mídias sociais, afetando diretamente
o desenvolvimento e violando seus direitos de proteção integral.
Dessa forma, a resposta para a problemática dessa
pesquisa indica que as características sociais, fomentadas pelo
conservadorismo e pelo modelo político-econômico neoliberal e
jurídico, contribuem para a continuidade das relações desiguais de
poder, tendo em vista que deixam em segundo plano os direitos
sociais, de educação, liberdade e emancipação, para dar voz aos
interesses do mercado. Nessa sociedade, onde tudo vira objeto de
consumo, inclusive os sujeitos, as mulheres acabam sendo vistas
como propriedade e são vítimas de muitas violações.
Assim, destaca-se que a pressão estética, como meio de
controle de comportamentos e ações das mulheres na sociedade
baseado em noções de poder e dominação machista e patriarcal,
atinge a vida das mulheres nos mais diversos aspectos, conforme
demonstrado ao longo do trabalho. É possível afirmar que além de
atingir a autoestima e o bem-estar das mulheres, também afeta o
seu desenvolvimento e o exercício pleno de seus direitos e garantias,
inviabilizando o progresso feminino, condicionando as mulheres e
seus corpos a uma noção objetificada ainda propagada na sociedade.
Portanto, não esgotando a temática, importa destacar ser
imprescindível que o assunto da pressão estética e dos supostos
padrões de beleza seja ainda mais visibilizado, principalmente como
forma de conscientizar e disseminar o conhecimento, evitando
a submissão das mulheres, crianças e jovens a riscos que podem
ocasionar sérios problemas à sua saúde biopsicossocial.

Referências

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https://posdigital.pucpr.br/blog/padroes-beleza. Acesso em 05
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Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o
Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
Penal; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da
República, 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 04
jun. 2023.
BRASIL. Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021. Define o
programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência
128 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Doméstica como uma das medidas de enfrentamento da


violência doméstica e familiar contra a mulher previstas na
Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e
no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código
Penal), em todo o território nacional; e altera o Decreto-Lei
nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para
modificar a modalidade da pena da lesão corporal simples
cometida contra a mulher por razões da condição do sexo
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2018.
Capítulo 7

Políticas públicas de prevenção à violência no


ambiente escolar sob o viés do policiamento
comunitário e da justiça restaurativa

Fernando Oliveira Piedade


Theodoro Luís Mallmann de Oliveira

Considerações iniciais

L amentavelmente vem crescendo os ataques às escolas


no Brasil. Fato inquietamente, visto que elas devem, ou
pelo menos deveriam, ser espaços de convivência diária harmônica
e saudável. Todavia, o ambiente escolar tem se tornado palco de
terríveis tragédias, muitas vezes, promovidas por alunos e ex-
alunos, aqueles que são justamente os que deveriam guardar boas
recordações. Os ataques a escolas têm sua gênese na cultura de
ódio disseminada pelas redes sociais, movidos pelo sentimento de
ódio ou vingança, que vai desde ressentimentos e frustações ao
extremismo a certos grupos sociais.
Toda a comunidade tende a sofrer danos ocasionados
pelas tragédias nas escolas. Nesta senda, torna-se necessário uma
mudança de cultura, através de programas e políticas que promovam
a convivência e trabalhem a inclusão, o diálogo, o acolhimento
e o pertencimento. O referido estudo não tem a pretensão de
apresentar uma fórmula mágica e, neste contexto, resolver o
problema da violência na escola. Todavia, sugere-se, para além de
outras ações pedagógicas já adotadas pela escola como política de
enfrentamento à violência, o policiamento comunitário e a justiça
restaurativa. Eles não se apresentam de forma a excluir o código
132 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

disciplinar previsto no regime escolar, muito pelo contrário, mas


indicam um caminho complementar ou alternativo.
Tais atentados acarretam o tolhimento a uma série de direitos
humanos dos frequentadores dessas escolas (estudantes, professores,
funcionários, pais etc.), como a vida, saúde, integridade física,
dignidade humana, ao mesmo tempo em que deve-se preocupar
também com o futuro desses agressores, os quais em muitas
oportunidades são jovens desorientados, não devendo haver a mera
punição desacompanhada de políticas públicas de ressocialização.
A problemática deste trabalho reside na seguinte questão:
de que forma o policiamento comunitário e a justiça restaurativa
podem contribuir no enfrentamento à violência no espaço escolar?
Vivificando esse pensamento, a hipótese de pesquisa se
direciona para a concepção de que o investimento em segurança
desacompanhado das políticas públicas de prevenção à violência e
inclusão social não surtirá efeitos satisfatórios no tratamento dessa
crise, o que demanda inclusive o uso de técnicas de mediação de
conflitos por profissionais devidamente capacitados.
O artigo discorrerá no primeiro capítulo sobre os dados
fáticos acerca do crescimento dos ataques nas escolas brasileiras,
assim como suas possíveis causas, dentro da lógica dos direitos e
garantidas previstos na Constituição e no Direito da Criança e do
Adolescente.
No tópico seguinte, serão avaliadas as políticas de Polícia
Comunitária como forma de garantir não só a segurança nas escolas,
mas a prevenção à violência através de uma relação de confiança e
aproximação entre população e agentes públicos.
No terceiro capítulo serão abordadas as vantagens da
aplicação da Justiça Restaurativa em função de solucionar esses
problemas, inclusive pelo uso da mediação de conflitos, dentro do
raciocínio de que o encarceramento em massa nem sempre resolve
o problema da segurança nas escolas, podendo ocorrer o efeito
reverso.
Com esse alvedrio, a metodologia se pautará numa
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 133

abordagem dialética sob o ponto de vista pedagógico e sociojurídico.


A técnica de pesquisa será a qualitativa, tomando por base fontes
bibliográficas, revistas especializadas e banco de dissertação e
mestrado da Capes.

Do preocupante crescimento dos ataques nas escolas


brasileiras e suas possíveis causas

Não restam dúvidas de que o espaço escolar, dentro da


proposta democrática prevista pela legislação brasileira, deve
proporcionar um ambiente seguro e saudável e, neste sentido,
promover o respeito e o diálogo. Em consonância com este
entendimento, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB), Lei 9.694/96 afirma que “Art. 1º A educação abrange
os processos formativos que se desenvolvem na convivência
humana. Os processos formativos devem possibilitar, a todos
àqueles envolvidos direta e indiretamente no contexto escolar, o
pensamento crítico e reflexivo, fomentando sua participação diante
de problemas complexos que exigem o diálogo e o entendimento
sobre a realidade vivenciada cotidianamente.”.
É público e notório que as escolas brasileiras passam por
muitos problemas concernentes à violência. São inconvenientes
relativos a ameaça, agressão física, discriminação de gênero, raça,
classe social, xenofobia, LGBTFobia, bullyng, intolerância religiosa,
entre outros. É intrigante e paradoxal, justamente porque deveria
prevalecer o respeito e a união.
Em meio a esse turbilhão de problemas, o ápice dessas
contendas nesses espaços tem sido as invasões às escolas e ataques
homicidas contra alunos, professores e demais funcionários,
normalmente promovidos por alunos e ex-alunos. De fato, muito
embora esses tipos de atentados fossem, infelizmente, mais comuns
em países como os Estados Unidos, estatísticas demonstram que
no Brasil esse número tem crescido assustadoramente (TOLEDO,
2022).
134 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Com efeito pesquisas mostram que entre 2011 e 2023,


cinquenta e duas pessoas foram assassinadas nesses ataques a escolas,
sendo sete só no último ano. Outro dado preocupante é o aumento
na frequência dos ataques, posto que, dos doze atentados registrados
de 2012 até 2023, cinco deles ocorreram entre setembro de 2022 e
abril de 2023, ou seja, quase metade dessas tragédias se verificaram
nos últimos sete meses (VELOSO; PIMENTEL, 2023).
De se acrescentar ainda a lamentável circunstância de esses
ataques terem sido perpetrados na maioria das vezes por alunos ou
ex-alunos das próprias escolas, os quais, ao invés de guardarem boas
recordações, acabaram por vislumbrar o lugar onde foram educados
como um ambiente hostil a ser aniquilado. Mas quais as possíveis
razões para esse crescimento tão vertiginoso dessas agressões?
Há quem aponte para a possibilidade de os jovens agressores
serem acometidos por doenças mentais como psicopatias,
transformando os em assassinos cruéis, frios e sádicos, o que
explicaria a coragem e falta de remorso em praticar essas condutas
contra pessoas indefesas. Especialistas, porém, realizaram estudos
identificando que eles na maioria não apresentavam problemas
psiquiátricos em seu perfil, além de serem normalmente do sexo
masculino, brancos e com armas adquiridas a partir dos próprios pais
e com problemas particulares no âmbito residencial (CORREIO
BRAZILIENSE, 2019).
Destarte, um provável motivo para gerar a revolta desses
jovens contra as escolas a ponto de causar tais massacres pode
ser a questão social, haja vista que alguns podem ter crescido em
famílias desestruturadas, sofrido abusos sexuais ou espancamentos
pelos familiares, presenciando discussões entre pais, entre vizinhos,
muitas vezes moradores de comunidades carentes onde impera
a violência dos confrontos entre facções rivais e entre estas e as
polícias (CORREIO BRAZILIENSE, 2019).
Outra possível causa para esse aumento das ocorrências em
pauta são os bullyings praticados contra esses agressores, os quais
em muitas ocasiões declaram sua revolta contra violências físicas e
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 135

psicológicas sofridas no recinto escolar. Cumpre ressaltar, que essas


agressões foram bastante impulsionadas por conta da propagação
das redes sociais, onde os jovens sofrem difamações e injúrias de
toda sorte, com o denominado cyberbullying. Passam então esses
jovens da condição de vítimas a de infratores sociais, buscando
retaliações como forma de vingança pessoal, mesmo quando se
trata de ferir e matar inocentes que sequer conhecem.
Em que pese vozes de grande renome pensarem o contrário,
há quem acredite que um fator contribuinte para os ataques seriam
os jogos virtuais e filmes envolvendo violência, com tiroteios
valendo-se todo tipo de arma de fogo, como fuzis e pistolas, armas
comumente utilizadas nessas chacinas, onde os jovens misturam
fantasia com realidade, sentindo-se como personagens de cinema
ou de videogames ao praticar esses ilícitos (MARTINS, 2023).
Nada obstante, o cyberbullying e o fácil acesso a filmes e
jogos virtuais violentos, foram impulsionados pela popularização
cada vez maior das mídias por conta da expansão maciça da
tecnologia, acarretando facilidade cada vez maior pelos jovens de
acesso à internet por celulares, tablets, notebooks, smartTVs e demais
aparatos eletrônicos.1
Nesse diapasão, outra hipótese possível de ser levada em
conta é a constante propagação de discursos de ódio e fake news pela
rede mundial de computadores, que podem propiciar toda sorte
de influência nos jovens, que não raras vezes aderem à formação
de “tribos” e seitas com ideias similares, gerando infelizes práticas
e comentários de cunho racista, misógino, neonazista, religiosos-
extremistas, podendo culminar em morticínios. Os jovens são
em certas oportunidades manipulados e alienados, em verdadeiras
“lavagens cerebrais”.
De forma conveniente, o Senado Federal brasileiro
promoveu iniciativa legislativa através do Projeto de Lei n.
1 Estão sendo inventados cada vez mais aplicativos e plataformas com facilidades
de acesso às redes sociais a exemplo dos famosos Facebook, WhattsApp, TikTok,
Instagram, Tinder, Twitter, e a tendência é o aumento ainda maior nos próximos
anos com a nova tecnologia 5G (quinta geração da internet).
136 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

2630/2020, batizada de “PL das fake news”, com vistas a promover


sanções para combater a desinformação e promover o aumento da
transparência na internet, contra falsas notícias nas redes sociais e
serviços de mensagens privadas.
Há ainda quem critique o sensacionalismo da imprensa,
que muitas vezes atribui aos matadores a imagem de verdadeiros
popstars, com o intuito de mercantilizar as tragédias para vender
mais notícia e aumentar os lucros das empresas. Embora seja
importante a identificação2 dos autores dos crimes e do modus
operandi, inclusive para que outras vítimas os reconheçam e para
que a população possa se prevenir contra crimes dessa magnitude,
o problema é a superexposição desses indivíduos, tratados às vezes
pela mídia como se fossem protagonistas de um reality show.3
De qualquer modo, independentemente das causas
retromencionadas serem ou não determinantes para esse meteórico
aumento dos ataques nas escolas brasileiras, cabe ao Poder Público
zelar pela segurança desses alunos, que se veem cada vez mais
traumatizados com essas frequentes ocorrências, sofrendo com
o receio de serem as próximas vítimas. Considerando que, nos
termos do art. 144 da CF/88, a segurança pública é dever do
Estado, se este se omitir na prevenção e combate a esses atentados
nas escolas, poderá ser responsabilizado. Além do que, conforme
prescreve o art. 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
Lei 8.069/1990, que os infantes possuem “direito a proteção à vida
e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que
permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso,
em condições dignas de existência.”.

2 Contudo, quando se tratarem de infratores adolescentes, o art. 247 do Estatuto


da Criança e do Adolescente prevê que a publicação de nome, ato ou documento
relativo a eles gera responsabilização administrativa, mesmo quando cometam atos
infracionais, devendo ter sua imagem e intimidade preservadas.
3 Tome-se a título de exemplo os assassinatos cometidos por um jovem que em 2008
confessou os crimes e alegou que a motivação seria ficar mais famoso que outro
assassino tratado pela mídia como “maníaco do parque”, famoso por estuprar e matar
mulheres no Parque do Ibirapuera em São Paulo nos anos 1990 (CORREIO DO
ESTADO, 2008).
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 137

Nessa perspectiva, Mazza (2021, p. 107) leciona que a


responsabilidade da Administração Pública por atos comissivos
via de regra é objetiva. Já no que tange aos atos omissivos, ensina
o ilustre professor que se deve traçar a distinção entre omissão
específica e omissão genérica. In verbis:
Nos casos de omissão genérica, ou seja, quando inexiste norma
no ordenamento obrigando o Estado a agir, a responsabilidade
é subjetiva. Porém, havendo omissão específica, vale dizer,
quando o Estado não agiu para evitar o dano mesmo
existindo na ordem jurídica um dever específico de atuação, a
responsabilidade seria objetiva. (MAZZA, 2021, p. 107)
Sendo assim, em caso de omissão do Poder Público em
tomar medidas preventivas para sanar os constantes ataques, mesmo
sendo público e notório que o risco desses incidentes é cada vez
mais frequente, deduz-se que pode ser atribuída responsabilização
extracontratual do Poder público pela omissão na segurança pública
no sentido de buscar coibir esses ataques, mormente quando são
feitos alertas pelos frequentadores de determinada escola, inclusive
por meio de denúncias anônimas e mesmo assim nada é feito pela
Administração, culminando de fato em uma tragédia anunciada.
Ressalte-se que a simples punição contra os agressores
não irá necessariamente coibir totalmente esses extermínios,
devendo ser realizada principalmente a prevenção pela educação
conscientizadora desses agressores, tanto junto às escolas, como
perante a comunidade. Nesse sentido, a utilização de técnicas
de mediação de conflitos pelas autoridades públicas, poderá ser
um meio extremamente eficaz para prevenção desses atentados,
especialmente quando houver indícios ou denúncias de agressões,
ameaças, práticas de bullying e outros riscos nas escolas.
Como proporcionar um ambiente seguro na escola? De que
forma a escola contribui para uma convivência humana harmônica
e respeitosa? A presente pesquisa não tem a pretensão de apresentar
uma fórmula mágica e, neste contexto, resolver o problema da
violência da escola. Todavia, sugere-se, para além de outras ações
pedagógicas já adotadas pela escola como política de enfrentamento
138 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

à violência o policiamento comunitário e a justiça restaurativa. Eles


não se apresentam de forma a excluir o código disciplinar previsto
no regime escolar, muito pelo contrário, mas indicam um caminho
complementar ou alternativo.

O policiamento comunitário como política pública de


prevenção à violência

Os episódios cada vez mais constantes de ataques às escolas


brasileiras vêm levantando elevadas polêmicas não só em relação
às suas possíveis causas, mas também aos meios de se combater e
prevenir esses infortúnios. O fato é que o Poder Executivo Federal,
através do Decreto Interministerial n.º 11.469/23, criou um Grupo
de Trabalho para implantar políticas de prevenção e enfrentamento
da violência nas escolas.4
Há quem acredite que a instalação de câmaras de segurança
pode coibir a violência, intimidando agressores, além de identificar
responsáveis, conforme previsto no Projeto de Lei 4858/20, da
Câmara dos Deputados (BRASIL, 2020). Um sistema de vigilância
eletrônica poderia inclusive ser acessado remotamente por centrais
de polícia, identificar suspeitos e prevenir incursões.
Outra medida que se defende seria a instalação de catracas e
detectores de metal na entrada das escolas, as primeiras com vistas a
evitar que pessoas não autorizadas adentrem suas dependências e os
segundos para precaver contra a entrada de armas de fogo e armas
brancas5 mesmo que por pessoas autorizadas (SANTOS, 2023).
Frise-se ainda a ideia de instalação de um alerta via aplicativo
nos celulares dos frequentadores das escolas, para avisarem as

4 Tal Grupo de Trabalho envolve o Ministério da Educação, Ministério da Justiça e


Segurança Pública, Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Ministério das
Comunicações, Ministério da Saúde, Ministério da Cultura, Ministério do Esporte.
5 Segundo Costa (2015), arma branca seria “todo instrumento de agressão portátil,
usado por uma só pessoa, que não seja uma arma de fogo (e a tradução mais exata em
inglês seria cold weapon) e que tenham sido usados mais ou menos sistematicamente
em combate ou na caça”.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 139

autoridades policiais em casos de suspeita ou ocorrência das


agressões, os chamados “botões do pânico”. Poder-se-ia até mesmo
promover a criação de grupos de mensagens com a participação de
pais, alunos, funcionários, policiais e pessoas da comunidade para
debater melhorias, utilizando-se a tecnologia em prol da segurança
pública (SANTOS, 2023).
Nesse acalorado debate, a questão que mais levanta
controvérsias é a contratação de vigilância privada armada, assim
como a presença dos policiais, mesmo porque muitos argumentam
que: 1) a presença de pessoas com armas letais nas escolas pode gerar
temor e traumas nos jovens; 2) escolas foram criadas para serem um
espaço de convivência pacífica e lazer e não para funcionarem como
verdadeiros quartéis com cercas, grades e combatentes fortemente
armados.
É nesse ponto que vem à tona a noção de policiamento
comunitário, pois o objetivo do Poder Público não deve ser praticar a
vingança cega contra os possíveis infratores sociais, tampouco tratá-
los como inimigos públicos, mas garantir a ordem e incolumidade
pública pela prevenção, através da mediação de conflitos.
Nesse azo, um programa de mediação de conflitos
configura-se como uma política pública territorial e comunitária,
com orientações sociojurídicas, fomento e articulação a organização
institucional e comunitária com participação de pessoas, famílias,
grupos, comunidades e entidades para prevenção da violência,
garantindo uma cultura de paz baseada no exercício da cidadania
e na garantia dos direitos humanos (MELLO; MAYRINK, 2010,
p. 11-12).
No universo desse campo semântico, Policiamento
Comunitário traduz-se como um instrumento eficaz para
a democratização das corporações policiais, e o respeito aos
Direitos Humanos por elas. Sua implantação no Brasil se deu nos
anos 1980, ganhando destaque no século XXI. Antigamente, a
aproximação entre policiais e cidadãos era encarada com reticência
por determinados motivos: 1) possibilidade de fragilização da
140 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

autoridade policial, cujo trabalho e sua pessoa ficariam mais


expostos a perigos perante o público de forma discriminada; 2)
elevação do risco dos agentes serem corrompidos pela população,
com subornos, propinas, prevaricação e demais exemplos de
corrupção; 3) a cognominada “síndrome do capitão do mato”, pela
visão do policial na condição de um brutal e implacável caçador
de bandidos, do qual todos devem manter receio e distância
(CAMARGO, 2015).
Entrementes, a plêiade de teorias que compões essa
temática foi se tornando ainda mais complexa com o tempo,
fazendo a visão distanciadora se modificar, quando as autoridades
brasileiras perceberam a eficácia da Segurança Cidadã ocorrida
em países de primeiro mundo, tais como Canadá e Japão. A
filosofia do Policiamento Comunitário foi paulatinamente sendo
instalada no Brasil, permeada por certos princípios: a) aproximação
com a população, elevando o nível de admiração, confiança e
reconhecimento do labor das instituições policiais, visando uma
gestão participativa; b) policiamento orientado para o problema,
conferindo ênfase aos anseios da comunidade e definindo ações
e estratégias em conjunto; c) promoção dos Direitos Humanos
norteando a atuação policial d) mediação de conflitos, manejando
os problemas de modo democrática e o menos pernicioso possível
(BRASIL, 2021).
Cumpre destacar, que no caso dos infratores que cometem
os atentados escolares, os policiais se veem em uma situação
altamente delicada, pois normalmente não estão lidando com
bandidos contumazes, mas com jovens (às vezes menores de
idade), que, embora sejam perigosos para a sociedade, podem estar
sofrendo de problemas psicológicos e psiquiátricos, necessitando de
ajuda para superá-los, pois a prisão pode aumentar ainda mais essa
periculosidade e esses transtornos.
A partir dessas nuanças advém a imprescindibilidade
ainda maior dos policiais se valerem da política de policiamento
comunitário para prevenir essas tribulações, cujas ações se podem
se pautar por várias formas, a saber:
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 141

Palestras ministradas por policiais qualificados em noções


de Direitos Humanos, buscando conscientizar os jovens nas escolas
sobre o respeito à vida, à diversidade, ao meio ambiente, às regras
de trânsito, prevenindo o preconceito, violência, bullying e outras
agressões, buscando uma cultura de paz. Tais palestras podem
também incluir a exposição de filmes sobre as temáticas em apreço;
Capacitação dos policiais com técnicas de mediação de
conflitos entre os alunos e entre alunos e professores/funcionários
das escolas, e entre alunos e membros da comunidade (pais dos
alunos, Conselhos Tutelares, psicólogos etc.), inclusive com a
participação de jovens com histórico de pequenos delitos nas escolas
(ex: furtos, agressões verbais, vias de fato etc.), buscando promover
a Justiça Restaurativa e o Policiamento Comunitário;
Realização de passeios (preferencialmente nas férias escolares)
para visitação dos alunos nos quartéis e unidades operacionais das
polícias, onde poderão compreender a rotina diária dos policiais
de forma lúdica, passeando de viaturas, participando de jogos e
gincanas, distribuição de brindes (chapéus de polícia, miniaturas de
viaturas, helicópteros, brinquedos etc.), aumentando a confiança
nas corporações e passando a ter uma imagem dos policiais como
ídolos e defensores da sociedade e não como agentes truculentos;
Aulas de defesa pessoal promovidas por policiais qualificados
em artes marciais para professores, funcionários e alunos, como
forma de se defender de atendados homicidas em hipóteses de
legítima defesa, quando não for possível de imediato a chegada do
socorro policial;
Com relação à presença maciça e permanente de policiais
armados nas escolas ministrando palestras, existe um certo receio
por muitas pessoas, haja vista que, conforme já abordado, as escolas
têm por escopo a construção de um espaço saudável de convivência
harmônica e cultura de paz, não são quartéis generais permeados
de cercas elétricas, câmeras e agentes fortemente armados, pois
transformá-las nesse sentido poderia inclusive gerar o ferimento
ao princípio da vedação do retrocesso dos Direitos Humanos. O
142 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Supremo Tribunal Federal, por exemplo, conclui que a incursão dos


policiais em favelas deve ocorrer em último caso, quando esgotadas
as demais possibilidades para proteção da vida e dos danos. (STF,
2023).
Portanto, os autores deste trabalho não se posicionam de
forma contrária à presença policial nas escolas, desde que esporádica,
apenas em casos extremos de flagrante delito ou por rondas
preventivas, fazendo os cidadãos se sentirem protegidos, mas nunca
de forma permanente. Quiçá, a melhor forma seria providenciar
que os policiais que realizarem palestras e mediação de conflitos
dentro das escolas ficassem desarmados para não intimidar as partes
na mediação nem os alunos nas palestras, ao mesmo tempo em
que outros policiais ficassem fora da escola armados e garantindo
a segurança de todos, inclusive dos policiais desarmados dentro
as escolas, fazendo-se um meio termo através da ponderação de
princípios.

