Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas: November 2021

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Diálogos de gênero: perspectivas contemporâneas
Book · November 2021

DOI: 10.46550/978-65-88362-89-1
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3 authors, including:
Nariel Diotto Roana Goularte

University of Santa Cruz do Sul Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ)
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Bibiana Terra
Nariel Diotto
Roana Funke Goularte
(Organizadoras)
DIÁLOGOS DE GÊNERO
PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS
Editora Ilustração
Cruz Alta – Brasil
2021
Copyright © Editora Ilustração
Editor-Chefe: Fábio César Junges

Revisão: Os autores
CATALOGAÇÃO NA FONTE
D536 Diálogos de gênero : perspectivas contemporâneas /
organizadoras: Bibiana Terra, Nariel Diotto, Roana Funke
Goularte. - Cruz Alta : Ilustração, 2021.
331 p. ; 21 cm
ISBN 978-65-88362-89-1
DOI 10.46550/978-65-88362-89-1

1. Mulheres - Direito. 2. Feminismo. 3. Desigualdade de
gênero. 4. Direitos humanos. I. Terra, Bibiana (org.). II. Diotto,
Nariel (org.). III. Goularte, Roana Funke (org.).

CDU: 396.2
Responsável pela catalogação: Fernanda Ribeiro Paz - CRB 10/ 1720
2021
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora
Ilustração
Todos os direitos desta edição reservados pela Editora Ilustração
Rua Coronel Martins 194, Bairro São Miguel, Cruz Alta, CEP 98025-057
E-mail: eilustracao@gmail.com
www.editorailustracao.com.br
Conselho Editorial
Drª. Adriana Maria Andreis UFFS, Chapecó, SC, Brasil

Drª. Adriana Mattar Maamari UFSCAR, São Carlos, SP, Brasil
Drª. Berenice Beatriz Rossner Wbatuba URI, Santo Ângelo, RS, Brasil
Dr. Clemente Herrero Fabregat UAM, Madri, Espanha
Dr. Daniel Vindas Sánches UNA, San Jose, Costa Rica
Drª. Denise Tatiane Girardon dos Santos FEMA, Santa Rosa, RS, Brasil
Dr. Domingos Benedetti Rodrigues SETREM, Três de Maio, RS, Brasil
Dr. Edemar Rotta UFFS, Cerro Largo, RS, Brasil
Dr. Edivaldo José Bortoleto UNOCHAPECÓ, Chapecó, SC, Brasil
Drª. Elizabeth Fontoura Dorneles UNICRUZ, Cruz Alta, RS, Brasil
Dr. Evaldo Becker UFS, São Cristóvão, SE, Brasil
Dr. Glaucio Bezerra Brandão UFRN, Natal, RN, Brasil
Dr. Gonzalo Salerno UNCA, Catamarca, Argentina
Dr. Héctor V. Castanheda Midence USAC, Guatemala
Dr. José Pedro Boufleuer UNIJUÍ, Ijuí, RS, Brasil
Drª. Keiciane C. Drehmer-Marques UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Dr. Luiz Augusto Passos UFMT, Cuiabá, MT, Brasil
Drª. Maria Cristina Leandro Ferreira UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil
Drª. Neusa Maria John Scheid URI, Santo Ângelo, RS, Brasil
Drª. Odete Maria de Oliveira UNOCHAPECÓ, Chapecó, SC, Brasil
Drª. Rosângela Angelin URI, Santo Ângelo, RS, Brasil
Drª. Salete Oro Boff IMED, Passo Fundo, RS, Brasil
Dr. Tiago Anderson Brutti UNICRUZ, Cruz Alta, RS, Brasil
Este livro foi avaliado e aprovado por pareceristas ad hoc.

SUMÁRIO
Prefácio��13
Estela Cristina Vieira de Siqueira
Apresentação��19
Bibiana Terra
Nariel Diotto
Capítulo 1
Compreensões sobre questões de gênero na Educação Infantil:
práticas docentes��25
Adriane Bonatti
Estéfani Barbosa de Oliveira Medeiros
Roberta Casarin Peruzzolo
Willian Edson Tomasi
Capítulo 2
Gênero e saúde no Ensino Médio: os desafios da pesquisa em
tempos de pandemia��45
Náthaly Zanoni Luza
Eliane Cadoná
Capítulo 3
Psicologia e gênero: reflexões sobre saúde mental e
masculinidades��59
Adriane Bonatti
Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte
Capítulo 4
Por uma epistemologia feminista no ensino do Direito��81
Nariel Diotto
Tiago Anderson Brutti
Elizabeth Fontoura Dorneles
Capítulo 5
O conflito quanto ao uso de vestiários por transgêneros e
transexuais e a colisão de direitos fundamentais��101
Júlia da Silva Mendes
Capítulo 6
A contribuição do Lobby do Batom para o texto constitucional
de 1988��119
Letícia Maria de Maia Resende
Capítulo 7
Igualdade vs liberdade: uma análise da evolução dos direitos das
mulheres no Brasil após a promulgação da Constituição Federal
de 1988��137
Bianca Tito
Bibiana Terra
Wendell Antônio R. de Andrade
Capítulo 8
Do tanque ao palanque: a resistência feminina e suas conquistas
político-sociais��157
Carin Otília Kaefer Lisbôa
Maria Brendler Nosvitz
Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas
Capítulo 9
A inserção da mulher no cenário político a partir da óptica do
feminismo negro ��177
Fabrício da Silva Aquino
Isadora Nogueira Lopes
Raquel Buzatti Souto
Capítulo 10
Assédio sexual e as desigualdades patriarcais de gênero no
ambiente de trabalho��195
Capítulo 11
A proteção ao trabalho da mulher��213
Isadora Marques Simões
Mariana Lopes Diegues
Capítulo 12
O trabalho do cuidado e as diversas formas de ser mulher:
uma análise do trabalho doméstico a partir de um olhar
interseccional��227
Thamiris Cristina Rebelato
Capítulo 13
Direitos Humanos, gênero e raça: uma análise da convenção sobre
a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher
(CEDAW)��245
Bibiana Terra
Bianca Tito
Capítulo 14
Tecnologia e violência de gênero: tecendo espaço de prevenção na
internet��265
SOBRE OS AUTORES��281
Prefácio
Como podemos garantir que esse padrão histórico se rompa?

Enquanto defensoras e ativistas dos direitos das mulheres de nosso
tempo, devemos começar a fundir esse duplo legado a fim de criar
um continuum único, que represente de modo sólido as aspirações
de todas as mulheres da nossa sociedade. Devemos começar a
criar um movimento de mulheres revolucionário e multirracial,
que aborde com seriedade as principais questões que afetam as
mulheres pobres e trabalhadoras.
(Mulheres Cultura e Política1 - Angela Davis)
O terreno das desigualdades de gênero é árido e percorre

inúmeras camadas das sociedades, sobretudo para
países em desenvolvimento. Compreende-se que as questões que
envolvem o tema não se limitam apenas às designações dicotômicas
do sexo biológico, mas ao próprio ser mulher - um reflexo de
milênios de opressão, seja de gênero ou, ainda, opressão colonial,
fundada na ideia de dominação.
A legislação internacional alça a igualdade entre mulheres
e homens a status de prioridade, enquanto direito humano
fundamental à própria existência de uma sociedade harmônica,
sem discriminação e voltada ao desenvolvimento, tendo entrado no
sistema internacional através da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, ao afirmar que todos os seres humanos nascem iguais2, sem
discriminações de qualquer sorte, inclusive de sexo.
Muito se construiu desde então, quanto à necessidade de
se garantir mecanismos de igualdade entre os gêneros, para além
da mera designação anatômica. Nas últimas décadas, menos
meninas foram submetidas ao casamento infantil, mais meninas
foram à escola. Mais mulheres tiveram seus direitos reprodutivos
1 DAVIS, Angela. Mulheres, Cultura e Política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.
2 OHCHR. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://
www.ohchr.org/en/udhr/documents/udhr_translations/por.pdf Acesso em: 05 jul.
2021.
14
assegurados, menos mulheres tiveram suas vozes tomadas diante

de abusos.
No entanto, ainda, há consideráveis discrepâncias salariais, de
oportunidades. Inúmeros países falham em criar e/ou implementar
legislações de combate e repressão à violência doméstica. Milhões
de meninas são submetidas anualmente à Mutilação Genital
Feminina. E, segundo dados o Unicef3, enquanto permanecemos
subrepresentadas politicamente, em todas as esferas, 1 a cada 5
meninas e mulheres entre 15 a 49 anos reportaram ter sofrido
algum tipo de violência física ou sexual ao longo dos 12 meses que
antecederam a pesquisa, de 2017.
As Nações Unidas tomaram para si, na Agenda 2030, a
obrigação de se fazer cumprir, como Objetivo do Desenvolvimento
Sustentável, até o fim da presente década, a igualdade de gênero
e o empoderamento de todas as meninas e mulheres. Uma meta
ambiciosa, considerando-se que as desigualdades sofridas por se
nascer mulher na atualidade são asseveradas por um contexto global
que ainda luta para romper com uma lógica colonial e eurocêntrica
contra a qual a própria ONU falha em criar mecanismos para
superá-la. As circunstâncias que oprimem mulheres em países em
desenvolvimento são distintas daquelas que oprimem mulheres em
países desenvolvidos.
Kimberlé Crenshaw4, ao desenvolver a concepção de
interseccionalidades, brinda a literatura feminista com elementos
para compreender como as identidades políticas e sociais de
uma mulher interferem diretamente na forma como a opressão
do patriarcado operará sobre ela: se é cis, trans, branca, negra,
LGBTQI+, em uma coleção de particularidades de classe, origem e
raça que nos confrontam diariamente com as limitações do próprio
3 UNICEF. A Familiar Face: Violence in the lives of Children and Adolescents.

Division of Data, Research and Policy, November 2017. Disponível em: https://
www.unicef.org/bulgaria/media/1511/file/BGR-violence-in-the-lives-of-children-
and-adolescents-en.pdf
4 CRENSHAW, Kimberle. Mapping the margins: Intersectionality, identity politics,
and violence against women of color. Stan. L. Rev., v. 43, p. 1241, 1990.
15
Feminismo e das teorias que o cercam.

É necessário, mais do que em qualquer outro momento na
história, repensar o feminismo sob a perspectiva da justiça social,
que nasce no seio da interseccionalidade, compreendendo as
desigualdades raciais, de orientação sexual ou a luta de classes. Um
feminismo que não esconda, não inviabilize e não cale vozes lançadas
pelo capitalismo à violência, à segregação, ao encarceramento e à
morte. Porque o liberalismo também é fruto do patriarcado5.
E esse patriarcado branco e ocidental afeta, inclusive em
sociedades onde o patriarcado, como o conhecemos, não possui
tanta influência assim, como na sociedade yorubá pré-colonial6,
uma percepção que somente foi possível a partir do advento do
feminismo decolonial, de María Lugones7, trazendo todas as
outras perspectivas esquecidas por um capitalismo eurocêntrico, de
onde surge, sim, o patriarcado, e que se reflete em teorias de um
feminismo liberal, que ignora corpos racializados.
E ainda assim, seguimos, mais questionadoras e
constantemente questionadas, em um mundo cuja reformulação é
palavra de ordem - o que é trazido à luz por inúmeras crises, como
a atual pandemia da década de 20 e a crise democrática que assola
o mundo Ocidental. Se Beauvoir nos disse que basta uma crise
política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam
5 “Homens privilegiados foram os geradores do liberalismo e de sua ontologia

individualista de pessoas. Não pode ser considerado, de maneira séria, uma
coincidência que os homens, que muitas vezes são mais livres para funcionar de forma
autônoma (isto é, relativamente intocados pelas necessidades das famílias, crianças e
comunidade), também sejam os principais criadores e administradores de instituições
contemporâneas que incentivam uma ênfase em individualismo, produtividade
e competição extremos entre pessoas, em vez de uma ênfase na comunidade, no
cuidado e na conexão entre as pessoas - uma ênfase que é comum - na verdade,
geralmente necessária - em vidas caracteristicamente femininas.” (tradução nossa) In:
CALLAHAN, Joan C.; ROBERTS, Dorothy E. A feminist social justice approach to
reproduction-assisting technologies: A case study on the limits of liberal theory. Ky.
LJ, v. 84, p. 1197, 1995. p.1206.
6 HOLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista hoje: perspectivas
decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. p.20.
7 LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas,
v. 22, p. 935-952, 2014.
16
questionados, talvez esteja posto à atual geração um dos momentos

ímpares na história da humanidade na qual, poucas vezes antes, a
discussão sobre gênero tenha sido tão relevante.
Na presente obra, de uma condução ímpar na literatura
temática sobre Feminismo no Brasil, a saúde, a democracia e as
múltiplas identidades de gênero são centrais aos 14 textos que
aqui se seguem, trazidos brilhantemente por essas pesquisadoras e
pesquisadores da nova geração do Direito Brasileiro.
Enfrentar questões como: a participação de mulheres na
academia, a importância da educação sexual, refletir a toxicidade da
opressão do masculino também sobre os homens, o reconhecimento
de identidades não-binárias de gênero, bem como mulheres trans,
travestis e intersex no feminismo, e o feminismo negro, conversam,
na mesma obra, com a abordagem filosófica da reconstrução do
ser mulher na sociedade, sua participação nos processos políticos
- como a Constituinte de 1987-88, sua voz na representatividade
democrática, sua inclusão no mercado de trabalho, sua relação
com as novas tecnologias e o quanto já se avançou legislativa e
politicamente, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
de 1948.
Ser mulher não é um conceito estável8, mas que se modifica
historicamente, e o convite de prefaciar a presente obra se faz uma
honra e um desafio: como mulher cis e branca, recorro à literatura
para não cometer incorreções, tanto quanto minha parca percepção
de mundo permite, até porque nem mesmo a representação mulher
subsiste ao questionamento da representatividade, em todas as
camadas que o tornar-se mulher9, política, social e identitariamente,
enseja.
8 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de

Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2018.
9 “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico,
econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o
conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o
castrado, que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir
um indivíduo como um Outro” In: BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009. p.307.
17
O feminismo não pode e não deve ter pretensão de

universalidade, mas sim uma visão individualizada, sempre que
possível, pois há inúmeras trajetórias invisibilizadas por uma
narrativa única, e é esse um dos principais desafios da nova geração
de feministas.
Com a solenidade que o dever de prefácio me encerra,
mas com o carinho de uma amiga que dá as boas-vindas à essa
obra, introduzo vocês aos textos que se seguem, ciente de todas as
interfaces dos múltiplos feminismos nos apresentam nas próximas
páginas. Espero que contribua com a sua visão de mundo tanto
quanto contribuiu com a minha.
Para Marielle Franco e a próxima geração de Marielles.
Estela Cristina Vieira de Siqueira

Apresentação
A ideia de organizar este livro, “Diálogos de Gênero:

Perspectivas Contemporâneas”, se deu a partir da vontade
de fomentar e influenciar pesquisadoras e pesquisadores que escrevem
e discutem gênero, feminismo, direitos das mulheres, sexualidades
e teoria feminista, entre outras temáticas que envolvem os diálogos
de gênero. No entanto, essa publicação não se apresenta apenas da
vontade de fomentar esse debate, mas, também, da percepção de
que esta é uma discussão fundamental para a academia brasileira
contemporânea.
Desse modo, o critério que nos orientou na seleção dos
textos que compõem os capítulos deste livro foi o de mostrar os mais
diferentes diálogos de gênero em variadas áreas do conhecimento.
Assim, nesta obra podem ser identificados desde textos que discutem
os direitos das trabalhadoras brasileiras, os seus direitos políticos e
garantias constitucionais, até aqueles que apresentam abordagens
acerca de educação e gênero, saúde e gênero, reflexões sobre saúde
mental e masculinidades, tecnologia e gênero, os direitos de pessoas
transgêneros e questões que envolvem intersecções de raça e classe,
para além da opressão de gênero.
Nesse sentido, a presente obra é composta por quatorze
capítulos, escritos por homens e mulheres de diferentes regiões
do Brasil e oriundos de variadas áreas do conhecimento, que se
propõem a contribuir, cientificamente, para os diálogos de gênero
e perspectivas contemporâneas no país.
O primeiro capítulo da obra tem como título Compreensões
sobre questões de gênero na Educação Infantil: Práticas docentes
e foi escrito por Adriane Bonatti, Estéfani Barbosa de Oliveira
Medeiros, Roberta Casarin Peruzzolo e Willian Edson Tomasi. O
texto traz reflexões feitas por meio da análise bibliográfica do Portal
da Capes por artigos publicados nos últimos 10 anos que falem
sobre questões de gênero dentro da Educação Infantil e como se
20
dão as práticas docentes diante do tema. A pertinência do assunto

é vista diante dos resultados: a escola não se identifica enquanto
corresponsável pelo processo de ensino-aprendizagem e práticas
docentes são pouco exploradas acerca da temática.
Na sequência, o segundo capítulo, de autoria de Náthaly
Zanoni Luza e Eliane Cadoná tem como título Gênero e saúde no
ensino médio: os desafios da pesquisa em tempos de pandemia e os seus
escritos fazem parte de uma pesquisa maior cujo objetivo consistiu
em investigar sentidos de Identidade de Gênero, Orientação Sexual
e Saúde exercitados por professores e professoras do Ensino Médio
de uma cidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, a fim
de evidenciar e problematizar os possíveis desdobramentos desses
nos processos de subjetivação dos/as estudantes.
O terceiro capítulo que compõe a obra é intulado de
Psicologia e gênero: reflexões sobre saúde mental e masculinidades
e tem como autoras Adriane Bonatti e Náthaly Zanoni Luza.
O texto apresenta uma análise de práticas discursivas sobre as
masculinidades, principalmente de dois importantes materiais:
“Seja homem: a masculinidade desmascarada” e “Saúde mental,
gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação”,
duas obras recentes que abordam os modos de subjetivação por
intermédio dos dispositivos de gênero na contemporaneidade.
Por uma epistemologia no ensino do direito é o quarto
capítulo e tem como seus autores Nariel Diotto, Tiago Anderson
Brutti e Elizabeth Fontoura Dorneles. O estudo tem como objetivo
analisar a necessidade de inserção de uma epistemologia feminista
no ensino do Direito de forma a contribuir para a formação de
profissionais aptos a reconstruir os papéis da mulher na sociedade
contemporânea. O estudo é qualitativo e exploratório, com base
em pesquisa bibliográfica. Os principais resultados indicam que
as epistemologias feministas podem ressignificar o Direito, sendo
uma ferramenta de emancipação e não de subjugação das mulheres.
Na sequência, a autora Julia da Silva Mendes assina o quinto
capítulo, que tem como título O conflito quanto ao uso de vestiários
21
por transgêneros e transexuais e a colisão de direitos fundamentais.

O texto aborda que as novas identidades sexuais estabelecem
uma inovação na conjuntura social e cultural, desconstruindo
comportamentos até então padronizados e hegemônicos. Neste
contexto foram analisados os comportamentos sociais, em razão do
modelo binário de gênero, e o posicionamento da jurisprudência
a respeito da colisão de direitos fundamentais existente quanto ao
uso de vestiários por transgêneros e transexuais.
A contribuição do lobby do batom para o texto constitucional de
1988, de autoria de Letícia Maria de Maia Resende constitui o sexto
capítulo da obra e traz um ensaio expositivo acerca da participação
das mulheres no processo constituinte de 1987-88 que elaborou
a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada no
dia 5 de outubro de 1988. O foco do trabalho consiste na análise
do Lobby do Batom, que contribuiu de maneira substancial aos
trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Ademais, foram
abordadas as demandas das mulheres e as conquistas consolidadas
no texto constitucional vigente.
A seguir, o sétimo capítulo é assinado pelos autores Bibiana
Terra, Bianca Tito e Wendell Antônio R. de Andrade e tem como
título Igualdade x Liberdade: Uma análise da evolução dos direitos
das mulheres no Brasil após a promulgação da Constituição Federal
de 1988. O texto teve como objetivo geral analisar o papel das
mulheres na sociedade brasileira a partir das evoluções normativas
ocorridas a partir da Constituição Federal de 1988 e do papel da
representatividade política feminina. O artigo foi desenvolvido a
partir de revisão da legislação vigente no Brasil, de forma com que
sua relevância acadêmica consiste na análise da evolução normativa
a partir de 1988.
Maria Eduarda Bendler Nosvitz e Carin Otilia Kaefer
Lisboa são as autoras do oitavo capítulo que compõe a obra e que
tem como título Do tanque ao palanque: a resistência feminina e suas
conquistas político-sociais. O texto refere-se à resistência feminina
e suas conquistas político-sociais. Trata-se de uma pesquisa
exploratória, onde utilizou-se como recurso metodológico a revisão
22
de literatura e pesquisa documental sobre a violência contra as

mulheres. Buscou-se informações legais quanto aos direitos da
mulher, assim como dados estatísticos sobre a violência de gênero
e/ou sexo, consultando os principalmente sites governamentais.
A inserção da mulher no cenário político a partir da óptica
do feminismo negro é o nono capítulo que constitui a obra e é de
autoria de Fabrício Aquino da Silva, Isadora Nogueira Lopes e
Raquel Buzzati Souto. O seu texto aborda a tríade do feminismo
negro em seu primeiro momento, conceituando gênero, classe
e raça. Logo após, no segundo momento da pesquisa, foram
realizadas ponderações em relação à inserção da mulher negra ao
campo político, por intermédio de exemplos práticos da política
brasileira.
Na sequência, o texto Assédio sexual e as desigualdades
patriarcais de gênero no ambiente de trabalho compõe o décimo
capítulo que compõe a obra e é de autoria de Julia Mendes Silva.
Este artigo tem por objetivo inicial tratar do assédio sexual da
mulher, com enfoque específico no ambiente de trabalho, fazendo
uma investigação sobre a desigualdade de gênero a partir de
uma abordagem histórica da visão androcêntrica do mundo nas
relações empregatícias e a íntima conexão que possui com os casos
envolvendo assédio sexual.
As autoras Isadora Marques Simões e Mariana Lopes
Diegues assinam o décimo primeiro capítulo que compõe a obra e
que tem como título A proteção do trabalho da mulher. O seu texto
versa sobre a contextualização da inserção da mão de obra feminina
no mercado de trabalho, analisando historicamente a desigualdade
de gênero que nos acompanha até os dias atuais. O trabalho busca
apontar as leis protetoras aos direitos trabalhistas das mulheres e
como eles foram alcançados, além de pontuar como o feminismo
influenciou na luta das mulheres por direitos iguais.
O trabalho do cuidado e as diversas formas de ser mulher:
uma análise do trabalho doméstico a partir de um olhar interseccional
compõe o décimo segundo capítulo do livro e é de autoria de
23
Thamiris Cristina Rebelato. O presente artigo tem como objetivo

geral investigar o trabalho invisível ao sistema capitalista realizado
pela mulher: o trabalho do cuidado, bem como sua naturalização
e justificativa de atribuição baseada em sistema de opressão de
gênero. O texto buscou também esclarecer as diversas opressões
sociais sofridas pelas mulheres em âmbito laboral e a necessidade
de validação de múltiplas realidades para a efetivação de direitos.
O décimo terceiro capítulo da obra é de autoria de Bibiana
Terra, Bianca Tito e Roana Funke Goularte e tem como título
Direitos humanos, gênero e raça: uma análise da Convenção Sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher. O
texto tem como objetivo geral abordar sobre a necessidade de uma
análise interseccional de gênero e raça sobre os direitos humanos
das mulheres. Para tanto, aponta que a interseccionalidade pode
ser compreendida como uma ferramenta teórica e metodológica
utilizada para demonstrar a inseparabilidade estrutural entre
as opressões de gênero e raça. A partir desse conceito e tecendo
comentários acerca da CEDAW, esse trabalho compreende que a
interseccionalidade pode contribuir para o acesso das mulheres aos
seus direitos.
O décimo quarto texto tem como título Tecnologia e violência
de gênero: tecendo espaço de prevenção na internet e compõe o último
capítulo da obra, que é assinado pelas autoras Isadora Nogueira
Lopes e Raquel Buzzati Souto. A pesquisa faz uma contextualização
histórica a respeito da tecnologia, logo, em seu segundo momento,
as autoras abordam alguns movimentos de relevância que foram
difundidos por intermédio da internet. Por fim, seu terceiro
momento se dedica a ponderar acerca de medidas adotas durante a
pandemia para a prevenção da violência doméstica.
Apresentados, brevemente, um resumo de cada capítulo
que compõe a presente obra, agradecemos e parabenizamos todas
as autoras e autores que, aqui, publicam suas pesquisas e, com isso,
contribuem para o fomento e o estímulo das reflexões e diálogos de
gênero em perspectivas contemporâneas. Debater essas temáticas
nunca é fácil, mas é fundamental para que possamos avançar e
24
conquistar não apenas um ambiente acadêmico mais igualitário

e mais plural, mas também para uma sociedade que considere as
questões de gênero.
Bibiana Terra
Nariel Diotto
Capítulo 1
Compreensões sobre questões de gênero na Educação

Infantil: práticas docentes
Adriane Bonatti
Estéfani Barbosa de Oliveira Medeiros
Roberta Casarin Peruzzolo
Willian Edson Tomasi
Considerações iniciais
O presente trabalho surgiu do anseio de seus escritores

em compreender, debater e problematizar as práticas
pedagógicas de docentes da Educação Básica – especificamente da
Educação Infantil1, no que tange às temáticas referentes a gênero e
sexualidade. Para tanto, buscou-se entender o que os documentos
legais, quais sejam, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) preveem sobre tais
temáticas e, por outro lado, recorreu-se a pesquisa bibliográfica para
que através dos estudos existentes, fosse lançada a compreensão de
“O que dizem os documentos?” e “Quais são as práticas vivenciadas
pelos docentes?”.
Para a realização da pesquisa bibliográfica, utilizou-se os
descritores “Educação Infantil AND Gênero”, nas plataformas de
busca: SCIELO que apresentou 01 resultado; BVS não apresentou
nenhum resultado; PUBMED, apresentou 01 resultado, no
entanto, não estava relacionado a proposta do trabalho; LILACS,
apresentou 33 resultados e, por fim, a outra plataforma recorrida
foi o Portal da CAPES que apresentou 1.535 resultados. Utilizou-se
1 Entende-se como Educação Infantil a primeira etapa da educação básica Brasileira,

correspondendo à faixa etária dos 0 aos 5 anos e 11 meses, segundo a Base Nacional
Comum Curricular (BRASIL, 2018)
26
como filtro os últimos 10 anos (2011-2021) em todas as plataformas

de buscas. Nesta etapa, foram selecionados os trabalhos mais
congruentes com a temática, em que três autores selecionaram dois
trabalhos para análise enquanto um deles estudou os documentos
legais. Os trabalhos encontrados nas plataformas de buscas foram
analisados através da Análise de Conteúdo de Bardin (2004).
Para tanto, elencou-se tais categorias: O cuidado generificado:
a quem cabe ensinar na Educação Infantil?; Práticas narrativas e
comportamentais versus criança assexuada; O (des)preparo e (des)
amparo técnico do/a Docente: enfrentando desafios.
Neste trabalho parte-se da perspectiva de que a escola tem
um papel muito além da mera transmissão de conhecimento, haja
visto que os estudantes não frequentam a escola apenas para aprender
e decorar conteúdos. A escola é um espaço, sobretudo, de trocas,
de socialização, de formação do humano, de desenvolvimento de
capacidades individuais e coletivas. Contudo, há algumas ressalvas
a essa instituição cujo potencial é formar cidadãos. A primeira
delas é “Como é decidido qual é o ideal de ser humano que será
formado?” e, “Quais estratégias serão adotadas para formar o ser
humano ideal?”. É sabido que cada momento histórico e cultural
dita normas, regras, ideais e ideologias. Como consequência, a
escola não se configura como um espaço neutro, ao contrário, ela
é permeada por sentidos e significados, onde também se produzem
e se reproduzem exclusões vivenciadas em outras esferas da vida do
estudante como na família e na sociedade. A partir destas reflexões,
faz-se pertinente questionar: como formar indivíduos abertos
para as diversidades, respeitando-as e considerando-as necessárias
e pertinentes, para o combate à discriminação, a violência e as
desigualdades? (BRASIL, 2018; SIBILIA, 2012).
Através da preocupação com estas indagações, recorreu-
se à BNCC, para entender se ela prevê práticas pedagógicas e
obrigatoriedades aliadas às temáticas referentes a gênero e sexualidade
na educação infantil. Este documento assume um caráter normativo
que define um conjunto orgânico e progressivo das aprendizagens
consideradas essenciais, que todos os estudantes precisam e devem
27
desenvolver ao longo das etapas da Educação Básica. O objetivo

da BNCC é, então, assegurar os direitos de aprendizagem e de
desenvolvimento dos estudantes, para que possam ter acesso a uma
formação humana integral, à construção de uma sociedade justa,
democrática e inclusiva. Assim, no decorrer da Educação Infantil,
os estudantes devem desenvolver dez competências gerais2. Serão
mencionadas a seguir as que mais possuem consonância com a
temática proposta.
8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e
emocional, compreendendo-se na diversidade humana e
reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica
e capacidade para lidar com elas; 9. Exercitar a empatia, o
diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-
se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos
humanos, com acolhimento e valorização da diversidade
de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades,
culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer
natureza; 10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia,
responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação,
tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos,
inclusivos, sustentáveis e solidários. (BRASIL, 2018, p. 10).
À luz destas competências, é possível perceber a preocupação
em formar cidadãos que estejam abertos à diversidade, que tenham
empatia, que respeitem o outro, os direitos humanos, que acolham
e valorizem as diversidades – dos indivíduos e de grupos sociais,
bem como, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades,
rompendo preconceitos de qualquer natureza. A educação infantil,
é a primeira etapa da educação básica, e, conforme a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBN (1996), é nela
em que o estudante tem o primeiro contanto com um convívio
social mais amplo, ou seja, deixa de fazer parte apenas do bojo
familiar. Nesta perspectiva, a escola se apresenta como um espaço
que propicia a convivência com as diferenças, além de oportunizar
um espaço coletivo em que a criança pode vivenciar a sua infância,
2 Para o documento competência é entendida como a mobilização de conhecimentos,

habilidades, atitudes e valores que conduzirão o estudante a resolução das demandas
da vida cotidiana.
28
construir conhecimento, produzir cultura, aprender regras sociais,

conviver e interagir com os outros (BRASIL, 1996; BRASIL, 2018;
BATISTA, NAKAYAMA, 2019).
Além de realizar a análise da BNCC, optou-se por
compreender também, o que a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação aborda sobre as mesmas temáticas. Além disso, posterior
à leitura minuciosa, foram selecionados os princípios que mais
conversam com o tema deste estudo. Pontua-se que no Art. 3º, do
Título II, que dispõe dos “Princípios e fins da educação nacional”,
há um deles que pode estar relacionado à temática da diversidade,
qual seja: “respeito à liberdade e apreço à tolerância”. Entretanto,
assim como na BNCC, compreende-se que estes princípios são
abrangentes e não direcionam, ou deixam claro, de quais temáticas
se fala quando se referem à diversidade, portanto, não há menção
de gênero ou sexualidade nestes documentos. Desta maneira, as
próximas páginas deste trabalho se propõem a compreender como
se dá as vivências dos docentes diante de tais temáticas.
Vale destacar ainda que os movimentos de reflexão
deste capítulo surgiram a partir da participação dos/as autores/
as, enquanto bolsista, no Grupo de Pesquisa em Psicologia da
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões
- Campus Frederico Westphalen (URI/FW). O grupo estuda, em
conjunto com o Programa de Pós Graduação em Educação, os
discursos de gênero presentes na mídia e nos documentos oficiais
da educação brasileira.
O cuidado generificado: a quem cabe ensinar na Educação

Infantil?
Embora as discussões atreladas a temática proposta pelo

trabalho traga, através dos estudos de gênero, a diferenciação dos
espaços ocupados por homens e mulheres, meninos e meninas, e
entendam essas características como construções sociais, são poucos
os artigos que discutem a ausência dos homens na docência infantil,
sendo dos artigos analisados, um tema pouco abordado (SILVA et
29
al., 2015; CIRIBELLI; RASERA, 2019; BATISTA; NAKAYAMA,

2021; CÓLIS; SOUZA, 2020; PEREIRA; OLIVEIRA, 2021).
Quando propõe-se elaborar um diálogo entre infância
e os estudos de gênero, há o objetivo de traçar novos meios de
desnaturalizar as relações dicotômicas entre o masculino e o
feminino que se retratam na sociedade, na cidade e nas instituições.
Deste modo, entende-se que gênero não é uma categoria fixa,
natural e imutável, logo, a polarização binária que comumente
se apresenta nas discussões atreladas às relações de gênero, seja no
ambiente educacional ou não, é histórica e socialmente construída,
e assim sendo, passível de análise (ANJOS; OLIVEIRA; GOBBI,
2019).
Entende-se por desnaturalizar, colocar em pauta e
problematizar as discussões acerca das vivências em sociedade, uma
vez que as relações de gênero são entendidas como componentes
constitutivos das relações sociais baseadas em diferenças percebidas
entre os sexos, como uma maneira de dar significação às relações de
poder. Tais concepções criam regras e maneiras de ser deste a tenra
idade, estando relacionadas às formas de se expressar, brincar e usar
(ANJOS; OLIVEIRA; GOBBI, 2019).
Pensa-se a escola e a Educação Infantil como ambientes
que refletem as premissas relacionais de gênero que perpassam os
demais âmbitos sociais, desta forma, de acordo com Leão (2012)
a escola é uma instância de normatização que disciplina os corpos,
sendo capaz de propagar concepções de estereótipos sexistas e
padrões de comportamentos cristalizados para homens e mulheres.
Sendo assim, esta etapa da educação faz parte de um sistema
simbólico, com papel determinante na produção e representação
dos gêneros, portanto, é de suma importância que se pense como
são estabelecidas as dinâmicas entre os corpos no contexto da
educação (GIACHINI; LEÃO, 2016).
Isso também é evidenciado e perpetuado na Educação
Infantil através dos/as docentes, como a proporção de homens
ocupando cargos de professores, sendo esta uma porcentagem
30
extremamente baixa. De acordo com a última Sinopse Estatística

da Educação Básica, publicada em 2020, no Rio Grande do Sul,
apenas 5,8% dos docentes da Educação Infantil se identificam
como homens (INEP, 2020).
Antigamente, a relação de gênero na educação escolar
brasileira era diferente, com apenas homens atuando como
docentes. Porém, devido aos acontecimentos sociais dos séculos
XIX e XX, como a Revolução Industrial, as mulheres passaram a
ter papel ativo na sociedade e fora da família, ocupando alguns
lugares anteriormente preenchidos por homens, sendo a Educação
Básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio)
quase totalmente constituída por mulheres, por um processo de
feminização do magistério (GONÇALVES; FARIA, 2015).
A legitimidade do feminino no padrão heteronormativo,
falocêntrico e compulsório é conferida a partir de referências
que dependem exclusivamente da relação da mulher com
o outro e dos papéis atribuídos socialmente nesta relação:
esposa e mãe. Dessa maneira, as profissões adequadas para seu
universo de características naturalizadas, estariam ligadas às
qualidades do cuidado emocional e físico, como por exemplo,
enfermeira, professora primária, cozinheira e bordadeira.
Desse modo, a diferenciação binária (homem-mulher) e as
atribuições essencializadas das características atribuídas aos
seres humanos (masculino-feminino) ligam-se diretamente às
atuações e disputas de poder. (SOARES, 2015, p. 242).
Contudo, diferente do processo de feminização do magistério
no Ensino Fundamental e Médio, a Educação Infantil traçou um
caminho diferente, tendo surgido como um ambiente de ocupação
feminina, atendendo a demanda da nova classe trabalhadora que
estava à disposição no mercado de trabalho, inicialmente, com
caráter assistencialista, suprindo o cuidado que não foi exercido
pelas mães, sendo a inserção de homens nesta etapa da educação
consideravelmente nova (XAVIER; ALMEIDA, 2016).
Segundo a pesquisa de Gonçalves e Penha (2015), que
consistiu em entrevistas semiestruturadas com quatro homens, dois
31
acadêmicos e dois egressos3 do curso Pedagogia com idades entre

19 e 53 anos, a atuação masculina na Educação Infantil ainda é
polêmica. Na pesquisa, surge a ideia estereotipada que homens não
estariam aptos para trabalhar com bebês, especialmente por nesta
etapa do desenvolvimento as ações educativas estarem atreladas à
higiene da criança, como trocar e dar banho, tarefas que ainda são
culturalmente atreladas às mulheres, entretanto, vale ressaltar que
nesta etapa o higienizar está atrelado a uma lógica de cuidado e
educação. Outro dado importante trazido pela pesquisa, mostra
que nenhum dos entrevistados teve interesse inicial na referida
graduação, mas buscavam outras áreas da licenciatura.
Outra pesquisa realizada por Ferreira e Oliveira (2016)
com três docentes homens da Educação Infantil corrobora com os
dados já citados. Inicialmente, nenhum deles tinha como objetivo
trabalhar na Educação Infantil, sendo esta uma atividade exercida
pela “necessidade de trabalho” e “o que apareceu”. Novamente, a
ideia de cuidar e educar na Educação Infantil aparece atrelado a
figura da mulher, porém, de acordo com a pesquisa, é perceptível
que caminha-se em direção à superação desses estereótipos de
gênero.
Vale ressaltar que, em contrapartida, a LDB e o Referencial
Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) (BRASIL,
1998) não corroboram com estes pensamentos e se baseiam em
construções histórico-sociais dos papéis dos homens e das mulheres
e de que o homem não tem aptidão para ensinar na Educação
Infantil, visto que em suas diretrizes não mencionam nada sobre
o gênero do/a docente, mas sim, sobre a formação profissional
necessária para atuar dentro destes contextos, como formação
superior ou magistério e um profissional polivalente, capaz de
refletir suas práticas, ensinar e aprender com seus alunos.
3 Inicialmente, as autoras pretendiam fazer a coleta de dados com professores homens

que estivessem atuando na Educação Infantil, contudo, no município da pesquisa,
não havia a presença de tais profissionais.
32
Práticas discursivas e comportamentos versus criança assexuada
Como categoria de análise percebeu-se que, dos oito artigos

analisados, todos apresentam as narrativas destinadas às crianças e
evocadas pelos/as docentes que, por diversas vezes, traziam consigo
a desigualdade de gênero e, por consequência, o machismo,
reproduzindo padrões de discurso normativo referente a cultura
de gênero presente em seu cotidiano. Essa reprodução é fruto das
vivências pessoais e da falta de suporte técnico observada dentro
do ambiente escolar da Educação Infantil sofrida pelos/as docentes
(SCHINDHELM, EVANGELISTA, 2013 SILVA et al., 2015;
SCHINDHELM; HORA, 2016; SILVA, 2017; CIRIBELLI;
RASERA, 2019; BATISTA; NAKAYAMA, 2021; CÓLIS;
SOUZA, 2020; PEREIRA; OLIVEIRA, 2021).
Estas narrativas condizem com o que é imposto
socialmente como característico de masculinidade e feminilidade,
ou seja, determinados comportamentos e falas são esperados em
determinado gênero. Vale ressaltar que gênero, segundo Bourdieu
(2002), de acordo com a teoria feminista, seria uma construção
histórica, social, educacional e cultural de papeis, identidades,
características e valores atribuídos a mulheres e homens. Nesse
sentido, se apresenta também como um princípio de divisão
social, em que homem e mulher encontram-se em pólos opostos
como, por exemplo, a destinação da palavra forte para o homem
e fraco para a mulher. Fazendo surgir uma simbologia divisória
entre masculinidade e feminilidade, ambas atreladas ao poder que
desempenham.
As relações de poder dizem sobre identidade e diferença, elas
demarcam fronteiras, classificam e, consequentemente, por uma
hierarquia, advêm noções de valor. Todo esse encadeamento, de
acordo com Silva (2004), culmina em processos de normatização
que irão selecionar uma determinada identidade padrão à qual
todas as outras serão hierarquizadas e avaliadas.
A simbologia e os processos de normatização aparecem
dentro das práticas dos/as docentes da Educação Infantil, ora através
33
de frases que induzem o pensamento da polaridade, em que meninos

são vistos como mais agressivos e enérgicos e as meninas como mais
gentis e calmas, ora através de comportamentos repressivos como,
por exemplo, um olhar de reprovação quando uma menina grita
ou quando um menino expressa o desejo de brincar de boneca
ou a separação dos banheiros por cores: rosa, para meninas, e
azul, para os meninos. Esses discursos e comportamentos, que
por si só já trazem uma informação, mesmo que sem a utilização
de palavras, colaboram para que as polarizações continuem a
aparecer e, portanto, fixam a simbologia entre a masculinidade e
a feminilidade indo contra a educação não sexista proposta pelo
RCNEI (BRASIL, 1998) e pelas Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Infantil (DCNEI) (BRASIL, 2009).
Ciribelli e Rasera (2019) comentam que é preciso pensar em
como as narrativas de gênero devem aparecem em ambiente escolar
pela compreensão de que as crianças criam sentidos referentes ao
dualismo de gênero quando há, em seus relacionamentos com
pais, docentes e demais familiares, a legitimação de marcadores de
gênero. Além disso, a identidade, segundo Silva (2004), é instável,
fragmentada, inacabada, por vezes, contraditória e está ligada às
estruturas narrativas, discursivas e aos sistemas de representação.
Logo, a escola, além de democratizar o conhecimento, retém uma
parte da responsabilidade de possibilitar a experiência de formação
do sujeito em todos os sentidos, incluindo as questões de gênero.
Ademais, em todos os artigos analisados, as crianças foram
vistas como seres assexuados, sem desejos e quaisquer demonstrações
de sua sexualidade devem ser controladas e, mais uma vez, postas
dentro do que é considerado politicamente aceitável. Assim,
enquanto o gênero é compreendido como as diferenças construídas
socialmente entre o que é considerado masculino e feminino,
a sexualidade é vista como as diversas maneiras de experienciar
prazeres e desejos através de um conjunto de identidades,
comportamentos, crenças e relações construídas e modeladas pela
história, isto significa que, não estão somente relacionadas a ideia
do indivíduo, mas precisam ser entendidas dentro de um contexto
34
cultural e social (WEEKS, 2000; LOURO, 2007; LOURO, 2008).

Ademais, para Foucault (1977) a sexualidade é vista como uma
construção social relacionada ao poder e à regulação.
A sexualidade, independentemente da idade, sempre foi e
é vista com alguns preconceitos e tabus que acabam por dificultar
pais e educadores de lidar de forma assertiva com as manifestações
dela, principalmente durante a infância. É importante salientar
que, antes mesmo de nascermos, a sexualidade já está presente em
nosso viver. Para a autora Silva (2019, p. 17):
Antes mesmo de nascermos, a sexualidade está presente.
Ela se inicia no exercício da maternidade, aliás muito antes,
quando surge o desejo de ter um filho, quando o embrião foi
fecundado numa relação sexual [...]. A partir do momento
em que descobrem que estão esperando um bebê, inicia-se,
no imaginário materno e paterno, a constituição deste sujeito.
Posterior a isso, a autora comenta que a imaginação toma
forma, imagina-se um menino ou uma menina, qual a cor dos
olhos, entre outras idealizações. Essas idealizações vão de encontro
com as marcas culturais relacionadas a sexualidade, na construção
de gênero e preconcepções já podem ser vistas. As idealizações
também dão espaço a sexualidade, no sentido de que esta segue
sendo construída a partir das primeiras experiências afetivas do/a
bebê, seja com mãe, pai e/ou cuidador/a.
Isso traz a reflexão de que geralmente a criança é vista sob
os olhos e o mundo dos adultos, onde demonstrar sua sexualidade
não é permitido e, caso ela apareça, estará envolvida num estado
de reprovação, por parte dos adultos. Porém, a visão de mundo de
uma criança é diferente da de um adulto; sob sua perspectiva não
há preconceitos, reprovações ou censuras referentes à sua existência.
Para Delgado e Müller (2005), as crianças dão significados ao
mundo de uma forma específica à realidade infantil, ou seja, a
partir de uma lógica própria que é diferente daquela dos adultos.
Ainda, de acordo com Ribeiro (2006), as brincadeiras sexuais são
formas lúdicas adotadas pelas crianças para lidar com seus corpos
e com os dos outros, nas quais há representações de sexualidade
35
influenciadas por concepções de gênero (CIRIBELLI; RASERA,

2019).
Para Silva (2019), a forma como a criança compreende o
mundo se dá por meio das fantasias, uma forma não tão elaborada
ou amadurecida de pensamento. As fantasias são concretizadas
por intermédio das brincadeiras e jogos. Ao brincar elas vivenciam
seus conflitos, expressam sentimentos, desejos e vivem na fantasia
diferentes papéis, incluindo aqui os identificatórios de gênero. Além
disso, ao contrário do que muitos adultos pensam, o brincar e a
curiosidade sexual são indicativos de um desenvolvimento infantil
sadio e criativo
Ademais, a forma como as crianças costumam lidar com
algo relacionado à diversidade de orientação sexual, gênero ou
identidade, foi conferida por Ciribelli e Rasera (2019) através de dois
movimentos: testagem e exploração. No movimento de testagem
havia a investigação e testagem referente à diversidade que os
observadores, e também autores do artigo, apresentavam, partindo
de um estranhamento até chegar a uma conclusão particular. Já
no movimento de exploração, as crianças procuravam entender a
diferença entre a diversidade de forma exploratória, pesquisando,
mas sem hipóteses claras. Assim, quando as crianças percebiam
algo dentro do âmbito da diversidade e diferença sexual como um
dos observadores usando piercing, por exemplo, elas buscavam
entender esses elementos das duas formas citadas anteriormente,
logo, a partir de determinado receio e cautela – testagem, ou a
partir de espontaneidade e tranquilidade – exploração.
Em suma, identidade e gênero são conceitos importantes
quando conversamos sobre a sexualidade e a educação infantil. A
partir desses conceitos, a sexualidade deixa de ser pensada como
algo apenas biológico e passa a ser associada aos processos sociais
de construção da identidade a partir de normas culturais de gênero.
Assim, os conceitos de identidade e de diferença não podem ser
vistos de forma separada, pois são mutuamente determinados e
resultados da linguagem (SILVA, 2004).
36
Desta maneira, é necessário que haja uma visão pluralista,

um ambiente acolhedor e estimulante com espaço para a imaginação
das crianças e elaboração de suas fantasias. Aos/às docentes, indica-
se compreender a forma como a criança percebe o mundo, aceitar
que há sexualidade naquele ser e, principalmente, entender sobre
as questões de gênero, para que elas possam ser trabalhadas em sala
de aula e, a partir daí, possibilitar o exercício de uma sexualidade
de forma saudável e não censurável como foi observado nos artigos
analisados.
O (des)preparo e (des)amparo técnico do/a docente: enfrentando

desafios
Na presente categoria de análise, percebeu-se que em seis dos

oito artigos analisados, estiveram presentes aspectos relacionados
às diferentes dificuldades/empecilhos dos/as docentes em trabalhar
as temáticas relacionadas à sexualidade e gênero (BATISTA;
NAKAYAMA, 2019; CIRIBELLI; RASERA, 2019; CAVALEIRO,
2006; PEREIRA; OLIVEIRA, 2016; SCHINDHELM;
EVANGELISTA, 2013; SCHINDHELM; HORA, 2016).
Nesta tópica, propõe-se a discussão de aspectos que
envolvem o (des)preparo e o (des)amparo de docentes na Educação
Infantil, bem como alternativas de intervenções que possibilitem o
trabalho com crianças acerca das temáticas relacionadas ao gênero
e sexualidade.
Neste contexto, faz-se pertinente retomar o conceito de
gênero. Pereira e Oliveira (2016) consideram que a referida palavra
remete às diferentes formas as quais as pessoas vivem e convivem
socialmente os sexos feminino e masculino. Afirmam que estes
modos são aprendidos nos espaços sociais por meio da cultura,
sejam eles espaços institucionais ou não.
Faz-se importante retomar que a instituição escolar atua como
um dos ambientes mais importantes nessas aprendizagens, já que,
conforme Batista e Nakayama (2019), a Educação Infantil marca
37
o primeiro convívio social mais amplo das crianças, viabilizando a

convivência com diferenças que, muitas vezes, não são conhecidas na
família. Na escola, as crianças têm um espaço próprio e coletivo de
educação para viver a infância, construir conhecimento e produzir
cultura. Assim, é preciso que sejam respeitadas como sujeitos
históricos e de direitos em todas as dimensões, oportunizando a
elas a possibilidade de aprender a conviver com valores e regras
estabelecidas, interagindo e participando de construções sociais.
Desta forma, é imprescindível discutir a temática
acerca do preparo/aporte tanto teórico quanto vivencial de docentes
para trabalhar questões de gênero com as crianças no âmbito escolar.
Batista e Nayakama (2019) afirmam que é necessário atentar às
práticas dos/as docentes que, muitas vezes, passam despercebidas,
e que expressam e reproduzem concepções preconceituosas.
Considerando que o ambiente escolar é um importante espaço
de desconstrução de comportamentos estereotipados, é de suma
importância que questões de gênero sejam trabalhadas, com o
intuito de promover práticas educativas que não sejam de cunho
discriminatório desde a primeira infância.
Segundo Schindhelm e Hora (2016), as crianças vivenciam
experiências e também fazem perguntas acerca das temáticas de
gênero e sexualidades que, muitas vezes, deixam grande parte da
equipe escolar em situações constrangedoras. Nestes momentos, os/
as docentes podem entrar em conflito com o seu desconhecimento,
com a sua cultura, com os seus medos sobre sexualidades ao serem
confrontados pelas crianças em suas curiosidades e lógicas tão
peculiares. Infere-se que esses são temas que comumente aparecem
nos currículos como situações/problemas que precisam ser
discutidas e pensadas, considerando as demandas da comunidade
escolar como um todo.
Conforme os mesmos autores, uma das omissões nos
currículos da Educação Infantil refere-se às questões de gênero
e sexualidades, uma temática que é ainda considerada um tabu
em diversos ambientes. Não é a escola o único espaço em que
esses problemas se apresentam; é onde eles se reproduzem como
38
circunstâncias acerca daquilo que acontece na vida dos sujeitos

sociais. Sendo assim, os/as docentes, muitas vezes, sentem-se
desprovidos e pouco informados acerca dos saberes e experiências
que possibilitem prepará-los para melhor conviver com as temáticas
das sexualidades no contexto escolar.
Ciribeli e Rasera (2019) e Cavaleiro (2006), afirmam que
a escola é compreendida enquanto uma instituição social que
tem papel fundamental no processo de construção de questões
relacionadas ao gênero e à sexualidade, visto que é um importante
local de convivência no qual as crianças desenvolvem-se socialmente.
Contudo, apesar dos avanços nas discussões teóricas acerca das
temáticas de gênero e sexualidade, as escolas ainda parecem ocupar
um espaço conservador que visa controlar aquilo que foge da
normatização hegemônica da construção da sexualidade. Assim,
muitas vezes, o espaço escolar acaba por tornar-se uma ferramenta
que impulsiona a normatização da heterossexualidade, além de
determinar uma posição dicotômica de gênero.
Para Junqueira (2009), a escola é elemento primordial
no combate de mecanismos que identificam as normas sociais
na heterossexualidade. Ademais, ela representa a possibilidade
de convivência, produção e transmissão de conhecimentos e
o aprendizado de valores, crenças, representações e práticas
relacionados a preconceitos, discriminações e violências de ordem
racista, sexista, misógina e homofóbica.
Schindhelm e Evangelista (2013) apontam que o
conhecimento é uma construção coletiva e um produto cultural.
Assim, cabe ao adulto intermediar as relações das crianças
considerando os elementos culturais e promovendo trocas e
descobertas que possibilitem a integração de diferentes áreas do
conhecimento, inclusive àquelas que tangem os temas de gênero e
sexualidade.
Desta forma, ainda segundo as mesmas autoras, destaca-se
a importância das temáticas gênero e sexualidade serem destacadas
no contexto escolar, considerando que a mesma precisa ser refletida
39
pelos/as educadores de modo a desmistificar os desconhecimentos

e os preconceitos sexuais presentes nas práticas docentes além da
necessidade da busca por novas concepções que envolvam aspectos
vivenciados sobre gênero e sexualidade, no exercício da profissão,
como estratégias que propiciem a melhoria do processo de formação
docente, levando em conta a construção de novas possibilidades de
discursos como também de práticas educativas.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) considera
o “brincar” uma ação que se relaciona com uma das principais
formas de aprendizagem para as crianças, principalmente as da
Educação Infantil. Por meio do brincar, possibilita-se a ampliação
e diversificação de conhecimentos, da imaginação, criatividade,
experiências emocionais, corporais, sensoriais, cognitivas, sociais
também relacionais. Desta forma, a criança pode expressar-se de
forma livre, tendo a oportunidade de conhecer-se e desenvolver-
se a fim de que se torne alguém que possa viver em liberdade,
considerando e desbravando as diferentes possibilidades de ser no
mundo.
Considerações finais
Percebeu-se através da análise da BNCC que apesar de

constar sobre a temática da diversidade, as informações são bastante
vagas, tornando dificultoso o direcionamento dos/as docentes para
que estes possam trabalhar e aplicar estas questões em sala de aula.
Também foi percebido que as mulheres estão em maior
número enquanto docentes na Educação Infantil, isso ocorre por,
nesta etapa, o educar e o cuidar estarem atrelados e, historicamente,
atribuídos à figura feminina. Desta forma, é possível compreender
que existe uma visão generificada de quem pode ocupar o espaço da
docência, isso corrobora com a necessidade de se pesquisar gênero
na Educação Infantil, buscando expandir as amarras de gênero.
Verificou-se também que as práticas discursivas e narrativas
dos/as docentes modelam o aprendizado infantil com base nas
40
vivências e práticas cotidianas no contexto escolar. Ainda, a

sexualidade da criança é negada, compreendendo a mesma como
um ser assexuado. Por meio de falas e comportamentos, docentes
reproduzem práticas e modelos pré-existentes através da cultura e
do social, criando normas a serem seguidas, na maioria das vezes
impostas aos/às alunos/as.
Ademais, destacam-se questões relacionadas ao despreparo
técnico dos/as docentes para integrarem as temáticas relacionadas
à sexualidade e gênero em suas práticas pedagógicas. Para tanto,
entende-se enquanto necessária a expansão de suportes, bem como
formação inicial e continuada de docentes para que os mesmos/as
possam estar preparados/as para uma educação libertadora e não-
opressora.
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Capítulo 2
Gênero e saúde no Ensino Médio: os desafios da

pesquisa em tempos de pandemia

Eliane Cadoná
E stes escritos estão articulados ao projeto de pesquisa

intitulado “Práticas discursivas e produção de sentidos
sobre Gênero e Saúde no Ensino Médio: Percepções Docentes”,
que integra um projeto maior, desenvolvido por intermédio do
Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da URI –
Campus de Frederico Westphalen e do Curso de Psicologia cujo
objetivo consiste em investigar os discursos sobre Gênero e Saúde
presentes nos documentos da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) e no planejamento da escola.
Aqui, descreveremos nossas experiências, na condição de
pesquisadoras, junto ao sub-projeto intitulado Práticas discursivas e
produção de sentidos sobre Gênero e Saúde: com a palavra, professores/
as do Ensino Médio, desenvolvido no período de agosto de 2019 a
dezembro de 2020. Nesta parte do estudo, nosso objetivo consistiu
em investigar sentidos de Identidade de Gênero, Orientação Sexual e
Saúde exercitados por professores e professoras do Ensino Médio de
uma cidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, a fim de
evidenciar e problematizar os possíveis desdobramentos desses nos
processos de subjetivação dos/as estudantes.
Para tanto, o método de investigação e coleta de dados
escolhido foi a entrevista semiestruturada, que seria realizada de
modo presencial com os/as professores/as selecionados a partir dos
dados fornecidos pelas escolas. Contudo, em virtude da Pandemia
46
de Covid-19 que se estabeleceu em março de 2020, ocasionando

medidas de isolamento social, as etapas de coleta e análise dos
dados foram inviabilizadas, uma vez que o projeto precisou ser
retificado através de emenda para que pudéssemos dar seguimento
de maneira remota.
Ainda assim, após submissão da emenda que altera o método
de coleta dos dados e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE), bem como posterior autorização do Comitê de Ética para
darmos sequência à pesquisa, o contato com as escolas manteve-
se inviável diante das restrições dos protocolos de segurança, que
mantiveram tais espaços fechados e os/as educadores/as trabalhando
em suas casas.
Embora o Comitê de Ética em Pesquisa o qual foi submetida
a emenda autorizou a realização das entrevistas de forma on-line,
por intermédio do Google Meet, os contatos com as escolas não
obtinham sucesso e, quando um diálogo se iniciava, o pedido das
mesmas era de deixar, por ora, a organização do espaço e da equipe
se reestabelecer de modo presencial para que, então, fosse possível
passar a logística de professores/turmas. Tal intermediação, por
parte das secretarias e direção das escolas, que nos parecia, em um
primeiro momento, tão possível e simples na realidade, juntando-
se ao montante de atividades e readaptações no campo da educação
nos fez perceber que aquele não era o momento de insistir para
que houvesse o fornecimento de dados que, segundo alguns locais,
exigiria tempo da parte deles para ser compilado. Em outros casos,
os contatos com as escolas não tiveram êxito, mesmo via telefone.
Algumas equipes reuniam-se esporadicamente, em dias específicos,
e o foco era somente na passagem das atividades remotas aos e às
alunas.
Diante disso, redirecionamos nosso cronograma das
atividades desenvolvidas durante o ano pelo grupo de pesquisa,
como a criação de um grupo de leitura sobre Gênero e nos
aprofundamos teórica e metodologicamente com os pressupostos
da pesquisa Construcionista. .
47
Ressaltamos que o grupo de leitura tinha como intuito

movimentar as problematizações, dentro e fora do espaço acadêmico,
sobre Gênero e Sexualidade, à medida que propunha uma discussão,
com base nos quatro volumes da História da Sexualidade, escritos
por Michel Foucault. Entendemos que a situação instaurada, em
função da pandemia, não podia nos impedir de movimentar ações,
frutos de estudos consolidados dentro do grupo de pesquisa.
Os aprofundamentos teóricos, em especial no que tange às
ferramentas teórico-metodológicas também serviram para rebuscar
as articulações entre o método e a futura pesquisa a campo.
A criatividade como ferramenta de continuidade
O ano de 2020, considerado “atípico”, demandou novas

formas de organização tanto na esfera individual quanto na coletiva.
Na pesquisa, nos deparamos com as limitações de cronogramas
e objetivos já definidos, e, ainda, com a demanda de adaptação
aos meios tecnológicos que, até então, não eram ferramentas tão
necessárias para o andamento da pesquisa. Entretanto, o papel da
metodologia científica, conforme Goldenberg (2007) é exatamente
o de nos proporcionar reflexões e lançar um novo olhar sobre o
mundo, permitindo essa familiarização com o desconhecido. Esse
olhar nos exige curiosidade, indagações e, principalmente nesse
contexto, criatividade.
Em seu livro A arte de Pesquisar, a autora discorre sobre
a imprevisibilidade da pesquisa, ainda que nós, pesquisadoras/
es, construamos um cronograma com início, meio e fim.
(GOLDENBERG, 2007, p. 13). Nesse sentido, ela exige
criatividade, disciplina, organização e um confronto constante com
o que é possível, com nossas limitações, até onde conhecemos e
até onde conseguimos assumir nosso desconhecimento diante de
algumas questões.
Anteriormente as ciências se pautavam em um modelo
quantitativo de pesquisa, em que a veracidade de um estudo
era verificada pela quantidade de entrevistados. Muitos
48
pesquisadores, no entanto, questionam a representatividade

e o caráter de objetividade de que a pesquisa qualitativa se
revestia. É preciso encarar o fato de que, mesmo nas pesquisas
quantitativas, a subjetividade do pesquisador está presente.
(GOLDENBERG, 2007, p. 17).
Nesse sentido, a autora reflete sobre a pesquisa enquanto
um lugar de possibilidades no qual podemos nos beneficiar e criar
formas de praticá-la. Ao longo da história do fazer científico, a noção
de subjetividade e do real papel dos/as pesquisadores/as enquanto
seres implicados com seu local e objeto de pesquisa foram sendo
desmistificados e afastados das ideias de neutralidade e objetividade
herdadas da ciência ortodoxa.
Haja vista a necessidade de nos reinventarmos nesse ano
– dada a impossibilidade de irmos a campo realizar a coleta de
dados e, ainda, a necessidade de aguardarmos a autorização para
alterarmos o método de coleta - redirecionamos nossas práticas
enquanto grupo de pesquisa e assumimos a necessidade de ter que
lidar com o inusitado, com aquilo que desestabiliza e que mostra
que realizar uma pesquisa qualitativa implica em conscientizar-se
de que, parafraseando Paulo Freire, o caminho metodológico é,
sem dúvida, construído e reconstruído em meio ao processo.
Fortalecendo a base teórico-metodológica
Considerando os objetivos dessa pesquisa, a obra de

