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MARIACONCEIÇÃOO'INCAO

GÉRARDR0Y
Este livro éuma excelente contribulç õ o 00
debate i ntertJi$<:ip lino r' o propósito. do
Jnlerve!lÇ6o de pe.quisadoré... ovtna
o~enJell(JÍs C:011IlO ilÔúoooclI'e., (is$$s.soteS
tlk.nicos ou pollti c;OI, o Soii$Jertll- sodoll • .
junto osetores popclores. Mais
titpec ifica.mante, Irafq-SEl aqui de quesiõo
da tronsFOfmoçõo de segmentos da
sociedade brasilêfro hisfoiicolMnle
dcrnlncdos ou ex.cluidos do cidodania em
cida d õos co nscientes de 5el1S diteít05 9-
cepexes de lutor pollíicomentepor el es.
lranl fQ rmaÇÕ.o que depende, ela mesmo,
do " op rendiza do do exercicio do
liberdode" no co tidia no de ssos
populações.

Pesquisadores experientes e proFundamente


comp ro metido s com nosso processo' de
mudon ço social, es o uío res portem do
an6lise de .sUO$ reJaç~, enquanto
pesquisadores, com UIn grupo de Famílios
que tiveram acesso à ferro nul'1l
assentamento rura l do Estad o de São
Paulo, paro colocar em uis ClJssõo o papel
dos agentes institucionais - do Estado, do
Igreja , de partidos políticos ele. - que
assessoram populaç.ões deste e de outros
programas decouentes de políticos
públicos ou soc ia is. Assim, 00 long o d e
uma narrativa plena de siruoções
significativas, Mario Concei ção O'lnco o e
Girard Roy diseelem, de um lodo, suas
próprios pr óticos, co nstruidos ti partir do
reconhecimento do Singularidade de ca da
umo dos pessoas do assentamento e do
direito dos mesmos à livre expressõo de
suas idéias . De ouho, interrogom o caróter
outorit ório dos próticas dos agentes
institucio no is, o ri entados que sõo por
concepç ôe s de sociedade obstreros ou
construídos de loro da realídade dos
NÓS, CIDADÃOS
Aprendendo e ensinando a democracia
Maria Conceição D'Incao
Gérard Roy

NÓS, CIDADÃOS
Aprendendo e ensinando
a democracia

ffi
PAZ E TERRA
CMaria Conceiçio D'lncao
Edifoo de fe:drJ: Ingrid Basflio
Revisoo: Olavo A. Brito
Prodllfoo gnifico: Klltia Halbe
Diagramafoo: Solange A. Causin e Samuel J. Leal
,
Capo: Cllludio Rosas

Dados Internacionais de Catalogaçao na Publicaçao (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil)
D'lncao, Maria Conceiçâo
N6s, cidadaos: autonomia e participaçâo popular
Maria Conceiçao D'lncao, Gérard Roy.
Rio de Janeiro: paz e Terra, 1995.

Bibliografia
1. Cidadania 2. Democracia 3. Liberdade
4. Participaçâo social. 5. Reforma agniria -Sao Paulo (Estado)
1. Roy, Gérard
II. TItulo

95-0913 CDD-302

fndices para catlllogo sistemlltico


1. Cidadania: Sociologia 302

EDITORA PAZ E TERRA S.A.


Rua do Triunfo, 177
01212 - Sâo Paulo - SP
Tel.: (011) 223-6522
Rua Dias Ferreira n." 417 - Loja Parte
22431-050 - Rio de Janeiro-RJ
Tel.: (021) 259-8946

1995
Impresso no Brasil / Prinfed in Brazi/
para de, para da, para des
"A verdadeira funçao do professor aproxima-se daquela do
profeta... Ele naD se considera excepcional porque sabe que
naD faz senao trazer à luz um potencial de ensinamento que
preexiste em cada um de nôs... Em verdade, ele naD apresenta
aos outros uma visao das coisas, mas sugere 0 meio de chegar a
uma co-visao que nascerâ desse encontro. Quando fala num
gru po, de encontra, e ele 0 sabe, certas pessoas: fora desse
tipo de relaçoes, naD hâ mais que um ajuntamento daqueles
que -nao podem senao escutar sem compreender... Uma das
principais funçOes do professor é destruir progressivamente a
ilusao dominante da impotência..."
(Cooper, David, Mort de la Famille)
Sumario

PREFÂCIO - Christian Geffray Il

INTRODUÇÂO: Cooperaçao, eficacia e liberdade nos


assentamentos de reforma agniria 23

PRIMElRA PARTE: A questao da autonomia pessoal no


encontro com 0 trabalhador e sua familia 41
1 - 0 companheirismo e 0 jogo da dominaçao 43
II - 0 trabalhador na associaçao de produtores 69
III - 0 trabalhador e sua familia no quotidiano
do assentamento 119

SEG UNDA PARTE: A questao da mediaçao do encontro


entre os trabalhadores e entre suas familias 173
IV- A festa junina: a virtualidade das relaçoes
democraticas 175
V- A partilha do maquinario: a possibilidade das
negociaçoes democraticas 205

CONCLUSÂO: Intervençao alienante e mediaçao


libertadora 253

NOTAS 269
BIBLIOGRAFIA 275
SOBRE OS AUTORES 279
Prefâcio

Christian Geffray·

"N6s estamos aqui sem outro projeto senao aquele de


conhecê-Ios (...) de escutâ-Ios e de falar com vocês (...) N6s
nao pertencemos a nenhuma Igreja e n6s nao falamos em
nome de nenhum partido ou de nenhuma doutrina ( rN6s
nao temos nenhuma certeza de poder Ihes ser uteis "
Foi nestes termos, entre outros, que os autores deste
livro anunciaram e explicaram 0 periodo de varios meses
que se preparavam para cumprir junto a trinta e nove fami-
lias curais pobres de um assentamento do Estado de Sao
Paulo. Nada a oferecer, portanto, a esses homens e mulhe-
res desprovidos, que vinham de conquistar juntos uma ter-
ra. Sem presentes e sem orientaçao pré-determinada, os
pesquisadores confessaram, ja de inicio, a incerteza e mes-
mo a eventual inutilidade de seus resultados. Pode-se supor
que os fins exatos de sua presença nao estavam claros, no
começo, aos olhos de seus primeiros interlocutores. Nao ha-

• Christian GefTlllY é. pesquisador da ORSTOM (L'Institut Français de


Recherche Scientifique pour le Developpement en Cooperation) e autor de
Ni plre"i mire - Crinque de 10 PO""" (Paris, Seui~ 1990), La Cotise des_es
ou Mozambique - A"r!tropologil d'u,,~ guerre civi/~ (Paris, Karthala/CREDU,
1990) e Les moilrts!tors la loi (paris, Karthala, no prelo).

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via, ademais, muita gente a escuta-los nesse dia, na assem-
bléia reunida para acolhê-los, se bem que toda a populaçao
do assentamento deveria ter sido convocada: cinco pessoas,
os notaveis militantes...
Entretanto, alguns meses mais tarde, por ocasiiio de
uma assembléia convocada pelos pesquisadores para apre-
sentar os primeiros resultados de seu trabalho, cerca de 120
pessoas se apertavam na escola para escuta-los. A quase to-
talidade da populaçao do assentamento estava la, na hora
marcada (0 que era muito raro), as mulheres fazendo calar as
crianças, ou enviando-as a brincar fora, para melhor ouvir a
exposiçao dos soci610gos. Dm pouco mais tarde, 0 vice-pre-
sidente da associaçao dos camponeses em luta se demitia de
seu cargo, e os membros dos diferentes grupos de produtores
se davam um "novo espaça de negociaçao", no quaI eles con-
seguiam debater pela primeira vez, corn rigor e circunspecçao,
democraticamente, 0 problema conflitual do uso coletivo das
maquinas... os pesquisadores, é evidente, nao estavam ali para
nada. Que se tinha passado entrementes?
Eles nao tinham feito nada mais, entretanto, do que 0
anunciado no primeiro dia: tinham falado, escutado e trava-
do conhecimento conversando. Eles estavam certamente
convencidos, desde 0 primeiro dia, de que uma parte dos
graves problemas do assentamento resultava do mau fun-
cionamento das modalidades coletivas de tomada de deci-
sao. Nem religiosos, nem militantes, nem técnicos e duvi-
dando mesmo da "objetividade cientifica", eles acreditavam
ao menos nas "possibilidades renovadoras das relaçoes de-
mocniticas, entendidas coma encontro de pessoas autôno-
mas, iguais no direito de se expressar livremente". Mas
coma teriam podido prever que os caminhos programados
para simplesmente compreender a razao do "déficit" demo-
cratico iriam contribuir espetacularmente para supri-lo (por
um tempo ao menos)? É toda essa a originalidade fascinan-
te desta pesquisa: apura observaçao exterior do problema a
resolver contribui para resolvê-lo do interior... Quando se

12
sabe, além disso, que 0 unico prindpio intanglvel dos auto-
res, aquele que orientou seus passos durante toda sua per-
manência no assentamento, e que eles se empenharam em
respeitar corn todo escrupulo, era precisamente a nao-inter-
vençao nos problemas da coletividade (nao atrapalhar 0 tra-
balho dos técnicos, naD subverter as hierarquias militantes es-
tabelecidas), ha al um paradoxo sobre 0 quai convém se deter.
Teria esta jovem mulher compreendido 0 sentido do
trabalho dos dois pesquisadores, quando um dia Ihes disse:
"Eu acho que a presença de vocês faz bem pra todo mundo
porque vocês naD estao interessados em julgar ninguém...
Vocês SaD pessoas que a gente conta os problemas e a gente
vê que vocês entendem... que sabem repartir, explicar e fa-
lar pra gente do problema da gente... Vocês naD dizem: olha,
eu vou tirar vocês dal. Vocês fazem a gente encarar a reali-
dade, levar a sério, assumir. Entao vocês, pra mim, estao até
na 1uta pra fazer a gente crescer..."
Julgar ninguém? Foi talvez al, corn efeito, que a pre-
sença dos pesquisadores introduziu qualquer coisa de deci-
sivo, no seio de uma populaçao onde cada um era, de prefe-
rência, propenso a julgar todo mundo, e a transferir aos
outros 0 peso de seus fracassos ou dificuldades. Os autores
escutaram, sem jamais reforçar, os julgamentos que uns fa-
ziam dos outros, quando os tomavam coma testemunhas
que deveriam dar seu assentimento ou sua cauçao, preferin-
do "interrogar" a coerência e as certezas de seus interlocu-
tores. Porque se cada um enunciava no seu discurso 0 signi-
ficado e 0 valor de sua pr6pria existência no assentamento,
ele estava, freqüentemente, também desejoso de invalidar,
de um s6 golpe, 0 sentido e 0 valor da existência dos outros,
vistos coma responsaveis pelas dificuldades da coletivida-
de... Tratava-se de polltica, de dinheiro, de comércio e de
agricultura, sem duvida, no desenrolar das conversaçoes,
mas tratava-se, da mesma maneira e corn 0 mesmo empe-
nho, de cozinha, de moral sexual, de religiao, de doenças,

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da dificuldade dos casais ou do futuro das crianças, ao acaso
das conversaçoes e das preocupaçOes de cada um.
Os autores naD julgavarn, portanto: "interrogavam" os
julgamentos. Assim fazendo, bem entendido e na medida
que conseguiam efetivamente entender outra coisa naquilo
que era dito, para além dos discursos de uns e de outros,
naD deixavam de ter suas pr6prias idéias. Para além das afir-
maçoes de alguns militantes, eles percebiam freqüente-
mente "a alienaçao a uma causa em detrimento do reconhe-
cimento de cada produtor associado". "Vencer a barreira de
um discurso construido sobre tais abstraçoes" foi, alias, 0
primeiro desafio dos pesquisadores, desejosos de "partir dos
homens tais coma eles eram" e de desvendar a singularida-
de de suas trajet6rias e de seus desejos... Etes se mantive-
ram, portanto, cuidadosamente à distância da "atmosfera fu-
sional do companheirismo" porque, para além da
camaradagem, parecia-lhes entender, às vezes, "a expressao
da cumplicidade e do oportunismo". 0 mesmo discurso mi-
litante naD podia se articular a um protesto de ajuda aos
incapazes e aos assistidos, e servir a um uso estritamente
convencional no exerdcio, tradicional, de uma "dominaçao
através de laços de favor e de servilismo" Quanto às ciosas
proclamaçoes do direito e do respeito à individualidade,
eles viam bem coma 0 proclamado podia revelar 0 desejo
de "usar as vantagens da coletividade sem assumir-lhes as
responsabilidades". A alienaçao e 0 oportunismo ressoavam
até nas palavras dos assistidos e na ret6rica das vitimas...
A distorçao entre os discursos e os motivos daqueles
que os proferem é coisa comum. Ela nao era aqui, em suma,
senao 0 efeito ordinario do ajuntamento de multiplos desti-
nos pessoais concretos no seio de uma empresa comum,
cuja legitimidade ou necessidade ninguém, é necessario su-
blinhar (nem os interessados nem os pesquisadores), colo-
cava em causa. A populaçao era globalmente desejosa de
bem-estar e de autonomia, tao apegada a sua existência co-
letiva como ao meio de suas ambiçoes. A ocupaçao solidaria

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da terra restava para todos como a chave de um destino so-
cial melhor. Mas ela estava também enferma da desconfian-
ça e do desprezo, e os pesquisadores entendiam nao encora-
jar esta compulsao cornum, onde cada um legitimava seu
comportamento condenando 0 dos outros. Eles estavam vi-
gilantes para nao serem levados pelo fluxo tumultuoso do que
chamavam "invalidaçOes circulares", vistas como deletéreas.
Mas, como essa invalidaçao das invalidaçâes, que eram no inl-
cio uma pura preocupaçao de método, terminou, sem que os
pesquisadores tivessem cientemente orquestrado, por romper
o drculo das "invalidaçâes circulares"? Como seus passos in-
troduziram, incidentemente, uma ruptura politien?
Sem duvida os autores possulam uma legitimidade e
uma autoridade prévias, sem as quais nada teria sido possi-
ve!. Universitarios experimentados, casai urbano, atentos
aos mfnimos problemas quotidianos de cada um e respeito-
sos dos mais modestos, eles encarnavam, provavelmente,
toda uma uma sorte de urbanidade cuita e sabia, tranqüili-
zadora e gratificante. Eles foram introduzidos no assenta-
mento pelos canais militantes e a direçao local lhes credita-
va um saber ou uma bagagem intelectuais, assim coma uma
experiência poHtica que impunha respeito. Mas eles conse-
guiram sem dificuldade ser percebidos coma distintos dessa
direçao, assim como de todos os organismos nela engajados.
Eles desfrutavam da credibilidade dos dirigentes sem poder
ser-Ihes assimilados, sempre manifestando reconhecimento
quotidiano dos dirigidos, através de uma escuta diligente
para a quai os dirigentes se revelavam, de sua parte, incapa-
zes. Eles tiveram, é certo, de convencer os dirigidos de que
os laços mantidos corn eles nao abriam acesso a nenhum
bem, serviço ou favor particulares, mas esses laços apare-
ciam, contudo, a seus interlocutores, como alguma coisa
preciosa, e engendravam em retorno uma palavra do mesmo
valor. Desfrutando de uma tal credibilidade dos dirigidos,
os pesquisadores teriam bem cedo podido, no limite, dar