A justiça restaurativa no ambiente escolar

Inicialmente faz-se necessário apresentar os contornos


conceituais da Justiça Restaurativa: ela baseia-se num procedimento
de consenso, em que “a vítima e o infrator, e, quando apropriado,
outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime,
como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na
construção de soluções para a cura das feridas, dos traumas e perdas
causados pelo crime.” (PINTO, 2005, p.19).
Ainda segundo o autor, que tem por fundamento o princípio
da voluntariedade, sem a presença dos rituais solenes e formais
como ocorre no sistema de justiça tradicional. Esse encontro é
organizado por um facilitador, profissional que é designado para
auxiliar os trabalhos individual e coletivos, fomentando a adoção
de práticas restaurativas para a prevenção e resolução dos conflitos,
visando a promoção da cultura de paz.
Para Pedro Scuro Neto (2000, p.23)
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 143

“Fazer justiça” do ponto de vista restaurativo significa dar


resposta sistemática às infrações e a suas conseqüências,
enfatizando a cura das feridas sofridas pela sensibilidade, pela
dignidade ou reputação, destacando a dor, a mágoa, o dano,
a ofensa, o agravo causado pelo malfeito, contando para isso
com a participação de todos os envolvidos (vítima, infrator,
comunidade) na resolução dos problemas (conflitos) criados
por determinados incidentes. Práticas de justiça com objetivos
restaurativos identificam os males infligidos e influem na sua
reparação, envolvendo as pessoas e transformando suas atitudes
e perspectivas em relação convencional com sistema de Justiça,
significando, assim, trabalhar para restaurar, reconstituir,
reconstruir; de sorte que todos os envolvidos e afetados por
um crime ou infração devem ter, se quiserem, a oportunidade
de participar do processo restaurativo.
Nos estudos de Paul Maccold e Ted Wachtel, a Justiça
Restaurativa é definida a partir de três elementos: Quem foi
prejudicado? Quais as suas necessidades? Como atender a essas
necessidades? Assim sendo, entre as diversas definições apresentadas
sobre a Justiça Restaurativa, esta pode ser entendida como uma
abordagem que propõe, sempre que possível, o encontro entre vítima,
ofensor e outras pessoas que se sentiram direta ou indiretamente
afetados pelo evento danoso, para que possam, através do diálogo e
da escuta ativa, focar nas necessidades das vítimas e da comunidade
e, neste sentido, atendê-las prioritariamente, por meio da reparação
dos danos a partir de processos inclusivos e colaborativos.
Zehr (2015, p.54) sugere que as decisões oriundas do
processo restaurativo sejam tomadas pelos diretamente envolvidos
pelo crime. Nesse sentido, conforme o autor, “Faz-se da justiça um
processo ‘curativo’, transformativo e reduz-se a probabilidade de
ofensas futuras”. Nessa senda, o Art. 2º da Resolução 225 do CNJ
apresenta vários princípios que orientam a Justiça Restaurativa,
entre eles ressalta-se: a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o
atendimento às necessidades de todos os envolvidos, a participação
e o empoderamento.
É imperioso e fundamental a abordagem de uma cultura de
paz, bem como a introdução dos valores de convivência nas escolas,
144 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

pois conforme já apresentado no capítulo anterior vem crescendo a


violência no espaço escolar, comprometendo a formação cidadã das
crianças e adolescentes.
Quando se fala em cultura de paz na escola, “Fala-se
em aprendizagem cooperativa, em educação multicultural, em
aprendizagem de valores, em redução de preconceitos e na criação
de uma cultura de prevenção de violência.” (MPSP, 2015, p.31).
Todavia, observa-se exatamente o contrário, uma vez que as escolas,
conhecidas por sua diversidade e pluralidade de crenças, de gênero,
raça e classe social têm sido palco constante de conflitos interpessoais,
os quais muitas vezes desencadeiam-se para a violência.
Dessa forma, sabendo que o fenômeno da violência cresce de
forma assustadora no ambiente escolar torna-se necessária a adoção
de políticas públicas que enfrentem a violência e, nesse contexto,
sejam capazes de reduzi-la/eliminá-la. Assim sendo, acredita-se que
a Justiça Restaurativa possa colaborar na prevenção e na resolução
de conflitos escolares. Isto porque, o processo restaurativo promove
espaços dialógicos, baseado na comunicação não violenta,
permitindo, assim, a participação de qualquer pessoa que esteja
envolvida no conflito, direta ou indiretamente, objetivando
a resolução de problemas, reparação de danos, restauração de
segurança e dignidade.
O ambiente desenvolvido pela abordagem restaurativa é
um espaço efetivo de segurança jurídica e física, com o objetivo de
buscar a resolução de outras dimensões do problema que não apenas
a punição, como, por exemplo, a reparação de danos emocionais.
Para efetivar essa garantia, faz-se necessário que o acordo restaurativo
seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime,
permitindo que a Direção Escolar acompanhe seu cumprimento
integral à luz de todas as circunstâncias do caso concreto, sob pena
de tomar providências punitivas seja no regulamento escolar seja
comunicando o sistema de justiça para que medidas de natureza
jurídica sejam adotadas.
É importante registrar que o facilitador deve organizar
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 145

o acordo para a reparação de danos. Não é de sua competência


estabelecer a redução da pena, pois esta é uma medida que deve
ser adotada no judiciário. No âmbito das infrações cometidas
pelo público infanto-juvenil medidas como a remissão ou a
não judicialização do conflito podem ser vislumbradas, após o
cumprimento integral do acordo restaurativo.
É possível estabelecer no acordo restaurativo um plano de
recuperação para que o adolescente não seja submetido às medidas
socioeducativas, desde que o resultado gere segurança para a vítima
e toda comunidade escolar. Para promover ambientes escolares
pacíficos e restaurativos, sugere-se, (MPSP, 2015, p.42)
1 – Aprimorar, fortalecer e priorizar a boa conexão entre
escola-família comunidade, principalmente com o fortalecimento
dos Conselhos Escolares. 2 – Realizar atividades contínuas que
possam melhorar o vínculo interno nas unidades escolares e tornar
pacíficos os ambientes escolares. 3 – Construir coletivamente
as regras de convivência. 4 - Democratizar a escola e tornar
democráticos os espaços no sistema escolar. 5 – Fortalecer a
cidadania e a participação nas atividades escolares, construindo
canais que permitam o protagonismo de todos. 6 - Fortalecer
os grêmios estudantis e os conselhos escolares. 7 – Aprimorar o
vínculo interno nas relações humanas, priorizando o diálogo e
a cooperação entre todas as pessoas da comunidade escolar. 8 –
Aperfeiçoar competências e habilidades que permitam uma boa
comunicação e um bom diálogo entre todos. 9 - Construir soluções
alternativas e pacíficas aos conflitos que terminem em violência. 10
– Construção de conteúdos e de atividades pedagógicas que sejam
contextualizadas e façam sentido para os alunos. 11 – Criar redes
informais de apoio a crianças e adolescentes necessitados e manter
uma boa articulação com a rede intersetorial de atendimento, da
qual a escola também é parte.
A Justiça Restaurativa pode transmitir os preceitos
fundamentais relacionados ao bom convívio escolar e social,
“permitindo conscientizar as crianças e os adolescentes a
protagonizarem os valores éticos, as responsabilidades sociais e ao
146 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

aprendizado de habilidades que estimulem o diálogo, a cooperação


e a solução pacífica dos conflitos”. (PIEDADE; QUILZA, 2015,
p.7)
Acredita-se que que a Justiça Restaurativa é um instrumento
capaz de criar espaço de escuta, compreensão, responsabilização
e reparação, pois cria um clima favorável ao desenvolvimento da
empatia para todos os participantes do encontro, promovendo
experiências positivas para a vítima, o ofensor e para a comunidade.

Considerações finais

Conforme elencado, a pesquisa concluiu que houve um


significativo aumento nos ataques às escolas brasileiras nos últimos
anos, acarretado não só por um fator, mas por uma série de nuanças
que se intercruzam. Para tratar desse seríssimo problema, faz-se
necessária não só a repressão pela aplicação das sanções previstas
na legislação, mas a prevenção por políticas públicas, a exemplo do
policiamento comunitário e justiça restaurativa.
Com esse corte transversal, confirma-se a hipótese de
pesquisa para a ideia de que o investimento em segurança
desacompanhado das políticas públicas de prevenção violência e
inclusão social não gerará efeitos completos na solução dessa crise,
o que necessita inclusive a mediação de conflitos por profissionais
devidamente capacitados, tanto na Segurança Cidadã quanto na
Justiça Restaurativa.
Conclui-se outrossim que os referidos ataques e a sensação
de insegurança geral que reina nesses ambientes tolhe a uma série de
direitos humanos dos estudantes, alunos, funcionários e familiares,
como a vida, saúde, integridade física, dignidade humana, ao
mesmo tempo em que coloca em xeque o futuro desses agressores,
os quais muitas vezes são jovens desorientados, não devendo haver
a simples punição sem políticas públicas de ressocialização.
Para a concretização desses objetivos, devem os agentes
policiais estarem devidamente capacitados em Direitos
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 147

Humanos para uma criteriosa política pública de policiamento


comunitário. A aproximação entre a comunidade escolar e as
forças de segurança pública traz um duplo benefício, pois além
de estabelecer maior confiança e admiração da população pelos
agentes públicos exemplares, contribui para prevenção de possíveis
ataques, facilitando a comunicação para os policiais acerca de atos
preparatórios e comportamentos suspeitos de possíveis agressores.
De forma semelhante, cabe ao magistrado na aplicação da
justiça restaurativa se valer de forma perfunctória dos princípios
constitucionais da proporcionalidade, devido processo legal,
razoabilidade e fraternidade averiguando caso a caso a busca do
consenso entre vítima e infrator, além de outros afetados pelo
delito, na condição de protagonistas atuando na construção de
soluções para as contendas, valendo-se da empatia, isto é, saber se
colocar no lugar do outro.
Acima de tudo, mister se faz ser efetivado na prática o já
citado respeito aos princípios basilares, resguardando todos os
direitos humanos e fundamentais dos frequentadores das escolas e
dos infratores sociais, sendo que estes quais não devem ser encarados
com a pecha de inimigos públicos, mas de pessoas que cometeram
erros e precisam ser ressocializadas para terem uma segunda
chance e retornar ao convívio social, buscando-se transformar o
Estado Democrático de Direito numa comunidade mais fraternal
permeada pela cultura de paz.

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Capítulo 8

O direito fundamental à educação inclusiva


de crianças e adolescentes com transtorno do
espectro autista no Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul1

Junia Nunes Hasselmann


Analice Schaefer de Moura

Considerações inicias

A presente pesquisa tem como tema o direito fundamental


à educação inclusiva de crianças e adolescentes com
Transtorno do Espectro Autista (TEA) no Rio Grande do Sul. O
assunto abordado possui importância para o ordenamento jurídico
e para a sociedade, visto que o direito fundamental à educação
inclusiva é constitucionalmente assegurado.
Nesse contexto, pretende-se responder ao seguinte problema
de pesquisa: com base nos casos que chegam ao Tribunal de Justiça
o Rio Grande do Sul tem assegurado o direito fundamental à
educação inclusiva de crianças e adolescentes com Transtorno do
Espectro Autista, após a promulgação da Convenção Internacional
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pelo Decreto nº
6.949/2009?
Para instrumentalizar o problema de pesquisa tem-se o
seguinte objetivo geral: analisar, com base nos casos que chegam ao
Tribunal de Justiça, se o Rio Grande do Sul tem assegurado o direito

1 Artigo proveniente do trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Direito


da Faculdade Dom Alberto pela graduanda Junia Nunes Hasselmann e orientado pela
Prof. Me. Analice Schaefer de Moura.
154 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

fundamental à educação inclusiva de crianças e adolescentes com


Transtorno do Espectro Autista, após a promulgação da Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pelo
Decreto nº 6.949/2009.
O presente artigo subdivide-se em três seções que
correspondem aos objetivos específicos eleitos. Inicialmente,
pretende-se compreender a proteção jurídica das pessoas com
deficiência no Brasil a partir da promulgação da Convenção sobre
os Direitos das Pessoas com Deficiência - CDPD e de seu Protocolo
Facultativo. Após, aborda-se a Política Nacional de Proteção aos
Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista.
Por fim, buscam-se analisar nas decisões do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul no período de 25 de agosto de 2009
a 25 de agosto de 2022, as demandas envolvendo a omissão estatal
na garantia do direito fundamental à educação inclusiva de crianças
com Transtorno do Espectro Autista.
O marco temporal adotado justifica-se em razão da data
de promulgação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, pelo Decreto
nº 6.949/2009, de 25 de agosto de 2009, que ingressou no
ordenamento jurídico como emenda à constituição, passando
a ser fonte para o controle de constitucionalidade, assim o lapso
temporal corresponde ao período de treze anos, a fim de ampliar
os resultados.
A metodologia quanto à sua finalidade é a básica pura.
Quanto aos objetivos, adota-se a pesquisa descritiva. Já quanto
à forma de abordagem, a pesquisa é quantitativa e qualitativa,
tendo em vista que os dados envolvendo a educação inclusiva
serão analisados criticamente à luz da teoria da proteção integral
e da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência.
O método de abordagem eleito é o dedutivo, partindo-
se de conceitos gerais envolvendo o direito das pessoas com
deficiência, para após buscar o referencial mais específico no que
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 155

tange às pessoas com TEA e o direito a educação inclusiva. Como


método de procedimento, adotou-se o histórico-crítico, com o fim
de contextualizar e compreender a questão envolvendo os direitos
das pessoas com deficiência, investigando os acontecimentos, os
processos e as instituições do passado para verificar a sua influência
na realidade de hoje.
A técnica de pesquisa é a bibliográfica, a documental. Como
método de procedimento adota-se o monográfico. Dessa forma, é
feito um estudo de caso junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, envolvendo a educação inclusiva de no período de 25 de
agosto do ano de 2009 à 25 de agosto de 2022. Os termos de busca
foram “autismo” E “educação inclusiva”, selecionou-se como tipo
de decisão cível e tipo de decisão acórdão.

Proteção jurídica das pessoas com deficiência no Brasil

De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde, no ano de


2019, cerca de 17,3 milhões de pessoas com dois anos ou mais
de idade tinham alguma deficiência, o que corresponde a 8,4%
desse grupo da população brasileira (IBGE, 2021). Tal dado
demonstra que embora exista um grande número de pessoas com
deficiência, muitas passam despercebidas, havendo uma situação
de invisibilidade dessas pessoas, que não acessam o espaço público.
Inicialmente pretende-se compreender a proteção jurídica
das pessoas com deficiência no Brasil a partir da promulgação da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência - CDPD
e de seu Protocolo Facultativo. O texto convencional foi o primeiro
aprovado como equivalente à emenda constitucional, sendo,
portanto, fonte para o controle de constitucionalidade (SARLET,
2022a, p. 154).
Às pessoas com deficiência são reservadas as taxas de
pobreza mais elevadas, piores níveis de saúde e escolaridade e
menor participação econômica, em decorrência, principalmente,
das barreiras de acesso aos serviços essenciais/básicos, como a saúde,
156 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

educação, emprego, transporte e informação, situação essa, que


infelizmente se agrava nas comunidades mais pobres (MADRUGA,
2016, p. 31).
Nesse sentido, as pessoas com deficiência almejavam
a autonomia para que pudessem ter o controle de suas vidas, a
união delas através dos movimentos sociais resultou na criação do
Conselho de Direitos das Pessoas com Deficiência, a inclusão do
termo “deficiência” na CRFB/88. Ainda, foi previsto o direito à
educação inclusiva, preferencialmente na rede regular de ensino
no texto constitucional. No ano seguinte, houve a publicação da
Política Nacional de Integração da Pessoa Portadora de Deficiência,
sendo uma grande conquista para as pessoas com deficiência na
época (TOMASEVICIUS FILHO, 2021, p. 45).
Destaca-se que o conceito legal de pessoa com deficiência
está previsto no artigo 2º do Estatuto da Pessoa com Deficiência,
Lei nº 13.146/2015:
Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem
impedimento de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou
mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva
na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas
(BRASIL, 2015).
Embora o Transtorno do Espectro Autista não seja
considerado pela ciência médica um tipo de deficiência
(CELERI, MONTENEGRO, 2018), a Lei Berenice Piana, de nº
12.764/2012, estabelece em seu art.1º, §2º que as pessoas com o
TEA equiparam-se à pessoa com deficiência para todos os efeitos
legais, estando protegidas pelos direitos e garantias assegurados na
Lei nº 13.146/2015.
Atualmente, o novo paradigma da deficiência possui base
nos direitos humanos e é denominado como o da “visão” ou do
“modelo social”, pois o ambiente tem influência direta na liberdade
da pessoa com deficiência, a qual pode ter sua situação agravada,
mas não por causa da sua característica/deficiência, mas sim, por
causa do seu entorno (COSTA FILHO; LEITE; RIBEIRO, 2019,
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 157

p. 45). Entende-se então, que a inclusão das pessoas com deficiência


depende da cooperação da sociedade.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
e seu Protocolo Facultativo, entrou em vigor em 25 de agosto
de 2009, e ingressou no ordenamento jurídico brasileiro como
manifestação do poder constituinte decorrente, na forma de
emenda à constituição (LEITE, 2019, p. 42).
Nesse sentido, destaca-se que o artigo 5º, §3º da CRFB/88
prevê que os tratados e convenções internacionais referentes
a direitos humanos, que forem aprovados nas duas Casas do
Congresso Nacional, nos dois turnos e com os votos de três
quintos dos respectivos dos membros, irão equivaler à emenda
constitucional (MORAES, 2022, p. 165).
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência prevê direitos e garantias que devem ser
assegurados às pessoas com deficiência e dispõe as áreas em que
devem haver adaptações, com o fim de assegurar o exercício dos
seus direitos e de sua autonomia. No artigo 1º da Convenção já
nota-se o seu propósito, que é proteger e promover a dignidade
inerente ao ser humano (FERRAZ; LEITE; LEITE, 2012, p. 66).
Com relação à educação, a Convenção prevê o
reconhecimento desse direito sem discriminação e com base na
igualdade de oportunidades. Dessa forma, dispõe o artigo 24, item
2, que os estados assegurarão que:
a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema
educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças
com deficiência não sejam excluídas do ensino primário
gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação
de deficiência; [...]
c) Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades
individuais sejam providenciadas;
d) As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no
âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua
efetiva educação;
158 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

e) Medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam adotadas


em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico
e social, de acordo com a meta de inclusão plena (BRASIL,
2009).
Dessa forma, o Brasil se comprometeu a assegurar a educação
inclusiva das pessoas com deficiência, na rede regular de ensino,
sem que elas sejam excluídas ou discriminadas. Para tanto, deve-se
assegurar as adaptações necessárias, inclusive através de medidas de
apoio individualizadas.
Nesse cenário, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) de nº
13.146/2015, foi publicada para regulamentar a Convenção,
dispondo de temas que o tratado de direitos humanos da ONU
abordou, mas que ainda não havia correspondente no ordenamento
jurídico brasileiro (LEITE, 2019, p. 44-45).
A Lei nº 13.146/2015 alterou diversos diplomas legais,
destacando-se a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
Código Eleitoral, o Código de Defesa do Consumidor, Lei Geral
de Licitações, o Código de Trânsito Brasileiro, entre outros
(TOMASEVICIUS FILHO, 2021, p. 48). No Código Civil,
houve alteração nas disposições envolvendo os incapazes, de modo
que passaram a ser considerados como absolutamente incapazes
apenas os menores de 16 anos, tendo sido retiradas deste rol as
pessoas com deficiência (BRASIL, 2002).
Tendo em vista a modificação dos dispositivos relacionados
à capacidade civil das pessoas com deficiência, passou-se a presumir-
se a capacidade destas, que somente poderão ser consideradas
relativamente incapazes, após o devido processo judicial, quando
necessário, mediante o instituto da curatela, uma vez que o artigo
84 da LBI assegura o exercício da capacidade legal (BRASIL, 2002).
Com efeito, verifica-se que o ordenamento jurídico sofreu
importantes alterações na proteção dos direitos das pessoas com
deficiência e com TEA, objetivando garantir o exercício digno
de sua autonomia. Para tanto, a educação inclusiva é essencial
para o desenvolvimento e igualdade de oportunidades no quesito
educação/ensino das pessoas com deficiência, de modo que as
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 159

individualidades sejam consideradas diversidade e não adversidades.