Foucault é introdutória para qualquer discussão sobre as questões
de sexualidade, principalmente porque esse tema foi e é atravessado
por conceitos sob os quais o autor se dedicou em seus escritos,
como o lugar do simbólico e as relações de poder que formam os
jogos institucionais e, ainda, a análise discursiva.
Para Foucault, nada há por trás das cortinas, nem sob o chão
que pisamos. Há enunciados e relações, que o próprio discurso
põe em funcionamento. Analisar o discurso seria dar conta
exatamente disso: de relações históricas, de práticas muito
concretas, que estão vivas nos discursos. (FISCHER, 2001, p.
198).
49
As noções sobre sexualidade sempre estiveram relacionadas

à “natureza humana”. Partindo desse princípio, discuti-la sobre os
aspectos sociais e políticos, ou, ainda, enquanto algo construído
por nós, homens e mulheres, sujeitos sociais, torna-se um desafio
na medida em que todas as concepções anteriores estão atreladas
aos corpos e à ideia de universalidade produzida e fomentada pelas
Ciências durante muito tempo. (LOURO, 2000).
As muitas formas de fazer-se mulher ou homem, as várias
possibilidades de viver prazeres e desejos corporais são
sempre sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente (e
hoje possivelmente de formas mais explícitas do que antes).
Elas são também, renovadamente, reguladas, condenadas
ou negadas. Na verdade, desde os anos sessenta, o debate
sobre as identidades e as práticas sexuais e de gênero vem se
tornando cada vez mais acalorado, especialmente provocado
pelo movimento feminista, pelos movimentos de gays e de
lésbicas e sustentado, também, por todos aqueles e aquelas
que se sentem ameaçados por essas manifestações. (LOURO,
2000, p. 4).
A discussão sobre sexualidade também envolve compreender
os rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos e
convenções que se constituem enquanto processos profundamente
culturais e estão atrelados à pluralidade. Nesse sentido, nada do que
habita esse terreno pode ser considerado exclusivamente natural,
principalmente quando falamos sobre corpos e a produção de
sentidos que circulam em torno do modo como o entendemos e
narramos.
Louro (2000) entende que através dos processos culturais
é que definimos o que é e o que não é natural. A partir deles,
produzimos e transformamos a natureza e a biologia de modo que
as tornamos históricas.
Os corpos ganham sentido socialmente. A inscrição dos
gêneros — feminino ou masculino — nos corpos é feita,
sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto,
com as marcas dessa cultura. As possibilidades da sexualidade
— das formas de expressar os desejos e prazeres — também são
sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades
50
de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por

relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma
sociedade. (LOURO, 2000, p. 6).
Em sua obra, Foucault (1988) discute a sexualidade
enquanto um dispositivo histórico. Isso significa que ela é uma
construção/invenção social constituída por diversos discursos sobre
o sexo. Esses discursos desempenham o papel de regular, normatizar,
produzir saberes e verdades que direcionam nosso olhar, enquanto
sociedade, sobre esse fenômeno.
Já no primeiro capítulo do primeiro volume, o autor fala
sobre termos herdados, enquanto sociedade ocidental, de uma
visão vitoriana sobre a sexualidade. Isso significa que, até o início
do século XVII “as práticas [sexuais] não procuravam segredo; as
palavras eram ditas sem reticência excessiva” (FOUCAULT, 1988,
p. 8). A partir do século XIX é que passamos a tratá-la como algo
que deveria ser contido, regulado e mantido muda.
Ao ser socialmente “encerrada”, passou a ser um assunto
privado, restrito à família conjugal e à função exclusivamente de
reprodução da espécie. Para tanto, cria-se uma ideia de família, de
casal legítimo e, necessariamente, procriador, que detém o direito
de falar sobre o sexo a partir desse lugar e mantê-lo sobre a hipocrisia
do segredo doméstico.
No espaço social, como no coração de cada moradia, um único
lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o
quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro
das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa
os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente,
vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções.
O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado
não possui eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também.
É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio.
Não somente não existe, como não deve existir e à menor
manifestação fá-lo-ão desaparecer — sejam atos ou palavras.
(FOUCAULT, 1988, p. 9).
A partir dessas práticas discursivas, o sexo foi negado
às crianças, ou seja, estas foram proibidas de falar sobre ele e a
51
sociedade passou a negar veemente suas manifestações durante

a infância. Essa lógica, segundo o autor, denota a hipocrisia das
sociedades burguesas, além de não se sustentar por muito tempo,
uma vez que a repressão e o silenciamento por si só não foram
capazes de barrar um fenômeno tão amplo.
Desses jogos de poder, surgem as sexualidades ilegítimas
que, conforme Foucault, precisariam buscar sua (re)inscrição
em lugares de tolerância. Como exemplo, cita as relações entre
prostituta-cliente e psiquiatra-histérica, que obedecem à ordem
da produção e do lucro. Ou seja, bem longe de tudo que é feito,
aparentemente, “em nome de Deus e da Família”1. (FOUCAULT,
1988).
Diante disso, podemos pensar em como se produziram e
se produzem determinadas verdades sobre gêneros e sexualidades,
que hoje atravessam tanto as práticas científicas quanto as que estão
aquém das academias em relação aos sujeitos e aos lugares que suas
existências e corpos ocupam no mundo
Ao citar, no parágrafo anterior, uma das frases mais proferidas
no Câmara dos Deputados durante o processo de Impeachment
da então Presidenta Dilma Rousseff (UOL, 2016), trazemos um
fato atual em que a primeira mulher eleita presidenta do país foi
destituída de seu poder e sofreu constantes ataques por ser mulher.
Durante o processo de votação, muitas narrativas foram proferidas,
dentro e fora da Câmara, em relação ao gênero e às construções
sociais sobre ser mulher, deixando evidente que esse foi um dos
motivos pelos quais afastaram-na de um cargo de poder.
Em sua obra, Foucault retoma a constituição da sexualidade
no contexto greco-romano e as relações entre o masculino e o
feminino em relação ao prazer. O autor busca em várias fontes
1 A expressão refere-se à votação, em 2016, que resultou no Impeachment da ex-
presidenta Dilma Rousseff, onde “Deus” e “Família” foram citados repetidas vezes
pela maioria dos/as deputados/as justificando seus posicionamentos políticos diante
do processo que destituiu a primeira mulher eleita no Brasil do cargo de Presidenta
da República. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/
deputados-citaram-%E2%80%9Cdeus%E2%80%9D-59-vezes-na-votacao-do-
impeachment/. Acesso em: 10 jan 2021.
52
as diversas e paradoxais noções de sexualidade, que apesar de não

serem fixas, permitem pensar em como entendemos hoje o que
chamamos de grupos minoritários (mulheres, pessoas não-brancas,
LGBT+) e como se construíram as noções de inferioridade e
anormalidade que atravessam esses corpos.
Quando direcionamos as discussões para o campo da
educação, Guacira Louro (2000) traz a concepção do corpo
enquanto um ponto fixo sob o qual amparamos determinadas
verdades sobre nossos desejos e, precipuamente, a necessidade de
conhecermos essas verdades. Ao afirmar que “o corpo é visto como
a corte de julgamento final sobre o que somos ou o que podemos
nos tornar” (p. 8), ela questiona:
Por que outra razão estamos tão preocupados em saber se os
desejos sexuais, sejam hetero ou homossexuais, são inatos ou
adquiridos? Por que outra razão estamos tão preocupados
em saber se o comportamento generificado corresponde aos
atributos físicos? Apenas porque tudo o mais é tão incerto que
precisamos do julgamento que, aparentemente, nossos corpos
pronunciam. (LOURO, 2000, p. 8).
Em outras palavras, tanto as identidades de gênero e sexual
quanto as étnicas são deduzidas através de uma concepção biológica,
negando que o processo de construção da identidade é muito mais
complexo e envolve, necessariamente, a significação cultural e suas
constantes alterações. O questionamento, portanto, deveria voltar-
se para como uma determinada característica passou a corresponder
a uma marca identitária e quais os sentidos que, em determinado
tempo e cultura, estão atrelados a essa marca.
É importante considerar ainda que há um enorme
investimento nos corpos de acordo com as imposições culturais.
Existem critérios estéticos, morais, higiênicos nos quais nos
baseamos e tentamos nos adequar, com o objetivo de pertencer a
determinado grupo. Segundo Louro (2000, p. 8) essas categorias “de
saúde, vigor, vitalidade, juventude, beleza, força são distintamente
significadas, nas mais variadas culturas” e, da mesma forma,
obedecem a ordens diferentes quando em relação aos corpos de
53
homens e aos corpos de mulheres.

Através de muitos processos, de cuidados físicos, exercícios,
roupas, aromas, adornos, inscrevemos nos corpos marcas de
identidades e, conseqüentemente, de diferenciação. Treinamos
nossos sentidos para perceber e decodificar essas marcas e
aprendemos a classificar os sujeitos pelas formas como eles se
apresentam corporalmente, pelos comportamentos e gestos
que empregam e pelas várias formas com que se expressam.
(LOURO, 2000, p. 9).
São nesses processos, também, que se dá o reconhecimento
das diferenças. Consequentemente, instituem-se a partir daí as
desigualdades, os ordenamentos e as hierarquias que são atravessadas
pelas redes de poder que circulam no social. O surgimento do
‘outro’, ou seja, aquele/a que não possui as mesmas características
que as minhas, parte da concepção do lugar social que o ‘eu’ ocupa.
Tiago Duque, através de sua pesquisa publicada em 2012
na revista Estudos Feministas, reflete sobre as implicações teóricas,
políticas e metodológicas da pesquisa com adolescentes dentro da
perspectiva do gênero e da sexualidade. Segundo o autor, “em vez de
reconhecer a sexualidade dos jovens e tentar dar-lhe suporte, nossa
cultura nega e pune o interesse e a atividade erótica de qualquer
pessoa que não atingiu a maioridade” (DUQUE, 2012, p. 489).
A compreensão do autor vai ao encontro das nossas
discussões diante dessa pesquisa, pois entendemos que a faixa etária
dos alunos e alunas do Ensino Médio correspondente, em sua
maioria, à adolescência, torna ainda mais complexa a compreensão
dos dados que poderão ser levantados através do discurso dos/as
educadores/as.
Para Louro (2000) as formas de se viver e construir as
identidades, tanto de gênero e sexuais, são atravessadas e afetadas
por todas as transformações sociais e culturais que experimentamos
ao longo do tempo:
(...) tais transformações constituem novas formas de existência
para todos, mesmo para aqueles que, aparentemente, não as
experimentam de modo direto. Elas permitem novas soluções
para as indagações que sugeri e, obviamente, provocam novas
54
e desafiantes perguntas. Talvez seja possível, contudo, traçar

alguns pontos comuns para sustentação das respostas. O
primeiro deles remete-se à compreensão de que a sexualidade
não é apenas uma questão pessoal, mas é social e política. o
segundo, ao fato de que a sexualidade é “aprendida”, ou melhor,
é construída, ao longo de toda a vida, de muitos modos, por
todos os sujeitos. (LOURO, 2000, p. 5).
A grande dificuldade de olhar para a sexualidade como um
processo fluido e inconstante se dá pela centralidade que esse tema
ocupou nas sociedades ocidentais modernas. Aprendemos a nos
apresentar a partir da nossa identidade de gênero, por exemplo.
Nossa identidade sexual também é uma das maiores marcas da
nossa identidade e essas referências dão a sensação de segurança
sobre o que somos. Embora, discursivamente, nos interessemos
pelas múltiplas formas de pertencimentos sociais, somos ameaçados
pelo desconhecido, pela ideia de não termos uma “verdade” fixa
sobre nós. (WEEKS; LOURO, 2000).
Partindo da discussão sobre a identidade sexual, formada
a partir da identidade como um todo, podemos compreender os
estudos de Aberastury e Knobel (1981) sobre o desenvolvimento
adolescente. Através da perspectiva clínica e psicodinâmica, os
autores descrevem as mudanças corporais e afetivas que ficam
evidentes nessa fase. A busca de si e a identidade são os principais
marcos desse momento em que, nessa perspectiva, os/as/es jovens
vivem um luto pela perda do corpo infantil.
O processo de mudança corporal e hormonal oriundo da
puberdade é somado às novas demandas sociais de “ajustamento”,
causando conflito entre a busca da identidade adulta – que implica
autonomia – ao mesmo tempo em que deseja manter-se na posição
infantil. (ABERASTURY; KNOBEL, 1981).
Esse “dilema existencial” construído pelos autores do
desenvolvimento humano considera, basicamente, a constituição
biológica e psicológica dos sujeitos. No entanto, dialoga com a
compreensão social da adolescência e das demandas contemporâneas
que atravessam a vivência desse momento. Entretanto, para Louro
55
(2000) os corpos nem sempre atuam como principal ferramenta de

observação do desenvolvimento das identidades e vice-versa.
Antes de mais nada, o presente trabalho é resultado de

estruturações teóricas e metodológicas, com base em pressupostos
do Construcionismo Social, dos estudos de Gênero e dos
delineamentos da pesquisa qualitativa atrelados ao método de
entrevista semiestruturada. Nos debruçamos sobre os documentos
oficiais da educação e dos estudos e produções científicas atuais sobre
a adolescência, o discurso social e as construções sobre identidade
de gênero, orientação sexual e saúde, a fim de construirmos uma
base teórica que sustentasse nossa pesquisa durante seus três anos
de duração.
Temas como Saúde e Orientação Sexual exigiram de nós,
pesquisadoras/es, um resgate histórico-cultural que evidenciasse
a construção e a atribuição de sentidos ao longo do tempo, até
entendermos os conceitos e constructos atuais. A partir da
perspectiva do Construcionismo Social, foram resgatadas inúmeras
discussões acerca da sexualidade humana, que permitiram a
compreensão do modo como a Orientação Sexual se relaciona com
a Saúde e quais motivos a tornaram um tema a ser incorporado às
práticas cotidianas das escolas.
Apesar de serem considerados assuntos “superados”, os
estudos sobre gênero foram e são importantes ferramentas de
questionamento, (des)construção e (re)construção da realidade.
Ao afirmarmos que há um processo social através do qual nos
construímos enquanto mulheres, homens, pessoas, criamos a
possibilidade de questionar e desacomodar algumas verdades
atravessadas por discursos como os do essencialismo e do
determinismo, que defendem a ideia de que existe uma forma
correta de existir.
Além de ser uma visão dicotômica da realidade – que
56
considera apenas duas possibilidades: homem ou mulher, certo

ou errado, normal ou patológico – tais concepções determinam
espaços, condições e comportamentos “naturalmente designados”
aos sujeitos, que obedecem a uma relação hierarquizada e desigual,
que produz violência sobre as pessoas.
Desde que nós, enquanto sociedade, concebemos a saúde
como o contrário de doença, as práticas desenvolvidas nesse campo,
entre profissionais e usuários/as do sistema público de saúde ficaram
limitadas. Essa lógica resultou em muitos discursos e sentenças que
marcaram corpos e existências, categorizando os sujeitos enquanto
doentes ou saudáveis, normais ou anormais.
A partir dos estudos feministas, os Estudos de Gênero
conquistaram um espaço de protagonismo, inicialmente no
meio acadêmico, tornando a luta das mulheres uma ferramenta
de transformação da realidade social. Hoje, quando falamos
sobre gênero, colocamos em evidência não apenas a história das
mulheres, mas a história dos homens e de todos os sujeitos que
se constituíram em contextos de pluralidade e não se resumem a
uma categoria embora, historicamente, as mulheres e pessoas que
não se “encaixam” nos padrões de “normalidade” determinados
pela sociedade precisaram lutar pelo lugar de fala e de visibilidade,
destinados quase que naturalmente aos homens desde sempre.
Ao ressaltarmos essa diferença, não pretendemos anular
nenhuma forma de existência, apenas reconhecer que os
caminhos percorridos foram diferentes e, alguns, mais difíceis que
outros, reafirmando a importância dos Estudos de Gênero e do
Movimento Feminista para a formação do pensamento crítico e o
questionamento das relações de poder.
As questões de gênero também abriram espaço para outras
discussões, como a da sexualidade, que apesar de ser anterior,
era censurada e, muitas vezes, atrelada às patologias e perversões.
Em verdade, a obra de Foucault trouxe muitos questionamentos
acerca do assunto, o que, de certa forma, escancarou os tabus e
compreensões baseadas na moralidade.
57
No contexto da saúde, a homossexualidade era vista

como um desvio à norma e, durante muito tempo, a psiquiatria
e a medicina buscaram suas causas e até uma possível cura. As
consequências disso são, até hoje, discursos cujo preconceito está
enraizado, apesar de muitos/as cientistas e pesquisadores negarem
a relação entre a homossexualidade e a patologia. Ou seja, a análise
das práticas discursivas pode, com certeza, romper com discursos
enraizados, mas o processo de legitimá-los parece muito mais fácil
e rápido.
Embora a etapa de coleta de dados e análise dos resultados
seja o momento mais esperado para essa pesquisa, seu adiamento
permitiu a estruturação desse estudo, que bebe de várias fontes
do conhecimento e está ancorado no saber de grandes referências
do assunto na área da pesquisa em educação. Nesse sentido, as
expectativas para o próximo ano são de total dedicação às entrevistas
e aos dados obtidos, principalmente no que se refere à análise das
práticas discursivas, a partir das narrativas docentes sobre Gênero e
Sexualidade no Ensino Médio.
Além disso, a necessidade de nos reinventarmos enquanto
pesquisadoras e pesquisadores nos permitiu a organização e
o lançamento do primeiro livro da coleção Gênero, Mídias e
Contemporaneidades, intitulado “Estudos de Gênero e Estudos
de Mídia: (des)construções contemporâneas”, através do qual
reunimos importantes estudiosos/as nas referidas áreas.
Essa produção é uma das tantas formas que encontramos
de estender à comunidade toda a nossa dedicação enquanto grupo
de pesquisa com a produção de conhecimento científico, tornando
ainda mais necessário e importante o investimento das instituições
de fomento à pesquisa no Brasil, principalmente o CNPq,
órgão financiador dessa pesquisa. O material produzido será
disponibilizado de forma eletrônica e gratuita em abril de 2021.
58
Referências
ABERASTURY, Arminda. KNOBEL, Mauricio. Adolescência

normal: um enfoque psicanalítico. Porto Alegre: Artmed, 1981.
DUQUE, Tiago. Reflexões teóricas, políticas e reflexões teóricas,
políticas e metodológicas sobre um morrer, virar e nascer travesti
na adolescência. Rev. Estudos Feministas, Florianópolis, 2012.
Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0104-026X2012000200010&lng=pt&tlng=pt.
Acesso em 27 jan. 2021.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de
saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: Como fazer
pesquisa qualitativa em ciências sociais. 10ª ed. Editora Record:
Rio de Janeiro – São Paulo, 2007.
LOURO, Guacira Lopes (org). O corpo educado: Pedagogias da
sexualidade. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
Capítulo 3
Psicologia e gênero: reflexões sobre saúde mental e

masculinidades
Adriane Bonatti
A s presentes reflexões partem de nossa participação

enquanto bolsistas no Grupo de Pesquisa em Psicologia
da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões
– Campus de Frederico Westphalen, que se compromete, junto ao
Programa de Pós Graduação em Educação (PPGEDU-URI/FW),
com os discursos de gênero na mídia e nos documentos oficiais da
educação brasileira. Nossas produções acadêmicas, no ano de 2020,
contemplaram estudos interdisciplinares, desde às Humanidades
até a área da Comunicação, permitindo, assim, a integração de
múltiplos saberes.
Embora o foco de nossas discussões, quase sempre,
tenham observado as experiências subjetivas, políticas e sociais das
mulheres e o modo como se construíram as concepções de gênero
que, até hoje, produzem opressão e violência aos grupos entendidos
enquanto minoritários, no presente escrito nos desafiamos à análise
de práticas discursivas sobre as masculinidades, principalmente
de dois importantes materiais: Seja homem: a masculinidade
desmascarada (BOLA, 2020) e Saúde mental, gênero e dispositivos:
cultura e processos de subjetivação (ZANELLO, 2018).
O livro “Seja Homem: a masculinidade desmascarada” foi
escrito pelo autor, poeta e educador congolês JJ Bola, no ano de
2020. A obra retrata, através da ótica do autor, a masculinidade
como uma construção social condicionada. Bola, ao utilizar-
60
se de exemplos relacionados às suas tradições culturais, tem por

objetivo desmascarar alguns mitos alusivos à masculinidade
como, por exemplo, a crença que proíbe garotos de chorar ou
demonstrar emoções que sejam diferentes da raiva. Além disso, a
obra traz conexões entre o feminismo, a igualdade de gênero e a
masculinidade, no intuito de desvendá-la e redefini-la.
A segunda obra, intitulada “Saúde mental, gênero e
dispositivos: cultura e processos de subjetivação” foi publicada em
2018 pela pós-doutora em Psicologia Clínica Valeska Zanello. Ela
aborda, a partir da lógica binária de gênero (homem e mulher), os
caminhos de subjetivação e suas implicações no tornar-se homem
e mulher no Brasil, estendo suas compreensões a todos os países
cuja cultura é atravessada pelo sexismo, o racismo e a desigualdade
econômica de forma estrutural.
Suas reflexões partem da sua experiência clínica e suas
pesquisas sobre os dispositivos de subjetivação, os quais evidenciam
discursos como o do “verdadeiro homem”, relacionado à noção de
bom provedor, trabalhador e, ainda, alguém sexualmente ativo. A
autora traz uma perspectiva completamente distinta do primeiro
autor, uma vez que ocupa outros lugares: mulher, branca, classe
média, brasileira e acadêmica.
Entretanto, através da correlação entre duas obras tão
relevantes para os Estudos de Gênero e que, ao mesmo tempo,
marcam territórios e trajetórias tão distintas, aspiramos uma
discussão que integre argumentações, olhares e lugares de fala, a fim
de compreendermos de que modo as práticas discursivas atravessam
e são atravessadas pelos processos de tornar-se pessoa a partir da
construção das masculinidades1 e dos modos de ser homem.
Nesse sentido, o termo masculinidade deve ser visto em
seu plural, masculinidades, pois sua compreensão possui diversos
atravessamentos culturais, sociais, econômicos e individuais.
1 A utilização do termo masculinidades refere-se à compreensão de que não há um

único modo de manifestação e experimentação de vivências masculinas. Assim, seu
emprego no plural visa contemplar múltiplas vivências.
61
Além disso, falar sobre masculinidades está intimamente ligado à

promoção de saúde mental, dentro de uma perspectiva ampliada
de saúde coletiva, uma vez que as implicações dessa construção
social causam sofrimento aos sujeitos, aumentando a incidência de
problemas de saúde pública, desde os transtornos internalizantes,
como a ansiedade e a depressão, até as problemáticas sociais como
as violências e o suicídio.
Além disso, para falar sobre gênero é necessário resgatar os
processos de construção da teoria Feminista, a qual postula o tema
enquanto uma construção de papéis, identidades, características e
valores atravessada por processos históricos, sociais, pedagógicos
e culturais que afetam diretamente os sujeitos que entendemos
e se entendem enquanto homens e mulheres. Nesse processo de
constituição, instala-se, ainda, a divisão social, que coloca o homem
e a mulher em polos opostos e cria as dicotomias como forte-fraco,
provedor-maternal, viril-delicado, entre outras.
Para as/os grandes autoras/es dos estudos feministas, o
gênero é considerado uma forma de integrar uma pessoa ao espaço
que ela ocupa no mundo. Sua manifestação através de um corpo
traz consigo o estabelecimento de verdades, características objetivas
e subjetivas, princípios e modos de ser que possuem o intuito de
classificar e, consequentemente, dividir. Assim, simbolicamente,
se legitimam as práticas de separação entre o que é considerado
masculino e o que é considerado feminino.
Essas reflexões emergem da necessidade de investigar e
abordar as masculinidades nos estudos de gênero, contemplando
diferentes visões do que é ser homem na contemporaneidade. Para
melhor compreensão deste assunto, partiremos da perspectiva
do Construcionismo Social2, perpassando autores e autoras pós-
estruturalistas da Psicologia, da Educação e das Ciências Sociais.
2 O Construcionismo Social é um movimento que visa compreender os processos

histórico-culturais pelos quais os sujeitos descrevem, explicam e dão sentido ao
mundo em que vivem e a si mesmos. (GERGEN, 2009).
62
Da sexualidade ao gênero: o Feminismo e a história dos homens
Ao pensarmos em questões relacionadas ao gênero na

contemporaneidade não podemos deixar de rebuscar nosso
entendimento pelo passado. Antes do termo gênero ser tomado
como objeto de estudo, as discussões nas quais se abordava os
modos de ser homem ou mulher na sociedade estavam relacionadas
à sexualidade. Por conseguinte, as noções sobre sexualidade sempre
estiveram atreladas à “natureza humana”, uma vez que eram restritas
ao sexo biológico, tornando o olhar sobre os aspectos sociais um
desafio. Nesse sentido, compreendê-la enquanto algo construído
por nós, sujeitos sociais, põe em questão todas as concepções
anteriores atreladas aos corpos e à ideia de universalidade produzida
e fomentada pela Ciência.
As muitas formas de fazer-se mulher ou homem, as várias
possibilidades de viver prazeres e desejos corporais são sempre
sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente (e hoje
possivelmente de formas mais explícitas do que antes). Elas são
também, renovadamente, reguladas, condenadas ou negadas.
(LOURO, 2000, p. 4).
Os debates sobre as identidades sexuais e de gênero
adquiriram maior visibilidade a partir da década de sessenta,
quando também emergiram os movimentos Feminista, LGBTQIA
e, inclusive, os reacionários - de pessoas que, de certa forma, se
sentiam ameaçadas pelas manifestações dos grupos minoritários.
Em 1988, a sexualidade foi discutida por Foucault enquanto
um dispositivo histórico, por intermédio do questionamento
dos discursos contraditórios proferidos em relação ao assunto.
(FOUCAULT, 1988; LOURO; 2000).
A sexualidade era abordada pelo que Foucault chamou
de “visão vitoriana” (p. 8), uma herança destinada à sociedade
ocidental que marca o momento a partir do qual passamos a falar
da sexualidade com reticências, como algo que deveria ser contido
e censurado. Ao ser socialmente “encerrada”, a discussão sobre a
sexualidade passou a ser um assunto privado, restrito à família
63
conjugal e à função exclusivamente de reprodução da espécie. Por

conseguinte, criam-se as ideias de família e de casal legítimo, que
seria, necessariamente, procriador, sendo autorizado a falar sobre o
sexo e responsabilizado por mantê-lo sobre a hipocrisia do segredo
doméstico. (FOUCAULT, 1988).
Mais tarde, Foucault volta a discutir a sexualidade a partir
do contexto greco-romano, adentrando as relações entre os corpos
masculinos e femininos, por intermédio do prazer. O autor busca
em várias fontes as diversas e paradoxais noções de identidade
sexual, que, apesar de não serem fixas, permitem pensar em como
entendemos hoje as diferenças entre os sujeitos e as classificações
dicotômicas a que os submetemos. (FOUCAULT, 1988).
A partir das discussões foucaultianas e pós-estruturalistas,
foram evidenciadas e questionadas as Grandes Verdades, que até
então eram indeléveis e capazes de delimitar territórios e modos
de existir no mundo. Em outras palavras, os discursos sociais
literalmente determinavam quem poderia estar, onde poderia
estar e quem não possuía espaço nesses lugares. Esses discursos
eram legitimados e mantidos pelas relações de poder - dinâmicas
capazes de produzir verdades e manter determinadas ordens sociais.
(FOUCAULT, 1992).
As crescentes discussões sobre sexo e sexualidade tornaram o
termo “gênero” um meio de diferenciar a prática sexual dos papéis
sexuais atribuídos às mulheres e aos homens - ainda que muitos
autores/as pontuem que não há um vínculo simples ou direto entre
sexo e papel sexual. A grande associação entre sexualidade e os
estudos de gênero deve-se ao fato de que o estudo da história das
mulheres e sua participação na constituição da sociedade sempre
esteve marcado pela subordinação ao sexo masculino e essa, por
sua vez, era determinada por compreensões restritas ao biológico -
tanto da diferença entre os corpos quanto dos papéis atribuídos na
reprodução da espécie, por exemplo. Nesse sentido, a objetificação
sexual das mulheres seria o princípio da sujeição. (SCOTT, 1995).
Além da história dos homens e das mulheres serem contadas
64
separadamente, demorou muito tempo para que fosse reconhecida

a participação política e econômica das mulheres nos grandes
marcos sociais. As próprias vertentes dos estudos de gênero, de
várias áreas do saber, acabam por limitar o estudo à compreensão
causal da relação desigual entre homens e mulheres, legitimando a
existência das mulheres na história, mas guardando sua participação
em uma caixa separada. Joan Scott (1995, p. 82), ao trazer
inúmeras contribuições de historiadores/as feministas, questiona a
dificuldade das teorias se distanciarem de compreensões generalistas
e universais, tanto nas dimensões biológica e psicológica quanto na
social.
De acordo com a teoria feminista, o gênero seria uma
construção histórica, social, educacional e cultural de papéis,
identidades, características e valores atribuídos a mulheres e homens.
Nesse sentido, se apresenta também como um princípio de divisão
social, em que homem e mulher encontram-se em polos opostos
como forte-fraco ou bruto-delicado. Assim, ocorre uma simbologia
divisória sobre a masculinidade e a feminilidade atrelada ao poder.
(BOURDIEU, 2002).
Ainda para Bordieu (2002), formar o gênero em uma pessoa
seria nada menos do que uma forma de ser aceito no ambiente
ao qual a pessoa se encontra, uma vez que ao ser estabelecido
determinados atributos que distinguem as questões de gênero há
o estabelecimento de verdades, estruturas objetivas e subjetivas, de
acordo com o princípio de visão e divisão, que por sua vez legitimam
a simbologia fazendo com que exista separações e exclusões entre
masculinidades e feminilidades.
Durante a década de 70, as compreensões sobre o
gênero masculino se davam, exclusivamente, pelo papel
sexual desempenhado pelos homens. Isto é, pelo conjunto
de comportamentos e expectativas que definiam o ideal de
masculinidade. Segundo Bordieu (1995, p. 188), o conceito de
papel masculino
65
[...] tem vários pontos fracos, tanto em termos científicos

quanto práticos. Ele não nos permite compreender questões
relacionadas ao poder, à violência ou à desigualdade
material. Trata-se de um conceito que não nos permite ver as
complexidades no interior da masculinidade e as múltiplas
formas de masculinidade. Além disso, ele oferece estratégias
muito limitadas de mudança.
Para o autor, a masculinidade trata-se de uma “configuração
de prática em torno da posição dos homens na estrutura das relações
de gênero” (1995, 187). Isso significa que falar sobre masculinidade
implica dar ênfase ao que as pessoas realmente fazem e não naquilo
que é esperado que elas façam. A partir disso, ele atenta para o
uso do termo masculinidades, no plural, para que não adquira o
sentido de um acúmulo de identidades e estilos de vida, que correm
o risco de serem atrelados e reduzidos ao consumo, principalmente
porque, dentro dos estudos de gênero, a reprodução e a produção
social são um dos mais importantes eixos de discussão, uma vez que
tanto as feminilidades quanto as masculinidades são construídas
dentro da lógica da produção.
No entanto, falar sobre a posição dos homens evidencia
o caráter constituinte da masculinidade nas relações sociais. Ela
também está atrelada aos corpos, uma vez que ao falarmos sobre
homens, estamos falando de pessoas adultas que se expressam
através de corpos. Segundo Bordieu (1995, p. 189) “no gênero,
a prática social se dirige aos corpos”, fazendo assim com que as
masculinidades sejam corporificadas, sem perder o caráter social.
Dois aspectos dessa complexidade são particularmente
importantes para se pensar sobre a masculinidade. Em
primeiro lugar, diferentes masculinidades são produzidas
no mesmo contexto social; as relações de gênero incluem
relações entre homens, relações de dominação, marginalização
e cumplicidade. Uma determinada forma hegemônica de
masculinidade tem outras masculinidades agrupadas em
torno dela. Em segundo lugar, qualquer forma particular
de masculinidade é, ela própria, internamente complexa
e até mesmo contraditória. Devemos essa compreensão
especialmente a Freud, que enfatizava a presença da feminilidade
dentro da personalidade dos homens e da masculinidade dentro
66
da personalidade das mulheres e que analisou os processos de

repressão pelos quais essas contradições são tratadas. Mas ela
surge igualmente em outros contextos. (BORDIEU, 1995, p.
189, grifo nosso).
Zanello (2018) aponta que os estudos das masculinidades
surgiram a partir das críticas e reflexões levantadas pela segunda onda
do Feminismo. Isto é, nesse momento, feminino e masculino eram
ainda conceitos universais, entendidos (pelas próprias feministas)
de forma simplista, sem pluralidade. Com o fortalecimento dos
movimentos minoritários e a inclusão das pautas dos movimentos
negro e LGBTQIA+, passou-se a pensar sobre de quais homens e
de quais mulheres se estava falando naquele momento. Ou seja, de
quem eram as pautas levantadas pelo feminismo e a quem elas, de
fato, beneficiavam?
Ainda assim, a crítica à sociedade patriarcal, que supõe
a hierarquia central entre homens e mulheres é oriunda do
movimento feminista, a partir do qual outras vozes puderam ser
ouvidas, outras histórias puderam ser contadas e, inclusive, os
estudos das masculinidades tiveram espaço como forma de criticar
o impacto do sexismo sobre os homens – entendendo que, mesmo
assim, ocupam posições privilegiadas em relação às mulheres de
modo estrutural.
Kimmel (2016) destaca que existem dois tipos de estudos
das masculinidades. O primeiro, do qual temos mais propriedade
para discutir aqui, tem seu surgimento nos estudos feministas,
partindo da noção central de gênero como categoria de análise
história e constituinte da relação hierárquica de opressão de homens
sobre mulheres. A segunda, trata-se de estudos autônomos, que
considera a masculinidade como algo em si mesmo, sem se utilizar
da base epistemológica dos feminismos. Ainda sob sua perspectiva,
a masculinidade nada mais é que uma coleção variável e constante
de significados a partir dos quais os homens constroem a si mesmos
e suas relações com outros homens e com o mundo.
Essa ideia de que a masculinidade é socialmente construída
e historicamente mutável não seria compreendida como uma
67
perda, que algo está sendo tirado dos homens. De fato, dá-nos
algo valioso de forma extraordinária – a agência, a capacidade
de agir. Dá-nos uma impressão de possiblidades históricas que
substituem a resignação desalentada que invariavelmente se
apresenta como essencialismos atemporais, a-históricos. Nossos
comportamentos não são simplesmente apenas a natureza
humana, porque meninos serão meninos. Dos materiais que
encontramos em nosso entorno e em nossa cultura – outras
pessoas, ideias, objetos – criamos ativamente nossos mundos,
nossas identidades. Os homens, tanto individualmente e
coletivamente, podem mudar. (KIMMEL, 2016, p. 100).
Dentro de suas contribuições, Kimmel (2016) desenvolve
categorias de discussão sobre como se constroem as identidades de
gênero masculinas. Em primeiro lugar, as masculinidades surgem
como relações de poder. Isso significa que, apesar de existir uma
noção de que “somos todos iguais”, ela é hipotética e não se sustenta
na forma como a sociedade valoriza, na prática, cada modo de
ser homem. Nesse sentido, existe um padrão de masculinidade,
dentro da cultura dominante: homens brancos, de classe média,
no começo da meia-idade, heterossexuais (p. 104-105). Essa
“masculinidade” estabelece o que é esperado e valorizado em outros
homens, marcando subjetivamente como insuficientes aqueles que
não correspondem a esse modo de existir.
Outro modo em que se produz masculinidade é como
forma de fugir de tudo aquilo que é considerado feminino. Nesse
sentido, ela está intrinsicamente atrelada à sexualidade, onde a
identidade sexual do menino remeterá à sexualidade do pai – ou
a forma como esse pai existe simbolicamente em seu imaginário.
Assim, surgem as noções do homem e do pai que é ameaçador,
predatório, dominante e punitivo. Além de evidenciar a lógica de
dominação masculina, ainda sugere que o menino se identifica com
essa figura opressora, para que se torne ele mesmo o opressor.
Essa concepção tem origem na teoria do Complexo de
Édipo, postulada por Freud. No que se refere ao desenvolvimento
infantil, é estabelecido que todo medido tem como principal tarefa
confrontar a imagem do pai para desenvolver uma identidade
68
segura de si, como um homem. Conforme Kimmel (2016, p. 107):

Todo esse processo, Freud argumentou, é estabelecido em
movimento pelo desejo sexual do menino pela sua mãe. No
entanto, o pai fica no caminho do filho e não cederá sua
propriedade sexual ao seu filho fraco. A primeira experiência
emocional, então, aquela que inevitavelmente acompanha sua
experiência de desejo, é o medo – o medo do pai maior, mais
forte, e mais poderoso sexualmente. É o medo, experienciado
simbolicamente como o medo da castração, Freud afirma, que
força o menino a renunciar a sua identificação com a mãe e
buscar se identificar com o ser que é de fato a fonte de seu medo,
o seu pai. Dessa forma, o menino é agora simbolicamente capaz
de realizar a união sexual com uma substituta que pareça com
a sua mãe, que é uma mulher. O menino se torna generificado
(masculino) e heterossexual ao mesmo tempo.
Após esse “desligamento” do feminino, é necessário, ainda,
que os homens provem a sua masculinidade para outros homens.
Dentro de tudo que o sexismo impõe sobre as vivências masculinas,
esse é um dos grandes paradoxos: o homem “de verdade” é
heterossexual, ou seja, deve se relacionar e buscar uma mulher,
necessariamente, para se afirmar como homem. No entanto, a
validação da sua masculinidade deve vir de outros homens – aqueles
legítimos, supracitados. (ZANELLO, 2018).
Para Kimmel (2016), nesse aspecto, a masculinidade
[...] é uma aprovação homossocial. Testamos a nós próprios,
realizando feitos heroicos, nós nos arriscamos a tudo porque
queremos que outros homens nos outorguem a nossa
masculinidade. A masculinidade como reconhecimento
homossocial é repleta de perigo, com o risco de falha, e com
intensa e incessante competição. (KIMMEL, 2016, p. 110,
grifo nosso).
Em termos culturais, um dos principais atravessamentos das
masculinidades é a homofobia. Ela é definida como um princípio
organizador da nossa cultura, pois além de se constituir enquanto
um medo irracional de homens gays, ela ainda denota o medo de
ser percebido como gay. A experiência homossexual em si não é
a questão, mas sim a performance, a manifestação através do que
69
chamam de “afeminado”. E novamente nos deparamos com o

terror de estar minimamente próximo ao feminino.
A homofobia é um medo que outros homens nos desmascarem
nos emasculem, e revelem a nós próprios e ao mundo que não
conseguimos estar à altura, que não somos homens de verdade.
Temos medo de deixar os outros homens enxergarem esse
medo. O medo nos envergonha porque o reconhecimento do
medo em nós é uma prova para nós mesmos que não somos
tão viris como fingimos ser, que somos, como o jovem no
poema de Yeats, “aquele que perturba ruidosamente em uma
pose máscula pelo seu coração inteiramente tímido”. Nosso
medo é o medo de humilhação. Sentimos vergonha de ter
medo. (KIMMEL, 2016, p. 113, grifo nosso).
O dispositivo da eficácia e a virilidade laborativa na subjetivação

masculina
O termo dispositivo é empregado por Foucault (1996)

para se referir ao conjunto de discursos, instituições, organizações,
regulamentações, leis, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas etc., marcados pela heterogeneidade. Eles são
constituídos pelo verbal e o não-verbal, pelo que é dito e o que
não é, sendo a dinâmica entre esses dois elementos classificada em
três dimensões: saber, poder e subjetividade. Em outras palavras,
os dispositivos, em sua complexidade, atravessam os processos de
subjetivação através desses três segmentos, sendo capazes de alterar,
modificar, controlar e modelar as ações e modos de existir dos
sujeitos. (ZANELLO, 2018).
Em relação às masculinidades, a autora enfatiza o papel das
tecnologias de gênero - que, por sua vez, constituem os dispositivos
- e estão implicadas desde os processos de produção de conteúdo
simbólico na mídia até a inscrição das performances e regras de
comportamento na vida cotidiana. No Brasil - assim como em
qualquer cultura atravessada pelo sexismo - Zanello (2018) discute
o tornar-se sujeito sob o viés do binarismo, através dos dispositivos
amoroso e materno, que implica a constituição subjetiva das
70
mulheres, e o dispositivo da eficácia, direcionado aos homens.

O último será discutido aqui como um produto do
patriarcado, que recebeu constantes manutenções do machismo
estrutural ao longo da história. É importante deixar claro que, com
isso, não pretendemos inverter os lugares nas relações de violência
e opressão entre os sexos, muito menos colocar os homens em uma
posição menos privilegiada. O que buscamos é justamente colocar
em evidência o quanto o sistema sexista traz sofrimento também
àqueles que dele se beneficiam.
O dispositivo da eficácia é responsável por produzir modos
de ser homem, com base nos pré-requisitos discutidos na seção
anterior, que foram firmados no decorrer da história ocidental. Nesse
sentido, a autora dá ênfase à característica de “impenetrabilidade”
do homem. Que se estende desde à compreensão sexual, até a
repressão emocional.
Um verdadeiro homem, descreve Zanello (2018, p. 233)
[...] é um comedor/penetrador e um trabalhador, e não pode
pairar erotismo anal, o qual corresponde, no imaginário
cultural, a uma posição feminina (nem que seja de passagem)
de “ser penetrada”. No fulcro da homofobia, encontramos
assim a misoginia. Ele pode “até” penetrar outro homem
(ainda assim pairam dúvidas), mas ser penetrado jamais.
As questões da sexualidade ativa e da relação com o
trabalho são o núcleo das discussões da autora. Ela denomina
virilidade laborativa a compreensão de que o trabalho se constitui
enquanto um pilar na identidade masculina. Para ilustrar, utiliza-se
de exemplos como quando um casal heterossexual em matrimônio
engravida. A mulher, incontestavelmente, é a primeira a deixar a
atividade laboral e se dedicar aos cuidados da casa e do bebê. O
homem, automaticamente, se torna o responsável por prover as
necessidades da família.
Do contrário, caso a situação se invertesse, causaria,
no mínimo, um estranhamento aos familiares e amigos mais
próximos. Sabe-se que, caso o homem deixasse o trabalho para
cuidar da casa, esse seria taxado de folgado, aproveitador etc. No
71
caso de homens de classes superiores, que não possuem uma rotina

de trabalho, mas possuem capital suficiente para ficar em casa
caso necessário, a mesma situação poderia gerar outros discursos,
porque independentemente de seu esforço, haveria o sucesso viril.
O homem de classe baixa, o homem pobre, se não está trabalhando,
é considerado vagabundo e sem honra. (ZANELLO, 2018).
Seja homem: a produção de subjetividade evidenciada na

narrativa de JJ Bola
A pergunta que surge ao falarmos sobre masculinidade é

o que quer dizer “Seja homem!”? Esta pergunta nos traz a reflexão
e percebemos que ela é utilizada, muitas vezes, como ferramenta
de silenciamento emocional. Falamos em masculinidades e seus
atravessamentos com questões de gênero pré-definidas em nossa
sociedade, mas o que significa ser homem? O autor Bola (2020)
traz à luz estas reflexões e exemplifica suas compreensões a partir de
suas vivências e, com elas, os atravessamentos culturais.
O autor inicia sua narrativa pela sua experiência enquanto
alguém que cresceu em Kinshasa, capital da República Democrática
do Congo, evidenciando o choque cultural que sentiu diante de uma
simples caminhada com seus tios, colegas de encontros religiosos,
nomeados como tios pelo autor. A caminhada foi realizada em grupo
cuja característica explicitava uma cultura diferente da encontrada
em diversos países, camisas coloridas eram vistas como chamativas
e o mais intrigante, para os de fora da cultura, os homens andando
de mãos dadas, ato bastante comum para a cultura congolesa. Dar
as mãos, na cultura congolesa, significa uma maneira de demonstrar
a união dos homens e sua afinidade, bem como carinho um pelo
outro. Para Bola, a presença de uma norma diferente da sua cultura
foi o suficiente para balançar sua afinidade cultural pela percepção
do preconceito emanado pelos demais.
Havia um certo jogo de aceitação dentro dos grupos perante
apresentação de determinado comportamento em que o respeito
teria a ver com o quão forte você é ou quão forte os outros acham
72
que você é. Esse respeito já havia sido conquistado por ele dentro
dos grupos que desejava participar devido sua aparência corpulenta
e, portanto, respeitosa. No entanto, pela diferença cultural existente
- o andar de mãos dadas com um homem - foi o suficiente para
exclusão do grupo e perda de respeito. Neste momento podemos
ver o quanto a significação, construída socialmente através de
movimentos culturais, é capaz de moldar os comportamentos dos
indivíduos a fim de mantê-los dentro das normas socialmente
aceitas e configurá-los como homens, logo, há uma masculinidade
esperada dentro de cada cultura ou movimento social.
Confirmando a modelagem cultural pelas normas impostas,
o autor comenta que, quando criança, costumava demonstrar suas
emoções na intensidade que elas vinham, mas que com o tempo e,
portanto, melhor compreensão e aquisição de normas socialmente
impostas, passou a reprimir emoções que, quando transbordadas,
eram vistas como indicação característica de raiva. Sobre isso Bola
(2020, posição 128) diz:
Eu chorava se estivesse triste ou incomodado, eu chorava se
estivesse feliz, eu chorava de raiva. Eu me expressava com toda
a intensidade possível, através da tristeza e também da alegria.
Mas, com a idade, isso foi mudando aos poucos. Me tornei
mais estoico, mais reprimido, mais reservado. Nunca deixava
as outras pessoas descobrirem como eu me sentia de verdade,
às vezes nem eu mesmo sabia. Existia um ódio, uma fúria
queimando dentro de mim, que eu disfarçava chamando de
crises de raiva, de pavio curto ou de incapacidade de controlar
meu temperamento. (BOLA, 2020).
O homem, na maior parte do tempo e das culturas, não
recebe a possibilidade de expressar seus sentimentos. Na realidade é
induzido a fazer o oposto com frases do tipo “homem não chora!” que
induzem a repressão de sentimentos, podendo apenas demonstrar
raiva já que “homem é assim mesmo, vive brigando”. Na realidade,
não se trata de emoções escondidas, mas sim apresentadas da única
maneira que é permitida: através da raiva. Se está triste? Raiva. Se
está com medo? Raiva. Se está frustrado? Acesso de fúria. Em todas
as ocasiões a raiva pode (ou será que deve?) aparecer. Dentro dessa
73
perspectiva vemos a saúde mental passar despercebida, surgindo

apenas quando algo maior acontece como, por exemplo, o suicídio.
Segundo os dados de 2016 da World Health Organization -
WHO (2020) as taxas de suicídio em adolescentes e adultos em todas
as idades é de 7,6% para as mulheres e 13,5% para os homens, ou
seja, mais homens cometem suicídios em todo o mundo. Portanto,
há correlação entre a dificuldade de expressar sentimentos, de pedir
ajuda, a saúde mental em geral, cujas consequências podem ser
diversas, incluindo aqui o risco de suicídio.
Afirmando a ideia anterior, Butler (2003) reflete que
gênero é uma identidade construída com e pelo tempo, através
de uma repetição padronizada de atos, ou seja, comportamentos.
Apesar de gênero não ser conceituado da mesma forma que os
conceitos de masculinidade e feminilidade, os papéis de gênero
tendem a ser encaixados como papéis femininos ou masculinos,
numa relação dicotômica - homem forte, mulher frágil. Neste
sentido, a performance encontrada no gênero pode ser estendida
a compreensão de que desempenhamos papéis e atos tidos como
femininos ou masculinos de acordo com o gênero que nos é
próprio, validando nosso senso de distinção de gênero.
Sendo assim, se tratarmos a masculinidade como um
produto cultural, produzido pela e para a comunidade, variando de
acordo com a cultura presente e, portanto, normas pré estabelecidas,
vemos que existem masculinidades, no plural, já que cada cultura
trará uma significação para o que é ser homem dentro de sua própria
realidade. Logo, falar sobre seus significados é uma tarefa bastante
complexa, assim como seus conceitos.
Para Connell (1995) há dois aspectos que compilam a
complexidade para se pensar sobre a masculinidade. O primeiro
deles diz que diferentes masculinidades são produzidas dentro de
um mesmo contexto social, onde as relações de gênero incluem
relações entre homens, marginalização, relações de dominação
atreladas ao poder e cumplicidade, assim, um determinado
modelo de masculinidade agrega outras masculinidades agrupadas
74
em seu entorno. O segundo comenta que, dentro de qualquer

modelo de masculinidade há uma complexa rede de combinações
e conhecimentos, tornando-a, por vezes, contraditória de seus
próprios princípios entrando em consonância com o que Freud
trazia sobre a presença de feminilidade dentro da personalidade
dos homens e da masculinidade incluída dentro da personalidade
das mulheres, revelando processos de repressão tratadas por essas
contradições. Portanto, para essa autora, o fato de haver uma
contradição das definições de masculinidade, não há possibilidade
de pensá-la com efeitos apenas para os homens, pois isso faria
com que deixássemos de compreender a dinâmica de gênero em
sua estrutura um tanto quanto contraditória e, principalmente,
mutável, arraigada por questões sociais, culturais e econômicas.
Além disso, para Bola (2020) ao falarmos sobre
masculinidade devemos compreender a forma como atualmente
vivemos nossa realidade e sistema, que é através da lógica do
patriarcado. Uma sociedade patriarcal, para o autor, é aquela em
que homens assumem posições hierárquicas primordiais de poder
dentro da esfera pública, dominando assim o governo, a política,
os negócios, os empregos, a religião e, ainda, estende esse poder
para dentro dos relacionamentos interpessoais, seja em casa com
sua família, seja com suas amizades.
Dessa forma, o patriarcado protege e prioriza o direito dos
homens acima dos direitos das mulheres, traz consigo uma das
definições do poder dentro da nossa sociedade. O autor comenta
que a palavra patriarcado nunca foi ouvida durante sua infância,
adolescência, nem na escola e raras vezes na universidade e que
vê isso como algo negativo, pois ter o conhecimento sobre o teria
preparado para uma série de situações vividas ao longo da vida,
principalmente as relacionadas com sua saúde mental. No trecho
descrito abaixo, Bola (posição 181 e 195) fala um pouco mais sobre
a dificuldade de lidar com algumas questões socialmente aceitas
apenas através da fala de mulheres, pois seu significado está atrelado
a características femininas e, dentro da nossa sociedade atual, não
devem ser relacionadas à homens, mesmo já tendo sido identificado
75
por Freud que características femininas estão presentes em homens

e vice-versa:
De fato, tenho visto muitos jovens e indivíduos adultos
sofrendo em silêncio com questões como ansiedade e depressão,
angústia e traumas emocionais, aflições que são respondidas
com agressões, nos outros e em si mesmos, tudo porque,
repetidamente [...], eles ouviram dizer que um homem precisa
ser duro, estoico, lógico, um homem jamais pode sucumbir
à emoção ou à vulnerabilidade, ele deve sempre mostrar
indiferença [...] eu mesmo precisei aprender com as cicatrizes
em torno da minha masculinidade e da minha virilidade, como
as dúvidas que enfrentei na infância e na adolescência, [...]
enquanto homem adulto e com o modo como encaro essas
incertezas, muitas vezes sob a influência bastante estereotípica
da repressão masculina.
O autor ainda comenta o motivo de ter usado como
subtítulo “A masculinidade desmascarada”, está direcionado
ao sistema patriarcal que ao mesmo tempo favorece os homens
quaisquer posições de poder, em vantagem na sociedade, também,
essencialmente, os limita, inibindo crescimento diferente do
esperado, com uma masculinidade própria, podendo levar os
indivíduos à um colapso. A ideia do autor com o livro é possibilitar
uma visão mais ampla da masculinidade, apresentando soluções
para que os homens possam começar a ver seus traumas pessoais
e aprender uma nova visão integrada e fluida sobre o que é ser
homem.
A compreensão de Bola (2020) vai ao encontro com o
que Connell (1995) evidencia em seu escrito sobre as políticas
da masculinidade. Em seu texto Connell (1995), aponta que a
masculinidade deve ser vista como um projeto, utilizando-se do
sentido utilizado por Sartre, pois a construção se baseia em diversos
encontros complexos com outras instituições presentes na vida do
sujeito como, por exemplo, as escolas e o mercado de trabalho,
além de ser atravessada pelas forças culturais impostas, por exemplo,
pela comunicação de massa e pela religião. Assim, o projeto da
masculinidade, ou, como preferimos pensar, das masculinidades,
trata-se de uma construção tanto coletiva quanto individual, pois o
76
sujeito é visto com caráter ativo ao receber todas as influências citadas

anteriormente e pensar junto com elas aquilo que irá construí-lo,
lembrando que as masculinidades são fluidas e mutáveis, portanto,
o projeto delas está sempre em construção bem como a mudança
de paradigma dos indivíduos por ela atravessados.
Falar sobre as masculinidades sob a perspectiva dos estudos

de gênero é um grande desafio para duas pesquisadoras que sempre
se comprometeram com as histórias e as pautas das mulheres, o
que denuncia o movimento inconsciente que nós, estudiosas/os
feministas, fazemos ao separar epistemologicamente a história das
mulheres da história dos homens. Ainda assim, essa segregação está
atrelada ao lugar que ocupamos academicamente e socialmente,
enquanto mulheres, brancas, cisgênero, inseridas no Ensino
Superior e, nem sempre, cientes das demandas de quem ocupa
outros territórios.
No entanto, ao pensarmos no impacto do sistema patriarcal
como um todo, ao produzir uma cultura sexista, que se relaciona
diretamente com os problemas de raça e classe, lançamos nosso
olhar, atravessado pela Psicologia, para os modos de subjetivação e
os impactos de todos esses itinerários na saúde mental dos sujeitos.
Evidenciar as problemáticas das masculinidades é, também,
criticar o patriarcado, o machismo, a homofobia, o racismo,
a misoginia, as desigualdades sociais, os sistemas de violência,
a reprodução dos discursos de ódio e a produção de sofrimento
mental, uma vez que todas essas questões estão ligadas por uma
teia social, a qual precisamos trazer à tona para que não sejam vistas
como independentes. Existem, sim, pautas maiores, mais evidentes,
que estão nos jornais, nos índices de feminicídio, de transfobia, de
violência policial, de marginalização, que são prioridades para o
cuidado e as ações de saúde. Entretanto, olhar para as questões que
estão à margem é um movimento de resistência à segregação que
tanto criticamos enquanto feministas.
77
Nesse capítulo, foram discutidas as relações de poder

e impotência na vida dos homens. A homofobia, ao se tratar do
medo que homens sentem de outros homens, é uma condição
que explicita e impulsiona a relação de dominância presente nas
masculinidades. Ou seja, dentro das formas de se tornar homem,
existe uma hierarquia, e quem sofre com a posição de “menor
virilidade” são os homens gays, os homens não nativos – imigrantes
– e os homens negros.
As experiências de impotência dos homens são reais, eles
de fato a sentem e certamente agem sobre isso, contudo, não
descreve de forma precisa a sua condição. Em contraste às vidas
das mulheres, as vidas dos homens são estruturadas em torno de
relacionamentos de poder e acesso diferenciado ao poder, assim
como o acesso diferenciado enquanto grupo.
Por fim, entendemos que ao se falar em masculinidades,
devemos pensá-las no plural, já que sua construção está atrelada a
movimentos culturais, sociais e individuais de normatização através
da criação de um modelo comum, para aquela cultura, que deve
ser seguido pelos demais. Quaisquer movimentos diferentes dos
esperados pela cultura e pelas simbologias ditas como característica
das masculinidades, ocorrem movimentos de segregação e exclusão
do membro divergente.
Consequentemente, a segregação vivenciada pelos homens
ou até mesmo a angústia proveniente do estilo de masculinidade
aceita por determinada cultura, ocasionam, como o caso do autor
JJ Bola, grandes sofrimentos no quesito da saúde mental. Esses
sofrimentos são vistos através do modo adotado para se relacionar
interpessoalmente, por vezes através da agressividade, ou seja,
com dificuldades nos manejos e expressão das emoções, também
é possível ver os sofrimentos através do risco mais alto de suicídio
efetivo em comparação às mulheres, altos índices de violência
doméstica e transtornos de ansiedade e depressão.
Apesar do capítulo ter dialogado sobre a importância de se
compreender as masculinidades, diante do cenário da saúde num
78
todo, percebemos como necessária a continuação dessas discussões

de forma crítica. Logo, desejamos um olhar cada vez mais atento
para essa pauta, buscando uma melhor compreensão das causas
e dos efeitos ocasionados pelas influências culturais e sociais em
nossas vidas e em como o padrão pré-estabelecido pode trazer
sofrimento aos indivíduos considerados “desviantes”, buscando
assim o desenvolvimento de estratégias que facilitem o acesso à
saúde mental dos indivíduos atingidos direta ou indiretamente.
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de Rafael Spuldar. Porto Alegre: Dublinense, 2020. E-book sem
paginação.
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79
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ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos:
cultura e processos de subjetivação. 1. ed. Curitiba: Appris, 2018.
Capítulo 4
Por uma epistemologia feminista no ensino do