15
liçao aos militantes sobre "0 povo", isto é, sobre sua pr6pria
razao social na coletividade...
Os dirigentes inclinavam-se assim a escutar os soci610-
gos e falar-Ihes, por seu turno, corn atençao e sinceridade? ..
Eles imaginavam confusamente, talvez, que os pesquisado-
res detinham um tesouro: uma verdade sobre "0 povo", a
quai todos os militantes temiam dever confessar um dia que
ignoravam. E, em todo caso, os autores puderam se prevale-
cer da credibilidade que cada um lhes emprestava junto aos
outros, mas sem jamais usa-la em proveito de uns ou de
outros, alimentando uma dinâmica original onde sua pre-
sença no seio da coletividade era tao mais poderosa quanta
mais se afirmava coma "neutra". E todos finalmente lhes
creditavam, em reflexo ao crédito dos outros, um saber pre-
cioso sobre eles mesmos e que lhes escapava. Face a todos,
os autores foram, muito cedo, supposés savoir sempre.
Esta posiçao de força surpreendente parece ter sido es-
pontaneamente cultivada e conduzida no decorrer da en-
quete, pela "interrogaçao" sistematica "dos discursos e das
certezas" de uns e de outros. 0 processo se desdobrava,
coma se vê, sobre um registro puramente imaginario: eram
as imagens de si dos membros dos diferentes grupos e de
suas lideranças que estavam colocadas em causa pelos pes-
quisadores. Mas, também, a imagem que uns faziam dos
outros e aquelas que eles teriam querido dar aos pesquisa-
dores; aquelas que os outros faziam de si mesmos e aquelas
que eles refletiam deles coma um espelho... E é necessario
reter que, nesse jogo de imagens, a imagem pr6pria dos
pesquisadores ocupava uma posiçao muito particular, tanta
des tinham se ocupado de nada deformar e de polir obsti-
nadamente a neutralidade de seu pr6prio olhar no decorrer
de sua presença no assentamento. Porque, ainda uma vez, a
narrativa é edificante: mais des se mantinham e se afirma-
vam fora do jogo, e mais eles entravam em realidade no
jogo: eles se fizeram assim 0 espelho fiel do jogo espontâ-
neo dos espelhos dos outros. De tal modo que acabaram por

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revelar, pela sua simples presença coma espelho dos espe-
Ihos, 0 carater vao do dispositivo imaginario inicial que eles
refletiam. Eles precipitaram a dissoluçao do dispositivo,
desconcertando a regra pela sua simples revelaçao, discreta
é certo, mas pratica... 0 livro é a narrativa, meticulosa e
apaixonante, dessa reflexao subversiva.
o efeito de ruptura da presença dos pesquisadores no
seio da coletividade manifestando-se de maneira a mais cla-
ra, e mais emocionante talvez, no momento da festa do as-
sentamento. La, pessoas hostis que nao nutriam até entao,
umas pelas outras, senao desprezo ou ressentimento, segui-
ram os passos dos autores (que tinham aberto 0 baile), e se
juntaram na quadrilha; elas puderam ver a si mesmas, dan-
çar junto em publico e se regozijar disso. E "esta animaçao",
confessam os autores, era assegurada por sua mediaçao...
Mas eles nao se contentaram em saborear 0 sucesso
convivial de uma noite de festa. Porque, deslocadas assim
as coordenadas da vida comum, eles puderam progredir so-
bre a questao maior, que os preocupava desde sua chegada
ao assentamento: "as condiçOes da aprendizagem do exercl-
cio da liberdade à quai aspiravam seus membros". Neste
ponto, a analise vai além de uma simples "fenomenologia
do militantismo e da intervençao", da quaI cada leitor reco-
nhecera ademais a salutar e imperiosa necessidade. A expe-
riência aqui relatada concerne a outra coisa que a subversao
e a reduçao dos conflitos conjunturais de uma coletividade
rural: seu aporte engaja também, coma vai se ver, uma certa
interpretaçao da historia e da atualidade do Brasil.
Reconhecendo a todos e fazendo-se reconhecer por to-
dos, os pesquisadores terminaram por se transformar no vetor
de um posslvel reconhecimento mutuo de todos. Isso foi 0
resultado de uma recusa met6dica e tâtica: a invalidaçao das
"invalidaçôes circulares". Mas, ao mesmo tempo, os pesquisa-
dores nao tinham provavelmente mais que um gesto a fazer
para se transformar, des mesmos, no vetor de uma mera reno-
vaçao do sentido da participaçao de cada um na coletividade:

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isto é, de um modo ou de outro, para tomar 0 poder. Repu-
tados depositarios de um saber precioso sobre a coletivida-
de, diante dela e à revelia dela mesma, eles tinham a seu alcan-
ce a poltrona de seu amo ou senhor (lefouteuil du moÎtre).
o passo suplementar dos autores parece ter consistido,
desde entao, numa segunda recusa met6dica, mas desta vez
de aporte estratégico: a recusa de sentar-se no fauteuil du
moÎtre. Em qualquer circunstância, corn efeito, eles manti-
nham do primeiro ao ultimo dia e invariavelmente 0 mesmo
rumo: politicamente e por sua conta eles nao iam resoluta-
mente a nenhum lugor. Eles tiveram 0 cuidado de nao se
deixar distrair pela visao de nenh um porto, 0 canto de ne-
nhuma sereia... 0 principal responsavel se demitia, a pala-
vra das outras lideranças se tomava fragil ou incerta, na pre-
sença deles, mas le fouteuil continuava vazio. Tudo isso por
nodo em qualquer sorte, mas este nodo, este nenhum lugor
em direçao do quaI os pesquisadores mantinham firmemen-
te 0 leme, e que seus interlocutores começaram entao a per-
ceber confusamente no oco do feuteuil, nao era isto precisa-
mente 0 lugar vazio da Lei modema?
É nesse sentido que 0 alcance da experiência ultrapas-
sa, pelo seu ensinamento, os limites do assentamento. Por-
que, sabe-se bem: quase nao existe fouteuil vazio no Brasil.
Ha quase sempre alguém, qualquer que seja sua causa e sua
integridade, honesto ou criminoso, "democrata" ou bandi-
do, padre ou revolucionario, ou tudo a uma s6 vez, pouco im-
porta, ha alguém para se assentar nele (lefouteuil). É ademais a
fatalidade e a definiçao do populismo; para além da trajet6ria
democratica, esta vetorizaçao pessoal da Lei resta coma uma
exigência, freqüentemente dolorosa, da vida politica até os
dias atuais. Nao esta ai 0 principio de legitimidade deste po-
der particular, que se qualifica por vezes de consmdtico?
A velha forma de dominaçao paternalista, da quaI os
autores remarcaram efeitos persistentes no comportamento
de seus interlocutores, e que prevalece ainda freqüente-
mente na vida econâmica latino-americana, acha talvez sua

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expressao mais espetacular no campo poHtico. a poder de
um dirigente populista (um paternalista de Estado) nao é
legltimo, corn efeito, senau na medida em que e1e demons-
tra sua capacidade de encarnar, à maneira de um pai, a Lei
junto àque1es que e1e dirige, e a se fazer 0 vetor de1a de tal
sorte que esses ultimos, dependentes e protegidos, nao Ihe
tenham acesso senao através de sua intermediaçao. A pre-
potência al é uma figura estrutucal, mesmo que fantasiada
pelos ornamentos jucldicos e fraseol6gicos da democracia.
ara, este prindpio de legitimidade é antagônico corn
aquele que preside 0 exerdcio do poder democnltico. A le-
gitimidade do poder de um dirigente democratico resulta
da demonstraçao de suas capacidades de se manter separa-
do da Lei, sua autoridade se exercendo em virtude da exis-
tência de uma Lei independente diante da quai todos, do-
minantes e dominados, SaD formalmente iguais. Le jouteuil
du maître Ihe esta interditado... É porque, de resto, 0 diri-
gente democratico aparece freqüentemente tao palido: 0
amor que 0 dominado Ihe aporta ou nao é indiferente ao
desabrochar de sua existência social de dominante. Em tro-
ca, a seduçao é consubstancial ao exerdcio da prepotência
paternalista, cuja autoridade é mais colorido, cordial, festiva
mas arbitraria e, se for 0 caso, feroz e sangrenta corn re1açao
aos rivais e aos dependentes ingratos. A autoridade do pa-
ternalista vetor da Lei procede do amor dos dominados - é
uma disposiçao mecânica... Se a Lei que ele pretende en-
carnar falhar, nenhuma outra Lei pode vir em seu auxflio
(salvo a tltulo de pretexto) e, menos ainda, em auxHio de sua
vltima... a maître nao tem entiio senao 0 recurso às armas.
A presença subversiva dos autores se fez portanto, nes-
te sentido, estratégica: e1es nao se sentaram no jouteuil. E,
ao menos enquanto estiveram presentes, ninguém estava
em condiçOes de fazê-Io em seu lugar, 0 que funcionava de
fato. Eles nao se fizeram simplesmente os catalizadores de
um reconhecimento mutuo e sem distinçao dos membros
do assentamento: e1evaram também uma barragem contra 0

19
refluxo fatal de uma herança paternalista, interditando de
fato 0 acesso ao poder pessoal... E foi enmo que 0 espaço do
reconhecimento mutuo pôde se realizar, transformando-se
em "espaço de negociaçao". Aquilo mesmo que os autores
desejavam na sua chegada ao assentamento, e que eles vi-
nham de promover, quase à revelia deles (sous nous). Assim,
vai-se 1er coma os problemas praticos que envenenavam a
vida da coletividade nesta época puderam ser resolvidos (0
uso das maquinas). Mas vai-se 1er também coma a dinâmica
espontânea dos conluios dos dependentes, os "comporta-
mentos sorrateiros" e a excomunhao para os pecados "con-
tra a causa" cederiam lugar à articulaçao de uma palavra
nova, eventualmente apaixonada, veemente, pouco impor-
ta, mas argumentativa e, portanto, igualitaria. A autonomia
de cada um, tao cara aos autores, foi conservada no sentido
nova atribuido, dessa maneira, a sua existência coletiva.
Nesse sentido, enfim, 0 livro se apresenta coma uma
reflexao sobre a liberdade. Os autores sublinham a existên-
cia e a força desta aspiraçao à autonomia, a obsessao de es-
capar do "cativeiro", no discurso de todos os produtores em
luta. Mas, ao mesmo tempo, 0 relato de sua experiência evi-
dencia os limites da realizaçao de um tal desejo, enquanto
as seqüelas da herança paternalista continuarem vivas e 0
espectro dos patroes habitar os espiritos... 0 relato disso
que os autores chamam de "processo de aprendizagem do
exerdcio da liberdade" demonstra, corn efeito, que a reali-
zaçao do desejo de autonomia se transforma em seu contra-
rio, enquanto a disposiçao populista (nao-igualitaria) na quai
esse desejo se exprime nao é destruida. 0 homem escravi-
zado que nao se satisfaz de ser dependente de um bom pa-
trtio, que aspira à liberdade, nao tem outra saida que tomar
o lugar do potrtio (maître) ou, coma dizem os autores, que se
"apropriar dos outros". A liberdade sem igualdade restitui a
servidao... Epode-se imaginar que existe qualquer igualda-
de senao diante da Lei? .. Enquanto alguma força nao tem
condiçoes de se apoderar desta Lei na pessoa dos maîtres,

20
de arranca-Ia de sua encarnaçao carismatica para instala-Ia
em nenhum lugar, no fauteuil vazio, a Lei ela mesma resta va
e naD engendra nenhuma igualdade: nem na administraçao,
nem no governo de Estado, nem nas empresas, fazendas... e
tampouco nos sindicatos, assentamentos, reservas extrati-
vistas ou Comunidades de Base da Igreja... E as profissoes
de fé igualitarias, jurfdicas, éticas, modernistas, como todas
as figuras impostas pela gestual democnitico contemporâ-
neo, nao têm talvez outra funçao real, muito freqüentemen-
te, que a de alimentar a ret6rica imaginaria e florida dos
paternalistas de Estado, dos demagogos, dos ingênuos ou
dos bandidos.
Os autores nao escondem a modéstia de sua experiên-
cia: "N6s sablamos que esse processo nao fazia senan come-
çar e que ele era fragil, podendo entrar em regressao desde
que uma mediaçao competente naD mais assegurasse a tran-
siçao que se esboçava"... Vislumbraram, dizem eles, as pri-
meiras balizas de um "caminho possfvel". Mas mostraram,
também por ai, que a democracia naD é uma simples dispo-
siçao jurîdica e constitucional e sim, essencialmente, um
laço social particular. E é difîcil subtrair-se, desde al, à ques-
tao que 0 relato e a inteligência desta pesquisa nos convi-
dam a colocar, numa outra escala: este "possfvel", pode ele
se atualizar local e duravelmente, antes que surja alguma
"mediaçao competente" asseguradora também da "transi-
çao" do Brasil? De maneira mais pragmâtica: quais forças
sociais san portadoras, no Brasil, de uma tal separaçao entre
a Lei e os dominantes, esta separaçao fundadora da igualda-
de e capaz de romper corn 0 regime populista da liberdade
nao-igualitaria, indefinidamente matriz da servidao?
Liberdade, igualdade... vê-se que 0 espirito das Luzes
nao terminou de soprar sobre 0 mundo, e que sua atualida-
de naD chega a se enunciar, ainda hoje, sem algum acento
revolucionario.

21
Introduçao
Cooperaçao, eficâcia e liberdade nos
assentamentos de reforma agrâria

o tema deste texto é a necessaria criaçao de relaçoes


sociais democraticas no seio de populaç5es contempladas
por programas de desenvolvimento oriundos de polfticas so-
ciais governamentais ou nao-governamentais. Populaçôes,
via de regra, socializadas em relaçoes de dominaçao as mais
perversas e, por isso mesmo, incapacitadas para a conquista
e 0 exerdcio dos direitos da cidadania. Ao aborda-Io, pani-
mos do pressuposto de que, no dia-a-dia dessas populaçoes,
as pessoas tendem a reproduzir as mencionadas relaçoes de
dominaçao, isto é, a naD se comportar coma cidadas umas
em relaçao às outras. E consideramos essa circunstância
desfavoravel ao desenvolvimento dessas populaçoes, em ra-
zao de suas prôprias condiç6es de existência social: presas
em relaç6es sociais, econômicas e polfticas que as colocam
em situaçao de dominadas, essas pessoas precisam ser capa-
zes de se organizar de maneira duradoura para afrontar con-
juntamente os problemas que decorrem dessa situaçao. E,
reproduzindo entre elas essas mesmas relaç5es de domina-
çao, naD conseguem se encontrar ou se comunicar de modo
a chegar a uma visao comum das condiçoes que lhes san
impostas, ou daquilo que lhes é dado suportar. Isso posto,
somos levados a acreditar que a aprendizagem da democra-

23
cia no quotidiano dessas populaçoes é 0 caminho mais segu-
ra para leva-las a transformarem-se em atores de seu prôprio
desenvolvimento ou de sua prôpria histôria.
Nesse sentido, trabalhamos a quesmo da construçao da
cidadania num nlvel diferente daquele, habituaI, da defesa
dos direitos do cidadao diante dos poderes. Mergulhamos
na complexidade das relaçOes interpessoais através das
quais essas pessoas participam da repraduçao da situaçao de
dominaçao em que se encontram colocadas, interrogamos
essas relaçoes e procuramos descobrir os caminhos da sua
transformaçao em relaçoes democraticas. Caminhos sô a
partir dos quais elas terao a possibilidade de se fazer reco-
nhecer coma cidadas em quaisquer circunstâncias. Ou seja,
terao a possibilidade de conquistar as condiçoes necessarias
ao exerdcio da igualdade e da liberdade que a lei constitul-
da lhes autoriza, mas naD lhes assegura. Ou, enfim, a possi-
bilidade de se organizar para participar da constituiçao de
novas e mais democraticas leis para a sociedade brasileira.
Nossa experiència, realizada através de um trabalho de
pesquisa 1 num dos assentamentos de trabalhadores sem-ter-
raz do Estado de Sao Paulo, permitiu-nos pensar a constru-
çao da cidadania no quotidiano desses trabalhadores, pela
interposiçao de uma presença que opera em très nlveis: da
autonomia das pessoas, visando a que cada uma se conside-
re livre na sua relaçao corn as outras; do encontro dessas
pessoas no reconhecimento dessa autonomia e 0 da aceita-
çao, em cornum, da submissao às regras garantidoras do
exerdcio dessa liberdade, isto é, da submissao à lei demo-
cratica. Essa intervençao visa à construçao de coletividades
de pessoas iguais no direito a se exprimir e a decidir livre-
mente, sob uma lei compartilhada por todos. Nessa aborda-
gem, a descoberta e a reivindicaçao da autonomia pessoal
saD colocadas coma 0 (inico meio pelo quaI essas pessoas
podem aprapriar-se da situaçao na quaI se encontram colo-
cadas e decidir, ou nao, de se escolher unidas para transfor-
ma-la (Roy, G., 1992).