Política Nacional de Proteção aos Direitos das Pessoas


com Transtorno do Espectro Autista

O transtorno do espectro autista não se encontra na seara


das doenças, visto que não existe cura para tal condição, sendo
assim, é considerado um transtorno do neurodesenvolvimento
(CELERI, MONTENEGRO, 2018). Nesse sentido:
O autismo é compreendido hoje como um espectro de
transtornos com ampla variedade de expressões, denominados
transtornos do espectro autista (TEA), que incluem: transtorno
autístico, síndrome de Asperger, transtornos invasivos ou
globais do desenvolvimento não especificado (CELERI;
MONTENEGRO, 2018, p. 27).
As pessoas com o TEA possuem sua proteção jurídica em
conjunto com as leis específicas que visam à proteção dos direitos
das pessoas com deficiência, para que possam ter direito às políticas
de inclusão. Na presente seção pretende-se especificamente abordar
a Política Nacional de Proteção aos Direitos das Pessoas com
Transtorno do Espectro Autista.
Contudo, antes de adentrar especificamente na Política
Nacional de Proteção aos Direitos das Pessoas com Transtorno do
Espectro Autista, é necessário compreender o conceito de política
pública e a sua relevância para o direito. Dias e Matos (2012, p.
12), definem políticas públicas como “as ações empreendidas ou
não pelos governos que deveriam estabelecer condições de equidade
no convívio social, tendo por objetivo dar condições para que todos
possam atingir uma melhoria da qualidade de vida compatível com
a dignidade humana”.
Ainda sobre o conceito de políticas públicas Bucci (2002, p.
241) complementa que elas “são programas de ação governamental
visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades
privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e
politicamente determinados”. Dessa forma, para a autora, “Políticas
160 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

públicas são ‘metas coletivas conscientes’ e, como tais, um problema


de direito público, em sentido lato” (BUCCI, 2002, p. 241).
Um dos objetivos do Estado é “promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988). Isso importa, não
somente no oferecimento de condições de sobrevivência, mas sim,
em uma inclusão específica, que assegure a dignidade (GARCIA,
2013, p. 470). Assim, as políticas públicas são um instrumento
relevante para efetivar as medidas de acessibilidade que se destinam
as pessoas com deficiência através de um tratamento isonômico que
vise garantir a igualdade material.
Com isso, compreende-se a relevância das políticas
públicas que visam os meios de inserir as pessoas com deficiência
e TEA na sociedade através de garantias de acesso a espaços
públicos, a tratamentos de saúde com profissionais específicos,
desenvolvimento pessoal e social, acesso ao mercado de trabalho,
direito à educação no ensino regular. Inclusive, essas políticas de
inclusão, possibilitam que o suporte de serviços seja fortalecido,
através da formação e da atuação dos professores (CUNHA, 2012,
p. 38).
Com objetivo de estabelecer a proteção dos direitos e
liberdades fundamentais das pessoas com TEA, em dezembro de
2012, foi publicada a Lei nº 12.764/2012, também conhecida
como Lei Berenice Piana, que instituiu a Política Nacional dos
Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (BRASIL,
2012).
A Lei foi criada por Berenice Piana em conjunto de outros
pais de autistas, tendo em vista que as crianças e adolescentes com
TEA possuem certas dificuldades e desafios e quando não possuem o
devido tratamento, acabam por ter atrasados os resultados positivos,
o que impacta negativamente na sua autonomia e qualidade de vida
(PALHANO; LIMA, 2022, p. 444).
É indescritível a importância da Lei nº 12.764/2012
para as pessoas com TEA e seus familiares, sendo um grande
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 161

passo para a garantia de direitos e o desenvolvimento deles e da


sociedade. “O acesso a inúmeras ações de proteção e tratamento
de pessoas deficientes era, em muitos lugares, negado a eles. Este
reconhecimento foi, sem dúvida, uma das maiores conquistas dos
autistas, pois, por mais óbvio que fosse ele não era reconhecido
como tal” (CAMINHA; HUGUENIN, 2016, p.17).
Montenegro, Celeri e Casella (2018, p. 93) sintetizam alguns
dos direitos da pessoa com TEA presentes na Lei nº 12.764/12,
sendo eles:
Proteção contra qualquer forma de abuso e exploração.
Acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral
às suas necessidades de saúde, incluindo:
A) O diagnóstico precoce, ainda que não definitivo.
B) O atendimento multiprofissional.
C) A nutrição adequada e a terapia nutricional.
D) Os medicamentos.
E) Informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento.
Acesso à educação e ao ensino profissionalizante.
Acesso à moradia, inclusive à residência protegida.
Acesso ao mercado de trabalho.
Acesso à previdência social e à assistência social.
Quando incluída nas classes comuns de ensino regular, terá
direito a acompanhante especializada (se for necessário).
Ainda, conforme Sant’Ana e Santos (2018, p.108) a Política
Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno
do Espectro Autista, estabelece diretrizes e ações que visam à
concretização das políticas públicas e através disso houve algumas
conquistas, como:
A implantação nos postos de saúde de um diagnóstico precoce
nas consultas de puericultura, para que se evidencias sem
possíveis casos de autismo em crianças; a criação de Centros
de Tratamento Multidisciplinar para estudos de diagnóstico
precoce, tratamento, capacitação e pesquisas sobre a temática;
162 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

a inserção do mediador escolar nos centros de tratamento de


casos do transtorno do espectro autista; a criação de oficinas e
residências assistidas; a capacitação de serviços de atendimento
público às crianças com autismo, como bombeiros, policiais,
etc; a implementação de políticas públicas para que a lei
seja cumprida e que as conquistas cheguem à vida dessas
crianças que sofreram com o descaso durante muito tempo.
(SANT’ANA; SANTOS, 2018, p. 108).
Tendo em vista que é no âmbito escolar em que ocorre o
desenvolvimento da autonomia, cidadania e socialização, o artigo
3º, IV, alínea “a” da Lei Berenice Piana, foi um divisor de águas
em se tratando da garantia do direito fundamental à educação e
ao ensino profissionalizante. Além de assegurar a matrícula das
pessoas com TEA nas classes reguladoras de ensino, prevê que
será disponibilizado o atendimento educacional especializado
e o profissional de apoio, desde que comprovada à necessidade,
para que aluno autista possa receber auxílio nas atividades e
cuidados especiais como: alimentação, higiene pessoal e locomoção
(SANT’ANA; SANTOS, 2018, p. 9).
Ademais, ressalta-se o artigo 7º da Lei citada, o qual prevê
uma infração administrativa aos gestores que não efetivarem o direito
à educação das pessoas com TEA, através da recusa de matrícula
(BRASIL, 2012). Assim, entende-se que a instituição de ensino
ao recusar a matrícula, acaba agindo de forma discriminatória e
ferindo de forma grave e direta o princípio da dignidade da pessoa
humana e os direitos da personalidade.
Ainda, outro grande avanço foi referente às taxas ou
mensalidades cobradas por escolas particulares para que as crianças
e adolescentes com deficiência ou TEA pudessem ser assistidas,
a partir da Lei nº 12.764/12, tal prática passou a ser vedada,
podendo os genitores que forem cobrados indevidamente, ajuizar
ação solicitando a devolução do valor da mensalidade em dobro,
com a devida correção monetária e juros legais.
Diante de todo o exposto, foram inúmeros avanços trazidos
para os direitos das pessoas com TEA. Contudo, é necessária
a efetiva implementação da Política Nacional de Proteção dos
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 163

Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e avaliação


constante a fim de identificar se os objetivos e direitos garantidos
estão sendo assegurados, possuindo o direito à educação inclusiva
um importante papel. É nesse contexto que se busca, na seção
seguinte, analisar nas decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul no período de 25 de agosto de 2009 a 25 de agosto de 2022,
as demandas envolvendo a omissão estatal na garantia do direito
fundamental à educação inclusiva de crianças com Transtorno do
Espectro Autista.

A omissão estatal na garantia do direito fundamental à


educação inclusiva

Com a CRFB/88 e posterior promulgação da Convenção


Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, as
pessoas com deficiência começaram a ter maior proteção, inclusão e
garantia dos seus direitos. O artigo 208, inciso III, da Constituição
Federal dispõe sobre o dever do Estado assegurar a educação
inclusiva. O atendimento educacional especializado às pessoas com
deficiência, com preferência na rede regular de ensino é, portanto,
garantia constitucional.
Em 30 de setembro de 2020 foi instituída a Política Nacional
de Educação Especial pelo Decreto nº 10.502. Segundo o artigo
2º, inciso I, do aludido decreto educação especial é a “modalidade
de educação escolar oferecida, preferencialmente, na rede regular
de ensino aos educandos com deficiência, transtornos globais do
desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação” (BRASIL,
2020).
Essa Política tem enfrentado duras críticas diante do fato de
incentivar que a educação especial ocorra de forma segregada e não
mais de forma inclusiva na rede regular de ensino. Nesse sentido,
O argumento que sustenta a retirada do aluno do convívio da
classe comum é o mesmo que fortalece o seu isolamento no
atendimento especial, separando aquilo que está fora daquilo
que está dentro da ‘normalidade’. Ao passo que a PNEE
164 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

descredibiliza a escola regular, questionando sua qualidade,


afirmando sua impotência, essa mesma Política oferece como
alternativa não a melhoria da educação para todos, mas a
seleção de atenção a alguns (SEPTIMIO; CONCEIÇÃO;
DENARDI, 2017, p. 255).
Com efeito, está pendente de apreciação pelo Supremo
Tribunal Federal a ADI 6.590/DF (BRASIL, 2022) que questiona
a constitucionalidade da Política Nacional de Educação Especial.
Na decisão que concedeu a medida cautelar na referida ação, o
Relator Ministro Dias Toffoli reconheceu a inconstitucionalidade
da Política por ser contrária ao princípios previstos na CRFB/88
e na Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com
Deficiência, “em especial ao direito das pessoas com deficiência
à educação livre de discriminações e segregações, e à igualdade,
própria de um sistema educacional inclusivo” (SARLET, 2022b,
p. 282).
A educação inclusiva objetiva assegurar que independente da
deficiência e dificuldade, todos possam usufruir das oportunidades
educacionais e sociais oferecidas pela instituição escolar (MITTLER,
2015, p.19) de modo que não se dê margem ao distanciamento
e isolamento. Não somente a criança terá a garantia do direito à
inclusão, mas a sociedade também se torna mais inclusiva a partir
do momento em que a interação com as pessoas com deficiência
torna-se diária.
Ocorre que inúmeros são os entraves para assegurar a
educação inclusiva, tais como o déficit de profissionais especializados,
instituição escolar sem infraestrutura acessível, despreparo da
comunidade escolar e familiar dos alunos para a convivência com a
pessoa com deficiência.
Dessa forma, para atingir o terceiro objetivo específico,
realizou-se um estudo de caso no site do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul. Os termos de busca foram “autismo” E “educação
inclusiva”, selecionou-se como tipo de decisão cível e tipo de decisão
acórdão, já o período da data de julgamento selecionado foi entre 25
de agosto de 2009, data da publicação do Decreto nº 6.949/2009
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 165

que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das


Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, a 25 de agosto
de 2022, da qual obtiveram-se 16 (dezesseis) resultados.
Todos os julgados mantém relação com a temática da presente
pesquisa. Destes, em 15 (quinze) casos o ajuizamento da ação
objetivava a disponibilização de monitor para acompanhamento
de crianças ou adolescentes com TEA. Apenas um caso envolvia
requerimento de matrícula em escola de educação especial.
Ademais, constatou-se que todas as ações foram propostas
pelos genitores das crianças portadoras com TEA. Em 13 (treze)
casos foi o réu, Estado do Rio Grande do Sul, que interpôs apelação
para que houvesse a reforma da sentença, a qual julgava procedente
o pedido de monitor para acompanhamento especializado.
Nesse sentido, destaca-se que a Lei nº 12.764/2012 no seu
artigo 3º, inciso IV, alínea “a”, assegura o direito ao acesso à educação
e ensino profissionalizante. No mesmo artigo, seu parágrafo único
dispõe que: “Em casos de comprovada necessidade, a pessoa com
transtorno do espectro autista incluída nas classes comuns de
ensino regular, nos termos do inciso IV do artigo 2º, terá direito a
acompanhante especializado” (BRASIL, 2012).
Nessa linha, salienta-se a fundamentação apresentada na
apelação nº 5002114-61.2019.8.21.0077:
Nesse sentido, avalizar tal fundamento excludente do dever
estatal frente à sociedade representaria afetar o próprio núcleo
dos direitos fundamentais sociais. O judiciário, ademais, deve
servir a toda lesão ou ameada a direito, não havendo que falar
em simples conveniência ou oportunidade administrativa
no ponto, relativo a direito constitucional de menor, com
necessidade especial. Com efeito, não se pode afastar o
direito subjetivo do menor de auxílio no seu direito de
educação, eis que assegurado pelo regramento constitucional e
infraconstitucional. (RIO GRANDE DO SUL, 2021).
Dentre os argumentos deduzidos pelo Estado do Rio
Grande do Sul, destaca-se a alegação a respeito da necessidade
de observância da reserva do possível, diante dos custos para
166 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

contratação de monitor. Contudo, o Tribunal de Justiça entendeu


que tal alegação não pode ser utilizada para justificar violação aos
direitos fundamentais. Toma-se por exemplo trecho do acórdão da
apelação nº 5001075-62.2019.8.21.0066:
Outrossim, não se desconhece que o Estado enfrenta
dificuldades orçamentárias. Entretanto, não se pode admitir
que as normas que disponham acerca da previsão orçamentária
ou, ainda, das etapas administrativas de nomeação de
profissional de que necessita a parte autora condicionem ou
se sobreponham aos direitos e garantias fundamentais. O
princípio da reserva do possível não pode ser utilizado como
meio de exclusão de garantias constitucionais, ainda mais em
se tratando de direito de criança à educação, ao qual restou
atribuído prioridade absoluta pela Carta Magna (artigo 227 da
CF). (RIO GRANDE DO SUL, 2021b)
Com isso, entende-se que mesmo diante de dificuldades
orçamentárias, isso não afasta o direito fundamental da educação
inclusiva e de as crianças com TEA tenham o devido auxílio
e acompanhamento de profissional especializado, pois, “[...] a
inclusão escolar bem feita permite não só o desenvolvimento da
criança incluída, mas também permite que as outras crianças possam
vivenciar a diferença. Todos aprenderão que somos diferentes e
ser diferente não significa ser melhor nem pior do que ninguém”
(MONTENEGRO; CELERI; CASELLA, 2018, p.94)
No agravo de instrumento nº 5076501-31.2022.8.21.7000,
interposto pelo infante com TEA, representado pelos seus genitores,
contra o Município de Cachoeirinha e o Estado do Rio Grande
do Sul, ante ao indeferimento de pedido de tutela de urgência
antecipada, a situação era diversa dos casos analisados. A tutela de
urgência foi indeferida em razão da escola onde o autor estudava
já possuir educador social, bem como diante do fato dele contar
com serviço de atendimento educacional especializada e estar
matriculado no Centro Municipal de Atendimento Educacional
Especializado Lampadinha, com atendimento nos dias agendados
(RIO GRANDE DO SUL, 2021a).
Apesar de já contar de atendimento especializado a parte
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 167

recorrente defendeu a necessidade de monitor exclusivo para


a criança com TEA, de acordo com atestado médico juntado,
alegando que a violação a este direito poderia trazer prejuízos
irreparáveis para a criança. O Estado do Rio Grande do Sul
requereu sua exclusão do feito, diante da ilegitimidade passiva,
em razão da escola ser municipal. O Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul deu parcial provimento ao recurso da parte autora
para deferir a tutela de urgência a fim de determinar ao Município
de Cachoeirinha que assegurasse monitor exclusivo para a criança,
embora tenha decidido pela ilegitimidade do Estado:
Observa-se, portanto, elementos de prova coligidos aos autos,
aptos a demonstrar a ocorrência do perigo de dano ou risco ao
resultado útil do processo, pelo que impende ser reformada a
decisão que indeferiu a antecipação de tutela na espécie. O não
fornecimento, se sabe, pode comprometer-lhe a integridade,
o desenvolvimento, a inserção social e a futura, conquanto
possível, qualificação para o trabalho (RIO GRANDE DO
SUL, 2022a).
A apelação de nº 70076543727 refere-se a um requerimento
da parte autora de matricular o filho na educação especial, não sendo
tal pedido concedido pelo Município de Alvorada que alegou que
disponibilizava de educação inclusiva na rede regular de ensino. A
ação foi ajuizada contra o Município e o Estado do Rio Grande
do Sul requerendo a matrícula da criança em estabelecimento
de educação especial. No caso, o Tribunal de Justiça, embora
reconheça o dever do estado de assegurar a educação inclusiva,
preferencialmente na rede de ensino, entendeu que em casos
especiais, devidamente comprovados, é possível que para assegurar
o direito à educação, ela possa ocorrer em estabelecimento especial:
[...] não podemos desconsiderar que pelo texto das leis que
dispõem sobre a educação inclusiva, se extrai que a regra
de inclusão no ensino regular comporta exceções, visto que
utiliza os termos ‘preferencialmente na rede regular de ensino’
e ‘capazes de se integrar à rede regular’ (RIO GRANDE DO
SUL, 2018a).
Nesse sentido, prevê o artigo 7º da Lei nº 12.764/2012, o
168 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

qual dispõe que “o gestor escolar, ou autoridade competente, que


recusar a matrícula de aluno com transtorno do espectro autista,
ou qualquer outro tipo de deficiência, será punido com multa de 3
(três) a 20 (vinte) salários-mínimos” (BRASIL, 2012).
Embora no caso em questão o Município alegou que
assegurou a educação na rede regular de ensino, a legislação pátria,
inclusive a Constituição Federal, asseguram o direito à matrícula em
escola especial. Embora discutível a segregação do ensino, o Tribunal
entendeu que a previsão da educação inclusiva, preferencialmente
na rede regular de ensino “não se trata de regra impositiva absoluta,
sendo que, em razão das peculiaridades da deficiência e da resposta
subjetiva do aluno ao atendimento, outras medidas poderão ser
adotadas” (RIO GRANDE DO SUL, 2018a).
Diante dos casos analisados pelo Tribunal, é nítida a omissão
do Estado do Rio Grande do Sul em garantir o direito à educação
inclusiva, pois quando se restringe o acesso à acompanhamento
de profissional capacitado para crianças com transtorno do
espectro autista, restringe-se também a sua socialização, meios de
aprendizagem e autonomia. Sendo assim, através da atual pesquisa,
constatou-se que em relação ao direito à educação inclusiva, a
principal violação tem sido ao direito de crianças e adolescentes
autistas possuírem o acompanhamento de profissional capacitado
para auxiliá-los na aprendizagem e socialização.
Nesse cenário, destaca-se a importância do acompanhante
especializado para as crianças e adolescentes com transtorno do
espectro autista, as quais enfrentam inúmeros problemas no cenário
brasileiro, pois, no momento em que é assinada uma declaração
ou convenção, deve haver uma estrutura política, para que haja
a garantia dos documentos, pois, há nitidamente um problema
político de efetivação de direitos humanos, quando não há meios
de efetivar os direitos e garantias fundamentais dessas crianças e
adolescentes.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 169

Considerações finais

O presente trabalho pretendeu analisar, com base nos


casos que chegam ao Tribunal de Justiça, se o Rio Grande do Sul
tem assegurado o direito fundamental à educação inclusiva de
crianças e adolescentes com Transtorno do Espectro Autista, após
a promulgação da Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência.
Para atingir o objetivo proposto, inicialmente buscou-se
compreender a proteção jurídica das pessoas com Deficiência no
Brasil a partir da promulgação da Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo.
Nesse sentido, aferiu-se que a proteção jurídica das pessoas com
deficiência no Brasil visa à inclusão e não a exclusão, pois, a pessoa
com deficiência detém de direitos e garantias fundamentais, os quais
asseguram a socialização, a autonomia e a cidadania. É importante
frisar que as leis específicas que preveem a proteção e a garantia de
direitos às pessoas com deficiência, não visam “direitos especiais”,
mas sim, mecanismos que visem a inclusão e não a distinção.
Após, abordou-se a Política Nacional de Proteção aos
Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista, prevista
na Lei nº 12.764/2012, também conhecida como Lei Berenice
Piana. Tal política assegurou direitos específicos para as pessoas
com o TEA, como no artigo 1º, §2º que os equiparou às pessoas
com deficiência para todos os efeitos legais. A Lei dispõe, também,
em especial, o direito à educação, preferencialmente em escola de
ensino regular e nos casos comprovados, direito à acompanhante
especializado.
Na sequência, analisou-se nas decisões do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul publicadas no período de 25 de
agosto de 2009 à 25 de agosto de 2022, as demandas envolvendo
a omissão estatal na garantia do direito fundamental à educação
inclusiva de crianças com Transtorno do Espectro Autista, pesquisa
a qual resultou em 16 (dezesseis) julgados.
170 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Foi possível identificar que o Estado é omisso na efetivação


do direito fundamental à educação inclusiva de crianças e
adolescentes com transtorno do espectro autista. Considerando-
se que dos 16 (dezesseis) julgados, em 15 (quinze) era requerido
o direito ao acompanhamento de monitor escolar, que não havia
sido garantido extrajudicialmente. Já 1 (uma) decisão analisada era
requerida a matrícula em escola de educação especial, tendo em
vista que o ordenamento jurídico dispõe que, preferencialmente,
a matrícula deve ocorrer em escola de ensino regular, mas isso não
retira o direito à matrícula em escola de ensino especial, o que foi
assegurado naquele caso pelo Tribunal.
O estudo de caso permitiu identificar que na prática o direito
à educação inclusive não está sendo integralmente assegurado. Não é
suficiente que exista a garantia legal da educação inclusiva e formal,
no sentido de possibilitar a matrícula na rede regular de ensino, sem
que se assegure a acessibilidade e o direito ao acompanhamento de
profissional especializado, para que a criança ou o adolescente com
TEA efetivamente desenvolva suas potencialidades e autonomia.
Ao final, os objetivos propostos permitiram desenvolver
a resposta ao seguinte problema de pesquisa: com base nos
casos que chegam ao Tribunal de Justiça, o Rio Grande do Sul
tem assegurado o direito fundamental à educação inclusiva de
crianças e adolescentes com Transtorno do Espectro Autista, após
a promulgação da Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência?
A resposta é que o Estado do Rio Grande do Sul tem
sido omisso, especialmente quanto à garantia de assegurar o
acompanhamento das crianças e adolescentes com TEA por
profissional especializado. Tal violação ao direito à educação
inclusiva pode gerar graves prejuízos ao desenvolvimento do
educando com TEA como também dos demais colegas que não
experimentam um ambiente escolar verdadeiramente inclusive, o
que importa um grave risco social.
Conforme artigo 205 da CRFB/88, a educação é direito
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 171

de todos e dever do Estado e da família, visando ao pleno


desenvolvimento da pessoa. Com isso, percebe-se que o Estado do
RS somente cumpre seu dever, após o TJRS o condenar a garantir
o direito das crianças e adolescentes com TEA, de modo que,
possivelmente, o número de casos que não chegaram ao judiciário
ou que ficaram fora do recorte da presente pesquisa seja muito mais
elevado, o que demonstra uma grave violação ao direito à educação
inclusiva.