Direito
Nariel Diotto
Tiago Anderson Brutti
Elizabeth Fontoura Dorneles
O presente estudo nasceu das pesquisas realizadas a partir

do projeto “Por uma epistemologia feminista no ensino
do Direito: o reconhecimento das relações desiguais de gênero para
a promoção da justiça social” (PAPCT/UNICRUZ). Discute-se
neste projeto a importância fundamental de uma epistemologia
crítica feminista aplicada ao ensino do Direito, a fim de possibilitar
que as mulheres sejam reconhecidas como iguais dentro de um
ambiente em que o gênero masculino historicamente estabeleceu
sua hegemonia.
O estudo justifica-se por permitir estímulos à educação
jurídica, social e cultural, tendo em vista que discussões a respeito
possibilitam a formação de profissionais aptos a influenciar a
reconstrução da condição das mulheres. Além disso, permite a
formação de cidadãos mais conscientes, capazes de transformar
hábitos culturais, em busca de uma realidade compatível com
o bem-estar das mulheres, distanciando-se de fatores capazes de
articular contribuir para a lógica da dominação.
O objetivo desta pesquisa é compreender em que medida a
inserção de uma epistemologia feminista no ensino do Direito pode
contribuir para a formação de profissionais aptos a reconstruir os
papeis da mulher na sociedade contemporânea, em consonância
com os direitos humanos e fundamentais. A metodologia
82
empregada é qualitativa, com finalidade exploratória, sendo

utilizado, essencialmente, material bibliográfico e doutrinário para
o levantamento das informações.
Para atingir o objetivo da pesquisa, o artigo foi dividido em
duas seções. Inicialmente, será realizada uma análise da construção
do conhecimento científico a partir da perspectiva feminista,
demonstrando como ocorreu o silenciamento das mulheres diante
da divisão sexual entre as esferas públicas e privadas. Após, parte-se
para a análise das diferentes perspectivas epistemológicas feministas,
adentrando, especificamente, na possibilidade de sua inserção no
ensino do Direito.
Uma perspectiva feminista do processo científico
É importante sinalizar, inicialmente, um aspecto

preponderante para a produção do conhecimento, que são as duas
dimensões em que foi baseada a divisão sexual: a esfera pública
e a esfera privada. As configurações desses espaços causaram uma
divisão de lugares para mulheres e homens, restando às mulheres a
esfera privada, que guarda relação com a domesticidade. De acordo
com Biroli (2018, p. 11):
Quando a dualidade entre público e privado não é
problematizada - o que é majoritário nas teorias da democracia
-, as relações de poder na esfera privada não são computadas na
compreensão de como os indivíduos se tornaram quem são e
dos limites desiguais para atuarem, individual e coletivamente.
Em outras palavras, a vida doméstica, em um conjunto
diferenciado de práticas que se estende da divisão sexual do
trabalho à economia política dos afetos, da responsabilização
desigual pelo cotidiano da vida a norma heterossexual, é
desconsiderada como fator que define as possibilidades de
atuação na vida pública.
A posição das mulheres na esfera privada, por muito tempo,
foi naturalizada como pertencente a condição biológica do sexo
feminino. Contudo, deve ser destacado que isso não é natural,
que deve haver uma desconstrução dos papéis de gênero. Essa
83
configuração de espaço público e espaço privado acabou tendo

consequências para a legitimação do sujeito do conhecimento,
tendo em vista que aquele que será reconhecido como capaz de
interferir no debate e na produção de conhecimento é aquele que
está no espaço público. Essa dualidade entre o público e o privado
constituiu os papéis de gênero, mas não o fez da mesma forma para
todas as mulheres: além de uma hierarquia de gênero, persistem
convergências entre gênero, raça, classe e sexualidade (BIROLI,
2018).
As epistemologias feministas defendem que a construção do
conhecimento é baseada na percepção de que as categorias de gênero
devem influenciar as práticas de investigação científica. Sobre a
epistemologia feminista, Matos (2008, p. 335) compreende que
se trata de “[...] um paradigma científico a uma só vez complexo,
multicultural e emancipatório que resgata dimensões abertas,
plurais e multidimensionais do conhecimento e da cognição”. As
epistemologias feministas podem ser consideradas uma forma de
saber, em decorrência das novas perspectivas em relação à ciência
e à epistemologia, apresentando uma alternativa diante dos
tradicionais saberes disciplinares. De acordo com Matos (2008, p.
343-344):
Esta outra epistemológica deve ser compreendida agora na
chave do multiculturalismo crítico e emancipatório que visa
resgatar raízes que permitam desmontar o conhecimento
produzido na exclusividade das chaves ocidentais, anglo-
européias, patriarcais, brancas, heteronormativas e masculinas
em prol de uma afirmação pluralista de ciências. [...] As formas
antigas e modernas de dualismos e binarismos serviram bem
ao propósito de justificar, e até de reproduzir, relações de
dominação, opressão e exploração (de gênero e muitas outras):
marcas sensíveis e facilmente identificáveis no sentido da
subordinação das mulheres, mas não apenas delas. O que se
coloca de novo pela pauta desse campo recentemente forjado
pelos estudos de gênero e feministas é a questão da diversidade
e do pluralismo numa visada complexa e paradoxal, por
imediata oposição aos binarismos de todas as ordens.
A emergência das epistemologias feministas se concentra
84
na tradição que hierarquizou os sujeitos, ignorando o pluralismo

e a diversidade, indo na contramão do conhecimento hegemônico
ocidental. Há de se mencionar a proximidade dos preceitos das
epistemologias feministas com a compreensão de Boaventura
de Sousa Santos sobre as epistemologias do Norte e do Sul na
estruturação e construção do conhecimento moderno.
Santos e Meneses (2009) discorrem sobre a existência de
um pensamento preponderante sobre a epistemologia moderna
ocidental, que aponta um padrão de hierarquização no qual, assim
como as culturas, as epistemologias também foram suprimidas
com o processo de colonização. Como resultado, haveria uma
supervalorização, também, das pesquisas científicas dos países do
Norte - países desenvolvidos - em detrimento dos países do Sul
- os colonizados (SANTOS; MENESES, 2009), bem como, a
predominância do conhecimento produzido pelo homem branco
ocidental em detrimento dos demais indivíduos alheios a essa
concepção, a exemplo das mulheres.
Diante da complexidade que envolve os diferentes grupos
de mulheres, é imprescindível o estudo de uma epistemologia
atenta as diferentes realidades e ciente de que o silenciamento das
mulheres contribuiu para a manutenção de um poder masculino
sobre o gênero feminino. Sobre as epistemologias feministas, Sattler
(2019, p. 1) expõe:
Dentre as inúmeras contribuições do feminismo para o
repensar da história da filosofia e da atividade filosófica
como tal, a epistemologia feminista é talvez a mais radical e
a mais desestabilizadora da nossa linguagem teórica tomada
em sua acepção canônica. Porque está em jogo aqui a nossa
própria prática conceitual e sua concomitante percepção
do mundo real – mas também do mundo social, moral e
político. Ao questionar as bases daquilo que se considera
como um dos núcleos fundamentais para a atividade filosófica
‘propriamente dita’, a epistemologia feminista responde de
certa forma à conhecida acusação de que ‘fazer feminismo’
não é ‘fazer filosofia’. Mas não apenas por tratar de questões
tradicionais – consideradas, portanto, como ‘legítimas’ –
da teoria do conhecimento e da filosofia da ciência, como
85
também por mostrar que tais questões não estão elas mesmas
isentas de um viés social e político (ainda que invisível porque
institucionalizado). O que sempre passou por ‘fazer filosofia’
pode muito bem ter sido sempre um ‘fazer a política’ do
interesse dominante.
Ignorar os diferentes saberes e as vozes das mulheres
enquanto produtoras de conhecimentos resulta na continuidade
das relações desiguais de gênero. É de extrema importância que
sejam repensadas as formas de conhecimento a fim de possibilitar
a participação das minorias e excluídos, não apenas na construção
do conhecimento, mas também na redemocratização do espaço
público.
Gebara (1997) compreende que as epistemologias elaboradas
a partir da tradição ocidental possuem viés antropocêntrico. Embora
a filósofa acredite que a construção dessa hegemonia ocidental não
tivesse a intenção direta de eliminar as mulheres, ela apresenta uma
descrição do conhecimento “[...] particularmente à experiência
de uma parte da humanidade apresentada como a experiência de
conhecimento de todos os humanos” (GEBARA, 1997, p. 33). Essa
forma generalizada de tratar a humanidade, de forma assexuada,
permitiu que os seres masculinos universalizaram o saber a partir
de suas próprias experiências, caracterizadas pela óptica dominante
e de poder. O conhecimento validado, considerado o verdadeiro
conhecimento, seja ele científico, filosófico, teológico, foi aquele
divulgado pelos homens. Enquanto às “[...] mulheres e ao povo
pobre restava o conhecimento empírico, baseado na experiência
cotidiana e que não era reconhecido como verdadeiro”. Houve,
portanto, um processo de hierarquia e hegemonia do conhecimento
aliado a uma exclusão de uma minoria que não era considerada
detentora de um saber formal. Gebara (1997, p. 33-34) traz uma
reflexão acerca da invisibilidade desses grupos sociais oprimidos:
Falava-se também dos graus do conhecimento, da sua
profundidade e extensão. Pobres e mulheres eram associados
a níveis mais baixos de abstração, de ciência e sabedoria. A
hierarquização do saber corresponde à própria hierarquização
social. Uma hierarquização fundada na exclusão das maiorias
86
em favor de uma elite masculina detentora do poder e do

saber. Ela se refere à questão das classes sociais e também
do gênero. O gênero masculino tem o monopólio do
conhecimento divulgado e socialmente aceito. A questão das
etnias também interfere no conhecimento. Em geral, os negros
são apresentados como os que menos sabem, assim como os
indígenas. A história de dominação marcou de tal forma as
bases de nossa cultura que adotamos como conhecimento
nosso aquele divulgado pelos detentores do poder político e
social. Não percebemos o quanto este procedimento ergueu
barreiras entre os povos e impediu uma verdadeira partilha de
saberes.
A formação do conhecimento baseada na realidade
singular desse sujeito epistêmico tradicional, acabou silenciando
o conhecimento de vários grupos não compreendidos nessa
lógica hierárquica superior, evidenciando apenas o conhecimento
emanado pelos homens. Construiu-se também, no conhecimento,
uma ideologia patriarcal capaz de condicionar o saber humano
sem que haja uma percepção clara disso. O sistema patriarcal, que
impõe a superioridade do gênero masculino e se faz presente nos
mais diversos aspectos, vai muito além de influenciar as relações
interpessoais. A dominação masculina está presente na própria
construção e aquisição do conhecimento.
As epistemologias feministas partem de uma óptica de
conhecimento feminino. Mas deve-se ter cuidado para que não
haja uma naturalização das diferenças entre os gêneros, que podem
contribuir na prevalência de estereótipos ou da própria hierarquia.
De acordo com Gebara (1997, p. 73), não é mais aceitável “[...] as
antigas distinções entre o masculino/razão e o feminino/emoção-
intuição”, até porque essa visão dualista é própria de uma estrutura
sistêmica patriarcal, apresentada como biologicamente natural.
A epistemologia feminista aponta para a compreensão
do sujeito do conhecimento como resultado das determinações
culturais, inserido em um ambiente complexo de relações sociais e
diversidades sexuais e étnicas. Além disso, a epistemologia feminista
aborda a estreita relação entre ciência e poder, relação capaz de
87
evitar a participação das mulheres em grande parte da história do

conhecimento.
Com efeito, não pode ser ignorado o fato de que o próprio
movimento feminista apresenta uma grande diferença quanto ao
“[...] feminismo pioneiro, considerado ‘tradicional’ e ‘hegemônico’,
com foco sobretudo nos anseios das mulheres ocidentais e em suas
lutas por direitos civis, e o feminismo periférico ou subalterno
[...]” (LIMA, 2018, p. 37). Esse feminismo periférico surge
posteriormente, dando voz a mulheres que não se enquadram nesse
perfil ocidental, “[...] geralmente negras, índias e marginalizadas,
habitantes do sul colonizado [...]” (LIMA, 2018, p. 37). Nesse
sentido, um feminismo homogêneo, formado por mulheres
brancas e privilegiadas, sem os devidos recordes de sexualidade,
classe e raça, não pode ser considerado emancipatório, ou estaria
correndo o risco de manter a categoria mulher como uma única
categoria universal.
De fato, durante muito tempo as mulheres foram
completamente excluídas da vida pública, limitando-se às tarefas
de cuidado e à domesticidade. O movimento feminista, como
um todo, foi (e continua sendo) de grande importância para
a reivindicação das lutas de mulheres, obstinadas a mudar o
contexto social do gênero feminino. Contudo, ao analisar o
cenário brasileiro, percebe-se que, no início do século XX, o
movimento feminista estava mais presente na classe burguesa da
sociedade, entre as mulheres que tinham a oportunidade de estar
na academia e estudar o tema. Em uma perspectiva das mulheres
negra1, o cenário foi ainda pior, pois no contexto pós-abolição da
1 Há uma contradição sobre o uso dos termos «negro» ou «preto». Conforme Valentim
(2020), “Achille Mbembe, filósofo e historiador camaronês, propõe [...] que o
conceito de escravo tende a se fundir com o de negro até estes se tornarem uma
coisa só. Para desfazer isso, ele defende a ‘reinvenção da comunidade’, e tal conceito
encontra respaldo no processo de ressignificação e politização da ideia de raça,
proposto pelo Movimento Negro Unificado no final da década de 70. Um artigo
publicado em 1967 por Lerone Bennet Jr, editor sênior da revista Ebony, traz pontos
importantes ao debate, como, por exemplo, a discussão que tomou conta dos Estados
Unidos à época. Bennet escreve que ‘há um grupo que sustenta que a palavra negro
é um epíteto impreciso que perpetua a mentalidade de mestre-escravo (…) outro
88
escravatura, a comunidade afrodescendente acabou ocupando as

periferias das cidades diante de uma política de exclusão racial, o
que impediu que muitas reivindicações das mulheres negras não
fossem englobadas pelos primeiros estudos feministas.
Tanto gênero quanto raça foram silenciadas. Mulheres
brancas, mesmo fazendo parte da academia e contribuindo com
estudos nas mais diversas áreas, não tiveram seus estudos validados
da mesma forma que o conhecimento masculino, branco e
hegemônico ocidental. As mulheres negras foram ainda mais
invisibilizadas, pois além de não alcançarem a oportunidade de
ingressar na academia, restavam-lhes trabalhos domésticos da classe
social mais baixa. Nesse cenário foram construindo-se diferentes
reivindicações das mulheres, que além de considerar o gênero,
também passaram a considerar raça e classe. De acordo com Lima
(2018, p. 37):
[...] a pluralidade de vertentes dentro do próprio feminismo
não possibilita que se escolha apenas um deles como o portador
das vozes de todas as mulheres, de modo que, nessa mesma
linha, estabelecer a concepção de apenas uma epistemologia
feminista como detentora de uma única forma de dizer o
conhecimento e concatenar um saber democrático seria, sem
dúvida, um equívoco [...].
Embora haja um consenso compartilhado, em relação a
grupo, constituído por defensores do Black Power, adotou um novo vocabulário em

que a palavra preto é reservada para ‘irmãos pretos e irmãs que estão emancipando a
si mesmo’”. Em questões semânticas, o princípio do “negro” é a palavra latina “niger”,
que significa “escuro ou preto”. Na língua inglesa, a palavra nigger é considerada um
insulto racial, usada de forma pejorativa contra pessoas negras, o que ocasionou a
preferência preferiu-se amplamente usar black (preto, em português literal), como
se pode ver no movimento black power. No ano de 2018, o então presidente dos
Estados Unidos (EUA) Donald Trump, foi acusado por sua ex-acessora de ter usado
o termo nigger, conduta que não foi confirmada e nem negada pela porta-voz da Casa
Branca, Sarah Sanders (ver em https://exame.abril.com.br/mundo/casa-branca-nao-
garante-que-trump-nao-usou-termo-depreciativo-com-negros/). Segundo o Estatuto
da Igualdade Racial, o termo “negro” é definido como: o conjunto de pessoas que se
autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição
análoga. Tendo em vista o disposto no estatuto, o uso do termo “negro” é de fato,
mais abrangente e ainda preponderante, de forma que este estudo adota este termo.
89
perspectiva de gênero e ao silenciamento das mulheres de forma

geral (sem os demais recortes de etnia, raça, classe, etc.), a pluralidade
existente dentro do movimento feminista deve ser também
considerada na construção de uma epistemologia feminista, o
que justifica o emprego de “epistemologias feministas”, no plural.
Por esta razão, existem diferentes abordagens na construção do
conhecimento, dentro de uma perspectiva feminista, o que será
melhor abordado no tópico seguinte.
Diferentes propostas de epistemologias feministas e a Ciência

Jurídica
A distinção proposta por Harding (1986) é bastante

difundida dentro do campo epistemológico feminista: a) teoria
feminista da perspectiva ou do ponto de vista (feminist standpoint
theory), pós-modernismo feminista (feminist postmodernism) e o
empirismo feminista (feminist empiricism).
A primeira categoria – a teoria feminista da perspectiva,
defendida por Nancy Hartsock, traz a crítica marxista2 da
dominação de classes na adoção de uma abordagem materialista
histórica3 especificamente feminista. Dessa forma, seria possível
2 Uma crítica recorrente a Marx e Engels é a ausência das discussões de gênero, o que
pode ter contribuído para “obscurecer mais do que revelar ou denunciar o carácter
específico do capitalismo”. Contudo, devem ser consideradas algumas questões: “[...]
em primeiro lugar, que a dificuldade dos autores em tratar a questão do gênero pode
ser lida à luz da constelação específica que ambos descrevem, ou seja, a ausência
das mulheres se deve não a uma escolha consciente feita pelos autores no ‘tema’ ou
‘sujeito’ que se torna protagonista da sua reflexão, descrição e crítica, mas, antes,
essa ausência retrata e reflete o espaço (invisível) que as mulheres foram forçadas a
ocupar (i.e., na esfera privada da ‘casa’ e na transformação da ‘família patriarcal’ em
‘família’ burguesa). Apesar disso, podemos afirmar que a teoria de Marx e Engels é
suficientemente flexível para incluir a questão das mulheres, quando mais não seja,
pelo viés de crítica da economia política” (COSTA, 2018, p. 126-127).
3 Karl Marx, buscou um caminho epistemológico, que fundamentasse o conhecimento
para a interpretação da realidade histórica e social que o desafiava, conferindo-lhe
um caráter materialista e histórico. Para o pensamento marxista, “importa descobrir
as leis dos fenômenos de cuja investigação se ocupa; o que importa é captar,
detalhadamente, as articulações dos problemas em estudo, analisar as evoluções,
rastrear as conexões sobre os fenômenos que os envolvem”. Marx buscou superar a
90
definir as tendências que constituem as bases estruturais do

patriarcado, focando na totalidade da atividade humana ao invés
de, apenas, se basear na atividade mais característica dos homens
no capitalismo. Para Sattler (2019, p. 13):
[...] Nancy Hartsock (1987) é quem primeiro deriva das
especificações epistemológicas gerais desta abordagem uma
reivindicação quanto à superioridade da visão das mulheres
para a compreensão das teorias e assunções implícita ou
explicitamente sexistas, classistas e – ainda – capitalistas. A
autoridade epistêmica sobre a representação da realidade é
outorgada a indivíduos ou grupos socialmente subordinados
aos distintos, mas interligados, sistemas de opressão, a partir
dos quais se esclarecem as principais características das
desigualdades e injustiças aí experienciadas: o seu conhecimento
do funcionamento da sociedade e das relações de gênero que
a permeiam seria mais profundo, mais específico, preciso
e fidedigno relativamente ao caráter contingente – e não,
portanto, natural ou inevitável – de sua condição; além disso, os
seus interesses por justiça social coincidiriam verdadeiramente
com interesses humanos universais – contrariamente à alegação
de universalidade da classe branca, masculina, privilegiada, da
epistemologia canônica.
Essa teoria propõe uma percepção do mundo social, além
da compreensão dos diversos aspectos que englobam as relações de
opressão. Considera-se que, dentro de um sistema capitalista, as
tarefas de reprodução e de cuidado desenvolvidas pelas mulheres,
acabam por afastá-las dos modos de produção, considerados,
originariamente, de função masculina. Nesse sistema econômico
de opressão, as mulheres possuem uma visão de acordo com a sua
perspectiva: acabam por identificar os desatendidos pela opressão
do patriarcado, ao mesmo tempo que são capazes de compartilhar
o conhecimento dos papeis ideológicos a elas destinados. Por este
viés, estando as mulheres situadas em uma posição dentro do
sistema capitalista-patriarcal, ela possui uma compreensão conjunta
de si, enquanto parte de um grupo subordinado, o que pode servir
separação sujeito-objeto, promovida pela lógica formal, partindo para a observação

acerca do movimento e da contraditoriedade do mundo, dos homens e de suas
relações (PIRES, 1997, p. 85).
91
como base para ações de emancipação. Além disso, poderão usar

a “[...] perspectiva da opressão a seu próprio favor, identificando
os espaços de confinamento e exclusão como pontos privilegiados
a partir dos quais compreender e avaliar o opressor e o oprimido
[...]” (SATTLER, 2019, p. 14). Nesse sentido, para essa teoria,
Miguel e Biroli (2017, p. 16) defendem que,
[...] a experiência feminina, assim como de outros grupos
marginalizados possuiria um privilegio epistêmico, sendo
mais capaz de aprender as estruturas de opressão e dominação.
Visões renovadas dessa posição apareceram no feminismo
latino-americano do século XXI, na busca de uma perspectiva
que unisse o pensamento decolonial ou pós-colonial com
as questões de gênero, privilegiando o ponto de vista das
mulheres do hemisfério Sul.
Quanto a segunda categoria, o pós-modernismo feminista,
tem como principal característica a ênfase dada à linguagem,
aos significados (de palavras e ações), contestando os sistemas
narrativos que representam “[...] um exercício de poder que outorga
legitimidade àquelas manifestações condizentes com as pretensões
vigentes de unidade e universalidade” (SATTLER, 2019, p. 15).
Ao tratar do feminismo pós-moderno, Lima (2018) traz ao debate
os novos sujeitos do feminismo nos debates de gênero, como as
mulheres pobres, indígenas, lésbicas e transgêneros. Assim como na
primeira categoria, o feminismo pós-moderno também explora as
diversidades sociais, mas não se limita a gênero, raça e classe. Nessa
trilha, Lima (2018, p. 40-41):
O pós-modernismo surge para desconstruir a ideia de um
metadiscurso que sozinho seja capaz de capturar as verdades
da ordem social. Na pós-modernidade, as grandes narrativas
não mais se sustentam, a complexidade e a fragmentação da
sociedade acabam por impedir a existência de universalismos.
Os discursos de legitimação passam a ser plurais, pois o campo
social é não homogêneo e não totalizante, rechaçando, portanto,
teorias sociais críticas que empregam categorias gerais como
gênero, raça e classe, pois tais categorias reduziriam muito a
complexidade das identidades sociais, perdendo sua utilidade.
Dessa forma, a categoria epistemológica do feminismo pós-
92
moderno nega a universalidade do conhecimento, pois considera

a identidade singular e pluralidade dos sujeitos, portanto, sendo
impossível universalizar a realidade das mulheres ou a categoria de
gênero, pois existem múltiplas realidades (LIMA, 2018). Uma das
representantes dessa epistemologia é Judith Butler (1990, p. 15-
16), que defende a desconstrução do sujeito do feminismo:
[...] qualquer esforço para dar conteúdo universal ou específico
para a categoria mulheres, presumindo que essa garantia de
solidariedade é exigida de antemão, produzirá necessariamente
facções, e que a “identidade” como ponto de partida não se
sustenta como base sólida de um movimento político feminista.
Butler (1990) tem uma preocupação com a reconstrução
das categorias do feminismo e com a própria concepção de
gênero, sem, contudo, atribuir um conceito de identidade de
grupo, ou reconhecer categorias totalizantes. Além disso, ela traz
uma problematização sobre a dualidade (sexo/gênero) que é o
ponto de partida no reconhecimento do sujeito feminista. Butler
(1990) critica o modelo binário, ou seja, tece críticas quanto ao
conceito de gênero como culturalmente construído, e também ao
sexo, que possui natureza biológica, pois esse conceito permitiu
a naturalização do “ser mulher”, aproximando o feminino da
fragilidade ou submissão. De acordo com Butler (1990, p. 26),
a dualidade sexo/gênero implica que “[...] não a biologia, mas a
cultura se torna o destino”. Portanto, ela desmonta a identidade de
gênero que oprime as singularidades humanas que não se encaixam,
argumentando que essa dualidade ocasionou uma supressão das
singularidades.
A última categoria, o empirismo feminista, propõe uma
obtenção de resultados objetivos, isentos de juízo de valor, alegando
que “[...] o sexismo e o androcentrismo são preconceitos sociais”
(HARDING, 1993, p. 14). Os movimentos sociais que defendem
a pauta feminista promovem uma perspectiva ampliada, no sentido
de reconhecer a predisposição androcêntrica na produção de muitos
conhecimentos. Sua virtude é “[...] responder como é possível a
um movimento político, o feminista, contribuir para o aumento
93
da objetividade do conhecimento científico” (HARDING, 1993,

p. 14). Contudo, possui alguns questionamentos, como bem
apontado por Harding (1993, p. 14):
Primeiro, o empirismo supõe a irrelevância da identidade
social do observador para a qualidade dos resultados da
pesquisa. O empirismo feminista argumenta que as mulheres
(melhor dizendo, mulheres e homens feministas) têm, como
grupo, maior probabilidade de produzir resultados objetivos,
destituídos de tendenciosidade, do que homens ou pessoas
não feministas, como grupo social. Segundo, afirmamos
que uma razão básica da visão androcêntrica preconcebida
se encontra na seleção dos temas de pesquisa e na definição
do que neles é problemático. O empirismo insiste que suas
normas metodológicas se aplicam apenas ao contexto da
justificativa e não ao da descoberta, em que são identificadas e
definidas as problemáticas. Por conseguinte, assumimos como
demonstradas a inadequação e a impotência dos métodos
científicos no alcance de seus objetivos. Em terceiro lugar,
frequentemente (sic) indicamos que conclusões androcêntricas
decorrem exatamente da adoção das normas lógicas e
sociológicas de investigação - o apelo à corroboração por parte
da comunidade científica já existente (ocidental, burguesa,
homófoba, branca, sexista); a generalização para todos os
humanos de observações feitas sobre seres masculinos. Nossa
crítica empirista da “má ciência”, realmente, subverte os
próprios critérios de ciência que ela pretende reforçar.
A partir da abordagem das classificações epistêmicas,
percebeu-se que lógica da epistemologia feminista sugere que as
categorias mais fundamentais do pensamento científico sofreram
de um desvio machista, que está estruturalmente, integrando os
sistemas de valores culturais. Por meio da compreensão da ciência
e de sua historicidade, embasada por determinismos de divisão
sexual, é possível promover a ampliação do conhecimento a fim
de uma estratégia de desconstrução de papéis sexuais e de gênero.
De acordo com Sattler (2019, p. 1), ao vivenciar a exclusão
da experiência feminina do saber tradicional, as feministas passaram
a questionar a justificação epistêmica para isso. Identificou-se
um sujeito epistêmico, possuidor de determinadas características
94
privilegiadas, em detrimento de outras (homem, branco,

heterossexual, americano ou europeu). Esses conceitos também
possuem outros valores implícitos, tais como “[...] valores morais,
culturais e até mesmo econômicos – tais como indubitabilidade,
independência e sucesso” (SATTLER, p. 2). Sattler (2019, p. 2)
complementa:
O que a epistemologia feminista pretende mostrar, portanto,
é que também as noções supostamente imparciais da
tradição epistemológica estiveram desde o início marcadas
pela posição e pelas condições do sujeito cognoscente, e
que as investigações filosóficas e científicas supostamente
desinteressadas dos pesquisadores são, na verdade, igualmente
parciais. No horizonte desta empreitada está, evidentemente,
não apenas a legitimação do espaço e do estilo cognitivo das
mulheres na pesquisa filosófica, mas também a busca por
um conhecimento do mundo e da realidade que possua um
padrão mais democrático – com o reconhecimento de que os
processos cognitivos ou de produção do conhecimento são
inescapavelmente políticos.
O que se pretende a partir da reflexão sobre a teoria do
conhecimento e a epistemologia feminista é promover uma
rediscussão sobre a produção do conhecimento e de seus
fundamentos epistemológicos e metodológicos. A partir dessa
reflexão é possível compreender o que justifica o desfavorecimento
das mulheres enquanto sujeitos sociais, por meio de uma ferramenta
analítica voltada ao estudo dos mecanismos de opressão e de
produção da desigualdade social em virtude do gênero.
Em se tratando, especificamente, da inserção das
epistemologias no ensino do Direito, deve ser enfatizado que as falas
dos textos do Direito, os temas e a própria produção foi realizada de
homem para homem. Mesmo que a presença das mulheres como
profissionais do Direito seja, hoje, bastante visível, a invisibilidades
das mulheres nos livros é perceptível, os discursos nos congressos
da área ainda são abertos usando a expressão “meus caros senhores”
ou “doutores” (SALGADO, 2019). O reconhecimento de uma
epistemologia feminista no ensino do Direito busca estudar o
conhecimento e sua produção no contexto específico da ciência
95
jurídica, sendo também uma área crítica, preocupada com a

existência de um preconceito de gênero infiltrado no cotidiano.
Salgado (2019, p. 69) expõe:
As juristas feministas, na sua produção sobre ciência, parecem
preocupar-se pouco com a epistemologia feminista no Direito.
Geralmente, o foco das discussões nos livros e manuais estão
nas temáticas relativas aos Direitos das mulheres. Porém, para
pensar sobre a ciência do Direito em uma perspectiva feminista
é necessário romper com um Direito misógino e que exclui
algumas pautas de luta.
A epistemologia feminista não é apenas a existência de
temáticas e pesquisadoras mulheres, mas há uma nova linhagem,
novos conceitos e premissas na produção do conhecimento.
O modelo feminista de pensar é capaz de romper com modelos
hierárquicos de funcionamento da ciência, os quais estruturaram
a pesquisa científica. A crítica feminista busca encontrar a sua
própria teoria, criando uma linguagem nova e argumentos que
estejam de acordo com as premissas feministas. Além disso, para
uma epistemologia feminista existir dentro do estudo do direito,
“[...] é necessário também pensar no objeto a ser estudado, no
sujeito que estuda esse objeto e também nos métodos próprios, ou
seja, naqueles que são os requisitos tradicionais de uma ciência”
(SALGADO, 2019, p. 71).
Outro aspecto que deve ser considerado relativo a ausência
da epistemologia feminista no ensino do direito, é o apagamento
das mulheres e também o apagamento do objeto, ou seja, a
desconsideração daquilo que as mulheres contribuem para o estudo
do Direito. Por exemplo, o trabalho doméstico das mulheres, que é
feito no âmbito privado e sem fins lucrativos (esfera reprodutiva),
não é considerado como trabalho sob a óptica do Direito do
Trabalho. Considera-se como trabalho o que pertence a esfera da
produção e não da reprodução (SALGADO, 2019, p. 71).
Embora seja visível que a produção da ciência do direito
vive um aumento de pesquisadoras mulheres, isso é geralmente
uma exceção. Se comparado aos homens, há um pequeno número
96
de mulheres como sujeitos da ciência. De acordo com Salgado

(2019, p. 77):
Mesmo quando autoras mulheres estão produzindo ciência
do Direito é importante pensar quem são essas mulheres que
conseguem o direito de dizer o que é Direito. Geralmente são
mulheres brancas e de classe média. Exceções a esse perfil são
raras e dependem de políticas públicas de incentivo à pesquisa
e permanência nas instituições de ensino ou de um enorme
esforço familiar/comunitário/pessoal. Discute-se ainda se seria
franqueado a um homem produzir uma ciência pautada na
epistemologia feminista [...] Entende-se aqui que isso é possível,
porém trata-se de um estudo de um aliado ao feminismo e não
de um feminista. Para ser considerado um estudo feminista,
deve-se levar em consideração o objeto e também os conceitos
dessa produção científica. Porém, não se pode ignorar que o
sujeito da pesquisa influencia nos resultados e que uma mulher
pode - não é que deve - ter mais facilidade e sensibilidade para
esse tipo de pesquisa.
Para a construção de um direito menos sexista é necessário
adotar uma epistemologia feminista, que questione não somente
os conceitos jurídicos, mas todo jeito de produzir e refletir sobre
a ciência. Dessa forma, é possível desconstruir o Direito e a sua
dogmática tradicional, rompendo com padrões caracterizados pelas
relações de poder, além de reconstruir a ciência do Direito sob a
perspectiva do feminismo e de seus pressupostos epistemológicos.
Interpretar a atuação da sociedade, sua estrutura e também

organização, por meio de relações de poder entre homens e mulheres,
é uma forma de desarticular os pilares de sustentação das relações
desiguais de gênero. A construção de papeis diferenciados é baseada
em normas sociais e valores morais arraigados no tempo, que
atribuem à mulher uma posição de inferioridade e discriminação,
que contribuem para a continuidade da supremacia masculina.
Defender que o Direito adote uma perspectiva alternativa
à dogmática tradicional e seja utilizado como ferramenta de
97
emancipação e não de subjugação das mulheres, é criar atores sociais

conscientes da condição de sexismo e misoginia preponderante na
sociedade. O positivismo e a dogmática tradicional não conseguem
tratar a discriminação das mulheres nem oferecer segurança e
confiança para que as vítimas de violações de seus direitos obtenham
reparação.
Por esta razão, promover o estudo de epistemologias
feministas no Direito tem o potencial transformador na formação
dos profissionais, tendo em vista que, a prática jurídica estruturada
por princípios feministas, pautados na equidade e autonomia
das mulheres, é capaz de prover uma assistência consciente da
existência do machismo predominante na sociedade, que norteia
o tratamento destinado às mulheres. O estudo das epistemologias
feministas dentro da Ciência do Direito, pode ser um instrumento
de reconstrução de práticas jurídicas igualitárias, bem como,
da própria jurisprudência, que muitas vezes contribui com a
continuidade das relações desiguais de gênero.
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99
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VALENTIM, Marcos Luca. Negro ou Preto? Eis a questão. Mídia
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editorninja/negro-ou-preto-eis-a-questao/. Acesso em: 26 abr.
2020.
Capítulo 5
O conflito quanto ao uso de vestiários por

transgêneros e transexuais e a colisão de direitos
fundamentais
A segregação de categorias identitárias - tais como os

transgêneros e transexuais - ainda é uma realidade na
sociedade brasileira, mesmo diante das crescentes transformações
culturais, econômicas e tecnológicas. Este grupo é objeto de várias
espécies de violências e violações de direitos, que criam barreiras
invisíveis, dificultando o acesso ao mercado de trabalho, à saúde, à
educação, à Justiça, entre outras garantias fundamentais.
Cumpre destacar que a discriminação provém de valores
radicados na sociedade, que guardam forte influência da religião,
dos “bons costumes”, da política, da família e da moralidade. É
perceptível que a sociedade ainda se encontra submersa em bases
patriarcais extremamente enraizadas. Este patriarcalismo que se
consubstancia em padrões sociais tidos como corretos acaba se
convertendo em uma carga de discriminações no âmbito social
contra tudo aquilo que ousar fugir dos padrões desejáveis.
Diante desses impasses, foi feita a escolha deste grupo de
indivíduos para o desenvolvimento do presente estudo, tendo
em vista que estas categorias sofrem intensos e crescentes atos
discriminatórios - em várias esferas sociais - de forma direta
e indireta. A pesquisa objetiva traduzir a preocupação com
as questões relacionadas à intolerância a que essas pessoas são
submetidas, principalmente quando se trata do uso de vestiários de
acordo com o gênero identificado, uma vez que nestes casos ainda
102
é possível constatar uma aparente colisão de direitos fundamentais,

merecendo o tema ser tratado com mais cautela.
Como forma de elucidar a questão levantada foi realizada
uma pesquisa bibliográfica acerca da transexualidade, buscando
assim fundamentações teóricas que embasassem a temática, e
como forma de vivenciar o tema foi realizada uma pesquisa na
jurisprudência pátria a fim de demonstrar na prática a aplicabilidade
da discussão proposta, e como os Tribunais Superiores tem se
posicionado a respeito do tema.
Definindo conceitos
Antes de adentrar no universo trans, é de suma importância

definir alguns conceitos que serão trabalhados ao longo do presente
artigo. Um deles é o significado de “identidade”. Isto porque,
diariamente, os indivíduos se deparam com algumas indagações,
tais como: Quem é você? Do que gosta? De onde veio? E tudo isto
faz parte da construção de sua identidade, de como se identifica em
relação a vários aspectos e de que forma pode ser explicado para
outras pessoas (HALL,2007). Nesse sentido, Hall (2007, p.103-
133) afirma que:
Utilizo o termo identidade para significar o ponto de encontro,
o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas
que tentam nos interpelar, nos falar ou nos convocar para que
assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos
particulares e, por outro lado, os processos que produzem
subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais
se pode falar. As identidades são, pois, pontos de apego
temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas
constroem para nós (...) Isto é, as identidades são posições
que o sujeito é obrigado a assumir, embora “sabendo” sempre
que elas são representações, que a representação é sempre
construída ao longo de uma “falta”, ao longo de uma divisão a
partir do lugar do Outro e que, assim, elas não podem, nunca,
ser ajustadas – idênticas – aos processos de sujeito que são
nelas investidos.
De acordo com (HALL,2007), as pessoas seriam interpeladas
103
para assumir determinadas posições identitárias, até mesmo

no modo de pensar e se expressar. Este processo de construção
identitária ocorre utilizando discursos, palavras e práticas que já
estão à nossa disposição. Contudo, essas práticas discursivas sofrem
modificações ao longo do tempo. Portanto, as identidades não
poderiam ser pensadas como fixas/eternas, mas como algo em
constante evolução (COLLING,2018).
Na mesma vertente Silva (2007, p. 97) defende que, a
identidade “não é uma essência, não é um dado ou fato – seja da
natureza, seja da cultura. Não é fixa, estável, coerente, unificada,
permanente. Tampouco é homogênea, definitiva e acabada”. Para
o autor, a identidade é uma construção, uma relação ou um ato
performativo, pois estaria ligada a sistemas de representação, bem
como intimamente conectada com relações de poder (SILVA,2007).
Em relação ao termo gênero, este seria a forma com que
as pessoas identificam umas às outras e se identificam como
sendo homens ou mulheres. Jesus salienta que, em termos de
gênero, qualquer ser humano pode ser enquadrado, com todas
as limitações comuns a qualquer classificação, como transgênero
ou “cisgênero”. No caso dos Cisgêneros, seriam as pessoas que se
identificam com o gênero ao qual foi atribuído no nascimento. Já
as não-cisgêneros são aquelas que não se identificam com o gênero
que lhes foi determinado, como é o caso dos transgêneros, ou trans
(JESUS,2012).
Algumas pessoas cruzam de uma forma mais intensa as
normas de gênero, tais como: as transexuais e as transgêneros. De
acordo com (COLLING,2018) é extremamente difícil definir ou
distinguir travestis, transexuais e pessoas trans, tendo em vista que
se estaria tentando definir identidades. Neste ponto, ressalta-se
que cada identidade é composta por uma grande quantidade de
características que nunca deixam de ser criadas e recriadas. Neste
contexto, seria arriscado tentar criar categorias tão rígidas do que é
ser uma ou um “transexual de verdade”, o que, por exemplo, é feito
por meio de alguns discursos médicos em relação ao tema.
104
Compactuando com este pensamento, (PAMPLONA

E DINIZ, 2007) também entendem que seja inviável e errôneo
pensar a transexualidade em termos universais. No entanto, de
forma abreviada (e como trataremos no presente estudo), o sujeito
transexual será compreendido como aquele que não reconhece o
sexo biológico que lhe foi atribuído no momento do nascimento.
Essas pessoas se sentem inseridas dentro de um corpo estranho,
distinto daquele que sentem que realmente pertence ao seu gênero.
Desta forma, está presente um conflito com as normatizações e
regulações de gênero.
Os transgêneros também são considerados como um
desafio quando se trata de definição. A terminologia é utilizada
de forma genérica ao se referir a todas as pessoas que, de alguma
forma, transitam entre os gêneros mais conhecidos (feminino e
masculino). Neste compasso, é como se em determinados dias,
eles quisessem se apresentar tanto na forma de vestir, como de se
comportar, com elementos marcados como femininos e, em outros
dias, como masculinos. Neste contexto, é como se essas pessoas não
se identificassem com os gêneros que a sociedade definiu de forma
dicotômica (COLLING,2018).
Desfazendo o gênero da concepção tradicional
Atualmente, existe uma concepção de normalidade inserida

no modelo binário de gênero, sendo este classificado entre a
mulher/feminino e o homem/masculino que, por sua vez, acaba
interferindo até mesmo na posição de ocupação dos indivíduos
dentro do contexto social (CUNHA,2015).
Nota-se que, ao longo da história, o sexo sempre assumiu
grande relevância para a individualização da pessoa natural.
Estes signos em sua maioria são construídos antes mesmo do
nascimento, pois no momento em que é revelado à mãe o sexo
da criança, aquele feto já não é mais feto, mas sim um menino ou
uma menina. Com a revelação, vem um conjunto de expectativas
que são materializadas por meio de brinquedos, modelos, cores
105
e projetos para o futuro, em torno daquele ser que ainda sequer

chegou ao mundo (BENTO,2008).
Neste contexto, conforme ressalta Bento (2008, p.36)
“antes de nascer, o corpo já está inscrito em um campo discursivo”.
Quando o indivíduo nasce, já encontra ao seu redor estruturas
funcionando e determinando o que é normal ou anormal. É
perceptível que aquilo que é dito como um dado natural, na
realidade, é o resultado de normas de gênero e que, muitas vezes,
essa opressão acontece desde muito cedo.
Neste compasso, o sexo acaba sendo utilizado para Bento
(2008, p.36) como “uma das normas pelas quais se torna viável,
qualificador de humanidade à matéria corpórea”. A construção de um
corpo-sexual acaba não sendo unicamente decidida pela genitália,
mas também em virtude das cirurgias simbólicas elaboradas pelas
instituições que objetivam a construção da sexualidade dita como
“normal”. Tais instituições eliminam ou colocam à margem da
sociedade aqueles considerados como anormais, como é o caso dos
transexuais, transgêneros, travestis, entre outros (BENTO, 2008).
Os transgêneros e transexuais trazem ao mundo - que sempre
foi dividido e estruturado em razão da genitália - uma desorientação
mediante corpos que ousam cruzar os limites fixos do masculino/
feminino. Estes sujeitos passam a lutar por uma identidade de
gênero que contraria aquela que lhes foi atribuída pela genitália, o
que causa certo incômodo para a maioria das pessoas que adotaram
o modelo binário de gênero (BENTO,2008). Este novo universo
traz consigo dúvidas, angústias, solidão e uma presente sensação de
rejeição.
As identidades trans, aparecem como uma forma de
rompimento do modelo binário de gênero. As pessoas cisgêneras
que fazem parte deste modelo binário, são aquelas que possuem
identidade de gênero em conformidade com o sexo biológico, ou
seja, que lhe foi designado no nascimento. Os obstáculos surgem
quando às identidades transgêneras não são reconhecidas em
virtude da normatividade cisgênera. Neste contexto, nas palavras
106
de Bento (2008, p. 36) cria-se “um aparato compulsório que

reforça a naturalização de uma identidade em detrimento da
outra”, corroborando, para a marginalizações dos transgêneros e
transexuais (INTERDONATO, 2017).
Para (BUTLER, 2019), em sua obra “Problemas de
Gênero”, realiza o rompimento com este padrão estabelecido pelo
modelo binário de gênero. Na concepção da autora, o chamado
sexo biológico não causa o gênero, ou seja, o sexo feminino não
causa um gênero feminino, e um sexo masculino não causa um
gênero masculino. Em seus ensinamentos, sexo e gênero podem ser
discordantes e inconsistentes.
A teoria da autora caminha no sentido de que o sujeito é
fruto da linguagem e do contexto social em que está inserido. Todo
este cenário traz a ideia de performatividade, ou seja, de que existe
um processo de construção performativa, o que é possível ilustrar,
por exemplo, com o caso dos Drag queens. Eles não oferecem uma
imitação infiel e desleal da feminilidade, mas trazem a feminilidade
em si mesmos, por um determinado espaço de tempo. Para
Buther, as pessoas, assim como os Draq queens, também fazem ou
foram treinados para fazer atos, gestos e atuações performativas.
Portanto, a diferenciação sexual não pode se restringir à produção
de gênero, tendo em vista que é perfeitamente possível fazer e
explorar a masculinidade e a feminilidade que estão desconectadas
do chamado sexo biológico (BUTLER, 2019).
A identidade de gênero traduz uma discussão que ultrapassa
a conjuntura dos modelos tradicionais para uma concepção
construída por meio de uma perspectiva social (BUTLER, 2019).
A autora confronta os moldes da heterossexualidade construída
culturalmente, pois segundo sua teoria, o gênero não está atrelado
diretamente ao sexo. O modelo binário é excludente para quem
não se enquadra nesta divisão de sexo e gênero, tal como é o caso
dos transexuais e transgêneros. Nessa vertente, é necessário romper
com o modelo binário e compreender que masculino e feminino
são ficções políticas, e que homens e mulheres são construções
posteriores (PRECIADO e BOURCÍE, 2015).
107
O uso de vestiários pela categoria trans
Verifica-se que, desde a educação infantil, o vestiário

ostenta um espaço emblemático da constituição das diferenças de
gênero. Neste lugar, ocorre a classificação de quem poderá dele se
utilizar dependendo do gênero que lhe foi atribuído. Nesse sentido,
Teixeira e Raposo (2007, p. 1) afirmam que:
Os banheiros são espaços de alta densidade simbólica para a
investigação das relações de gênero e sexualidade no contexto
público e escolar. Materializam e expressam concepções e
práticas de cuidado do corpo e do meio ambiente - já que são
locais de depósito das excreções – marcadas por significados
de sexo e gênero: como são arquitetados e organizados? Como
são usados? Quem os mantém limpos? Tais questões sugerem
reflexões que articula gênero, sexualidade, corpo e educação.
O espaço se torna ainda mais emblemático quando tratamos
da sua utilização por transexuais e transgêneros. A referida temática
ainda é muito sensível e controversa na doutrina e jurisprudência.
É possível vislumbrar essa dificuldade tanto na esfera cível quanto
na trabalhista, que em síntese gira em torno de definir se este grupo
de indivíduos deve utilizar o banheiro de acordo com o seu sexo
biológico ou com o gênero com o qual se identifica. A questão,
inclusive, já foi objeto de ação direta de inconstitucionalidade,
proposta pelo Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo,
contra a Lei nº 1.185, de 28 de setembro de 2015, de iniciativa
parlamentar, do Município de Sorocaba/SP, que visava proibir
a utilização de vestiários de acordo com o gênero identificado
(BRASIL, 2018).
Nos termos da lei, uma mulher transexual não poderia usar
o banheiro ou vestiário feminino. Do mesmo modo, um homem
transexual não poderia utilizar o banheiro masculino. Nessa senda,
o uso dos banheiros seria estabelecido com fundamento no sexo
biológico, e não segundo a própria identidade de gênero.
Essa tentativa de regulamentação expõe um evidente
problema social. De acordo com Lucas (2012, p. 147) “enquanto
o direito faz uma espécie de generalização congruente, a identidade
108
se apoia sempre e irrefutavelmente numa dinâmica contrária a todo

tipo de generalização”. Nessa senda, não seria possível trabalhar a
identidade pela adoção do código lícito/ilícito, pois isso significaria
negar a própria legitimidade das identidades que não se encontram
normatizadas (LUCAS, 2012).
Para Lucas, (2012, p. 147) “todo tipo de legislação que
reconhece apenas alguns traços da individualidade humana
e lhes protegem, está, em verdade, protegendo processos de
identificação”. Neste contexto, o sistema não consegue tratar o
direito à identidade de forma universal, porque o seu método é
de generalizar, determinando quais identidades irá proteger em
detrimento de outras. Posto isto, legislações como a citada acima,
nada mais são do que uma forma de negar o direito à identidade
e a tudo que a ele se assemelha, conforme os padrões previamente
definidos.
A colisão de direito fundamentais quanto ao uso de vestiários

por transgêneros e transexuais
A discussão se torna mais complexa quando evidencia

uma colisão entre direitos fundamentais. Em relação ao uso de
vestiários por transexuais, por um lado, encontram-se fundamentos
em desfavor de sua utilização, sob os argumentos de que se deve
proteger a segurança e a privacidade das usuárias de banheiros
femininos. Lado outro, existem aqueles que defendem a utilização
dos vestiários de acordo com o gênero identificado, ressaltando
que quanto à segurança das usuárias, não há nada de concreto
comprovando ameaças e violência por parte de transgêneros, o que
configura meras suposições baseadas em preconceitos e estereótipos
(RIOS e RESADORI, 2015).
No que tange à proteção à privacidade, pondera-se
sobre a parcialidade e insuficiência deste argumento, eis que
transexuais obrigados a utilizar um banheiro que não corresponde
à sua identidade de gênero, porventura, também estão tendo a sua
privacidade violada (RIOS e RESADORI, 2015).
109
Os conflitos envolvendo à utilização de vestuários por

transgêneros e transexuais começaram a ser cada vez mais levados ao
poder judiciário, tanto na esfera cível com relação ao impedimento
de usar banheiros públicos ou em estabelecimentos comerciais com
base em seu gênero identificado, como também em relação aos
trabalhadores que são impedidos de utilizar o banheiro diferente
do seu gênero biológico no ambiente de trabalho.
Desta forma, em razão da repercussão e relevância da
temática, torna-se necessário trazer algumas considerações a
respeito do julgamento do Recurso Extraordinário nº 845.779, que
reconheceu o direito dos transexuais a serem tratados socialmente
de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive na utilização
de banheiros de acesso público (STF, 2014).
O caso aconteceu com a requerente qualificada como
André dos Santos Fialho, de nome social Ama Fialho, que ajuizou
ação de indenização por danos morais contra Beiramar Empresa
Shopping Center Ltda. Em sua demanda, esclareceu que, ao
passear pelo estabelecimento e tentar fazer uso de um banheiro,
acabou sendo vítima de discriminação praticada por seguranças
do local em razão de ser transexual. Ama aduziu que, ao entrar
no banheiro feminino, como sempre fazia em locais públicos, foi
abordada por uma funcionária do estabelecimento que, de forma
grosseira, forçou-a a se retirar, sob o argumento de que sua presença
causaria constrangimento às usuárias do local. Abalada pelo
constrangimento a que estava sendo submetida, não conseguiu
controlar as suas necessidades fisiológicas e as fez nas suas próprias
roupas, diante de todos que ali transitavam (STF, 2014).
Ao proferir seu voto, em sede de Recurso Extraordinário, o
Ministro Luís Roberto Barroso asseverou sobre a importância da
discussão do caso citado. De acordo com o ministro, o caso envolvia
a projeção social da identidade sexual do indivíduo, aspecto este
que estaria ligado diretamente à dignidade da pessoa humana e aos
direitos da personalidade, resguardados pelos arts. 1º, III, e 5º, V e
X da CF. O ministro salientou que o objeto do recurso ultrapassava
a mera questão patrimonial de responsabilidade civil e abrangia
110
uma situação delicada, que é a marginalização e o preconceito que

este grupo de indivíduos sofre diariamente (STF, 2014).
Em relação à colisão de direitos individuais, o ministro
decidiu utilizar o critério da ponderação para solucionar o caso.
De acordo com seu voto, existe uma diferença entre os níveis de
restrição aos direitos em conflito. De um lado, há as mulheres
cisgêneros, que possuem o direito à privacidade e o de não sofrerem
constrangimento em ter uma pessoa que biologicamente nasceu
com outro gênero dentro de espaço tão íntimo. Contudo, de outro
lado, encontram-se os transexuais e transgêneros, que possuem
o direito ao reconhecimento da sua identidade de gênero, e
consequentemente, de utilizar o vestiário que se coaduna com seu
gênero (STF, 2014).
Neste contexto, ressaltou que a solução constitucional
adequada “deve ser o reconhecimento do direito de os transexuais
serem socialmente tratados de acordo com a sua identidade de
gênero, inclusive no que se refere à utilização de banheiros públicos”
(STF, 2014, on-line). Isto porque, ao se fazer o uso do critério da
ponderação, estar-se-ia diante de uma restrição leve ao direito à
privacidade, versus uma restrição intensa aos direitos à igualdade
e à liberdade. Nessa senda, o maior peso entre os direitos violados
seria relacionado à violação das liberdades existenciais, ou seja, à
situação vexatória de uma mulher transexual em ter que utilizar um
vestiário masculino. O ministro ainda ressaltou o dever do Estado
em ocupar uma posição ativa mediante a significativa restrição de
direitos de terceiro, protegendo as escolhas existenciais das pessoas,
como no caso em análise (STF, 2014).
É imperioso ressaltar que, a jurisprudência trabalhista
brasileira também já se posicionou a respeito da referida controvérsia,
como no caso dos autos de número 0000939-77.2012.5.09.0003,
cujo trâmite ocorreu no Tribunal Regional do Trabalho da 9º
região, Paraná/PR, e teve grande divergência de votos (TRT, 9º
região, 2012).1
1 Na demanda trabalhista, o Reclamante Paulo Cesar dos Santos, que atende pelo
111
Ao julgar o mérito, o Exmo. Juiz da 3º Vara do Trabalho

de Curitiba, do TRT da 9ª Região, Sr. Dr. Lucas Furiati Camargo,
indeferiu a pretensão autoral quanto à indenização por danos
morais em virtude de não poder usar os vestiários femininos. Em
sua fundamentação, salientou que a postura inicial da empresa
foi a de permitir que a autora utilizasse os vestiários femininos
em conformidade com o gênero com o qual se identificava.
Contudo, após reclamações de outras empregadas, a autora passou
a usar os vestiários masculinos, por decorrência de sua aparência
física. Portanto, no caso em análise, houve um choque de valores
entre aquele individual da autora, que sentia pertencer ao gênero
feminino, muito embora ainda tivesse aparência masculina, e o
valor coletivo das outras empregadas da empresa, quanto ao direito
à privacidade e à intimidade, em não quererem compartilhar um
espaço íntimo com alguém que não nasceu pertencente àquele
gênero (TRT, 9º região, 2012).
No entanto, em 2º Instância o Exmo. Sr. Desembargador
Edmilson Antônio de Lima, que foi acompanhado pelo Exmo.
Sr. Desembargador Paulo Ricardo Pozzolo, deram provimento ao
recurso da reclamante, modificando a sentença de primeiro grau.
Em seu voto, salientou que, embora tenha nascido biologicamente
com a genitália masculina, as provas produzidas nos autos indicam
que ela age socialmente como mulher, e que inclusive prefere ser
chamada de Renata. Os desembargadores também fizeram uso do
critério da ponderação do direito à intimidade, em colisão nos
autos, tanto por parte da reclamante, quanto das outras empregadas
da empresa. Em sua concepção era bem mais desconfortante,
a transexual ser vista de lingerie perante os empregados do sexo
masculino, do que as empregadas do sexo feminino serem vistas de
nome social de Renata Maciel dos Santos, aduziu que era impedida de fazer uso do
vestiário feminino, e que era obrigada a chegar à empresa às 21:20h para conseguir
fazer uso do vestiário masculino totalmente vazio. Ressaltou ainda que, quando não
conseguia usar o vestiário sem que houvesse qualquer empregado homem no seu
interior, era alvo de preconceito por seus colegas. Renata relatou, inclusive que, em
determinadas ocasiões, chegaram a quebrar a chave de seu armário, e jogavam dentro
dele bilhetes contendo escritos com palavras depreciativas. (TRT, 9º região, 2012).
112
lingerie pela autora, que se considerava também como uma mulher