24
Esse tema, embora bastante atual porque diretamente
relacionado corn as exigências do recente processo de rede-
mocratizaçao do paiS, tem sido pouco trabalhado pela pes-
quisa cientlfica. Nosso interesse por ele se definiu no auge
do entusiasmo criado pelas conquistas dos setores popula-
res, no final do peclodo de abertura poHtica e inlcio do go-
verno de transiçao democnitica. Vma dessas conquistas era
a inclusao, na pauta dos debates poHticos, da reivindicaçao
de uma reforma agraria em âmbito nacional, visando à dis-
tribuiçao de terras agricultaveis ociosas aos cerca de sete mi-
lhoes de familias de trabalhadores curais sem terra ou corn
. 3
pouca terra para cu 1tIvar.
Produto do recente acirramento dos conflitos sociais
no campo, essa demanda aparecia, depois de um longo pe-
clodo de ausência no debate polltico, coma uma das priori-
dades do programa da Frente de Oposiçao ao Regime Mili-
tar que levaria ao poder, em 1985, 0 primeiro governo civil
ap6s vinte e um longos anos de ditadura militar. Antecipan-
do, em certa medida, 0 que se esperava dessa polltica nacio-
nal de reforma agraria, alguns Estados começaram a imple-
mentar poHticas de atendimento à demanda organizada da
luta pela terra, através de programas de assentamento im-
plantados em terras publicas estatais ou em terras privadas
envolvidas em conflitos sociais e, conseqüentemente, pasSl-
veis de desapropriaçao legal em instância federaI. 4
o recurso a pollticas de assentamento ja havia sido uti-
lizado pelos governos militares, coma meio de contençao
dos referidos conflitos. Mas esses novos assentamentos,
criados no bojo do processo de redemocratizaçao da socie-
dade brasileira e coma prenuncio de uma verdadeira rees-
tcuturaçao fundiâria no paiS, corn tudo que isso poderia repre-
sentar de avança para as forças poHticas progressistas,
mobilizavam 0 interesse e a atençao dos setores sociais com-
prometidos corn 0 processo de mudança em curso. Nao se
tratava mais de meras conquistas pontuais do movimento
geral de luta pela terra. Tratava-se, agora, de avançar na di-

25
reçâo de uma ampla mudança estrutural, procurando trans-
formar esses assentamentos em verdadeiras situaçoes expe-
rimentais ou exemplares das possibilidades renovadoras de
uma poHtica nacional de reforma agraria. a que nâo repre-
sentava, evidentemente, um desafio pequeno, porque pas-
sava pela necessaria busca de alternativas econâmicas para
esses novos pequenos produtores rurais.
ara, a viabilidade econâmica desses assentamentos
dependia, no casa espedfico do Estado de Sâo Paulo, da
transformaçâo dos trabalhadores assentados, portadores em
grande medida de experiências de trabalho nâo-q ualificado
urbano e rural ou, na melhor das hipoteses, da experiência
de pequenos produtores rurais pobres e ameaçados de ex-
propriaçâo, em pequenos produtores rurais modernos e pro-
dutivos. Isso no contexto de uma economia agricola marca-
da pela dominaçâo da grande empresa capitalista moderna e
no bojo de um processo de transiçao democratica que esta-
va longe de anunciar mudanças significativas no piano das
politicas agricolas, historicamente subsidiadoras dessa mes-
ma empresa dominante. Uma transiçao democratica que,
veriamos depois, nem sequer daria conta de fazer aprovar a
referida poHtica de reforma agraria (D'Incao, M. C., 1990).
Diante da enormidade desse desafio, 0 entusiasmo le-
vou os setores sociais progressistas mais diretamente ligados
à questâo da reforma agraria a perceberem a importância de
uma assessoria técnico-agricola e politica a esses novos pro-
dutores rurais. Agentes das Comunidades Eclesiais de Base
da Igreja Catolica - CEBs, sindicalistas, militantes de parti-
dos politicos ou do Movimento dos Sem-Terra - M8T, técni-
cos estatais e pesquisadores acadêmicos de diferentes areas
do conhecimento e universidades passaram a participar des-
sas "experiências de reforma agraria", tendo em vista a refe-
rida assessoria. E seminarios para debate da metodologia
adequada a esse tipo de intervençao nos assentamentos eram
organizados por toda parte e por iniciativa de instituiçoes
estatais ou nao-estatais.

26
Acompanhando todo esse processo, coma pesquisado-
res e através de um trabalho de consultoria a programas de
desenvolvimento rural do "Governo Democratico do Esta-
do de Sao Paulo",5 começamos a nutrir certa inquietaçao
sobre os rumos que essas assessorias vinham tomando. Con-
cordavamos plenamente corn a proposiçao comum a partir
da quaI essas instituiç6es programavam sua intervençao
junto aos assentamentos: a necessidade de os trabalhadores
manterem-se unidos e organizados para melhor enfrentar os
desafios que lhes estavam colocados. E também acrediclva-
mos na importância de eles evoluirem para formas de coo-
peraçao ou associaçao potencializadoras de seus resultados
econômicos. Mas nao estâvamos de acordo corn a forma
constitutiva - ou modelo de organizaçao da produçao -
planejada para os assentamentos a partir do ideal de socie-
dade e de homem novo em que esses agentes institucionais
gostariam de ver esses produtores transformados. No casa
dos assentamentos resultantes do MST do Estado de Sao
Paulo, por exemplo, pelo menos três concepçoes de socie-
dade orientavam a intervençao desses agentes externos.
Grosso modo, para os agentes das CERs, tratava-se da cons-
truçao de sua "comunidade" e da necessaria transformaçao
dos trabalhadores em homens iguais, frateroos e solid:irios.
Para os agentes do MSTou militantes politicos de esquerda,
tratava-se de construir 0 socialismo, transformando os traba-
lhadores em revolucionarios. E, finalmente, para os técnicos
estatais 0 objetivo era associa-los ou coopera-los de modo a
predeterminar sua eficâcia ou sua capacidade de convivên-
cia corn as regras do mercado.
o fato de a maioria dos técnicos estatais ser também
de esquerda6 produziu uma estranha combinaçao entre es-
sas diferentes estratégias politicas: embora os argumentos
contidos nos documentos oficiais que regulamentaram a po-
litica de assentamentos fossem de natureza técnico-econô-
mica e se limitassem a exigir a associaçao dos produtores
para 0 acesso aos subsidios estatais - ou, em certa medida,

27
à terra - , na prâtica a forma constitutiva levada pelos técni-
cos estatais aos assentamentos impunha um modelo coleti-
vo de produçao aos trabalhadores. Aproximava-se, corn isso,
dos ideais comunitârios dos agentes da Igreja Catolica e dos
ideais revolucionârios dos militantes polfticos preocupados,
ainda, corn 0 risco de aburguesamento desses trabalhadores
transformados em proprietârios privados da terra 7•
Em linhas gerais, essa forma constitutiva estabelecia a
divisao da ârea destinada ao assentamento em um pequeno
nucleo residencial - a agrovila, em torno da quaI eram de-
marcados os lotes agricolas, para uma agricultura mecaniza-
da nos moldes da empresa agricola dominante. Nesses lo-
tes, formalmente destinados a cada uma das famîlias, as
decisoes e 0 trabalho eram organizados coletivamente. Na
agrovila eram previstos alguns espaços para os serviços de
uso coletivo - escola, posto de saude, barracOes para 0 abri-
go das maquinas agricolas e das colheitas, etc. - e demar-
cados lotes menores, os quintais, para a construçao de uma
casa e das instalaçoes necessarias à criaçao de pequenos ani-
mais e ao cultivo de verduras, legumes ou outros produtos
para a subsistência. Teoricamente, este era 0 espaço da au-
tonomia de cada uma dessas famîlias.
Ora, temtamos as conseqüências dessa intervençao
programada a partir da negaçao do que eram esses trabalha-
dores, os quais conhedamos de experiências de pesquisas
anteriores. Sabtamos da aspiraçao à liberdade que os tin ha
levado a se mobilizarem, juntamente corn suas famîlias,
para a conquista da terra sobre a quaI estavam, de agora em
diante, instalados. Eles vinham, cada um, de uma historia
parecida. Historia longtnqua de pequenos arrendatârios ou
parceiros nas grandes fazendas e historia mais recente de
trabalhadores temporarios ou ocasionais, curais ou urbanos,
submetidos ao arbttrio de um empregador ou de seu pre-
posto. Cada um se queria autônomo, livre em seu tempo e
em seu esforço. Eles nao queriam mais depender senan de-
les mesmos. E elaboravam a partir dat seus projetos. Proje-

28
tos de auto-reproduçao familiar pelo caminho da agricultura
familiar experimentada - direta ou indiretamente através
de seus pais - no passado. Agricultura cujos limites até
certo ponto conheciam, mas que pensavam poder superar,
desde que instalados numa terra que passava a lhes pertencer.
Por outro lado, sabiamos também que as relaçoes so-
ciais que tinham incorporado eram as relaç6es da exploraçao
perversa nas quais haviam sido socializados. Nas fazendas,
eles tinham vivido relaç6es do tipo paternalista, onde a lei é
a lei do patrao, ora opressiva, ora "generosa", em todo casa
sempre arbitnlria, abrindo ao dominado apenas a alternativa
de se submeter ou abandonar - muitas vezes pela fuga -
o trabalho. De se mandar, coma costumam dizer. Nas gran-
des exploraçoes agroindustriais ou nas empresas urbanas,
freqilentemente de construçao civil, a ausência generaliza-
da de direitos reconhecidos colocava-os, objetivamente, de
novo, sob a lei do patrao, que, nao sendo mais paternalista,
nem por isso deixava de ser arbitrâria. Esses trabalhadores,
enfim, nao tinham jamais conhecido relaç6es democrâticas,
em que uma lei comum regula as relaçoes entre contratan-
tes formalmente iguais diante dela. Eles haviam sido socia-
lizados em relaç6es de dominaçao em que a lei nao se disso-
cia do empregador. E nao nos era dificil imaginar que essa
socializaçao lhes traria problemas quando se reconhecessem sem
patrlio, no seio de uma coletividade de produtores autônomos.
Tudo 0 que sabiamos desses trabalhadores nos levava a
crer que, uma vez deixados por sua pr6pria conta, eles vive-
riam no assentamento um verdadeiro impasse, pela fato de
nao disporem dos meios para lidar corn a liberdade a que
aspiravam, quando se dispuseram a lutar pela conquista de
uma terra. Mais precisamente, por reproduzirem, eles mes-
mos, as relaç6es de dominaçao das quais queriam se liber-
taro Relaçôes que impediriam 0 necessario alargamento de
seus limites e de suas possibilidades, na direçao do desem-
penho politico e econômico pela que estavam desafiados.
Porque, recriando suas velhas prâticas de dominados - a

29
competiçao, a invalidaçao dos companheiros, a desconfian-
ça, a dissimulaçao, a resistência sorrateira, etc. - , des nao
teriam condiçôes de negociar conjuntamente soluçoes para
os problemas que Ihes eram comuns e estariam, conseqüen-
temente, fragilizados na busca das assessorias de que ti-
nham necessidade, assim coma no enfrentamento das novas
regras às quais, enquanto novos produtores curais e novos
cidadaos, estavam submetidos: as regras do mercado, do sis-
tema financeiro, do acesso a pollticas publicas de saude,
educaçao, habitaçao, etc.
A partir da consciência desse impasse, nos considera-
vamos a importância e, mesmo, a necessidade de des serem
assessorados. Mas entendiamos que a intervençao progra-
mada pelas referidas instituiçoes os recolocaria na situaçao
de dominados - que des precisavam superar - , reforçan-
do seus limites em lugar de alarga-los. E, aos nossos olhos,
ganhava força a idéia de que a primeira tarefa de um asses-
sor, preocupado corn a transformaçao desses novos produto-
res em sujeitos de sua propria realizaçao, era a de propiciar-
Ihes as condiçoes para 0 aprendizado do exerdcio da
liberdade a que des aspiravam, partindo do respeito ao seu
desejo de autonomia pessoal e resistindo à tentaçao de que-
rer uni-los em tomo de uma causa definida fora ddes mesmos.
o argumento, habitualmente utilizado, de que esses
trabalhadores jâ haviam vivido uma experiência de organi-
zaçao e de negociaçao coletiva, por ocasiao da conquista da
terra, e que, conseqüentemente, 0 problema agora era so 0
de manter viva essa chama, induzindo-os, através da organi-
zaçao coletiva da produçao, a situaçôes que os "conscienti-
zassem" de seus supostos interesses comuns, nao nos con-
vencia. Em primeiro lugar, porque, embora considerassemos a
importância da experiência de mobilizaçao vivida por esses
trabalhadores, conhedamos também os seus limites. Nessa
ocasiao, tanto os trabalhadores coma os agentes extemos
participantes das mobilizaçoes tinham uma mesma aspira-
çao e um mesmo objetivo: a conquista da terra. E, agora, 0

30
desejo da autonomia na terra conquistada se encarregaria de
fazer emergir as muitas diferenças existentes entre essas fa-
milias singulares. Diferenças de idade, de composiçao da
famllia, de conhecimento agricola, de possibilidade de con-
vivéncia corn as regras do mercado ou do sistema financeiro,
etc. Diferenças de trajet6rias de vida e, conseqüentemente,
de objetivos, de sonhos e de fantasias que, necessariamen-
te, tornariam mais complexas as negociaçoes entre eles
mesmos e corn seus assessores. Em segundo lugar, esse ar-
gumento era evidentemente autoritario, à medida que acre-
ditava poder induzir esses homens a caminhos diferentes
daqueles a que eles aspiravam. Homens que haviam en-
frentado, juntamente corn suas familias, toda sorte de ad-
versidade para chegar à terra conquistada. Que aspiravam à
liberdade e tinham um projeto de autonomia para ser reali-
zado nessa terra. Que dependiam, sem duvida, de uma as-
sessoria capaz de abreviar-Ihes 0 tempo do aprendizado ne-
cessario à construçao dessa autonomia, mas que nao
abririam mao dela sob nenhuma injunçao, ou em nome de
causas ou ideais que nao guardassem aigu ma correspondén-
cia corn os seus pr6prios.
lam por ai nossas criticas ao modelo de produçao cole-
tiva. Sabiamos que 0 problema da autonomia desses novos
produtores passava também pela questao da produçao, pela
alargamento dos limites de seu saber agricola - saber cam-
ponés residual e insuficiente para 0 enfrentamento dos seus
novos desafios. Que eles necessitavam de uma assessoria
técnica que os capacitasse para uma agricultura mais moder-
na e produtiva. Mas temiamos que essa assessoria se per-
desse, uma vez vinculada a uma forma de organizaçao da
produçao completamente estranha à experiéncia e aos pro-
jetos dos trabalhadores. Temiamos, em especial, as conse-
qüéncias imobilizadoras que a estranheza dessa forma constitu-
tiva, proposta por esses agentes, podia ter nos assentamentos.
De um lado, impossibilitando 0 necessario dialogo entre 0
saber do técnico e 0 saber dos produtores. Dialogo sem 0

31
quaI nao se poderia sequer pensar em aprendizado. De ou-
tro, incitando os trabalhadores a reproduzirem no assenta-
mento, de uma ou de outra maneira, as re1açoes de domina-
çao na quais des haviam sido socializados. Corn efeito, a
estranheza dessa forma constitutiva que lhes era oferecida
sob forte injunçao, isto é, coma condiçao de acesso aos sub-
sfdios estatais e às ajudas de organizaç6es nao-governamen-
tais (ONGs), tin ha toda chance de ser vivida coma uma im-
posiçao. E, coagidos, mais uma vez, à obediência de regras
definidas à reve1ia de seus proprios interesses, esses traba-
lhadores tenderiam a continuar comportando-se coma os
dominados que sempre foram. 0 que comprometeria dire-
tamente 0 objetivo da organizaçao polftica sobre 0 quaI se
e1aborava a referida forma constitutiva ou os projetos de in-
tervençao desses agentes institucionais.
Essa crftica era 0 pano de fundo da construçao de nos-
so objeto de conhecimento. Grosso modo, pretendfamos co-
nhecer, de um lado, quem eram esses trabalhadores e, de
outro, as condiçoes em que des estavam colocados, tendo
em vista a compreensao das re1açoes que vinham desenvol-
vendo entre si e corn os demais agentes externos em cena.
A esse conjunto de re1aç6es convencionamos chamar de si-
tuaçao de assentamento. E nossa hipotese principal era a de
que essa situaçao nao era favonive1 ao desenvolvimento
desses produtores e de suas famflias. Porque os mantinha
coma dominados e, conseqüentemente, os condenava à pa-
ralisia de suas velhas praticas sociais.
Assim definido, nosso objeto de conhecimento nao nos
propunha desafios metodologicos maiores. Tratava-se da
simples reconstruçao de uma dada realidade social enquan-
to processo ou enquanto movimento. Mas nossos objetivos
eram mais ambiciosos. Querfamos colocar esse conhecimen-
to a serviço desses trabalhadores e desses agentes institucio-
nais. Querfamos, a partir de1e, contribuir para 0 que entendfa-
mos ser 0 processo de transformaçao desses assentamentos
em espaços significativos da democratizaçao em curso na