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174 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

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Capítulo 9

Uma análise da tolerância sociojurídica


referente à violência de gênero frente à lei
12.318/2010

Luíse Pereira Herzog


Júlia Della Nina Reichel

Considerações iniciais

A s pessoas, desde antes de nascer, já são colocadas em


mundos diferentes ao serem identificadas como
meninos e meninas e, a partir desses momentos, são impostas regras
sociais para essas pessoas. Tanto aos homens quanto às mulheres são
ensinadas regras sociais por conta de costumes que são naturalizados
pela sociedade e, muitos destes costumes, fazem com que normas
jurídicas sejam criadas com a desigualdade de gênero, em razão dos
papéis dos homens serem distintos das mulheres.
O presente trabalho, portanto, tem como temática buscar a
reflexão sobre a lei de Alienação Parental sob o prisma da perspectiva
de gênero, em razão do relato de diversas mulheres que estão em
disputas judiciais pela guarda dos filhos, por estarem sofrendo uma
diferente violência de gênero promovida pelo Sistema Judiciário
Além disto, questiona-se se sob perspectiva de gênero,
qual a efetividade da lei 12.318/2010 na proteção dos filhos e
na regulamentação da guarda destes? Desta forma, em busca
de solucionar tal problemática, realiza-se um levantamento
bibliográfico de publicações e artigos científicos, bem como
dissertações e livros sobre o assunto de alienação parental, através
de bibliotecas e sítios virtuais.
176 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

O trabalho tem como objetivo geral realizar uma análise


das consequências causadas pela Lei de Alienação Parental durante
o processo judicial para regular a guarda dos filhos na vida das
mulheres, em busca de se obter um novo olhar para a Lei de
Alienação Parental.
A pesquisa é dividida em três partes para solucionar a
problemática, sendo o primeiro objetivo específico identificar
o conceito da Alienação Parental, bem como, a criação da Lei
de Alienação Parental no Brasil. O segundo objetivo específico
busca verificar como o Poder Judiciário vem enfrentando a Lei de
Alienação Parental. Por último, como objetivo específico terceiro,
pretende-se averiguar as consequências da lei de alienação parental
na vida das mulheres e os impactos jurídicos por conta do processo
de alienação parental.
Diante da evolução social e da criação de novos conceitos
de relacionamento, as pessoas passaram a se divorciar com maior
facilidade, assim, o número de divórcios cresceu e consequentemente
o número de relações de menor duração aumentou. De muitas destas
relações provieram filhos e quando do término, há necessidade de
realização da regularização da guarda das crianças, e é neste momento
em que as mulheres costumam ser processadas por supostamente
estarem realizando a alienação parental. A Lei de Alienação Parental,
portanto, passou a ser utilizada como um instrumento jurídico-
legal para conservação da violência doméstica. Assim, percebe-se
que a Lei de Alienação Parental, coloca as mulheres e as crianças
num lugar de vulnerabilidade frente ao seu agressor.

Alienação parental: Quem criou? Qual o conceito? Como


se tornou lei?

Richard Alan Gardner, em 1985, criou a teoria de


Alienação Parental (AP), bem como da Síndrome de Alienação
Parental (SAP). O autor desta teoria era americano e realizava um
trabalho não remunerado na Universidade de Columbia e com
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 177

isso, utilizava o título de Professor, mesmo sem nunca ter lecionado


em tal universidade. Aproveitou-se do prestígio desta posição para
conferir ao seu trabalho um reconhecimento científico que nunca
existiu (SOTTOMAYOR, 2011).
Gardner ficou famoso e ganhou notoriedade defendendo
ex-combatentes acusados de abuso sexual em processos de divórcio
litigioso. A juíza portuguesa, Sottomayor (2011), questiona não
só a forma como o autor da teoria promoveu o seu trabalho sob
um título inexistente, mas como as suas teorias eram machistas e
pró-pedofilia. O teórico acreditava e publicava, como foi o caso
da obra “True and false Allegations of Child Sexual Abuse” (1992)
um discurso pedófilo e descredibilizante do crime, alegando que o
incesto não é danoso para as crianças, mas é, antes, o pensamento
que o torna lesivo, citando Shakespeare: “Nada é bom ou mau. É o
pensamento que o faz assim”.
Para Alonso (2016), o autor da tese da Alienação Parental
criou tal teoria, única e exclusivamente, para emitir pareceres
defendendo os seus clientes acusados de pedofilia. Posteriormente
criou a SAP, que nada mais é do que uma errônea interpretação do
comportamento infantil diante dos abusadores.
Sousa (2013) define que alienação parental é um fenômeno,
onde, em meio às dificuldade e conflitos do rompimento conjugal,
os genitores ou responsáveis, não conseguem lidar com o as
frustrações e acabam por incluir e expor os filhos ao cerne das
discussões, quando, na verdade deveriam protegê-los.
Ademais, Gardner criou tal teoria, como se fosse um costume
feminino ligado aos ciúmes e vingança contra o ex-companheiro,
isso fez com que diversos doutrinadores seguissem essa teoria. E,
a partir deste momento, as mulheres começaram a ser silenciadas
(RICCI; PEREIRA, 2021) e muitos pais contraventores passaram
a ser vistos como vítimas de tal situação, implantada pela SAP, bem
como as mães passaram a ser consideradas as alienadoras.
Ou seja, a estratégia é uma inversão da situação. Desacredita-
se a vítima, colocando em cheque toda a credibilidade do relato
178 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

da criança, nos casos de abuso sexual, e torna a genitora que fez


a denúncia buscando a proteção do seu filho em alienadora. O
algoz se torna vítima e a vítima o algoz. Este é um comportamento
analisado por Sottomayor (2011) em diversos casos de Gardner e
também em suas obras.
Contudo, a Organização Mundial da Saúde (OMS), não
reconhece a alienação parental como síndrome ou doença, a qual
não é contemplada pela Classificação Internacional de Doenças.
Entretanto, a OMS, apenas a considera como um conflito de relação
entre pessoas e cuidador (RICCI; PEREIRA, 2021). Além do mais,
um dos maiores problemas da Lei de Alienação Parental brasileira
é que foi baseada numa teoria da Síndrome de Alienação Parental
(SAP) que não tem comprovação científica (LEMOS, 2022).
Apesar de toda a dedicação para difundir a sua teoria sobre
SAP, através de publicação de livros e artigos, o psiquiatra norte-
americano jamais empreendeu pesquisa científica sobre o tema.
Pelo contrário, Gardner desconsiderou pesquisas sobre separação
conjugal e guarda de filhos, usando como amparo teórico somente
os seus próprios estudos, os quais não explicavam como haviam
sido realizados. (SOUSA, 2013).
Cabe destacar que no momento da elaboração do livro, Sousa
(2013) realizou pesquisas de teses em periódicos e sites, inserindo
palavras-chave como: separação conjugal, divórcio, guarda de
filhos, síndrome da alienação parental e não foram encontrados em
periódicos nacionais nas áreas de psicologia, psiquiatria e serviços
sociais textos sobre esses temas.
Uma Organização Não Governamental, a Associação de
Pais Separados (APASE), passou a difundir no país o conceito desta
pseudo-síndrome, tudo por meio de campanhas de elaboração
de folders, cartilhas, vídeos e livros. Importante destacar que tal
ONG baseava-se na proteção dos direitos dos PAIS separados.
Logo em seguida, fez a proposição legislativa baseada somente em
publicações do seu site. E com baixa densidade de dados, índices,
proporções, comprovações científicas, sem debates e audiências
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 179

públicas tal legislação foi aprovada e passou a vigorar como Lei n°


12.318/10. (BRASIL, 2020)

Ordenamento brasileiro e a alienação parental

Quando os relacionamentos desencadeiam em separações e


divórcios, são ocasionados desafios para a esfera jurídica, por conta
das vivências do casal e seus filhos, este é sempre um momento
muito intenso, principalmente quando há conflitos litigiosos e
especialmente para definir os assuntos concernentes aos filhos,
como regulamentação de guarda, convivência e pensão alimentícia.
Existem casos em que uma das partes não aceita o fim
do relacionamento e isso traz à tona uma complexidade ao caso,
levando esta relação conflituosa ao Judiciário, onde se busca uma
chancela para a solução do conflito. Neste momento, algumas
atitudes começam a evidenciar comportamentos, muitas vezes
inapropriados, por exemplo, a tentativa de impossibilitar o outro
genitor a ter maior contato com o filho de ambos, buscando
através desta atitude castigar o outro genitor pelo término do
relacionamento e acabar com a imagem deste diante do/os filho/os
do casal (FUNKS; OLIVEN, 2011).
Entretanto, no ano de 2010, no Brasil, foi promulgada a Lei
12.318, em busca de uma lei para amparar a proteção das crianças
que vivem com pais separados. A Lei 12.318/2010, dessa forma,
prevê a intervenção psicológica da criança realizada por um dos
genitores ou familiares próximos, em que despreze o outro genitor,
conforme previsto no artigo 2º:
Art. 2o Considera-se ato de alienação parental a interferência na
formação psicológica da criança ou do adolescente promovida
ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que
tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda
ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo
ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este
(BRASIL, 2010).
Bem como, neste mesmo dispositivo prevê algumas condutas
180 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

que a partir dele serão criminalizadas, conforme parágrafo único e


incisos, do mesmo dispositivo:
Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação
parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou
constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio
de terceiros:
I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor
no exercício da paternidade ou maternidade;
II - dificultar o exercício da autoridade parental;
III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de
convivência familiar;
V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais
relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares,
médicas e alterações de endereço;
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares
deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência
deles com a criança ou adolescente;
VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa,
visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente
com o outro genitor, com familiares deste ou com avós
(BRASIL, 2010).
Assim, percebe-se que a lei prevê que qualquer pessoa pode
ser alienador, entretanto, não é isso que é visto na prática, em razão
de sempre ser imposto este papel para a mãe, que é associada àquela
que pratica um ato de vingança pelo término do relacionamento,
afastando o genitor do filho. E, para a pessoa que realizar a alienação
parental e a justiça entender que houve tal prática, o genitor poderá
sofrer inúmeras punições (RICCI; PEREIRA, 2021), como por
exemplo, as previstas no artigo 6º da lei 12.318/10:
Art. 6º Caracterizados atos típicos de alienação parental ou
qualquer conduta que dificulte a convivência de criança ou
adolescente com genitor, em ação autônoma ou incidental,
o juiz poderá, cumulativamente ou não, sem prejuízo da
decorrente responsabilidade civil ou criminal e da ampla
utilização de instrumentos processuais aptos a inibir ou
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 181

atenuar seus efeitos, segundo a gravidade do caso:


I - declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o
alienador;
II - ampliar o regime de convivência familiar em favor do
genitor alienado;
III - estipular multa ao alienador;
IV - determinar acompanhamento psicológico e/ou
biopsicossocial;
V - determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada
ou sua inversão;
VI - determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou
adolescente;
VII - declarar a suspensão da autoridade parental.
Parágrafo único. Caracterizado mudança abusiva de endereço,
inviabilização ou obstrução à convivência familiar, o juiz
também poderá inverter a obrigação de levar para ou retirar a
criança ou adolescente da residência do genitor, por ocasião das
alternâncias dos períodos de convivência familiar (BRASIL,
2010).
Desse modo, se observa que a Lei de Alienação Parental
também determina que o genitor ou familiar que realizar a
“produção” de falsas memórias nas crianças ou adolescentes,
também poderá sofrer diversas consequências, visto que tal prática
se caracteriza como alienação parental.
No entanto, aqui é necessário fazer uma análise sob uma
perspectiva interseccional. As Ciências Jurídicas, historicamente,
foram idealizadas, pensadas e realizadas por uma sociedade
patriarcal, burguesa e branca, com o foco no ponto de vista
masculino, refletindo assim os interesses e necessidades deste
específico grupo social. Isso ocasionou na utilização da perspectiva
masculina como um parâmetro universal (HUMMEELGEN E
CANGUSSÚ, 2017).
Logo, apesar da utilização de termos neutros e genéricos
quando se trata de AP, grande parte das produções apontam
182 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

para a maioria das “alienadoras” como mulheres. Não se pode


ignorar a origem sexista da teoria e da lei. Isto resta evidenciado
quando na justificativa do projeto de lei, apesar de apontar que a
proporção de pais e mães alienadores é semelhante, colaciona-se
de forma contraditória o posicionamento misógino e machista da
doutrinadora brasileira Maria Berenice Dias:
A evolução dos costumes, que levou a mulher para fora do
lar, convocou o homem a participar das tarefas domésticas e a
assumir o cuidado com a prole. Assim, quando da separação, o
pai passou a reivindicar a guarda da prole, o estabelecimento da
guarda conjunta, a flexibilização de horários e a intensificação
das visitas.
No entanto, muitas vezes a ruptura da vida conjugal gera na
mãe sentimento de abandono, de rejeição, de traição, surgindo
uma tendência vingativa muito grande. Quando não consegue
elaborar adequadamente o luto da separação, desencadeia um
processo de destruição, de desmoralização, de descrédito do
ex-cônjuge.
Ao ver o interesse do pai em preservar a convivência com o
filho, quer vingar-se, afastando este do genitor. Para isso cria
uma série de situações visando a dificultar ao máximo ou a
impedir a visitação. Leva o filho a rejeitar o pai, a odiá-lo. A este
processo o psiquiatra americano Richard Gardner nominou
de “síndrome de alienação parental”: programar uma criança
para que odeie o genitor sem qualquer justificativa. (BRASIL,
2010).
Dessa forma, percebe-se que a lei de alienação parental é um
pedestal para inverter o papel de vítima para acusada. Um exemplo
é o caso de abuso sexual, em que a mulher que está denunciando o
crime cometido pelo seu ex-companheiro contra o filho do casal,
acaba por ser acusada de realizar alienação parental para afastar seu
filho do genitor, e a mulher passa a ser considerada alienadora para
o juiz (CRUZ, 2019). Infelizmente, por se viver numa sociedade
patriarcal, a vulnerabilidade feminina foi direcionada a diversas
leis, como é notável na lei de alienação parental, em que é utilizada
para reforçar um estereótipo de que mulheres são vingativas, loucas
e ressentidas.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 183

A Lei de Alienação Parental, tem sido utilizada como um


meio de repressão para muitas mulheres que acabam se sentido
indefesas e inseguras, pois mesmo que a mulher busque o melhor
para seus filhos no Judiciário, ela deixa de ser a vítima e passa
a serem considerada como a alienadora, o que não deixa de ser
uma violência de gênero praticada contra às mulheres, no âmbito
familiar ou institucional.
Dessa forma, observa-se que a Lei de Alienação Parental tem
caráter machista e misógino garantido e reproduzido, infelizmente,
pelo Poder Judiciário, que ainda realiza decisões discriminando as
mulheres (LEMOS, 2022). Observou-se que a Lei de Alienação
Parental está transformando toda a rede de apoio dos direitos das
crianças, pois desconsidera todos os relatos realizados pela mulher
e pelos filhos, além de muitas vezes retirar a guarda das crianças
da mãe para o pai (CRUZ, 2018). Estas situações normalmente
afetam diretamente o melhor interesse da criança e do adolescente.
Batista (2021) observa que houve um aumento da
judicialização a partir da introdução da alienação parental em
outras leis, também afirma que diversas mulheres, ao procurarem
os tribunais, nas ações de guarda e violência doméstica contra elas
ou seus filhos, realizada pelo ex-companheiro ou genitor, tem-
se utilizado a alienação parental por parte deles, como estratégia
de defesa. Em muitos casos, ainda, foi realizado o pedido de
reversão de guarda automática, que até então era previsto na Lei de
Alienação Parental, sem nem ao mesmo considerarem a avaliação
das denúncias de violência domésticas (BATISTA, 2021).
Recentemente, em 2021, o Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) apresentou o Protocolo de Julgamento com Perspectiva
de Gênero (BRASIL, 2021). Um grande avanço na evolução dos
direitos das mulheres. Nele, há a descrição de como ocorrem as
violências de gênero dentro de um processo, como por exemplo, o
uso dos estereótipos quando se trata de mulheres:
A violência de gênero pode se apresentar nas ações distribuídas
à Justiça Estadual, nas suas diversas competências, e, portanto,
ao julgar com perspectiva de gênero, a magistrada e o magistrado
184 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

atuam na contenção de danos e promovem a interrupção de


atos involucrados em vocabulários e/ou linguagens ofensivas,
desqualificadoras e estereotipadas, sejam estas proferidas no
curso de uma audiência ou formatadas em peças processuais,
tudo mediante termo nos autos, para substanciar a análise sob
tal perspectiva, conforme compromissos assumidos pelo Brasil
na ambiência internacional. (2021, p. 83)
Restou reconhecido neste Protocolo (BRASIL, 2021) a
utilização desta pseudo-síndrome por genitores que cometeram
agressões e abusos contra suas ex-companheiras quando estas
apresentam denúncias na tentativa de sua própria proteção ou de
seus filhos:
Alienação Parental: Em relação à guarda das filhas e dos filhos,
a alegação de alienação parental tem sido estratégia bastante
utilizada por parte de homens que cometeram agressões
e abusos contra suas ex-companheiras e filhos(as), para
enfraquecer denúncias de violências e buscar a reaproximação
ou até a guarda unilateral da criança ou do adolescente. (2021,
p.96).
Segundo a Juíza portuguesa Sottomayor (2011), Richard
Gardner na tentativa de defender seus clientes criou uma falsa
epidemia de Alienação Parental e consequentemente, uma
desproteção para as mulheres, crianças e adolescentes, visto que
nos processos de divórcio e regularização de guarda, as denúncias
de abusos sexuais passam a ser, quase que automaticamente,
presumidas como falsas para diabolizar a mãe que tenta se proteger
ou ao seu filho. O autor da teoria se utiliza das suas experiências e
observações pessoais, sem dados que comprovem tais experiências
da prática forense, para diferenciar as falsas e as verdadeiras alegações
de abuso sexual. Na teoria dele, quando ocorre o abuso real, a mãe
se cala; e quando se trata de um abuso falso, a mãe denuncia. Um
raciocínio ilógico e sem base científica, que leva à dedução de que
se o crime aconteceu, não há denúncia; se há denúncia, é falso. Ou
seja, a denúncia funciona como prova de mentira.
Outro ponto que foi apresentado na Nota Técnica n°7/2021
do Ministério da mulher, da família e dos Direitos Humanos, é
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 185

de que os abusos sexuais, em grande parte dos casos, não deixam


marcas físicas e vestígios físicos, especialmente quando as vítimas
são crianças ou adolescentes, até mesmo porque a penetração
ocorre em um percentual de 7 a 10% dos casos e, em regra, mesmo
quando ocorrem os laudos, os mesmos tem retorno negativo, logo,
demonstra-se a dificuldade de comprovação. Ainda mais porque os
maiores abusadores estão dentro do círculo íntimo de convivência
da criança (88% dos casos), ou seja, pai e padrasto, sendo que em
dez casos de violência sexual contra criança, quatro tem como algoz
o pai e três o padrasto.
Dentro deste tema da violência sexual é de suma importância
salientar que denúncia falsa é diferente de denúncia que não gerou
uma condenação criminal por falta de provas, pois este é um dos
crimes de maior dificuldade comprobatória, visto que quase sempre
ocorrem de forma silenciosa e escondido de qualquer outra pessoa.
Muitas são as instituições brasileiras que pontuam a
importância da revogação da Lei de Alienação Parental. Dentre
elas, vale destacar Nota Pública do Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente (CONANDA):
Em relação à lei n° 12.318 de 2010, que dispõe sobre a
“alienação parental“, manifesta a preocupação diante do fato de
que o conceito de “alienação parental“ não está fundamentado
em estudos científicos, bem como não há registro de outros
países que tenham e mantenham legislação semelhante sobre
o assunto. Ainda, pondera que tal lei foi aprovada sem uma
ampla discussão escuta dos atores que estão diretamente
envolvidos com o tema, inclusive deste Conselho.
Para o Conanda, já existem previsões legais protetivas
suficientes no que tange aos direitos de crianças e adolescentes
à convivência familiar e comunitária, merecendo destaque a
garantia de guarda compartilhada, o que, no entender deste
Conselho, já é suficiente para assegurar o convívio com ambos
os genitores. (2022, p. 1).
No entanto, não há que se negar que o padrão de
comportamento de desqualificar o outro genitor, infelizmente,
ocorre e não se pode ignorar tal fato. Porém para isso a legislação
186 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

vigente protege e já protegia (antes da Lei de Alienação Parental) as


Crianças e Adolescentes deste abuso de poder parental.
O Artigo 2°, parágrafo único e incisos da Lei 12.318/2010
trazido anteriormente qualifica e apresenta o rol de formas diversas
de praticar a alienação, que atentam contra a dignidade, a liberdade
e saúde, oprimindo de forma cruel e violenta a convivência familiar
da criança e do adolescente. Porém, essas previsões já estão presentes
no Artigo 227 da Constituição Federal e no Artigo 4° do Estatuto
da Criança e do Adolescente:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar
à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade,
o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).
[...]
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em
geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a
efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária (BRASIL, 1990).
O Ministério Público Federal lançou a Nota Técnica
04/2020 e ali defendeu que, o ECA já protege os direitos das
crianças e dos adolescentes sem a Lei de Alienação Parental:
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seus artigos 98,
inciso II, e 100, parágrafo único, incisos IV, VII, VIII e IX e XII,
já dispõe de instrumentos jurídicos suficientes à salvaguarda
dos direitos das crianças e adolescentes à convivência familiar
saudável, orientada pela mínima e proporcional intervenção
estatal, pela responsabilidade parental e pela oitiva e participação
obrigatória das crianças e adolescentes nos casos que envolvam
seus direitos e interesses. O ECA prevê, inclusive, medidas de
urgência nas hipóteses de risco às crianças e adolescentes por
falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis. (grifo nosso)
Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 187

aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem


ameaçados ou violados: I - por ação ou omissão da sociedade
ou do Estado;
II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;
III - em razão de sua conduta.
[...]
Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as
necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem
ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação
das medidas:
[...]
IV - interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção
deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da
criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for
devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade
dos interesses presentes no caso concreto;
[...]
VII - intervenção mínima: a intervenção deve ser exercida
exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja
indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da
criança e do adolescente;
VIII - proporcionalidade e atualidade: a intervenção deve ser
a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança
ou o adolescente se encontram no momento em que a decisão
é tomada;
[...]
IX - responsabilidade parental: a intervenção deve ser efetuada
de modo que os pais assumam os seus deveres para com a
criança e o adolescente;
[...]
XII - oitiva obrigatória e participação: a criança e o adolescente,
em separado ou na companhia dos pais, de responsável ou de
pessoa por si indicada, bem como os seus pais ou responsável,
têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição
da medida de promoção dos direitos e de proteção, sendo sua
188 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

opinião devidamente considerada pela autoridade judiciária


competente, observado o disposto nos §§ 1 o e 2 o do art. 28
desta Lei.
Além disso, o ECA, em seu Artigo 129, parágrafo único,
e Artigo 13031 prevê a aplicação de todas as medidas previstas
na Lei de Alienação Parental, quais sejam: ampliação do regime
de convivência, determinação de alteração da guarda e suspensão
da autoridade parental. De acordo com o art. 129, são medidas
aplicáveis aos pais ou responsável:
I - encaminhamento a serviços e programas oficiais ou
comunitários de proteção, apoio e promoção da família; II
- inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio,
orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; III -
encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;
IV - encaminhamento a cursos ou programas de orientação;
V - obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar
sua freqüência e aproveitamento escolar; VI - obrigação
de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento
especializado; VII - advertência; VIII - perda da guarda; IX
- destituição da tutela; X - suspensão ou destituição do pátrio
poder poder familiar. Parágrafo único. Na aplicação das
medidas previstas nos incisos IX e X deste artigo, observar-se-á
o disposto nos arts. 23 e 24. Art. 130. Verificada a hipótese
de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais
ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar,
como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia
comum.
Para a senadora Eliziane Gama, a Lei de Alienação Parental
é impraticável, pois é muito difícil distinguir os efeitos da alienação
parental das consequências naturais da separação dos pais. Ainda, a
lei pode ser usada por pais abusadores para voltar a conviver com os
filhos ou manter-se violentando a mãe. Outro ponto que a senadora
levanta é de que a Lei 12.318/2010 não atende ao princípio do
melhor interesse da criança e do adolescente, visto que tem um viés
majoritariamente punitivo (AGÊNCIA SENADO, 2023).
Assim, entende-se que além da Lei de Alienação Parental ter
suas raízes sexistas, não apresenta inovação alguma para a proteção
das crianças e adolescentes e afeta diretamente a vida de diversas
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 189

mulheres. Ou seja, a aplicação cautelosa do ECA e da Constituição


Federal já é medida suficiente para proteção dessas famílias, visando
a privacidade e a proporcionalidade, a responsabilidade parental, a
prevalência da família, a obrigatoriedade da informação e a oitiva
obrigatória, com a participação da criança e do adolescente nos atos
judiciais de definição da sua própria vida. O que se contrasta com
a Lei de Alienação Parental, que visa inocentar um e incriminar o
outro, geralmente, as mulheres.
Dessa forma, percebe-se que a Lei de Alienação Parental
afeta diretamente a vida das mulheres que realizam denúncias de
violência contra seu ex-companheiro e, por isso, será abordado no
próximo capítulo como está sendo o impacto dessa Lei, na vida
das mulheres e das crianças que são silenciadas pela norma e não
conseguem se impor durante o processo.