(TRT, 9º região, 2012).
Após este breve panorama de decisões e posicionamentos
jurisprudenciais a respeito do uso de vestiários por transexuais
e transgêneros, na esfera trabalhista e civil, é importante buscar
auxílio no Direito Constitucional, quanto à aplicação dos direitos
fundamentais e a sua interpretação. Isso é necessário para que, seja
possível construir um silogismo a respeito da temática, eis que o
tema ainda é repleto de peculiaridades, além de configurar uma
situação que pode ocasionar uma evidente discriminação a este
grupo.
Neste contexto, cumpre analisar qual a melhor alternativa
quando ocorre a referida colisão de direitos fundamentais. De
acordo com (CANOTILHO, 1999) esta solução deve buscar,
em cada caso concreto, realizar um juízo de ponderação a fim
de determinar a prevalência ou maximização de um direito em
prejuízo de outro. Neste sentido Alexy (2008, p. 296) ressalta que
“a restrição de um direito fundamental somente é admissível se,
no caso concreto, aos princípios colidentes for atribuído um peso
maior que aquele atribuído ao princípio de direito fundamental
em questão.” Por fim, Alexy (2008, p. 296) afirma que “direitos
fundamentais, enquanto tais, são restrições à sua própria restrição
e restringibilidade.”
Na medida em que se observam os julgados e posicionamentos
acima transcritos, é possível constatar que a problemática extrapola
para variados espaços do cotidiano da vida da pessoa transexual e
transgênero. Nesse impasse, a solução se torna problemática, ao
passo que ambos os fundamentos encontram respaldo nos direitos
fundamentais. Portanto, o caminho se materializa em analisar a
extensão e a intensidade da violação do direito. Somente assim,
utilizando um juízo de ponderação, poderá se alcançar a reposta
para a pergunta: Qual direito deve prevalecer em detrimento do
outro?
Os indivíduos cisgêneros asseveram que possuem o direito
113
à privacidade, ou seja, a não ter que dividir o espaço íntimo com

alguém que nasceu biologicamente com o gênero oposto. Neste
contexto, é importante ressaltar que tal questão também guarda
íntima relação com um modelo histórico binário de gênero
enraizado na sociedade, fundamentado em questões como moral e
bons costumes. Esses indivíduos dificilmente conseguirão aceitar e
compreender outro estilo de vida ou a situação pela qual as pessoas
que não se identificam com o sexo biológico passam todos os dias,
impedindo uma evolução da sociedade.
De acordo com Rios e Resadori, (2015, p. 211) “não
reconhecer o direito fundamental à utilização de banheiro feminino
por transexual feminina implica rejeitar a possibilidade de ser e de
existir como é”. Neste contexto, torna-se imprescindível perceber
que o reconhecimento da identidade de gênero não está envolvido
apenas com a possibilidade de a pessoa realizar a transição de
gênero, mas também com a prerrogativa de gozar dos seus direitos
jurídicos e reflexos práticos presentes no seu cotidiano, como por
exemplo, o direito de utilizar o vestiário que se coaduna com o
gênero com o qual se identifica (RIOS e RESADORI, 2015).
É imperioso indagar ainda, se o desconforto alegado
pelas pessoas cisgêneros em ter que dividir o vestiário com um
transgênero supera o constrangimento dos indivíduos transgêneros
e transexuais em ter que utilizar um banheiro que não pertence ao
gênero com o qual se identifica. Nesta questão, entende-se que não.
Como fundamento, encontram-se todas as situações vexatórias a
que terão que se submeter caso sejam forçados a utilizar vestiários
que não estejam de acordo com o seu gênero identificado, o que
pode ser vislumbrado no julgamento proferido pelo TRT da 9ª
Região.
Nesse sentido, cabe ressaltar também que, no julgamento
do Recurso Extraordinário nº 845.779, restou clara a relevância
constitucional da questão discutida. De uma análise dos
argumentos utilizados para decidir a questão, deve-se registrar
a projeção social da identidade sexual do indivíduo e a relação
com a dignidade humana e autodeterminação sexual, bem como
114
a relevância da proteção constitucional dos direitos das minorias

marginalizadas. Assim, é importante consignar a preocupação com
o constrangimento na utilização do banheiro por transexuais, que
não se coaduna com o gênero com o qual se identificam, bem como
a proteção aos direitos à segurança, ao não-constrangimento e à
privacidade desses indivíduos.
Nessa senda, quando se desconsidera ou exclui pessoas em
razão de uma questão identitária, estar-se-ia ferindo a proteção
constitucional da dignidade humana. Em outras palavras, respeitar
o direito do outro a existir e conviver com outras pessoas como
se é realmente, significa também que não pode ser ignorada a
transexualidade quando da utilização de banheiros. Somente dessa
forma haveria a concretização do princípio da dignidade da pessoa
humana (ARAUJO, 2000).
Neste contexto Rios e Resadori (2015, p. 215) afirmam
que “o que se requer do direito constitucional, na academia e na
prática: compromisso com a democracia e fazer valer os direitos
fundamentais, especialmente onde eles enfrentam preconceito,
costumes e tradições arraigados.” O princípio da dignidade da pessoa
humana deve ser utilizado como forma de interpretação e aplicação
dos direitos fundamentais, com objetivo de promover uma vida
digna para esses indivíduos que são excluídos pela sociedade, tão
somente em razão de sua identidade e gênero (NOVAIS, 2016).
Diante de todo o exposto, entende-se frente à colisão
de direitos fundamentais, que devem prevalecer os preceitos
constitucionais da igualdade, liberdade e dignidade da pessoa
humana dos sujeitos transexuais e transgêneros, de acordo com
o juízo de ponderação e prevalência. No que tange às pessoas
cisgêneros, vislumbra-se que não há efetivamente uma restrição de
direitos. Isso acontece tendo em vista que o reconhecimento do
direito à identidade sexual e os seus reflexos acabam se tornando
mais uma questão de informação e educação, do que propriamente
uma supressão de direitos fundamentais (COMÉRIO, 2019).
115
O presente artigo demonstra que quando o indivíduo nasce

e não se identifica com o seu sexo biológico, fator que caracteriza a
sua transexualidade, isso provoca nas outras pessoas um sentimento
de estranheza e repulsa, eis que este sujeito não está inserido no
modelo binário de gênero, culturalmente construído pela sociedade.
Em razão deste distanciamento do padrão desejável, os transexuais
ficam à mercê de todas as espécies de violências, discriminações e
exclusões sociais.
No que tange ao modelo binário de gênero, verificou-se
que é de suma importância a sua desconstrução, a fim de que seja
possível incluir nas pautas sociais casos como o dos transgêneros
e transexuais, que não se encaixam neste padrão, e por isso são
marcados pela estigmatização social. Portanto, é imprescindível
dissociar a ideia de sexo e gênero como vinculados entre si, ou seja,
de que homens necessariamente pertencem ao gênero masculino, e
as mulheres, ao feminino.
Notadamente, em relação à discussão quanto ao uso dos
vestiários de acordo com o gênero identificado, há uma maior
dificuldade, em decorrência da aparente colisão de direitos
fundamentais. Diante desta contenda, foi necessária uma abordagem
mais cautelosa, que objetivou averiguar qual direito deveria ser
maximizado em detrimento do outro, ou seja, o direito de as
mulheres utilizarem o vestiário sem a presença de um indivíduo
que nasceu com o sexo oposto, ou o direito de os transexuais e
transgêneros utilizarem o vestiário de acordo com o gênero com o
qual se identificam.
Isto ocorre porque é necessário o reconhecimento do
direito à identidade sexual e dos seus reflexos. A violação do direito
à intimidade das mulheres acaba se tornando mais uma questão
de informação e educação do que propriamente uma supressão de
direitos fundamentais, tendo em vista que as mulheres irão dividir
um espaço com alguém que também se considera uma mulher, ao
passo que um maior constrangimento se evidenciaria em obrigar
116
uma mulher trans a compartilhar o vestiário com outros homens.

Neste contexto, fazendo o uso do critério da ponderação,
constatou-se estar diante de uma restrição leve ao direito à
privacidade, versus uma restrição intensa aos direitos à igualdade
e à liberdade, principalmente ao levar em consideração o grau
de marginalização social e as hostilidades sofridas pelas pessoas
transexuais. Diante disso, concluiu-se que o correto seria proteger
as escolhas existenciais das pessoas transgêneros e transexuais por
utilizar o banheiro de acordo com o seu gênero identificado.
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Capítulo 6
A contribuição do Lobby do Batom para o texto

constitucional de 1988
Letícia Maria de Maia Resende
O capítulo constitui um ensaio expositivo acerca da

participação das mulheres no processo constituinte de
1987-88, responsável pela elaboração da Constituição da República
Federativa do Brasil, promulgada em sessão solene no dia 5 de
outubro de 1988. Nesse sentido, leva-se em conta não apenas
as atividades das deputadas federais constituintes, mas também
a atuação de grupos feministas e grupos de mulheres, os quais
se fizeram presentes de maneira intensa no Congresso Nacional
durante os trabalhos dos parlamentares.
Dessa maneira, a pesquisa realizou-se com o intuito de
compreender a pressão e a influência exercidas pelas camadas
populares e movimentos sociais sobre os constituintes e as
consequências de tais manifestações. Sobretudo, a fim de conhecer
a contribuição do Lobby do Batom aos trabalhos da Assembleia
Nacional Constituinte, a pesquisa analisou a prática de lobbying
pelas mulheres a partir de revisão bibliográfica e consulta a
documentos oficiais.
Ainda, foram objeto de análise as demandas das mulheres,
apresentadas principalmente na Carta das mulheres brasileiras aos
constituintes, organizada pelo Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher, sob a presidência de Ruth Escobar e, posteriormente,
Jacqueline Pitanguy. O trabalho também abordou as conquistas
que foram efetivamente consolidadas no texto da sétima carta
constitucional do país, salientando-se que 80% das reivindicações
120
foram exitosas.
De modo geral, o capítulo demonstra a relevância da atuação
de mulheres durante o processo constituinte e a substancialidade
desta para conseguir explicitar diversas prerrogativas femininas e
sociais no texto da Constituição contemporânea. Assim, ao traçar
uma abordagem de gênero, o trabalho se justifica pela ainda carente
produção de estudos e investigações que destacam a atuação
feminina e feminista no Brasil.
Os lobbies mobilizados por mulheres
Ao longo do tempo, organizações de mulheres e organizações

feministas desempenharam papel relevante no meio social. Também
no âmbito efetivamente político tais coletividades manifestaram-se
no sentido de apoiar determinadas candidaturas femininas e, ainda,
assessorar representantes eleitas. No entanto, apesar da importância
desses grupos, é necessário evidenciar que não são a mesma coisa.
Enquanto os grupos de mulheres reúnem mulheres em busca
de melhores condições gerais de vida, os grupos feministas têm
como referência a luta pela transformação da condição da mulher
na sociedade, por várias vezes questionando valores e costumes
tradicionalmente conservadores, patriarcais e machistas (BRASIL,
2006, p.92).
Isso significa que os grupos de mulheres têm como pauta
demandas mais generalizadas que acabam impactando inclusive
as mulheres, ao passo que os grupos feministas apresentam real
compromisso com a causa especificamente feminista e, assim,
defendem pontos particulares que, de todo modo, relacionam-se
à ordem social estabelecida. Dessa forma, o patriarcado é deveras
discutido e questionado por organizações feministas.
Considerando tais observações, compreende-se que os
grupos de pressão femininos, conhecidos por lobbies (ALVES;
PITANGUY, 1985, p.47), sempre foram muito ativos em prol de
mudanças legislativas e indicações de candidatas. Ademais, a atuação
121
dos lobbies também exerceu influência, de maneira conjunta, a

partidos políticos e parlamentares eleitos em defesa da observância
às suas exigências, de modo que as vozes da classe feminina fossem
de fato ouvidas, dada a histórica sub-representação do gênero
feminino nos ambientes de poder, sobretudo na política brasileira.
Exemplo de intenso lobismo feminino deu-se durante
a campanha pela extensão dos direitos políticos às mulheres.
Nenhuma das constituições brasileiras restringiu expressamente a
possibilidade de as mulheres votarem, entretanto na prática estas
eram impedidas de exercer ativamente a cidadania, sendo por
muito tempo compreendidas cidadãs de segunda classe, uma vez
que o poder estava nas mãos de homens detentores de riqueza,
dado o caráter censitário do voto.
O sufrágio feminino passou a ser realidade no Brasil apenas
em 1932, depois da previsão no Código Eleitoral das expressões
sem distinção de sexo e sufrágio universal, em seus artigos 2º e 56,
respectivamente (BRASIL, 1932). A conquista foi fruto de mais de
quarenta anos de luta e persistência, os quais tiveram Leolinda de
Figueiredo Daltro e Bertha Maria Júlia Lutz como nomes de peso.
Com estratégias diferentes adotadas em épocas também diversas,
ambas se mobilizaram com fins de introduzir a questão feminina
no centro do debate político nacional (MARQUES, 2019, p.56).
Leolinda foi uma das idealizadoras do Partido Republicano
Feminino (PRF), ao passo que anos mais tarde Bertha fundou e
liderou a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF),
organização que ocupou todos os espaços públicos disponíveis para
divulgação da causa do voto feminino. Inclusive, acompanhou de
perto diversas deliberações sobre temas referentes à classe feminina
que tramitavam no Congresso Nacional (SCHUMAHER, 2001,
p.589), cujas dependências foram ocupadas por mulheres que
pressionavam os parlamentares, e para onde, ainda, foram enviados
abaixo-assinados com números consideráveis, dados os deficientes
meios de comunicação à época.
O lobbying exercido pela cúpula da FBPF entre os anos de
122
1926 e 1927 foi bastante enérgico. Isso se deveu à reapresentação,

com poucas modificações, do projeto do senador Justo Chermont
na Câmara dos Deputados. A proposta, originalmente deliberada
em 1919, previa a extensão do direito de voto às mulheres, de modo
que desencadeou manifestações femininas em todo o território
nacional e em especial no Congresso, onde o deputado potiguar
Juvenal Lamartine, relator da nova emenda, foi abordado por
feministas reiteradamente (SCHUMAHER, 2001, p.592).
Apesar do parecer de Lamartine favorável ao voto feminino,
a proposta não foi aprovada no plenário do Senado Federal (PINTO,
2003, p.24). Entretanto, embora a derrota fosse uma realidade, a
ocasião consolidou importante parceria política entre a FBPF e o
deputado, que se tornou governador do estado do Rio Grande do
Norte meses depois. A campanha eleitoral de Lamartine contou
com forte apoio de Bertha Lutz e Carmem Portinho, o que fez com
que em território potiguar as mulheres fossem consideradas cidadãs
de fato pela primeira vez.
Destarte, a lei do Rio Grande do Norte se antecipou em
relação à legislação federal e provocou intensa mobilização das
mulheres em todo o país, de forma que o direito ao voto foi sendo
gradativamente alcançado em outros estados do Brasil (HAHNER,
1981, p.117). O sufrágio brasileiro universal somente foi
reconhecido com o novo Código Eleitoral, publicado em fevereiro
de 1932 sob o governo de Getúlio Vargas, que inclusive nomeou
Bertha Lutz para a comissão redatora da norma (SCHUMAHER,
2001, p.296).
Outra importante manifestação lobista feminina deu-se no
ano de 1982, quando eleições diretas fomentaram a participação de
brasileiros na escolha de representantes em todas as esferas do país.
Já na fase final do regime militar, a questão política praticamente
orientou a pauta do movimento feminista, que elaborou o Alerta
feminista para as eleições, documento em que foram apresentadas
demandas da classe feminina aos partidos políticos em nível federal,
estadual e municipal (TABAK, 2002, p.59).
123
Dado o histórico de contribuição dos grupos femininos, e

considerando a elaboração de novo texto constitucional entre 1987-
88, a atuação das mulheres e das feministas durante a Assembleia
Nacional Constituinte não poderia ser diferente. Ainda mais pelo
fato de o processo constituinte responsável pela redemocratização
do país admitir, pela primeira vez, a participação popular direta
através da introdução de emendas populares.
Nesse contexto, foi relevante a atuação de movimentos
sociais, como o feminista, o qual influenciou parlamentares na
elaboração de ações políticas diretas junto aos governos municipais,
estaduais e federal e prestou assistência à bancada feminina formada
pelas deputadas federais da Constituinte. O lobismo exercido no
decorrer dos trabalhos da Assembleia ficou conhecido como Lobby
do Batom, nome inicialmente empregado de forma jocosa por não
simpatizantes da causa feminina.
O termo tinha intenção de inferiorizar as mulheres que
atuavam no Congresso Nacional de forma a afirmar que tanto a
bancada feminina quanto o grupo suprapartidário se reuniam
somente para debater assuntos de pouca importância, como
maquiagem, roupas e acessórios (PIMENTA, 2010, p.91). Apesar
da índole depreciativa, o apelido acabou por ser apoderado e
empoderado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
(CNDM), entidade de grande importância às mulheres brasileiras
e aos trabalhos constituintes em relação à classe feminina.
Desse modo, o nome Lobby do Batom foi adotado para
mobilização da mídia e visibilidade política de maneira estratégica
pelos grupos de mulheres e grupos feministas, que cotidianamente
circulavam pelos corredores do Congresso Nacional manifestando-
se e influenciando parlamentares acerca de propostas e votações.
Ao mesmo tempo em que o Lobby do Batom operava dentro
do Congresso com táticas de persuasão e convencimento, o
CNDM também voltava suas ações para a sensibilização do
público em geral para que a sociedade compreendesse e apoiasse
suas campanhas. Foram desenvolvidas diversas propagandas
na mídia, utilizando filmes na televisão, encartes em jornais e
124
revistas, mensagens nos rádios e outdoors em todas as capitais.

Estas campanhas eram feitas de forma sincronizada, ou seja,
eram veiculadas de acordo com os capítulos que estavam sendo
discutidos no Congresso. (PIMENTA, 2010, p.92).
O Lobby do Batom foi fundamental para consolidar a
identidade coletiva suprapartidária do gênero feminino. Devido a
isso, e com base no reconhecimento da complexidade na igualdade,
mulheres de diferentes substratos participaram de forma efetiva do
processo constituinte. Tal atuação, portanto, considerou e abordou
as variadas questões interseccionais (CRENSHAW, 2002, p.177)
de etnia, sexo, classe, orientação religiosa e ideológica, por exemplo,
fazendo com que muitas propostas femininas e sociais constassem
expressamente como direitos na nova Constituição.
As mulheres na Constituinte de 1987-88
O processo de feitura da Constituição de 1988 foi muito

peculiar. Isso em razão de o Congresso Constituinte ter começado
seus trabalhos do zero, uma vez que o anteprojeto elaborado pela
Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, conhecida como
Comissão Afonso Arinos, nome de seu presidente, ou ainda como
Comissão dos Notáveis, não foi sequer entregue aos parlamentares
(CARVALHO, 2017, p.22). Assim, a atividade constituinte dos
deputados e senadores foi inteiramente livre e aberta, partindo da
consulta à sociedade.
Tamanha particularidade também se deveu à possibilidade
da intensa participação do povo, dada a admissão de emendas
populares, desde que subscritas por, pelo menos, 30 mil eleitores
em listas organizadas por três entidades, no mínimo (CARVALHO,
2017, p.22). Ainda, pelos inéditos 5% de mulheres no total de 487
deputados no Congresso Nacional, o que demonstrou aumento de
3,7% em relação à legislatura anterior.
Nas eleições ocorridas em novembro de 1986, com fins de
definir os representantes para a Assembleia Nacional Constituinte
(ANC) a ser instalada no princípio de fevereiro do ano seguinte,
125
1987, foram escolhidas 26 deputadas federais, as quais, juntas,

compuseram a bancada feminina. Tal número, apesar de
formalmente pouco expressivo em relação ao total de constituintes,
559, simbolizou grande avanço quanto à presença de mulheres em
Assembleias Constituintes (MELO, 2017, p.29).
As deputadas da então ANC foram Abigail Feitosa, Anna
Maria Rattes, Benedita da Silva, Bete Mendes, Beth Azize, Cristina
Tavares, Dirce Tutu Quadros, Eunice Michiles, Irma Passoni,
Lídice da Mata, Lúcia Braga, Lúcia Vânia, Márcia Kubitschek,
Maria de Lourdes Abadia, Maria Lúcia, Marluce Pinto, Moema
São Thiago, Myriam Portella, Raquel Cândido, Raquel Capiberibe,
Rita Camata, Rita Furtado, Rose de Freitas, Sadie Hauache, Sandra
Cavalcanti e Wilma Maia.
A participação feminina na elaboração de uma carta
constitucional foi inaugurada com a paulista Carlota Pereira de
Queirós, na terceira Assembleia Nacional Constituinte brasileira,
instalada em novembro de 1933 e responsável pela produção
da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de
1934 (TABAK, 1989, p.125). Nota-se que naquela época o voto
feminino já era admitido com base no Código Eleitoral de 1932 e a
possibilidade de participação feminina oficial nos assuntos públicos
movimentou grupos e a imprensa feminista, muito expressiva no
país.
Desde então, nas Assembleias das Constituições de 1937,
1946 e 1967, nenhuma mulher havia participado das atividades
constituintes (VILLA, 2011). Nessa perspectiva, a formação
de uma bancada feminina para a Constituição referência da
redemocratização no Brasil foi um marco de progresso importante,
ainda mais pela produtividade e pelos resultados alcançados.
Os trabalhos constituintes de 1987-88 foram organizados
em duas etapas, sendo a primeira delas marcada pela realização de
várias audiências públicas pelas comissões temáticas e a segunda,
por votações da Comissão de Sistematização (CARVALHO, 2017,
p.22). No total, as oito comissões temáticas, cada uma contendo
126
três subcomissões, ouviram aproximadamente mil depoentes, dos

quais se destacam sindicalistas, intelectuais, governadores, grupos
indígenas e outros minoritários, como o das mulheres.
A atuação feminina teve como fundamental o papel
desempenhado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
(CNDM), instituído pela Lei nº 7.353, de 29 de agosto de 1985,
sob o governo de José Sarney, que assumiu a presidência da
República como titular após a morte de Tancredo Neves. Inspirado
em Conselhos Estaduais, o CNDM foi criado com o propósito de
promover políticas de eliminação da discriminação da mulher em
todo o território nacional e possibilitar a participação feminina nas
atividades culturais, econômicas e políticas do país.
Com a expectativa da convocação de uma Assembleia
Constituinte, o CNDM, sob a presidência de Jacqueline Pitanguy,
lançou a campanha nacional Mulher e a Constituinte, que tinha
como lemas Constituinte sem mulher fica pela metade, Constituinte
para valer tem que ter palavra de mulher e Constituinte para valer
tem que ter direitos da mulher. A fim de detectar os principais
problemas enfrentados pelas mulheres, e, consequentemente, suas
principais demandas, as quais deveriam ser tratadas pelo novo texto
constitucional, a diligência do CNDM percorreu todas as capitais
do país (PIMENTA, 2010, p.85).
Inclusive para promover a intensa participação popular,
foi aberta uma caixa postal para recebimento de propostas acerca
dos direitos das mulheres. Os esforços culminaram no Encontro
Nacional realizado em agosto de 1986 em Brasília, evento que
reuniu diversas representantes do movimento feminista. Ali foi
desenvolvida a Carta das mulheres brasileiras aos constituintes,
entregue em 26 de março de 1987 ao deputado federal e presidente
do Congresso Constituinte, Ulysses Guimarães, e às Assembleias
Legislativas de todo o Brasil (SCHUMAHER, 2018, p.68).
O documento incorporou as principais reivindicações das
mulheres brasileiras e apresentou propostas a serem acatadas pelos
constituintes e, em especial, pela bancada feminina que atuou
127
como um grupo suprapartidário, dada a diversidade de regiões

representadas e a multiplicidade de ideologias partidárias (TABAK,
2002, p.115). Dividida em duas partes, a Carta “[...] privilegiou
uma série de reivindicações específicas relativas aos seguintes
problemas fundamentais: família, trabalho, saúde, educação,
cultura e violência” (TABAK, 2002, p.153).
Dentre as demandas contidas na Carta, requereu-se o
reconhecimento da plena igualdade entre os cônjuges, a plena
igualdade entre os filhos e a asseguração pelo Estado de mecanismos
para o desenvolvimento da maternidade e da paternidade, sendo
ambos admitidos como valores sociais fundamentais. Também se
exigiu a aplicação do princípio da isonomia no trabalho, de forma
que mulheres e homens que desempenhassem os mesmos serviços
fossem remunerados igualmente. Além disso, à gestante requereu-
se estabilidade de emprego e às domésticas e trabalhadoras rurais, a
extensão dos direitos previdenciários.
Na área da saúde a Carta dispôs acerca da criação de um
Sistema Único de Saúde (SUS) para assistência médica integrada a
todas as pessoas, sendo às mulheres garantido atendimento em todas
as fases da vida. A opção pela maternidade teria de ser livre, devendo
o Estado oferecer acesso gratuito a métodos anticoncepcionais e
não promover o controle de natalidade.
A educação deveria dar ênfase à igualdade, destacando ainda
as características multirraciais e multiculturais do povo brasileiro.
O analfabetismo deveria ser combatido a partir do zelo do Estado,
que destinaria os recursos públicos de forma exclusiva às melhorias
das escolas públicas. De modo geral, demandou-se uma cultura
igualitária.
Também foram oferecidas propostas de vedação da prática de
violência contra a mulher. O estupro deveria ser considerado crime
contra a pessoa e não crime contra os costumes, além de independente
da existência ou não de relações entre a vítima e o agressor. Leis
passariam por mudanças redacionais, como a retirada da expressão
mulher honesta e do crime de adultério do Código Penal, devendo
128
ser criminalizados quaisquer atos de agressão física, sexual ou

psicológica ocorridos dentro ou fora do ambiente doméstico.
O Estado, empenhado em proibir tratamentos
discriminatórios, seria regido pelo princípio da independência dos
poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e não manteria relações
com países praticantes de preconceito racial. A política externa
brasileira teria como fundamento a autodeterminação dos povos.
Além dessas demandas, muitas outras foram apresentadas
e defendidas pela bancada feminina, que não pode ser considerada
feminista, visto que das 26 deputadas poucas tiveram efetivo contato
com o feminismo previamente aos trabalhos constituintes. De todo
modo, apesar de não feminista (CARVALHO, 2017, p.144), a
bancada serviu como intermédio essencial para interceder a favor
de questões bastante caras aos grupos de mulheres e aos grupos
feministas, vez que a participação das mulheres na Constituinte
não se limitou àquelas ocupantes de cargos eletivos.
As conquistas no texto constitucional promulgado em 1988
Marco da redemocratização brasileira após 21 impetuosos

anos de regime militar, a nova Constituição, norte de sentido
para as demais normas do ordenamento jurídico brasileiro,
contemplou todas as características de um governo democrático,
cuja responsividade sujeita-se às preferências de seus cidadãos.
Nesse sentido, presume-se uma comunidade política em que todo
o poder emana do povo, cujo exercício é realizado por meio de
representantes eleitos ou diretamente, conforme disposto no
parágrafo único do artigo 1º do texto constitucional (CRFB, 1988).
Foram admitidos como fundamentos a soberania, a
cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do
trabalho, a livre iniciativa e, ainda, o pluralismo político. Além
disso, a Constituição, aprovada em fins de setembro de 1988 e
promulgada oficialmente em sessão solene de 5 de outubro daquele
ano, contemplou dentre os seus originais 245 artigos e outros 70
129
nas disposições transitórias, o ideal de pluralidade e a inclusão.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
inovou ao estabelecer metas programáticas e inaugurou no país um
círculo virtuoso de afirmação dos direitos humanos e dos direitos
das mulheres (URTADO; PAMPLONA, 2018). Nessa perspectiva,
o movimento feminista e de mulheres, combinados no Lobby do
Batom, desempenharam um papel crucial na implementação de
tais prerrogativas.
O ativismo feminino contribuiu fundamentalmente para a
mudança em legislações discriminatórias, a criação de novas leis, a
implementação de políticas públicas e a resistência a retrocessos.
Em relação à Carta das mulheres apresentada nos trabalhos
constituintes, destaca-se que “[...] cerca de 80% das proposições
foram incorporadas ao texto constitucional, outras levaram à
mudança nos códigos civil e penal, em leis complementares, ou na
criação de novas leis e serviços” (PITANGUY, 2019, p.89).
Dentre as demandas exitosas na ANC, tem-se a expressa
previsão da igualdade entre homens e mulheres na sociedade
e na família, o que consta nos artigos 5º, inciso I, e 226, §5º,
da Constituição. Também no artigo 5º, que trata dos direitos e
garantias individuais, tem-se o direito de às presidiárias lactantes
serem oferecidas condições para que permaneçam com seus filhos
durante o período de amamentação, conforme inciso L (CRFB,
1988).
O artigo 6º da Constituição abarca os direitos sociais e
dentre eles foi prevista a proteção da maternidade, firmando o
reconhecimento de sua função social. Nesse sentido, o artigo 7º,
inciso XVIII, conferiu à gestante o direito à licença por 120 dias sem
prejuízo do salário e do emprego, tendo, portanto, a estabilidade
reivindicada pela Carta organizada pelo CNDM (CRFB, 1988).
Também no dispositivo referente aos direitos trabalhistas, a
Constituição previu a licença-paternidade no inciso XIX; a proteção
especial do mercado de trabalho da mulher, no inciso XX, através
de incentivos específicos instituídos por lei infraconstitucional;
130
ainda, a proibição de discriminação no mercado de trabalho em

termos de exercício de funções, salários e critérios de admissão por
razões de cor, idade, estado civil ou sexo, conforme inciso XXX do
mesmo artigo (CRFB, 1988).
Visto que a Carta também abordou propostas sobre a
reforma agrária, destaca-se que o artigo 189 da Constituição, em
seu parágrafo único, contemplou a possibilidade de atribuição do
título de domínio e a concessão de uso para homens e mulheres,
ou ambos, independentemente do estado civil. A família, admitida
como instituição base da sociedade e especialmente protegida pelo
Estado, foi objeto do artigo 226 do texto constitucional, em que
se tratou da união estável como entidade familiar, em seu §3º,
da igualdade entre homens e mulheres no exercício dos direitos e
deveres referentes à sociedade conjugal, §5º, e, ainda, da liberdade
quanto ao planejamento familiar, §7º (CRFB, 1988).
Nessa acepção, restou estabelecida a vedação de qualquer
forma de coerção por parte de instituições privadas ou públicas,
cabendo ao Estado, além disso, propiciar recursos científicos e
educacionais para o exercício do planejamento familiar e assegurar
assistência a todas as pessoas integrantes da família, coibindo
práticas violentas, conforme o §8º daquele artigo (CRFB, 1988).
Ademais, a igualdade entre os filhos foi abordada a partir
da previsão de não discriminação de direitos e qualificações entre
filhos havidos ou não da relação do casamento ou por adoção,
como disposto no §6º do artigo 227. Demais propostas sociais
referidas na Carta foram ratificadas pelo texto constitucional,
como a extensão de direitos previdenciários, a proteção ao meio
ambiente, a proteção da infância e juventude e a criação do SUS,
segundo artigo 198 (CRFB, 1988).
Dentre os assuntos abordados na ANC, questões referentes
à liberdade sexual, corporal e reprodutiva da mulher, com foco
na constitucionalização do aborto, não foram muito debatidas.
Inclusive, o CNDM “à época do debate constituinte no 1º turno
de votação, se pronunciou favorável a que a questão do aborto
131
fosse tratada na legislação ordinária e alertou os constituintes

para a complexidade da matéria” (SANTOS, 2008, p.64). Desse
modo, e também em razão da grande influência da religião,
disposta a manter uma sociedade de cunho patriarcal, as deputadas
constituintes decidiram deixar a descriminalização do aborto como
assunto da legislação infraconstitucional.
O capítulo abordou a contribuição feminina nas atividades

legislativas a partir do lobbying, dedicando-se especialmente à análise
do Lobby do Batom e sua influência sobre os trabalhos constituintes
da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, instalada para
elaborar o texto da Constituição da República Federativa do Brasil,
sétima carta fundamental brasileira. A notoriedade de tal ANC
merece atenção em virtude da expressiva participação popular
admitida e do histórico índice de representatividade feminina
alcançado, com 26 deputadas federais.
Assim, considerando que a bancada feminina não apenas
fez ouvir as vozes das constituintes eleitas, mas sim de todas as
mulheres brasileiras, as quais se fizeram presentes através dos grupos
que frequentaram o Congresso Nacional e da Carta das mulheres
brasileiras aos constituintes, organizada pelo Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher, compreende-se que a atuação das mulheres
no processo de elaboração da Constituição foi primordial para
conquista e consequente asseguração de muitos direitos na norma
hodierna.
É importante notar, entretanto, que mesmo após a
promulgação da Constituição, os grupos de mulheres e grupos
feministas continuaram e continuam em atividade de defesa por
suas causas. Nesse sentido, alterações legislativas foram conquistadas
mais recentemente, como a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340)
sancionada no ano de 2006 para o enfretamento da violência
contra mulheres e, em 2015, a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104),
aprovada para alterar o artigo 121 do Código Penal brasileiro ao
132
prever como circunstância qualificadora e crime hediondo o crime

de homicídio contra a mulher por razões da condição do sexo feminino.
Embora tais conquistas devam ser prestigiadas, vale salientar
que ainda hoje existem resistências patriarcais, como desigualdades
salariais em razão do gênero, baixa representatividade de mulheres
em ambientes de poder, como nos órgãos do poder Legislativo,
além dos, infelizmente, altos e cotidianos números de violência
praticada contra mulheres (BANDEIRA, 2019).
Consequentemente, compreende-se que os movimentos
femininos e feministas juntos são capazes de abraçar a pluralidade
temática interseccional no que diz respeito às mulheres, de modo
que diferentes experiências e demandas são incorporadas ao debate.
Portanto, é importante que as mulheres tenham consciência de
seus direitos e continuem se manifestando de maneira que se façam
ouvidas, como ocorre desde a luta pela educação, pelo voto, pelo
divórcio, pelo trabalho, enfim, por seu reconhecimento. Unidas,
e com o apoio da sociedade, as mulheres têm potencialidade sem
igual para promover a justiça social e o fim das desigualdades.
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134
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1.ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018.
VILLA, Marco Antonio. A história das Constituições
brasileiras. São Paulo: Leya, 2011.
Capítulo 7
Igualdade vs liberdade: uma análise da evolução dos

direitos das mulheres no Brasil após a promulgação
da Constituição Federal de 1988
Bianca Tito
Bibiana Terra
Wendell Antônio R. de Andrade
A evolução da sociedade passa historicamente pelo

desenvolvimento dos ideais de igualdade e liberdade,
o que faz com que seja possível a convivência harmônica entre os
povos. Contudo, apesar de todos os avanços até hoje alcançados,
principalmente após muitas lutas das mulheres, a igualdade,
tampouco a liberdade, faz parte da realidade delas em diversos
meios da sociedade.
Desta forma, há uma necessidade do enfrentamento ao
pensamento patriarcal e machista que ainda reflete na sociedade
brasileira, de forma com que é papel também dos homens
participarem do diálogo afim de retirar o véu da desigualdade
social. Igualmente necessária é a abordagem do papel da mulher
no Brasil contemporâneo, para que se permita realizar uma análise
das evoluções normativas no que tange a igualdade e a liberdade em
todos os âmbitos.
Os movimentos feministas têm alcançado muitos resultados
em suas reivindicações e lutas, o que não quer dizer que isso basta,
aliás, ainda há muito a ser conquistado visto todo o tempo em
que o Brasil foi comandado, e ainda é, por um sistema patriarcal
de criação de leis e ditos costumes que permitem a depreciação
da mulher. Nesse sentido, somente será possível alcançar o bem-
138
estar social para todos os membros, quando passar a existir uma

consciência de igualdade entre todos os povos, afinal, não há
indivíduo inferior a outro, a sociedade é plural.
Diante disso, para a elaboração desse trabalho, o método
de abordagem utilizado é o da pesquisa bibliográfica (GIL, 2008),
tendo como premissa o desenvolvimento da legislação nacional no
que se refere a proteção da mulher e igualdade entre os gêneros1.
Ademais, para a busca de materiais e dados para a elaboração da
escrita, utiliza-se a pesquisa bibliográfica a partir de revisão da
legislação vigente e suas alterações a partir de sites oficiais, tais
como a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), Lei do Feminicídio
(Lei 13.104/15) e da Constituição Federal de 1988, bem como
outras que tratem da mesma temática.
O objetivo deste estudo é, de modo geral, analisar a evolução
normativa no que se refere aos direitos das mulheres brasileiras a
partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, e a sua
proteção frente à sociedade, destacando a importância de efetivar a
igualdade e liberdade das mulheres frente a qualquer anseio, direito
ou necessidade que possua, compreendendo se há uma forma plena
de convivência social no Brasil.
Nesse sentido, o presente artigo se estrutura em três itens,
iniciando pela análise do papel da mulher na sociedade brasileira
contemporânea, com foco no paradigma de que haveria um lugar
correto para elas ocuparem. O segundo item analisa a evolução
normativa no Brasil a partir da Constituição de 1988, e a forma
com que leis de proteção a mulher possibilitam a busca por
uma sociedade mais igualitária e que dê a essas a liberdade para
1 Convém aqui conceituar gênero. Esse é um termo que apareceu inicialmente entre
as feministas norte-americanas na intenção de enfatizar o caráter social das distinções
baseadas no sexo. Desse modo, servia para indicar sua rejeição ao determinismo
biológico que estava implícito nos usos dos termos “sexo” ou “diferença sexual”
(SCOTT, 2019, p. 53-54). O gênero remete à cultura, aponta para a construção
social das diferenças sexuais, diz respeito às classificações sociais de masculino e de
feminino. Ele se refere a tudo aquilo que foi definido ao longo do tempo e que a
sociedade compreende como o papel, função ou comportamento esperado de alguém
com base em seu sexo biológico (LERNER, 2019, p. 289).
139
conviverem livres de ataques. Por fim, é realizada uma análise das

conquistas feministas no cenário político nacional e as perspectivas
para o futuro. Desta forma, a presente pesquisa, a partir dos pontos
abordados, justifica-se pela importância que é inerente aos estudos
que versem quanto a temática da igualdade de gênero, bem como
pela necessidade de trabalhos que discutam este direito frente as
questões específicas que lhe são concernentes.
O (cada vez mais) importante papel da mulher no Brasil

contemporâneo
Apesar de todas as alterações e inovações jurídicas nos

últimos anos, o papel da mulher ainda é relativizado, isto porque
ainda hoje o modelo de família existente está pautado na ideia de
que cabe a mulher a criação e manutenção da família. Embora a
manutenção da família seja indispensável para a evolução social,
esta responsabilidade não pode ser determinada a somente um
de seus integrantes, razão pela qual os conceitos de igualdade
devem ser levados a sério, passando o homem a dividir todas as
responsabilidades cotidianas e familiares com a mulher (ZIRBEL,
1988).
Não obstante as evoluções socais e mudanças de pensamento,
homens e mulheres sempre receberam tratamentos diferenciados e
desiguais em todos os aspectos da vida cotidiana, e esta distinção
comumente ocorre pelo critério de gênero. As formas de educação
dadas as crianças demonstram que a mulher deveria se colocar
em um papel de subserviência às regras que foram criadas em sua
grande maioria por homens, de forma com que os seus afazeres
deveriam ficar restritos ao âmbito doméstico. Estas construções
comportamentais retiram das mulheres sua força de participação
representativa e política, o que colabora para um aumento das
desigualdades (PEREIRA; SILVA, 2019).
Destarte, resta claro na sociedade moderna que a
desigualdade atrasou o processo de reconhecimento da cidadania
para as mulheres, razão pela qual pertencem a um grupo
140
reconhecidamente vulnerável, e isto ocorre pelo fato de que toda

a implementação e reconhecimento de direitos a elas ocorreu de
forma tardia. Além disso, para o reconhecimento da importância
da mulher no cenário nacional e mundial, devem ser também
reconhecidos todos os movimentos feministas que foram
responsáveis por grande parte das evoluções sociais neste aspecto,
de forma a reconhecer e batalhar para o fim das desigualdades entre
gêneros (PEREIRA; SILVA, 2019).
O movimento feminista se desenvolveu ao longo da história
como um movimento político, social e também filosófico, sendo
que uma das suas principais características é a busca pela igualdade
entre homens e mulheres e, consequentemente, por direitos iguais
para todos. Esse pode ser compreendido como um movimento que
reivindica pela participação igualitária das mulheres na sociedade,
pela desconstrução da figura da mulher como um ser inferior aos
homens e, assim, que busca a superação da hierarquia de gênero
(GARCIA, 2015, p. 11-15).
Cumpre aqui destacar que a sociedade ainda possui um
modelo patriarcal responsável por uma suposta igualdade entre
os sexos, como trata a professora e ativista feminista Catharine
MacKinnon, ao dizer que:
Virtualmente toda qualidade que distingue os homens das
mulheres já é afirmativamente compensada nesta sociedade.
A fisiologia dos homens define a maioria dos esportes, suas
necessidades definem a cobertura dos seguros de automóveis
e de saúde, suas biografias projetadas para o social definem
as expectativas de local de trabalho e padrões bem-sucedidos
de carreira, suas perspectivas e interesses definem a qualidade
no trabalho acadêmico, suas expectativas e obsessões definem
o mérito, sua objetificação da vida define a arte, seu serviço
militar define a cidadania, sua presença define a família, sua
incapacidade de se em bem uns com os outros – suas guerras e
governos – definem a história, sua imagem define Deus e seus
órgãos genitais definem o sexo. Para cada uma das diferenças
ante a mulher, está em vigor o que equivale a um plano de ação
afirmativa, conhecido, de outra maneira, como a estrutura e
141
os valores da sociedade americana (MACKINNON, 1987, p.

36).
Não obstante, as mulheres compõem mais da metade da
população brasileira (IBGE, 2015), fato que demonstra ainda
mais a importância de políticas que visem a ruptura da cultura
da sociedade patriarcal, uma vez que as mulheres contribuem
efetivamente para todo o desenvolvimento socioeconômico
do país. Dessa forma, as mulheres são uma importante força de
trabalho para movimentar a economia nacional, de forma com
que ocupam cargos mais relevantes e de maior importância nas
relações trabalhistas, portanto, não é mais possível recusar o fato
de que elas já passaram a ocupar seu lugar de direito, mas este
simples reconhecimento não basta, é necessário efetivar os valores
e proporcionar uma sociedade justa, igualitária e livre de violência,
que é ainda hoje um grande obstáculo sofrido pelas mulheres
(SANTOS; GIMENEZ; ANGELIN, 2019).
Da mesma forma, as mulheres buscam seu lugar na
representatividade política, e para isso surge o obstáculo de
pertencerem a um grupo marginalizado nas relações sociais,
porque pela aplicação ainda existente do modelo machista de
representatividade, encontram-se marginalizadas na possibilidade
de exercerem seu papel político. Para esta implicação é necessário
compreender que a falta de representação feminina também
está ligada ao fator qualitativo, não simplesmente pelo número
de cadeiras políticas ocupadas. Apesar de estarem presentes em
locais em que são realizadas atividades políticas, as mulheres
conseguem pouca ou nenhuma expressividade em sua fala, pois
são pormenorizadas pelos homens que buscam defender interesses
particulares (PEREIRA; SILVA, 2019).
Buscando justamente uma igualdade entre os gêneros,
e batalhando por uma sociedade livre de violência contra as
mulheres, prezando pelo seu bem-estar, surgiram os movimentos
feministas, que passaram, dentre outras reivindicações importantes,
a exigir a maior presença de mulheres no âmbito público. Com
a ampliação da participação feminina nos meios públicos e em
142
criações legislativas, foram assegurados direitos e criadas políticas

de enfrentamento a violência contra a mulher, como exemplo de
muita relevância, a criação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340) no
ano de 2006, que passou a defender mulheres de ataques machistas
que ocorriam cotidianamente na sociedade, e em muitos casos, até
mesmo sem punição (MAGALHÃES, 2002, p. 23).
Os movimentos feministas buscam até hoje uma igualdade
de direitos entre gêneros, visando um projeto de vida à mulher
no Brasil de forma a firmar e efetivar direitos e deveres sociais que
já existem, mas não possuem aplicação, firmando o conceito de
sociedade justa e bem-estar social. Toda luta por direitos ocorre pelo
fato da Constituição Federal de 1988 prever a igualdade, mas que
nas relações cotidianas não existe, bem como todos os privilégios
masculinos que tiram a liberdade das mulheres, concedendo uma
realidade de dominação delas por eles (PIOVESAN, 2012, p. 78).
Cumpre abordar, ainda que de maneira ampla, que o
feminismo pode ser compreendido como um movimento político,
visto que se contrapõe ao patriarcado e assim questiona as relações
de poder, as opressões e as explorações de grupos de pessoas sobre
outras. Nesse sentido, o feminismo propõe uma transformação
social, econômica, política e ideológica de toda a sociedade, que
pôde ser percebida, no decorrer do tempo, de formas variadas
(TELES, 2017, p. 22).
Esse se trata de um movimento muito importante para
a busca da igualdade e liberdade de todas as mulheres, sendo
também fundamental na construção de uma identidade feminina,
da maneira que explica Simone de Beauvoir (1970, p. 307), que
diz que “a mulher, ao viver em função do outro, não tem projeto
de vida próprio, uma vez que atua em favor do patriarcado,
sujeitando-se ao homem, agente e protagonista da história”. Esta
busca deve ser realizada por todos os membros da sociedade, pois
não podem ser aceitos movimentos que busquem estratificar ainda
mais a sociedade.
Desse modo, a busca pela evolução normativa e de
143
comportamento moral da sociedade não deve se pautar somente na

Constituição Federal de 1988, pode passar também pelas correntes
morais, a fim de defender as mulheres que foram historicamente
vítimas de opressão e discriminação, sem a possibilidade de
participação cidadã efetiva, não podendo gozar de todos os direitos
políticos e de cidadania. Por esta razão, as conquistas legislativas em
defesa da mulher são muito importantes, e assim como qualquer
outro direito, não podem sofrer retrocessos, voltando a permitir
uma sociedade onde homens e mulheres possuíam uma abominável
realidade de dominadores e dominadas, respectivamente (SANTOS;
GIMENEZ; ANGELIN, 2019).
Na realidade brasileira, a participação no espaço público
pelas mulheres vem ganhando força pouco a pouco, mudando a
realidade predominante no século XX, onde a representação das
mulheres se dava, em sua grande maioria, por meio de seus maridos,
o que fazia com que as reivindicações femininas não fossem tão
ouvidas como as dos homens. Portanto, como a burguesia não
dava liberdade para as mulheres, sempre existiam restrições de
conquistas, imputando a mulher uma rotulação de que deveriam
voltar seus esforços exclusivamente para o papel de mãe e de dona
de casa, qualquer ato praticado por mulheres fora deste contexto
rotulado, era visto como ato de rebeldia e de má fama a mulher
(LUZ; SIMÕES, 2016).
Contudo, a partir de 1988, as mulheres passaram a ter o
reconhecimento da igualdade de participação política, ainda que
os espaços políticos até hoje tenham predominância masculina.
A participação das mulheres na política nunca representou sua
porcentagem na sociedade, e, em busca de maior participação,
foram criadas leis que visavam alterar essa realidade e aproximar
cada vez mais as mulheres das eleições. Como a Lei 9.100, de 29
de setembro de 1995, que garantia uma cota mínima de 20% de
gênero nas chapas de candidaturas, o que foi ampliado a 30% em
1997, com a criação da Lei 9.504. Essas são legislações importantes,
sendo que proporcionaram maiores feitos políticos para as mulheres,
até chegar na eleição da primeira Presidenta da República, Dilma
144
Rousseff, nas eleições presidenciais de 2010, e a sua reeleição, em

2014.
Apesar disso, os avanços de representatividade e de poderes
decisórios das mulheres ainda avança muito lentamente, o que
leva novamente a constatação de que o sistema apolítico brasileiro
ainda atua através de políticos tradicionais, ou de correntes de
pensamento conservadores, fazendo com que partidos políticos
utilizem de candidaturas de mulheres somente para cumprir
a determinação legal, mas apoiando firmemente somente seus
candidatos tradicionais. Assim, embora as candidaturas de mulheres
sejam legítimas, estas quase nunca são indicadas pelos partidos a
ocuparem posições em mesas diretoras ou processos internos de
tomadas de decisões. Em razão disso, mulheres eleitas ocupam
Comissões de pouco prestígio legislativo, simplesmente para que
seja mascarada a real implicação política dada a elas pelos partidos
políticos (LUZ; SIMÕES, 2016).
A produção normativa em defesa da mulher no Brasil após a