32
sociedade brasileira. E, para isso, tlnhamos necessidade de
conhecer também as possibilidades da evoluçao da situaçao
de assentamento no sentido do desenvolvimento de relaço-
es democraticas dos trabalhadores entre si e corn os demais
agentes externos ali presentes. Ora, 0 conhecimento dessas
possibilidades dependia da capacidade que tivéssemos de,
enquanto pesquisadores, estabelecer corn os trabalhadores
e suas familias uma relaçào que fosse, ela mesma, democra-
tica. De tal sorte que nessa relaçào pudessem aflorar as vir-
tualidades da referida evoluçào. Ou, em outras palavras, de
modo que essa relaçao pudesse nos revelar a capacidade de
auto-superaçao de que essas pessoas eram portadoras.
Estabelecer uma relaçao democratica corn os trabalha-
dores era, sem duvida, intervir na situaçao de assentamen-
to... 0 que nos colocava frente a, pela menos, duas questOes
de ordem metodologica mais complexas: uma, ligada à nos-
sa relaçào corn os agentes institucionais envolvidos corn os
assentamentos e, outra, ligada à operacionalizaçao do que
entendlamos ser, naquela situaçào de assentamento, uma
relaçào democnltica corn os trabalhadores e suas familias.
Nossa preocupaçào central era corn 0 desempenho po-
lltico e econômico desses novos produtores familiais, en-
quanto sujeitos principais das experiências dos assentamen-
tos. Mas 0 conhecimento que buscavamos deveria, se
bem-sucedido, informar a pratica desses agentes institucio-
nais, os intelectuais da açao na quai esœvamos empenha-
dos. 0 que nos impunha a necessidade de programar um
itinerario de pesquisa que nos permitisse manter corn eles
um dialogo permanente.
Embora fôssemos, em certo sentido, companheiros de
percurso, ja que a pesquisadora brasileira participava, de ha
muito, dos debates que acompanhavam 0 projeto polltico
de reforma agraria, esse dialogo nao era fâcil, sobretudo por-
que as prâticas desses agentes seguiam por caminhos dife-
rentes daqueles que estavamos propondo. Nossos pressu-
postos teoricos nos levavam a pensar que uma intervençao

33
eficaz junto a esses assentamentos deveria partir do que
eram esses sujeitos, de modo a criar condiç6es para 0 alarga-
mento de seus limites e 0 pleno desenvolvimento de suas
possibilidades. Diferentemente, os referidos intelectuais da
açao partiam, conforme ja mencionamos, da negaçao do que
eram esses mesmos sujeitos, procurando criar 0 que enten-
diam ser as condiçoes favoraveis à conformaçâo dos rnesmos
ao ideal de homem e ao ideal de sociedade definidos por
suas respectivas utopias.
Tratava-se, corn efeito, do confronto de duas concep-
çoes de mudança social bastante diferentes. E, conscientes
da ineficacia pratica de debates construidos sobre utopias,
decidimos nos apoiar no que havia de comum ern nossos
interesses pelos assentamentos - a organizaçâo dos traba-
lhadores - e adiar 0 confronto de nossas idéias para quando
tivéssemos um conhecimento mais elaborado sobre esses
trabalhadores e sua situaçâo de assentarnento. Isso nos obri-
gava, entretanto, a alguns cuidados éticos, no sentido de
nâo interferirmos diretamente, enquanto pesquisadores, nas
praticas desenvolvidas por esses assessores ou intervento-
res. 0 que nos levou a planejar nossa propria intervençâo,
restringindo-a às relaçoes que desenvolveriamos corn cada
trabalhador e cada uma das pessoas de sua familia e evitan-
do qualquer incursâo direta no espaço das decisoes coletivas
- a associaçâo -, privilegiado por esses agentes institucio-
nais. Diante desse espaço nos nos lirnitariamos a ser obser-
vadores passivos.
Essa restriçao nâo entrava em contradiçâo corn nossos
objetivos teoricos ou praticos, uma vez que eles se cons-
truiam sobre a importância da autonomia das pessoas, 0
que, na pratica, passava pelo nosso reconhecimento de cada
uma dentre elas. Porém, ela nos deixava um tanto inseguros
sobre os desdobramentos possiveis de nossa propria inter-
vençao. Privados de urn projeto de intervençao direta no
coletivo, nao tinhamos a oportunidade de prever e controlar

34
corn maior precisao os efeitos de nossa pratica na situaçao
de assentamento como um todo.
A segunda questao de ordem metodol6gica menciona-
da, referente à qualidade da relaçao democratica que deve-
rlamos construir junto a cada um dos trabalhadores e a cada
uma das pessoas de suas familias, nos colocava um desafio
ainda maior. Nao pretendemos aprofundar-nos na amllise
das implicaçOes te6ricas desse desafio, porque isso fugiria
aos objetivos do presente texto, mas devemos, ao menos, ex-
por ao leitor os pressupostos metodologicos sobre os quais
programamos, a esse proposito, nosso itinerano de pesquisa.
Em primeiro lugar, nao acreditavamos, como a maioria
dos pesquisadores do nosso tempo, na neutralidade cientlfi-
ca. Mais do que isso, tlnhamos aprendido em nossas expe-
riências de pesquisas anteriores que 0 conhecimento resul-
tante de um processo de investigaçao social traz em si a
marca da qualidade da relaçao vivida entre 0 sujeito investi-
gador e os sujeitos da investigaçao. Assim sendo, chegava-
mos ao que entendlamos ser uma proposta de trabalho de
campo coerente corn a rnatriz ideol6gica - nossa utopia?
- , sobre a quai construlamos nosso objeto de conhecimen-
to, isto é, nossa crença nas possibilidades renovadoras das
relaçôes democrâticas, entendidas como encontro de pes-
soas autônomas, iguais no direito de se exprimir livremente.
Em outras palavras, acreditavamos que, rejeitando a
posiçao autoritaria assumida pelos demais agentes externos
presentes nessa pequena coletividade e adotando em rela-
çao a cada um de seus participantes uma posiçao de igual-
dade, lhes estarlamos revelando a possibilidade de novas
relaçoes entre eles mesmos e, em troca, conhecendo seus
proprios limites e possibilidades de viverem essas novas re-
laçoes. ara, a igualdade, nesse contexto espedfico, deveria
ser entendida como reciprocidade. a que significava aban-
donar a postura convencional do pesquisador que so obser-
va, pergunta e escuta, e passar à pratica do dialogo, ou a
uma pnltica onde 0 conhecimento do outro ocorre ao mes-

35
mo tempo em que 0 pesquisador se deixa conhecer. Ambos,
o outro e 0 pesquisador, atuando coma sujeito e objeto do
processo de conhecimento, 0 que transforma os chamados
dados de observaçao em revelaçôes sobre as possibilidades
de desenvolvimento de cada UID, no contexto das relaçoes
vivenciadas por ambos.
Nossas relaçoes corn os intelectuais da açao das pollti-
cas de assentamentos foram facilitadas pela propria evolu-
çao dos acontecimentos. Quando ainda nos prepanlvamos
para iniciar nosso trabalho de campo, as primeiras experiên-
cias da forma constitutiva coletivista começavam a apresen-
tar resultados econâmicos negativos, 0 que induzia alguns
analistas rigorosos a refletirem sobre a inadequaçao desse
modelo de agricultura empresarial - orientado para a in-
tensificaçao do capital e a reduçao da mao-de-obra, que era
a base da referida produçao coletiva, às condiçoes objetivas
dos assentamentos -, de baixa capacidade de investimento
e grande disponibilidade de mao-de-obra. Os resultados
dessas analises trariam, sem duvida, contribuiçOes significa-
tivas à redefiniçao da assessoria agricola em questao. Em
especial porque conformariam a exigência de projetos agri-
colas em correspondência mais direta corn os projetos dos
proprios trabalhadores: projetos de agricultura familiar. Mas
nao dispensariam a reflexao sobre a organizaçao politica e
econâmica necessaria ao avanço desses produtores. 0 que,
de certa forma, abria espaço para nossas pr6prias q uestoes.
É verdade que 0 pensamento militante resistia a se abrir
para 0 conhecimento desses novos produtores tal coma 0
vinhamos abordando. Recorrendo ainda às suas velhas for-
mulas sobre 0 perfil conservador desses trabalhadores e 0
tempo necessârio ao processo de "conscientizaçao" dos
mesmos, os militantes politicos propunham-Ihes uma nova
forma constitutiva - 0 "modelo misto"-, que imaginavam
conciliadora de seus proprios objetivos politicos e dos inte-
resses "imediatistas" e "individualistas" desses novos pro-
dutores. Isto é, a combinaçao do trabalho coletivo, nas fases

36
mecanizadas do processo produtivo, e do trabalho familiar,
nas fases das operaçOes manuais - tratos culturais, em es-
peciaI. E, ainda, começavam a permitir que, nas experiên-
cias que se iniciavam - 0 casa do nosso assentamento -,
os trabalhadores escolhessem se queriam participar de uma
associaçao, morando na agrovila, ou se preferiam nao per-
tencer a essa associaçao e ser instalados em seus pr6prios
lotes. É dispensavel direr que s6 aos que optassem pela
associaçao e pela agrovila seriam oferecidas as ajudas, gover-
namentais e nao-governamentais, programadas ou passiveis
de programaçao: luz elétrica, agua encanada, escola, posto
de saude, créditos subsidiados, etc.
Observando, entretanto, 0 que ocorria nos assentamen-
tos que passavam da forma constitutiva original - produçao
coletiva - para a nova forma do "modelo misto", percebia-
mos que essa alteraçao nao melhorava nem os resultados
econômicos nem 0 clima de entendimento entre os traba-
lhadores. A insatisfaçao era generalizada, as dividas contrai-
das pela associaçao cresciam, as safras fracassadas se suce-
diam e muitas familias abandonavam 0 assentamento. 0
que nos permitia interrogar mais diretamente as certezas
desses militantes.
Impressionava-nos, a essa altura, nao a ja esperada ine-
ficacia do "modelo misto", mas 0 fato de que, mesmo de-
pois de varias tentativas fracassadas e de um evidente recuo
da assessoria técnica, esses trabalhadores nao conseguissem
unir-se minimamente para se opor a essa forma de produçao e
para decidir sobre 0 rumo de suas pr6prias roças. E isso nos
remetia, mais uma vez, à questao das relaçOes de dominaçao...
Paralelamente, 0 entusiasmo original sobre a possibili-
dade de uma reforma agniria em nivel nacional se arrefecia.
Esse projeta polltico era perdedor nas negociaçOes da tran-
siçao democratica brasileira. 0 que tinha suas conseqüên-
cias no nivel dos assentamentos. Conseqüências que nao
cabe aqui reconstruir (D'Incao, M. C., 1990-b), mas que
acabariam levando-nos a todos, enquanto intelectuais da

37
açao dos assentamentos, ao denominador comum da refle-
xao dessas "experiências de reforma agnlria" coma pane do
processo mais geral de democratizaçao da sociedade brasi-
leira (D'Incao, M. C., 1991), nosso ponto de partida e refe-
rência principal de nossas an~Hises.
A riqueza dos desdobramentos do nosso itinerario de
pesquisa, fundado no estabelecimento de relaçôes de igual-
dade corn cada uma das pessoas do assentamento, é a maté-
ria-prima do presente texto. Parece-nos importante, entre-
tanto, alertar 0 leitor para a transformaçao desse itinenlrio,
que nos permitiu chegar às reflexôes que ora pretendemos
estar levando a discussao: 0 que pensavamos ser uma posi-
çao claramente definida perante cada um dos trabalhadores
e cada uma das pessoas de suas familias terminou por se
constituir numa verdadeira presença nossa na situaçao de
assentamento, no sentido em que nos transformamos numa
referência virtualmente mediadora da superaçao da paralisia
decorrente das relaçoes de dominaçao existentes e de sua
transformaçao em novas e criativas relaçôes democraticas. A
consciência dessa presença, enquanto relaçao nossa corn es-
sas pessoas, nos forneceu as bases de uma intervençao dire-
ta junto à coletividade, cuja possibilidade sabî'amos teorica-
mente existir, mas que nao havî'amos programado. Essa
passagem, de nossa intervençao junto a cada uma das pes-
soas para nossa intervençao direta no coletivo delas, levou-
nos aviver nosso trabalho de pesquisa coma uma verdadei-
ra situaçao experimental, razao pela quaI nos dispusemos a
refletir mais longamente sobre ela.
A novidade e 0 carâter interdisciplinar das presentes
reflexOes, de um lado, e 0 fato de sermos dois a elabora-las
e a redigi-Ias, de outro, talvez nao nos tenham permitido
conduzir nossa analise corn a amplitude desejada. Em todo
caso, 0 estilo predominantemente narrativo da apresentaçao
de nossa experiência pretende estar fornecendo ao leitor
elementos nao suficientemente abordados em nossas refle-
xoes. De tal sorte que, por oposiçao ou em complemento a

38
essas reflexœs, 0 leitor possa acrescentar as suas, enrique-
cendo assim a contribuiçao deste texto ao objeto a que ele
se propœ: a construçao da democracia no quotidiano.

39
Primeira Parte

A questao da autonomia
pessoa! no encontro corn 0
trabalhador e sua famflia
1

o companheirismo e 0
jogo da dominaçao

Antes de iniciar nosso trabalho de campo, participamos


de multiplos encontros, no Estado de Sao Paulo, onde se
achavam presentes representantes de assentamentos, das
comunidades de base da Igreja Catolica e do MST e, segun-
do as circunstâncias, pesquisadores, sindicalistas e enge-
nheiros agrônomos. Foi no curso de alguns desses encontros
que estabelecemos um contato mais familiar corn os repre-
sentantes do assentamento em que escolhemos trabalhar.
o que nos impressionava em cada um desses encontros
era a linguagem do companheirismo, através da quaI os dife-
rentes participantes se comunicavam entre si e na quaI nos
percebiamos presos, nao obstante nos mesmos. Havia uma es-
pécie de acordo inquestionavel: éramos componlteiros de uma
mesma comunidode, que recriava os mesmos ideais, tornando
cada um solidario à realidade que se desenvolvia nos assenta-
mentos, encarnada nos militantes que os representavam.
Pessoalmente, entravamos corn circunspecçao nessa
atmosfera fusional, 0 que manifestavamos por uma espéci~
de simpatia muda e contida, sem demonstraçao calorosa
particular. De um lado, sentiamos que nao podiamos nao
ser companheiros de cada um reunido nesses encontros, e
em especial dos militantes, porque eles simbolizavam uma

43
luta vitoriosa pela terra. Luta que justificava nossa presença
nesses mesmos encontros. Mas, de outro lado, nossa matriz
ideologica nos levava a suspeitar das relaçoes que se haviam
constituido na pnitica, uma vez a terra conquistada e as fa-
milias dos produtores instaladas, entre os agentes de inter-
vençao e os produtores, e entre os proprios produtores. E
dessas relaçoes éramos convidados a participar através dessa
comunidode de componheiros.
Entrar, sem reserva, dessa maneira, na comunidade
que nos era oferecida, seria alargar, simplesmente, uma co-
munidade que supunhamos naD corresponder a nossa pro-
pria concepçao das relaç6es que esses produtores deveriam
desenvolver entre eles, tendo em vista seus proprios ideais
de liberdade. Seria correr 0 risco de assumir uma posiçao
conservadora das relaçoes existentes entre agentes externos
e dirigentes e entre dirigentes e dirigidos. No interior dessa
comunidade ampliada, nos seriamos identificados aos diri-
gentes. E isto teria conseqüências importantes, das quais
queriamos precisamente escapar.
De um lado, isto limitaria nosso objetivo de conheci-
mento. Os dirigidos nos atribuiriam 0 discurso dos dirigen-
tes, 0 que contrariaria nossa preocupaçao de descoberta do
conteudo das relaçoes existentes entre dirigentes e dirigi-
dos, nos termos exigidos pela matriz ideologica que orienta-
va nossa abordagem dessa coletividade: observar as relaç6es
em curso do ponto de vista da autonomia de cada um dos
participantes na vida da coletividade. Para atingir esse obje-
tivo, tinhamos necessidade de colocar a igualdade de cada
um de seus participantes diante de nos, na liberdade de se
exprimir e, portanto, de exprimir sua diferença. De outro
lado, nossa inclusao nessa comunidade confirmaria, legiti-
maria e reforçaria relaç6es cujo conteudo real ignonivamos,
mas que consideravamos inadequadas à melhor integraçao e
ao melhor desempenho desses novos produtores curais em
situaçao de assentamento.