Consequência da lei de alienação parental

As mulheres sempre tiveram que lutar para adquirir


seus direitos e garantias na sociedade, principalmente por ter se
estabelecido uma sociedade patriarcal, tendo predominância e
dominação masculina nos cargos de poder e decisão. Dessa forma,
as mulheres passaram a ter seus espaços em seus lares, com função
de cuidado e afazeres domésticos.
E através desta cultura social machista foram criadas diversas
normas que faziam com que mulheres fossem submetidas aos
homens, como o Código Civil de 1804, que previa que a mulher
deveria obedecer o seu marido, além de prever que as mulheres
eram submissas juridicamente. Também o Código Civil de 1916,
previa que a mulher era parcialmente capaz e que o homem era o
chefe de família, mudando apenas em 1962, quando as mulheres
casadas passaram a ter capacidade plena para os atos da vida civil.
Ainda, somente em 1988, com a Constituição Federal, foi prevista
a igualdade da mulher e dos homens para com seus direitos e
obrigações (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2020).
190 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Portanto, como já visto nos tópicos anteriores, se promulgou


a Lei de Alienação Parental em 2010, visando promover o direito
fundamental das crianças em ter o convívio direto com seus
familiares e instituído punições para os casos que houvesse alguma
violação.
Entretanto, na prática, percebe-se que muitas mulheres já
perderam a guarda de seus filhos para seus ex-companheiros, sendo
estes agressores delas e de seus filhos, pelo fato de tentarem afastar
os filhos do convívio paterno por conta das violações, negligências
e abusos (CRUZ, 2018). Percebe-se, ainda, que muitas vezes as
mulheres são colocadas como acusadas de alienadoras e não é
posta como protetora de seus filhos, e suas alegações passam a ser
questionadas e frequentemente desconsideradas, acreditando que
foram alegações falsas ou criadas (CHAVES, 2018).
De acordo com Lemos (2022), a Lei de Alienação Parental
é um meio legal que faz com que a violência doméstica ganhe ainda
mais força e, usando da norma, mulheres acabam tendo contato
com o seu agressor, pois através do processo de alienação parental
precisam ter o contato com eles. Esse cenário destoa das próprias
recomendações da CEDAW (Convention on the Elimination of All
Forms of Discrimination Against Women), em que se busca garantir
a aplicação da Convenção internacional para eliminar os meios de
discriminação contra as mulheres (LEMOS, 2022).
Como se pode ver, a Lei de Alienação Parental busca trazer
a igualdade no tratamento dos homens e das mulheres, entretanto,
mesmo que a lei seja aplicada para os genitores e para as genitoras,
elas produzem efeitos de forma distintas entre homens e mulheres
(MARANGONI; KOPP; MARINHO, 2022), e esta discriminação
indireta é perceptível, até mesmo pela CEDAW, na Recomendação
Geral nº 28:
16. Os Estados Partes têm a obrigação de respeitar, proteger e
fazer cumprir o direito das mulher es à não - discriminação e de
garantir o pleno desenvolvimento e o progresso das mulheres
para melhorar a sua situação e tornar efetivo o seu direito à
igualdade de jure e de facto ou substantiva com os homens.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 191

Os Estados Partes devem assegurar que não haja qualquer


discriminação direta ou indireta contra as mulheres. Entende
- se por discriminação direta contra as mulheres aquela que
implica um tratamento diferente explicitamente com base
em diferenças de sexo e de género. A discriminação indireta
contra as mulheres ocorre quando uma lei, uma política,
um programa ou uma prática parece ser neutra, dado dizer
respeito tanto aos homens quanto à s mulheres, mas tem, na
prática, um efeito discriminatório contra as mulheres, porque
as desigualdades pré - existentes não foram tidas em conta na
medida aparentemente neutra . Além disso, a discriminação
indireta pode exacerbar as desigualdades existentes s e não
forem levados em conta os padrões estruturais e históricos de
discriminação e o desequilíbrio das relações de poder entre
mulheres e homens (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 2010).
Apesar do aumento significativo no compartilhamento de
guarda nos processos de divórcio, a guarda unilateral para a mãe
ainda é a maioria dos casos, sendo em 54% dos casos atribuída mãe,
3,6% unilateral para o pai e 34,5% compartilhada. Não pode ser
ignorado o fato de que apesar de muitos ex-casais seguirem com a
guarda compartilhada após o rompimento da relação, a sobrecarga,
ainda assim, acaba por ficar com a mãe. Se estabelece uma regra,
guarda compartilhada, na tentativa de que os genitores passem a
ter mais responsabilidades sobre os seus filhos, porém, é cultural da
sociedade que as mulheres são pessoas mais adequadas para ocupar
o papel de cuidadora, como se fosse uma predisposição natural.
Almeida e Lima (2019) apresentam que o discurso jurídico
tem um padrão de critérios biológicos quando se refere à legislação
a respeito das mulheres, explicam o fenômeno a partir da noção de
estereótipo que embasa a pesquisa:
Os estereótipos de gênero funcionam como um sistema que
busca classificar as pessoas com base nas suas características
e comportamentos relacionados ao gênero. Eles atuam
influenciando as expectativas que cada um tem de si mesmo,
bem como suas relações com terceiros, podendo gerar reflexos
positivos ou negativos. Os estereótipos de gênero e os papéis de
gênero apesar de diferentes, estão relacionados, pois o primeiro
192 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

define os traços, as características e as atividades apropriadas


para homens e mulheres. Enquanto o outro é definido por
comportamentos tipicamente atribuídos para homens ou
mulheres, e que formam a base para os estereótipos de gênero
[...] Tanto os estereótipos de gênero quanto os papéis de gênero
têm natureza dúplice, isto é, possuem uma dimensão positiva
e outra negativa. A dimensão negativa é aquela que ressalta
uma visão nociva da mulher associada a todas as características
psicológicas e biológicas – sentimental, ‘fraca’ fisicamente em
relação ao homem – vistas como não desejadas ou repudiadas.
A dimensão positiva, por sua vez, é aquela que enaltece a
figura da mulher, mas, ao mesmo tempo em que a coloca em
um pedestal, desenvolve o chamado ‘sexismo hostil’, o qual
justifica a submissão da mulher em razão da sua adorada
‘fragilidade’ (ALMEIDA, LIMA, 2019, p. 14).
As mulheres são estigmatizadas e isto é utilizado como um
instrumento de controle social, que seleciona o que se considera
anormal/diferente com base nos princípios de outro determinado
grupo. Ou seja, aplicando essa concepção é possível afirmar
que o processo de estigmatização está presente em muitos casos
julgados no universo do Direito de Família. Nesse sentido, se sabe
que muitas das decisões judicias acabam por envolver atributos
estereotipados com forte raiz cultural, podendo, assim, identificar
posturas patriarcais caracterizadas pelo estigma preconceituoso que
assombra as mulheres.
Desta forma, assim como em outras diversas esferas, o
judiciário reproduz este estigma sobre as mulheres, reproduzindo
uma visão patriarcal e misógina, deixando estas desprotegidas,
assim como as crianças e adolescentes.

Considerações finais

A sociedade em que se vive é patriarcal e por consequência


disso, a desigualdade de gênero é extremamente presente, então,
sabe-se que os papéis parentais são reações desta desigualdade.
Logo, a sociedade é de dominação masculina, pois sempre foi o
sexo masculino que idealizou, organizou, ditou as regras e às
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 193

executou, sendo assim, as mulheres foram submetidas a tal sistema


e destinadas à função materna.
E através das lutas feministas as mulheres conseguiram ter
maiores direitos e garantias. Entretanto, ainda assim, são criadas leis
que, muitas vezes, tem o intuito para que seja em prol da igualdade,
mas quando utilizadas ainda promulgam a desigualdade de gênero,
como a Lei de Alienação Parental, que muitas vezes são utilizadas
para silenciar as mulheres.
É de suma importância atentar que as desigualdades
de gênero existem em todo o lugar e que os impactos dessa
desigualdade afetam diretamente as mulheres, através da sobrecarga
de trabalho e submissão aos homens, além dos papéis diferenciados:
homens acabam não exercendo o papel do cuidado, já que são os
responsáveis por prover a família. Dessa forma, esses papéis fazem
com que tenha impacto no exercício da paternidade.
Por fim, a Lei de Alienação Parental, está sendo vista pelo
Poder Judiciário como uma maneira de reprimir as mulheres,
principalmente quando denunciam as violações cometidas pelos
seu ex-companheiro contra si e seus filhos. Por conta do medo
de perder a guarda e até mesmo de sofrer violência doméstica, as
mulheres deixam de denunciar, pois nesse momento os homens
alegam que a mulher está criando falsas memórias nas crianças para
que o filho repudie o contato paterno.
Esta suposta síndrome não possui embasamento científico
e nem mesmo é reconhecida pela sociedade médica, psicológica e
psiquiátrica. Por essa razão, manter a Lei 12.318/2010 vigente é só
mais uma demonstração do quanto ainda se vive em uma sociedade
misógina, que desqualifica a narração de vítimas de violência contra
as mulheres e as crianças.

Referências

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Judiciário, decisão judicial e estereótipos de gênero. Revista
194 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

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Capítulo 10

Homoparentalidades e os dilemas jurídicos das


novas configurações familiares

Lucas Otesbelgue Henes


Cíntia Eloísi da Silva

Considerações iniciais

A través do presente artigo, pretende-se discorrer


sobre as múltiplas configurações familiares que são
legitimadas após as lutas pela libertação sexual, as quais têm como
pano de fundo, principalmente, o contexto ocidental da década
de 1960. A partir de análise sobre esses contextos socioculturais,
especificamente nos Estados Unidos da América da segunda
metade do século XX, procurou-se investigar como tais mudanças
perpassaram a prossecução de direitos LGBTQIAPN+, no Brasil.
Tais fenômenos serão abordados, principalmente, em sua relação às
homoparentalidades e sua abrangência como conceito discutido no
Direito de Família.
Nos apoiaremos na abordagem metodológica de cunho
qualitativo. Como forma de suscitar outros trabalhos na área – e
até mesmo pela pouca bibliografia sobre o assunto – este estudo
será de caráter exploratório, justamente por intuir e sugerir novas
hipóteses. Utilizaremos o método de pesquisa bibliográfica e
documental, já que almejamos a fundamentação do nosso estudo
através de jornais, revistas, periódicos e literatura sobre a temática,
a qual fornece diferentes contribuições ao assunto.
198 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Ampliação de direitos de casais homoafetivos no âmbi-


to nacional: descontinuidades e conquista dos direitos
civis

Obviamente, a resistência das populações não-


heteronormativas no cenário estadunidense, por exemplo,
impunham uma forma de organização aos grupos LGBTQIAPN+,
os quais enfrentaram uma forte onda de repressão policial. Evento
emblemático para a luta por direitos LGBTQIAPN+ - àquela
época, movimento gay - foi a Rebelião de Stonewall (1969)
(BLAKEMORE, 2021), episódio onde frequentadores de um
bar nova-iorquino se levantaram contra as constantes agressões
promovidas pelas forças de segurança. Tais abusos aos direitos
humanos eram dispensados aos clientes do bar Stonewall porque tal
público incluía pessoas gays, lésbicas, transgêneras, configurando-
se em violência de cunho discriminatório, fundada no ódio e na
homofobia.
É importante, mesmo que momentaneamente, avançarmos
um pouco no tempo para justificarmos a relevância da expressão
“crimes de ódio”, os quais já representavam uma complexa
correlação de forças, no final dos anos 1960. Atualmente, como
resultado dessa intensa mobilização das forças sociais, as violações
com base em intolerância e discriminação contra orientação
sexual e identidade gênero ensejaram, no Brasil, a configuração de
punibilidade no direito penal.
Foi assim que, em 2019, o Supremo Tribunal Federal
(STF) decidiu, após o julgamento de uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) de n.º 26, enquadrar os
crimes de homotransfobia no mesmo bojo da Lei do Racismo (Lei
7.716/1989) (STF ENQUADRA…, 2019). Tal morosidade do
Legislativo em proteger essa população historicamente marginalizada
(FERNANDES, 2019) motivou o voto favorável de grande parte
dos ministros à criminalização da LGBTQIAPN+fobia, no Brasil.
Entretanto, faz-se necessário relatar que a luta de pessoas que não
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 199

se enquadravam na cisheteronorma para terem seus direitos básicos


garantidos foi, inicialmente, uma resposta ao viés policialesco com
o qual tais cidadãos eram tratados. Comumente chamados de
“minorias”, integrantes do incipiente movimento gay compunham
tal comunidade para garantirem sua própria existência enquanto
indivíduos. Relegados ao status de “indesejados” (CARTER,
2004), os manifestantes de Stonewall tiveram que defender
uma das premissas básicas, o direito à vida, em uma sociedade
heteronormativa que os excluía (FERNANDES, 2019).
Nesta seara, intenta-se aqui, colaborar para o entendimento
de tais avanços que modificaram a situação jurídica e social de casais
do mesmo sexo no cenário nacional. Obviamente, não pretendemos
nos desprender do efervescente caldeirão dos conflitos sociais que,
de certa forma, fizeram do período histórico da década de 1960/70,
nos Estados Unidos, o baluarte da contestação política contra a
repressão sexual (ESCOFFIER, 2004). Procurara-se, também,
lançar um duplo olhar, o qual abarcará as mudanças jurídicas, mas
também culturais proporcionadas por essas conquistas, embora
muitas delas ainda não sejam amparadas por leis (ARAÚJO, 2021).
No período da ditadura militar, o Brasil vivencia o oposto dessa
abertura com forte perseguição às populações “transviadas”, como
eram chamadas as pessoas LGBTQIAPN+, na época (AMARAL;
FERNANDES, 2018). A possibilidade de ser um cidadão pleno
de direitos, e gozar da fruição de sua intimidade e sexualidade, era
fortemente tolhida (FÁBIO, 2017) pelo aparato estatal/militar dos
chamados “anos de chumbo” (LOURENÇO, 2020).
Fazendo essa conexão, podemos comparar os dois espaços,
constituindo-se uma análise entre os acontecimentos estadunidenses
e brasileiros. Na grande potência do Norte, tem-se uma gradativa
mudança nos objetivos que os movimentos sociais da libertação
sexual ambicionavam. Tal modificação, se justifica por uma ideia
de menos radicalização no tocante aos primeiros ideais daqueles
movimentos, quais sejam a extinção, por exemplo, do núcleo
familiar baseado no casamento heterossexual (BOUCAI, 2015).
Cumpre-se ressaltar, portanto, que esse caráter mais revolucionário
200 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

pós-Stonewall acaba cedendo espaço para uma postura mais


assimilacionista por parte dos movimentos LGBTQIAPN+
(HOFFMAN, 2007, p. 79-81).
Aqui no Brasil, os primeiros grupos que se juntariam
como forma de organização política, se valeram da mídia impressa
para expressar seus descontentamentos e contestações ao regime
ditatorial, em vigência (FÁBIO, 2017). Porém, as primeiras formas
de se pensar em algo semelhante a uma comunidade, origina-se com
os guetos onde gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros
se reuniam de forma mais segura. Espaços de socialização - mas
principalmente de clandestinidade - eram os principais ambientes
em que as pessoas marginalizadas por sua orientação sexual e
identidade de gênero poderiam se reunir (FÁBIO, 2017).
Podemos incluir aí bares e casas noturnas onde as
primeiras células de resistência dos grupos contestadores da
heterossexualidade compulsória (RICH, 2012) e da forte vigilância
sobre os costumes morais nas décadas de 1960/70, deram o pontapé
inicial a um incipiente movimento gay brasileiro. Não obstante,
faz-se necessário elencar outro acontecimento propulsor de uma
ampliação das pautas, inicialmente, “homossexuais”. Fábio (2017)
aponta para o aumento da participação feminina nos contextos de
agremiações políticas referentes à pauta LGBTIAPN+. O fenômeno
que engendrou uma maior reivindicação sobre as particularidades
das lésbicas, na seara ditatorial daquele período, foi marcado
por determinado evento que, constantemente, é considerado o
“Stonewall brasileiro”. Em 19 de agosto de 1983, o grupo Ação
Lésbica-Feminista (GALF) acessa o espaço comercial chamado
Ferro’s Bar, onde vinham, sistematicamente, sendo proibidas de
distribuir o jornal independente “Chanacomchana” (FÁBIO,
2017).
Tal publicação alternativa seguia a mesma linha do
“Lampião da Esquina”, que foi o precursor desse tipo de imprensa
que criticava a prisão arbitrária de lésbicas na década de 1980, mas
que contemplava, todavia, a situação dos homossexuais masculinos
naqueles anos de repressão. Gradativamente, o “Lampião” abre
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 201

mais espaço para a visão de mulheres lesbianas, entendendo que


as lutas por direitos e respeito deveriam abranger outras letras que
não fossem o “G” de gay. Portanto, a data de 19 de agosto fica
conhecida, posteriormente, como o Dia do Orgulho Lésbico, pela
Assembleia Legislativa de São Paulo (BIANCARELLI, 2003). Tal
data comemorativa quer aludir ao momento histórico em que
militantes lésbicas e feministas conseguiram driblar os seguranças
daquele determinado estabelecimento para realizar um ato
político. A manifestação, além de protestar contra a lesbofobia das
forças policiais da ditadura, objetivava, também, promover uma
conscientização social sobre as especificidades da população lésbica,
assim como problematizar o protagonismo - e certo machismo - de
homens gays (FÁBIO, 2017).
O ambiente pós-democratização causou certa fragmentação
de alguns movimentos sociais antes bem articulados na luta contra
a violência institucional dos governos militares, no Brasil (FÁBIO,
2017). Aqui, fazendo um contraponto ao movimento de libertação
gay estadunidense, vemos um esvaziamento da pauta LGBTQIAPN+
na sociedade brasileira (FÁBIO, 2017). Entretanto, após o lema
inicial da luta pelo movimento de liberação sexual ocidental, nos
anos 1970, ter sido o desmantelamento das estruturas patriarcais
presentes na família heterossexual, por exemplo, a AIDS surgiria
como o inimigo comum capaz de mobilizar o realinhamento
das comunidades LGBTQIAPN+. Dessa forma, Facchini (2003)
explicita tal rearranjo:
Nos primeiros anos da década de 1990, a ausência de
referências bibliográficas sobre a continuidade das atividades
desse movimento no Brasil era capaz de produzir a sensação
de que, de fato, o início da década de 1980 tivesse assistido
ao apogeu e fim de uma significativa, mas curta trajetória.
No entanto, por volta do início dos anos 1990, houve um
reflorescimento das iniciativas militantes. Quando iniciei
meu contato com ativistas e organizações do movimento
homossexual, em 1995, era possível notar que este movimento
sobrevivera ao processo de “redemocratização”, à falência de
seu modelo de organização comunitário e autonomista e ao
surgimento da AIDS (FACCHINI, 2003).
202 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Certamente, a epidemia de HIV/AIDS impulsiona, de certa


maneira, a batalha sociopolítica pelo fim da estigmatização do vírus
como algo inerente à comunidade LGBTQIAPN+, assim como os
entraves por políticas públicas que proporcionassem tratamento a
essa doença, a qual vitimou grande parcela dessa população, tanto
no Brasil e EUA como no mundo, em geral (FABIO, 2017). Pode-
se dizer, consequentemente, que, no cenário brasileiro, o contexto
da batalha contra o vírus da HIV/AIDS foi um dos principais
vetores de reaproximação da comunidade LGBTQIAPN+ para a
consolidação de direitos civis (FÁBIO, 2017).
Entretanto, o que pretende-se discutir neste trabalho é a
influência do histórico movimento homossexual (FACCHINI,
2003) e seu desdobramento no contexto dos direitos civis que
atendam a essa população, principalmente no contexto das
homoparentalidades. Esse último conceito fala por si só, mas abarca
inúmeras áreas desde o Direito, a Psicologia e as Ciências Sociais
para tratar dessa “nova” configuração de famílias em que casais do
mesmo sexo decidem vivenciar suas afetividades e criarem seus
filhos, extrapolando os conceitos de “pai” e “mãe” (LACERDA,
2017).
Quanto a questão das homoparentalidades, é interessante
mencionar a visão crítica trazida aqui por Lacerda (2017):
Sobre os casais homossexuais, Iacub (2005) acredita que eles
teriam uma tendência a reproduzir os modelos de sexualidade
não igualitários, ou seja, quereriam parecer com os casais
heterossexuais. A diferença é que o Estado se intromete
mais. Em sua análise, setores organizados do movimento gay,
não a população gay como um todo, têm certa tendência a
aderir a causas que vão contra os interesses da comunidade
homossexual mais ampla, mas que corroboram com seus
interesses institucionais mais diretos. Ela cita o exemplo no
qual eles defendem o reconhecimento das origens biológicas,
quando deveriam se posicionar a favor de uma artificialização
da filiação, que poderia atender melhor a seus interesses
(LACERDA, 2017, p. 81).
Porém, a intenção aqui é apenas problematizar, trazendo
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 203