Constituição Federal de 1988
A luta dos movimentos feministas pelo reconhecimento e

igualdade de gênero se tornou mais evidente a partir da Constituição
Federal, vigente desde 1988, a qual garante a isonomia jurídica entre
homens e mulheres; a proibição à discriminação em razão do sexo
nas relações de trabalho; resguardando o direito à amamentação
para as presidiárias; protege a maternidade como um direito social;
reconhece o planejamento social a partir de uma decisão livre do
casal, e especialmente, trata como dever do Estado coibir a violência
no âmbito das relações familiares, bem como outras conquistas
normativas a seguir destacadas.
As determinações constitucionais foram complementadas
pela legislação infraconstitucional, iniciando pela Lei nº 8.930/94,
que passou a incluir o estupro no rol dos crimes hediondos,
ampliando o alcance da defesa às mulheres. Mais adiante, foi
criada a Lei nº 9.318/96, que surgiu para agravar a pena dos crimes
145
cometidos contra mulheres grávidas, alterando o Código Penal

brasileiro. Neste mesmo sentido, surgiram duas outras leis com
grande relevância para o combate da desigualdade de gênero, a Lei
Maria da Penha, Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006, considerada
um importante divisor de águas no que se refere a violência
doméstica e a inferiorização do papel da mulher nas relações
familiares, e a Lei do Feminicídio, Lei 13.104 de 09 de março de
2015, que passou a incluir como qualificadora do homicídio os
crimes praticados contra mulheres em razão de gênero.
Para a busca de uma sociedade mais justa, importantes
adequações foram realizadas nas leis em defesa da mulher, como
o fato de, no ano 2001, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos - CIDH ter concluído que o Brasil era omisso em relação
aos problemas da violência contra a mulher no caso de Maria da
Penha Fernandes. O relatório advertiu o Estado Brasileiro a adotar
medidas efetivas para implementar os direitos das mulheres, já
reconhecidos nas Convenções Interamericanas, o que obrigou o
país a atuar de forma mais incisiva nas evoluções legislativas, até
mesmo a partir de Emendas à Constituição.
A partir de diversos estudos motivados pela recomendação
da OEA (Organização dos Estados Americanos), o Brasil seguiu
por inovações legislativas que culminaram na Lei Maria da Penha,
que deu concretude ao §8º do artigo 226 da Constituição Federal,
que prevê a assistência à família, criando mecanismos para coibir
a violência no âmbito de suas relações. Assim, o legislador buscou
uma forma de combater a violência contra a mulher praticada
por companheiros e dentro de suas residências, buscando punir
efetivamente os agressores, retirando-o do seio familiar e mantendo
o vínculo afetivo saudável entre os demais membros.
A Lei Maria da Penha, ainda, implicou em outras
importantes alterações no combate a violência contra a mulher,
como a alteração do Código Penal, para acrescentar agravantes
nos crimes com implicação de violência doméstica, além da
modificação no conceito de lesão corporal decorrente deste mesmo
tipo de violência. Além disso, as disposições gerais da lei permitem
146
a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal, do Código

de Processo Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem
como do Estatuto do Idoso, complementando a atuação legal em
favor da mulher.
Apesar disso, apenas a legislação não é o suficiente para
a real alteração da realidade da violência sofrida pelas mulheres
no Brasil, é necessária uma reestruturação no comportamento e
punições eficazes aos agressores, de forma com que o real ponto
a ser atacado, é a reincidência do violentador. Por conta disso, a
manutenção e criação de políticas públicas de defesa das mulheres
é fundamental para alcançarmos no país uma realidade de não
violência, problema este que deve ser tratado pelo Poder Público,
que ainda reluta em produzir estatísticas confiáveis relacionadas a
violência e homicídios relacionados ao sexo do indivíduo.
Ao mesmo passo, outras leis em defesa da mulher merecem
ser destacadas, estas não relacionadas ao combate a violência, mas
à desigualdade, como a Lei nº 9.029/95, que proíbe a exigência de
atestados de gravidez ou esterilização da mulher para que este possa
ser admitida no trabalho. Do mesmo modo, a Lei nº 9.504/97, que
instituiu o mínimo de 30% e máximo de 70% das candidaturas
políticas para cada sexo, visando a maior participação política da
mulher, apesar de não ter se mostrado uma política legislativa eficaz
para a participação feminina nas eleições.
Em razão da pouca eficácia alcançada por essa lei, surgiu
a PEC 23/2015, proposta pela Senadora Simone Tabet, que tinha
como objetivo a reserva de 30% das cadeiras do Congresso Nacional
para mulheres (BRASIL, 2015). Desta forma, a participação das
mulheres na política, como meio de representação parlamentar
é a mais correta busca pelo gozo pleno da cidadania, elevando à
política a visão feminina. A participação maior das mulheres na
política e na criação normativa é uma forma de democracia plena,
afinal, não pode ser aceita uma democracia masculina que decida
para todo o povo, e todos os gêneros.
Ademais, as medidas legislativas continuam a ser adotadas
147
no Brasil em favor das mulheres, indicando que os movimentos

feministas seguem fortes e, assim, também permitindo que um
maior número de mulheres atue na política. Apesar da disparidade
de gênero ainda ser muito grande, a conjuntura política se mostra
promissora, de forma com que as criações legislativas possuem cada
vez mais o olhar igualitário entre os sexos. Além disso, é possível
perceber um grande avanço no número de pesquisas lideradas por
mulheres, bem como publicações de artigos em revistas relevantes
sobre tratativas legislativas (VENTURI; GODINHO, 2013, p.
289-315).
Para a evolução normativa em defesa das mulheres, é
necessário haver uma “destradicionalização nas percepções de
gênero” (VENTURI; GODINHO, 2013, p. 289-315), fazendo
com que, a partir dos movimentos feministas mais fortes, os
direitos das mulheres sejam vistos como ferramenta fundamental
ao bem-estar social e convivência harmônica entre os povos. Assim,
no mesmo sentido das leis criadas, as políticas públicas também
possuem um papel fundamental para a busca da igualdade, o
que pode ser percebido a partir de artigos publicados e estudos
catalogados realizados por mulheres, restando claro que a
concretização dos estudos deve passar por uma conscientização
coletiva.
Portanto, a participação política é muito importante para
que os efeitos da democracia sejam aplicados à sociedade de forma
justa e igualitária, de forma com que todas as discussões passem a ser
vistas sob a ótica de homens e mulheres, sem que haja apropriação
de uns pelos outros. Exemplo claro da complexidade do tema é o
fato da questão do direito ao aborto ser amplamente discutida em
sua maioria por homens, enquanto as mulheres devem se contentar
com os resultados por eles aplicados à temática. Assim, o papel
político é de fundamental importância para as conquistas das
mulheres, seja no campo administrativo ou legislativo, conforme
será discutido a seguir.
148
O poder político das mulheres no Brasil como forma de

efetivação democrática
A busca por representação e igualdade para as mulheres se

tornou mais importante a partir da promulgação da Constituição
Federativa do Brasil de 1988, que acarretou ganhos significativos
para os movimentos feministas no país, compreendendo que depois
de muito tempo sendo tratada como sexo inferior, as mulheres
precisam ser reconhecidas a partir de sua importância na formação
e manutenção da sociedade.
As primeiras mulheres a comporem ativamente o poder
legislativo e executivo foram Alzira Soriano, primeira prefeita do
Brasil, na cidade de Lajes, no Rio Grande do Norte, no ano de 1928;
Carolta Pereira, primeira deputada federal, em 1934; Antonieta de
Barros, primeira deputada estadual, pelo estado de Santa Catarina,
no ano de 1934; Euníce Michiles, primeira mulher a ocupar um
cargo no Senado Federal, pelo Amazonas, no ano de 1978; Esther
de Figueiredo Ferraz, primeira Ministra da Educação, no ano
de 1982; Roseana Sarney, que ocupou diversos cargos políticos,
como Governadora do Maranhão, Senadora pelo mesmo Estado
e Deputada Federal; Maria Pio de Abreu, a primeira candidata à
presidência do Brasil, no ano de 1989; e Dilma Rousseff, a primeira
Presidenta eleita do país (NOREMBERG; ANTONELLO, 2016).
A partir das lutas de muitas mulheres na política, algumas
barreiras foram sendo quebradas, mas outras tantas ainda
existem, de forma que há muito o que ser feito para que outras
conquistas sejam efetivadas a partir do Estado democrático. A
democracia, conforme destaca o art. 1º da Constituição Federal,
é fundada na pluralidade da sociedade em que está implantada,
de forma com que sua solidez somente se dá quando deixam de
ser aceitos somente os argumentos dos homens. É preciso que os
movimentos das mulheres sejam reconhecidos como fundamentais
para a manutenção e evolução democrática da nação, ampliando os
149
horizontes de debates e a busca pela melhoria dos direitos humanos,

em constante construção.
A participação feminina na política no Brasil encontra
limitações de efetividade, isto porque a legislação brasileira não é
favorável para a alteração da realidade brasileira. A lei nº 9.504/97
estabelece apenas a obrigatoriedade de participação de mulheres no
que tange ao número de candidatos inscritos na chapa eleitoral, mas
não há uma sanção sobre o partido para a hipótese de lançamento
da candidatura sem que os percentuais sejam preenchidos, fazendo
com que o mínimo exercido atue como uma espécie de fantasia
legislativa que não reflete na situação fática da política (LUZ;
SIMÕES, 2016).
Ademais, quando há uma ampliação no que se refere ao
número total de vagas em disputa nas eleições, há um consequente
aumento no número de candidatos que serão lançados pelos
partidos, de forma com que preencher o mínimo de mulheres na
composição partidária também seja de difícil alcance. Da mesma
forma, as cotas são vistas como uma obrigação a ser preenchida,
o que faz com que muitas candidaturas sejam lançadas apenas
para cumprimento legislativo, sem um real interesse de eleição, ou
seja, as mulheres se candidatam e sequer realizam uma campanha
política (LUZ; SIMÕES, 2016).
Apesar de todas as dificuldades de representação, a
participação feminina na política ganhou novos traços a partir das
eleições presidenciais de 2010, em que Dilma Rousseff foi eleita
Presidenta da República. Esta foi a primeira vez que a república
brasileira foi comandada por uma mulher. Além disso, no contexto
de democracias representativas, no mesmo ano, outras cinco
mulheres ocupavam o cargo de presidentas, dando grande destaque
aos avanços das conquistas das mulheres na política. No Brasil,
dentre os candidatos mais competitivos para o cargo de Presidente,
duas eram mulheres, pois que ao lado de Dilma Rousseff, que foi
eleita, também estava Marina Silva, que não passou ao segundo
turno da eleição (ARAÚJO, 2011, p. 90).
150
É muito importante discutir a questão histórica que ainda

hoje impede uma maior participação das mulheres na esfera pública,
isto porque tudo que envolve o convívio em sociedade deve contar
com a representação plural. A democracia passa por representação
igualitária de ideias e conceitos, e esta está condicionada a
participação eficaz no meio público, em que os discursos e ações
serão materializados a partir da política. Portanto, se faz necessário
o respeito as vozes de toda a sociedade, com atenção para o respeito
as vozes das mulheres, as quais deixaram de ser ouvidas por muito
tempo, e que hoje ecoam com um pedido de serem notadas pelos
canais de participação (ARAÚJO, 2011, p. 94).
Nas últimas décadas, apesar das dificuldades enfrentadas,
dado o ainda existente machismo na sociedade, a ocupação de
cargos públicos por mulheres aumentou, indicando muitos ganhos
na trajetória representativa da democracia. A representação política
auxilia na formação de uma população feminina mais ativa,
refletindo também no mercado de trabalho, fazendo com que elas
fiquem mais economicamente ativas e ocupem cargos de maior
destaque em suas empresas, de forma com que o papel de decisão
esteja cada vez mais em suas mãos, equilibrando de forma racional
a sociedade (ARAÚJO, 2011, p. 98-99).
Portanto, o cenário político está contando com a
participação de um número maior de mulheres, porém, são
necessários constantes estudos para compreender a construção
política do país, compreendendo os campos em que as mulheres
estão presentes. É necessário que os processos partidários sejam
compreendidos, de forma com que as mulheres consigam ocupar
cargos de direção e postos de decisão mais atinentes, e não apenas
participem passivamente da política ou sejam indicadas para cargos
sem expressão, apenas como uma forma de ocupação delegada
pelos partidos políticos, retirando das mulheres a possibilidade de
se expressarem de forma plena.
A consolidação democrática e a ampliação de legislações em
defesa das mulheres somente poderão ser efetivamente produtivas
com a participação feminina e nas instituições governamentais. A
151
ocupação de cargos governamentais tem grande peso na trajetória

de grupos de indivíduos a partir da representação direta, de forma
com que a ocupação de cargos de secretarias ou presidência de
conselhos por mulheres passa a ser uma importante base para
aspirações políticas maiores. A avaliação de eficiência de leis deve
passar pela alteração do status social, o que ainda não ocorreu,
pois, o rótulo de sociedade machista ainda pode ser perfeitamente
aplicado ao Brasil, portanto, a representação feminina ainda deve
ser muito ampliada (ARAÚJO, 2011, p. 102-104).
Desta forma, o problema da representação das mulheres
possui fontes distintas, provenientes de antecedentes de exclusão
históricas, além da grande carga social delegada as mulheres, como
a função de ser cuidadora da família, a detentora do papel de cuidar
da casa etc. Diante disto, a simples aplicação de cotas políticas não
é suficiente para preencher as lacunas de representação, sendo
necessária a criação de uma nova agenda política de representação,
devendo passar também pela reestruturação dos cargos de
gerência dentro dos partidos políticos (LUZ; SIMÕES, 2016). A
representatividade depende da plena expressão de ideias e conceitos,
para que sejam possíveis estudos aprofundados relacionados aos
mais diversos temas, de forma com que uma predeterminação do
que poderá ou não ser estudado e apresentado pelas mulheres, atua
como uma forma de censura.
É necessário voltar os olhos para o papel das mulheres na
política, para que essas não sejam somente um simples número
de candidaturas infrutíferas que servem apenas para compor
estatísticas. O aumento do número de mulheres nas chapas políticas
não resolve por si só os problemas de sub-representação, ou seja,
é necessária uma reestruturação por completo, começando pelas
bases sociais, onde as mulheres devem passar a ser mais valorizadas,
especialmente no mercado de trabalho e no âmbito familiar. Com
maior representação em outros setores da sociedade, a participação
política se torna mais eficaz, fazendo com que os números se tornem
efetivamente representações, capazes de reformular o cenário
nacional e gerar igualdade, que até então se observa somente no
152
texto legal.
Este artigo teve como objetivo ser uma parte de contribuição

para os estudos do papel da mulher na sociedade, analisando como
as normas criadas no país servem como base para o avanço na
igualdade e liberdade das mulheres, o que passa necessariamente
pela representação política. Por isso, buscou-se avaliar a trajetória
histórica brasileira no que diz respeito as conquistas femininas,
que tem o direito de perseguir a igualdade e liberdade frente aos
homens, refletindo diretamente em sua qualidade de vida e na
importância das políticas sociais em sua defesa.
A parir das revisões bibliográficas realizadas, é possível
compreender que o papel da mulher na sociedade é, ainda hoje,
subjugado e apesar das criações legislativas, o objetivo das leis não
foram completamente alcançados, quais sejam a diminuição da
violência, a não discriminação no ambiente de trabalho e a baixa
representação política. Entretanto, é possível perceber que há
uma pequena evolução na estrutura política, fazendo com que o
número de mulheres que pretendem ocupar cargos públicos tenha
aumentado, o que gera uma esperança de maior representação e
reestruturação política.
O papel da mulher deve ser mais respeitado, de forma
com que discriminações de qualquer modo devem ser amplamente
combatidas, além de buscarmos acabar com antigos preconceitos
machistas ainda presentes na sociedade. Não devem ser delegados
papeis às mulheres, isto não se trata de uma imposição, ou seja,
padrões que definem que mulheres devem cuidar de casa ou da
família já estão ultrapassados, e é papel de todos os membros da
sociedade compreender a necessidade de manutenção da evolução
para um bom convívio social.
Os obstáculos em diversas ordens ainda existem, mas é
153
possível entender, a partir da pesquisa realizada, que os desafios e

as estratégias de ampliação do reconhecimento feminino no Brasil
devem ser objetos de maiores e constantes estudos. Compreender
que não existem lugares definidos para homens ou mulheres
ocuparem é o primeiro passo para que as implicações machistas
da sociedade sejam eliminadas, apesar de ser uma tarefa deveras
difícil, cabe a todos os indivíduos, independente de sexo. Qualquer
espécie de limitação atua como forma de controle e uma censura,
ainda que disfarçada, fazendo com que os plenos poderes políticos
e sociais das mulheres não ocorram, corroborando gravemente pela
manutenção das desigualdades sociais e de gênero.
Por fim, os desafios encontrados para a realização da
pesquisa demonstram que ainda há um longo caminho a ser seguido
no Brasil em busca da Igualdade e da liberdade das mulheres, isto
porque é muito mais fácil encontrar dados para pesquisas sobre
conquistas masculinas do que femininas. Portanto, o campo da
pesquisa cabe cada vez mais para compreender os fenômenos
sociais e apagar as implicações desiguais que ocorrerem em todos
os campos, de forma com que é papel do pesquisador atrelar seus
esforços à manutenção da paz social e ampliação de concretização
dos mandamentos constitucionais, formando uma sociedade mais
justa, igual e livre para homens e mulheres.
Referências
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democracia nas próximas décadas. In: BARSTED, Leila Linhares;
PITANGUY, Jaqueline (Orgs.). O Progresso das Mulheres no
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154
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redação ao art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que
dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5o, inciso
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Presidência da República, 1994.
BRASIL. Lei nº 9.029, de 13 de abril de 1995. Proíbe a
exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas
discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da
relação jurídica de trabalho, e dá outras providências. Presidência
da República, 1995.
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alínea h do inciso II do art. 61 do Código Penal. Presidência da
República, 1996.
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normas para as eleições. Presidência da República, 1997.
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mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher[...]. Presidência da República, 2006.
BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121
do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código
Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora
do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho
de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
Presidência da República, 2015.
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Acrescenta o art. 16-A à Constituição Federal, para determinar
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ao_Ano_Internacional_da_Mulher Acesso em: 22 abr. 2021.
Capítulo 8
Do tanque ao palanque: a resistência feminina e suas

conquistas político-sociais
Carin Otília Kaefer Lisbôa

Maria Brendler Nosvitz
N a cena contemporânea podem ser observadas diversas

manifestações de violência, porém, neste capítulo, será
abordada principalmente a violência de gênero e/ou de sexo, que
também pode ser atravessada de outras opressões, como a de classe
e de raça/etnia1. Portanto, trata-se de problematizar a necessidade
de políticas públicas para mulheres de forma a garantir as suas
sobrevivências, a partir de uma responsabilização do Estado. São
diversas as motivações pela escolha da temática, mas, considera-
se importante situar a leitora, que a pesquisa advém de uma
base teórica fundada no Serviço Social, profissão caracterizada
majoritariamente por mulheres, sejam elas profissionais, público
alvo ou ambos. Além disso, essa profissão possui como objeto de
trabalho a questão social2, sendo a violência de gênero e/ou sexo
1 Por raça/etnia, orienta-se a partir de Cecilia Sardenberg (p. 62, 2015), que os define e
diferencia da seguinte forma: “o conceito de ‘raça’ continua a ter relevância sociológica,
vez que processos de ‘racialização’, classificação e inferiorização de determinados
grupos com base nas suas características físicas: remetem à transmissão de traços
fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas, etc. Apesar de não ter
validade como conceito científico, raça ainda tem validade social, pois é a ideia que
fundamenta o racismo existente em nossa sociedade. Já etnia remete à transmissão de
traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas, etc. Não cabe, pois,
substituir o termo ‘raça’ por ‘etnia’; esses termos não são intercambiáveis, já que se
referem a fenômenos distintos”.
2 Segundo Iamamoto e Carvalho (2014), a questão social nada mais é que as expressões
em que se deram a formação, o desenvolvimento e a entrada da classe operária no
cenário político da sociedade, buscando se fazer reconhecer como classe pelo Estado
e pelo empresariado, são as contradições entre a classe operária e a burguesia, em que
a primeira, luta por intervenções que vão muito além da caridade e da repressão.
158
uma de suas principais expressões.

O objetivo é, portanto, fazer uma revisão bibliográfica crítica
das principais referências teóricas das Ciências Sociais e Humanas
na área de gênero e/ou sexo, com enfoque na violência contra as
mulheres e suas estratégias de organização política de resistência,
estruturadas, principalmente, no movimento feminista. Dessa
forma, procurou-se, sobretudo, analisar quais foram as conquistas
político-sociais das mulheres - entendidas aqui como políticas
públicas acessíveis - a partir do contexto histórico, social, político
e econômico em que suas lutas foram estruturadas e materializadas
no Brasil. A produção da pesquisa foi orientada pelo método
dialético-crítico de inspiração Marxista.
Ao ampliar e aprofundar a discussão sobre a resistência
feminina existente há séculos na história do Brasil, desmistifica-
se ideias misóginas e conservadoras, baseadas em preceitos
biológicos, sem atravessamento social, que justifiquem o discurso
da inferioridade feminina. Portanto, apresentar-se-á os últimos
dados disponíveis referentes a frequência com que as mulheres são
vítimas de violência de gênero no país, com a intenção de refletir
acerca da efetividade das atuais políticas públicas para as mulheres.
A contextualização do feminismo no Brasil e das mudanças
sociais e políticas no país é necessária para acompanhar o
movimento de mulheres e entender o processo constituinte de
redemocratização. A principal política pública que se pode contar
atualmente é a delegacia da mulher, a qual acaba sendo porta de
entrada para as mulheres vítimas de violência de gênero e/ou sexo,
por ser referência como serviço de denúncia, apesar de ainda, se
caracterizar como um espaço majoritariamente masculino e, por
isso, reprodutor de opressões historicamente naturalizadas.
A temática em questão, fortalece o debate sobre os
direitos iguais para mulheres e homens, pois, infelizmente, é
um assunto muito debatido, mas ainda pouco praticado. Os
papéis pré definidos conhecidos popularmente como “homem” e
“mulher” perpetuam uma lógica inversamente proporcional, pois,
159
sustentam o poder e a estabilidade masculina sobre o descrédito das

potencialidades femininas. Por isso, reconhece-se a necessidade do
fortalecimento mútuo na relação academia-sociedade, tornando-se
imprescindível atualizar essa discussão para reforçar a importância
da responsabilização do Estado na defesa da vida das mulheres.
Ademais, este estudo só se fez possível graças à dedicação e
inquietação de diversas mulheres citadas ao longo do texto, que,
atentas às suas experiências, visualizam possibilidades de mudança
na sociedade capitalista-patriarcal, e produzem teorias críticas
disponíveis à sociedade.
Breve contextualização da trajetória do feminismo no Brasil e

no mundo
A luta das mulheres por igualdade de direitos não é recente.

Historicamente a mulher foi representada na sociedade como um
ser humano frágil, inocente, submisso, que servia apenas para
reproduzir e cuidar do lar. No entanto, aqui será reflexionado sobre
essa postura subalterna ser sustentada pela cultura patriarcal, de
forma estrategicamente benéfica a sua reprodução. Pretende-se
também apresentar neste trabalho, o que motivou a resistência
feminina com relação às diferentes formas de violência às quais
são vítimas. Aristóteles (1991, p. 13 e 31) escreveu que “Em todas
as espécies, o macho é evidentemente superior à fêmea: a espécie
humana não é exceção [...] quanto ao sexo, à diferença é indelével:
qualquer que seja a idade da mulher, o homem deve conservar
sua superioridade”, essa visão é perpetuada pela maior parte dos
homens, uma vez que se beneficiam, explorando e subordinando as
mulheres. Em contraponto, Evelyn Reed3 (1954), cita essa verdade
3 Evelyn Reed (1905 – 1979) foi uma socialista americana (trotskista) e militante
do movimento de mulheres. Inspirando-se nos estudos e trabalhos sobre a questão
feminina de Friedrich Engels e Alexandra Kollontai, e apesar de ser inclinada ao
trotskismo, Evelyn Reed escreveu muitos textos e livros sobre a questão feminina do
ponto de vista do marxismo, que possuem uma reconhecida qualidade até mesmo
para o aprendizado da questão feminina entre marxistas-leninistas. Disponível em:
https://portalvermelhoaesquerda.wordpress.com/evelyn-reed/. Acesso em 10 de abril
de 2021.
160
imutável, de que “os homens são socialmente superiores porque

são naturalmente superiores” como um mito, afinal, a supremacia
masculina é um fenômeno social, característico de um momento
determinado da sociedade e não uma lei natural.
Ao analisar a história, a literatura e principalmente a ciência,
verifica-se quase sempre o lugar de exclusão ou inferioridade que
as mulheres ocupavam. Como não poderia ser diferente, uma vez
que até o século XIX as mulheres não tinham sequer o direito à
educação básica. Dependente dos homens, aos quais cabia o
provimento das necessidades materiais do lar, as mulheres tinham
seu espaço restrito à esfera privada, no qual os homens supriam suas
necessidades para poder participar como cidadãos livres na esfera
pública. Sobre este fato, Arendt assim se posiciona:
O que distinguia a esfera familiar era que nela os homens
viviam juntos por serem compelidos por suas necessidades e
carências (...). A comunidade do lar decorria da necessidade:
era a necessidade que reinava sobre todas as atividades
exercidas no lar (...). A esfera da polis, ao contrário, era a esfera
da liberdade, e se havia uma relação entre essas duas esferas
era que a vitória sobre as necessidades da família constituía a
condição natural para a liberdade na polis (ARENDT, 1989,
p. 40).
A afirmação do lugar da mulher ou de sua condição modelo
de reprodutora da família institucionalizada, é reforçada com a
propriedade privada e a acumulação de bens, momento em que
o homem descobre sua colaboração na gestação do filho e sente a
necessidade de que as relações se tornem monogâmicas (embora
essa condição até nos dias de hoje delegada mais às mulheres do
que aos homens), a fim de que ele pudesse saber quem seria seu
herdeiro. Como reforça Engels:
A mulher foi degradada, convertida em servidora, escrava do
prazer do homem e em mero instrumento de reprodução.
Esse rebaixamento da condição da mulher, tal como aparece
abertamente sobretudo entre os gregos dos tempos heroicos
e mais ainda dos tempos clássicos, tem sido gradualmente
retocado, dissimulado e, em alguns lugares, até revestido de
161
formas mais suaves, mas de modo algum eliminado (ENGELS,

1999, p. 75).
Entretanto, este capítulo tem como intenção dar ênfase
às potencialidades femininas e para isso, reconhecer a influência
cultural e não biológica da condição de subalternidade da mulher.
Neste raciocínio ressalta-se que, inclusive, existiram sociedades
matriarcais, como disserta Evelyn Reed:
Os homens não foram sempre o sexo superior, uma vez que
não foram sempre os dirigentes industriais, intelectuais e
culturais. (...) A sociedade primitiva era um matriarcado (...)
Mas a distinção entre os dois sistemas sociais vai muito além
desta mudança de papel de dirigente dos dois sexos. A direção
social das mulheres na sociedade primitiva não estava fundada
sobre a opressão do homem. Pelo contrário, a sociedade
primitiva não conhecia desigualdades sociais, inferioridades
ou discriminações de qualquer espécie. Estava fundada sobre
uma base de completa igualdade. Portanto, de fato, através da
direção das mulheres, os homens passaram de uma condição
atrasada a um papel social e cultural mais elevado (REED,
2008, p. 4).
A respeito das diversas formas de violência contra a mulher,
Marilena Chauí4 (1985) concebe isto como resultado de uma
ideologia de dominação masculina que é produzida e reproduzida
tanto por homens como por mulheres. A autora define violência
como uma ação que transforma diferenças em desigualdades
hierárquicas com o fim de dominar, explorar e oprimir. A ação
violenta, trata o ser dominado como “objeto” e não como “sujeito”,
o qual é silenciado e se torna dependente e passivo. Nesse sentido,
o ser dominado perde sua autonomia, ou seja, sua liberdade,
entendida como “capacidade de autodeterminação para pensar,
querer, sentir e agir”. Desta forma, a sociedade passa a se denominar
como patriarcado, modelo no qual cabe à mulher as incumbências
4 Possui graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1965), mestrado
em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1967) e doutorado em Filosofia pela
Universidade de São Paulo (1971). Professora Titular em História da Filosofia
Moderna pela Universidade de São Paulo (1986). Disponível em: https://www.
escavador.com/sobre/9042147/marilena-de-souza-chaui. Acesso em 25 de abril de
2021.
162
domésticas, e concomitantemente, ao homem representação da

fortaleza emocional e física e quem deve apresentar a palavra final
de qualquer decisão a ser tomada. A partir de Saffioti (1987), o
patriarcado não é apenas um sistema de dominação, mas também um
sistema de exploração. A autora afirma que enquanto a dominação
pode referir-se essencialmente ao campo político e ideológico, a
exploração diz respeito, inclusive, ao terreno econômico.
Sobre a trajetória sócio-histórica da luta das mulheres,
de acordo com a Universidade Livre Feminista5, o primeiro
documento a reivindicar a igualdade jurídica entre os sexos é a
Declaração dos Direitos da Mulher, escrito em 1771 pela militante
francesa Olympe de Gouges durante a Revolução Francesa.
Elaborado como uma crítica a Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, que garantia direito à liberdade apenas aos homens,
foi rejeitado e só em 1986, republicado e disponibilizado para
consulta. Mendes, Vaz e Carvalho (2015) escrevem que em 1897
eclode na Inglaterra o Movimento Women’s Suffrage (mulheres
sufragistas) onde milhares de mulheres manifestaram-se pela
garantia de seus direitos, em especial o direito ao voto. A conquista
do sufrágio feminino aconteceu apenas em 1913 no Reino Unido,
representado como a primeira onda do feminismo. O movimento
feminista surge com a intenção de romper com a ordem patriarcal,
denunciando a desigualdade entre homens e mulheres e buscando
direitos igualitários e humanos para as mulheres.
No Brasil, pode-se datar como as primeiras manifestações
5 “É um projeto feminista, construído de forma coletiva e colaborativa, cujo objetivo
é congregar, catalisar e fomentar ações educativas, culturais, artísticas; de produção
de conhecimento e compartilhamento de saberes acadêmicos, populares e ancestrais,
numa perspectiva contracultural feminista, antirracista e anticapitalista. Através da
Universidade Livre pretendemos promover a reflexão e a troca de ideias, vivências e
experiências entre mulheres de diferentes identidades e campos de atuação (político,
artístico, cultural, acadêmico, comunitário), assim como com outros grupos e
indivíduos. Em um processo contínuo de autoformação, a Universidade Livre
Feminista busca estimular a formulação de análises e métodos que fortaleçam a ação
política, individual ou coletiva, das mulheres em toda a sua diversidade, de modo que,
juntas, possamos contribuir para a construção de uma sociedade justa, igualitária, não
hierárquica, criativa e libertária.” Disponível em: http://feminismo.org.br/historia/.
Acesso em 1 de abril de 2021.
163
oficiais de resistência feminina a partir da publicação do livro

Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, escrito por Nísia
Floresta6, para denunciar o mito da superioridade do homem, em
1832. Como afirmam Laís Paula Rodrigues de Oliveira e Latif
Cassab (2014):
No espaço latino-americano, o movimento feminista se constitui
por influências de mulheres que atuaram em movimentos
guerrilheiros, participantes do movimento estudantil, partidos
políticos progressistas, organizações acadêmicas, políticas
e por mulheres que foram obrigadas a exilar-se de seu país.
No evolver histórico, romperam com a esquerda, porém, seu
cunho ideológico radical continuou enraizado como um dos
objetivos principais de luta e conquista, tendo como projeto
uma reforma social que propunha a inclusão da participação
popular juntamente com os direitos da mulher (CASSAB;
OLIVEIRA, 2014, p. 3).
Em relação a conquista do voto feminino no Brasil, Céli
Pinto (2010, p. 16) comenta “[...] as sufragetes brasileiras foram
lideradas por Bertha Lutz, bióloga, cientista de importância, que
estudou no exterior e voltou para o Brasil na década de 1910,
iniciando a luta pelo voto [..], este direito foi conquistado em
1932, quando foi promulgado o Novo Código Eleitoral brasileiro”.
Ainda segundo a autora, nas primeiras décadas do século XX, o
feminismo esteve associado a personalidades, destacando-se o
esforço pessoal de algumas mulheres que rompiam com papéis
estabelecidos, imprimindo sua marca no mundo público. Nesse
momento destacam-se três vertentes. Na primeira, a mulher
emerge como sujeito capaz de exercer direitos políticos. Na
segunda, é caracterizada por manifestações da imprensa feminista
alternativa, sob a ação de mulheres cultas, tais como professoras,
escritoras e jornalistas. As mulheres, através da imprensa, buscavam
6 Escritora nordestina que viveu no século XIX foi uma das precursoras de conceitos
feministas no país; ao longo de sua vida, participou de campanhas abolicionistas e
republicanas mas militou, principalmente, pelos direitos das mulheres, tendo escrito
o livro “Direitos das mulheres e injustiça dos homens”. Disponível em: https://www.
revistaforum.com.br/nisia-floresta-a-feminista-brasileira-que-voce-nao-encontrara-
nos-livros-de-historia/. Acesso em 2 de abril de 2021.
164
formar uma opinião a favor das suas ideias de libertação. Eram

mulheres precursoras de valores alternativos à moral dominante,
que proferiram discursos relacionados a temas como divórcio
e sexualidade, configurando em seus protestos a face menos
comportada do movimento. A terceira vertente, de natureza mais
politizada, é manifestada através da presença do Partido Anarquista
e Partido Comunista, no movimento feminista (PINTO, 2003).
Céli (2003), ao longo dos capítulos de seu livro “Uma
História do Feminismo no Brasil”, aborda que com o golpe de 1937
ocorre um longo período de refluxo do movimento feminista que se
estende até as primeiras manifestações nos anos 1970. No entanto,
isso não significa que durante esse longo período, as mulheres não
tiveram nenhum papel no mundo público; muito pelo contrário,
houve momentos importantes de participação da mulher, como o
movimento no início da década de 1950 contra a alta do custo
de vida, por exemplo. Estes grupos de mulheres problematizaram
e lutaram pela transformação da condição de dominação à qual
estavam submetidas. Em 1964 o Brasil vê sua breve democracia ser
substituída por um regime autoritário, quando os militares tomam
o poder e declaram a Ditadura Militar (que se perpetuou até
1985). O movimento de esquerda lançava como objetivo central
questionar a ordem capitalista e desta forma, havia o receio de que
o movimento feminista pudesse ser um risco de desviar o foco,
visto que o próprio capitalismo se sustenta nas diferentes formas de
opressão e contradição, aproveitando-se delas para alienar.
Nesse contexto, o autoritarismo praticado pelo Estado dava
pouca possibilidade para que outras pautas as quais diziam respeito
especificamente às demandas das mulheres, viessem à tona. Por
um lado, as mobilizações de mulheres basicamente se somavam às
formas de resistência à ditadura; por outro, o próprio engajamento
político de mulheres já trazia, em si, uma revisão de uma ordem de
gênero que colocava as mulheres num papel secundário (SARTI,
2004), ainda que não reconhecidas em bandeiras assim chamadas
feministas. De acordo com Senkevics (2013), foi com a declaração,
por parte da ONU, do ano de 1975 como o Ano Internacional
165
da Mulher, que o cenário passou a propiciar maior visibilidade ao

feminismo.
Debates feministas, antes tímidos, passaram a ser mais
explícitos. Conforme esta década se aproximava do fim, acontecia
o processo de abertura política, quando a repressão passou a ser
reduzida e, ao mesmo tempo, uma ampla mobilização social.
Ainda, a volta de mulheres exiladas no exterior permitiu que suas
experiências com os feminismos norte-americanos e europeus
pudessem se somar ao desenvolvimento de uma consciência
feminista que já encontrava espaço no Brasil. A historiadora
Ana Maria Colling, acrescenta sobre a impressão da mulher que
confrontava a repressão militar:
Fica evidente que, para a ditadura militar brasileira, a mulher
militante não era apenas uma opositora ao regime militar; era
também uma presença que subvertia os valores estabelecidos,
que não atribuíam à mulher espaço para a participação política.
Como a questão está presente na sociedade e nas próprias
organizações de esquerda, pode-se concluir que as relações de
gênero têm uma dimensão que perpassa todas as instâncias e
instituições sociais (COLLING, 1997, p. 370-383).
A partir desse processo, de acordo com a especialista
em Estudos de Gênero, Maria Nosvitz (2021), as pesquisas no
campo das desigualdades de sexo começaram a se estruturar,
majoritariamente, a partir do conceito de gênero para explicar as
relações sociais entre os sexos. Porém, a epistemologia da palavra
gênero possibilita outras diversas interpretações. De acordo com o
dicionário de Oxford Linguagens significa “conjunto de seres ou
objetos que possuem a mesma origem ou que se acham ligados
pela similitude de uma ou mais particularidades”. A historiadora
e pesquisadora do tema Joan Scott (1995 apud NOSVITZ, 2021)
argumenta que o conceito de gênero, no seu uso mais simples, é
entendido como sinônimo de “mulheres”, substituindo o tema da
história das mulheres pela palavra “gênero”, principalmente por
tornar esse campo de pesquisa mais aceitável politicamente falando.
Por outro lado, Luis Miguel alerta que a categoria “mulheres”
é o resultado de uma ambiguidade, pois, a mulher que se
166
fala é produto das relações de opressão que se quer abolir,

afinal, o gênero se expressa no cotidiano das mulheres como
opressão e identidade. Apesar da crítica, o autor compreende
que a recusa à categoria coletiva “mulheres” como válida, acaba
por impossibilitar a atuação do feminismo como movimento
político, uma vez que ele deixaria de se referir a qualquer grupo
social concreto (MIGUEL, 2014 apud NOSVITZ, 2021, p.
6 e 7).
Portanto, com relação ao movimento feminista como
movimento político, Joana Maria Pedro (2006)7, em uma pesquisa
sobre as narrativas fundadoras do feminismo e as disputas de poder
entre os grupos, destaca que a prática do feminismo era vista com
hostilidade por determinados setores de esquerda, que apostavam
em outras frentes de luta e consideravam inúteis tais discussões,
devido ao seu viés “pequeno-burguês”. Neste sentido, as lutas
envolvendo sexualidade e autonomia do corpo eram consideradas
“ideias específicas”, e, portanto, “divisionistas da luta geral que
consideravam ter prioridade: pela democratização, pela anistia,
pelo socialismo” (2006, p. 16).
A atuação do movimento feminista foi determinante para
que o processo de revisão do texto constitucional incorporasse
praticamente todas suas propostas encaminhadas à Assembleia
Nacional Constituinte. A Constituição Federal de 1988 cita, no
Artigo 5º, que todos os homens e mulheres são iguais em direitos
e obrigações (BRASIL, 1988). Dessa forma, na abertura do século
XXI, é possível afirmar que os estudos sobre a condição da mulher
foram se ampliando, em direção às mulheres heterogêneas, de
classes, raças/etnias e orientações sexuais diversificadas, com
necessidades distintas, mas vítimas da mesma opressão de sexo.
7 Joana Maria Pedro é pesquisadora do IEG - Instituto de Estudos de

Gênero da UFSC (www.ieg.ufsc.br). Tem experiência na área de História, com
ênfase em História do Brasil República, atuando principalmente nos seguintes temas:
feminismo, gênero, relações de gênero, história das mulheres, memória, história oral,
história do tempo presente e história comparativa. Disponível em: https://www.
escavador.com/sobre/666401/joana-maria-pedro. Acesso em 20 de abril de 2021.
167
Violência de gênero e/ou sexo: das estatísticas à proteção social

pública à mulher
O Serviço Social, interpreta os diversos tipos de violência

contra a mulher como um desdobramento da sociedade capitalista,
se não oriundos, intensificados por ela, denominado por questão
social, aqui entendida como expressões das desigualdades sociais
intimamente vinculadas ao sistema capitalista de produção,
provenientes da contradição entre capital e trabalho. A violência
de gênero e/ou sexo ainda é muito presente na sociedade brasileira
capitalista-patriarcal. De acordo com o Observatório da Mulher
Contra a Violência8 em publicação de 2016, no Brasil, os últimos
anos foram marcados por importantes iniciativas governamentais,
especialmente no campo legislativo, para enfrentar o problema
da violência contra as mulheres. Contudo, no ano em que a Lei
Maria da Penha9 completa quinze anos de vigência, pouco há para
ser comemorado e muito para ser feito e dessa forma, o presente
trabalho pretende apresentar os dados atuais.
8 O Observatório da Mulher contra a Violência (OMV) foi criado em março de 2016,

por meio da Resolução do Senado nº 7, de 2016, sendo algumas de suas funções:
reunir e sistematizar as estatísticas oficiais sobre a violência contra a mulher; analisar e
produzir relatórios a partir de dados oficiais e públicos; elaborar e coordenar projetos
de pesquisa sobre políticas de prevenção e de combate à violência contra a mulher e de
atendimento às vítimas; propor e calcular indicadores específicos; promover estudos,
pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, que levem em consideração
o grau de parentesco, a dependência econômica e a cor ou etnia, concernentes às
causas, às consequências e à frequência da violência doméstica e familiar contra a
mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e para a
avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas; apoiar e subsidiar o trabalho
da Procuradoria Especial da Mulher do Senado Federal e a Comissão Permanente
Mista de Combate à Violência contra a Mulher. Disponível em: https://www12.
senado.leg.br/institucional/omv. Acesso em 21 de abril de 2021.
9 Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código
Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 21
de abril de 2021.
168
Atualmente existem muitas Organizações Não

Governamentais (ONG) que abordam de forma quali e
quantitativa os números da violência patriarcal. Pode-se citar a
plataforma digital Violência Contra as Mulheres em Dados, que
objetiva reunir pesquisas e dados relacionado à temática, com
base no monitoramento realizado pelo Instituto Patrícia Galvão.
Dessa forma, os últimos dados divulgados até abril de 2021,
uma mulher é vítima de estupro no Brasil a cada 9 minutos, três
mulheres são vítimas de feminicídio a cada 24 horas e uma mulher
registra agressão sob a Lei Maria da Penha a cada 2 minutos. Nos
últimos tempos, considerando o contexto pandêmico causado
pelo coronavírus esses dados se intensificaram, segundo a pesquisa
Violência doméstica contra a mulher na pandemia divulgada em
novembro de 2020, realizada pelo mesmo Instituto, para 87% da
população, a pandemia fez com que a violência contra mulheres
aumentasse. Com relação a violência de gênero e/ou sexo, Saffioti
(2004) define:
Violência de gênero é uma categoria de violência mais
geral, que pode abranger a violência doméstica e a violência
intrafamiliar. A violência de gênero ocorre normalmente no
sentido homem contra mulher, mas pode ser perpetrada,
também, por um homem contra outro homem ou por uma
mulher contra outra mulher. A violência familiar envolve
membros de uma mesma família extensa ou nuclear, levando-se
em conta a consanguinidade e a afinidade. [...] Compreendida
na violência de gênero, a violência familiar pode ocorrer no
interior do domicílio ou fora dele, embora seja mais frequente
o primeiro caso (SAFFIOTI, 2004, p. 69).
De acordo com O Mapa da Violência 2015: Homicídio de
Mulheres no Brasil, elaborado pela Faculdade Latino-Americana
de Ciências Sociais (Flacso), com o apoio do escritório no Brasil
da ONU Mulheres, da Organização Pan-Americana da Saúde/
Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) e da Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) do Ministério das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (hoje
extinto), o Brasil ocupa a quinta posição entre os países com maior
169
índice de feminicídios dentre 83 nações, tendo uma taxa de 4,8

assassinatos a cada 100 mil mulheres. O Mapa da Violência 2015
também mostra que a taxa de assassinatos de mulheres negras
aumentou 54% em dez anos, passando de 1.864, em 2003, para
2.875, em 2013. Sobre essa desigualdade étnico/racial, Saffioti
(1987, p. 16) afirma:
De modo geral, contudo, a supremacia masculina perpassa
todas as classes sociais, estando também presente no campo
da discriminação racial. Ainda que a supremacia dos ricos
e brancos torne mais complexa a percepção da dominação
das mulheres pelos homens, não se pode negar que a última
colocada na “ordem das bicadas” é uma mulher. Na sociedade
brasileira, esta última posição é ocupada por mulheres negras
e pobres.
A partir desse contexto pode-se citar, como marco
institucional com relação à proteção social à mulher, a política
de Seguridade Social, sendo uma das principais conquistas dos
movimentos sociais que atuaram no processo de democratização
no Brasil, nos anos 1980. Parte da Constituição de 88, é formada
pelo tripé Saúde, Assistência e Previdência Social e busca constituir
a base do sistema de proteção social da população brasileira. No
Título II, DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS,
Capítulo II, DOS DIREITOS SOCIAIS, Art. 7º XVIII é
assegurada a “licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do
salário, com duração de cento e vinte dias” (BRASIL, 1988, p.
13). Neste mesmo capítulo, no inciso XX, verifica-se a proibição
de diferença de salários, no exercício de funções semelhantes e de
critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.
Com a promulgação da lei nº 10.710/2003, o pagamento do
salário-maternidade passou a ser feito diretamente pelas empresas,
que serão ressarcidas pela previdência social. O salário-maternidade
também é concedido às seguradas que adotarem uma criança,
ou obtiverem a guarda judicial, além dessa legislação trazer uma
inovação que é a garantia de licença-paternidade. A organização
dos órgãos públicos representativos das questões de gênero se
estruturam da seguinte forma, em âmbito nacional: Secretaria de
170
Políticas para as Mulheres - SPM, estruturada no Plano Nacional

de Políticas para as Mulheres - PNPM que se materializa através
dos Organismos Governamentais de Políticas para as Mulheres -
OGPM, que são, de acordo com a SPM “canais governamentais de
promoção de políticas para as mulheres, que consideram para sua
institucionalização e implementação as demandas sociais e políticas
dessas brasileiras em suas mais variadas situações (Educação,
Trabalho, Saúde, Violência, Diversidade, Participação política,
entre outras)”. Sua característica fundamental é a ação transversal
na execução das políticas para as mulheres.
Os serviços não especializados de atendimento à mulher
constituem, também, portas de entrada na rede, a saber: hospitais,
serviços de atenção básica, programas de saúde da família, delegacias
comuns, Polícia Militar, Polícia Federal, Centros de Referência de
Assistência Social – CRAS, Centros de Referência Especializados
de Assistência Social – CREAS, Ministério Público, Defensorias
Públicas. Além disso, pode-se contar no âmbito de proteção social
à mulher, com as Delegacias Especializadas de Atendimento
da Mulher e com algumas Organizações Não-governamentais.
Os serviços, por falta de capacitação, muitas vezes reproduzem
atitudes misóginas e acabam violentando as vítimas duplamente,
culpabilizando-as, duvidando de seus relatos ou até mesmo
desencorajando-as de efetuar denúncias, como sabe-se a partir da
vivência como mulher. Desta forma, os serviços especializados de
atendimento à mulher são importantes, constituindo-se em espaços
que ultrapassam o âmbito da denúncia, expresso nas Delegacias.
É preciso reconhecer a necessidade de políticas públicas
de fomento a autonomia feminina, como afirma Lourdes Bandeira
(2005, p. 5), a transversalidade de gênero representa uma “uma
matriz que permita orientar uma nova visão de competências
(políticas, institucionais e administrativas) e uma responsabilização
dos agentes públicos em relação à superação das assimetrias de
gênero, nas e entre as distintas esferas do governo” em todas as
dimensões: econômica, política, cultural e social, como por
exemplo, a remuneração, segurança social, educação, partilha
171
das responsabilidades profissionais e familiares, além de paridade

nos processos de decisão. O Serviço Social brasileiro, a partir do
referencial teórico marxista, propõe‑se a apreender e atuar frente à
realidade, que se apresenta contraditoriamente, numa perspectiva
crítica, embora as condições objetivas de trabalho sejam adversas.
O Serviço Social é uma profissão que tem características
singulares. Ela não atua sobre uma única necessidade humana
(tal qual o dentista, o médico, o pedagogo…) nem tampouco
se destina a todos os homens de uma sociedade, sem distinção
de renda ou classe. Sua especificidade está no fato de atuar
sobre todas as necessidades humanas de uma dada classe
social, ou seja, aquela formada pelos grupos subalternos,
pauperizados ou excluídos dos bens, serviços e riquezas dessa
mesma sociedade. É por isso que os profissionais de Serviço
Social atuam basicamente na trama das relações de conquista
e apropriação de serviços e poder pela população excluída e
dominada (CARVALHO, NETTO. 2000, p. 52).
Para a análise dessa realidade complexa, é necessária a
apreensão de ao menos três mediações centrais, embora não
excluam as discussões de outros elementos. Para tanto, refere-se às
mediações constitutivas do sistema de dominação/exploração, que
é composto pelo capitalismo, assim como, a ordem patriarcal de
gênero e/ou sexo e racismo. Afirma-se, com isto, que a realidade
social impõe a temática à profissão, gerando um processo endógeno
de construção de conhecimento, que revela a necessidade de
desenvolvimento do debate e da apropriação das leituras de gênero
e/ou sexo pelos/as profissionais. Destarte, são demandados a buscar
e a dar respostas às desigualdades sociais, inclusive de gênero e/
ou sexo, agravadas cotidianamente pelas interseccionalidades que
atravessam a questão social.
As políticas públicas de gênero e/ou sexo foram

implementadas, historicamente, tanto pela força política dos
movimentos de mulheres e das organizações não-governamentais,
quanto pela presença de feministas nos organismos estatais que
172
lutaram a favor de uma agenda de gênero, da qual a Lei Maria da

Penha é um grande exemplo. A análise crítica aqui implementada,
incide em desejar que novas conquistas da luta das mulheres
sejam alcançadas, tendo como horizonte uma real emancipação,
e não falsas ilusões de que as mulheres atingiram um patamar de
superação de sua subordinação social. Como pode-se ver, o Brasil
vivencia um grave retrocesso de gênero e/ou sexo na atual agenda
política, especialmente no campo dos direitos sexuais/reprodutivos
com a retomada da tramitação de diversos Projetos de Lei que
criminalizam condutas abortivas e reforçam práticas violentadoras
e ameaçadoras aos direitos das mulheres e a uma vida sem violência.
Atitudes reproduzidas, inclusive, pelo atual presidente do país, no
ano de 2021.
Há, portanto, muitos motivos para a organização política
das mulheres. Isto exige que o Serviço Social se aproprie da pauta
feminista, em razão das peculiaridades dessa trajetória e de sua
emergência constante. Defender uma cidadania feminista é uma
condição prioritária no combate às violências e à defesa de políticas
públicas de gênero que sejam capazes de redesenhar o papel do
Estado e da própria democracia, assim como, desmistificar
paradigmas sociais pré-definidos historicamente. Portanto,
compreende‑se que o conhecimento de tais mediações, entre elas
a ordem patriarcal de gênero e/ou sexo, são fundamentais para
uma formação e um exercício profissional crítico, comprometido
com um projeto profissional que não se coloca apenas no campo
teórico da compreensão da realidade, mas também na dimensão
interventiva. Não há outro modo de romper com as desigualdades e
assimetrias de gênero e/ou sexo sem passar pela articulação de redes
feministas em todos os âmbitos da sociedade. Foi assim no passado
e deverá continuar no presente, se deseja-se um futuro. Os avanços
feministas, jurídicos e políticos aqui apresentados refletem apenas
uma parte do caminho percorrido, assim como sua abordagem
pelo Serviço Social. Por fim, considera-se conclusivo citar a análise
da pesquisadora Mirla Cisne (2004), que, ao referir-se sobre a
importância dos movimentos sociais e da luta feminista, antirracista
173
e anticapitalista, reafirma a sua necessidade para a construção de um

projeto societário radicalmente pautado na liberdade e na igualdade
substantivas. Tal projeto deve, necessariamente, incorporar a luta
feminista e antirracista para que se possa pensar em uma sociedade
livre de todas as formas de opressão e exploração.
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Capítulo 9
A inserção da mulher no cenário político a partir da

óptica do feminismo negro
Fabrício da Silva Aquino

Considerações inicias
O presente capítulo abordará a inserção da mulher negra

no contexto político contemporâneo. Dentre todas as
dificuldades enfrentadas por ela, está a sua incorporação à esfera
política, principalmente no atual contexto que assola o Estado
Brasileiro. Este, tem como objetivos versar acerca da origem e
desenvolvimento do feminismo negro a partir de seus desenrolar
histórico e de também, logo após contextualizar a partir da óptica
feminista, a inserção da mulher ao seio político.
Em um primeiro momento, é contextualizada a origem do
movimento feminista em um aspecto geral. Logo, é traçado seu
legado por meio de grandes marcos, como foram as ondas feministas
anteriores. Para só então começar a explanar a opressão sofrida por
mulheres negras que se viram oprimidas dentro de lugares onde
deveriam ser ouvidas e também protagonistas.
A partir disso, envolve-se a intersecionalidade que estrutura
o feminismo negro. Sendo composta por gênero, raça e classe.
Gênero, pois, o feminino se vê oprimido por conta de toda uma
conjuntura histórica resultante de uma sociedade construída pelo
machismo que se desenvolve em decorrência do patriarcalismo e
outras correntes que visavam a supremacia dos homens. Ao par
disso, a mulher se via deslocada dentro da luta antirracista por
homens negros.
178
Raça pois, dentro do movimento feminista a mulher negra

se via novamente deslocada e não se sentia acolhida dentro desse
espaço, mas dessa vez a opressão se dava devida a outra questões,
sua cor. E classe pois, devido a toda repressão sofrida dentro destas
organizações ela se vê à margem da sociedade.
Logo, apresenta-se o contexto político ao qual as mulheres
negras que adentram o Poder Legislativo estão inseridas, e para
isso, será retratada a vislumbre trajetória de Marielle Franco, que
ocupava a Câmara de Vereadores no Rio de Janeiro, até que teve
seu mandato abreviado em decorrência de seu assassinato, caso
que chocou o País e até hoje não foi solucionado. Também será
evidenciada a trajetória de Talíria Petrone, vereadora inserida a
Câmara de Vereadores de Niterói.
Ambas as mulheres foram eleitas pelo povo para exercer e
ocupar seu lugar de representação, elas defendiam as mesmas pautas
e seguiam as mesmas ideologias, sendo essa, uma das razões para sua
perseguição. No entanto, a coragem dessas mulheres, são essenciais
para o empoderamento feminino, e seu exercício de representação.
A problemática se encontra na opressão sofrida pelas
mulheres para alcançar posições de representação, evidencia-se isso,
a partir dos índices que serão apresentados no segundo momento
do texto. O que motivou a realização da presente pesquisa, foi
justamente a carência por representação de mulheres negras em
espaços de poder, que mesmo quando alcançado, ainda se vê
ameaçado.
A pesquisa realizada para o desenvolvimento do presente
trabalho, é bibliográfica, com o objetivo de reunir conteúdos que
servirão de base para a construção da investigação proposta, a partir
da temática abordada. O levantamento bibliográfico foi realizado
a partir da análise de livros, artigos, documentos monográficos,
periódicos, textos disponíveis em sites, entre outros locais que
apresentam um conteúdo documentado.
179
O advento do feminismo negro
Em um primeiro momento, abordar-se-á acerca do

feminismo negro. Consoante a isso, é possível conceituar uma
tríade interseccional sendo gênero, raça e classe. Gênero, pois, a
mulher se vê numa posição de inferioridade, sendo oprimida pelo
masculino. Raça porque a mulher negra se vê diminuída dentro do
feminismo em decorrência de sua cor. E classe em decorrência da
opressão sofrida ao longo de toda a história em todos os grupos aos
quais ela se vê inserida, anteriores a criação do feminismo negro.
Acerca da origem do termo feminismo, denota-se que este
passou a ser empregado por escritores estadunidenses por volta de
1991, “[...] começaram a usá-lo no lugar das expressões utilizadas
no século XIX tais como movimento das mulheres e problemas das
mulheres, para descrever um novo movimento na longa história das
lutas pelos direitos e liberdades das mulheres.” (GARCIA, 2011, p.
12)
Dito isso, observa-se que desde os primórdios de sua origem,
o feminismo tem como objeto a defesa dos direitos das mulheres, e
a incansável busca por igualdade e liberdade dentro do meio social,
a qual habitam. É sabido que os direitos adquiridos pelas mulheres
foram conquistados através de muita luta, como é possível observar
no decorrer das ondas feministas.
Acerca disso, é possível destacar como as primeiras
reivindicações feministas ocorridas na primeira onda o direito ao
voto, a participação na politica e na vida pública. Mas além da luta
por direitos políticos, destaca-se também nesse período, a luta pela
abolição da escravatura. (FRANCHINI, 2017).
Logo, a segunda onda, que de acordo com Franchini (2017),
teve início por volta dos anos 50, se estendendo até meados dos
anos 90 do século XX, foi responsável por inúmeras críticas, mas
dessa vez, mais voltadas a vida privada das mulheres, assim sendo:
[...] toda a movimentação feminista daquela época foi pautada
na teoria radical que versa sobre a nossa condição de exploradas
por conta do nosso sexo e das nossas funções reprodutivos.
180
Isso pautou as discussões da segunda onda que se caracterizou

por uma fase de luta por direitos reprodutivos e discussões
acerca da sexualidade. [...] A mulher desde sempre esteve
atrelada, social e economicamente, à sua função reprodutiva,
e o patriarcado, assim como o capitalismo, consiste
essencialmente, também, na exploração dessa capacidade.
(Franchini, 2017, p. 6-9, grifo nosso)
Assim sendo, destaca-se como uma das principais pautas
de reivindicação da segunda onda, a luta por direito sexuais e
reprodutivos, um tabu para esse período. Denota-se que em
decorrência do conservadorismo da época, o direito da mulher, de
optar ou não pela maternidade, era sonegado, sendo-lhe dificultado
o acesso aos meios contraceptivos.
Ainda de acordo com o entendimento de Franchini (2017)
apesar desse período ocasionar o surgimento das vertentes do
movimento, ainda havia algo que unia a todas as militantes, sendo
essa a opressão com base no sexo. Ora, as feministas dessa época
“Também não economizam palavras sobre a exploração da mulher
via maternidade e via casamento, e o uso do estupro e da violência
sexual enquanto ferramenta de manutenção do poder masculino”.
(Franchini, 2017, p.9).
Além disso, outra reivindicação que obteve destaque na
segunda onda feminista, foi “[...]a crítica à jornada dupla/tripla
de trabalho das mulheres, à diferença de ganhos econômicos entre
homens e mulheres, e à divisão sexual do sistema educacional e do
mercado de trabalho.” Franchini (2017, p.10)
Já na terceira onda, o objeto de discussão está em “reconhecer
as diferentes variedades de identidades e experiências de mulheres”
(Franchini, 2017, p.14), aqui as vertentes do feminismo ganham
ainda mais destaque, pois todas as necessidades existentes dentro
do movimento, passam a ser reconhecidas. Para isso, “[...] a terceira
onda, de forma geral, rejeita quaisquer tentativas de identificação
de objetivos comuns, gerais, padronizados, e sequer se reconhece
enquanto um movimento coletivo”. (Franchini, 2017, p.15).
Houve ainda uma inversão de papéis, com o objetivo
181
ressignificar adjetivos atribuídos a mulheres, conforme explana

Franchini (2017, p.15):
Ao contrário de suas precursoras da segunda onda — e até
da primeira onda — , que lutavam para quebrar estereótipos
associados à mulher, as feministas de terceira onda se
apropriaram desses estereótipos, de condutas e de símbolos de
feminilidade. Em outras palavras, elas pegaram os sutiãs, os
batons e os saltos que suas precursoras haviam abandonado
e os colocaram de volta, em defesa da liberdade individual de
cada mulher.
Algo que nunca se perdeu no decorrer das ondas feministas,
foi a luta pela liberdade das mulheres, uma das pautas primordiais
que alicerça toda a luta das feministas. Assim sendo, no decorrer
desta onda, observa-se que ela, está inteiramente ligada a liberdade
individual das mulheres que poderá ser expressada da forma que
cada uma julgar melhor. O que não se quer é que seja atribuído
um padrão.
Há de se falar que se vive hoje a quarta onda feminista, mas
essa posição não é aceita por unanimidade por estudiosas do tema.
No entanto, esta seria caracterizada pelo uso das redes sociais como
forma de propagação do feminismo, sendo “apontadas como pautas
frequentes a cultura do estupro, a representação da mulher na mídia,
os abusos vivenciados no ambiente de trabalho e nas universidades,
e a postura de denúncia e de recusa ao silenciamento.” Franchini
(2017, p. 17).
Outrossim, é possível fazer uma analogia entre o movimento
feminista e uma lanterna, onde Garcia (2011) define o feminismo
como uma lanterna, uma vez que ele permite enxergar as sombras
que se ocultam em meio as definições construídas com a ausência
da participação feminina ao longo da história. A autora elenca essas
ideias como: democracia, desenvolvimento econômico, Estado de
Bem-Estar Social, justiça, família, religião.
Posteriormente, ele passou a ser conceituado como “[...] a
tomada de consciência das mulheres como coletivo humano, da
opressão, dominação e exploração de que foram e são objeto por
182
parte do coletivo de homens no seio do patriarcado[...]” (GARCIA,