44
Ja mencionamos 0 que sabiamos da aspiraçao à liberda-
de que tinha motivado 0 movimento dos trabalhadores e de
suas familias para a conquista da terra sobre a quaI estavam,
de agora em diante, instalados. Ja mencionamos também 0
carater perverso das relaçOes de dominaçao em que eles fo-
ram socializados. Relaçoes que tenderiam a reproduzir, nas
hip6teses de serem deixados por conta pr6pria ou de serem
submetidos a novas relaçoes de dominaçao. E, finalmente,
mencionamos 0 carater essencialmente autoricirio do siste-
ma de produçao que lhes era imposto pela forma constituti-
va dos assentamentos elaborada pelos agentes estatais e pe-
los militantes. Dra, tudo isso nos levava a crer que 0
companheirismo, que nos era oferecido pelos repre-
sentantes oficiais dos assentamentos e pelos agentes exter-
nos presentes nos referidos encontros, poderia estar ocul-
tando a existência de relaçoes de dominaçao no seio da
coletividade que pretendiamos conhecer. E participar dessa
comunidode de componheiros significaria, nessa hip6tese,
comprometer a posiçao que necessitavamos construir para
n6s mesmos no assentamento. Posiçao que entendiamos
coma pré-condiçao de nosso objetivo de conhecer as possi-
bilidades de uma participaçao democratica e, mais do que
isso, as possibilidades de essa participaçao democratica pro-
moyer 0 desenvolvimento dessa pequena coletividade de
novos pequenos produtores rurais.
É certo que nesses contatos preparat6rios de nosso tra-
balho de pesquisa pudemos perceber que a forma constitu-
tiva levada pelos agentes externos ao assentamento previa
também 0 espaço do debate democratico. Ela impunha
coma inquestionavel a cooperaçao coletivista na produçao,
mas estabelecia que a gesœo da mesma se fizesse no seio
de uma associaçao de pequenos produtores, de carater de-
mocratico. Alguns dos representantes dos assentamentos
que vinhamos conhecendo eram dirigentes eleitos dessas
associaçOes. E, nessas circunstâncias, entendiamo-nos teori-
camente diante de uma espécie de "centralismo democrati-

45
co", perante 0 quai e ainda teoricamente, 0 necessario exer-
cîcio ou aprendizado das relaçOes democraticas deveria res-
tringir-se ao aprendizado de uma disciplina democratica de
gesmo do modelo de produçao imposto, a partir da quai nao
estaria proibido considerar também a possibilidade de uma
evoluçao das relaçoes de força dentro da associaçao, de tal
maneira que a pr6pria inquestionabilidade desse modelo
fosse interrogada, e de tal sorte que dessa interrogaçao re-
sultasse uma ampliaçao dos limites da forma constitutiva
original, na direçao de uma forma constitutiva nova, produ-
zida pela encontro entre 0 sistema de produçao imposto aos
trabalhadores e aquele existente, mesmo que imprecisa-
mente, nos projetos dos quais eles eram portadores. Isso
significaria que a dialética entre 0 projeto trazido pelos
agentes externos e 0 projeto trazido pelos trabalhadores,
condiçao, na nossa abordagem, da melhor integraçao desses
trabalhadores entre si e no sistema econâmico a que passa-
vam a pertencer, tardaria, mas poderia vir a acontecer.
Na pratica, entretanto, nao acreditâvamos que isso pu-
desse ou estivesse acontecendo. Em prindpio, porque en-
tendiamos, cabe repetir, que a iniciaçao desses trabalhado-
res nas relaçOes democraticas dependia de relaçoes
constituidas sobre 0 princîpio da igualdade. E essa igualda-
de definia-se pelo reconhecimento de uma lei comum a to-
dos os agentes em cena, 0 que, na situaçao a ser analisada,
parecia duplamente impedido: pelo fato de a cooperaçao
coletivista proposta pelos agentes externos negar direta e
essencialmente 0 projeto de economia familiar dos trabalha-
dores e por ser imposta coma condiçao para 0 acesso aos
subsidios oferecidos por organizaçOes governamentais ou
nao-governamentais. Diante disso, tinhamos fortes razOes
para supor que 0 espaço de democracia previsto nessa forma
constitutiva estava sendo usado para ocultar os conflitos
existentes na situaçao de assentamento.
Confirmando nossas suspeitas, tinhamos sido informa-
dos, no trabalho preparat6rio feito junto aos engenheiros

46
agrônomos encarregados da assessoria técnica estatal aos as-
sentamentos, que os trabalhadores geriam eles mesmos a
organizaçao coletiva da produçao, no seio de suas pr6prias
associaçoes - notadamente, 0 parque coletivo de maqui-
nas, importante no casa do assentamento a ser investigado,
que possufa cinco tratores, um caminhao e uma maquina de
beneficiar arroz, além de outros implementos. E os traba-
Ihadores 0 geriam tanto no seu aspecto técnico coma admi-
nistrativo e financeiro, restando aos técnicos estatais a asses-
soria às relaçOes corn 0 Estado e as instituiçoes finance iras,
além do acompanhamento das culturas do projeto coletivo.
Perplexos diante do que isso poderia significar em ter-
mos da eficacia dessa gesœo, ja que toda a formaçao para a
gesœo democratica, cujo conteudo técnico, administrativo e
financeiro era deixado nas maos dos associados, sabidamen-
te inexperientes nessas questoes, começamos a nos interro-
gar também sobre a possibilidade de praticas demag6gicas
por parte desses técnicos seduzidos por uma espécie de
"democracia nas bases", caucionadora, por sua vez, do po-
der dos militantes que dirigiam a associaçao. Militantes que
sabfamos defenderem religiosamente a forma coletivista de
produçao e que, apoiados pelos técnicos, bem podiam estar
exercendo seu pr6prio arbftrio na situaçao de assentamento,
sobretudo se lembrarmos que esses técnicos eram os inter-
mediarios do acesso aos subsfdios estatais, em beneffcio dos
quais os trabalhadores sentiam-se obrigados a aceitar a orga-
nizaçao da produçao proposta.
Descobrirfamos mais tarde quanto essas nossas questOes
de prinefpio e essas nossas primeiras impressOes eram reve-
ladoras das relaçOes que se desenvolviam nessa coletividade
que estavamos começando a conhecer. Por ara, temfamos
participar do que tomavamos coma sendo sua mera aparên-
cia alienada: 0 jogo do companheirismo. E nos colocava-
mos, em resumo, a quesœo: todos companheiros, certo, mas
em quai unidade? A unidade da causa coletivista imposta?
Dessa, n6s nao querfamos participar. Nossa proposta era a

47
unidade da causa democnitica e cooperativista livremente
aceita por todos, porque essa era uma exigência de nossa
pr6pria trajet6ria de conhecimento, a base da posiçao que
julgavamos necessario definir diante de todos os participan-
tes da coletividade para que tivéssemos acesso às informa-
çoes que buscavamos. Por al, nossa cautela e nossa circuns-
pecçao nessa primeira etapa de nosso trabalho de campo.
Quando chegamos ao assentamento, é na casa do res-
ponsavel pelas relaçoes exteriores da associaçao, Pedrao,
e1eito para a Comissao Estadual dos Assentamentos, que
temos acolhida. N6s 0 havlamos encontrado anteriormente,
varias vezes. Ele nos espera e nos apresenta à sua mulher
coma os componheiros que eu tinho folodo. Nas primeiras con-
versas, manifestamos nosso desejo de nos apresentar 0 mais
cedo posslvel à associaçao, a fim de expor aos associados
quem somos e 0 que pretendemos fazer ali. Pensamos que
isso ja tivesse sido discutido entre e1es. À tardinha, nosso
hospedeiro nos dira que a reuniao sera na noite do dia se-
guinte, às 20 horas, na escola.
Esperando, somos s6 observaçao. Temos a oportunida-
de de assistir, presos na esteira do Pedrao, a três micro-
acontecimentos, cujo conteudo das relaçoes nao deixa de
nos impressionar. Na manha do primeiro dia, passa pela sua
casa um membro do Partido dos Trabalhadores, que vern
preparar um encontro corn 0 Secretario do Abastecimento
do governo da municipalidade petista de Sao Paulo, recen-
temente e1eito. Trata-se de organizar a venda direta dos
produtos do assentamento à municipalidade, evitando as-
sim os intermediarios. À tarde, nosso companheiro nos con-
vida a acompanha-Io até uma cidade vizinha, poro encontror
os componheiros do sindicoto, que tbn ojudodo muito no luto.
Passamos uma parte da tarde na sede do sindicato, num en-
contro informai corn alguns sindicalistas. Enfim, na manha
seguinte, é um casai de componheiros, de uma comunidade
de base da periferia da cidade de Sao Paulo, que ojudou no

48
tempo do ocompomento, que vern visitar nosso delegado das
relaçOes exteriores.
o que retém nossa atençao nesses três microaconteci-
mentos é 0 jogo de apresentaçOes que nos é dado assistir.
Jogo no quai somos presos e que repete 0 jâ observado nos
encontros a que assistimos no exterior. Nas três situaçoes
somos apresentados coma componheiros e cada um nos é
apresentado coma componheiro. Estâ c1aro que para cada um
assim apresentado se acha criada conosco, e reforçada entre
des, uma comunidade inquestionâvel, na quai nosso dele-
gado aparece coma a encarnaçao da comunidade-assenta-
mento. Cada um, através dele, se comunica corn 0 povo uni-
do pela mesma luta. Nosso componheiro de acolhida renova
sua aura de representante do povo junto a cada um dos visi-
tantes ou visitados, pela chegada dos novos componheiros
que somos nôs. E estabelece sua aura em relaçao a nôs pela
apresentaçao dos componheiros, nesses diferentes momentos
de nossos primeiros passos no assentamento.
Nôs adotamos, em cada um desses momentos, a mesma
posiçao dos encontros assistidos no exterior. De simpatia
muda, sem outra demonstraçao, habitados que estamos pela
mesma questao: que povo representa nosso componheiro? Que
poder uma simpatia ativa de nossa parte contribuiria para legi-
timar no seio da coletividade que pretendiamos conhecer?
A sucessao dos acontecimentos da semana vai transfor-
mar nossa prudência em perplexidade e nossa perplexidade
em questionamento profundo, justificando nossa matriz
ideolôgica e, em decorrência, a posiçao que havfamos pro-
gramado adotar.
Chega 0 momento esperado para nos apresentarmos ao
conjunto dos membros da associaçao e de suas famflias.
Nossa expectativa é grande. TInhamos sido informados da
presença de trinta e nove famflias na agrovila. E da divisao
dos trinta e nove produtores que compunham a associaçao
em quatro grupos. Cada grupo tem um coordenador e a as-
sociaçao, por sua vez, é dirigida por uma diretoria eleita,

49
tendo à frente um presidente e um vice-presidente. Espe-
ramos peIo menos essa diretoria e os coordenadores dos
grupos, acompanhados de familiares ou vizinhos.
Às 20 horas, ha cinco pessoas presentes, incluindo 0 casaI
que nos acolhia. Saberemos depois que, dentre os três ainda
nao conhecidos, dois sao do grupo de Pedrao, que mais tarde
identificarlamos como 0 "grupo dos militantes", e um do gru-
po que vinamos a conhecer como "grupo dos individuais".
Nossa perplexidade desperta diante dessa presença In-
fima, e hesitamos sobre 0 significado deIa. Trata-se de de-
sinteresse peIos pesquisadores em geral, decorrente de ex-
periências anteriores frustrantes ou desagradaveis? É
verdade que os assentamentos sao invadidos por entrevista-
dores de todo tipo, mas n6s fizemos essa escolha, em parte,
precisamente por ser um assentamento pouco freqüentado
por pesquisadores. Estamos sendo percebidos como agen-
tes do Estado, que vêm controlar a conformidade dos com-
portamentos dos produtores às exigências do sistema da
atribuiçao de terras? Ou hem essa representaçao fraca da
coletividade traduz a fragilidade da representatividade de
nossos componheiros, nosso interlocutor de ponto de partida
e os demais militantes contatados nos encontros assistidos
fora do assentamento? Em todo caso, decidimos nos apre-
sentar 0 mais cuidadosamente posslvel.
Começamos por nos identificar profissionalmente,
apresentando nossas referências institucionais, nossos com-
promissos corn 0 trabalho de pesquisa, assim como a origem
de nossas verbas para este trabalho.
A seguir, expomos, cada um de seu lado, nossas pr6-
prias trajet6rias de pesquisa. Corn que populaçôes trabalha-
mos, a partir de quais problematicas e corn quais objetivos.
E, ainda, dentro de que programa de trabalho empreende-
mos essa pesquisa conjunta.
Detemo-nos um pouco na questao do destino de nosso
trabalho. Mostrando-Ihes publicaçôes acadêmicas e artigos
de jornais, de modo a explicar-Ihes 0 carater regular de nos-

so
sas contribuiçàes ao conhecimento e 0 caniter eventual de
nossas contribuiçàes mais propriamente politicas. Dependentes,
sempre, das conjunturas mais ou menos favoraveis.
Procurando exemplificar 0 exposto até 0 momento,
passamos a explicar 0 porqué de nosso interesse pela estu-
do dos assentamentos. Começamos pela reconstruçao dos
recentes avanços e recuos das pollticas de assentamentos
que os haviam contemplado, a tentativa frustrada de um
Piano Nacional de Reforma Agniria e a derrota das forças
reformistas nas negociaçàes que resultaram na nova Consti-
tuiçao Federal. Esse empenho se deve ao fato de os traba-
lhadores envolvidos na luta pela terra - no casa nossos in-
terlocutores - terem acompanhado em alguma medida
todo esse processo, 0 que facilita nossa comunicaçao: "vocés
se lembram que nos, todos nos, acreditâvamos que desta
vez lamos ter uma reforma agraria pra valer"... e "nos acaba-
mos por constatar que, apesar da luta crescente de milhàes
de familias pela terra, la em cima, onde as nossas reivindica-
çôes eram negociadas, havia pouca gente para defender essa
luta"... Acrescentamos, al, nossas pr6prias anâlises sobre a
debilidade da representaçao sindical e do desempenho da
Igreja Cat6lica por ocasiao dessas negociaçoes, para conduir
que entendemos os assentamentos coma conquista dessa
luta mais geral que deve continuar, jâ que a mobilizaçao
pela conquista da terra continua crescendo. E, assim sendo,
todo esforço de conhecer melhor 0 que se passa nesses as-
sentamentos pode bem ser dirigido para 0 fortalecimento
do processo de luta pela reforma agrâria ou pela democrati-
zaçao da sociedade brasileira coma um todo. "Como? Co-
meçando por conhecer seriamente as experiéncias que vo-
cés estao vivendo, a fim de contribuir para a definiçao de
projetos polIticos que tenham chance de ser bem-sucedi-
dos. 0 que, na nossa maneira de ver, passa pela elaboraçao
de projetos que correspondam às suas expectativas e aos
quais vocés possam dar seu melhor apoio"...