uma das questões que estão abarcadas nas parentalidades de casais


do mesmo sexo. Não se quer criticar as pessoas LGBTQIAPN+
que desejam formar um núcleo familiar. Pelo contrário, desejamos
trazer à baila as mais diversas formas de se tratar a temática, mas
não perdendo o viés crítico acerca dos moldes tradicionais de
família que a sociedade heteronormativa elegeu como “normal”.
Afinal, os movimentos de liberação feminina e homossexual
na, década de 1960 (OLIVEIRA et. al, s. d.), eram embebidos
de contestações aos padrões monogâmicos e biologizantes de
relacionamentos conjugais. Tal expressão se dava, por exemplo,
pela forte participação do feminismo naquele cenário americano,
assim como um forte apelo anti-belicista, envolvendo os hippies e
a contracultura nas proposições de novos modelos de afetividades.
Contudo, as demandas dessas várias comunidades LGBTQIAPN+
vão se movimentando e se reformulando de acordo com o contexto
social, econômico e cultural. Destarte, é compreensível que uma
maior inserção dessa população tanto através de lutas sociais
travadas quanto pela sua ascensão como classe trabalhadora em um
modelo capitalista, incentivasse o desejo por direitos igualitários se
comparados às pessoas heterossexuais (LACERDA, 2017).
Por isso, retomamos o fenômeno do remodelamento do
então movimento “GLS” em torno da quebra do estigma HIV/
AIDS como uma “peste gay” (FACCHINI, 2003). Um movimento
desarticulado após a derrocada do inimigo comum, qual seja a alta
moralidade e o conservadorismo do Estado repressor, agora via o
(re)ssurgimento de antigas associações que militaram em prol de
sua cidadania levantando-se para amparar pessoas adoecidas por
aquele vírus que se espalhou de forma global (FÁBIO, 2017). Cabe
ressaltar que, além de ter sido um momento de recuperação do
ímpeto de lutas por ampliação de direitos, a participação de pessoas
travestis e transgêneras começa a ser ampliada com a criação de
grupos específicos para que se olhasse com mais atenção à sua
dupla marginalização, relativas à orientação sexual, mas também
à identidade de gênero (FÁBIO, 2017). A “Casa de Apoio Brenda
Lee” foi e continua sendo referência no auxílio à população trans,
204 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

e, no ápice da epidemia de HIV/AIDS, foi um espaço físico de


acolhimento às pessoas que apresentavam alguma vulnerabilidade
de saúde relacionada à doença (FÁBIO, 2017).
Remonta-se a trajetória de avanços e retrocessos no temário
LGBTQIAPN+ para chegar ao momento em que conquistas
importantes foram sendo obtidas no Direito. Muitas dessas vitórias
vão compor as fundamentações para que as homoparentalidades
pudessem ser exercidas como são atualmente, apesar do forte teor das
críticas de cunho tradicionalista endereçadas a essas configurações
familiares, como afirmam Oliveira e Lima (2019):
No caso da homoparentalidade, questiona-se também
frequentemente se a ausência do tradicional modelo
marcado por figuras do gênero masculino e feminino pode
eventualmente ocasionar efeitos danosos ao desenvolvimento
ou tornar confusa a própria identidade sexual da criança,
cogitando-se do “risco” de se tornar homossexual – como
se a homossexualidade fosse um traço problemático de
personalidade a ser repreendido (OLIVEIRA; LIMA, 2019).
Todavia - e apesar da forte corrente política anti-
LGBTQIAPN+ -, avanços foram obtidos no contexto nacional
como a união estável entre pessoas do mesmo sexo (SANTOS,
2011), em 2011, e, em 2013, decidiu-se que essa mesma união
estável poderia ser transformada em casamento civil (GARONCE,
2017). Daí, depreende-se uma série de resultados a favor da
comunidade LGBTIAPN+ como, por exemplo, a criminalização
da homotransfobia (STF ENQUADRA…, 2019). Apesar de
um ambiente mais favorável, ao menos em quesitos formais,
é imprescindível destacar que tais méritos foram concessões
da Justiça Brasileira. O que se quer explicitar aqui é que, assim
como a criminalização da LGBTQIAPN+fobia foi decorrente de
um julgamento no STF em virtude da morosidade do Congresso
Nacional em legislar sobre a questão, o mesmo ocorreu com as
decisões referentes casamento civil.
No Brasil que ocupa o 1º lugar entre os países do mundo
que mais matam as pessoas trans (EULER, 2023), tal demora da
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 205

Câmara Federal em legislar sobre um anseio desses cidadãos/ãs é


sintomático do véu tradicionalista que cobre a classe política, nos
dias de hoje. Assim, nessa seção, tentou-se remontar uma trajetória
de batalhas políticas, seus objetivos e delineamento de estratégias
dessa “maioria minorizada” (CONTARATO APLAUDE…,
2020), parafraseando o Senador Fabrício Contarato (REDE-ES),
que resiste às tentativas de apagamento. Outro fator na constante
vigília para se evitar o retrocesso nos direitos LGBTQIAPN+ já
garantidos é a possibilidade de adotar (DALLAL; NOGUEIRA,
2023) ou gerar seus próprios filhos através das mais diversas formas
pelas quais já são amparadas pela ciência moderna (LACERDA,
2023). Na próxima seção, objetiva-se aprofundar a questão das
homoparentalidades: seus conceitos, discussões acerca do tema e os
desafios impostos à garantia de direitos às famílias homoparentais.

A homoparentalidade e o direito de família

De acordo com a Constituição de 1988, a família tem


especial proteção do Estado (BRASIL, 1988). Para tanto, elenca
no capítulo VII, entre os arts. 226 e 229 uma série de direitos
pertencentes ao núcleo familiar brasileiro, atribuindo sua proteção
ao Estado e à sociedade. Neste sentido, denota-se que “o centro da
tutela constitucional deslocou-se do casamento, como era até então,
para as relações familiares, de uma forma mais ampla, tutelando-se,
primordialmente, a dignidade de seus integrantes” (OLIVEIRA,
2008). Dado esse contexto, o conceito de família deixou de ser
vinculado única e exclusivamente ao “casamento tradicional”, ou
seja, heteronormativo, ampliando-se assim as percepções acerca
da constituição familiar dentro de diversas perspectivas e como
resultado da propulsão dos debates desconstrutivos advindos da
sociedade contemporânea.
Nas palavras de Dias (2000), “a sociedade tem valores
culturais dominantes em cada época e um sistema de exclusões
muitas vezes baseado em preconceitos estigmatizantes”. Diante
disso, a sexualidade sempre foi um assunto considerado tabu
206 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

no contexto social brasileiro, começando a tomar espaço com o


advento da Constituição Cidadã de 1988 e com os movimentos
progressistas e democráticos nacionais em prol dessa causa. E, sendo
assim, como um fruto desta luta para reconhecimento de direitos
essenciais da comunidade LGBTQIAP+, surge o conceito de
“homoparentalidade” que será abordado nesta seção. Considerando
que o Direito da Família tem sido cada vez mais abrangente e está
se desvinculando dos preceitos patriarcais aos quais embasam sua
origem, a homoparentalidade refere-se à criação de filhos por casais
homossexuais, sendo eles casados ou em união estável, mas com o
desejo em comum de constituir uma família juntos.
Neste sentido, Dias (2000) explica que:
O Direito de Família recebe o influxo do Direito Constitucional,
sendo que o princípio da igualdade restou por fazer verdadeira
faxina nas discriminações que existiam no campo das relações
familiares. O núcleo do atual sistema jurídico que sustenta o
fundamento do Estado está posto de forma saliente no inc. III
do art. 1º, que é o respeito à dignidade humana, ocupando
uma posição privilegiada no texto constitucional.
A homoparentalidade carrega consigo a quebra de uma série
de paradigmas oriundos do pensamento patriarcal e que primam
pelo ideal da igualdade previsto constitucional. O maior debate
em torno do assunto trata-se da concepção de família diante da
visão conservadora em conflito com a realidade contemporânea,
muito mais abrangente e acolhedora. Ainda, coloca em pauta a
questão da sexualidade na sociedade em relação ao ato de conceber
um filho, tendo em vista que aborda um desejo de muitos casais
que, em virtude de biologicamente não serem capazes de conceber
uma criança, buscam auxílio de um terceiro para realizar um
sonho, podendo este ser tanto uma instituição como um indivíduo
enquanto pessoa física. No ponto de vista legal e filosófico, o
principal questionamento que se faz é de que, se todos são iguais
perante a lei, sem distinção qualquer acerca de sua natureza, não
deveria ser incluída a sexualidade de cada um também? (DIAS,
2000). E, como resposta a esta pergunta, o ordenamento jurídico
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 207

tem enfrentado cada vez mais dificuldades para estabelecer um


posicionamento coerente acerca do direito de igualdade às pessoas
integrantes da comunidade LGBTQIAP+. Neste sentido:
Qualquer discriminação baseada na orientação sexual do
indivíduo configura claro desrespeito à dignidade humana, a
infringir o princípio maior imposto pela Constituição Federal,
não se podendo sub-dimensionar a eficácia jurídica da eleição
da dignidade humana como um dos fundamentos do estado
democrático de direito. Infundados preconceitos não podem
legitimar restrições de direitos servindo de fortalecimento
a estigmas sociais e causando sofrimento a muitos seres
humanos. (DIAS, 2000, p. 5).
Com o avanço legal à luz desse assunto, Oliveira (2008)
descreve que é possível traçar um perfil das relações familiares
contemporâneas que se diferencia dos “modelos legais”, ou seja,
amparados pela lei, mas que apresentam características semelhantes
como afetividade, estabilidade e ostensibilidade: a) par andrógino,
sob regime de casamento, com filhos biológicos; b) par andrógino,
sob regime de casamento, com filhos biológicos e filhos adotivos,
ou somente com filhos adotivos, em que sobrelevam os laços de
afetividade; c) par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos
(união estável); d) par andrógino, sem casamento, com filhos
biológicos e adotivos ou apenas adotivos (união estável); e) pai
ou mãe e filhos biológicos (comunidade monoparental); f ) pai ou
mãe e filhos biológicos e adotivos ou apenas adotivos (comunidade
monoparental); g) união de parentes e pessoas que convivem em
interdependência afetiva, sem pai ou mãe que a chefie, como no
caso de grupos de irmãos, após falecimento ou abandono dos
pais; h) pessoas sem laços de parentesco que passam a conviver em
caráter permanente, com laços de afetividade e de ajuda mútua,
sem finalidade sexual ou econômica; i) uniões homossexuais, de
caráter afetivo e sexual; j) uniões concubinárias, quando houver
impedimento para casar de um ou de ambos companheiros, com ou
sem filhos; l) comunidade afetiva tomada com “filhos de criação”,
segundo generosa e solidária tradição brasileira, sem laços de filiação
natural ou adotiva regular. Ou seja, a pluralidade de famílias existe
208 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

e está ao alcance dos olhos de quem quer ver, basta apenas que
a legislação vigente consiga abranger essa diversidade e garantir
igualmente que os direitos familiares e civis sejam respeitados,
pois, afinal, o que deve ser considerado como mais importante é a
criação e o amor que serão oportunizados para as crianças dentro
de determinado núcleo familiar.
Ainda, no âmbito das relações homoafetivas, tem-se que
a possibilidade de constituir uma família sem enfrentar barreiras
legais e morais para isso, além de reafirmar o afeto conjugal e a
libertação de um desejo de vida. Sendo assim, Lustroza (2022)
explicita o seguinte:
E neste tocante também é necessário fazer um parêntese, não
se tratando apenas da luta pelo reconhecimento da existência
de fato de uma família homoparental, mas de toda e qualquer
família que fuja ao arquétipo de um casal heterossexual que
vive sob a égide de um contrato formal de casamento, muitas
vezes referendado culturalmente pela via da cerimônia religiosa
E continua em relação a crueldade por detrás da privação
do exercício da família homoparental: Privar um casal homoafetivo
desta experiência é uma crueldade que contraria todos os princípios
por sua vez da dignidade humana (LUSTROZA, 2022). Em virtude
deste cenário, tem-se que as possibilidades de criação de um núcleo
familiar composto por um casal homossexual se dão principalmente
pela reprodução assistida e pela adoção. O primeiro é reconhecido
pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que editou o provimento
nº 52, responsável por dispor sobre o registro de nascimento e
emissão da certidão de nascimento de crianças concebidas pela
reprodução assistida (BARROS; BARROS; FREITAS, 2018).
Já a adoção acaba sendo um caminho mais tortuoso de se
seguir. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não prevê,
em tese, qualquer impedimento quanto à prática da adoção por
casais homossexuais, visto que é exigido apenas que os adotantes
preencham os requisitos legais expostos no art. 39 e seguintes e
que tenham atingido a maioridade civil, ou seja, 21 anos de idade
(DIAS, 2000). Diante disso, muitos casais optam pela modalidade
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 209

monoparental, ou seja, onde apenas um deles atua como adotante


e se responsabiliza pelo adotando legalmente. Entretanto, essa
forma de adoção implica uma série de restrições no que concerne a
divisão de responsabilidades do casal perante a criança, em virtude
da ausência legal de um ordenamento que garanta que a adoção
por ambos os parceiros seja possível, tal qual ocorre nas relações
heterossexuais. Tal prática limitando o vínculo civil da criança com
seus adotantes, pois, legalmente, estará ligada a apenas um dos
indivíduos do casal enquanto o outro estará atuando por baixo dos
panos, para se proteger do iminente preconceito que ainda permeia
o ordenamento jurídico vigente (BARROS; BARROS; FREITAS,
2018). Essa limitação fere o princípio constitucional da igualdade
e da dignidade humana previsto na Constituição de 1988, além de
deixar a criança desamparada legalmente em caso de morte de um
dos pais, tendo em vista que não terá direito a pensão alimentícia
e previdenciária e, tampouco, o cônjuge vivo poderá desfrutar dos
benefícios civis que o casamento e a adoção permitem caso não
tenha figurado como adotante, o que mais desampara a criança do
que a protege (OLIVEIRA, 2008).
Para exemplificar esse conflito, passaremos a analisar algumas
jurisprudências que falem sobre o tema e como o ordenamento
jurídico brasileiro tem visto a questão da homoparentalidade
dentro do âmbito do Direito de Família.

Análise jurisprudencial da homoparentalidade

Considerando a dificuldade e disparidade que a legislação


brasileira trata, atualmente, o tema da homoparentalidade em
território nacional, esses obstáculos também refletem na maneira
como a jurisprudência aborda o assunto. É importante ressaltar que
o número de jurisprudências acerca do tema é bem escasso, estando
geralmente contidas em casos de Recursos Especiais movidos pelo
Ministério Público. Neste sentido, passaremos a analisar como a
problemática sobre o procedimento da divisão de guarda e partilha
de bens apontado na seção anterior é tratado pelos magistrados de
210 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

todo o país e qual a base argumentativa utilizada para defender


a tese apresentada em suas decisões. Ainda, cumpre destacar que
a maioria das jurisprudências encontra-se como matéria discutida
pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou pelo Supremo Tribunal
Federal (STF), sendo, de certa forma, incomum encontrar casos
regionais que debatam sobre o tema, considerando a repercussão
que ele gera dentro do Direito de Família, o que se reforça a
dificuldade que estas famílias e casais encontram para pleitear um
direito que deveria ser seu pelo simples princípio da dignidade
humana previsto constitucional e já mencionado no presente artigo.
Sendo assim, tem-se o Recurso Extraordinário (RE)
1199667/MT (BRASIL, RE 1199667/MT, 2011) julgado pelo
Ministro Felix Fischer, que relata uma ação de reconhecimento de
união homoafetiva post mortem para pleitear o direito do parceiro
sobrevivente em relação a divisão do patrimônio adquirido ao
longo do relacionamento entre a vítima e o autor da ação, bem
como a existência de um filho adotado pelo parceiro falecido.
Nesse sentido, a ministra Nancy Andrigui, no recurso especial que
embasou o extraordinário, descreve na ementa que:
1. Despida de normatividade, a união afetiva constituída entre
pessoas de mesmo sexo tem batido às portas do Poder Judiciário
ante a necessidade de tutela. Essa circunstância não pode ser
ignorada, seja pelo legislador, seja pelo julgador, que devem
estar preparados para regular as relações contextualizadas em
uma sociedade pós-moderna, com estruturas de convívio
cada vez mais complexas, a fim de albergar, na esfera de
entidade familiar, os mais diversos arranjos vivenciais. 2. Os
princípios da igualdade e da dignidade humana, que têm
como função principal a promoção da autodeterminação e
impõem tratamento igualitário entre as diferentes estruturas
de convívio sob o âmbito do direito de família, justificam o
reconhecimento das parcerias afetivas entre homossexuais
como mais uma das várias modalidades de entidade familiar.
(BRASIL, RE 1199667/MT, 2011).
Ou seja, este reconhecimento tanto discutido já é pleiteado
desde a década passada, dominando as discussões jurídicas sobre a
postura correta a ser adotada em casos como o exposto em tela. Dito
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 211

isso, percebe-se que a postura adotada pela ministra vai de encontro


com o pensamento humanitário por trás do debate da questão,
posicionamento este defendido pelos ativistas e juristas que apoiam
a causa. Seguindo, a decisão recorrida pelo Ministério Público
Federal foi favorável ao parceiro sobrevivente, reconhecendo a
união estável entre o casal homossexual e, por ter sido companheiro
da vítima e ter auxiliado na criação do seu filho adotivo, cabível que
o patrimônio seja compartilhado com o cônjuge vivo, bem como o
reconhecimento da constituição de núcleo familiar in casu.
Entretanto, como o preconceito é real e tangente na nossa
sociedade, o RE 1199667/MT teve como base a argumentação
de que estaria sendo violado o preceito constitucional previsto no
art. 226, §3º, onde descreve que só será reconhecido como núcleo
familiar aquele que composto por pessoas de sexos distintos,
além de tentar a todo custo minimizar a relação entre a vítima
e o companheiro, o que só evidencia que, embora seja papel do
procurador defender o seu cliente, também utiliza-se do Poder
Judiciário para apresentar um ponto de vista preconceituoso e
que apenas reforça o pensamento já homofóbico repercurtido
nacionalmente entre as pessoas (BRASIL, RE 1199667/MT,
2011). Todavia, o ministro Felix Fischer, ao relatar seu voto, afirma
que (BRASIL, RE 1199667/MT, 2011):
Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos
nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo
de sua orientação sexual. Os homossexuais, por tal razão,
têm direito de receber a igual proteção tanto das leis quanto
do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da
República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer
estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente
a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as
pessoas em razão de sua orientação sexual
Logo, podemos observar que, apesar do argumento falacioso
e carregado de um discurso de ódio já muito conhecido pela
comunidade LGBTQIAPN+, o ministro defende o posicionamento
humanitário abordado pela colega que julgou o recurso especial
originário, abordando que a discriminação é repudiada pela própria
212 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Constituinte e que o STF vem reconhecendo em suas decisões que


o afeto e a dignidade humana são princípios majoritários para
defender o núcleo familiar entre casais homoafetivos (BRASIL,
RE 1199667/MT, 2011). Diante disso, é possível analisar que,
apesar de todo o longo caminho percorrido e que todas as formas
de recursos possíveis sejam utilizadas para reverter uma decisão em
prol dos casais homoafetivos, o STJ e o STF tem decidido em favor
da causa e procurado reprimir qualquer maneira de propagação
do preconceito a comunidade ao reconhecer que o núcleo familiar
depende única e inteiramente da relação de afeto construída dentro
do ambiente da família e da saúde e felicidade da criança que está
neste meio.
Ainda, quanto à homoparentalidade, o Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, na Apelação Cível (AC) nº 70031574833/RS, o
desembargador André Luiz Planella Villarinho reconhece que existe
uma controvérsia em relação a este tema no âmbito jurisprudencial,
todavia, argumenta que não existe qualquer vedação legal expressa
que impeça a adoção homoparental, considerando que este é um
mecanismo para que mais crianças encontrem lares em que sejam
acolhidas e possam sentir-se pertencentes a uma família (RIO
GRANDE DO SUL, AC 70031574833, 2009). Neste sentido, o
desembargador argumenta que:
Embora a controvérsia na jurisprudência, havendo
possibilidade de reconhecimento da união formada por duas
pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, consoante
precedentes desta Corte, igualmente é de se admitir a adoção
homoparental, inexistindo vedação legal expressa à hipótese.
A adoção é um mecanismo de proteção aos direitos dos
infantes, devendo prevalecer sobre o preconceito e a discriminação,
sentimentos combatidos pela Constituição Federal, possibilitando,
desse modo, que mais crianças encontrem uma família que lhes
conceda afeto, abrigo e segurança. (RIO GRANDE DO SUL, AC
70031574833, 2009). Portanto, havendo sido comprovado que a
adoção será benéfica para a criança e que preencha os requisitos
estipulados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 213

há motivos legais para vedar que a adoção homoparental seja


realizada e enfrentar tantos empecilhos, o que demonstra que tais
dificuldades provêm de um respaldo muito mais moralístico e
ligado a concepções pessoais do que, de fato, pelo entendimento
do ordenamento jurídico vigente acerca do assunto.
Por fim, ainda sobre a partilha de bens post mortem,
no Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação Cível (AC)
nº 1008683-79.2017.8.26.0562/SP, a desembargadora Ana
Zomer reconheceu a existência de união estável entre a autora e
a falecida, inclusive anulando o inventário extrajudicial realizado,
argumentando que, devido ao conjunto probatório juntado no
processo, restou claro que ambas mantinham uma relação de
longa data e que tinham bens materiais juntas, apesar do explícito
preconceito e temor causado pelos seus familiares (SÃO PAULO,
AC 1008683-79.2017.8.26.0562, 2022). Neste sentido, esclarece
a desembargadora que:
Preconceito que é repudiado pela Carta Constitucional e
autoriza o reposicionamento do elemento da publicidade.
Adoção do critério do convívio público como norte para o
reconhecimento da união estável homoafetiva que constitui
criação de barreira indevida e nega à postulante o seu direito;
vale dizer, não se lhe faculta a exposição social por conta de
inaceitável preconceito, e, não podendo se revelar, fica impedida
de provar seu relacionamento, “lógica” minimamente cruel.
Presença das demais fórmulas insculpidas no artigo 1723 do
Código Civil. União homoafetiva acertadamente reconhecida.
Sentença mantida. Recurso não provido. (SÃO PAULO, AC
1008683-79.2017.8.26.0562, 2022).
Sendo assim, percebe-se que, apesar dos casos ainda serem
escassos dentro do contexto jurisprudencial e, na maioria das
vezes, são processos longos e que levam anos para se resolverem, os
próprios juristas têm admitido a controvérsia legal que existe em
torno do tema e vem adotando medidas que busquem priorizar a
dignidade humana por detrás das relações homoafetivas discutidas
e procurar focar sempre no bem da criança, quando são casos de
adoção homoparental, e no afastamento do preconceito para que
214 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

o cônjuge vivo possa usufruir dos bens deixados pelo companheiro


falecido, nos casos de partilha de bens.
Ainda, ressalta-se que esta é uma matéria discutida a anos
como podemos ver, visto que existem jurisprudências versando
sobre o tema desde 2009, ou seja, a luta não é de hoje para que o
Poder Judiciário e a legislação como um todo torne o processo de
constituição de núcleo familiar para casais homoafetivos muito mais
simples e primando pela justeza, tendo em vista que o preconceito
sexual é vedado pela própria Constituição, lei base de todas as
outras legislações, e que o afeto e a felicidade devem ser superiores
a meras questões burocráticas que estão pautadas em ideologias
arcaicas que não mais combinam com o contexto contemporâneo
no qual vivemos hoje.