2011, p.13). A problemática do patriarcado, surge, pois,
A cultura patriarcal não se prende somente ao lar, ela é
abrangente, uma vez que se criou, a partir dela, o patriarcado,
que é um sistema social onde os homens adultos têm o poder
não só da família, mas também das funções de liderança
política, autoridade moral, privilégio social e controle das
propriedades.(OLIVEIRA, 2019, p. 6)
Além disso, no Brasil, é possível observar nitidamente a
opressão que advém do período colonial, já que durante aquele
tempo, dispunha-se da seguinte hierarquia, “Em primeiro lugar
situa-se o homem branco; em segundo, a mulher branca; em
terceiro, o homem negro; e, por último, a mulher negra” (RATTS,
2003, p. 04 - 05).
É nítido o impacto que essa hierarquia depositou sobre as
mulheres negras ao longo da história, colocando-as sempre na base
da sociedade. Dentro do movimento feminista ela não se sentiu
acolhida mesmo visando o mesmo fim.
Ocorre então, a ampliação do movimento, pois este já
não conforta mais todas as suas militantes. No que diz respeito as
mulheres negras, elas sentiam-se oprimidas dentro do movimento
feminista, nessa senda Hooks (2018, p. 19):
Mesmo que mulheres negras individuais fossem ativas no
movimento feminista contemporâneo desde seu início,
elas não foram os indivíduos que se tornaram “estrelas” do
movimento, que atraíam a atenção da mídia de massa. Muitas
vezes, essas mulheres negras ativistas do movimento feminista
eram feministas revolucionárias (como várias lésbicas brancas).
Elas já discordavam de feministas reformistas que estavam
decididas a projetar a noção do movimento como se ele fosse,
exclusivamente, pela igualdade entre mulheres e homens no
sistema existente. Mesmo antes de raça se tornar uma questão
debatida nos círculos feministas, estava claro para as mulheres
negras (e para as revolucionárias aliadas da luta) que jamais
alcançariam igualdade dentro do patriarcado capitalista de
supremacia branca existente.
Denota-se ainda que, segundo Ribeiro (2016, p.100) “[...] a
183
situação da mulher negra era radicalmente diferente da situação da

mulher branca. Enquanto àquela época mulheres brancas lutavam
pelo direito ao voto e ao trabalho, mulheres negras lutavam para
serem consideradas pessoas.” observa-se então que as reivindicações
não eram as mesmas, e as mulheres não tiveram acolhimento de
suas companheiras de militância.
Em dado momento, percebe-se que o feminismo já não
comporta mais todas as reivindicações de suas militantes, a partir
disto então, surgem às várias vertentes do feminismo, sendo algumas
delas, o feminismo liberal, o feminismo marxista e socialista, o
feminismo radical, o ecofeminismo, o feminismo interseccional, e
o feminismo negro.
O feminismo negro é uma vertente do feminismo que se fez
necessário conforme Teixeira (2019) pois, o movimento feminista
branco já não atendia mais às especificidades das mulheres negras,
uma vez que a mulher negra sofre além da opressão que decorre do
gênero, com a opressão de raça, e classe.
Outrossim, é notório que o feminismo negro se origina
visando o protagonismo da mulher negra que foi ofuscado não
só dentro do feminismo, mas também dentro da luta racial, onde
homens buscavam protagoniza-lo, oprimindo novamente a mulher
negra dentro de sua militância.
Ao passo que elas se viram diminuídas mais uma vez dentro
de sua militância, mas desta vez dentro da luta racial a qual os
homens negros buscavam protagonizar, Damasco (2009, p.65-66)
Explana:
Ativistas negras também criticavam o papel diminuto e
secundário que as mulheres negras ocupavam no movimento
negro, pois os cargos de chefia, coordenação e liderança na
maior parte das vezes eram designados aos homens [...]. Estas
críticas estiveram relacionadas principalmente a duas questões:
a posição ocupada pela mulher dentro do movimento negro
e a não inclusão do conceito gênero nas discussões e ações
promovidas pelo movimento negro [...]
Diante o exposto, denota-se a importância do
184
feminismo negro para a emancipação feminina, bem como, a

representatividade da mulher negra, que dispõe de um movimento
onde é a protagonista. O feminismo negro se faz essencial para a
emancipação feminina da mulher negra que por muito tempo foi
oprimida até mesmo dentro de suas próprias lutas.
A representação do feminismo negro no âmbito político
Ante o exposto, é possível observar todas as dificuldades

enfrentadas pela mulher negra para ocupar espaços de protagonismo,
este estigma se dá decorrente de todo um contexto histórico que
ela se viu inserida e até hoje precisa lutar pela sua desconstrução e
dissociação de sua imagem como um personagem coadjuvante na
história.
Em um contexto político, além das dificuldades enfrentadas
para ocupar o posto, é nítida também a opressão sofrida dentro
destes ambientes, um exemplo é a trajetória de Marielle Franco
enquanto política. Marielle foi uma vereadora eleita pelo Partido
Socialismo e Liberdade (PSOL), no ano de 2016 e era reconhecida
por defender e lutar pelos direitos das minorias sociais. Em seu
artigo A emergência da vida para superar o anestesiamento social
frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma
feminista, negra e favelada, Franco (2017, p. 89) se descrevia como:
[...] cria da favela da Maré. É socióloga formada pela PUC-Rio
e mestra em Administração Pública pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Sua dissertação de mestrado teve como
tema: “UPP: a redução da favela a três letras”. Trabalhou em
organizações da sociedade civil, como a Brasil Foundation e
o Centro de Ações Solidárias da Maré (Ceasm). Coordenou
a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), ao lado de
Marcelo Freixo. Tem 39 anos e foi eleita Vereadora da Câmara
Municipal do Rio de Janeiro pelo PSOL. Mulher, negra, mãe,
favelada, Marielle Franco foi a quinta vereadora mais votada
no Rio de Janeiro nas eleições de 2016, com 46.502 votos.
Iniciou sua militância em direitos humanos após ingressar
no pré-vestibular comunitário e perder uma amiga, vítima
185
de bala perdida, num tiroteio entre policiais e traficantes no

Complexo da Maré. Ao se tornar mãe aos 19 anos, de uma
menina, Marielle também começou a se constituir como
lutadora pelos direitos das mulheres e debater essa temática na
periferia. As questões do feminismo, da luta contra o racismo,
bem como a defesa dos direitos humanos nas favelas do país
modulam o perfil de seu mandato e seus projetos em busca de
um modelo de cidade mais justo para todos e todas.
Segundo Oliveira (2018), a vereadora teve uma trajetória
invejável na vida política, elegeu-se com 46.502 votos – sendo a
quinta maior votação na cidade do Rio de Janeiro e a única a ter
votos em todos os colégios eleitorais cariocas. Costumeiramente,
ela dizia que seu gabinete era um local para diálogo de gênero,
negritude e favela. Ela apresentou 116 proposições e 16 projetos
de lei, como o que garantia acesso ao aborto nos casos previstos
em lei e o que abria as creches no período noturno para os pais que
trabalham à noite. Diuturnamente, naquele local de debates, ela
abria espaço para tratar de assuntos sérios e de extrema relevância,
conforme explica Oliveira (2018, p. 7):
[...] Enquanto vereadora, tratou de importantes temas
como: transporte coletivo; combate à violência contra as
mulheres; combate à homofobia; visibilidade da mulher
negra; desenvolvimento cultural do funk tradicional
carioca; habitação para famílias de baixa renda; visibilidade
lésbica; cuidado na primeira infância; aborto legal e atenção
humanizada às mulheres; regulamentação de manifestações
culturais; encarceramento da juventude negra; proteção ao
adolescente e medidas socioeducativas em meio aberto e
pagamento dos salários dos servidores públicos. [...] cerca de
20 projetos de leis apresentados durante seu mandato [...].
Esses assuntos tratados, encontravam guarida no gabinete
da Vereadora sobretudo por ser uma das poucas que os dialogava
com a população, além de entender como fundamental a ação e
não apenas o discurso por si só. Nos dois anos de seu mandato,
representou o acolhimento das minorias na Assembleia Legislativa
do Rio de Janeiro.
Em entrevista à BBC Brasil (2018), um de seus colegas disse
186
que ela se lançou candidata naquele ano pela necessidade de que

as mulheres estivessem na política e pelo combate ao racismo, no
intuito de mostrar que uma mulher como ela, negra e favelada,
pode ocupar os espaços de poder. Por essas razões, havia muito ódio
contra Marielle, principalmente pelo fato de ser negra e periférica e
ocupar tal espaço de poder, historicamente dominado por homens
brancos de classe média (OLIVEIRA, 2018). Seu mandato durou
um pouco mais de um ano, tendo sido interrompido precocemente
em decorrência de seu assassinato em março de 2018, até hoje sem
resolução concreta.
Pode-se citar outro exemplo de mulher negra na política
que rotineiramente sofre ataques, como Marielle sofria, ante
as pautas que defende e o lugar que se inseriu. Talíria Petrone,
eleita pelo PSOL, recordista de votos em 2016 para a Câmara de
Vereadores de Niterói, foi a única mulher eleita naquele ano em
uma cidade que, durante 20 anos, não teve nenhuma vereadora
mulher (OLIVEIRA, 2018). Ainda, segundo a autora Oliveira
(2018, p. 10), é nítido ver – através de vídeos de Talíria discursando
no ano em que foi eleita – o descontentamento dos seus colegas,
bem como da população oposicionista aos temas por ela discutidos:
Enquanto ela se expressa é possível perceber a cara de
estranhamento por parte de seus colegas de cargo que é
composta em sua maioria por homens brancos. E logo abaixo,
nos comentários, vemos opiniões muito maldosas vindas por
parte de algumas pessoas que assistiram ao vídeo como: “vc
não representa em nada a cidade de Niterói...então cale a sua
boca desgraçada, vtnc #bolsonaro 2018”, “Primeira fala e
deveria ser a última, mulher inútil pra sociedade”.
Em 2018, Talíria se candidatou à Deputada Federal e foi
eleita com 107.317 votos, ficando como a nona mais votada no
estado do Rio de Janeiro. Talíria era amiga pessoal de Marielle,
lutavam pelas mesmas pautas, e, em dois anos de mandato como
parlamentar federal, já precisou usar, até o ano passado, duas vezes
da escolta da polícia legislativa, e havia recebido cinco ameaças
contra sua vida, tendo, inclusive, enviado uma carta à ONU
(Organização das Nações Unidas) pedindo proteção e cobrança de
187
resposta do governo brasileiro, entretanto não há, ainda, resposta

efetiva do governo (VASCONCELOS, 2020).
Essa problemática envolvendo a participação feminina
negra na política brasileira, seja do desmerecimento de suas lutas,
de seu gênero ou de sua raça, se reflete nos dados de ocupação de
cadeiras nos respectivos lugares de poder.
Nas últimas eleições municipais, foram 465.446
candidaturas em todo o Brasil, dentre as quais 14,2% eram de
mulheres (156.317), sendo que dessa parcela elegeu-se 0,3%. Além
das vereadoras, ocuparam cargos 638 prefeitas e todas são brancas.
Nove capitais só tiveram mulheres brancas como vereadoras, nas
demais capitais apenas 32 eram negras, com a morte de Marielle,
31. (MENEZES, 2018). No Congresso Nacional, por sua vez, as
mulheres negras representam 2% do total (SOUZA, 2020) e, no
executivo, nenhuma mulher negra ocupa qualquer ministério.
A questão se mostra totalmente contraditória, ao passo que
27,8% da população brasileira é composta por mulheres negras e
estas padecem de representação formal sólida, e em quantidade
equivalente, nos lugares de poder. Na verdade, a diversidade política
deveria estar enraizada de experiências, culturas e identidades que
espelham todos aqueles que são representados. Conforme explica
Phillips (2001, p. 273):
[...] como um homem pode substituir legitimamente uma
mulher quando está em questão a representação das mulheres
per se? [...] uma assembleia formada só por brancos pode
realmente se dizer representativa, quando aqueles que ela
representa possuem uma diversidade étnica muito maior?
Representação adequada é, cada vez mais, interpretada como
implicando uma representação mais correta dos diferentes
grupos sociais que compõem o corpo de cidadãos, e noções de
representação “típica”, “especular” ou “descritiva”, portanto,
têm [...] força renovada.
Esse ideal, se fosse factível na sociedade brasileira, seria um
forte meio de intensificar a democracia, segundo explica Sacchet
(2012, p. 408):
188
A inclusão de grupos sociais marginalizados no processo de

tomada de decisão política seria um meio de intensificar a
democracia, na medida em que a manifestação de diferentes
perspectivas contribuiria para: a) evidenciar a particularidade
das perspectivas dominantes; b) trazer novos conhecimentos
para a discussão e a deliberação política; c) apresentar diferentes
visões sobre as causas do problema e os possíveis impactos;
e d) apresentar diferentes apreciações sobre as relações entre
grupos e processos históricos. Assim, a inclusão de grupos
em processos decisórios contribui com novas perspectivas,
promovendo ações mais sensatas, novos relacionamentos e a
justiça social.
Entretanto, pensando nessa representatividade, tem-se que,
sobretudo quanto às questões raciais, a questão não está no rol de
temas considerados relevantes nos estudos da política brasileira.
Porque, ou se considera que não há segregações raciais rígidas e
gritantes no país, ou se afirma que os brasileiros, em sua maioria,
não possuem forte consciência racial já que a maior parte é negra
(JOHNSON III, 2000).
Para Ribeiro (2017), ainda, o próprio Estado representado
pelas instituições fortalece esses discursos hegemônicos, sexistas,
racistas e contribuem para que as mulheres negras tenham maiores
dificuldades no acesso à política.
[...] a sociedade brasileira como tendo sido colonial traz mais
algumas estruturas limitantes para o eco da voz negra: a não
autorização da fala por medo de retaliação e também a falta
de legitimidade para falas que sejam diferentes da sociedade
supremacista branca patriarcal. Aliado a isso, o fato dessa
sociedade só considerar universal seus pontos de vista fazem
com que tudo que não seja esse posicionamento seja abafado,
desqualificado e desconsiderado de alguma forma: “Essa
insistência em não se perceberem como marcados em discutir
como as identidades foram forjadas no seio de sociedades
coloniais, faz com que pessoas brancas, por exemplo, ainda
insistam no argumento de que somente elas pensam na
coletividade; que pessoas negras, ao reivindicarem suas
experiências e modos de fazer político e intelectuais, sejam
vistas como separatistas ou pensando somente nelas mesmas.
Ao persistirem na ideia de que são universais e falam por nós
189
todos, insistem em falarem pelos outros, quando, na verdade,

estão falando de si ao se julgarem universais. (RIBEIRO,
2017, p.31).
Ou seja, esse fato de poucas mulheres negras estarem na
política é enraizado de uma dupla discriminação, a racista e a
sexista. Porque não basta vencer o racismo, é necessário ultrapassar
outro obstáculo, o de vencer o machismo. Além disso, a divisão
do trabalho doméstico é extremamente desigual – hoje as
mulheres chefiam 29 milhões de lares e ainda assumem as tarefas
da casa e o cuidado com os filhos – falta tempo para a participação
política (SOUZA, 2020).
Mais além, o exíguo acesso aos recursos partidários e a
falta de uma legislação sobre aspectos étnicos no âmbito eleitoral
são fatores que levam a esse cenário. Ainda que uma decisão do
Superior Tribunal Eleitoral (TSE) tenha estabelecido uma cota de
30% para candidaturas de mulheres nos partidos, não há cota para
candidaturas étnicas como meio de reduzir a desigualdade nessa
representação (SOUZA, 2020).
Tal problemática representativa, segundo a autora Souza
(2020), já vem sendo enfrentada por outros países como no
Reino Unido onde criou-se um Comitê para a Eliminação da
Discriminação contra a Mulher. Nesse comitê, foi sugerido medidas
especiais temporárias para alcançar a igualdade de participação,
incluindo o recrutamento, assistência financeira e formação de
mulheres candidatas, além de modificação de procedimentos
eleitorais, com definição de objetivos numéricos.
No brasil, entretanto, sequer as cotas de gênero são
respeitadas, o Tribunal Superior Eleitoral vem alcançando
entendimentos para derrubar a prática da industrialização de
candidaturas femininas laranjas nos partidos. Pense-se que, se a
candidatura feminina branca ainda sofre fraudes, ainda levarão
alguns anos para a mulher negra fazer parte do meio sem qualquer
empecilho.
190
Diante do exposto, nota-se que gradativamente a mulher

negra foi apagada dos primeiros movimentos feministas. Enquanto
as mulheres brancas lutavam para terem direitos, as negras lutavam
para serem reconhecidas como seres de direitos. Elas, na luta de
reconhecimento, tiveram, e ainda têm, um embate pessoal entre
gênero, raça e classe social.
A participação da mulher negra na política, portanto, é
marcada por um ciclo de desmerecimento do que se fala, das suas
pautas e do seu agir. A sociedade brasileira, não querendo se afastar
por completo do seu passado colonial, ergue estruturas limitantes
para o eco da voz feminina negra e deslegitima falas que sejam
diferentes da sociedade supremacista branca patriarcal. E é por isso
que essas vozes se calam: não se veem autorizadas a falar por medo
de retaliação.
Exemplos como Marielle Franco e Talíria Petrone são de
mulheres que fugiram das estatísticas e colocaram “a cara para bater”
e demonstrando que podem sim ter o seu lugar de fala. Mariele,
ao ser colocada neste lugar, dizia: “Não serei interrompida. Não
aturo interrompimento dos vereadores dessa casa. Não aturarei o
cidadão que veio aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher
eleita1”. Infelizmente, os retratos da sociedade brasileira trouxeram
dois saldos as duas. A primeira, foi assassinada a tiros em um caso
até hoje sem real solução. A segunda, sofre rotineiramente ameaças
de morte e tem de evitar sair às ruas.
Portanto, mais do que teorizar, a conjuntura atual pede
que ações concretas sejam colocadas em prática para barrar esses
efeitos nocivos que o racismo e o machismo impõe à mulher negra
brasileira, pois o genocídio deste povo tem avançado no país através
de diferentes técnicas de extermínio, espelhar-se em exemplos como
o do Reino Unido seria um bom começo.
1 O discurso pode ser acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=G5sjJvK_

Txs
191
Vive-se uma complexa crise da representatividade feminina

negra, conforme se infere dos dados eleitorais de candidaturas e
elegibilidade feminina negra no Brasil, o que se faz lógico quando
uma das populações que vem sendo mais violentadas até então,
ficam bem longe dos espaços de poder e das tomadas de decisões.
O machismo é parte estruturante, que quando somado ao racismo
tira a possibilidade das mulheres negras participarem das dinâmicas
sociais, pois há uma enorme dificuldade de aceitar que elas ocupem
posições de poder.
Entretanto, a verdade é que a participação delas na
democracia faz com que se evidencie as especificidades por detrás da
política feita pelos grupos dominantes; pontua cada particularidade
dessas minorias políticas e dá a verdadeira voz, portanto, descoloniza
o pensamento brasileiro, trazendo novos ares de como se fazer
política responsável, no intuito de ser inclusiva e reparar, histórico
e socialmente, os erros cometidos em tempos transatos.
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Capítulo 10
Assédio sexual e as desigualdades patriarcais de

gênero no ambiente de trabalho
O assédio sexual é uma realidade presente e crescente

no cotidiano de muitas mulheres. No entanto, o
ordenamento jurídico pátrio ainda trata o tema de forma superficial
e ineficiente, no código penal existe apenas um dispositivo sobre o
assunto e na Consolidação das leis do trabalho não há nenhum
artigo que trate expressamente sobre o assédio sexual no ambiente
laboral.
A questão a ser discutida dentro do pacto laboral é de suma
importância social, ao passo que se constata a presença de casos
graves de assédio sexual, que geram impactos negativos na vida das
vítimas. O que chama atenção nessa situação é a naturalização da
violência e a minimização dos crimes cometidos contra as mulheres,
ao ponto surpreendente de culpabilizar a vítima pelo ocorrido, o
que pode ser explicado pela cultura patriarcal ainda impregnada
nos dias atuais.
O problema do assédio sexual possui íntima relação com
a visão androcêntrica vislumbrada na divisão sexual do trabalho,
o que é perceptível quando tratamos das diferenças salariais, na
hierarquização, e na precarização do trabalho feminino, que não
raras vezes, se materializa em violências no ambiente de trabalho.
Neste contexto, o presente artigo pretende abordar como na
maior parte dos casos a prática do assédio encontra-se conectada
diretamente com às relações de gênero e poder na sociedade.
A legislação trabalhista brasileira afligiu-se de forte
196
influência da concepção patriarcal de divisão das tarefas, trazendo

vestígios significativos de discriminação para a seara laboral. Para
ilustrar a questão basta citar alguns dispositivos que fizeram parte
por longos anos da Consolidação das Leis do Trabalho, tal como o
artigo nº 379 da CLT que vedava o trabalho noturno às mulheres,
salvo as exceções ali previstas. O dispositivo nº 380 da CLT
que regulamentava quando à mulher poderia exercer o trabalho
noturno, devendo inclusive apresentar laudo médico que atestasse
a sua capacidade para tal ato. A fundamentação para a existências
das referidas normas seria uma suposta “debilidade física” da
mulher, bem como a sua “proteção moral”.
O presente artigo sobre o assédio sexual na relação de
trabalho é necessário para entender melhor a sua ocorrência,
características e a forma de punição na seara trabalhista. É
importante chamar a atenção para os efeitos nocivos do assédio
sexual, que atinge a vítima em sua liberdade sexual, desrespeitando
os direitos da personalidade e dignidade do trabalhador. A conduta
não afeta somente o físico da assediada, como também pode refletir
em sua vida profissional, social e familiar. Os traumas e as perdas,
como serão expostos adiante, são significativos, levando as vítimas
a abandonarem o emprego, a desenvolverem doenças como a
depressão, distúrbios psicossomáticos e, até mesmo, um quadro de
estresse pós-traumático.
Como forma de elucidar a questão levantada foi realizada
uma pesquisa bibliográfica acerca do assédio sexual no ambiente
de trabalho, buscando fundamentações teóricas que embasassem a
temática. Ademais, como forma de analisar o tema foi realizado um
levantamento de dados estatísticos a fim de traçar o atual cenário de
assédio sexual vivenciado pelas mulheres no âmbito laboral.
A inserção da mulher no mercado de trabalho e a sociedade

patriarcal
A Inserção da mulher no mercado de trabalho foi um

percurso árduo e que ainda não foi bem recebido pela sociedade
197
patriarcal. Imperioso ressaltar que, de 1943 a 1989 esteve em vigor

o art. 446 da CLT, cujo parágrafo único outorgava ao marido a
prerrogativa de pleitear judicialmente a rescisão do contrato de
trabalho quando a sua continuação fosse suscetível de acarretar
ameaça aos vínculos da família ou perigo manifesto às condições
peculiares da mulher. Neste contexto, o homem detinha o controle
da vida da mulher, podendo decidir com base em suas próprias
convicções se ela poderia ou não exercer o trabalho no âmbito
público.
De acordo com (ABRAMO, 2003), na América Latina,
nas décadas de 60 a 90, o número de mulheres que estavam
economicamente ativas, mais que triplicou, aumentando de 18 para
57 milhões. Em pesquisa realizada no Brasil pelo IPEA, também há
dados que indicam à evolução e inclusão do emprego feminino,
inclusive, indicando que muitas mulheres ocupam nos dias atuais
o posto de “chefe de família” (IPEA, 2018). No entanto, ainda não
se vislumbra na mesma proporção a diminuição das desigualdades
de gênero no ambiente de trabalho, tendo em vista uma evidente
resistência e repulsa na inclusão de mulheres no âmbito laboral,
que se materializa por meio de atos discriminatórios.
Este cenário ocorre devido a ruptura do monopólio exercido
pelo sexo masculino no setor público, enquanto as mulheres por
longos anos permaneceram apenas no setor privado, se atendo
aos cuidados do lar e dos filhos (GUERRA, 2011). Diante deste
alicerce, o trabalho dos homens na esfera doméstica ainda é visto
como uma opção ou uma ajuda para a mulher, que é colocada
como a principal responsável.
De acordo com STREY (1997, p.68) “para as mulheres,
ter um emprego se considera uma opção e não uma obrigação,
enquanto que, para os homens, o opcional é contribuir para as
tarefas domésticas.” Neste viés, a ocupação pelas mulheres de
espaços que anteriormente eram negados, continua sendo imbuído
de preconceitos e concepções ultrapassadas, que vinculam à mulher
à trabalhos domésticos, seja de forma onerosa ou gratuita. Diante
deste cenário, a divisão do trabalho doméstico não é igualitária,
198
tendo em vista o fato de as mulheres trabalharem mais que o dobro

em relação aos homens, eis que além de efetuarem afazeres no setor
público, ainda são incumbidas dos cuidados com o lar (HIRATA,
2008).
No mesmo sentido, na concepção de Bonachi e Groppi (
1995, p. 216):
Na medida em que as mulheres como esposas e mães continuam
a ser definidas e a definir-se como responsáveis pelos trabalhos e
cuidados familiares, e inversamente os homens continuam a ser
definidos como ausentes e não responsáveis em relação a esses
mesmos trabalhos - e, portanto, autônomos, independentes,
capazes de plenas prestações profissionais, machos enfim -, a
ocupação feminina aparecerá como novidade e às vezes como
problema, enquanto a ausência de reciprocidade masculina
continuará a não ser interrogada. A ocupação feminina é que
deverá adaptar-se não só às necessidades familiares de cuidados,
mas também às necessidades da identidade masculina.
A maternidade também aparece como um fator que fortalece
a repulsa quanto ao trabalho da mulher na esfera pública. Verifica-
se que, muito embora a Constituição Federal disponha em seu art.
5º, I, que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações,
há uma clara diferenciação quanto ao tempo de licença concedido
à mulher e aos homens quando o assunto são os cuidados com
os filhos. Nota-se que, o texto Constitucional garante às mulheres
120 dias de licença-maternidade (CF, art. 7º, XVIII), enquanto
aos homens apenas é proporcionado o período de 5 (cinco) dias de
licença-paternidade (CF, art. 7º, XIX, c/c art. 10, § 1º, ADCT).
Está distinção demonstra claramente que a responsabilidade
com os filhos é atribuída as mulheres. Conforme ressalta Kymlicka
(2006, p. 310), essa atribuição se torna “uma profunda fonte
de desigualdade sexual, uma fonte que surgiu da maneira como
os homens estruturam historicamente a economia para que se
adequasse aos seus interesses.” Neste contexto, a argumentação
quanto à norma esculpida no art. 7º, XVIII da CF, na maioria
das vezes, é de que a licença-maternidade possui como objetivo a
recuperação física da mãe após o parto. Entretanto, a afirmativa
199
não goza de total veracidade, tendo em vista que o período também

almeja a criação de laços afetivos com o recém-nascido.
Importante atentar-se para o fato de que o Art. 392-A da
CLT dispõe que a trabalhadora que adotar ou obtiver a guarda
judicial para fins de adoção de criança também gozará de licença-
maternidade nos termos do art. 392 da CLT. Portanto, mesmo sem
necessitar do período de recuperação após o parto, lhe é concedido
um tempo de afastamento do emprego, o que corrobora para a
conclusão de que insistentemente se atribui apenas a mulher
a responsabilidade com os filhos, causando assim, evidente
discriminação no ambiente de trabalho. De acordo com Kymlicka
(2006, p. 308-309):
Há neutralidade quanto ao gênero no fato de que os
empregadores não atentam para o gênero dos candidatos, mas
não há igualdade sexual, pois o trabalho foi definido sob o
pressuposto de que seria preenchido por homens que tivessem
mulheres em casa, cuidando dos filhos. [...] O resultado não
é apenas que as posições mais valorizadas da sociedade são
ocupadas por homens, enquanto as mulheres encontram-se
desproporcionalmente concentradas no trabalho meio período
e com salário mais baixo, mas também que muitas mulheres
tornam-se economicamente dependentes dos homens.
A breve explanação sobre a posição das mulheres no
mercado de trabalho atrelado a seu “papel social” na função de
mãe e esposa, possui como objetivo demonstrar um fenômeno
que está relacionado a uma ideologia dominante que legitima e
confere poder socialmente aos homens sobre as mulheres. Nessa
senda, resta caracterizada uma íntima e estreita relação entre gênero
e patriarcado, que é responsável pela continuidade da violência de
gênero contra as mulheres no ambiente laboral.
Embora os sujeitos do assédio sexual possam ser tanto
homens quanto mulheres, estas últimas continuam liderando as
estatísticas como as maiores vítimas. O cenário guarda relação com
o ingresso da mulher no mercado de trabalho, no momento em
que passou a disputar com os homens um lugar nas fábricas. A
mulher entrou no mercado de trabalho em posição de inferioridade
200
em relação ao homem, desde seu ingresso até os dias atuais ainda

continua recebendo piores salários, e sendo hostilizada em razão
de ocupar um lugar que historicamente pertencia aos homens, o
que culminou em vários tipos de humilhações e violências, que
guardam em si uma mensagem implícita, de que seu lugar seria em
casa (LEIRIA, 2012).
Não obstante a redefinição dos papéis sociais fruto das lutas
da mulher brasileira, ainda há pouco avanço em relação à violência
contra a mulher, o que corrobora para a tese de que a sociedade
patriarcal se encontra intimamente presente no seio e nas práticas
sociais. A exemplo, cita-se o cometimento de atos de assédio sexual
contra as mulheres, que ainda são minimizados e vistos como
algo comum, o que fortalece o preconceito e dificulta a denúncia
(DESOUZA, BALDWIN e ROSA, 2000).
Essa violência causa ambientes de trabalho hostis, ofensivos
e vexatórios, as vítimas frequentemente sofrem danos emocionais
e psicológicos sérios, dentre eles o estresse, depressão, ansiedade,
diminuição da confiança e da autoestima, são mais propensas ao
absenteísmo e aos atrasos recorrentes, bem como a realizarem suas
tarefas de modo insatisfatório e insuficiente, trazendo impactos
significativos para a sua produtividade.
Requisitos para a configuração do assédio sexual e Convenção

nº 190 da OIT
Atualmente uma das principais formas de violência

experimentada pelas mulheres no ambiente de trabalho é o assédio
sexual. Este termo foi utilizado pela primeira vez nos anos 70, por
feministas americanas, com o objetivo de se referir a condutas
masculinas inoportunas dentro do ambiente laboral. Na esfera
jurídica, o conceito foi incluído por Catharine MacKinnon, nos
Estados Unidos, no ano de 1979 (HIRATA, 2009).
O assédio sexual é conceituado por Diniz (1998, p. 285)
como o “ato de constranger alguém com gestos, palavras ou
201
emprego de violência prevalecendo-se das relações de confiança,

de autoridade ou empregatícia, com um escopo de obter vantagem
sexual”.
Para Delgado (2017, p. 1.373), o assédio sexual é definido
como uma conduta de importunação reiterada e maliciosa, que
atua de forma explícita ou não, “com interesse e conotações
libidinosos, de uma pessoa física com relação a outra. Embora
possa se configurar de maneira distinta, o fato é que, regra geral, as
mulheres é que têm sido as vítimas principais do assédio sexual no
mundo laborativo.”
De acordo com Leiria (2012, p. 27):
O assédio sexual fere a liberdade e dignidade dos trabalhadores,
a sua integridade física e moral e afeta sua saúde; igualmente
viola o direito à igualdade, visto que, em sua maioria, o
assédio sexual é praticado contra mulheres, caracterizando- -se
discriminação de gênero, podendo ser também enquadrado
como tratamento desumano, degradante e arbitrário quando
praticado por superiores hierárquicos.
Para colocar fim as controvérsias a Organização Internacional
do Trabalho (OIT), em sua cartilha lançada em Junho de 2017,
descreveu assédio sexual no ambiente de trabalho como sendo,
atos, insinuações, contatos físicos forçados, convites impertinentes,
desde que apresentem uma das características a seguir: ser uma
condição clara para manter o emprego; influir nas promoções
da carreira do assediado; prejudicar o rendimento profissional,
humilhar, insultar ou intimidar a vítima; ameaçar e fazer com
que as vítimas cedam por medo de denunciar o abuso; e oferta de
crescimento de vários tipos ou oferta que desfavorece as vítimas em
meios acadêmicos e trabalhistas entre outros, e que no ato possa dar
algo em troca, como possibilitar a intimidade para ser favorecido
no trabalho (OIT, 2017).
A doutrina pátria tem classificado o assédio sexual em
duas espécies, que possui características bem peculiares, são eles o
“assédio sexual por chantagem” e o “assédio sexual por intimidação.
De acordo com (PAMPLONA FILHO, 2021) a prática do assédio
202
sexual entre superiores hierárquicos como empregador e empregado,

é caracterizada como assédio sexual por chantagem.
A Conduta praticada por superiores hierárquicos (LEIRIA,
2012, p. 27) “constitui abuso do poder diretivo e violação dos
direitos e garantias constitucionais dos trabalhadores, os quais
constituem limites ao poder de direção do empregador.” Nessa
espécie de assédio pode ocorrer pedido de favores sexuais pelo
superior hierárquico, que promete a vítima tratamento diferenciado
em caso de aceitação e/ou ameaças, ou até mesmo atitudes em
forma de represálias, na hipótese de recusa, como exemplo, a perda
do emprego, ou de benefícios no trabalho (LIPPMANN, 2001).
Para a configuração do assédio por chantagem, é preciso
que ocorra uma ameaça visível de demissão do emprego, ou da
perda de promoções, ou ainda de outros prejuízos, como o caso de
uma transferência indevida, e/ou pela insistência e inoportunidade.
Em resumo, este assédio (DIAS, 2008, p.13) “opera como uma
espécie de chantagem permanente em relação ao emprego”, além de
possuir conotação sexual, ausência de aceitação da vítima quanto
as investidas do assediador e ameaças perpetradas em desfavor do
empregado (LIPPMANN, 2001).
Lado outro, o assédio sexual por intimidação, também
conhecido como ambiental, reside na prática de ações que
pretendam atingir a vítima na sua condição de trabalhador por
meio da formação de um ambiente sexual. A conduta do assédio por
intimidação é gerada, de acordo com Dias (2008, p. 13) “quando
as atitudes e comportamentos de assédio sexual se associam a
práticas ofensivas e humilhantes”, este comportamento possui
como finalidade criar um clima intimidador perante o assediado.
O agressor não objetiva exclusivamente conseguir uma vantagem
sexual com a vítima, mas também atingi-la em sua dignidade,
prejudicando-a no ambiente laboral (BARROS, 2005).
Ambas as formas de o assediador importunar as vítimas são
consideradas ilícitas pelo ordenamento jurídico e, por conseguinte,
passíveis de sancionamento, em instância cível (trabalhista ou
203
administrativa e civil). A conduta também é cabível de punição

em instância penal na forma do assédio sexual por chantagem. De
acordo com o Art. 216-A, do Código Penal Brasileiro (BRASIL,
1940), legitima-se como forma “Constranger alguém com o
intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-
se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência
inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. Assim, para a
configuração da prática do ilícito penal é necessário que o assediador
seja necessariamente superior hierárquico da vítima.
Para (JAKUTIS, 2006) há uma iminente falha do Código
Penal ao definir o crime unicamente em razão do suposto desejo
de o assediador em obter uma recompensa sexual da vítima.
Isto porque, existem outros meios de investidas sexuais para a
satisfação da lascívia do ofensor. Em muitos casos, principalmente,
na hipótese de assédio por intimidação, o objetivo do assediador
pode ser exclusivamente discriminatório. Importante ressaltar que,
as primeiras condutas de hostilidade, de reação masculina e de
imposição da superioridade do homem sobre a mulher no espaço
de trabalho foram travadas por meio do assédio sexual.
De acordo com o relatório da Organização Internacional
do Trabalho o assédio sexual na legislação penal somente é útil para
os casos extremos de violência e de assédio. Observou-se que o
tratamento do assédio sexual somente por meio de procedimentos
penais é insuficiente, tendo em vista à sensibilidade da questão, e
principalmente a dificuldade na produção de provas. Normalmente
a preocupação pauta-se somente no aspecto de condutas que
configuram atos imorais, esquecendo das inúmeras práticas que
constituem o assédio sexual no emprego e na profissão (OIT, 2017).
Hirigoyen (2012, p. 100) ressalta que, “o assédio sexual não
é mais do que uma evolução do assédio moral. Nos dois casos, trata-
se de humilhar o outro e considerá-lo um objeto à disposição”. Este
pensamento traduz com clareza a perspectiva elaborada há décadas,
e, ainda vigente, como resquícios de uma sociedade androcêntrica,
que na maior parte dos casos tende a culpabilizar a vítima ou
minimizar os crimes cometidos contra às mulheres. Este cenário
204
tende a influenciar, inclusive, a doutrina criminal, que exige para

a configuração do crime de assédio o dolo, fim sexual e expressa
recusa da vítima (AZEVEDO, 2017).
A Organização Internacional do Trabalho, demonstrando
preocupação com a questão, aprovou em 10 de junho de 2019,
na 108ª Sessão da Conferência Internacional do Trabalho, em
Genebra, a Convenção nº 190 que dispõe sobre a eliminação da
violência e do assédio sexual no âmbito laboral.
A Convenção possui relevante importância para o combate
à casos de assédio sexual no trabalho, tendo em vista que, reconhece
o assédio nas relações empregatícias como uma forma de violação
à direitos humanos e como meio de obstrução da igualdade de
oportunidades, além de ser considerado incompatível com o
trabalho decente.1A convenção foi acompanhada pela aprovação da
recomendação nº 206, que exemplifica como a convenção pode
ser aplicada em cada Estado Membro, com a indicação de quais
medidas deveriam ser adotadas para atingir a finalidade almejada.
O documento é de extrema importância, tendo em vista
que define amplamente a violência e o assédio no trabalho e onde
essa prática pode ocorrer (MOREIRA, 2017). A Convenção
ressalta que no âmbito laboral todos têm o direito de estar livres
de violência e do assédio, incluindo a violência baseada em gênero.
Em seu texto, pugna por medidas através dos órgãos estatais a fim
de proteger os trabalhadores de qualquer espécie de violência e
do assédio, principalmente às mulheres. Nas palavras de Moreira
(2017, p. 11):
A Convenção relembra aos Estados-membros que têm a
responsabilidade de promover um “ambiente geral de tolerância
zero”. Esta Convenção pretende proteger os trabalhadores
independentemente do seu estatuto, incluindo trabalhadores,
1 Formalizado pela OIT em 1999, o conceito de trabalho decente sintetiza a sua missão
histórica de promover oportunidades para que homens e mulheres obtenham um
trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança
e dignidade humanas, sendo considerado condição fundamental para a superação
da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade
democrática e o desenvolvimento sustentável. (OIT, 2021)
205
estagiários, pessoas que estão desempregadas, voluntários,

pessoas à procura de emprego, reconhecendo claramente que
também os superiores podem sofrer deste tipo de assédio e
violência”.
Ao analisar a redação dos seus dispositivos2 é possível
constatar que a proteção conferida pela OIT é extremamente
ampla, eis que não se limita a tratar apenas das formas de assédio
(sexual e moral), a mesma demonstra uma enorme preocupação
com a violência e assédio em razão do gênero. Assim, ela consegue
abranger também as práticas que são dirigidas em razão do sexo
ou gênero ou que afetem de forma desproporcional determinadas
pessoas de um sexo ou gênero específico (PIMENTA, 2020).
O atual cenário de assédio sexual vivenciado pelas mulheres no

âmbito laboral
De acordo com o Ministério Público do Trabalho houve

um aumento de denúncias de 64,7% em cinco anos envolvendo
casos de assédio sexual entre os anos de 2015 à 2019 em todo o país
(BERGAMO, 2020). No entanto, é possível que esse dado não seja
condizente com a realidade, tendo em vista que a maioria dos casos
não são denunciados seja por medo ou desconhecimento do que
caracteriza essa espécie de conduta.
A ONG Think Eva em parceria com o Linkedin, realizou
uma pesquisa divulgada em outubro de 2020, que contou
com a participação de 414 mulheres entrevistadas, levando em
consideração a representatividade da população brasileira em
relação à raça, região, idade e renda. Os dados apurados foram
2 Art. 1. Para os efeitos da presente Convenção: a) a expressão “violência e assédio” no

mundo do trabalho designa um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis,
ou de ameaças de tais comportamentos e práticas, ainda que se manifeste de uma só
vez ou de maneira repetitiva, que tenham por objeto, que causem ou sejam suscetíveis
de causar, um dano físico, psicológico, sexual ou econômico, e inclui a violência e o
assédio em razão de gênero e b) A expressão “violência y assédio por razão de género”
designa a violência e o assédio que sejam dirigidos contra as pessoas em razão de seu
sexo ou gênero, ou que afete de maneira desproporcionada a personas de um sexo ou
gênero.” (OIT, 2019).
206
preocupantes, cerca de 50% (cinquenta por cento) das mulheres

entrevistadas já sofreu assédio sexual, sendo que o ambiente de
trabalho corresponde ao espaço onde isso aconteceu em 47%
(quarenta e sete por cento) dos casos. A pesquisa ainda revelou que
as mulheres negras são as que mais sofrem com o assédio sexual,
52% (cinquenta e dois por cento) aproximadamente (OLIVEIRA,
2020).
Não obstante o alto índice de assédio sexual ocorrido no
âmbito laboral, a pesquisa ainda apontou que uma em cada seis
mulheres que vivenciaram essa situação acabou pedindo demissão
(OLIVEIRA, 2020). De acordo com Amado (2016, p. 188), a
violência psicológica no trabalho tende a aparecer por diversas razões,
inclusive “traduzindo-se numa estratégia patronal de acossamento
do trabalhador, tendente a induzi-lo a abandonar, ele mesmo, o
seu emprego”. Na pesquisa constatou-se que, um dos motivos que
causa o abandono do emprego é a perda da autoconfiança devido ao
impacto negativo no desempenho profissional das trabalhadoras, o
estudo ainda aponta que mais de 35% delas vivem sob constante
medo (OLIVEIRA, 2020).
A situação de assédio possui como consequências imediatas
a lesão à personalidade e à dignidade, e/ou à integridade física ou
psíquica do agredido. Assim, as vítimas de assédio começam a
sentir desmotivação e receio quanto ao local de trabalho, gerando
um estado de depressão que corrobora para que o trabalhador perca
a vontade de se dedicar emocionalmente ao emprego, repercutindo
na sua produtividade e causando o descumprimento das obrigações
contratuais (HIRIGOYEN, 2012).
A maioria das mulheres que sofreram assédio sexual, não
relataram o ocorrido no setor de Recursos Humanos, apenas 5%
(cinco por cento) das entrevistadas recorreram ao setor responsável
para contar o caso. As causas que fomentam este silêncio são o
temor de retaliação, um sentimento de culpa e sobretudo um
senso de impunidade. De acordo com os dados coletados, 78,4%
(setenta e oito vírgula quatro por cento) das mulheres entrevistas
consideram que a impunidade com relação ao agressor seja o maior
207
empecilho para a denúncia, em sequência surgem como motivos a

ineficácia das políticas com 63,8% (sessenta e três vírgula oito por
cento) e o medo de ser exposta ou demitida com 63,8% (sessenta e
três vírgula oito por cento) (OLIVEIRA, 2020).
De acordo com Oliveira, o confinamento causado pelo
novo Coronavírus3 transformou o modo como nos relacionamos,
e isso também engloba as relações de trabalho. No entanto, o
distanciamento social não diminuiu os casos de assédio sexual. De
modo inverso, com a migração do trabalho para o contexto virtual,
houve um aumento de 55% (cinquenta e cinco por cento) no
volume de conversas entre os usuários na plataforma do Linkedin
que compreende os períodos de março de 2019 à março de 2020. O
assédio ultrapassou as barreiras do isolamento, e o crime continua se
perpetuando, agora, mediante conversas e reuniões. Os ambientes
virtuais tornaram-se um meio dos assediadores prosseguirem com
seus atos ilícitos, encorajados pela sensação de proteção que a tela
do computador lhes fornece (OLIVEIRA, 2020).
Uma pesquisa lançada pelo Instituto Locomotiva, em
parceria com o Instituto Patrícia Galvão, demonstrou que 76%
(setenta e seis por cento) das mulheres já sofreram assédio no
trabalho. As principais denúncias que envolvem atos evidentes
de assédio sexual cerca de 40% (quarenta por cento), ocorreram
por meio de convites para sair ou insinuações constrangedoras
em virtude dos atributos físicos das trabalhadoras (CAMPELLO,
MACHADO e MELO, 2020).
Diante dos dados apresentados, a violência contra a mulher
no trabalho é algo inquestionável e que deve ser combatida. Para
Pamplona Filho é dever do empregador fiscalizar e impedir que casos
3 O coronavírus é uma espécie de vírus, chamado cientificamente de SARS-CoV-2.

As pessoas infectadas por este vírus podem apresentar sintomas semelhantes aos
de um resfriado. No entanto, este quadro pode agravar e provocar uma Síndrome
Respiratória Aguda Grave, que pode ser fatal. Atualmente a pandemia pelo novo
coronavírus (SARS-CoV-2) atingiu o Brasil e o mundo fazendo com que milhares de
pessoas perdessem suas vidas, se tornando um dos maiores desafios sanitários deste
século. A melhor forma de evitar a disseminação tem sido por meio do distanciamento
social.
208
de assédio sexual ocorram no ambiente laboral. O autor sustenta

que, caso ocorra, seja por ato de terceiros ou de funcionários,
serviçais ou prepostos, o empregador deve ser responsabilizado pelo
assédio sexual perpetrado por seu funcionário nos termos do art.
2º da CLT (PAMPLONA FILHO, 2002). Imperioso salientar que
o empregador, ao abrir uma empresa, convoca para si os riscos da
atividade empresarial, deste modo, possui obrigação de zelar por
um ambiente de trabalho saudável a todos os seus funcionários.
Neste breve artigo foi possível constatar a relevância do

tema e o quanto o assédio sexual está intimamente relacionado
com os abusos provocados pela desigualdade de gênero, e pelas
históricas relações de poder, ainda mantidas pela sociedade atual.
Muito embora o assédio sexual possa ocorrer tanto contra homens,
quanto mulheres, essas últimas são as maiores vítimas desse crime
em razão da discriminação de gênero que se materializam nas mais
diversas esferas sociais, dentre elas, o ambiente de trabalho.
De acordo com as pesquisas apresentas no corpo deste artigo,
o combate ao cenário de assédio sexual de mulheres no ambiente
laboral não exige apenas um olhar diferenciado por parte do setor
de Recursos Humanos das empresas, mas também uma estrutura
que efetivamente apresente ações que serão colocadas em prática
diante de um caso concreto de assédio. As empresas precisam deixar
evidente como encaram a questão, apresentar aos seus funcionários
a sua total intolerância com tais atos, e transparecer o que pode
acontecer contra o agressor.
Por fim, é de se perceber também que não somente uma
reforma legislativa, como inclusão de dispositivos expressos sobre
o assédio sexual na legislação trabalhista, serão suficientes para
que cesse todos os atos de assédio sexual contra as mulheres no
ambiente de trabalho. Demanda-se, conscientização política,
social e, principalmente, aperfeiçoamento da empatia e respeito
ao próximo. Tendo em vista que, a estigmatização da mulher na
209
sociedade como um ser inferior ao homem, que teve seu lugar no

âmbito social durante muitos anos, apenas, como a cuidadora do
lar e dos filhos, é uma grave falha social advinda dos defasados
conceitos patriarcais de gênero.
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212
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STREY, Marlene Neves (Org.). Mulher: estudos de gênero,
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Capítulo 11
A proteção ao trabalho da mulher
Isadora Marques Simões

Mariana Lopes Diegues
O objetivo compreendido neste estudo é traçar

historicamente como a diferença de gênero interfere
nas relações de trabalho da mulher. Para tanto, contextualiza-se
a inserção da figura feminina no mercado de trabalho a fim de
compreender como as mulheres alcançaram essa realidade, quais
os obstáculos enfrentados por elas ao longo dos anos e como isso
influi na atual conjuntura do mercado de trabalho.
Com a ascensão da mulher no âmbito de ocupações
profissionais, faz-se necessário que o nosso ordenamento jurídico
passe a se preocupar com a edição de normas protetoras a essa
classe de trabalhadoras, já que, como seres humanos, merecem
tratamentos dignos, que respeitem sua saúde física e emocional,
oportunizando e incentivando que outras mulheres queiram fazer
parte desse quadro, já que o trabalho possibilita liberdade financeira
e, consequentemente, independência.
Ainda, há o propósito de demonstrar como o feminismo
incentiva as mulheres a batalharem por seus espaços na sociedade,
de modo que se desvinculem de pensamentos retrógados e
tradicionais enraizados no povo pelo patriarcado.
A principal problemática do tema reside no fato de que a
desigualdade histórica no tratamento de homens e mulheres colocou
estas últimas em tamanho grau de inferioridade e subordinação que
ocasionou intolerâncias, abusos, restrições e injustiças para com a
figura feminina.
214
As conquistas no âmbito de trabalho, alcançadas ao

longo dos anos, alavancaram de maneira muito positiva a vida de
diversas mulheres. Dessa forma, é de extrema importância levar ao
conhecimento da população de uma maneira geral como a luta
das mulheres se faz presente há tanto tempo, em meio a avanços
e retrocessos, provocando um enriquecimento cultural que,
gradualmente, liberta a sociedade de preconceitos consolidados
pelos homens.
Para atingir toda essa temática, o estudo se desenvolve a
partir da metodologia bibliográfica. Os ensinamentos doutrinários,
artigos científicos e pensamentos de ilustres feministas, permitiram
uma análise farta do assunto.
Contextualização da entrada da figura feminina no mercado de

trabalho
Desde o surgimento da relação de família na forma tradicional

entre homens e mulheres, nos primórdios da humanidade, a
começar de muito nova, as moças eram educadas sob a ótica de
um comportamento ideal que as moldavam com a ideia de servir
ao homem. Assim, eram instruídas de que seu papel no mundo era
casar, procriar e desempenhar a função de administradoras do lar,
sob total dependência financeira de seus maridos.
Os fatores culturais e morais de outras épocas – refletidos
na sociedade até hoje – colocavam as mulheres em patamar
de inferioridade, em que eram tratadas como mero objeto de
propriedade do homem, que as submetiam a obediência e a
subordinação.
Quando busca-se contextualizar a inserção da figura
feminina no mercado de trabalho, é essencial pontuar que a 1ª
e a 2ª Guerra Mundial contribuíram de maneira ímpar ao fato.
Nesses momentos da história os homens eram mandados ao campo
de batalha, de modo que os negócios de família e sua posição no
mercado de trabalho passavam a ser assumidas pelas suas mulheres
215
(LESKINEN, 2004).
Outrossim, em meados do século XVIII, os efeitos
do capitalismo industrial iniciaram uma nova fase no sistema
econômico mundial. A Revolução industrial provocou um
empobrecimento dos trabalhadores, de modo que o sustento
familiar passou a demandar que a mão de obra de mulheres e
menores fossem inseridas nas fábricas (NASCIMENTO, 2010).
Ora, já nesses primeiros marcos históricos a desigualdade
entre os gêneros se faz fortemente presente. As mulheres eram
direcionadas, principalmente, a parte operacional das máquinas,
já que o papel de empresário cabia somente ao homem. Outro
ponto notável era o salário, sempre inferior ao do homem que
exercia igual função, o que levava essas mulheres a sujeitar-se a
jornadas de trabalho extensas, onde sua mão de obra era explorada
e, muitas vezes, em condições precárias a sua saúde. Para além de
sua ocupação nas fábricas, cabia também a elas se ater as tarefas
domésticas e aos cuidados de seus filhos, o que significava uma
jornada dupla de trabalho.
As leis protetoras ao trabalho da mulher ainda não faziam
parte desse cenário, não sendo resguardado qualquer direito inerente
a fase de gestação ou amamentação da mulher (MARTINS, 2008).
Não se falava ainda em garantias fundamentais a essas trabalhadoras.
A entrada das mulheres no mercado de trabalho carregada
duplo preconceito perante a sociedade: o biológico, dada as
diferenças físicas presentes entre os sexos, do qual se destaca a
maternidade, e a social, já que o seu trabalho era julgado inferior
ao do homem e, consequentemente, pouco valorizado.
Simone de Beauvoir, feminista conceituada, traduziu o
cenário que via nas seguintes palavras:
[...] a burguesia apega-se à velha moral que vê, na solidez da
família, a garantia da propriedade privada: exige a presença
da mulher no lar tanto mais vigorosamente quanto sua
emancipação torna-se uma verdadeira ameaça; mesmo dentro
da classe operária os homens tentaram frear essa libertação,
porque as mulheres são encaradas como perigosas concorrentes,
216
habituadas que estavam a trabalhar por salários mais baixos.