51
Prasseguindo, lembramos que 0 conhecimento desses
assentamentos, visando à elaboraçao de projetos polfticos
que Ihes sejam mais eficazes, é um esforço coletivo, e que
outras pesquisadores, assim como partidos pol1ticos, sin di-
catos e de mais instituiçoes ligadas ao movimento da luta
pela terra e pela reforma agraria, estao empenhados tam-
bém nesse conhecimento. E, finalmente, entramos na ex-
plicaçao de nossa especificidade:
"Mas, entao, quai é 0 nosso objetivo e como nos pre-
tendemos trabalhar aqui corn vocês? Nos queremos ver
quais sao as dificuldades que vocês esmo encontrando,
como vocês fazem para enfrenra-Ias, que resultados vêm
conseguindo obter e como fazer para obter melhores resul-
tados... 0 que nos temos constatado até aqui, observando
aigumas polfticas de assentamento, é que elas nao levam
em conta 0 que vocês querem e 0 que vocês sao capazes de
fazer... Elas definem 0 que é bom para vocês, sem consulra-
los. E elas Ihes impoem as formas de cooperaçao e de orga-
nizaçao que consideram as melhores... Nos também acredi-
tamos na importância da cooperaçao e da organizaçao, mas
nos pensamos que a unica cooperaçao que pode dar certo é
aquela que se organiza a partir de seus interesses reais... E é
por isso que nos queremos conhecê-Ios. Nos queremos sa-
ber 0 que cada um de vocês pensa, 0 que vocês querem
desta terra que conquistaram, para podermos chegar a uma
definiçao realista das polfticas de cooperaçao entre vocês...
É por isso que nos estamos aqui, sem outro projeto senao
aquele de conhecê-Ios, de conhecer cada um de vocês, de
escuta-Ios e de falar corn vocês... Nos nao temos nenhuma
receita pronta para vocês, nos nao pertencemos a nenhuma
Igreja e nos nao falamos em nome de nenhum partido ou
de nenhuma doutrina. A nossa unica crença é a de que 0
melhor projeto pra vocês sera aquele que vocês mesmos pu-
derem fazer. Corn a ajuda de técnicos e especialistas, sem
duvida, mas para que vocês possam melhor explorar e de-
senvolver seus proprios desejos e suas proprias aspiraçOes".

52
Finalizando, dizemos que pretendemos vlsltar cada
uma das famllias e conversar corn 0 maior numero possivel
de pessoas, que temos a preocupaçao de nao incomodâ-Ios
corn nossas visitas e que, embora queiramos, nao temos ne-
nhuma certeza de poder ser~Ihes uteis. Em todo caso, com-
prometemo-nos a expor-Ihes os resultados de nosso traba-
Iho, assim que tivermos aigumas idéias mais claras sobre 0
que estamos procurando conhecer. Nessa oportunidade,
que supomos ocorrer dentro de seis meses, gostaremos mui-
to de ouvir suas opinioes sobre nossas proprias conclusoes e
de poder revê-Ias, se for 0 caso.
Eram dois os objetivos principais dessa nossa Ionga
apresentaçao: de um Iado, queriamos ramper corn a relaçao
de exterioridade que a Iinguagem de companheirismo nao
dava conta de resolver. Queriamos deixar claros os interes-
ses que nos uniam a eles. Mas, e esse era 0 segundo objeti-
vo, queriamos firmar também nossa diferença. De tai sorte
que eles pudessem nos reconhecer tai coma nos propunha-
mos ser diante deles. Acreditavamos que so corn a maior
transparência possivei no tocante a nossos proprios objeti-
vos poderiamos criar as bases da relaçâo de igualdade que es-
œvamos nos propondo junto aos trabalhadores e suas famûias.
Sabiamos, evidentemente, que todo esse discurso era
apenas um começo. Que 0 reconhecimento de nossa posi-
çao dentro do assentamento dependeria da coerência que
fôssemos capazes de manter nas relaçoes corn cada uma das
pessoas ali presentes. Mas tinhamos que começar por ai,
mesmo considerando a hipotese de naD sermos totalmente
compreendidos. Tanto assim que, terminada a exposiçao, a
primeira questao Ievantada foi: "...quando nos vamos rece-
ber 0 documento definitivo da terra?" Trata-se de um docu-
mento que deve reconhecer 0 direito de uso da terra para
cada um dos produtores, uma vez cumpridas certas condiçôes
estabelecidas em contrato feito corn 0 Estado. Fornecendo-Ihes
as poucas informaçOes de que dispunhamos, aproveitamos
para reafirmar a inexistência de qualquer vinculo nosso corn 0

53
Estado. A quesmo seguinte se preocupava em saber mais
sobre nossos salarios e nossas verbas de pesquisa. E, final-
mente, cada um se mostrou curioso de 1er os documentos
que trazlamos conosco: livros, artigos acadêmicos e artigos
de jomais, relativos a trabalhos realizados pela pesquisadora
brasileira. Alguns desses textos foram-lhes emprestados,
por solicitaçao deles mesmos.
Quatro dias ap6s a passagem do militante do Partido
dos Trabalhadores, para anunciar a vinda do Secretario do
Abastecimento da municipalidade de Sao Paulo, uma equi-
pe conduzida pela proprio secretario se apresenta no assen-
tamento. Somos testemunhas de que nenhuma reuniao pre-
paratoria entre os associados foi feita. Sao os dirigentes da
associaçao, 0 presidente e 0 vice-presidente, os repre-
sentantes do MST, dois associados e nosso delegado das re-
laçoes exteriores que recebem a equipe de sete poHticos e
técnicos da municipalidade. Nos estamos presentes coma
eomponheiros in/elee/uois. A reuniao vai durar três horas. 0
tema da venda direta e da eliminaçao dos intermediarios é
longamente abordado. A discussao se prolonga sobre 0 me-
Ihor preço de venda para os produtores e 0 melhor preço de
compra para a municipalidade, representante dos consumi-
dores de baixa renda. Quantidades a fomecer sao enunciadas,
em arroz, feijao, mandioca e milho. Os temas sao abordados na
maior seriedade de uma parte e de outra. A contribuiçao eco-
nômica e polltica da operaçao, que deve englobar igualmente
outros assentamentos, é muitas vezes sublinhada. E mais uma
longa discussao é feita sobre a possibilidade de essa operaçao
dar origem a uma poHtica de financiamento dos produtores,
pela sistema de compra antecipada. Sugestôes sao apresenta-
das sobre diferentes possibilidades dessa poHtica. A reuniiio
termina corn 0 engajamento dos representantes da associaçao:
que a Prefeituro fOfLl sua potte, nos foremos a nosso... Nos vomos
produzir... nos vomos produzir.
É a segunda vez, depois de nossa chegada, que nos é
dada a possibilidade de ver agir a associaçao, e nossa inquie-

54
taçao permanece: que representam exatamente essas pes-
soas que tomam a palavra em nome dos outros e que, dessa
vez, prometem coisas em nome de todos? Nao houve as-
sembléia preparatoria, e tudo parece concluldo. Estamos na
presença de uma organizaçao rigorosa ou de um jogo ilus6-
rio de militantes levados por uma dinâmica imaginaria? Nao
tardaremos a saber. Alguns dias mais tarde, deve ter lugar uma
assembléia geral dos pequenos produtores da associaçao.
Aproveitamos os dias que nos separam da assembléia
geral para tomar um contato senslvel corn 0 espaço de resi-
dência dos associados - a agrovila - e seus habitantes, ao
acaso de nosso percurso.
o espaço das moradias tem a forma de um retângulo
recortado ao meio da area cedida pelo Estado. Foi dividido
em lotes iguais de 1,20 ha, reservando 0 equivalente a dois
lotes para as necessidades da vida em comum. Quarenta e
um lotes foram delimitados, dos quais somente trinta e
nove estao ocupados. Um traçado de ruas de terra que se
cruzam organiza 0 acesso aos lotes, dando ao conjunto 0 as-
pecto de uma pequena vila.
É certo que a instalaçao dessas familias é recente na
agrovila e que elas chegaram ali desprovidas de quase tudo,
de modo que nossa indinaçao é considerar 0 que vemos
coma primeiras manifestaç5es de uma coletividade em
construçao, uma espécie de canteiro de obras, onde essas
familias se esforçam por construir um nova quadro de vida.
Mas nos estamos mesmo um pouco surpresos corn 0 que
descobrimos. A idéia de uma comunidade, contida na lin-
guagem do companheirismo, fez nascer em nos a imagem de
uma certa solidariedade entre eles, em continuidade corn a
solidariedade que existiu por ocasiao do acampamento e da
conquista da terra. Da quaI esperavamos ver certas manifesta-
çOes, se nao na ocupaçao individual do espaça de cada um,
pelo menos na apropriaçao do espaço reservado à coletividade.
Imaginavamos que uma ajuda mutua - do tipo mutirao -
tivesse podido existir para a construçao das casas de cada um e

ss
que uma cooperaçao estivesse existindo para a manutençao
dos bens coletivos e 0 arranjo da praça comunitaria.
Estamos impressionados corn 0 carater heterogêneo
das habitaçoes, revelando nao somente a ausência de dis-
cussOes comuns sobre 0 habitat, mas sobretudo que cada
famîlia é deixada por si s6, corn seus pr6prios recursos.
Acham-se penalizadas as famîlias de menos força de traba-
Iho, aquelas que rem crianças pequenas. Da mesma manei-
ra, cada uma parece deixada a seu saber inicial, sem que as
famîlias mais ricas em experiência, levem seu apoio às famÎ-
lias menos preparadas. Construçoes as mais precarias cos-
teiam outras que testemunham ja um saher de construtor.
Tudo revela, no hâbitat, uma justaposiçao passiva. Mas a
surpresa é ainda maior quando abordamos 0 espaço cornu ni-
tario. Ha ali dois grandes barracoes, uma escola e um posto
de saûde, que foram construfdos pelo Estado. Nao somente
nao ha um s6 traço de apropriaçao comum do espaço -
nada que se aproxime de um projeto de demarcaçao de con-
tomos ou arborizaçao - , coma as marcas do desinteresse
pela coisa construfda sao evid~ntes: um dos barracOes, que
ainda nao tem três anos, apresenta as portas fora das esqua-
drias. 0 telhado do outro barracao foi danificado pela tem-
pestade, e nada se fez para recolocar e reajustar as telhas
arrancadas pelo vento. 0 mato cinge a escola e 0 posto de
saûde, significando a falta de cuidado corn esses lugares,
cuja importância para 0 coletivo nos parece tao grande. U m
pequeno cômodo, destinado a um escrit6rio, esta plantado
ao acaso sobre a praça. Suas paredes de tijolos estao perfura-
das pelos caibros que auxiliaram a construçao evidentemen-
te inacabada e abandonada. Em resumo, 0 percurso dos es-
paços loteados revela a justaposiçao de famflias indiferentes
umas às outras, enquanto que a observaçao do espaço co-
munitario reforça a idéia de justaposiçao de pessoas indife-
rentes ao destino coletivo inscrito na concepçao da agrovila
e no modo de organizaçao da produçao proposto pela inter-
vençao estatal e pela militância.

56
A impressao é de que essas pessoas têm reproduzido
ali sua maneira de vida anterior, sem que seu encontro num
projeto comum tenha feita nascer uma realidade nova, que
lhes permita ultrapassar 0 que sempre foram, de modo a se
lançarem numa aventura comum construtiva. Nada sugere
uma vontade comum de inscrever no espaço uma identida-
de partilhada.
Existe, entretanto, um projeta coletivo, uma associaçao,
uma diretoria responsavel pela coletividade. Que se passa en-
tre os agentes intervenientes e essas familias, e entre essas
familias, elas mesmas, para que nenhuma dinâmica comum
chegue, aparentemente, a nascer de seu suposto encontro?
Essa dificuldade para se encontrar, para se unir, para
fazer coisas em comum nos parece tanto mais surpreenden-
te quanto mais observamos um dinamismo familiar expres-
sivo. Paramos diante de cada casa onde se manifesta a pre-
sença da famflia, mulher e crianças na maior parte das
vezes. E 0 clima é de ocupaçao alegre corn diferentes tare-
fas. A colheita de arcoz foi excelente e as do feijao e milho,
boas. Convidam-nos a entrar. Nos nos apresentamos. Sau-
damos a bela colheita, exposta nos sacos empilhados pela
casa ou no feijao secando no terceiro... Aqui e ali os projetos
concretos de cada um se revelam: começar a compra do ma-
terial para a construçao de uma casa de alvenaria, reparar 0
barraco, que devera agüentar até a proxima safra, consultar
um oculista e mandar fazer uns 6culos, comprar agasalhos
. , .
para as cnanças, Jeans para os Jovens, arame para cercar 0
pasto, adubos para 0 proximo plantio, liberando-se da de-
pendência dos altos juros dos financiamentos bancarios,
etc., ete. Ha uma euforia na maioria dos lares.
Nossa atitude é a de conversar sobre 0 que nos é dado
observar: 0 arroz empilhado, a preparaçao da pamonha, as
galinhas que insistem em passear pela casa, a criança que
chega ou sai, a escola, a diarréia do bebê, 0 reumatismo do
velho, etc. Nesse primeiro contato, nossa intençao é come-
çar um dialogo valorizador daquilo que eles sao, pelo reco-

57
nhecimento das diferentes dimensôes de seus quotidianos.
Terminam9s por afirmar nosso interesse em conversar corn
cada um sobre os problemas da produçao e da vida no as-
sentamento e por marcar os honirios mais adequados para as
entrevistas corn os chefes das famflias. Corn as mulheres pro-
metemos uma relaçao de maior continuidade: "Nos vamos
passar uns tempos por aqui... a gente vai conversar bastante."
o contraste entre a energia familiar e a inércia da cole-
tividade das familias enquanto grupo nos coloca um proble-
ma. 0 projeto da agrovila foi concebido nao somente na in-
tençao de juntar os produtores para assegurar-Ihes .maior
eficacia econômica, mas também de uni-los. E torlo 0 dis-
curso ideologico que acompanhou essas familias desde 0
infcio de seu agrupamento, no perfodo preparatorio do mo-
vimento de conquista da terra, ia no sentido da criaçao de
uma comunidade. Quais sao, portanto, as mediaçâes que
entram em jogo nas relaçôes entre as familias, uma vez ins-
taladas sobre a terra, que criam obstaculo a uma pratica co-
mum criativa entre elas? Quai é a estrutura das relaçâes en-
tre as familias que as leva a se colocarem umas ao lado das
outras em total inércia? É certo que isto esta ligado à manei-
ra pela quai elas se comunicam entre si. E é esse modo de
comunicaçao que deveremos conhecer, para descobrir 0 segre-
do desse aparente descaso de cada um pela que é de todos.
No final de nossa primeira semana no assentamento,
teve lugar uma das assembléias gerais regulares do estatuto
aprovado pela conjunto dos produtores associados. Normal-
mente elas sao convocadas pela diretoria para tratar de as-
suntos de interesse da associaçao. Esta foi convocada para
tratar da gestao dos tratores, que sao propriedade comum
dos associados e base de sua atividade de produçao. Uma
oportunidade preciosa de podermos, no infcio de nosso tra-
balho, assistir a um acontecimento maior da vida de nossa
pequena coletividade. Imaginamos ver, pela primeira vez,
todos os associados reunidos, e nossa curiosidade é grande,
ao menos para ver os componheiros dirigentes na sua relaçao