Considerações finais

Através do presente trabalho, procurou-se correlacionar


as diversas nuances que perpassaram as lutas oriundas dos
movimentos de libertação sexual, mais especificamente no contexto
estadunidense. Porém, tais rupturas com certos paradigmas morais
e sociais engendraram uma onda de contestação política, a qual
abarca o contexto brasileiro em um período de forte repressão
ao movimento LGBTQIAP+. Infere-se, a partir de tais eventos,
uma assimilação de uma conduta mais política que reverbera nas
primeiras agremiações dos movimentos homossexuais brasileiros.
No contexto das homoparentalidades, conclui-se que, aproveitando
o ambiente de contracultura nos países desenvolvidos, deu-se a
centelha para as novas formas de se viver em família.
Obviamente, existiram momentos de ruptura e
descontinuidades, e a reivindicação por assimilação dos mesmos
moldes da constituição heterossexual de família nem sempre foi
o mote dos movimentos da década de 1960. Todavia, observou-
se a reorganização de uma identidade política nas inúmeras
comunidades LGBTIAPN+, quando a epidemia global de HIV/
AIDS, na década de 1980, vitimiza, também, grande parte dessa
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 215

população. Observa-se, do mesmo modo, lutas e pressões para


o sistema judiciário brasileiro, na seara do Direito da Família,
incorporar o entendimento de que famílias constituídas por dois
pais ou por duas mães recebam igual tratamento dispensado
aos núcleos convencionais que sempre abrangeram os lares
brasileiros. Nota-se que, mesmo com algumas jurisprudências
referentes a relacionamentos conjugais de pessoas do mesmo
sexo e sua reivindicação à parentalidade, os avanços culturais e a
impermanência do próprio conceito de “família” e “maternidade”
ainda não são suficientes para um entendimento uníssono da lei.

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Capítulo 11

A prisão domiciliar como instrumento de


efetivação da proteção à maternidade das
mulheres presas

Clarice Maria de Moura Assmann


Julia Patrícia Staub

Considerações iniciais

O s direitos sociais encontram-se positivados nos artigos


6ª a 11 da Constituição Federal de 1988 e, a partir
da garantia desses direitos, tem-se uma sociedade mais justa e
igualitária, logo, são considerados imprescindíveis para assegurar
a dignidade da pessoa humana. Entretanto, ainda que os direitos
fundamentais se encontrem positivados na Constituição Federal
de 1988, tal garantia, por si só, não soluciona a problemática
acerca da efetivação da proteção à maternidade enquanto direito
fundamental. Nesse sentido, questiona-se: de que forma a prisão
domiciliar contribuiu para a efetivação da proteção à maternidade,
enquanto direito fundamental, no sistema prisional brasileiro?
Desse questionamento, tem-se como hipótese que a
prisão domiciliar pode contribuir para a efetivação da proteção à
maternidade das mulheres presas, visto que as condições precárias
das prisões brasileiras não permitem o exercício da maternidade,
de modo que a prisão domiciliar surge como uma alternativa ao
encarceramento que permite à mulher presa exercer a maternidade,
sem deixar de ter a sua liberdade restrita.
Dessa forma, o presente estudo busca, como objetivo geral,
analisar a prisão domiciliar como instrumento de efetivação da
222 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

proteção à maternidade das mulheres presas. Para tanto, busca-


se satisfazer os seguintes objetivos específicos: estudar a proteção
à maternidade enquanto direito fundamental; analisar a situação
carcerária da mulher mãe no Brasil e; analisar a prisão domiciliar
como instrumentos de efetivação da proteção à maternidade das
mulheres presas.
Assim sendo, estrutura-se o trabalho em três capítulos, além
das considerações iniciais e das considerações finais. No primeiro
capítulo do presente estudo, analisa-se a proteção à maternidade
enquanto direito fundamental, o qual se dá a partir da concepção
dos direitos fundamentais sociais inseridos na Constituição Federal
de 1988.
No segundo capítulo, realiza-se a análise da situação da
proteção à maternidade dentro do sistema penitenciário brasileiro,
verificando as legislações atualmente existentes sobre o assunto,
em contraponto com os dados estatísticos e a realidade vivenciada
atualmente pelas mulheres dentro do sistema penitenciário
brasileiro.
No terceiro capítulo discute-se o problema do presente
estudo, qual seja, a prisão domiciliar como instrumento de
efetivação da proteção à maternidade das mulheres presas. Para
tanto, verifica-se os avanços legislativos relacionados a possibilidade
de substituição do cárcere pela prisão domiciliar, especialmente em
relação ao Habeas Corpus Coletivo nº 143541, o qual impactou,
posteriormente, no surgimento da Lei n. 13.769/2018.
A temática desta pesquisa é relevante e imprescindível,
tendo em vista que aborda questões que envolvem a dignidade
da pessoa humana, princípio que fundamenta e legitima o Estado
Democrático de Direito e tem como finalidade o fomento do
estudo acerca da ausência de condições adequadas para o exercício
da maternidade dentro do sistema penitenciário brasileiro.
A metodologia que se adota, na presente pesquisa, consiste
no método de abordagem dedutivo, uma vez que se parte de uma
contextualização e abordagem geral da proteção a maternidade e,
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 223

após, a pesquisa é direcionada para pontos específicos de estudo.


Além disso, aplicam-se as técnicas de pesquisa bibliográfica e
documental, especialmente através de artigos científicos, livros,
relatórios e legislação competente.

Proteção à maternidade enquanto direito fundamental

O interesse em definir um direito como fundamental, no


Brasil, se dá por consequência da extrema proteção e efetivação
judicial que referidos direitos possuem, uma vez que, por força do art.
5º, §1º, da Constituição Federal de 1988, os direitos fundamentais
possuem aplicação imediata, isso quer dizer, não se faz necessário
regulamentação para serem efetivados, são diretamente vinculantes
e plenamente exigíveis.
Ainda, por força do art. 60, §4º, inciso IV, da Constituição
Federal de 1988, os direitos fundamentais são cláusulas pétreas,
ou seja, não podem ser abolidos nem mesmo por meio de emenda
constitucional.
As cláusulas pétreas possuem hierarquia constitucional, isto
é, a efetivação de um direito fundamental, não pode ser dificultada,
tampouco impedida. Dessa forma, se uma lei estiver em referida
situação, essa lei poderá ser declarada inconstitucional.
Os direitos fundamentais possuem conteúdo ético, são
valores básicos para uma vida digna em sociedade e, nesse contexto,
estão intimamente vinculados à ideia de dignidade da pessoa
humana e à limitação do poder.
Sendo assim, os direitos fundamentais possuem conteúdo
normativo, não é qualquer valor que pode ser enquadrado nessa
categoria, somente aqueles valores que o povo formalmente
reconheceu como merecedores de uma proteção normativa, ou
seja, aqueles valores positivados no ordenamento constitucional de
determinado Estado Democrático de Direito. À vista disso, pode-
se afirmar que a fonte dos direitos fundamentais é a Constituição,
consequentemente, não há direitos fundamentais decorrentes de leis,
224 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

mas essas podem disciplinar o exercício deles (MARMELSTEIN,


2014, p. 15-17).
Os direitos fundamentais são características marcantes
do Constitucionalismo Contemporâneo, surgem com o Estado
Democrático de Direito e, no Brasil, a Constituição Federal
reservou um capítulo específico para positivar os direitos do
homem, tornando-os direitos fundamentais. Entretanto, os direitos
fundamentais não são valores imutáveis e eternos, são valores
dinâmicos e estão em constante evolução.
Bobbio (2004, p. 33), ao explicar o processo da multiplicação,
o qual não será aprofundado, pois não é objeto do presente estudo,
presta algumas considerações sobre as relações entre direitos do
homem e sociedade, sobre a origem social dos direitos do homem,
sobre a estreita conexão existente entre mudança social e nascimento
de novos direitos.
Bobbio (2004, p. 34) acentua que:
Com relação ao terceiro processo, a passagem ocorreu do
homem genérico — do homem enquanto homem — para o
homem específico, ou tomado na diversidade de seus diversos
status sociais, com base em diferentes critérios de diferenciação
(o sexo, a idade, as condições físicas), cada um dos quais revela
diferenças específicas, que não permitem igual tratamento e
igual proteção. A mulher é diferente do homem; a criança,
do adulto; o adulto, do velho; o sadio, do doente; o doente
temporário, do doente crônico; o doente mental, dos outros
doentes; os fisicamente normais, dos deficientes, etc. Basta
examinar as cartas de direitos que se sucederam no âmbito
internacional, nestes últimos quarenta anos, para perceber esse
fenômeno: em 1952, a Convenção sobre os Direitos Políticos
da Mulher; em 1959, a Declaração da Criança; em 1971, a
Declaração dos Direitos do Deficiente Mental; em 1975, a
Declaração dos Direitos dos Deficientes Físicos; em 1982,
a primeira Assembleia Mundial, em Viena, sobre os direitos
dos anciãos, que propôs um plano de ação aprovado por uma
resolução da Assembleia da ONU, em 3 de dezembro.

No entendimento de Bobbio (2004, p. 9), os direitos do


Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 225

homem são direitos históricos, pois nascem de circunstâncias,


sendo essas caracterizadas por meio de “lutas em defesa de novas
liberdades contra velhos poderes” e surgem, progressivamente, ou
seja, não nascem todos de uma só vez e, sim, quando devem nascer.
Todavia, considerando que os direitos humanos são construídos de
acordo com as lutas do homem e seu reconhecimento e proteção
são resultantes de uma progressiva e longa história, pode-se dizer
que eles são consolidados por meio da evolução e alguns retrocessos
da sociedade. Assim, cronológica e doutrinariamente, deu-se
o reconhecimento e a positivação dos direitos fundamentais em
gerações ou dimensões.
a) a primeira geração dos direitos seria a dos direitos civis e
políticos, fundamentados na liberdade (liberté), que tiveram
origem com as revoluções burguesas;
b) a segunda geração, por sua vez, seria a dos direitos
econômicos, sociais e culturais, baseados na igualdade (égalité),
impulsionada pela Revolução Industrial e pelos problemas
sociais por ela causados;
c) por fim, a última geração seria a dos direitos de solidariedade,
em especial o direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio
ambiente, coroando a tríade com a fraternidade (fraternité), que
ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, especialmente
após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
(MARMELSTEIN, 2014, p. 37, grifos do autor).
Os direitos sociais fundamentais são catalogados como
direitos de segunda dimensão, são direitos que nascem da evolução
do Estado de Direito para o Estado democrático e social de
Direito. No entendimento de Silva (2005, p. 286-287), os direitos
sociais “são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta
ou indiretamente”. Além disso, referidos direitos “possibilitam
melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem
a realizar a igualização de situações sociais desiguais”. São, dessa
forma, direitos que se vinculam ao direito de igualdade. Nas palavras
do autor, são direitos que atuam “como pressupostos do gozo dos
direitos individuais, na medida em que criam condições materiais
mais propícias ao auferimento da igualdade real”, proporcionando
226 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

à pessoa humana condições com maior compatibilidade à prática


efetiva da liberdade.
A Constituição Federal de 1988 alterou, de forma
significativa, a exposição dos direitos fundamentais, especialmente
quando, em vários dispositivos constitucionais, os denominou
de direito à saúde, direito ao lazer, direito à moradia, proteção à
maternidade, proteção à infância, entre outros. No Brasil, outras
Constituições dispuseram sobre referidos direitos, contudo, de
forma fragmentada. A Constituição Federal de 1988 introduz os
direitos sociais no título adequado, isso quer dizer, são positivados
através do texto constitucional, tornando-se direitos fundamentais,
não sendo caracterizados como meras normas-programa.
Após um longo período de omissão do Estado no que
tange aos direitos sociais, em especial à proteção à maternidade,
a Constituição Federal de 1988 representou um momento repleto
de perspectivas favoráveis aos direitos sociais. Os movimentos
sociais ganham força a partir da Constituição Federal de 1988,
dentre os direitos sociais, à proteção à maternidade, pois esta
possui inúmeras funções relevantes, dentre outras, evidencia-se
que a proteção à maternidade transcende a vida da gestante e de
sua família, trazendo a renovação das gerações e, por isso, é um
assunto de interesse e importância universal. Ademais, a inserção
da proteção à maternidade no rol dos direitos fundamentais sociais
impede qualquer prática que comprometa os direitos e garantias
já alcançados relativos ao tema, a título de exemplo, o direito de
amamentação.
Os direitos sociais encontram-se positivados nos artigos
6ª a 11 da Constituição Federal de 1988 e, a partir da garantia
desses direitos, tem-se uma sociedade mais justa e igualitária,
logo, são considerados imprescindíveis para assegurar a dignidade
da pessoa humana. Entretanto, o direito fundamental social à
maternidade é tratado como se pouco houvesse importância pelos
constitucionalistas brasileiros quando não absolutamente esquecido
nos estudos desenvolvidos em relação aos direitos fundamentais.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 227

Pode-se dizer que o direito à vida influencia a proteção à


maternidade, pois não seria possível a vida sem o processo reprodutivo
adequado, ou seja, a vida humana depende, essencialmente, do
amparo e cuidados oferecidos às mulheres no período gestacional.
Portanto, o amparo oferecido às mulheres gestantes garante a
viabilidade da reprodução humana, sendo, dessa maneira, muito
mais que um cuidado com a mulher, mas a preservação da espécie
humana. Dessa forma, a proteção à maternidade é considerada um
direito irrenunciável e não pode ser, por exemplo, afastado pelo
desconhecimento ou também por negligência do Estado, pois tal
circunstância poderá causar prejuízos ao recém-nascido.

O encarceramento feminino e a violação à maternidade


no Brasil

A maternidade, tratando-se de um direito fundamental, deve


ser protegida pelo Estado, de modo que todas as mulheres devem
poder exercê-la, inclusive as que se encontram encarceradas. Nesse
sentido, diversas legislações asseguram direitos para que mulheres
possam exercer a maternidade dentro do sistema prisional.
Dentre as normas que regulam o convívio da mulher
encarcerada com o seu filho, destaca-se a Lei nº 7.210/84, a Lei de
Execuções Penais. Conforme o artigo 82, §1º, da LEP, as mulheres
serão recolhidas a estabelecimentos prisionais adequados à condição
pessoal. Ainda, o artigo 83, §2º, da referida legislação dispõe que
os estabelecimentos destinados a mulheres deverão ser dotados de
berçário, possibilitando que as presas cuidem dos seus filhos até, no
mínimo, os 6 meses de idade (BRASIL, 1984).
Outro direito previsto expressamente na Lei nº 7.210/84 se
refere a previsão de seção para gestantes e parturientes, bem como
creches para abrigar crianças maiores de 6 meses e menores de 7
anos. Conforme o artigo 89, “caput”, da LEP, os estabelecimentos
prisionais de mulheres serão dotados de seção para gestante e
parturiente, bem como de creche para abrigar crianças maiores de
228 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

6 meses e menores de 7 anos, com o intuito de assistir a criança


desamparada cuja mãe ou responsável estiver presa (BRASIL,
1984).
Quando se fala sobre a proteção do exercício da maternidade
dentro do sistema prisional, importante mencionar também as
Regras de Bangkok, consistentes regras das nações unidas para o
tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade
para mulheres infratoras, o qual o Brasil assumiu o compromisso
internacional de cumprir. As regras 48 a 52 tratam especificamente
de mulheres gestantes, com filhos/as e lactantes na prisão (CNJ,
2016). A regra 52, por exemplo, dispõe que:
1. A decisão do momento de separação da mãe de seu filho
deverá ser feita caso a caso e fundada no melhor interesse
da criança, no âmbito da legislação nacional pertinente. 2.
A remoção da criança da prisão deverá ser conduzida com
delicadeza, e apenas quando alternativas de cuidado da criança
tenham sido identificadas e, no caso de presas estrangeiras,
com consulta aos funcionários/as consulares. 3. Uma vez
separadas as crianças de suas mães e colocadas com familiares
ou parentes, ou sob outras formas de cuidado, serão oferecidas
às mulheres presas o máximo de oportunidades e condições
para encontrar-se com seus filhos e filhas, quando estiver
sendo atendido o melhor interesse das crianças e a segurança
pública não for comprometida (CNJ, 2016).
Outras legislações também estabelecem disposições
importantes relacionadas ao exercício da maternidade no cárcere
como a Constituição Federal, o Código de Processo Penal, o
Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como a Resolução nº 3
do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
Contudo, apesar de existirem diversos direitos previstos
legalmente, o problema está na realidade que é vivenciada pelas
mães encarceradas. O Brasil é o país com a terceira maior população
feminina encarcerada no mundo, ficando atrás somente dos Estados
Unidos e da China (FRAIR; WALMSLEY, 2022). Nos últimos
anos, é possível visualizar um aumento significativo no número de
mulheres presas no Brasil. No início dos anos 2000, menos de 6
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 229

mil mulheres se encontravam no sistema prisional. Já em 2016, foi


atingida a marca de 42 mil mulheres presas, o que representa um
aumento de 656% no período (INFOPEN Mulheres, 2018).
O despreparo do sistema penitenciário em relação às
singularidades femininas, bem como às precárias condições das
prisões, que acarretam a consequente violação de inúmeros direitos,
restou evidenciada, nos últimos anos, em virtude do aumento do
número de mulheres presas (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2020). Esse
despreparo fica evidente ao se analisar dados do levantamento de
Informações Penitenciárias, os quais demonstram que apenas 55
unidades em todo o país declararam apresentar cela ou dormitório
para gestante, ou seja, apenas 16% das unidades prisionais
(INFOPEN Mulheres, 2018). Diante disso, apenas metade
do número de mulheres gestantes e lactantes se encontram em
unidades que declararam possuir celas adequadas para recebê-las
(INFOPEN Mulheres, 2018).
Ademais, constata-se que apenas 14% das unidades
femininas ou mistas possuem berçário e/ou centro de referência
materno-infantil, o que indica uma capacidade limitada de fornecer
um espaço adequado para que as mulheres privadas de liberdade
possam manter contato com seus filhos e oferecer cuidados durante
o período de amamentação (INFOPEN Mulheres, 2018). Em
relação ao número de espaços de creche, destinados para receber
crianças acima de 2 anos, apenas 3% das unidades prisionais do País
declararam possuir, somando uma capacidade total para receber até
somente 72 crianças (INFOPEN Mulheres, 2018).
Já em relação ao perfil das mulheres presas, verifica-se que
50% têm entre 18 e 29 anos e 74% possuem filhos e/ou filhas
(INFOPEN Mulheres, 2018). No que tange aos crimes cometidos
pelas mulheres, a maioria delas responde por crimes praticados
sem violência, sendo o tráfico de drogas o crime mais recorrente,
responsável pela prisão de 62% das mulheres (INFOPEN Mulheres,
2018).
Os dados demonstram a realidade extremamente difícil na
230 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

qual vivem as mulheres encarceradas. Essa realidade já testemunhou


casos de partos ocorrendo em celas de isolamento sem qualquer
assistência médica, com a parturiente algemada e sem a presença de
familiares. Além disso, há uma ausência completa de cuidados pré-
natais, resultando na transmissão evitável de doenças graves, como
a sífilis, aos filhos (BRASIL, 2018b).
A falta de escolta para consultas médicas também é comum,
resultando em partos realizados em celas, corredores ou até mesmo
nos pátios das prisões. Além disso, são relatados abusos no ambiente
hospitalar, isolamento, ociosidade, separação abrupta entre mães e
filhos, e a manutenção de crianças em celas, entre outras atrocidades
(BRASIL, 2018b).
A condição de estar presa e ser mãe torna-se, portanto,
uma experiência duplamente penosa. Além da penalidade primária
imposta à mulher pelo delito cometido, a penalidade secundária,
que pode ser ainda mais severa para as mulheres, busca privá-las de
sua condição materna. Isso se manifesta através da restrição de um
convívio adequado com seus filhos ou até mesmo pela proibição de
tê-los (BUDÓ; GIULIANI; KOHELER, 2019).
Dessa forma, apesar de existirem legislações visando a
proteção ao exercício da maternidade das mulheres encarceradas,
resta evidente que, na prática, o seu exercício é violado dentro
do sistema prisional, diante da falta de condições adequadas nas
prisões.
De acordo com a pesquisa “Dar à luz na sombra: condições
atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade
por mulheres em situação de prisão”, realizada em parceria com o
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é possível afirmar
que as penitenciárias femininas brasileiras apresentam variações
significativas em relação aos seus níveis de garantia de direitos,
infraestrutura e organização, com algumas sendo mais avançadas do
que outras. No entanto, constata-se que nenhuma delas opera em
total conformidade com os parâmetros legais vigentes, destacando-
se especialmente as Regras de Bangkok e a Lei n.7.210/84 no
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 231

contexto brasileiro (BRAGA, 2019).


Diante da ausência de condições adequadas no sistema
penitenciário brasileiro, mostra-se fundamental a busca de
ferramentas alternativas ao encarceramento que possibilitem que
as mulheres presas possam exercer, de forma efetiva, o seu direito à
maternidade.