A fim de provar a inferioridade da mulher, os antifeministas
apelaram não somente para a religião, a filosofia e a teologia,
como no passado, mas ainda para a ciência: biologia, psicologia
experimental etc. Quando muito, consentia-se em conceder
ao outro sexo “a igualdade dentro da diferença. (BEAUVOIR,
1970, p.17)
No Brasil, a presença da força de trabalho feminino passou
a ganhar espaço na década de 1940, quando o país passava pelo
seu processo de industrialização, que exigia sua mão de obra nas
fabricas. As mulheres que já trabalhavam antes desse período
eram geralmente viúvas ou solteiras que realmente precisavam se
sustentar.
Alguns anos à frente, na década de 1970, as mulheres passam
a ocupar ainda mais espaços fora de casa, desempenhando funções
mais relevantes na sociedade, tornando-se professoras, costureiras
e funcionárias do comércio. Nas últimas décadas do século XX,
a ascensão das mulheres no campo do trabalho foi expressiva,
marcando de forma otimista o progresso da sociedade brasileira.
A cronologia da proteção ao trabalho da mulher
Atualmente temos presente em nosso ordenamento

jurídico, diferentes leis relativas à proteção ao trabalho da mulher,
asseguradas pela nossa Constituição da República. Todavia, essas
conquistas obtiveram triunfo após muitos anos de luta, em que
várias mulheres, por questão de sobrevivência, marcharam contra o
sistema opressor para alcançar garantias legais.
Em 1932, quando o Brasil vivenciava o governo de Getúlio
Vargas, as mulheres alcançaram o direito ao voto e a partir de então
passaram a desemprenhar papéis indispensáveis para garantir sua
representatividade.
A primeira Constituição do país que resguardou
expressamente direitos trabalhistas as mulheres, prevendo a não
discriminação de sexo, etnia e cor, foi em 1934. As garantias
217
asseguradas no texto constitucional abrangiam a igualdade salarial

entre os gêneros, além de proibir o trabalho de gestantes em locais
insalubres, assim considerados aqueles que expõe as trabalhadoras
a agentes nocivos à saúde. A introdução dessas garantias no
ordenamento jurídico brasileiro significou um marco preconizador
de direitos fundamentais relativos a proteção da mulher no trabalho.
O aprimoramento de normas benevolentes a figura
feminina conta com influências internacionais para sua evolução,
como é o caso da Convenção n.º 3 e 4 da Organização Internacional
do Trabalho, ambas ratificadas pelo Brasil em 1934; uma levanta
a temática do emprego das mulheres antes e depois do parto,
buscando resguardar a proteção a maternidade, enquanto a outra,
respectivamente, refere-se ao trabalho noturno da mulher.
Em 1943 surgiu a primeira Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT) no Brasil, a qual perdura até os dias atuais, mas
sofreu algumas mudanças ao longo do tempo. A importância em
relatar esse acontecimento reside no fato de que essa Lei trouxe
um capítulo próprio voltado a proteção ao trabalho da mulher,
estabelecendo um limite para duração de sua jornada de trabalho,
além de preceituar a não discriminação contra a mulher.
Adiante, com a promulgação da Constituição de 1946,
foi consolidada a proibição de diferenças salariais por questões de
raça, idade, sexo, nacionalidade ou estado civil. Essas questões são
levantadas neste momento da história, pois as mulheres ainda eram
vistas como seres não merecedores de direitos iguais, além de serem
interpretadas como pessoas que não possuíam capacidade plena
para o labor fora do lar.
A frente, com a outorga da Constituição Federal de 1988, o
movimento feminista é fortemente marcado. A nova Carta Magna
promulgou a igualdade de direitos e obrigações entre homens e
mulheres, impondo tratamento digno e igualitário a todas as
pessoas, visando abolir o poder pátrio e coibir a discriminação da
mulher no trabalho.
Outro ponto que se destaca no novo texto constitucional
218
é a concessão da licença de afastamento à gestante, pelo período

de 120 dias após o parto, sem prejuízo do recebimento de sua
respectiva remuneração.
Além disso, a estabilidade de emprego da trabalhadora
gestante, que ocorre desde o momento da confirmação da gravidez
até cinco meses após o parto, também simboliza uma vitória. Ao
mesmo passo, essa garantia de emprego exprime um óbice a sua
contratação, gerada pelo preconceito embutido nas pessoas que não
conseguem perceber que o potencial das mulheres vale a pena ainda
que elas possam um dia se afastar por um curto período de tempo
para cuidar de seus filhos.
Atualmente, a legislação brasileira conta com uma série
de direitos direcionados a mulher, fazendo referência a diversos
temas como, por exemplo: licença em casos de aborto; período de
amamentação; berçários nos locais de trabalho; consultas médicas
em casos de gravidez; medidas contra a discriminação; vedação a
revista intima; entrou outros.
Após a promulgação da Reforma Trabalhista (Lei
13.467/2017 – em vigor desde o dia 11 de novembro de 2017),
a CLT sofreu modificações no que tange algumas proteções
direcionadas as mulheres.
Anteriormente a referida lei, a mulher gozava do direito de
um intervalo de 15 minutos a ser usufruído antes do início de sua
jornada extraordinária (as chamadas horas extras), pois o legislador
entendeu que, dada a identidade biossocial peculiar da mulher e
da sua potencial condição de mãe, gestante ou administradora do
lar, os 15 minutos de descanso antes de iniciar sua jornada seria no
mínimo justo. Com a Reforma o artigo em questão é revogado,
significando na perda de um direito outrora conquistado.
Cabe ressaltar que aquele regimento foi inserido na
Consolidação das Leis do Trabalho em 1943, período em que
as mulheres dependiam da permissão de seus maridos para que
permanecessem até mais tarde no trabalho.
Impende observar também que anteriormente à
219
promulgação da Lei n. º 13.167/2017, era proibido de qualquer

forma o trabalho da gestante e lactante em locais de trabalho que
apresentasse qualquer nível de insalubridade (mínimo, médio
ou máximo). Com a mudança da lei, o afastamento imediato da
mulher grávida ou em período de amamentação sob condições de
trabalho insalubres, somente será possível quando este apurado
em grau máximo, representando um verdadeiro retrocesso. O
entendimento legal que havia pré-reforma era de que a exposição
ao local insalubre ensejava, por si só, grandes riscos à saúde da
mulher gestante.
Até o momento presente pode se dizer que muitas conquistas
foram consumadas a partir das manifestações e lutas oriundas de
diversos grupos de mulheres que não desistiram de deixar o legado
de que a busca pela equidade de gênero será constante, mesmo com
o pensamento retrógrado de uma parcela da sociedade que ainda
não conseguiu tirar a venda do preconceito que segam seus olhos
há tantos anos.
A atual conjuntura das mulheres no mercado de trabalho no

Brasil
O crescimento das mulheres no mercado de trabalho é

constante. Desde que foram inseridas nesse quadro, ainda que
condições de desigualdade, as mulheres nunca deixaram de buscar
seu espaço para além das atividades do lar. Trata-se de um verdadeiro
ato de revolução o fato das mulheres ocuparem o que era tido como
“mundo de trabalho masculino” (MURARDO, 1992).
Movidas pela sede de realizações profissionais e pessoais,
assim como a necessidade de contribuir com a família, essas
trabalhadoras lutam por seu espaço na sociedade. A mentalidade
que move essas lutas representa um despertar, já que é através
do trabalho que a mulher consegue diminuir a distância que a
separava do homem, por conseguir garantir independência a si
(BEAUVOIR, 1967).
220
Ora, muitas mulheres viveram em um estado de dormências

que perdurou de geração em geração, até que elas pudessem começar
a compreender o seu próprio valor. Inicialmente, suas lutas foram
esparsas, originando-se através de pequenas revoltas em busca da
expressão de opinião.
Na atual desenvoltura, já é muito mais claro para uma
significante parcela da sociedade feminina que as mulheres são
tão fortes quanto os homens, quando não mais que eles, podendo
ocupar os mesmos espaços e cargos, fazendo acontecer através de
suas próprias esperanças, quebrando paradigmas e preconceitos
enraizados em uma sociedade que cresceu acreditando no
patriarcado.
Uma pesquisa destinada ao estudo do tamanho da
desigualdade de gênero no mercado de trabalho1, com dados
levantados pelo IBGE no ano de 2019, apontou que 54,5% das
mulheres integravam a chamada força de trabalho do país, formada
por pessoas que estão empregadas ou procurando emprego,
enquanto os homens atingiram o percentual de 73,7%.
Nota-se através de números que as mulheres estão crescendo
cada vez mais neste horizonte, mas a assimetria dos mesmos anuncia
que a luta pela igualdade não acabou. Um dos fatores apontados
para explicar a desproporção do cômputo relatado acima é voltado
ao fato de que mulheres entre 25 e 49 anos possuem crianças com
até 3 anos vivendo em casa, o que as leva a deixar de lado seus
afazeres fora do lar para se dedicarem integralmente a maternidade
e as tarefas de casa. Assim, apenas 54,6% das mulheres com filhos
nessa faixa etária possuem uma ocupação no mercado de trabalho,
enquanto os homens registram 89,2% de ocupação em mesma
condição, representando uma clássica herança do patriarcado: o
homem prove o dinheiro e a mulher cuida da casa.
1 Estudo desenvolvido pela Agência Brasil revela tamanho da desigualdade de gênero

no mercado de trabalho. Dados disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/
economia/noticia/2021-03/estudo-revela-tamanho-da-desigualdade-de-genero-no-
mercado-de-trabalho#:~:text=Levantamento%20divulgado%20hoje%20(4)%20
pelo,perce ntual%20foi%2073%2C7%25., acesso em: 19 Mar. 2021.
221
Outro dado que se destaca dentro desse mesmo estudo

é o tempo apurado de dedicação aos serviços de casa, já que a
média brasileira no ano de 2019 foi de 21,4 horas semanais para
as mulheres e 11,0 horas para os homens. A jornada dupla exercida
predominantemente pela mulher é uma realidade clara, e que
perdura ao passar dos anos ainda que a batalha pela equidade nas
responsabilidades entre ambos os sexos seja continua.
Ainda que possamos ver tantos fatores de interferência que
contrapõe a ideia do trabalho feminino ao nível de igualdade para
com o homem, os números de mulheres inseridas no mercado é
crescente ano a ano, o que espelha a vontade dessas de cada vez mais
sair da zona de dependência em que foram inseridas, tornando-se
donas de si por inteiro, construindo sua renda, o sustento de sua
família e provando para a sociedade o tamanho do seu valor.
Na conjuntura mais atual possível, cabe pincelar que a
situação provocada pela pandemia da COVID-192 demonstra
de forma evidente que a desigualdade é uma realidade e que se
manifesta em todos os períodos e marcos históricos da nossa
sociedade.
A famosa declaração de Simone Beauvoir encaixa-se
contemporaneamente nesse cenário:
Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou
religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados.
Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se
vigilante durante toda a sua vida. “. (BEAUVOIR, 1949, p.29)
As crises vivenciadas atualmente sejam elas políticas,
econômicas, sanitárias ou religiosas, apenas retratam sua razão. Se
o panorama das mulheres pré-pandemia já enfrentava inúmeras
adversidades no mercado de trabalho, com a situação atual do
isolamento social e o fechamento das escolas, os problemas
2 A pandemia do COVID-19, doença ocasionada pelo coronavírus, iniciou-se no Brasil
em fevereiro de 2020. Tendo em vista o alto grau de contágio do vírus, diversas
medidas restritivas foram adotadas no país, objetivando minimizar a sua propagação.
Na desenvoltura do presente texto, já em meados de 2021, a situação do país ainda se
encontra demasiada crítica, o que afetou e afeta profundamente a esfera dos direitos
trabalhistas.
222
aumentam.

Com a desigualdade de pensamentos direcionadas a
responsabilidade pelas tarefas domésticas e cuidados das crianças,
muitas mulheres optaram por pedir demissão de seus empregos
para cuidar das demandas do lar. Muitas outras não conseguiram
conciliar a busca por um emprego e as obrigações que lhe são
incumbidas em casa. As mulheres que continuaram com seus
empregos e afazeres domésticos vivem hoje no ápice de seu estresse
e cansaço emocional.
Como manter a produtividade no trabalho, ou mesmo
manter o emprego, em meio ao isolamento social com as crianças
integralmente em casa, sem a ajuda dos companheiros? A situação
de muitas mulheres ficou inconciliável e insustentável.
A história da sociedade dominada pelo patriarcado pouco
mudou. Se alguém precisa abrir mão de um trabalho para se
dedicar ao lar, será a mulher e não o homem. Os desafios impostos
pelo desequilíbrio causado em meio a pandemia são imensuráveis,
dado os efeitos significativos sofridos, em especial, por grupos mais
vulneráveis da população, onde se inclui as mulheres.
A influência do feminismo na luta das mulheres por condições

igualitárias de trabalho
O feminismo representa movimentos organizados por

mulheres que procuram por sua emancipação. No contexto
mundial, o sexo feminino é subjugado ao masculino de variadas
formas. Assim, a teoria feminista busca desenvolver ferramentas
para que as mulheres possam reagir à opressão e ao silenciamento.
Um episódio histórico que simboliza fortemente o
movimento feminista foi a origem do Dia Internacional das
Mulheres, comemorado no 8 de março desde o início do século
XX. Essa data é lembrada como um dia para reivindicar igualdade
de gênero, já que decorre da luta de mulheres que trabalhavam
em fábricas nos Estados Unidos e alguns países da Europa, que
223
impulsionaram acontecimentos marcantes ao longo dos anos,

clamando por melhores condições de trabalhos, dentre outros
direitos. Esse dia é consideravelmente importante já que ergueu
um problema que até hoje não foi resolvido: o desequilíbrio no
tratamento entre homens e mulheres.
O movimento feminista polemizou as relações de gênero
desde quando ainda não era reconhecido sob essa denominação
(até mesmo entre mulheres). Na constante busca por direitos,
essa mobilização influenciou de maneira extraordinária na
oportunidade de alcance de novos espaços sociais dada a dimensão
reivindicatória e transformadora da luta por reconhecimento de
garantias fundamentais e justas para as mulheres.
O processo que busca consolidar direitos igualitários
é contínuo justamente por sujeitar-se a avanços e retrocessos,
como pudemos perceber em momentos anteriores. O feminismo
empenha-se pelo rompimento de conceitos tradicionais atribuídos
as mulheres e próspera por:
[...] funções iguais, salários e direitos iguais; igualdade de
oportunidades no acesso ao mercado de trabalho e a ascensão
e aprimoramento profissional. Todas essas bandeiras são parte
do processo de conscientização da mulher de seu próprio valor
e da necessidade de que ela se coloque como agente da sua
liberação (MOREIRA, 2007, p. 65).
As mulheres não representam somente uma categoria
de gênero, mas também um sujeito histórico e político munido
questionamentos e atitudes voltadas para a questão da exclusão
feminina do patamar de igualdade e justiça na construção social
que as cerca.
Cabe pontuar que batalha que visa alcançar igualdade de
direitos passa por um momento marcante nos anos 60, já que
foi nessa época que as mulheres alcançaram libertação sexual,
possibilitada pela introdução de métodos contraceptivos, além de
uma maior participação política e social (LEAL, 2016).
Incentivadas pelo desejo de mudança, ampliação da
democracia e efetiva aplicação de normas que as protegem, as
224
mulheres montam sua trajetória em cima de lutas que vem para

romper a ideia de que seu lugar era de subordinação ao homem.
Partimos do pressuposto de que homens e mulheres vivem
sob condições classificativas que são produtos de uma construção
histórica. A ocupação da mulher no mercado de trabalho é limitada
em eixos impostos pela coletividade, seja para com o seu papel
profissional ou em suas relações de trabalho.
No decorrer dos anos e com as significativas transformações
das concepções sociais e de gênero, a informatização e politização
do movimento feminista, o mesmo ganha força.
A influência do feminismo na busca por equidade está
ligada ao fato de que esse movimento busca libertar as mulheres
das correntes patriarcais que as prenderam por tanto tempo. Isso
acontece por diversos meios, desde os mais simples, como levar
informações aquelas que são mais leigas e menos conhecedoras de
seu potencial, como também através de manifestações em ruas,
rádios, jornais e outros meios tecnológicos mais atuais.
O poder do conhecimento é que liberta. Digo, é necessário
que as mulheres saibam que estão aptas a desempenhar qualquer
função social que quiserem, da mesma forma como é necessário
que saibam da sua competência, do poder de sua voz, dos seus
direitos e obrigações.
O feminismo empodera as mulheres justamente por
incentiva-las a ser e fazer o que elas escolherem para si.
Durante a história da humanidade as mulheres foram

colocadas em posição de inferioridade e subordinação tendo sempre
sua capacidade subestimada. A historicidade da desigualdade
de gênero demonstra que qualquer comportamento contrário
a submissão da mulher era considerado uma ameaça ao bom
funcionamento do sistema patriarcal, o qual todos ainda estamos
inseridos.
225
Com a inserção das mulheres ingressando de forma intensa

no mercado de trabalho, ocorreu uma ampliação em participações
em movimentos sindicais e lutas para igualdade de classes e
violência de gênero, porém, esses foram apenas os passos iniciais
de um longo caminho de desconstruções que ainda é percorrido.
O ‘’sentimento’’ feminista originou-se de uma premissa
individual de cada mulher e que ao se tornar coletivo, transformou-
se em direitos políticos e de acolhimento, onde diversas mulheres se
amparam, se constituem e se reformulam a cada dia.
Os movimentos feministas, através dos anos, ensejaram
diversas lutas que obtiveram uma série de impactos sobre a vida
e autonomia de muitas mulheres ao redor de todo o mundo. A
aquisição destes direitos, porém, não é definitiva e igualitária,
tampouco ocorrem concomitantemente para todas as mulheres.
Não é necessário portar-se como um homem para ser
valorizada e é neste cenário que as perspectivas da igualdade podem
contribuir na análise da opressão de gênero.
Com a modernidade, a emancipação feminina revisitou as
possibilidades criativas da mulher, sua subjetividade aos propósitos
conservadores da sociedade e sua capacidade para o auto sustento.
Esse esforço se torna importante para refletirmos nas
possibilidades de construção de novas teorias que moldam a vida
social. A partir do desenvolvimento da tendência reflexiva da
modernidade, pudemos observar as mudanças que no passado
eram inimagináveis, muitas das quais são frutos da contribuição
do feminismo.
Deste modo, afirmamos que o movimento feminista afetou
diretamente a reconstrução de direitos e garantias previstos em
nosso ordenamento jurídico, o que inclui os direitos trabalhistas e
relações de trabalho das mulheres.
Atualmente ainda é comum perante aos olhos da sociedade,
o que engloba também as mulheres, que para conquistar posição
e colocação no mercado de trabalho é necessário adiar projetos
pessoais. De outra forma, quando olhamos a perspectiva de mulheres
226
que já estão inseridas dentro do mercado, outras limitações também

são impostas. Isto é fruto de uma construção social dominada pelo
patriarcado.
Assim, não é apenas nos direitos trabalhistas que elas
reivindicam a independência que contribui com rupturas
epistemológicas necessárias para compreender os fenômenos sociais
e relações de poder entre os gêneros na sociedade, mas também
pelos direitos universais que irão provocar mudanças no curso da
história, até que cheguemos ao estado de efetiva igualdade entre os
sexos.
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São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960.
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TIBURI, Márcia. Feminismo em comum. Rio de Janeiro: Rosa
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Trabalho. São Paulo. 2010.
MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 24. Ed. – São
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Capítulo 12
O trabalho do cuidado e as diversas formas de ser

mulher: uma análise do trabalho doméstico a partir
de um olhar interseccional
Thamiris Cristina Rebelato
A sociedade hodierna ainda é caracterizada por relações

e estruturas patriarcais, machistas, raciais e misógenas,
sendo o trabalho desenvolvido pela mulher em âmbito doméstico
continuamente desvalorizado, socialmente e monetáriamente,
evidenciando diversas opressões vivenciadas.
O presente artigo tem como objetivo geral investigar o
trabalho invisível ao sistema capitalista realizado pela mulher: o
trabalho do cuidado, bem como sua naturalização e justificativa
de atribuição baseada em sistema de opressão de gênero. Ademais,
busca-se esclarecer as diversas opressões sociais sofridas pelas
mulheres em âmbito laboral e a necessidade de validação de
multiplas realidades para que consiga a efetivação de direitos, fim
do machismo e a libertação de todas as mulheres, questões que
devem ser observadas, inclusive, entre as próprias mulheres para
que não se recaia em uma reafirmação das estruturas opressoras.
Para tanto, o presente trabalho parte do estudo da divisão
sexual do trabalho, fundamentada na construção de gênero e
as espectativas sociais lançadas a cada um dos papeis sociais,
inclusive quanto as atividades produtivas realizadas. Em sequência
será apresentado o trabalho invísivel realizado pela mulher,
desconsiderado pelo sistema capitalista, sendo aquele responsável
pelo cuidado e a repercussão da sua definição no mercado de
trabalho. Por fim, será abordada a teoria da Interseccionalidade
228
como forma de compreender as diversas formas de opressão sofridas

pelas mulheres em âmbito laboral.
A pesquisa realizada tem natureza bibliográfica,
desenvolvendo-se sob método de pesquisa dedutiva, sendo realizada
a partir de uma perspectiva geral sobre o tema.
Da divisão sexual do trabalho
O termo divisão sexual do trabalho em sua acepção

sociográfica, que tem como objeto de estudo a distribuição desigual
de homens e mulheres no mercado de trabalho, mas mais diversas
profissões e ramos, bem como suas variações no tempo e no espaço,
inclusive quanto à repartição desigual do trabalho doméstico entre
os sexos (HIRATA; KERGOAT, 2008).
As diferenças biológicas entre homens e mulheres têm
justificado nos mais diversos sistemas socioculturais as diferenças de
gênero masculino e feminino, e, ao utilizar o recurso biológico, as
distinções socioculturais se transformam em imutáveis, sustentando
uma distinção cultural arbitrária e histórica, como são as categorias
de gênero. (COPETTI SANTOS; GIMENEZ; ANGELIN, 2019).
As pesquisas sobre gênero e trabalho compartilham o
entendimento de que a divisão sexual do trabalho atravessa as
relações sociais, sendo fundamental na sua organização. Elizabeth
Souza-Lobo (1991), em estudos realizados nos anos de 1980
concluiu que tal problematização permite questionar categorias e
métodos que são aprendidos como neutros.
A posição das mulheres nas relações de trabalho está no
cerne das formas de exploração que caracterizam a dominação de
gênero (ou o patriarcado) constituindo um conjunto variado de
abordagens, atravessado pelo problema da correlação entre a divisão
do trabalho doméstico não remunerado, a divisão do trabalho
remunerado e as relações de poder nas sociedades contemporâneas
(BIROLI, 2016).
Logo, a divisão sexual do trabalho pode ser considerada
229
como a divisão social decorrente das relações sociais entre os sexos;

sendo um fator prioritário para a sua manutenção. Tal relação é
modulada histórica e socialmente, possuindo como características a
designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres
à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos
homens das funções com maior valor social adicionado (políticos,
religiosos, militares etc.) (HIRATA; KERGOAT, 2007).
A diferença de papeis laborais podem ser observada
em diversas dinâmicas econômicas, onde homens e mulheres
constituem-se lados opostos, sendo que os primeiros vivenciam
situações mais vantajosas, recebendo maiores salários e maiores
possibilidades de ascensão de carreira do que as segundas. Esse
fato não se restringe a relidade brasileira, conforme evidenciado
por relatórios das Nações Unidas, intitulado “What kind of State?
What kind of equality?”, apresentado na 11ª Sessão da Conferência
Regional sobre Mulheres na América Latina e Caribe (2020), que
demonstra que as mulheres que vivem nas regiões estudadas são
discriminadas no mercado de trabalho e recebem salários inferiores
aos dos homens pelo mesmo trabalho, bem como gastam mais
tempo no trabalho doméstico ou assistêncial não remunerado,
(SIMÕES; LUZ, 2018).
Por meio dessa dinâmica, cabe aos homens as tarefas na esfera
da produção dos bens materiais, economicamente considerados, e
às mulheres, aquelas relacionadas à reprodução da espécie humana,
resultando na ideia de que existam trabalhos de homens e trabalhos
de mulheres, sendo o primeiro mais valoroso do que o segundo.
Extrai-se a partir da leitura de Michèle Barrett (1998)
que por meio dessa forma particular de divisão do trabalho, o
problema incontornável do cuidado e responsabilidade quanto as
crianças, doentes, pessoas com deficiência e dos idosos foi resolvido
em benefício dos homens, para que eles pudessem sustentar a
família, lançando mão de uma ideologia de gênero que precede o
capitalismo.
Assim, a separação entre a casa e o trabalho serviu como
230
justificativa hierarquiva dentro e fora do espaço doméstico familiar,

ultrapassando o universo burguês, sendo que a responsabilização
desigual entre homens e mulheres por um trabalho que pode ser
considerado como produtivo e não remunerado constitui a base do
sistema patriarcal no capitalismo.
Como fora esclarecido por Silvia Walby (1990), o
patriarcado teria se caracterizado pela exclusão das mulheres e
pelo controle direto de um homem sobre uma mulher, exercido
da sua posição de marido ou de pai, sendo a instituição familiar o
centro da dinâmica de opressão, por ela denominada “patriarcado
privado”. Por sua vez, “patriarcado público” é constuido pelo Estado
e pelo mercado de trabalho que passam ser as dimensões em que os
constrangimentos se organizam e se institucionalizam, onde novas
formas de inclusão seriam então acompanhadas de formas também
renovadas de opressão e de controle.
Desta forma, o patriarcado, como sistema político,
consistiria numa estrutura de exploração do trabalho das mulheres
pelos homens. No centro da análise, portanto, está a divisão
sexual do trabalho e a produção de dois grupos sociais distintos:
as mulheres, que têm sua força de trabalho apropriada, e os
homens, que se beneficiam coletivamente desse sistema (DELPHY;
LEONARD, 2004) sendo que efeitos dessa forma de exploração
não permanecem nos limites da casa, pois as obrigações familiares
restringem e moldam as ocupações da mulher fora do âmbito
domicilar.
A divisão sexual do trabalho está fundamentada na
naturalização de relações de autoridade e subordinação, e presentes
na justificativa romantizada de papéis, quando, por exemplo, se
ideologizam a maternidade, ou em ideologias racistas, que atribuem
à mulher negra a habilidade de realizar o trabalho remunerado de
limpeza.
Para Flávia Biroli (2016), a construção binária das categorias
feminino e masculino também é influênciada pelas prescrições
e julgamentos que responsabilizam e conformam habilidades e
231
preferências, possuindo forte expressão no âmbito da divisão das

responsabilidades e do trabalho. Por meio desses processos, são
ativados filtros que incidem sobre as mulheres no acesso a ocupações,
forjando padrões sistemáticos de exclusão e de marginalização,
constituindo assim um grupo onerado pelo cotidiano de trabalho
não remunerado, direcionado a ocupações específicas.
Assim sendo, a divisão sexual do trabalho tem como uma de
suas bases a opressão das mulheres. A ideia de gênero é produzido
por meio de diferenças que definiriam o feminino e o masculino
de maneira dual e, embora sejam codificadas como algo que
corresponderia ao sexo biológico, decorrem da atribuição distinta
de habilidades, tarefas e alternativas na construção de vidas para
mulheres e homens. Essas diferenças, que possuem como cerne
normas masculinas, são mobilizadas para justificar as desvantagens
econômicas das mulheres (WILLIAMS, 2010).
Hodiernamente é possível se afirmar que a “ideologia da
dependência emocional, física e ‘moral’” (BARRETT, 1988) não
desapareceu por completo, em especial no que tange a dependência
relacional entre mulheres e homens ligados pelo casamento ou
por filiação, mas certamente sofreu alterações com a ampliação do
acesso das mulheres ao trabalho remunerado e à educação formal
(BIROLI, 2016).
Do trabalho invisível da mulher: o cuidado
A criminalização do controle das mulheres sobre a

procriação é um fenômeno que trouxe repercussão tanto sobre o
papel social quanto cultural da mulher, bem como consequências
na organização capitalista do trabalho (FEDERICI, 2017)
Segundo Silvia Fredericci (2017, p.200/202) ao negar
as mulheres o controle sobre seus corpos, o estado privou-as
da condição fundamental de integridade física e psicológica,
degradando a maternidade à condição de trabalho forçado, além
de confinar as mulheres a atividade reprodutiva de um modo
232
desconhecido por sociedades anteriores, havendo a redução da

mulher para uma “maquina de produção de filhos e filhas para o
Estado” na nova divisão sexual do trabalho, sendo consideradas
“não trabalhadoras”.
O casamento passa a ser visto como uma verdadeira carreira
para a mulher, a partir da premissa de incapacidade de sobrevivência,
sendo estabelecido sua inferioridade perante aos homens, colocadas
sob o poder masculino.
A proibição da prostituição e a expulsão das mulheres do
espaço de trabalho organizado acarretou a aparição da figura da
dona de casa e da redefinição da família como lugar para a produção
da força de trabalho.
Com a nova divisão sexual do trabalho, que definia as
mulheres como mães, esposas, filhas e viúvas, que acaba por ocultar
sua condição de trabalhadora e que concede aos homens livre
acesso a seus corpos, a seu trabalho e ao trabalho de seus filhos,
resultou em um novo modelo de feminilidade: a mulher passiva,
obediente, parcimoniosa e sempre preocupada com suas tarefas,
cujas atividades eram fundamentadas em um amor incondicional
(FEDERICI, 2017, p. 205).
O trabalho que fora forçadamente incumbido ás mulheres,
fornecido gratuitamente, como aquele que está envolvido na
criação dos filhos e no cotidiano das atividades domésticas, libera
os homens para que se engajem no trabalho remunerado. São
apenas elas que fornecem esse tipo de trabalho gratuitamente, e
sua gratuidade se define numa relação de subordinação em âmbito
familiar, podendo ser caracterizado como não produtivo.
Para Delphy e Leonard (2004, p. 84), se um homem se
casa com sua empregada doméstica ou com uma prostituta, o
mesmo trabalho e a mesma mulher repentinamente se tornam não
remunerados e “improdutivos”.
Mudanças históricas diretamente relacionadas às formas
assumidas pelo capitalismo acarretaram incentivos e pressões que
tiveram efeito na reorganização da vida doméstica, em especial
233
na domesticidade das mulheres. Para Walby (1990), a demanda

por força de trabalho em diferentes momentos nos séculos XIX e
XX esteve em conflito com a estratégia do patriarcado de manter
as mulheres em casa e privatizar seu trabalho. A privatização do
trabalho feminino que tornou mais barata sua mão de obra, quando
comparada com a masculina, justificando também as dificuldades
na luta por direitos trabalhistas pelas mulheres, bem como o direito
à equiparação salarial.
A atribuição desigual das responsabilidades pela vida
doméstica, sobretudo pela criação dos filhos, constituita fator que
torna a exploração da mão de obra feminina mais aguda, pelo fato
de desdobrar-se em trajetórias profissionais descontinuadas e e na
tentativa de conciliação entre as exigências domésticas e o cotidiano
de trabalho fora de casa (WALBY, 1990).
No que tange a diferença do trabalho doméstico e o trabalho
reconhecido pelo sistema capitalista, a diferença em relação ao
primeiro reside no fato de que ele não só tem sido imposto às
mulheres como também foi transformado em um atributo natural
da psique e da personalidade femininas, uma necessidade interna,
uma aspiração, supostamente vinda das profundezas da natureza
feminina, sendo destinado a não ser remunerado, caracteristica mais
poderosa no fortalecimento do senso comum de que o trabalho
domestico não é trabalho (FEDERICI, 2019, p.42-43).
Neste momento, relevante ressaltar as diferenças entre o
papel social da mulher branca e da mulher negra. Devido o caráter
patriarcal e paternalista, atribui-se á mulher branca o papel de
esposa e mãe, com a vida dedicada a seu marido e filhos. Logo,
seu papel é assinalado pelo ócio laboral, suporte ideológico de
uma sociedade baseada na exploração do trabalho de uma grande
camada da população. Contrariamente a mulher branca, a mulher
negra é considerada uma mulher essencialmente produtora, visto
que como escrava é uma trabalhadora não apenas nos afazeres da
casa grande, mas também detentora de capacidade reprodutiva,
determinada pela condição de mulher, e portanto, mãe de potencial
de novos escravos (NASCIMENTO, 2019, p. 259/260).
234
Embora não resulte em pagamento de salário, as mulheres

em suas atividades domésticas e de “cuidado”, produzem o produto
mais preciso do mercado capitalista, que é a força de trabalho. Logo
trabalho doméstico deve ser entendido bem mais do que a limpeza
doméstica, é servir aos assalariados de forma física, emocional e
sexual, preparando-os para o trabalho dia após dia.
A conciliação do trabalho dentro e fora de casa faz com
que as mulheres tenham uma jornada de trabalho maior que a dos
homens o que consequentemente resulta em maior instabilidade
no mercado de trabalho e/ou que se sujeitam a relações de trabalhos
mais precárias e a salários menores.
Deste modo, os efeitos dessa forma de exploração justificada
pelo gênero não permanecem nos limites da casa. As “obrigações
familiares” restringem e moldam as ocupações exteriores, ao mesmo
tempo que se tornam um pretexto para ampliar a exploração
capitalista do trabalho remunerado das mulheres (DELPHY;
LEONARD, 2014).
Ainda que a entrada da mulher no mercado de trabalho
caracterize importante conquista de direitos pela igualdade e
emancipação feminina, no seu reverso, mantiveram as desigualdades
de gênero quanto as responsabilidades pelo trabalho doméstico/
familiar do cuidado.
As profissionais de trabalho doméstico, exatamente por
prestarem suas atividades em um ambiente íntimo, estão sujeitas
a condutas abusivas e assédios de natureza moral e sexual, além
de sofrerem com a desvalorização e estigmaticação social da
profissão, jornadas exaustivas e mal remuneradas, cujo tempo
e esforço dedicados ao cuidado com os outros acaba em resultar
detrimento de tempo e energia para o auto cuidado e para com seus
dependentes.
De fato, na conformação conjunta do capitalismo e do
patriarcado em seus padrões atuais, as mulheres são posicionadas
como um grupo onerado pelo cotidiano de trabalho prestado
gratuitamente, direcionado a ocupações específicas, menos
235
remunerado que os homens quando desempenham as mesmas

atividades. A concentração da mão de obra feminina está nos setores
de educação, saúde, serviços sociais, serviços domésticos, alojamento
e alimentação, atividades que dizem respeito à reprodução da vida.
Trata-se de um dos grandes paradoxos da globalização,
o aumento do emprego remunerado acompanhado pela sua
precarização e vulnerabilidade crescentes. Pode-se dizer que as
desigualdades de salários, de condições de trabalho e de saúde não
diminuíram, e que a divisão do trabalho doméstico não se modificou
substancialmente, a despeito de um maior envolvimento nas
responsabilidades profissionais por parte das mulheres (HIRATA,
2001).
Da interseccionalidade e o trabalho da mulher
O termo interseccionalidade foi cunhado primeiramente

pela autora e jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw (2004.
p.09-10), sendo utilizado para auxiliar na compreensão de
multiplas e simultâneas opressões que podem ser sofridas por
diversos grupos sociais em situação de vulnerabilidade. Sendo
assim, gênero, raça, sexualidade, classe, etc. precisam ser analisados
em suas sobreposições. Essa ferramenta, em sua formação oriunda,
permite dar visibilidade às múltiplas formas de “ser mulher”,
afastando a tentadora ideia de modelo único de mulher, uma
“mulher universal”.
A sua origem remonta ao final dos anos 1970, durante
o movimento conhecido como Black Feminism (Feminismo
Negro), com uma crítica coletiva voltada de maneira radical
contra o feminismo branco, de classe média e heteronormativo (
CRENSHAW, 1989).
Nesse sentido, é preciso compreender que embora o
objetivo central do movimento feminista seja o fim do machismo e
a libertação de todas as mulheres, a opressão de gênero não é a única
a qual estão sujeitas. Sendo assim, o feminismo não pode deixar de
236
considerar questões que envolvem classe, raça e outras opressões,

sendo necessário considerar as intersecções entre essas opressões,
pois somente assim esse será um movimento que alcançará todas as
mulheres (RIBEIRO, 2018).
As mulheres, tecnicamente, não possuem poder de
opressão, pois todas são vítimas do regime patriarcal e machista.
No entanto, as mulheres brancas ainda possuem uma significativa
vantagem, visto que não sofrem opressões relacionadas a sua raça.
Enquanto mulheres brancas continuarem sendo amparadas por
uma sociedade que é estruturalmente racista serão reprodutoras de
opressão. Neste contexto, válido destacar as relações de trabalho
doméstico e os resquícios escravagistas que ainda são sentidos nas
relações juslaborais (RIBEIRO, 2018).
O Brasil é marcado por um histórico de desvalorização social
duplo: enquanto mulheres e enquanto negras. Em ambito laboral,
todos os dias mulheres negras continuam recebendo os menores
salários, são excluídas de atividades intelectualizadas e amplamente
aceitas em subempregos, além de serem sexualmente descartáveis,
fetichizadas e estereotipadas (HOOKS, 2020).
Enquanto isso, o movimento feminista branco, de progênie
burguesa, continua se valendo da parcela racista do patriarcado para
a manutenção dos seus privilégios. Se esse feminismo abrange o
discurso da esquerda, que insiste em dizer que o problema consiste
na organização da sociedade em classes, excluindo intensionalmente
a noção racista pertencente ao conceito, ou acata o discurso liberal
de que todos são humanos, escolhendo por ignorar a existencia
de problema que atinge especificamente o gênero feminino, acaba
por despreza que as dinâmica de opressões que atravessam umas às
outras (RIBEIRO, 2018).
Intrigante relato apresentado por Bell Hooks (2020) quando
da sua participação projetos feministas durante suas experiencias
acadêmicas:
Qual a questão foi apresentada como um crise das mulheres,
era de fato uma crise somente para um grupo pequeno de
237
mulheres brancas com alto nivel de educação. Enquanto elas

reclamavam dos perigos do confinamento no lar, a maioria das
mulheres trabalhadoras, que se dedivacam a longas horas de
trabalho, com baixos salários, e ainda faziam todo o trabalho
domestico, teriam exergado, o direito de ficar em casa como
“liberdade.
Os grupos feministas que acusam as mulheres negras
de quererem segregar o movimento se baseiam em uma ideia
universalizante (exatamente o que pretende ser evitado com a
interseccionalidade) acaba por desconsidera que as mulheres, nas
suas mais diversas vivências estão expostas à formas de opressões
diferentes. Essas acusações de segregação partem dos setores mais
alienados do feminismo e podem ser interpretadas como tentativas
de desqualificação da mulher negra da esfera social e política
(RIBEIRO,2018).
Nesse sentido, se um dos objetivos do movimento feminista
é a busca por uma sociedade com igualdade de gênero, o feminismo
precisa ser compreendido também a partir das noções de raça e
classe. Ao longo da história mulheres brancas, negras e de diferentes
classes sociais foram oprimidas de maneiras diversas e, assim, é
necessário que o movimento feminista seja analisado de maneira
interseccional (HOOKS, 2020).
No que tange as relações juslaborais, não há de se negar
que a concentração de renda é um componente incontornável das
hierarquias, todavia os padrões e opressões de gênero devem ser
obversados quando se busca compreender a responsabilização pelo
trabalho doméstico e no acesso a ocupações. As desvantagens que
atingem as mulheres não são suficientes para que se faça delas um
grupo minimamente homogêneo. Nessa dinâmica, gênero, raça e
classe organizam conjuntamente sua vivência. Em outras palavras,
o gênero não se configura de maneira independente em relação à
raça e à classe social, nem é acessório relativamente a essas variáveis
(BIROLI, 2016).
Os trabalhos domésticos e de cuidado são resultante de
condutas opressoras caracterizadas pelo gênero, naturalizando sua
238
realização pelas mulheres, entretanto isso não significa dizer que

as atividades são realizadas nas mesmas condições por mulheres
brancas e negras, pelas mais ricas e pelas mais pobres.
O próprio acesso ao mercado de trabalho se dá de forma
distinta, segundo raça e posição social das mulheres. Esses fatores,
a conexão entre divisão sexual do trabalho não remunerado e do
trabalho remunerado, organiza as vidas das mulheres, mas o faz
de maneiras distintas e as afeta de forma e em graus desiguais.
Portanto, a divisão sexual do trabalho produz o gênero, de fato,
mas essa produção se dá na convergência entre gênero, classe e raça
(BIROLI, 2016).
Ressalva-se, portanto que o gênero não é produzido
isoladamente em relação a outras variáveis, sendo relevantes
apenasem determinado contexto quanto ao posicionamento e
identificação das pessoas. Como afirma Elizabeth Spelman (1988),
as mulheres vivem em um mundo no qual não há apenas sexismo,
mas racismo, classismo e outras formas de opressão, em um
mundo, portanto, em que “o ‘problema da diferença’ é na realidade
o problema do privilégio”.
A generalização da posição de algumas mulheres foi
denunciada como uma forma de tornar invisíveis as experiências
de outras mulheres e as relações de poder que as diferenciam,
os constrangimentos materiais e ideológicos que se impõem às
mulheres variam e são vivenciados distintamente de acordo com a
classe social e raça
O ideal de trabalho remunerado que prometia a libertação
das mulheres de suas relações opressoras foi visto por feministas
negras e provenientes das classes trabalhadoras como uma
idealização baseada na experiência das poucas mulheres que podem
ter acesso a carreiras profissionais com grau relativamente ampliado
de autonomia e de remuneração, evidenciando a falsa ideia
decorrente da universalização de objetivos. O trabalho assalariado
“para as mulheres da classe trabalhadora que ganham muitas vezes
menos do que o salário mínimo e recebem poucos benefícios,
239
quando os recebem, significa a continuidade da exploração de

classe” (HOOKS, 1984).
Patrícia Hill Collins (2009) traz a tona relevante questão que
precisa ser considerada quando na construção da crítica feminista:
muitas mulheres negras desempenham trabalho alienante não
remunerado, como o trabalho doméstico sem fim das avós e mães
solteiras, e remunerado, como o trabalho doméstico assalariado, o
trabalho de lavar louças e passar roupas em restaurantes e lavanderias.
O acesso a esse tipo de trabalho não assume, assim, cotidiana e
historicamente, o mesmo sentido que o acesso ao trabalho pelas
mulheres brancas que puderam trilhar carreiras profissionais.
Os padrões hierarquicos nas relações entre as mulheres,
organizados por outras variáveis, entre as quais se destacam classe e
raça é afirmado por Heleieth Saffioti (2013, p.113): “se as mulheres
da classe dominante nunca puderam dominar os homens de sua
classe, puderam, por outro lado, dispor concreta e livremente da
força de trabalho de homens e mulheres da classe dominada”,
expressando claramente a utilização de recurso pelas mulheres mais
ricas ao trabalho doméstico mal remunerado e precarizado das mais
pobres, em sua maioria negras.
Por conseguinte,o acesso ao trabalho remunerado se dá
de forma diferenciada não apenas entre homens e mulheres, mas
para diferentes grupos de mulheres, tendo em vista as diversas
modalidades de opressão a que são submetidas. O mesmo ocorre
no que diz respeito ao exercício de trabalho do cuidado em
ambito familiar e íntimo à depender das formas de dependencia e
vulnerabilidade vivenciadas.
O presente artigo buscou evidenciar as várias formas de

opressão vivenciadas quando da relalização de atividades laborais
em âmbito doméstico pelas mulheres.
A opressão de gênero busca naturalizar a realização de
240
atividades domésticas e de cuidado, como se intrínsecas à mulher,

encobrindo estruturas sociais de reprodução de regras, padrões,
condutas e modo de racionalidade que tornem normal e natural o
dominio masculino.
O trabalho oculto desenpenhado pelas mulheres, em que
pese seu não reconhecimento em uma sociedade capitalista, sendo
retratado como não produtivo e desnecessário de remuneração, na
verdade constitui alicerse indispensável à manutenção do sistema,
pois preparam, desobrigam e reproduzem a força laboral.
A participação cada vez maior da mulher no mercado de
trabalho, embora caracterize importante conquista de direitos
pela igualdade (ainda que notoriamente formal) e emancipação
feminina, também ocasionou seu esgotamento, pois as mulheres
ainda são responsáveis pelo cuidado do lar e seu familiares, com
a nítidas cumulações de jornadas e funções que dificultam sua
estabilidade no mercado, além de estarem expostas à condições
laborais precárias. Como se não bastasse, o sistema de opressão de
gênero também acaba por autorizar condutas assediantes e danosas
dentro nos diversos ambientes em que atua.
No que tange a dinâmica laboral, também de faz necessário
destacar as opressões sofridas em decorrência de classe social e raça.
Desta forma, para que se possa melhor compreender o papel social
da mulher e buscar a efetivação de seus direitos, seja em âmbito
laboral ou em outros, assim como o fim do machismo e a libertação
de todas as mulheres, se faz necessário reconhecer a existência de
múltiplas e simultâneas opressões, validando as diversas vivências e
realidades.
A interssecionalidade se apresenta como instrumento de
compreensão das díversas realidades, para que não se recaia no
errôneo pensamento de universalização de direitos e lutas dentro
do feminismo, inclusive pelas próprias mulheres pertencentes
aos grupos sociais dominantes, que visto que tal indeferenciação
inválidaria os horizontes de mulheres pertencentes a grupos
sociais marginalizados, convalidando o sistema opressor patriarcal,
241
capitalista e racista.
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2010.
Capítulo 13
Direitos Humanos, gênero e raça: uma análise da

convenção sobre a eliminação de todas as formas de
discriminação contra a mulher (CEDAW)
Bibiana Terra
Bianca Tito
O presente capítulo tem como objetivo geral abordar

acerca dos direitos humanos das mulheres, sobre os
conceitos de gênero e raça e a importância da interseccionalidade.
Nesse sentido, o trabalho buscará apresentar uma análise acerca da
Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra a Mulher – conhecida por sua sigla em inglês, CEDAW. Essa
trata-se de uma Convenção que foi promulgada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas em 1979 e ratificada pelo Brasil em 1984.
Essa Convenção tem como um de seus objetivos principais
sistematizar os direitos humanos aplicados às mulheres, para,
assim, romper com a visão pretensamente neutra e universal dos
“direitos do homem”. Esses chamados “direitos do homem”, ao se
apresentarem como um termo neutro em relação a sexo e gênero,
retiravam/retiram a possibilidade de importantes discussões sobre
os direitos das mulheres (KYRILLOS, 2018, p. 32).
No campo jurídico, o discurso dos direitos humanos é um
discurso bastante universalizante. Ao contrário do que se pretendeu,
de se generalizar para incluir, essa generalização acabou por se revelar
excludente (CARLA AKOTIRENE, 2019, p. 62-63). Diante dessa
compreensão, esse capítulo traz entre os seus objetivos analisar a
interseccionalidade como uma resposta possível e necessária para
246
o fortalecimento dos direitos humanos das mulheres, tendo como

norte de análise a CEDAW.
A interseccionalidade, conceito primeiramente cunhado e
formulado pela jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw, auxilia
na compreensão de que diferentes grupos sociais estão em posições
vulneráveis, na medida em que sofrem múltiplas e simultâneas
opressões, pois se encaixam em mais de um tipo de identidade
que é historicamente subordinada. Sendo assim, para essa autora,
gênero, raça, sexualidade, classe, etc., precisam ser analisados em
suas sobreposições (KIMBERLÉ CRENSHAW, 2004, p. 9-10).
Partindo dessas compreensões, esse trabalho entende que
a interseccionalidade instrumentaliza os movimentos antirracistas,
feministas e instâncias protetivas dos direitos humanos a lidarem
com as pautas das mulheres que muitas vezes acabam sendo
invisibilizadas. Diante disso, a CEDAW se apresenta como um
importante documento nesse sentido, para deixar de considerar os
“direitos dos homens”, os direitos humanos, como pretensamente
neutros.
A partir disso essa pesquisa divide-se em dois objetivos
específicos: primeiramente, buscará apresentar uma abordagem
acerca dos conceitos de gênero e raça, abordando a importância dos
movimentos feministas – com destaque para o feminismo negro,
pois é a partir dele que vai surgir a interseccionalidade; a seguir, na
segunda parte, trabalhará com a Convenção Sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, sendo que,
nesse momento, apresentará uma análise sobre esse importante
documento e tecerá comentários à CEDAW.
No que diz respeito ao referencial teórico dessa pesquisa, sua
análise parte não apenas do pensamento de Kimberlé Crenshaw, a
quem é atribuída a formulação do conceito da interseccionalidade,
mas também perpassa por autoras como Angela Davis, bell hooks1,
1 O nome de bell hooks será escrito em letras minúsculas neste artigo pois é assim
que a autora norte-americana Gloria Jean Watkins, que adota o nome de sua bisavó
materna, se apresenta.
247
Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, entre outras. Ainda que haja

diferenças na compreensão desse conceito entre essas autoras
(e entende-se aqui que há), pois não se trata de um pensamento
hegemônico, todas elas serviram de base teórica para esse trabalho
e foi a partir delas que compreendeu-se ser possível evidenciar a
relação das diferentes opressões e os seus impactos na vida e no
fortalecimento dos direitos humanos das mulheres.
Diante disso, esse artigo busca apresentar uma análise
acerca da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Contra a Mulher, abordando os seus direitos
humanos e os conceitos de gênero e raça. Para a sua construção
foi adotada a metodologia da pesquisa bibliográfica, a partir dos
textos e obras desenvolvidos pelas autoras acima mencionadas.
Essa pesquisa se justifica pela importância da realização de estudos
que discutam as questões de igualdade de gênero e das teorias
interseccionais feministas no direito, bem como pelo crescimento
dos movimentos feministas e dos estudos interseccionais, os quais
demonstram a sua relevância e atualidade nas discussões acerca dos
direitos das mulheres.
Gênero e raça: a importância dos movimentos feministas e da

interseccionalidade para os direitos humanos das mulheres
Dentre as várias vertentes do movimento feminista, há

aquela que foca sua atuação tanto na esfera da discussão de gênero
quanto na luta antirracista. Esse é denominado de feminismo
negro. Ele surgiu inicialmente nos Estados Unidos e tem como
pesquisadoras Audre Lorde, Angela Davis e Patricia Hill Collins,
além de nomes notórios do movimento negro como Ida B.
Wells e Sojourner Truth, que ficaram conhecidas pelas suas lutas
abolicionistas e sufragistas. No Brasil, entre outras, se destacam
Djamila Ribeiro, Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro.
Essa vertente do feminismo não tem como seu objetivo
separar as mulheres, sendo que, na verdade, a sua intenção é
procurar entender e atender as especificidades de cada grupo social,
248
pois compreende que a sua universalização foi feita tendo como

base a representação da mulher branca de classe média (RIBEIRO,
2018, p. 45-46), o que demonstra a exclusão das mulheres negras
dentro do próprio feminismo. Diante disso, pode-se compreender
a importância de não universalizar.
Essa questão é importante de ser destacada pois, ao longo da
história do movimento feminista, as mulheres nem sempre tiveram
suas pautas de reivindicação iguais, nem sempre elas queriam
reivindicar pelas mesmas coisas, o que gerou várias divergências
entre elas. Um exemplo disso diz respeito às reivindicações das
mulheres dos Estados Unidos para poderem trabalhar fora de casa
e sem precisar de autorização de seus maridos. Essa nunca foi uma
reivindicação das mulheres negras e pobres, pois estas já estavam
inseridas nesse contexto (RIBEIRO, 2018, p. 45-46).
As mulheres negras sempre tiveram que trabalhar. Sendo
assim, essa era uma pauta apenas das mulheres brancas, no entanto
essas queriam que essa fosse a luta principal do movimento feminista
em um determinado período, o que não abarcava as necessidades de
todas as mulheres que participavam daquele movimento, fazendo
com que muitas delas não se sentissem representadas, ou mesmo
que se sentissem excluídas por esse movimento (TERRA; SOUZA,
2021, p. 205-210).
Diante disso pode-se compreender como é fundamental que
se considere questões de gênero, de raça e de classe, principalmente
em sociedades que são marcadamente racistas, sexistas e com
intensas desigualdades sociais. Ao tentar identificar uma experiência
feminina, uma pauta feminina, como comum a todas as mulheres e
ignorar outras características como raça, classe e orientação sexual,
entre outras, o que se tem como resultado é um silenciamento e
invisibilidade acerca da multiplicidade de possíveis experiências
que compõem a condição feminina (LUIZA BAIRROS, 2020, p.
207-213).
Nesse sentido, a autora bell hooks ressalta que uma
revolução feminista não acabará com a opressão sexista se junto
249
não acabar também com as opressões de classe e de raça. Ela

compreende que não adianta um grupo de mulheres se libertar da
dominação masculina se continuarem a existir outros grupos de
mulheres que ainda são exploradas (HOOKS, 2019, p. 15). Sendo
assim, o gênero estabelece intersecções com modalidades raciais,
classicistas, étnicas, sexuais, regionais, entre outras, sendo que todas
elas precisam ser levadas em conta.
Diante disso importa destacar a importância da
interseccionalidade. Esse é um conceito que surgiu na crítica
feminista para resgatar que o cruzamento de diferentes opressões
produz distintas formas de desigualdade. Assim, ela é importante
para pensar sobre a inseparabilidade estrutural entre os conceitos de
gênero, raça, classe, entre outros, e as suas articulações decorrentes
disso (AKOTIRENE, 2019, p. 18-19). Desse modo, é um
instrumento fundamental para entender as diferentes formas de
opressão sofridas pelas mulheres e deve ser levada em conta pelas
teóricas feministas e também pelo campo jurídico.
O pensamento feminista negro, especialmente a partir da
interseccionalidade, criou um espaço analítico para uma
compreensão mais robusta dos privilégios e desvantagens
associados aos sistemas de dominação que interagem entre
si, bem como a partir de uma abordagem multifacetada das
construções das teorias de conhecimento perspectivistas
(BUENO, 2020, p. 64).
A jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw, a quem é
atribuída a formulação do conceito de interseccionalidade, a define
como sendo as possíveis formas de capturar as consequências da
interação entre duas ou mais formas de subordinação, tais como
sexismo, racismo e patriarcalismo (CRENSHAW, 1989, p. 139-
140). Dessa forma, a interseccionalidade estuda não apenas as
questões de gênero, mas também a raça, a região, classe, entre
outros. Assim, é possível compreender que os conceitos de gênero
e raça interagem com outras categorias diversas e, desse modo,
determinam as experiências vividas por diferentes mulheres
(TERRA; SOUZA, 2021, p. 200-204).
250
Sendo assim, a interseccionalidade pode ser compreendida

como uma ferramenta teórico-metodológica de grande importância
para as ativistas e teóricas feministas comprometidas com análises
que desvelem os processos de interação entre relações de poder
e categorias como classe, gênero e raça em diferentes contextos
(AKOTIRENE, 2019, p. 34-35). Nesse sentido, a partir das
formulações de Crenshaw e também de outras autoras que
trabalham com essa temática, as teorias intersecionais feministas
compreendem que os possíveis diferentes grupos de mulheres têm
várias especificidades e diferentes experiências de vida com as quais
precisam lidar com o racismo e o sexismo, além de outras opressões.
Nesse sentido, ao abordar a teoria de Crenshaw, a autora
Kyrillos faz uma importante análise (2018, p. 33):
No primeiro texto em que cunhou a interseccionalidade,
a jurista estadunidense negra Kimberlé Crenshaw (1989),
buscou examinar o modo pelo qual a tendência de tratar raça e
gênero como categorias de análises e de experiências concretas
como sendo mutuamente exclusivas, se perpetuou devido a
forma de eixo-único que dominou e ainda domina a produção
das leis contra a discriminação racial e as teorias feministas
e antirracistas. A autora sugeriu, portanto, que esse modo de
eixo-único invisibiliza as mulheres negras na conceitualização,
identificação e na remediação quanto a discriminação
de raça e gênero, sendo limitadas pelas experiências dos
outros membros do grupo, mais privilegiados – no caso do
movimento antirracista os privilegiados são os homens negros,
e no caso da discriminação de gênero as privilegiadas são as
mulheres brancas – criando análises distorcidas sobre racismo
e discriminação de gênero.
Além disso, é importante aqui destacar que teorias implícitas
sobre a interseccionalidade já existiam anteriormente à formulação
de Crenshaw. Há desde o discurso “E eu não sou uma mulher?”
proferido por Soujouner Truth no século XIX até as análises de
autoras como Angela Davis, bell hooks e Lélia Gonzalez criticando
o feminismo branco, ocidental e de classe média por ignorar as
intersecções entre classe e raça na pesquisa feminista e, assim, não
considerar as possíveis outras opressões que as mulheres negras e de
251
outras minorias estavam submetidas (TERRA; SOUZA, 2021, p.