58
corn os componheiros dirigidos, a prop6sito da administraçao
dos homens e das coisas da associaçao.
A assembléia deve começar às 8,30 h no patio da esco-
la situada no espaço da agrovila. N6s chegamos na hora, e 0
lugar da reuniao esta deserto. A reuniao teria sido desmarca-
da? Às 9 horas se apresentam, um a um, três associados, e
durante uma hora outros vao chegando. Às 10 horas ha 22
chefes de famllia presentes, dos 39 posslveis. Nao virao ou-
tros. Dizem-nos que esse numero é bom, nao habituaI.
o que nos impressiona, de ini'cio, é a singularidade de
cada um, impressao corrigida rapidamente pela sentimento
de uma profunda identidade. E depois, uma grande seme-
lhança dos comportamentos, acompanhados de uma profun-
da separaçao. Singularidade primeiramente: eles sao de to-
das as idades e de todas as cores de pele. Seus trajes
apresentam a maior diversidade, cabeças de chapéu de pa-
lha, de feltro, de boné, de casquete, algumas nuas. Suas ca-
misas e pulôveres de todos os tipos, todas as cores, todos os
estados, e muitas camisetas de propaganda. Suas calças de
todos os talhes e todos os tecidos. Os pés, nus ou calçados
corn sapatos ou botinas, corn ou sem cordao, tênis, chinelos.
Entretanto, a semelhança: os traços do rosto sao marcados
de profundos vincos, 0 olhar de todos é idêntico, coma que
ausente, convidando a ver a profunda identidade existente
entre eles. Um olhar que nao se sabe se é distraldo ou volta-
do para si, numa espera desconfiada. Do ajuntamento des-
ses homens de idades, cores e vestimentas diversas, parti-
lhando esse mesmo olhar, surge a imagem de um bando de
homens extraviados numa aventura sem chefe e numa
abordagem sem proveito. Observamos uma grande seme-
lhança no comportamento de cada um desses homens, na
sua chegada e na maneira como se colocam, que exprime
uma separaçao. Cada um chega s6, a seu tempo, deslocan-
do-se como que embaraçado corn seu pr6prio corpo. Mal
cumprimenta 0 outro ou os outros. Agora eles estiio dispos-
tos no espaço do patio, manifestamente ao acaso. As postu-

59
ras san a imagem dessa dispersao: este aqui esta de pé,
apoiado na parede da classe, os braços cruzados; esse outro
la esta agachado; este sentado no chao. Olhamos para todos
os lados. Semelhança dos comportamentos e separaçao de
cada um em relaçao ao outro. Rodeiam-se sem se tocar,
coma que corn medo de se encontrar.
Mas os ho mens que temos diante de nos naD estao li-
vres aqui, liberados dos patrOes, e a seu proprio discemimento?
Sentimos que esses homens rem uma historia em comum,
bem antenor à historia recente; que essa historia em co-
mum naD foi uma historia compartilhada, mas vivida coma
uma aventura pessoal dolorosa, e que a historia recente, vi-
vida em comum nos 61timos quatro anos, naD produziu real-
mente entre eles um encontro suscetivel de corrigir de ma-
neira significativa 0 que a historia anterior fez de cada um
deles. QuaI é portanto 0 conte6do dessa separaçao no mo-
mento presente de seu encontro?
Pouco antes das 10 horas, chegam três personagens,
dois juntos, um so: reconhecemos 0 presidente, corn 0 vice-
presidente da associaçao, e 0 militante do M8l: Seus anda-
res e suas atitudes rompem corn os dezenove outros presen-
tes. Os dois primeiros colocam-se num espaço ao acaso,
num canto dessa assembléia desordenada, enquanto 0 ter-
ceiro, que chegou corn um pacote de jomais ostensivamen-
te exibidos, 0 Jornal dos Sem-Terra, coloca-se diante deles.
o an6ncio do vice-presidente de começar a reuniao naD
produz nenhuma correçao de posiçao. É ele quem toma a
palavra de inicio. Esta ali em trajes que, comparados aos dos
outros, embora precarios, parecem marcados por uma afeta-
çao de precariedade, coma um eu oferecido aos outros num
despojamento calculado. Ele toma a palavra em meio ao ba-
rulho de movimentos diversos. Tem grande dificuldade de
prender a atençao. A equipe de pesquisa é apresentada corn
uma certa ênfase coma companheiros que vêm ajudar na luta.
Esperamos a apresentaçao da ordem do dia. Nada. É por
uma declaraçao em forma de admoestaçao que ele vai co-

60
meçar a reuniao, sem duvida justificada por nossa presença.
Nao podemos ser senao cauçao da empresa associacionista
militante, como as pessoas da Igreja progressista e os enge-
nheiros... 0 que diz ele?
A portir de hoje temos de fozeT" umo coiso mois omofTodo.
As coisas? 0 respeito de cada um pelas decisOes que sao to-
madas em assembléia geral - ... 0 discussoo do gente voi fozeT"
um documento, umo oto... e assinor. .. porque ultimomente estti
fozendo 0 documento of e noo esta volendo nodo... Decidiu em
ossembléio, ficou em discussoo 0 dio inteiro... foz umo oto, of
soiu doqui e ocobou... Ninguém estti respeitondo 0 que estti deci-
dindo... Eu ocho que émois cer/o. Porque ossim, se houver olgu-
mo coiso com olgum componheiro, tem 0 documento que 0 pessool
ossinou. Esso é umo coiso que nos deverfomos estor fozendo ha
muito tempo... A gente, quondo estti do lodo de foro, 0 gente é
empregodo de umo firmo, ondo emboixo do 1Otroo e do enCOfTe-
godo... se ele mondor corregor lixo, com perdoo do polovro, 0
fulono voi 10 e cOfTego... ele é submetido àquelo pessoo e àquele
trobolho... E ocho que nos estomos no compo... que nos noo somos
submetidos 0 ninguém... nos somos submetidos 0 nos mesmos, nos
mesmos decidimos oquilo que nos queremos, 0 nosso cobeço somos
nos mesmos... So que, infelizmente, essos diretrizes estoo se enco-
minhondo num sentido que noo estti dondo muito mois... Porque
se ocobo de combinor umo coiso, 0 pessoo doqui 0 pouco ja que-
bro poro um lodo, 0 outro quebro pra 10... Agoro se eu fosse
dominodo eu noo quebrorio pro lugor nenhum porque soberio que
pogorio por Îsso... Mos como 0 gente tem of umo discussoo livre,
ober/o, codo um tem sun vontode... 0 fulono 1osso por cimo do
gente... E se 0 gente tem um documento, com 0 posiçoo gorontido,
o gente voi em jufzo... porque of, pelo menos, 0 corn voi pogor
por oquilo que ele deve... e voi conhecer que se ele tivesse discutido
o questoo, fechondo oquilo que 0 gente combino... noo precisorio
ir 00 poder judiciario... porque 0 gente noo preciso do Justiço
poro corrigir oquilo que é nosso e nem porn decidir. .. so que estti...
umo série de exceçoes, de erros... queJd noo da mois pora corrigir,
noodtf mois. Eu omo que 0 gentetem queochoroutroformo.

61
Aparentemente a admoestaçao cai no vazio. A assem-
bléia aborda entâo, numa sucessao improvisada e no entre-
cruzamento dos pontos tratados, um certo numero de te-
mas. 0 tesoureiro presta conta do trabalho dos tratoristas no
exterior, tempos gastos, receita, custos, remuneraç5es. À 16-
gica das cifras opœ-se imediatamente a duvida sobre 0
tempo de trabalho de certos tratoristas e sua remuneraçao.
A cacofonia se instala. No meio do zum-zum, 0 militante do
MST brande seu pacote de jornais: Bom, 0 genle vaifour umo
pouso oqui... eu quero dor poro vocês 0 jornol de oUlubro, no-
vembro e dezembro do Movimenlo dos Sem-TetTo... A proposlo é
que esle jornol sejo enlregue 00 coordenodor de codo grupo... nin-
guém lem informofoes sobre 0 morte de Chico Mendes e nesle jor-
nol lem... por que os fozendeiros 0 molorom, onde 0 molorom,
como islo oconleau... Como nao ha interrupçiio do zum-zum
para escutar 0 militante, as trocas prosseguem na indiferen-
ça do que acaba de ser dito. Nao sao todos eles, todavia,
oficialmente militantes do MST? Percebemos que se desen-
cadeia uma discussao sobre aqueles que nao pagam suas di-
vidas, prejerindo guordor 0 dinheiro no codernelo de pouponço,
nos coslos dos componheiros... Esses se defendem dizendo
que nao receberam 0 dinheiro de seu trabalho de tratoristas.
Mas coloca-se em duvida as horas de trabalho que eles de-
clararam... 0 presidente começa entâo a leitura de um papel
onde estâo enumeradas as deterioraçœs de cada trator e dos
implementos. A lista é impressionante, todo 0 material, ou
quase, esta danificado. Quem é responsavel? Quebra-se e
esconde-se a falta... Encontra-se colocada a questâo geral de
uma boa gestâo dos tratores, na confusao. Como pagar todas
essas reparaç5es? Fazer trabalhar dois tratores em lugar de
um, no exterior? Uma voz lança a idéia de dividir os tratores
por grupo, para melhor controlar e haver maior responsabili-
dade. 0 vice-presidente reage vivamente, estigmatizando
os individuois, que querem acabar corn a associaçao e 0 pro-
jeto comum... E é fortemente apoiado pelo militante do
M8'T. Deixa-se 0 tema e fala-se de fazer instalar uma bomba

62
de 6Ieo ao Iado dos barracoes para nao mais ser obrigodo 0
viojor 14 kms poro encher 0 tonque dos tratores... Nenhuma
discussao, a decisao esta tomada? Dois associados anunciam
que vao pagar sua dlvida, 0 que desencadeia "hurras" da
assistência. E a reuniao se desfaz sem outra intervençao.
Essa assembIéia gerai nos descortina 0 clima das rela-
çoes, no seio da associaçao, entre os dirigentes eleitos e os
dirigidos. Além de nos fornecer aiguns elementos sobre seu
conteudo, a partir dos quais podemos ensaiar aigumas hipo-
teses uteis ao aprofundamento de nossa estratégia de co-
nhecimento e de intervençao.
Descobrimos, em primeiro Iugar, que a associaçao dos
pequenos produtores, que aparecia no discurso do compa-
nheirismo coma uma organizaçao solida, é umo orgonizoçOo
em crise. Essa crise se manifesta nas ausências, dezessete em
trinta e nove, e se manifesta na gestao do parque de maqui-
nas. Os associados nao conseguem administrar 0 bem co-
mum, a propriedade comum das maquinas. Constatamos,
em segundo Iugar, uma paraiisia dos associados para enfren-
tar essa crise e achar-Ihe uma soIuçao: uma incapacidade
para questionar essa incapacidade. E, finaimente, entende-
mos que essa crise ja é antiga, que ela se perpetua de as-
sembléia em assembléia, tudo levando a pensar que ela vai
se perpetuar no futuro, pela agravamento da degradaçao da
coisa comum. Soubemos que a diretoria acaba de ser eleita,
apenas introduzindo um novo presidente e recond uzindo
antigos diretores a novos cargos, 0 que significa que 0 poder
dos mesmos se mantém. Poder que, conforme nos foi dado
observar, se sabe exercer.
Nos vimos corn efeito que, diante dessa situaçao, os
dirigentes têm um discurso justificador, uma explicaçao que
vern sob a forma de interrogaçao, aparentemente sem se-
gundas intençoes, mas seguido de um julgamento sobre os
dirigidos: Hoje nos dependemos de nos mesmos, somos nos que
tomomos os decisoes, mas os decisoes que nos tomomos noo siio

63
respeitodas... A soluçOo é procuror a just;ço... pro resolver 0 pro-
blemo doqueles que so querem four oquilo que têm no cobeço...
Do lado dos dirigidos, é uma estranha passividade.
Nao ha eco significativo à altura do discurso dos dirigentes.
Somente comentarios isolados, que naD encontram aprova-
çao suscetivel de constituir uma contestaçao. Uns denun-
ciam os companheiros que superestimam suas horas de tra-
balho; outros notam a atitude desleal daqueles que
guardam seu dinheiro na caderneta de poupança, em lugar
de saldar sua divida corn a coletividade. Um dos associados,
é verdade, faz uma colocaçao de peso, propondo a divisao
das maquinas pelos grupos. Mas ele naD é seguido pelos
demais e é barrado pelos dirigentes. .
Ha mais a dizer sobre esses pontos. Mas ha, sobretudo,
a questionar 0 desenrolar da reuniao em si mesma, diante
das afirmaçoes do vice-presidente. Nao se pode deixar de
observar que a pratica democrâtica afirmada é contraditada
pela pratica real de encaminhamento da reuniao. Esta se
abre sem que uma ordem minima, correspondente à impor-
tância do debate para todos, seja exigida. Uma ordem capaz
de estabelecer as condiçoes de um face-a-face minimamen-
te atencioso entre dirigentes e dirigidos. Cada um é deixa-
do na sua postura de abandono, a ordem do dia naD é anun-
ciada e a abordagem dos pontos de discussao se faz na
maior improvisaçao. Nao ha rigor na exposiçao das questoes
técnicas, naD san colocados em debate os pontos abordados,
nao ha interrupçao das intervençoes para promovê-Ias em
pontos de discussao e as decisoes san tomadas sem que a
assembléia se aperceba delas. A idéia da divisao das maqui-
nas, sugerida corn c1areza, é rechaçada simplesmente, sem
qualquer argumentaçao... 0 que se passa?
Encontramo-nos em presença de uma situaçao curiosa:
um poder ineficaz, cuja gesmo é prejudicial à coletividade,
se perpetua fazendo-se reeleger, sem que se organize uma
contestaçao, num c1ima aparentemente democratico, ou
pelo menos dec1arado coma tal. Uma indicaçao contradito-

64
ria, em todo caso, é a intercepçao dos individuois. Mas 0
clima naD é de "ditadura", embora tudo sugira um modo de
funcionamento e certos tipos de relaçôes entre esses traba-
lhadores estranhos à 16gica democratica. Entrevemos que os
dirigentes exercem seu poder sobre um outro registro, que
isto a que assistimos é uma par6dia do debate democratico.
Uma primeira hip6tese é a de que os dirigentes funcionam,
em relaçao aos dirigidos, sobre 0 registro da autoridade mili-
tante. Os associados estao sob influência, sem nenhuma du-
vida. E notamos que a admoestaçao que 0 vice-presidente
lhes faz se deve a nossa presença. Ele nos percebe, de en-
trada de jogo, coma componheiros da causa socialista-coleti-
vista e nos utiliza em apoio a seu pr6prio poder. A incompe-
tência e 0 arbitrario revestem a mascara do militantismo.
Mas 0 jogo do poder dos dirigentes nao se reduz à uti-
lizaçao desse trunfo. Ele parece penetrado por relaçôes
mais complexas. }a mencionamos 0 fato de os trabalhadores
terem sido socializados em relaçôes de dominaçao as mais
perversas. Também ja mencionamos que a assessoria técni-
ca estatal, teoricamente encarregada de fazer a mediaçao
entre a forma constitutiva do assentamento e os trabalhado-
res, vern delegando esse papel aos militantes em cena, as
chamadas lideronços. ara, considerando que essas lideronços
san trabalhadores que tiveram a mesma trajet6ria social dos
demais, naD é diffcil concluir que eles estejam exercendo,
na qualidade de dirigentes, 0 papel dos patrôes aos quais
todos estiveram historicamente subjugados. Legitimadas
neste papel pelos pr6prios técnicos estatais, padres, respon-
saveis por instituiçôes que lhes prestam apoio financeiro e de-
mais agentes externos que, solidârios à causa militante, os pro-
movem a "lIderes", os tornam "representantes" da maioria e
os reforçam, inconscientemente, no exerdcio arbitrario do po-
der. Do lado dos dirigidos, a aparente passividade, aprendida
também em suas trajet6rias pessoais de dominados, ajuda .a
compor a aparência de democracia exigida pela causa militan-
te. E essa hip6tese naD exclui a outra. Ambas se completam,

65
coma primeira aproximaçao do conhecimento das relaçœs
que se desenvolvem no seio da associaçao, entre dirigentes
e dirigidos. Essa estranha combinaçao da lei militante e da
lei do patrao se traveste, na assembléia geral a que acaba-
mos de assistir, em lei democnltica. Ou na lei que, sendo
por definiçâo partilhada por dirigentes e dirigidos, deveria
estar impedindo 0 exerdcio arbitrario do poder dos dirigen-
tes e a sujeiçao passiva dos dirigidos, corn que acabamos de
nos defrontar.
A partir das revelaçOes dessa nossa primeira semana
junto à pequena coletividade que pretendemos conhecer,
temos maior clareza sobre 0 caminho a seguir e sobre a rela-
çâo a construir corn esses trabalhadores e suas familias.
Sentimo-nos confortaveis corn a posiçao de reserva
adotada de inicio, frente aos componheiros, tanto agentes de
intervençao, como militantes dirigentes. Isto é, temos certe-
za de que naD queremos e naD devemos participar da comu-
nidode para a quaI somos convidados. Nao podemos nos aco-
modar nesse arremedo de democracia que nos levaria, na
pratica, a ser identificados corn as posiçôes dos dirigentes,
em relaçao às quais tinhamos programado nos diferenciar.
Mas, coma nos diferenciar dessas posiçôes sem nos contra-
por a elas? Ou, num outro ângulo, coma definir claramente
nossa pr6pria posiçao diante de nossos interlocutores diri-
gentes ou dirigidos sem interrogar, direta ou indiretamen-
te, essas relaçôes de dominaçâo que se desenvolvem na si-
tuaçao de assentamento?
É a complexidade, recém-descoberta, das relaçôes so-
ciais que legitimam, na associaçâo dos produtores, 0 arbltrio
dos dirigentes e a passividade dos dirigidos que nos leva a
pensar que 0 dialogo programado corn cada uma das pessoas
do assentamento tera de ser, necessariamente, um dialogo
critico. Nao apenas porque naD conseguiriamos firmar nossa
pr6pria posiçâo sem nos· contrapor diretamente a essas rela-
çôes, mas porque temos como objetivo levar nossos interlo-
cutores a se expressarem livremente em relaçâo a n6s e sen-