A prisão domiciliar como instrumentos de efetivação da


proteção à maternidade das mulheres presas

Resta claro que nos últimos anos ocorreram importantes


avanços, principalmente legislativos, no sentido de assegurar que
as mães encarceradas possam exercer o seu direito à maternidade.
Contudo, apesar dos avanços, o sistema penitenciário brasileiro
se encontra muito distante do que está previsto normativamente
(OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2020). A falta de espaços adequados
para o convívio entre mães e filhos, somada a separação forçada
entre eles, acaba por constituir uma forma de penalizar novamente
a mulher pelo cometimento de um crime, de modo que ela tem
privada não apenas a sua liberdade, mas também a possibilidade de
exercer a maternidade (BUDÓ; GIULIANI; KOHELER, 2019).
Os dados analisados demonstram que o sistema carcerário
brasileiro não possui condições adequadas para custodiar mulheres
mães de forma adequada, de modo que o direito à maternidade das
mulheres que cumprem pena dentro das prisões não é respeitado.
Nesse cenário, a prisão domiciliar surge como uma alternativa
adequada, tendo em vista que a garante tanto a proteção ao
exercício da maternidade, quanto os direitos da criança, na medida
em que afasta a criança do sistema carcerário e, ao mesmo tempo,
assegurando a convivência familiar com a genitora (OLIVEIRA;
OLIVEIRA, 2020).
A prisão domiciliar consiste em uma medida cautelar, para a
fase processual, possibilitando o cumprimento da prisão preventiva
em residência, fora do cárcere fechado, de onde somente pode o
232 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

sujeito sair com autorização judicial (NUCCI, 2016).


A possibilidade de substituição da prisão preventiva pela
prisão domiciliar no caso de gestantes e mulheres com filho até 12
anos passou a estar expressamente prevista no Código de Processo
Penal a partir da Lei 13.257/2016, também conhecida como
Estatuto da Primeira Infância, a qual regulou aspectos práticos
relacionados à prisão preventiva da gestante e da mãe encarcerada.
Com a entrada em vigor da referida legislação, o art. 318 do Código
de Processo Penal passou a dispor que “poderá o juiz substituir
a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: [...] IV
- gestante; V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade
incompletos.” (BRASIL, 2016).
Contudo, apesar de passar a estar legalmente prevista
essa possibilidade, a cultura do encarceramento e a mentalidade
punitivista acabaram dificultando a efetivação desses direitos e
resultando a não substituição da prisão da prisão preventiva pela
prisão domiciliar nos casos práticos (BACKES; LOPES, 2019). Na
prática, o verbo “poderá” constante na redação do artigo 318 do
Código de Processo Penal trazida pela Lei 13.257/2016 deixava
margem para discricionariedade do magistrado, que, na maioria
dos casos, optava pela não aplicação da prisão domiciliar (BRASIL,
2018b).
Diante dessa situação, o Coletivo de Advocacia em Direitos
Humanos impetrou, o Habeas Corpus Coletivo nº 143.641, em
favor de todas as mulheres presas preventivamente que ostentem
a condição de gestantes, de puérperas ou de mães de crianças sob
sua responsabilidade, bem como em nome das próprias crianças
(BRASIL, 2018b). Os autores do Habeas Corpus argumentaram
que o confinamento de mulheres grávidas em estabelecimentos
prisionais precários, por meio da prisão preventiva, constitui
tratamento desumano, cruel e degradante, que viola os postulados
constitucionais relacionados à individualização da pena, à vedação
de penas cruéis e, ainda, ao respeito à integridade física e moral da
presa, na medida em que subtrai o acesso da mulher a programas
de saúde pré-natal, assistência regular na gestação e no pós-parto,
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 233

bem como privando as crianças de condições adequadas ao seu


desenvolvimento (BRASIL, 2018b).
Ao julgar o Habeas Corpus, o Relator Ministro Ricardo
Lewandowski, em seu voto, reconheceu que mulheres grávidas
e mães de crianças, bem como as próprias crianças, estão
efetivamente sujeitas a situações degradantes na prisão (BRASIL,
2018b). Após analisar narrativas e dados estatísticos, muitos dos
quais foram abordados no capítulo anterior, o Ministro concluiu
que há um descumprimento sistemático de regras constitucionais,
convencionais e legais referentes aos direitos das presas e de seus
filhos (BRASIL, 2018b).
Diante disso, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal
prolatou, na sessão do dia 20 de fevereiro de 2018, decisão histórica
ao conceder o Habeas Corpus Coletivo nº 143.641, a fim de evitar
a arbitrariedade judicial e a sistemática supressão de direitos,
determinando a substituição da prisão preventiva pela domiciliar
de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de
crianças e deficientes relacionadas no processo pelo DEPEN e
outras autoridades estaduais (BRASIL, 2018b).
Na decisão, foi feita a ressalva de que ela não se aplica aos
casos em que o crime foi praticado com violência ou grave ameaça
contra os próprios descendentes ou em situações excepcionais que
deverão ser fundamentadas pelo magistrado (BRASIL, 2018b).
Ainda, foi estabelecido o prazo de 60 dias para que os Presidentes
dos Tribunais Estaduais e Federais implementassem a decisão,
sendo reforçado que:
Os juízes responsáveis pela realização das audiências de
custódia, bem como aqueles perante os quais se processam
ações penais em que há mulheres presas preventivamente,
deverão proceder à análise do cabimento da prisão, à luz das
diretrizes ora firmadas, de ofício. Embora a provocação por
meio de advogado não seja vedada para o cumprimento desta
decisão, ela é dispensável, pois o que se almeja é, justamente,
suprir falhas estruturais de acesso à Justiça da população presa
(grifo próprio) (BRASIL, 2018b).
234 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Válido ressaltar que o Ministro Relator, em seu voto para


a concessão do Habeas Corpus, concluiu que tanto do ponto de
vista da proteção dos direitos humanos quanto de uma perspectiva
utilitarista, não há justificativa para manter a atual condição de
privação imposta às mulheres presas e suas crianças. O Ministro
reforçou que as mulheres presas e suas crianças não perderam sua
cidadania, apesar da lamentável situação em que se encontram
(BRASIL, 2018b).
Após o Habeas Corpus Coletivo, ocorreu uma importante
atualização legislativa, consistente na aprovação da Lei n.
13.769/2018, que incluiu os artigos 318-A e 318-B no Código de
Processo Penal. O artigo 318-A possui a seguinte redação (BRASIL,
2018a):
Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante
ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com
deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que:
I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça
a pessoa;
II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.
Percebe-se que a redação do novo artigo trouxe a substituição
da palavra “poderá” por “será”, deixando claro que a substituição
da prisão preventiva por prisão domiciliar nos casos de mulher
gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas
com deficiência não se trata de mera faculdade do magistrado, mas
de imposição legal que possui como intuito a proteção do direito
à maternidade e à primeira infância, devendo o benefício ser
concedido a todos os casos que preencham os critérios estabelecidos
(ITTC, 2019).
Por outro lado, em relação a substituição da execução de
condenação definitiva em prisão domiciliar, em regra, somente é
admitida ao preso do regime aberto, quando se tratar maior de 70
anos, portador de doença grave, ou mulher gestante ou mãe de
menor ou deficiente físico ou mental, conforme disposto no artigo
117 da LEP (BRASIL, 1984).
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 235

Contudo, em casos excepcionais, o Superior Tribunal


de Justiça tem admitido a possibilidade de concessão da prisão
domiciliar às presas dos regimes fechado e semiaberto. Nesse sentido,
a Terceira Seção do STJ permitiu que uma mulher condenada a nove
anos de reclusão por tráfico de drogas e associação para o tráfico,
que vinha cumprindo pena em regime fechado, fosse transferida
para a prisão domiciliar (BRASIL, 2022). No caso, a condenada
possuía filhos de dois e seis anos de idade, os quais moravam em
um município distante 230km do presídio mais próximo com
capacidade para receber detentas, o que acabava por impedir o
contato entre a mãe e as crianças e, consequentemente, violava o
direito ao exercício da maternidade (BRASIL, 2022).
Percebe-se que, portanto, que a jurisprudência do STJ tem
se orientado no sentido de que deve ser dada interpretação extensiva
ao Habeas Corpus coletivo n. 143.641, bem como ao art. 318-A
do Código de Processo Penal, no sentido de autorizar também a
concessão de prisão domiciliar às rés em execução provisória ou
definitiva da pena, ainda que em regime fechado (BRASIL, 2020).
Dessa forma, considerando que o Estado não fornece
condições adequadas para o exercício da maternidade dentro
do sistema penitenciário, vislumbra-se que a efetiva proteção a
esse direito só será alcançada por meio da aplicação de medidas
alternativas à prisão, de forma que esteja assegurada a convivência
familiar entre a genitora e o seu filho e, ao mesmo tempo, ocorra
o afastamento da criança do sistema carcerário (OLIVEIRA;
OLIVEIRA, 2020).
Verifica-se, diante do exposto, que a aplicação da prisão
domiciliar se mostra uma ferramenta adequada para a problemática
apresentada, ao menos como um primeiro passo para uma
significativa redução dos problemas enfrentados pelas mulheres
mães presas no Brasil atualmente (BACKES; LOPES, 2019).
236 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Considerações finais

O presente estudo buscou ampliar os debates sobre


a proteção à maternidade enquanto direito fundamental e a
prisão domiciliar como instrumento de efetivação da proteção à
maternidade de mulheres presas.
Passou-se, dessa formar, a analisar a proteção à maternidade
enquanto direito fundamental, o qual se deu a partir da concepção
dos direitos fundamentais sociais inseridos na Constituição
Federal de 1988. Entretanto, verificou-se que ainda que os direitos
fundamentais se encontrem positivados na Constituição Federal de
1988, tal garantia, por si só, não solucionou a problemática acerca
da efetivação da proteção à maternidade, em especial das mulheres
presas.
Ainda, analisou-se a situação carcerária da mulher mãe no
Brasil, sendo verificado que, apesar de existirem legislações prevendo
diversos direitos para as mulheres que são mães e se encontram
encarceradas, na prática a realidade é outra. Dentro das prisões, o
direito à maternidade acaba sendo violado, diante das condições
inadequadas dos presídios no Brasil atualmente.
Por fim, verificou-se que a prisão domiciliar surgiu como um
instrumento de efetivação da proteção à maternidade das mulheres
presas, uma vez que possibilita que a pena imposta à mulher seja
cumprida, sem que ocorra a privação do convívio familiar entre
mãe e filho e, consequentemente, possibilitando o pleno exercício
da maternidade.
Assim sendo, pode-se responder afirmativamente o
problema de pesquisa proposto, qual seja: de que forma a prisão
domiciliar contribuiu para a efetivação da proteção à maternidade
de mulheres presas? Pode se afirmar que a prisão domiciliar se mostra
uma ferramenta adequada para garantir a efetivação da proteção a
maternidade no sistema prisional, na medida em que possibilita o
cumprimento da prisão, ao mesmo tempo em que possibilita que as
mulheres tenham assegurado o exercício da maternidade.
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 237

As atuais condições das prisões brasileiras são degradantes e


não possibilitam o exercício da maternidade, de modo que a prisão
domiciliar se mostra uma alternativa adequada para a problemática
apresentada.

Referências

BACKES, Ana Paula; LOPES, Karina Camargo Boaretto.


Maternidade no sistema prisional: dispositivos legais e possíveis
alternativas ao encarceramento. Revista Da Defensoria Pública
Da União, n. 12. jan./dez. 2019, p. 327-343. Disponível em:
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fulldisplay?docid=TN_cdi_crossref_primary_10_46901_
revistadadpu_i12_p327_343&context=PC&vid=CAPES_
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SISTEMA%20PRISIONAL:%20DISPOSITIVOS%20
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BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução: Carlos Nelson
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BRAGA, Ana Gabriela. Dar à luz na sombra: exercício da
maternidade na prisão. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2019.
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BRASIL. Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as
políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei no 8.069,
de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente),
238 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de


Processo Penal), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, a
Lei no 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei no 12.662, de 5
de junho de 2012. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ Ato2015-2018/2016/
Lei/L13257.htm. Acesso em: 25 jun. 2023.
BRASIL. Lei nº 13.769, de 19 de dezembro de 2018. Altera
o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de
Processo Penal), as Leis nos 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei
de Execução Penal), e 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos
Crimes Hediondos), para estabelecer a substituição da prisão
preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for
mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência e
para disciplinar o regime de cumprimento de pena privativa de
liberdade de condenadas na mesma situação. Brasília, DF: Senado
Federal, 2018a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ Ato2015-2018/2018/Lei/L13769.htm. Acesso em: 25
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas
Corpus n° 145.932 - MG. Relator Ministro Sebastião Reis
Júnior. Brasília, DF: 2022. Disponível em: https://processo.stj.
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tipo=integra&documento_sequencial=147844974&registro_
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NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal
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primary_10_31994_rvs_v12i1_722&context=PC&vid=CAPES_
V3&lang=pt_BR&search_scope=default_
scope&adaptor=primo_central_multiple_fe&tab=default_
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pris%C3%A3o%20domiciliar&offset=0. Acesso em: 25 jun.
2023.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional
positivo. 25. ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.
Sobre os/as autores/as

Analice Schaefer de Moura: Professora do Curso de Direito


da Faculdade Dom Alberto. Mestre e graduada em Direito pela
Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Especialista em
Aprendizagem Ativa pela Universidade do Vale do Taquari -
UNIVATES.

Cíntia Eloísi da Silva: Acadêmica do 5ª semestre do Curso de


Bacharelado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul
(UNISC). E-mail: cintia.eloisi@gmail.com

Clarice Maria de Moura Assmann: Mestra em Direito pela


Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Pós-Graduada em
Direito Civil e Direito do Trabalho pela IMED. Graduação em
Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Advogada.
Pesquisadora do grupo de pesquisa: Relações de trabalho na
contemporaneidade. Endereço eletrônico: claricemouraassmann@
gmail.com. Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.
br/3859148175412149. Endereço para acessar ORCID: https://
orcid.org/0000-0001-9753-7899.

Deise Brião Ferraz: Doutoranda no Programa de Pós-Graduação


em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), na
linha de pesquisa Diversidade e Políticas Públicas, com bolsa
PROSUC/CAPES. Mestra em Direito e Justiça Social pelo
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do
Rio Grande (FURG), com bolsa CAPES/DS. Líder de pesquisa do
CNPq/FURG no grupo Direito Sistêmico e Métodos Adequados
de Resolução de Conflitos. Membra do Grupo de Estudos do
CNPq Direito, Cidadania e Políticas Públicas do PPGD da
UNISC. Bacharela em Direito e Jornalismo. Psicanalista. E-mail:
deisebferraz@gmail.com
242 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Etyane Goulart Soares: Doutoranda em Direito pelo Programa


de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do
Sul (PPGD/UNISC), com bolsa PROSUC/CAPES, Modalidade
II. Mestra em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social
(UNICRUZ). Especialista em Docência no Ensino Superior.
Bacharela em Direito. Pesquisadora no grupo de Pesquisa “Direito,
Cidadania e Políticas Públicas” (PPGD/UNISC). E-mail:
etyanesoares@hotmail.com

Fabio Fabricio Silva: Mestre em Direito pelo Programa de Pós


Graduação da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC
(CAPES 5); Especialista em Metodologia do Ensino da Filosofia
(PUC-GO); Especialista em Inteligência e Gestão da Segurança
Pública; Especialista em Ontologia, Conhecimento e Linguagem
na História da Filosofia (UFAC).; Graduado em Filosofia, Serviço
Social e Direito Integrante do Grupo de Pesquisas Direito, Cidadania
& Políticas Públicas coordenado pela Profa Pós- -Dra. Marli
Marlene Moraes da Costa, ligado ao Programa de Pós- Graduação
em Direito - Mestrado e Doutorado da UNISC e certificado pelo
CNPq. Professor da Faculdade Católica da Amazônia. E-mail:
fabriciofabio@hotmail.com

Fernando Oliveira Piedade: Professor de Direito do IFSP. Doutor


em Direito pela UFBA. Mestre em Direito pela UNISC. E-mail:
fernando.piedade@ifsp.edu.br

Georgea Bernhard - Mestranda em Direito pelo Programa da Pós-


Graduação em Direito Mestrado e Doutorado da Universidade de
Santa Cruz do Sul - UNISC, área de concentração em Direitos
Sociais e Políticas Públicas, na Linha de Pesquisa Políticas Públicas
de Inclusão Social, com bolsa PROSUC/CAPES, modalidade II.
Graduada em Direito pela mesma universidade. Pós-graduada em
Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais – PUC/MG, integrante do Grupo de Estudos Direito,
Cidadania e Políticas Públicas da UNISC, vinculado ao PPGD
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 243

da UNISC. Endereço eletrônico: georgeabernhard@hotmail.


com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5679853940621472
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5980-7584

Júlia Della Nina Reichel: Advogada. Pós-Graduada em Direito


de família e sucessões pela Universidade de Santa Cruz do Sul.
Pesquisadora no grupo de pesquisa Direito, Cidadania e Políticas
Públicas (PPGD/UNISC). E-mail: juliadnreichel@gmail.com.

Julia Patrícia Staub: Mestranda no Programa de Pós-Graduação


em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC na
linha de Políticas Públicas de Inclusão Social. Pós-graduada em
Direito Penal e Processual Prático Contemporâneo pela UNISC.
Bacharela em Direito pela UNISC. Integrante do Grupo de Pesquisa
em Direito, Cidadania e Políticas Públicas vinculado ao PPGD/
UNISC. Endereço eletrônico: julia_staub@hotmail.com. Endereço
para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/2899996599823147.

Junia Nunes Hasselmann: Graduanda do Curso de Direito


Faculdade Dom Alberto-FDA.

Letícia da Fontoura Tomazzetti: Mestra em Direito pela


Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), na linha de Pesquisa
de Políticas Públicas de Inclusão. Pós-Graduada em Gestão Jurídica
Empresarial pela instituição Verbo Jurídico. Graduada em Direito
pela Universidade Franciscana (UFN). Membra do Grupo de
Pesquisa Direito, Cidadania e Políticas Públicas, registrado junto
CNPq. E-mail para contato: leticiatomazzetti@gmail.com.

Luana Elisa Funck Kothe: Pós-graduada em Direito Civil e


Processo Civil pela instituição Verbo Jurídico. Pós-graduada em
Direito Previdenciário e Processo Previdenciário pela Faculdade
Damásio Educacional. Integrante do Grupo de Pesquisas Direito,
Cidadania & Políticas Públicas coordenado pela Profa Pós- -Dra.
Marli Marlene Moraes da Costa, ligado ao Programa de Pós-
244 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado da UNISC e


certificado pelo CNPq. Advogada OAB/RS 109.698. E-mail:
luana-funck@hotmail.com

Lucas Otesbelgue Henes: Bacharel em Relações Internacionais


pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Acadêmico
do 1ª semestre do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail:
lucashenn6@gmail.com

Luise Pereira Herzog: Advogada. Mestranda em Direito e


Justiça Social na Universidade Federal do Rio Grande-FURG.
Pós-Graduada em Processo Civil pela Faculdade Dom Alberto.
Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos
Humanos (NUPEDH/FURG) e do Grupo de Pesquisa do CNPq:
Direito, Gênero e Identidades Plurais (DGIPLUS/FURG). E-mail:
luisepherzog@gmail.com.

Marli Marlene Moraes da Costa - Doutora em Direito pela


Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, com Pós
Doutoramento em Direitos Sociais pela Universidade de Burgos-
Espanha, com Bolsa Capes. Professora da Graduação, Mestrado e
Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul-RS-
UNISC. Coordenadora do Grupo de Estudos Direito, Cidadania
e Políticas Públicas. MBA em Gestão de Aprendizagem e Modelos
Híbridos de Educação. Especialista em Direito Processual Civil.
Psicóloga com Especialização em Terapia Familiar Sistêmica.
Membro do Conselho do Conselho Consultivo da Rede de
Pesquisa em Direitos Humanos e Políticas Públicas. Membro
do Núcleo de Estudos Jurídicos da Criança e do Adolescente –
NEJUSCA/UFSC. Membro do Conselho Editorial de inúmeras
revistas qualificadas no Brasil e no exterior. Autora de livros e
artigos em revistas especializadas. ORCID: http://orcid.org/0000-
0003-3841-2206 E-mail: marlim@unisc.br
Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas 245

Nariel Diotto: Doutoranda em Direito pela Universidade de


Santa Cruz do Sul (UNISC), com bolsa PROSUC/CAPES.
Mestra em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social
pela Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). Especialista em
Ensino da Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
e em Direito Constitucional pela Faculdade Cidade Verde (FCV).
Bacharela em Direito (UNICRUZ). Graduanda em História
(UFPel). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Cidadania
e Políticas Públicas (UNISC) e do Grupo de Pesquisa Jurídica
em Cidadania, Democracia e Direitos Humanos (UNICRUZ).
Professora e advogada. E-mail: nariel.diotto@gmail.com

Simone Andrea Schwinn: Doutora em Direito pelo Programa


de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do
Sul (PPGD/UNISC). Mestra em Direito pelo Programa de Pós
Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul
(PPGD/UNISC). Pós-Doutora em Educação pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade de Santa Cruz do Sul
(PPGEdu/UNISC). Pesquisadora no grupo de Pesquisa “Direito,
Cidadania e Políticas Públicas” (PPGD/UNISC) e no grupo de
Pesquisa “Identidade e Diferença na Educação” (PPGEdu/UNISC).
Integrante do Núcleo de Pesquisas em Migrações da Região Sul
(MIPESUL) e do Grupo de Trabalho em Apoio a Refugiados e
Imigrantes (GTARI/UNISC). Professora da Escola Superior de
Relações Internacionais (ESRI). E-mail: ssimoneandrea@gmail.
com

Stéffani das Chagas Quintana. Mestranda no Programa de


Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do
Sul – UNISC, na linha de Políticas Públicas de Inclusão Social,
com bolsa PROSUC/CAPES na modalidade I. Pós-graduada em
Direito da Mulher pela Faculdade Legale. Pós-graduada em Direito
do Trabalho pela Faculdade Dom Alberto. Bacharela em Direito
pela Faculdade Dom Alberto. Integrante do Grupo de Pesquisa
em Direito, Cidadania e Políticas Públicas, vinculado ao PPGD/
246 Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

UNISC. E-mail: steffaniquintana@hotmail.com

Theodoro Luís Mallmann de Oliveira: Servidor público do


Ministério da Justiça e Segurança Pública (PRF). Pós-graduado em
Direito Tributário (UFRGS). Especialista em Direito Processual
Civil (Anhanguera). Especialização em Direito do Trabalho
(Unopar). E-mail: supertheodoro@gmail.com

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