207).
Desse modo, Kyrillos (2018, p. 33) ainda aponta que:
Sem diminuir a relevância da conceituação realizada por
Crenshaw, em especial para a incorporação do debate no
campo jurídico e científico, é importante destacar que a
interseccionalidade tem sua origem muito antes de ser
nomeada e é dentro do movimento feminista e antirracista que
as mulheres negras a reivindicaram por meio de um discurso
realizado pelas mulheres que vivenciam e reconhecem as
intersecções dos processos discriminatórios.
Diante disso, a partir da apresentação do conceito de
interseccionalidade e de uma análise acerca das movimentações
feministas das mulheres negras, é possível, a partir de agora, passar
para a análise da importância desses conceitos para os direitos
humanos das mulheres e também para a Convenção Sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher,
que embora tenha surgido em 1979, antes mesmo de formulações
mais precisas acerca do conceito de interseccionalidade (e mesmo do
termo ser cunhado por Crenshaw), hoje em dia pode ser analisada
a partir desses conceitos para uma melhor compreensão da sua
importância e também para uma maior proteção, não apenas de
âmbito internacional, dos direitos humanos das mulheres.
Comentários à CEDAW: a convenção sobre a eliminação de

todas as formas de discriminação contra a mulher
A Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Contra a Mulher, conhecida como CEDAW, a sua
sigla em inglês, surgiu em 1979, adotada pela Assembleia Geral
da Organização das Nações Unidas (ONU). Ela é considerada
por grande parte da doutrina como uma carta internacional dos
direitos das mulheres ou até mesmo como “Declaração Universal
dos Direitos da Mulher” (TOMAZONI; GOMES, 2015, p. 51).
A CEDAW, ou também chamada de Convenção da Mulher,
252
está em vigor desde 1981 e pode ser considerada como o primeiro

tratado internacional que, de maneira ampla, dispõe acerca dos
direitos humanos das mulheres. Esse documento se fundamenta
a partir de duas propostas, a de promover os direitos da mulher
na busca pela igualdade de gênero e a de reprimir quaisquer
discriminações contra a mulher nos Estados-parte (PIMENTEL,
s.d, p. 14).
Baseada em provisões da Carta das Nações Unidas – que afirma
expressamente os direitos iguais de homens e mulheres – e na
Declaração Universal dos Direitos Humanos – que declara que
todos os direitos e liberdades humanos devem ser aplicados
igualmente a homens e mulheres, sem distinção de qualquer
natureza – a Comissão preparou, entre os anos de 1949 e
1962, uma série de tratados que incluíam: a Convenção dos
Direitos Políticos das Mulheres (1952); a Convenção sobre
a Nacionalidade de Mulheres Casadas (1957); a Convenção
sobre o Casamento por Consenso, Idade Mínima para
Casamento e Registro de Casamentos (1962). Esses tratados
visavam a proteção e a promoção dos direitos da mulher em
áreas onde esses direitos fossem considerados particularmente
vulneráveis pela Comissão (PIMENTEL, s.d, p. 14).
Nesse sentido, é possível compreender que a adoção
dessa Convenção se deu como resultado de décadas de esforços
internacionais que visavam a proteção e a promoção dos direitos
humanos das mulheres ao redor do mundo. Assim, ela resultou de
uma série de iniciativas tomadas dentro da Comissão de Status da
Mulher, órgão da ONU de 1946, que tinha entre os seus objetivos
analisar e criar recomendações acerca da formulação de políticas
aos países signatários da Convenção (PIMENTEL, s.d, p. 14).
Assim, a CEDAW surgiu após e a partir de décadas de
debates acerca dos direitos das mulheres, tendo se tornado um
marco na história internacional dos direitos humanos, sendo
que, até o presente momento, pode ser compreendida como
o mais importante texto internacional que aborda sobre os
direitos humanos das mulheres (KYRILLOS, 2018, p. 72). A sua
compreensão enquanto uma declaração universal dos direitos das
mulheres se deu pois há nesse documento um agrupamento de
253
diversos princípios que já eram aceitos pelo direito internacional,

além do fato de que esse documento inclui temas de diferentes
áreas, como a saúde, família, trabalho e educação (TOMAZONI;
GOMES, 2015, p. 51).
Nesse sentido, é possível compreender que o que
faz a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra a Mulher ser considerada a principal carta
de direito internacional referente aos direitos das mulheres é a
sua grande capacidade de abranger e recolher em um único texto
questões sobre diferentes áreas da vida das mulheres (KYRILLOS,
2018, p. 72).
A CEDAW é o único documento de tratado internacional
que, de maneira ampla, aborda os direitos das mulheres. Assim, esse
documento pode ser compreendido como uma grande conquista
dos movimentos de mulheres e feministas ao redor do mundo, “na
medida em que é o único tratado que versa sobre algumas espécies
de direitos das mulheres, como políticos, civis, econômicos, sociais,
culturais, entre outros” (SOUZA, 2009, p. 349).
Sendo assim, a CEDAW se apresenta como parâmetro
mínimo das ações estatais na promoção dos direitos humanos das
mulheres e também na coibição às suas violações, tanto no âmbito
público quanto no privado. Para Silvia Pimentel, a Convenção da
Mulher é uma Carta Magna dos direitos das mulheres e “simboliza
o resultado de inúmeros avanços principiológicos, normativos e
políticos construídos nas últimas décadas, em um grande esforço
global de edificação de uma ordem internacional de respeito à
dignidade de todo e qualquer ser humano” (PIMENTEL, s.d, p.
15).
Tendo abordado o surgimento dessa Convenção, cumpre
agora apresentar alguns de seus artigos e tecer comentários em
relação a eles. Já no início, no seu preâmbulo, a CEDAW faz menção
à Carta das Nações Unidas e também à Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em que reafirma a importância dos direitos
humanos fundamentais, da igualdade entre homens e mulheres e
254
do princípio da dignidade humana. Fundamentando-se na DUDH

de 1948, a CEDAW reitera a desvalorização de qualquer tipo de
discriminação e acerca da importância dos direitos e liberdades
individuais de todas as pessoas (CEDAW, 1979).
Além disso, essa Convenção também reitera que ainda que
existam vários instrumentos internacionais de direitos humanos,
a mulher continua sendo alvo de discriminações, sendo que
isso é um entrave para que a sua participação, no mesmo nível
de igualdade que os homens, se consolide em diversas esferas de
sua vida, tais como a política, social, econômica e cultural, para
o seu desenvolvimento intelectual e para o desenvolvimento da
sociedade. Por fim, ainda no preâmbulo, a Convenção da Mulher
aborda a sua intensão de “inaugurar uma nova era de proteção aos
direitos das mulheres em nível global” (SOUZA, 2009, p. 351).
Após o preâmbulo, no seu primeiro artigo, a CEDAW
apresenta o seu conceito para a expressão “discriminação contra a
mulher”, sendo que, nesse sentido (CEDAW, 1979):
Artigo 1o: Para os fins da presente Convenção, a expressão
“discriminação contra a mulher” significará toda a distinção,
exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto
ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou
exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil,
com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos
humanos e liberdades fundamentais nos campos político,
econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro
campo.
Diante disso, pode-se compreender que a discriminação
contra a mulher, mencionada no primeiro artigo da Convenção,
se apresenta como qualquer atitude que tenha o objetivo de coibir
os seus direitos, de menosprezar a sua condição de mulher no que
diz respeito aos direitos humanos, sociais, econômicos, políticos,
culturais e civis, assim como quaisquer outros direitos que possam
ser ameaçados. Assim, nota-se as suas duas grandes propostas, a
de promover os direitos das mulheres e a de buscar a efetivação da
igualdade de gênero, eliminando todas as formas de discriminação.
255
Já no segundo artigo (CEDAW, 1979), também importante

de mencionar:
Artigo 2o: Os Estados Partes condenam a discriminação contra
a mulher em todas as suas formas, concordam em seguir,
por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política
destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com
tal objetivo se comprometem a:
a) Consagrar, se ainda não o tiverem feito, em suas constituições
nacionais ou em outra legislação apropriada o princípio da
igualdade do homem e da mulher e assegurar por lei outros
meios apropriados a realização prática desse princípio;
b) Adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter,
com as sanções cabíveis e que proíbam toda discriminação
contra a mulher;
c) Estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher numa
base de igualdade com os do homem e garantir, por meio
dos tribunais nacionais competentes e de outras instituições
públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de
discriminação;
d) Abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação
contra a mulher e zelar para que as autoridades e instituições
públicas atuem em conformidade com esta obrigação;
e) Tomar as medidas apropriadas para eliminar a discriminação
contra a mulher praticada por qualquer pessoa, organização ou
empresa;
f ) Adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter
legislativo, para modificar ou derrogar leis, regulamentos, usos
e práticas que constituam discriminação contra a mulher;
g) Derrogar todas as disposições penais nacionais que
constituam discriminação contra a mulher.
Desse modo, pode-se compreender que o artigo 2° da
CEDAW, dentre outras previsões, estabelece que os Estados
signatários da Convenção se obrigam a condenar, a partir
dos “meios apropriados” qualquer forma de discriminação, se
comprometendo a estabelecer, nos textos constitucionais nacionais,
o princípio da dignidade humana e também de reformar leis que
256
prevejam discriminações e elaborar legislações que protejam os

direitos das mulheres. Essa previsão é bastante importante, ainda
mais considerando-se o contexto brasileiro, que em 1988 redigiria
uma nova Constituição Federal, sendo que essa trouxe a previsão de
importantes direitos para as mulheres, além de prever o Princípio
da Dignidade Humana e o Princípio da Igualdade.
No que diz respeito ao artigo 3° da CEDAW, este traz a
previsão de que os Estados Partes tomarão, em todas as esferas,
especialmente nas esferas política, social, econômica e cultural, todas
as medidas apropriadas para assegurar o “pleno desenvolvimento e
progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exercício e
gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade
de condições com o homem” (CEDAW, 1979).
O artigo 4° da Convenção da Mulher prevê acerca de
“medidas especiais provisórias” no contexto nacional que visem
a acelerar a igualdade de fato entre homens e mulheres. Essas
medidas não seriam consideradas discriminatórias, conforme
previstas pela CEDAW, sendo que não autorizam a manutenção de
normas desiguais. Além disso, este artigo também prevê “a adoção
pelos Estados-Partes de medidas especiais inclusive as contidas na
presente Convenção, destinada a proteger a maternidade, não se
considera discriminatória” (CEDAW, 1979).
Já o artigo 5° da CEDAW (1979) prevê que:
Artigo 5o: Os Estados-Partes tornarão todas as medidas
apropriadas para:
a) Modificar os padrões sócio-culturais de conduta de homens
e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos
e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que
estejam baseados na idéia da inferioridade ou superioridade de
qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e
mulheres.
b) Garantir que a educação familiar inclua uma compreensão
adequada da maternidade como função social e o
reconhecimento da responsabilidade comum de homens e
mulheres no que diz respeito à educação e ao desenvolvimento
257
de seus filhos, entendendo-se que o interesse dos filhos

constituirá a consideração primordial em todos os casos.
Nesse sentido, o artigo 5o também traz uma importante
previsão, sendo que prevê que os Estados-Partes devem tomar
medidas que visem erradicar todos os preconceitos e práticas
legislativas e quaisquer outras condutas que se baseiem na
inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos. Na sequência
deste, o artigo 6o da CEDAW prevê que os Estados-Partes deverão
tomar todas as medidas cabíveis, inclusive aquelas com relação à
legislação, que objetivem suprimir todas as formas de tráfico de
mulheres e exploração da prostituição feminina (CEDAW, 1979).
O artigo 7o da CEDAW (1979) traz que:
Artigo 7o: Os Estados-Partes tomarão todas as medidas
apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na
vida política e pública do país e, em particular, garantirão, em
igualdade de condições com os homens, o direito a:
a) Votar em todas as eleições e referenda públicos e ser elegível
para todos os órgãos cujos membros sejam objeto de eleições
públicas;
b) Participar na formulação de políticas governamentais e na
execução destas, e ocupar cargos públicos e exercer todas as
funções públicas em todos os planos governamentais;
c) Participar em organizações e associações não-governamentais
que se ocupem da vida pública e política do país.
Diante disso, a Convenção da Mulher estabelece que
os Estados-Partes se comprometem a eliminar a discriminação
das mulheres na vida política e pública. A seguir, no artigo 8o, a
CEDAW prevê acerca dos direitos das mulheres de representarem
o seu governo no âmbito internacional e de participarem no
trabalho das organizações internacionais. Ainda, no seu artigo
9o, esse documento aborda acerca do direito à nacionalidade, em
que prevê que os Estados-Partes estão obrigados a concederem às
mulheres “direitos iguais aos dos homens para adquirir, mudar ou
conservar sua nacionalidade” e, nesse sentido, o casamento com
estrangeiro ou a alteração da nacionalidade do marido no curso do
258
casamento não irão, automaticamente, modificar a nacionalidade

da mulher ou converte-la em apátrida ou a obrigatoriamente adotar
a nacionalidade de seu cônjuge (CEDAW, 1979).
Já no seu artigo 10o a CEDAW prevê que:
Artigo 10o: Os Estados-Partes adotarão todas as medidas
apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher, a
fim de assegurar-lhe a igualdade de direitos com o homem na
esfera da educação e em particular para assegurarem condições
de igualdade entre homens e mulheres:
a) As mesmas condições de orientação em matéria de carreiras
e capacitação profissional, acesso aos estudos e obtenção de
diplomas nas instituições de ensino de todas as categorias,
tanto em zonas rurais como urbanas; essa igualdade deverá
ser assegurada na educação pré-escolar, geral, técnica e
profissional, incluída a educação técnica superior, assim como
todos os tipos de capacitação profissional;
b) Acesso aos mesmos currículos e mesmos exames, pessoal
docente do mesmo nível profissional, instalações e material
escolar da mesma qualidade;
c) A eliminação de todo conceito estereotipado dos papéis
masculino e feminino em todos os níveis e em todas as formas
de ensino mediante o estímulo à educação mista e a outros
tipos de educação que contribuam para alcançar este objetivo
e, em particular, mediante a modificação dos livros e programas
escolares e adaptação dos métodos de ensino;
d) As mesmas oportunidades para obtenção de bolsas-de-
estudo e outras subvenções para estudos;
e) As mesmas oportunidades de acesso aos programas de
educação supletiva, incluídos os programas de alfabetização
funcional e de adultos, com vistas a reduzir, com a maior
brevidade possível, a diferença de conhecimentos existentes
entre o homem e a mulher;
f ) A redução da taxa de abandono feminino dos estudos e a
organização de programas para aquelas jovens e mulheres que
tenham deixado os estudos prematuramente;
g) As mesmas oportunidades para participar ativamente nos
esportes e na educação física;
259
h) Acesso a material informativo específico que contribua

para assegurar a saúde e o bem-estar da família, incluída a
informação e o assessoramento sobre planejamento da família.
Desse modo, o artigo 10o da CEDAW prevê medidas que
os Estados-Parte devem adotar acerca do direito à educação das
mulheres, para que seja assegurado a elas condições de igualdade
com os homens. Na sequência, no artigo 11o, a Convenção aborda
acerca de medidas apropriadas para eliminar a discriminação
contra as mulheres no âmbito das relações de trabalho, abordando
inclusive a questão da maternidade, para que também seja garantido
condições de igualdade entre todas as pessoas (CEDAW, 1979).
Sendo assim, no seu artigo 11o, a Convenção das
Mulheres assegura às mulheres igualdade de oportunidades com
os homens em relação a esfera do emprego. Os direitos previstos
pela Convenção são: o trabalho como direito inalienável de todo
ser humano; iguais oportunidade de emprego; livre escolha da
profissão; remuneração igual; o direito à seguridade social; proteção
à saúde e à segurança no trabalho; direito a férias pagas; proibição
de demissão por motivo de gravidez; licença maternidade; especial
proteção às mulheres durante o período de gravidez nos casos em
que ela atue em trabalhos comprovadamente prejudiciais a ela;
criação de estabelecimento de assistência à infância, de modo que
os pais possam conciliar o trabalho e a paternidade/maternidade
(CEDAW, 1979).
Na sequência, a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Contra a Mulher ainda aborda em alguns
de seus dispositivos (artigos 12, 13, 14, 15 e 16) acerca de outros
direitos das mulheres, sendo esses referentes a sua saúde; ao acesso
aos serviços de planejamento familiar; a sua vida econômica e social
(como benefícios familiares, serviços bancários, participação em
atividades recreativas e esportes, entre outros); questões referentes
às mulheres que residem na zona rural (sendo que o artigo 14 prevê
que: “os Estados-Partes levarão em consideração os problemas
específicos enfrentados pela mulher rural e o importante papel que
ela desempenha na subsistência econômica de sua família, incluído
260
seu trabalho em setores não monetários da economia”); igualdade

perante a lei no tratamento entre homens e mulheres (como para a
celebração de contratos, administração de propriedades, nulidade
de contratos que tenham como intenção restringir a capacidade
da mulher, entre outros); questões relacionadas ao casamento e às
relações familiares, dentre outros mais (CEDAW, 1979).
Apesar da previsão de todos esses dispositivos, conforme
dispõe Souza (2009, p. 355) cabe apresentar algumas ressalvas
sobre essa Convenção:
A CEDAW é um tratado com grande número de reservas dos
seus dispositivos, o que implica dificuldades para a satisfatória
aplicação do referido instrumento, na medida em que os Estados
Partes não se obrigam à garantia dos direitos das mulheres
no âmbito de seus territórios (Artigo 17). Dessa maneira, a
cultura da discriminação contra as mulheres continua (...). O
Comitê̂ CEDAW mantém o posicionamento de encorajar os
Estados Partes a retirarem as reservas para evitar desnaturalizar
ou diminuir a força do documento.
Apresentados os artigos da CEDAW e, assim, as temáticas
abordadas por ela, é importante ressaltar que esse documento não
trabalha especificamente acerca da violência contra a mulher, sendo
que a Convenção acabou por ficar omissa em relação a esse problema,
pois não abordou questões consideradas de “esfera da vida privada”
das mulheres. No entanto, isso acabou por impulsionar o Comitê
da CEDAW a firmar pela Recomendação Geral número 19, de
janeiro de 1992, para solucionar esse problema. Tal recomendação
“passou a considerar o ato de violência, cometido tanto na esfera
pública quanto na privada, uma maneira de discriminação contra
a mulher, prevista no artigo 1° da Convenção tratada” (SOUZA,
2009, p. 353).
Após apresentar, ainda que brevemente, um pouco
da história dos movimentos feministas, sobre o conceito de
interseccionalidade e também de tecer comentários acerca da
CEDAW, cumpre abordar sobre a relação entre esses. Desse modo,
é possível perceber o potencial da interseccionalidade enquanto
categoria na busca por formas de lidar com as barreiras enfrentadas
261
pelas mulheres negras quando se trata do seu acesso aos direitos

humanos.
Diante disso, ressalta-se a importância da interseccionalidade
para o direito, que, nas palavras de Kyrillos (2018, p. 255):
O primeiro critério para uma leitura interseccional é a
adoção de uma postura inclusiva e abrangente no momento
de interpretação das leis e dos tratados. Em outras palavras,
trata-se de dar a devida amplitude à expressões como ‘todas
as mulheres’ ou ‘todas as pessoas negras’ (...) é recorrente que
o compromisso assumido com grupos minoritários na esfera
dos direitos humanos seja elaborado e aplicado a partir da
perspectiva dos indivíduos mais privilegiados dentro desses
grupos (por exemplo, no movimento de mulheres as mais
privilegiadas são as mulheres brancas). Dessa forma, assumir
intencionalmente uma leitura que leva em cosideração a
discriminação interseccional e as vivências e especificidades
dos indivíduos menos privilegiados do grupo é uma forma de
ampliar o alcance da proteção legal do documento jurídico.
Assim, conforme a autora, adotar uma leitura interseccional
no campo jurídico possibilita que documentos que têm potencial de
serem lidos interseccionalmente – tais como a Convenção Sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher
– assim o sejam, o que assegura uma proteção jurídica contra
opressões e discriminações interseccionais, “sem que para isso seja
preciso a construção de uma nova legislação ou um novo tratado”
(KYRILLOS, 2018, p. 255). Se, conforme demonstrado nesta
pesquisa, a CEDAW é um importante documento internacional
de proteção dos direitos das mulheres, fazer uma leitura feminista
interseccional sobre ela se mostra fundamental para que todas as
mulheres possam alcançar os seus direitos.
Ao procurar atender o seu objetivo geral, essa pesquisa

buscou contribuir para os estudos das relações entre gênero, raça
e direitos humanos das mulheres. Sendo assim, buscou apresentar
262
uma análise da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas

de Discriminação Contra a Mulher, pois considerou que uma
análise interseccional pode contribuir para o acesso e fortalecimento
dos direitos humanos das mulheres.
Diante dessa análise foi possível concluir a importância de
sempre levar em conta as intersecções nos diálogos dos direitos
humanos. Tirar as pautas de gênero e raça da invisibilidade e analisá-
las sob uma perspectiva interseccional mostra-se fundamental para
que se possa abandonar análises simplistas e para que se rompa com
o discurso da universalidade que serve apenas para excluir.
Nesse sentido, esse capítulo abordou acerca da necessidade
de que haja uma análise de gênero e raça no campo jurídico, para
que assim todas as mulheres possam alcançar os seus direitos. Se
os direitos humanos são para todos, é necessário incluir e pensar
as intersecções como uma necessidade do direito. Nesse contexto,
a CEDAW se apresenta como um importante documento, de
âmbito internacional, de proteção dos direitos das mulheres. Essa
Convenção, combinada com a interseccionalidade, têm potencial
de auxiliar as mulheres a alcançarem todos os seus direitos.
Referências
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Carneiro; Polén Livros, 2019.
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HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (Org.). Pensamento
feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do
tempo, 2020.
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pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre, RS: Zouk,
2020.
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mulheres no Brasil a partir de uma análise interseccional
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das Mulheres – ONU Mulheres. (Sem data) Disponível em:
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23, p. 44-59, jul./dez. 2015.
Capítulo 14
Tecnologia e violência de gênero: tecendo espaço de

prevenção na internet

Considerações inicias
O presente capítulo abordará a respeito da importância

da tecnologia para a prevenção da violência contra a
mulher. O objetivo desta pesquisa é, portanto, demonstrar que
há uma perspectiva dentro da tecnologia e todos os seus meios
disponíveis, para a prevenir à violência contra as mulheres, além de
possibilitar também que estas se socorram por meio desta, caso a
violência esteja ocorrendo ou já tenha se concretizado.
Para isso, este estudo se subdividirá em três momentos,
sendo o primeiro dedicado contextualizar a história dos avanços
tecnológicos que permearam às Revoluções Industrias e as Grandes
Guerras, e que possibilitam ao mundo contemporâneo, desfrutar
do acesso a máquinas e ferramentas, como dispositivos e acesso à
internet.
Tão logo, em um segundo momento serão apresentados
alguns movimentos que surgiram ou se difundiram na internet em
prol das mulheres, como campanhas e ferramentas disponibilizadas
para a prestação de auxílio em caso de perigo, visando além de
informar realizar o acolhimento das mulheres. Rememora-se que
para algumas teóricas, hoje se vive a quarta onda do feminismo,
onde esta se dá principalmente através do uso das redes sociais.
Por fim, no terceiro momento do texto, será feito um recorte
em relação à violência doméstica e os meios disponibilizados para
sua prevenção desde o início da pandemia ocasionada pelo novo
266
Coronavírus, a COVID-19. Aqui, serão apresentadas campanhas

realizadas para conscientização, incentivo a denúncias, formas
alternativas de realizar as denúncias, por apps, sites, números
disponibilizados por Órgãos que compõe a Segurança Pública, e
até mesmo, por meio das próprias campanhas.
Denota-se que a problemática se evidencia justamente na
violência sofrida e enfrentada pelas mulheres, ao ponto que seja
necessário a criação e desenvolvimento de tantos movimentos
como campanhas de conscientização e prevenção, além de diversos
meios que possibilitem a realização de denúncias.
Outrossim, justifica-se a importância do tema ao passo que,
estas medidas estão cada vez mais presentes no contexto atual, e
auxiliam preventivamente a possíveis violências sofridas, além de
possibilitarem a efetivação de denúncias de formas alternativas.
A pesquisa realizada para o desenvolvimento do presente
estudo, é bibliográfica, com o objetivo de reunir conteúdos que
servirão de base para a construção da investigação proposta, a
partir da temática abordada. O levantamento bibliográfico, por sua
vez, foi realizado a partir da análise de livros, artigos, documentos
monográficos, periódicos, textos disponíveis em meios eletrônicos,
entre outros locais que apresentam um conteúdo documentado.
Repertório histórico das evoluções tecnológicas
Neste primeiro momento, será abordado acerca de

momentos históricos que foram fundamentais para a Revolução
Tecnológica que se vive hoje, na contemporaneidade. Serão
realizadas ponderações sobre as contribuições de grandes marcos
históricos, como foram as Revoluções Industriais e as Grandes
Guerras.
Dito isso, a respeito da 1ª Revolução Industrial é possível
elucidar que esta ocorreu “[...] pouco antes dos últimos trinta anos
do século XVIII, se caracteriza pelo advento de novas tecnologias,
como a máquina a vapor e a substituição de ferramentas manuais
267
por máquinas.” (SILVA, 2011, p. 130).

Ainda acerca desta:
O processo de industrialização acelerada ao final do século
XVIII, que conhecemos como Revolução Industrial, embora
tenha ocorrido de modo modesto em outras regiões da
Europa, só teria impacto global a partir da industrialização
britânica. O desenvolvimento de um novo sistema econômico,
o capitalismo industrial, adaptado aos mercados nacionais e
mundiais, marca o final da Idade Moderna. Na dianteira
deste processo, a Inglaterra tornase a potência econômica
hegemônica no mundo. A “oficina do mundo” exportou
não apenas produtos e bens de consumo, mas também
tecnologia, mão de obra qualificada e engenheiros, que se
espalharam por todo o continente para replicar em zonas
atrasadas a magia do progresso. (ARAUJO, 2016, p.79, grifo
nosso).
Verifica-se então que a Primeira Revolução Industrial foi
pioneira no desenvolvimento de novas tecnologias, trazendo as
mais diversas inovações para seu tempo. Servindo como base não
só para a sua sucessora, a qual logo será trazida, mas também, para
diversos outros avanços que ocorrem até os dias atuais.
Logo, é possível entrar em um segundo momento da
história, assim sendo, “Em meados do século XIX, teriam início
consideráveis modificações no sistema produtivo que levariam
o processo industrial a uma nova fase, a chamada 2ª Revolução
Industrial.” (ARAUJO, 2016, p.81).
Em relação a esta, considera-se “[...] a Segunda Revolução
Industrial, cerca de cem anos depois, se caracteriza pelo
desenvolvimento da eletricidade, da fundição de aço, pelo início
das tecnologias de comunicação, difusão do telégrafo e invenção do
telefone.” (SILVA, 2011, p. 130).
Verifica-se então, que nesse período já era possível falar da
tecnologia, de forma um pouco mais semelhante da que se tem
hoje. Assim sendo, acerca de algumas inovações deste tempo, é
possível observar:
268
[...] A produção industrial é impulsionada por uma nova fase

de experimentos e invenções, estimulando a criação de novos
setores produtivos [...] marcando a nova fase do processo de
industrialização, agora realizada também em outros continentes
para além do europeu.Fundido, o ferro converte-se em aço,
resultando na criação da importante indústria siderúrgica que,
juntamente com as indústrias automobilística e química, são
os grandes símbolos destes novos rumos da chamada “Era do
Capital”. Novas fontes de energia são adotadas, como a elétrica
e a hidráulica (associada à elétrica), e o petróleo gradualmente
torna-se essencial para as economias. Já no último quarto do
século XIX, lâmpadas elétricas eram utilizadas na iluminação
e os transportes barateavam o frete marítimo e os caminhos
de ferro carregavam toneladas de produtos.Eram os tempos
da metralhadora, do telégrafo, da máquina de costura, da
nitroglicerina, do telefone, do alumínio, do pneu de borracha
vulcanizada, do raio X, dos corantes sintéticos, do revólver,
do bonde elétrico, da dinamite etc. Avanços no campo da
medicina e da higiene, a chamada revolução médico-sanitária,
reduziram as taxas de mortalidade, enquanto no campo as
melhorias técnicas introduzidas na agricultura aumentaram
a produtividade, resultando em maior oferta de alimentos
para as cidades industriais.As empresas, percebendo a
importância da incorporação de forma regular destas novas
tecnologias para aprimorar seus produtos e lucros, passaram
a investir em pesquisas científicas. Mas, ao mesmo tempo, a
incorporação destas inovações técnicas tornam os produtos
cada vez mais caros. (ARAUJO, 2016, p.82, grifo nosso).
Nessa perspectiva, frente a estas revoluções, o autor
Silva (2011, p.130) considera que, “Ambas foram revoluções de
fato porque promoveram um aumento repentino de aplicações
tecnológicas que transformaram os processos de produção e de
distribuição, deixando-os ao alcance dos países e das elites capazes
de comandar esse novo sistema tecnológico”.
Outrossim, denota-se que outro período essencial para o
avanço da tecnologia, foram as Grandes Guerras. Assim sendo, na
Primeira Guerra Mundial, ocorrida entre os anos de 1914 e 1918,
os Países visando saírem vitoriosos da Grande Guerra, entendiam
que era necessário investir em tecnologias avançadas para derrotar
seus oponentes.
269
Nesse viés, “Durante a Primeira Guerra Mundial, a telefonia

e o telégrafo vieram prestar uma contribuição significativa para as
comunicações dos exércitos, sem que, no entanto, acarretassem
alterações sensíveis na estrutura e no funcionamento do estado-
maior.” (Amarante, 2012,p.247).
Verifica-se então que em decorrência das Guerras, foi
surgindo a necessidade de inovar e investir cada vez mais na
comunicação e também em outros campos. Logo, Amarante (2012,
p.255) conclui que, “Na Primeira Guerra Mundial, um importante
avanço tecnológico se fez sentir.”.
Nessa senda, instaura-se a Segunda Guerra Mundial a qual
ocorreu entre 1939 a 1945, menciona-se o aparecimento de mais
tecnologias, sendo:
Na Segunda Guerra Mundial, a radiofonia trouxe reflexos
profundos às comunicações, aumentando a distância e o
número de pessoas atingidas pela difusão da informação e das
ordens. Esses avanços ensejaram uma descentralização maior
da estrutura de comando sem, contudo, acarretar em perda
de controle do fluxo de ordens. (AMARANTE, 2012,p.254).
Ademais, cabe ressaltar que “O avanço tecnológico se
deve principalmente àquela que é considerada a mãe de todas as
tecnologias, a Segunda Guerra Mundial.” (SILVA, 2011, p.131).
Outrossim, no período pós-guerra, é possível observar que:
Logo após a Segunda Guerra Mundial, foi criado o primeiro
computador programável e o transistor, o qual possibilitava
o processamento de impulsos elétricos em velocidade rápida e
em modo binário de interrupção, permitindo a comunicação
entre as máquinas, sendo possível a partir daí, processar as
informações de qualquer lugar.(Silva, 2011, p.130-131, grifo
nosso).
Neste momento, pondera-se acerca da Revolução Científico-
Tecnológica, também denominada de Terceira Revolução Industrial,
“A Revolução Científico-Tecnológica, que ocorreu principalmente
na década de 1970, e não parou mais, fez com que houvesse um
grande desenvolvimento em diversos campos [...]” (SILVA, 2011,
p.130).
270
Dentro do campo jurídico, Silva (2011, p.130) destaca

“[...] no Direito [...] passou a determinar normas para regular as
novidades tecnológicas utilizadas na transmissão de informações.”
Esta por sua vez, se difere de suas antecessoras, ao passo que:
A atual revolução da tecnologia da informação difere das
suas antecessoras na medida em que é mais abrangente, pois
se difundiu no globo em grande velocidade, entre meados
de 1970 e 1990, através da aplicação imediata do próprio
desenvolvimento da tecnologia gerada, conectando o mundo
[...] (SILVA, 2011, p. 130).
Esta ocorre em um momento onde já há mais noção em
relação a comunicação e tecnologia, outro ponto a ser levado em
conta é que o período em que esta ocorre, não é mais em um
momento conturbado da história, como as Revoluções que a
antecedem.
Outro grande marco foi o surgimento da internet, que
segundo Silva (2011, p.131): “No final do século XX foi criada
a internet, com o objetivo de se transformar em um sistema de
comunicação invulnerável a ataques nucleares”. O que não se
esperava, porém, é que esta inovação tomaria às proporções que
atingiram hoje.
Diante do abordado neste primeiro momento, foi possível
observar que, cada acontecimento contribuiu para todas as
ferramentas que podem ser desfrutadas hoje e que são de fácil acesso,
bem como estão sempre ao alcance de seus usuários. Denota-se que
sem todos esses acontecimentos, não seria possível chegar a esta
realidade.
A importância da tecnologia inserida no campo da prevenção
a violência doméstica, a qual será tratada no próximo tópico desta
pesquisa, está justamente na facilidade que esta pode possibilitar às
vítimas tanto para conseguir se comunicar, quanto para a realização
das denúncias.
271
Movimentos difundidos na internet
Neste segundo momento da pesquisa, serão abordados

movimentos que foram difundidos na internet, como campanhas,
e ferramentas que visam proporcionar às mulheres mais segurança
nos ambientes de seu cotidiano.
Nesse ínterim, as redes sociais têm se mostrado cada vez
mais importantes para o enfrentamento às violências enfrentadas
por mulheres em seu cotidiano. Exemplo disso foram algumas
campanhas trazidas pelo coletivo feminista Think Olga.
Think Olga é uma Organização Não Governamental
(ONG) criada em 2013 e que ao longo dos anos vem auxiliando as
mulheres e outras minorias sociais em sua emancipação por meio de
diversas campanhas, com ênfase na prevenção ao assédio e realização
de pesquisas, além da divulgação de materiais informativos.
Logo em seu ano de criação, em 2013, o coletivo lançou a
campanha chega de fiufiu que foi uma campanha contra o assédio
sexual em locais públicos, que se iniciou por meio das redes socias,
e logo após, em 2014 acabou acarretando no desenvolvimento de
uma ferramenta para a prevenção ao assédio sexual. Conforme
explicam Bulhões; Viveiros; Vasconcelos (2020, p. 07) o mapa
chega de fiu fiu é uma“[...] ferramenta online para mapeamento
de assédios em todo o Brasil, o Chega de fiu fiu, que permite a
mulheres relatarem o acontecimento e marcar no mapa o local
onde ele ocorreu.”
Um ano após, em 2015 o Think Olga, lançou a campanha
#PrimeiroAssédio no Twitter, em apoio a uma menina que foi vítima
de assédio aos 12 anos durante sua participação em um reality show.
Ainda neste ano, o Coletivo lançou a campanha manda prints que
tinha como objetivo conscientizar mulheres sobre o assédio on-line,
bem como auxiliá-las em como realizar denúncias na internet.
Em 2018 o coletivo em parceria com o facebook, lançou
a plataforma conexões que salvam, onde é possível acessar a
informações sobre segurança online, como realizar denúncias de
272
violências sofridas na internet, dentro desta também é possível fazer

contato com a ISA.bot, que conforme o Think Olga (ano, p. 2)
“A ISA.bot é uma ferramenta de acolhimento e informações, que
oferece respostas e orientações rápidas para mulheres que sofreram
violência doméstica ou online.”
Ademais, é possível observar conforme Bulhões, Viveiros e
Vasconcelos (2020, p. 07) que,
[...] esses movimentos desencadearam o surgimento de
diversos aplicativos (Sai Pra Lá, Assédio Zero, SOS Mulher,
Salve Maria, Me Respeita, Mete a Colher, entre outros),
voltados para o registro, apoio, socorro e denúncia de violência
ou assédio sexual nos espaços públicos e privados.
Outra iniciativa que que acabou crescendo na internet foi a
campanha Não é Não, que iniciou no ano de 2017, mas que só nas
vésperas do carnaval de 2019 se popularizou no ambiente virtual.
Conforme relata Salvaterra (2019) a iniciativa surge através de
um coletivo feminista também, que após um episódio de assédio,
procura arrecadar fundos para a distribuição de tatuagens durante
o carnaval com a escrita não é não, esta por sua vez, inicia de forma
simbólica.
Entretanto, uma das mulheres a qual foi oferecida a
tatuagem, no carnaval de 2017, se interessou pelo projeto, entrando
em contato com as criadoras, e sugeriu uma parceria para financiar
os adesivos e ampliar ainda mais a campanha no ano de 2018.
Neste momento a campanha ganhou as redes, causando maiores
repercussões e atingindo um público ainda mais amplo.
Logo, para o carnaval do ano de 2019, surgiu a iniciativa de
criar, através de uma plataforma on-line1, uma maneira de arrecadar
fundos para que a campanha chegue a ainda mais mulheres.
1 Pode ser acessado em: https://benfeitoria.com/canal/naoenao

273
Figura 1 - Campanha Não é Não2
Fonte: Floriano Salvaterra in Arte Cult
Conforme exposto acima, uma imagem ilustrativa das

tatuagens adesivas distribuídas no carnaval dos anos de 2017, 2018
e 2019 por intermédio da campanha Não é Não. Que por meio da
divulgação nas redes sociais atingiu as proporções de hoje. Ressalta-
se ainda, que esta campanha foi essencial para contribuir com a
prevenção de crimes de importunação sexual nas festas carnavalescas.
Inovações durante a pandemia
É sabido que a pandemia ocasionada pelo novo Coronavírus,

o COVID-19 trouxe diversas consequências maléficas para a
sociedade, que perpassam o adoecimento decorrente ao contágio
da patologia. Problemas já existentes, se agravaram e ficaram ainda
mais visíveis pela tensão e pela crise que assola o país desde a
chegada do vírus ao Estado Brasileiro.
Ao par disso, as minorias sociais, foram as mais afetadas
2 Imagem ilustrativa das tatuagens realizadas pelas idealizadoras da campanha durante
os carnavais de 2017, 2018 e 2019. Acesso em: http://artecult.com/wp-content/
uploads/2019/02/nao-e-nao-3-500x338.jpg in http://artecult.com/dani-freitas-
campanha-nao-e-nao/
274
quando o assunto é violência. Sendo assim, a presente seção

abordará medidas tomadas pelo Estado e também pelo setor
privado para auxiliar no combate, na prevenção e na denúncia de
violências sofridas durante o início do isolamento social, que após
um ano já foi bastante flexibilizado.
Dentre algumas medidas preexistentes ao período
pandêmico, está a delegacia on-line da Policia Civil, onde é possível
realizar o registro de ocorrências sem precisar se deslocar até as
dependências onde se encontra a delegacia. Durante a pandemia
esta possibilidade auxiliou não só as vítimas de violência, como
também, vítimas de outros abusos.
Outra medida já existente anterior a este período, é uma
função no app magalu, onde é possível que vítimas realizem
denúncias através de um botão oculto no app, ainda, de acordo
com Butcher (2020, p. 01) “O botão foi criado em março de
2019, mas desde o início da pandemia de Covid-19 os acessos à
funcionalidade no app do Magalu, que direciona para o Ligue 180,
cresceram 400%.” Diante a este dado, é nítido que esta medida tem
agregado muito a efetivação de denúncias.
De cunho semelhante foi o lançamento do app Direitos
Humanos Brasil, que segundo o Ministério da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos (2020, p. 01):
O Aplicativo permite a criação de denúncias de Direitos
Humanos. Podem ser realizadas denúncias de forma
identificada ou anônima. Cada denúncia recebe um número
de protocolo para acompanhamento em tempo real dos
andamentos. Será possível realização de denúncias por vídeo
chamada, e chat direito com um atendente devidamente
capacitado[...] Disponível para Android e iOS.
A campanha rompa o silêncio lançada pela Secretaria de
Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul em maio de
2020, tinha como objetivo incentivar a realização de denúncias.
De acordo com Moreira (2020, p.01) “A ação, com foco no
compartilhamento pelas redes sociais, busca difundir ao maior
número de pessoas possível os canais para denúncias anônimas, que
275
podem fazer a diferença para salvar a vida de mulheres vítimas de

agressões e abusos no Rio Grande do Sul.”
Esta consiste na divulgação e compartilhamento de cards3
e vídeos4 que tem como objetivo transmitir mensagens de apoio e
acolhimento, sendo estas fundamentais para as vítimas de violência
doméstica, bem como, informar como ela poderá efetuar denúncias
pelos meios informados, sendo números de telefone, WhatsApp, ou
sites que possibilitem este feito.
Importante ressaltar que houveram mais duas campanhas
lançadas após a mencionada anteriormente. Sendo estas, a
campanha Máscara Roxa e a campanha Sinal Vermelho, que possuem
uma dinâmica bem semelhante.
Acerca da campanha Máscara Roxa, denota-se que esta foi
lançada em junho de 2020 durante um evento on-line. Sendo sua
proposta muito simples, ela consiste na vítima, quando se deslocar
até uma farmácia que tenha o selo Farmácia Amiga das Mulheres,
solicitar ao atendente uma máscara roxa.
Após isso, o protocolo estabelecido pela campanha, conforme
a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência
Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Rio Grande Do
Sul (2020, p.01) “O profissional dirá que o produto está em falta e
pegará alguns dados para avisá-la quando chegar. Após, o atendente
da farmácia passará à Polícia Civil as informações coletadas, via
WhatsApp, para que o órgão tome as medidas necessárias”.
3 Card 190 – Emergência Brigada Militar. https://ssp.rs.gov.br/upload/
arquivos/202005/24165400-card-insta-cristine.jpg
Card 197 – Emergência Polícia Civil. https://ssp.rs.gov.br/upload/
arquivos/202005/24165438-card-insta-nadine.jpg
Card WhatsApp da Polícia Civil (51) 98444.0606. https://ssp.rs.gov.br/upload/
arquivos/202005/24165444-card-insta-tatiana.jpg
Card Disque-Denúncia 181. https://ssp.rs.gov.br/upload/
arquivos/202005/24165441-card-insta-heloisa.jpg
Card Denúncia Digital 181 - ssp.rs.gov.br/denuncia-digital. https://ssp.rs.gov.br/
upload/arquivos/202005/24165435-card-insta-natascha.jpg
Card Escuta Lilás 0800.541.0803. https://ssp.rs.gov.br/upload/
arquivos/202005/24165431-card-insta-isabele.jpg
4 https://ssp.rs.gov.br/upload/arquivos/202005/24164203-rompa-o-silencio-1.mp4 e
https://ssp.rs.gov.br/upload/arquivos/202005/24170759-rompa-o-silencio-2.mp4
276
Outrossim, a campanha Sinal Vermelho contra a violência

doméstica também lançada em junho de 2021, por intermédio
da internet, mediante parcerias de diversas instituições, tem uma
proposta similar a campanha Máscara Roxa, lançada um dia antes.
De acordo com a Agência CNJ de Notícias (2020, p. 01)“.O objetivo
é incentivar denúncias por meio de um símbolo: ao desenhar um
“X” na mão e exibi-lo ao farmacêutico ou ao atendente da farmácia,
a vítima poderá receber auxílio e acionar as autoridades.”
Logo após, dando seguimento ao encaminhamento da
denúncia, de acordo com Agência CNJ de Notícias (2020, p.
01) “Após a denúncia, os profissionais das farmácias seguem um
protocolo para comunicar a polícia e o acolhimento à vítima.”
Como última e mais recente medida tomada em prol do
combate da violência doméstica, tem-se um aplicativo desenvolvido
pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS),
lançado em março do ano de 2021. Este, de acordo com o MPRS
(2021, p.01) deverá funcionar mediante o cadastro de contatos de
confiança da vítima, o qual, no momento em que esta se encontrar
em perigo, receberão mensagens, e a localização da vítima.
Além disso, para garantir a maior segurança e
confidencialidade possível, a imagem deste app não será divulgada
ao público, sendo então somente apresentada às vítimas durante
a audiência. Esta modalidade, ainda se encontra em período de
testes pelo Ministério, onde inicialmente será utilizado por 10
promotores de justiça, para só após, ser amplamente utilizado pelos
demais interessados em aderir a esta modalidade.
Denota-se que o presente estudo atingiu os objetivos

estabelecidos pela proposta de pesquisa. Ficando aqui evidenciados
como as Revoluções Industrias e Grandes Guerras foram essenciais
para que hoje se tenha acesso, com mais agilidade, as informações
disponíveis na internet por meio de diversos dispositivos.
277
É notório também as contribuições que a internet vem

trazendo, se tornando um novo meio para difundir informações
e popularizar campanhas de prevenção e conscientização, que
cada vez mais, conforme o aqui exposto, vem buscando melhores
garantias de segurança para as mulheres, contra diversos tipos de
violência, seja violência doméstica, ou crimes como importunação
e ameaças.
Acerca das campanhas aqui expostas, denota-se que estas
exercem um papel fundamental visando melhores condições
para mulheres, no dia a dia, na internet, e também em datas
comemorativas populares que reúnem um grande público, onde
diversas situações desconfortáveis costumavam ocorrer, se caminha
para uma evolução, pois, a pouco tempo, entendia-se isso como uma
algo normal, hoje, no entanto, por intermédio de conscientização,
é sabido que importunar alguém, além de tudo, é um delito.
Ainda, durante a pandemia, onde diversas fragilidades do
Estado Brasileiro foram expostas, denota-se que houveram muitas
medidas de prevenção e incentivo a realização de denúncias,
possibilitando também, formas diferentes de realiza-las. Isso
ocorreu por intermédio de campanhas de prevenção contra a
violência doméstica, de incentivo a efetivação de denúncias, criação
e desenvolvimento de diversos apps.
Tudo isso só é possível, em decorrência do advento da
internet e desenvolvimento de diversos dispositivos que possibilitam
o compartilhamento de informações e difusão de movimentos
preventivos a violência de gênero. Assim, a presente pesquisa abre
lacunas a estudos futuros que tenham como tema a violência de
gênero e tecnologia.
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Liliane. Espaços público e privado na pandemia: a tecnologia
na proteção de grupos vulneráveis. Anais da 23ª Semana
de Mobilização Científica- SEMOC-Semana de Mobilização
Científica-Envelhecimento em tempos de pandemias, 2020.
Disponível em: http://ri.ucsal.br:8080/jspui/handle/prefix/3093.
Acesso em: 01. mar. 2021.
BUTCHER, Isabel. App Magalu: cresce em 400% o uso do
botão de denúncia de violência contra a mulher. Disponível
em:https://www.mobiletime.com.br/noticias/03/06/2020/app-
magalu-cresce-em-400-acesso-ao-botao-de-denuncia-de-violencia-
contra-a-mulher/. Acesso em: 03. mar. 2021.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça lança
campanha nacional para incentivar denúncia de violência
doméstica. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/justica-lanca-
campanha-nacional-para-incentivar-denuncia-de-violencia-
domestica/ Acesso em: 01 mar. 2021.
COORDENADORIA ESTADUAL DA MULHER EM
SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL.
Campanha Máscara Roxa. Disponível em: https://www.tjrs.
jus.br/novo/violencia-domestica/acoes-institucionais/campanha-
mascara-roxa/. Acesso em: 01 mar. 2021
MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS
DIREITOS HUMANOS. App Direitos Humanos Brasil.
Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/appsAcesso em: 05
mar. 2021.
279
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE

DO SUL. MPRS lança aplicativo próprio para ajudar
mulheres vítimas de violência a pedir ajuda. Disponível em:
https://www.mprs.mp.br/noticias/52554/. Acesso em: 10 mar.
2021.
MOREIRA, Carlos Ismael. SSP lança campanha para
incentivar denúncias de violência contra a mulher. Disponível
em: em:https://ssp.rs.gov.br/ssp-lanca-campanha-para-incentivar-
denuncias-de-violencia-contra-a-mulher. Acesso em: 03 mar.
2021.
SALVATERRA, Floriano. Campanha NÃO é NÃO!: Conheça
este Movimento que vai dar o que falar neste Carnaval e saiba
como apoiá-lo!. Disponível em:http://artecult.com/dani-freitas-
campanha-nao-e-nao/ Acesso em: 10 mar. 2021.
SILVA, Rodrigo Luiz de Souza e.O direito na tecnologia da
informação in Revista Resgates / Colégio Stockler. nº 1. São
Paulo - SP. Disponível em: http://stockler.com.br/wp-content/
uploads/2014/07/revista_resgates_2011_colegio_stockler.pdf.
THINK OLGA. Tudo sobre a Think Olga. Disponível em:
https://thinkolga.com/quem-somos/. Acesso em: 03 mar. 2021.
SOBRE OS AUTORES
Adriane Bonatti: Acadêmica do Curso de Psicologia da

Universidade Regional e Integrada do Alto Uruguai e das Missões –
Campus Frederico Westphalen-RS (URI/FW) e bolsista voluntária
no projeto O que contam práticas discursivas de professores/as da
Educação Infantil sobre orientação sexual e identidade de gênero.
E-mail: adrianebonatt@gmail.com
Bianca Tito: Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo

e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas
(FDSM). Especialista em Direito de Família e das Sucessões pela
Universidade Anhanguera-Uniderp. Graduada em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Integrante do grupo de pesquisa vinculado ao CNPq “Direito e
Democracia”, do PPGD/FDSM. Advogada e Pesquisadora. E-mail:
biancaberaldo_tito@outlook.com
Bibiana de Paiva Terra: Mestra em Direito, com ênfase em

Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito
do Sul de Minas (FDSM). Graduada em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (Puc Minas). Integrante
dos grupos de pesquisa do CNPq “Direito Internacional Crítico”
e “Razão Crítica e Justiça Penal”. Jovem pesquisadora no Grupo
de Trabalho “Meninas e Mulheres” da Cátedra Jean Monnet.
Advogada e Pesquisadora. E-mail: bibianaterra@yahoo.com
Carin Otilia Kaefer Lisboa: Assistente Social, Especialista em

Gerontologia Social e Mestra em Serviço Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social
pela mesma instituição e bolsista do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). E-mail:
otiliakaefer@gmail.com
282
Eliane Cadoná: Doutora em Psicologia e Mestre em Psicologia

Social (PUCRS). Especialista em Psicologia Clínica Ampliada
e graduada em Psicologia e em Ciências Biológicas (URI -
Campus de Frederico Westphalen). Professora da URI/FW e atual
Coordenadora do Curso de Psicologia desta mesma Universidade.
Professora do Programa de Pós-Graduação - stricto sensu - em
Educação URI/FW, atuando na linha de pesquisa Processos
Educativos, Linguagens e Tecnologias. Líder e integrante do
Grupo de Pesquisa em Psicologia da URI - Campus de Frederico
Westphalen, com pesquisa no âmbito das Políticas Públicas,
Saúde e Produção de Subjetividade em Contextos Institucionais.
Integra ainda o Grupo de Pesquisa em Docência, Emancipação e
Direito Educativo, na linha de pesquisa Direitos Humanos, Ética
e Educação, fazendo parte da Rede Iberoamericana de Estudos em
Docência, Emancipação e Direito Educativo. E-mail: eliane@uri.
edu.br
Elizabeth Fontoura Dorneles: Possui graduação em Licenciatura

Plena em Letras pela Associação de Professores de Cruz Alta
(1977), mestrado em Letras pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (1999) e doutorado em Letras pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (2005). Atualmente é professora
da Universidade de Cruz Alta, no PPG Práticas Socioculturais e
Desenvolvimento Social. Tem experiência na área de Letras, com
ênfase em Teorias do Texto e do Discurso, atuando principalmente
nos seguintes temas: discurso, história, identidade, língua e
literatura, cultura, política e movimentos sociais. Membro dos
Grupos de pesquisa GEPELC - Grupo de Estudos, Pesquisa e
Extensão em Linguagem e Comunicação (UNICRUZ), Grupo de
Pesquisa Jurídica em Direitos Humanos, Cidadania e Democracia
(GPJUR/UNICRUZ), e do Grupo Oficinas de AD: conceitos em
movimento (UFRGS). E-mail: edorneles@unicruz.edu.br
283
Estéfani Barbosa de Oliveira Medeiros: Psicóloga e Psicoterapeuta

– CRP 07/32117. Graduada na URI/FW. Pós-graduanda no
Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) na URI/
FW na linha de pesquisa Políticas Públicas da Educação. Bolsista
CAPES. E-mail: psiestefani.medeiros@gmail.com
Fabrício Aquino da Silva: Acadêmico do curso de Direito pela

Instituição de Ensino Universidade de Cruz Alta - UNICRUZ.
Técnico em Informática pelo Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia Farroupilha campus Júlio de Castilhos.
E-mail: faquino016@gmail.com
Isadora Marques Simões. Advogada. Formada pela FDSM no ano

de 2020. e-mail: msisadora@hotmail.com
Isadora Nogueira Lopes: Acadêmica do curso de Direito pela

Instituição de Ensino Universidade de Cruz Alta - UNICRUZ.
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Jurídica em Cidadania,
Democracia e Direitos Humanos – GPJUR. Bolsista de iniciação
científica. E-mail: isadora_nlopes@hotmail.com
Júlia da Silva Mendes: Graduada em Direito pela Universidade

José do Rosário Vellano. Mestra em Direito, pela Faculdade de
Direito do Sul de Minas.
Letícia Maria de Maia Resende: Mestranda em Direito na área

de concentração Constitucionalismo e Democracia, com foco na
linha de pesquisa Relações Sociais e Democracia, pela Faculdade
de Direito do Sul de Minas (PPGD/FDSM). Pós-graduanda em
Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC MINAS). Graduada em Direito pela Faculdade
de Direito do Sul de Minas (FDSM). Integrante dos grupos
de pesquisa Direito Internacional Crítico (GPDIC/FDSM) e
Democracia, Constituição e Estado (GPDCE/FDSM). Advogada.
E-mail: lemaia2003@yahoo.com.br
284
Maria Eduarda Brendler Nosvitz: Assistente Social pela

Universidade Franciscana (UFN). Especialista em Estudos de
Gênero pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e
Mestranda em Ciências Sociais pela mesma instituição. E-mail:
maria.nosvitz@gmail.com
Mariana Lopes Diegues: Advogada. Formada pela FDSM no ano

de 2020. e-mail: maridiegues@hotmail.com
Nariel Diotto: Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-

Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado da Universidade de
Santa Cruz do Sul - UNISC, Conceito Capes 5, na Linha de Pesquisa
Diversidade e Políticas Públicas, com Bolsa CAPES modalidade
II. Mestra em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social
pela Universidade de Cruz Alta (PPGPSDS / UNICRUZ), com
pesquisa intitulada “A Advocacia Feminista e a humanização da
prática jurídica”. Cursa Especialização em Ensino da Filosofia, na
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e Pós-Graduação em
Direito Civil e Processo Civil, pela Faculdade Legale. Especialista
em Direito Constitucional pela Faculdade Cidade Verde (2018).
Bacharela em Direito pela Universidade de Cruz Alta (2012-2016).
Organizadora da coleção “Estudos de Gênero e Feminismos na
Sociedade Contemporânea”; (volumes I e II). Advogada. Estuda
os seguintes temas: Gênero, Feminismo, Democracia, Direitos
Humanos. E-mail: nariel.diotto@gmail.com
Náthaly Zanoni Luza: Pós-graduanda em Saúde Coletiva pela

Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI), Psicóloga pela
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões
(URI-FW) e atuou como bolsista PIIC/CNPq de 2017 a 2021
nos grupos de pesquisa em Psicologia e Docência, Emancipação e
Direito Educativo. E-mail: nathalyzanoniluzapsi@gmail.com
Raquel Buzatti Souto: Bacharel em Direito pela UNICRUZ.

Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela UNIFRA.
Mestre em Desenvolvimento, linha de pesquisa Direito,
285
Cidadania e Desenvolvimento pela UNIJUI. Advogada. Professora

Universitária. Coordenadora do Núcleo de Práticas Jurídicas - NPJ
e do Balcão do Consumidor da UNICRUZ. Líder do GPJUR -
Grupo de Pesquisa Jurídica do Curso de Direito da UNICRUZ.
E-mail: rsouto@unicruz.edu.br
Roana Funke Goularte: Mestranda em Práticas Socioculturais e

Desenvolvimento Social na Universidade de Cruz Alta (PPGPSDS/
UNICRUZ). Membro discente do Grupo de Pesquisa Jurídica
em Cidadania, Democracia e Direitos Humanos da Universidade
de Cruz Alta (GPJur/UNICRUZ), Grupo de Estudos, Pesquisa
e Extensão em Linguagens e Comunicação da Universidade de
Cruz Alta (GEPELC/UNICRUZ) e do Grupo de Pesquisa Razão
Crítica e Justiça Penal da Faculdade de Direito do Sul de Minas.
Bacharel em Direito pela Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ).
Advogada. E-mail: roana.goularte@sou.unicruz.edu.br
Roberta Casarin Peruzzolo: Acadêmica do Curso de Psicologia

URI/FW e bolsista de Iniciação científica no projeto Práticas
discursivas e produção de sentidos sobre Gênero e Saúde no Ensino
Médio: Percepções Docentes. E-mail: robertacperuzzolo@gmail.
com
Thamiris Cristina Rebelato: Mestranda em Direito Constitucional

e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pós-
graduada “Lato Sensu” em Direito Material e Processo do Trabalho
pela Universidade Estácio de Sá, Advogada.
Tiago Anderson Brutti: Doutor em Educação nas Ciências -

Filosofia pela UNIJUÍ; pós-doutor em Filosofia pela UNIOESTE;
mestre em Educação nas Ciências - Direito UNIJUÍ; bacharel
em Filosofia pela UNIJUÍ; bacharel em Direito pelo IESASA;
especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela
UNICRUZ; atua como professor, pesquisador e extensionista na
UNICRUZ, particularmente no Curso de Direito e no Programa
de Pós-Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento
286
Social – Mestrado. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Jurídica

em Direitos Humanos, Cidadania e Democracia (GPJUR/
UNICRUZ). E-mail: tbrutti@unicruz.edu.br
Wendell Antônio R. de Andrade: Mestrando em

Constitucionalismo e Democracia pelo Programa de Pós-
Graduação da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Bacharel em
Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, Bacharel em
Administração pela Universidade do Vale do Sapucaí, advogado,
pesquisador vinculado ao CNPQ.
Willian Edson Tomasi: Acadêmico do Curso de Psicologia URI/

FW e bolsista de iniciação científica no projeto O que contam
práticas discursivas de professores/as da Educação Infantil
sobre orientação sexual e identidade de gênero. E-mail: willian.
tomasi97@gmail.com
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Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas: November 2021

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Diálogos de gênero: perspectivas contemporâneas

Book · November 2021

Nariel Diotto Roana Goularte

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Pesquisa e sociedade: linguagens e práticas contemporâneas View project

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Editor-Chefe: Fábio César Junges

Drª. Adriana Maria Andreis UFFS, Chapecó, SC, Brasil

Este livro foi avaliado e aprovado por pareceristas ad hoc.

Como podemos garantir que esse padrão histórico se rompa?

O terreno das desigualdades de gênero é árido e percorre

assegurados, menos mulheres tiveram suas vozes tomadas diante

3 UNICEF. A Familiar Face: Violence in the lives of Children and Adolescents.

Feminismo e das teorias que o cercam.

5 “Homens privilegiados foram os geradores do liberalismo e de sua ontologia

questionados, talvez esteja posto à atual geração um dos momentos

8 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de

O feminismo não pode e não deve ter pretensão de

Estela Cristina Vieira de Siqueira

A ideia de organizar este livro, “Diálogos de Gênero:

dão as práticas docentes diante do tema. A pertinência do assunto

por transgêneros e transexuais e a colisão de direitos fundamentais.

de literatura e pesquisa documental sobre a violência contra as

Thamiris Cristina Rebelato. O presente artigo tem como objetivo

conquistar não apenas um ambiente acadêmico mais igualitário

Compreensões sobre questões de gênero na Educação

O presente trabalho surgiu do anseio de seus escritores

1 Entende-se como Educação Infantil a primeira etapa da educação básica Brasileira,

como filtro os últimos 10 anos (2011-2021) em todas as plataformas

desenvolver ao longo das etapas da Educação Básica. O objetivo

2 Para o documento competência é entendida como a mobilização de conhecimentos,

construir conhecimento, produzir cultura, aprender regras sociais,

O cuidado generificado: a quem cabe ensinar na Educação

Embora as discussões atreladas a temática proposta pelo

al., 2015; CIRIBELLI; RASERA, 2019; BATISTA; NAKAYAMA,

extremamente baixa. De acordo com a última Sinopse Estatística

acadêmicos e dois egressos3 do curso Pedagogia com idades entre

3 Inicialmente, as autoras pretendiam fazer a coleta de dados com professores homens

Práticas discursivas e comportamentos versus criança assexuada

Como categoria de análise percebeu-se que, dos oito artigos

de frases que induzem o pensamento da polaridade, em que meninos

cultural e social (WEEKS, 2000; LOURO, 2007; LOURO, 2008).

influenciadas por concepções de gênero (CIRIBELLI; RASERA,

Desta maneira, é necessário que haja uma visão pluralista,

O (des)preparo e (des)amparo técnico do/a docente: enfrentando

Na presente categoria de análise, percebeu-se que em seis dos

o primeiro convívio social mais amplo das crianças, viabilizando a

circunstâncias acerca daquilo que acontece na vida dos sujeitos

pelos/as educadores de modo a desmistificar os desconhecimentos

Percebeu-se através da análise da BNCC que apesar de

vivências e práticas cotidianas no contexto escolar. Ainda, a

ANJOS, Cleriston Izidro dos; OLIVEIRA, Djenane Martins;

Curricular. Brasília, 2018. Disponível em: *BNCC_EI_

v. 7, n. 4, p. 90-108, jan. 2016.

das afinidades políticas às tensões teórico-metodológicas.

SILVA, Tomaz. Tadeu da. A produção social da identidade e

Gênero e saúde no Ensino Médio: os desafios da

Náthaly Zanoni Luza

E stes escritos estão articulados ao projeto de pesquisa

de Covid-19 que se estabeleceu em março de 2020, ocasionando

Ressaltamos que o grupo de leitura tinha como intuito