66
timos agora que, para isso, eles têm que se sentir liberados
das posiçOes sob cuja influência se encontram. Sentimos
que precisamos interrogar essas posiçoes.
Sabemos, de experiências anteriores, que essa interro-
gaçao se faria, indiretamente, à medida que tomassemos 0
cuidado de dispensar igual atençao a cada um dos trabalha-
dores e a cada uma das pessoas de suas familias. Porque
estariamos, corn essa pnitica, rejeitando as desigualdades
existentes entre eles e, ao mesmo tempo, sugerindo-Ihes a
possibilidade das relaçoes de igualdade nas quais nos em-
penhamos. Mas n6s nos programamos para ir além: assumir
uma posiçao mais ativa frente à situaçao de assentamento,
de modo a levar seus componentes a refletirem sobre ela e
a nos revelarem, através dessa reflexao, suas pr6prias possi-
bilidades de evoluir para relaçoes sociais mais adequadas ao
exerdcio da liberdade e da autonomia às quais eles aspiram.
Ou do encontro que consideramos necessario para que eles
possam se unir no enfrentamento das dificuldades ou pro-
blemas que Ihes sao comuns. Dra, assumir essa posiçao mais
ativa significa, agora, estabelecer corn eles um dialogo criti-
co, interrogando as representaçOes das relaçoes de domina-
çao que eles mesmos estao reproduzindo no assentamento.
Logo ap6s a assembléia geral, na tarde desse mesmo
dia, somos abordados na agrovila por dois associados que
estavam presentes na reuniao da manha. Eles fazem parte
daqueles que foram estigmatizados pela vice-presidente
coma individuois. E querem nos dizer 0 verdode sobre 0 fun-
cionamento da associaçao. Em alguns minutos, surge uma
torrente de agravos à administraçao parcial das maquinas
pelo pequeno grupo dirigente e à desonestidade da gestao
do mesmo grupo, de um modo geral. Ainda, a impossibili-
dade de serem ouvidos e reconhecidos nas suas razoes. Sem
qualquer elemento que nos permitisse responder num sen-
tido ou no outro, limitamo-nos a escuta-Ios, pedindo-Ihes
informaçOes mais detalhadas sobre seus problemas espedfi-
cos - 0 calculo das horas trabalhadas coma tratoristas nas

67
roças alheias. Prometemos voltar a falar-Ihes sobre 0 assunto
espedfico quando tivéssemos, nos mesmos, as idéias mais
daras. No momento, 0 que mais nos surpreendia era a rapi-
dez corn a quaI se manifestara essa espécie de apelo ao nos-
so julgamento: de man ha, no inicio da assembléia, 0 vice-presi-
dente tinha ostensivamente desenvolvido sua argumentaçao
critica contra os "maus associados" porque nos estavamos la
e porque pretendia se fazer reconhecer diante de nos, con-
duzindo-nos a um julgamento depreciativo sobre outros.
Agora sao os mous ossociodos que apelam para 0 nosso julga-
mento de seus problemas e do comportamento parcial do
grupo dirigente. Sabfamos que essas praticas de invalidaçao
recfproca faziam parte dos comportamentos paralisantes
que, por hipotese, consideravamos proprios das relaçoes de
dominaçao em curso na situaçao de assentamento. E sabfa-
mos também que terfamos de interrogâ-Ias nas relaçoes que
estabelecerfamos corn cada um dos trabalhadores, se quisés-
semos conduzi-Ios à livre expressao de suas idéias, confor-
me também jâ assinalamos na introduçao deste texto. Ape-
nas surpreendia-nos que esse apelo ao nosso julgamento
nos pegasse assim, jâ no inicio de nosso trabalho. E tendfa-
mos a acreditar que essa rapidez se devia à situaçao de crise
da associaçao, ja identificada.
Nosso primeiro contato corn a coletividade que come-
çamos a conhecer chega ao fim. Antes de nos afastarmos
alguns dias para avaliar essas primeiras impressoes, tivemos
um ultimo encontro corn nosso hospedeiro. Ele chega de
Sao Paulo e nos fala de seu desapontamento. Viajou para con-
versar corn os militantes das comunidades de base da periferia
sobre a venda da recente colheita, e eles se declararam pron-
tos a comprar todas as quantidades de produtos disponfveis.
Voltando ao assentamento, ele constata que todos jâ vende-
ram sua produçao ou planejam vendê-Ia individualmente...

68
II

o trabalhador na Associaçao
dos Produtores

- Eu sei que codo pessoo com quem vocês conversom por


oqui ntio é iguo/... Nos somos trinto e nove fomilios. Mas tem
pessoos... que ntl0 sobem nem como inicior 0 converso, nem como
conversor com vocês... E, de repente, dao 0 entender que nem no
luto elos estiio, niio éP
- Nao sei, a gente esta s6 começando as entrevistas...
- E tem outros que, ils vezes, oté exogerom no desemboro-
ço... Dizem que esM tudo bem estroturodo, que esM dondo certo
com 0 governo... Mos é que se todo mundo tivesse 0 mesmo penso-
mento... folondo 0 verdode pro vocês, 0 nosso luto estnoo viton'o-
'P
so, VIU.
- Mas isso nao é possîvel... As pessoas sao mesmo
diferentes e pensam diferente, nao?
- Mos tem que oconteœr um dio... Codo pessoo que eu con-
versor, dizer ossim: nos temos isso, isso oqui é nosso... E quondo
ocontecer isso, oi eu digo: ogoro vomos nos associor uns oos ou-
tros... Que 0 unico coiso que eu espero de bom é 0 sociolismo no
Brosi/'" Eu MO sei se eu tenho umo visiio meio odiontodo, enxergo
muito longe.. Mas eu espero oindo... E 0 luto que 0 gente foz niio é
so no Estodo (de Sao Paulo). Tombém tentomos fozer em todo 0
Brosil, 0 luto pelo reformo ogrtirio... Que sejo umo terro poro usu-
/roto dos pessoas, sem visiio de lucro, sem direito de vender...
69
Esse trecho da entrevista realizada corn Pedrao, chefe
de famîlia, representante dos setores da Igreja Cat6lica en-
volvidos no programa e pertencente ao grupo que lidera 0
projeto associativista no assentamento, nos fornecia, ja no
inî'cio de nossas investigaçoes, as bases do padrao de inte-
graçao dos trabalhadores proposto por este projeto: a defini-
çao de um modelo de organizaçao do assentamento cons-
truido sobre uma representaçao idealizada da participaçao
dos trabalhadores no processo mais geral de transformaçao
da sociedade brasileira. Processo este que se traduzia, na
linguagem dos trabalhadores, através de um discurso que
adicionava às categorias solidariedade, fraternidade e comu-
nidade, do projeto religioso da Igreja Cat6lica, e luta de
classes, poder econômico e socialismo, do projeto revolucio-
nario da esquerda tradicional. Dm discurso que se pretende
homogeneizador dos interesses de todo 0 grupo de trabalha-
dores e que, na pratîca, contrapOe os militantes aos nao-militan-
tes, isto é, àqueles que saD individualistas, so pensom nos seus
interesses pessoais e estao permanentemente prontos a trair as
causas comuns ou do movimento.
Vencer a barreira do discurso construido sobre essas
abstraçOes era nosso primeiro desafio nas entrevistas corn os
chefes de familias do assentamento. Sobretudo, porque elas
se iniciavam, por uma questao de respeito ao principio da
representaçao democratica, corn as lideranços. E porque es-
sas lideronças, confundindo-se na maioria das vezes corn os
militantes politicos existentes, eram as principais portadoras
da "hist6ria oficial" que se produzia no assentamento a par-
tir do referido projeto.
Conhecer as relaçoes sociais que se ocultavam atras
dessa "hist6ria oficial", a prop6sito da organizaçao da asso-
ciaçao e da produçao no assentamento, era 0 objetivo cen-
tral deste momento de nossas investigaçOes. Sem 0 que nao
poderiamos desenvolver corn os trabalhadores entrevistados
o dialogo critico programado.

70
Conhecemos Pedrao num dos encontros referidos no
capitulo anterior. Nessa oportunidade, expusemos-Ihe nos-
sas intençoes de trabalhar ali e pudemos ver que se tratava
de trabalhador encarregado de representar 0 grupo junto às
instituiçoes preocupadas em contribuir para 0 avanço das
politicas de assentamento. Vma espécie de "ministro das
relaçOes exteriores", como passamos a chama-Io à medida
que nossas relaçoes se tarnaram mais transparentes. Nesse
momento ele ainda nos tamaya, naD obstante nossa apre-
sentaçao inicial, coma representantes do governo ou do po-
der constituido no assentamento. E nos contava em detalhe
a historia das vitorias do movimento de conquista da terra e
da uniao das 39 familias de trabalhadores que se decidiram
por permanecer associadas e morando na agrovila, apesar
das muitas dificuldades enfrentadas corn os individuois,
conforme SaD chamadas as quarenta familias que optaram
por moror no lote e naD participar da associaçao. Finalizando,
procurava assegurar-se de nosso reconhecimento, de um
lado, identificando-se corn 0 que entende ser a nossa causa:
a reforma agniria e 0 socialismo; de outro, diferenciando-se
dos demais componheiros, através da desvalorizaçao dos mes-
mos - os que naD sabem nem conversor ou nem poream estor
no luta.
Tudo indica que, ao refenr-se a esses componheiros, Pe-
drao estava também preocupado corn as informaçoes que
receberiamos de outros trabalhadores. Sabia que conversa-
riamos corn todos e procurava se proteger de informaçOes
divergentes das suas, colocando-se entre aqueles que SaD
mais verdadeiros porque, mesmo estando no luta, naD exoge-
rom no desemboraço. Mais ainda, firman do-se como portador
de uma visiio meio odiontodo. Mais tarde, confirmaria essa
nossa impressao, comentando: VOC&l" es/iio vendo que os coisos
MO siio bem como eu con/ei, niio é.? Mas, no momento dessa pn-
meira entrevista, nossa presença naD 0 interrogava no sentido
que haviamos programado. Porque sua inquietaçao era corn 0
bom desempenho de seu papel frente à autaridade constitui-

71
da que via em nos. Tanto assim que continuava fazendo-se
reconhecer pelos mecanismos habituais de invalidaçao de
outros. A contraface da "historia oficial" do assentamento.
Confirmando sua extrema alienaçao ao discurso mili-
tante, a trajetoria pessoal de Pedrao limitava-se quase que
exc1usivamente a comprovar sua Ofigem rural e sua instabi-
lidade no trabalho urbano, dois dos critérios institufdos pelo
processo de seleçao dos trabalhadores a serem assentados.
Suas referências aos três anos de assentamento pouco di-
ziam sobre 0 cultivo da terra e as dificuldades enfrentadas
nesse trabalho. E, finalmente, a visita ao quintal, programa-
da coma parte desse contato inicial, revelava 0 desinteresse
de nosso entrevistado pelo mesmo: afora um pequeno po-
mar iniciado no entusiasmo da chegada, 0 mata crescido
contrastava corn a terra batida contornando 0 barraco onde
morava corn sua famflia.
Nesse sentido, estâvamos diante de um casa tfpico do
que entenderfamos mais tarde coma sendo 0 custo maior da
alienaçao das lideronços ao discurso militante: 0 desligamen-
to das mesmas para corn os problemas da maioria, ou da-
queles que deveriam estar representando.
Na entrevista corn Raimundo, outro chefe de famflia
ligado à Igreja Catolica e à causa da associaçao, pudemos
nuançar essa primeira impressao e adentrar 0 conhecimento
das relaçOes existentes no assentamento.
Raimundo nos recebeu calorosamente e iniciou uma
conversa sobre a assembléia a que havfamos acabado de as-
sistir. Procurando explicar-nos as dificuldades existentes, fa-
lava da desconfiança de todos em decorrência da desonesti-
dade dos que estiveram, are 0 momento, encarregados da
gesœo do dinheiro recebido. Temendo que essa cumplicidade
precoce legitimasse velhas prâticas de se fazer reconhecer
pela invalidaçao dos demais, concordamos corn a gravidade da
situaçao mas mostramo-nos mais interessados pela sua propria
trajetoria anterior e posterior à chegada no assentamento:

72
- Vocis" querem que eu conte de umo formo de... processo,
de todos os componheiros ou SO 0 meu?
- Como foi do lado do senhor. Depois, se quiser, 0
senhor fala dos companheiros...
- Como OCOfTeu M no Trevo do Esperonço, quondo estti-
vomos (acampados) M. A senhoro conheœ 0 Antonio Pimento?
-De nome.
- Ele foi condidoto 0 deputodo no eleiçiio possodo. E ro
um dos Ifderes que ocomponhovo 0 gente... Entoo, Id no Trevo do
Esperonço, foi morcodo um encontro gronde. Veio gente de muitos
boifTOS de Soo Poulo, de Limeiro, veio gente de muitos portes... E
quem 0 Antonio Pimento escolheu paro fozer 0 polestro e contor 0
vido? .. Ele me escolheu... Eu noo sei se eu sou ossim...
- 0 senhor parece falar 0 que 0 senhor pensa. Deve
ter sido por isso.
- É, eu contei por que estouo oli, como descobri oquelos
reuniiJes... como 0 gente clzegou noquelo unioo pro podergonhor 0
terro... E é mois ou menos isso que eu vou folor ogoro.
Raimundo contou como, casado e corn quatro filhos
pequenos, mal conseguia sobreviver corn 0 sahirio minimo
que recebia coma vigia de uma grande empresa metahirgi-
ca. Insatisfeito e muito ligado à Igreja, foi informado da
existência de experiências de assentamentos pelo Estado e
viajou à procura de uma vaga num deles. Nao conseguindo,
viajou para a casa do pai, no Estado do Parana, onde tentou
conseguir terras para arrendar, também naD encontrando.
Finalmente, através da pr6pria Igreja, soube do grupo que
daria origem ao assentamento ao quai pertence e integrou-
se ao mesmo. Toda essa trajet6ria era apresentada através
do relato detalhado das muitas dificuldades contornadas: as
viagens eram feitas aproveitando os dias de folga e aigumas
faltas a que tinha direito no trabalho de vigia. As passagens
eram compradas corn dinheiro emprestado ou tirado das
despesas da fa mIlia. Noites eram passadas nos ônibus ou
nas rodoviarias, naD raramente sem qualquer alimentaçao...
56 por ocasiao do acampamento no Trevo da Esperança,

73
quando jâ tinham sido iniciadas as negociaçOes corn 0 go-
verno do Estado, deixou 0 emprego e passou a se dedicar
integralmente ao movimento, onde participou de diferentes
comissoes de trabalho, enquanto a famîlia esperava, na cida-
de e mantida corn 0 dinheiro que recebera do FGTS - Fun-
do de Garantia por Tempo de Serviço -, 0 momento do
acesso à terra conquistada.
A hist6ria de Raimundo ilustrava, no essencial, 0 dis-
curso poHtico da Igreja em defesa da reforma agraria, 0 dis-
curso da reforma agrâria coma poHtica compensat6ria dos
custos sociais do desenvolvimento econômico, cuja contra-
face era a existência de uma populaçâo sub-remunerada e
superexplorada que via na terra a unica possibilidade de
uma vida corn mais dignidade.
Coerente corn a representaçâo que se fazia de sua pr6-
pria hist6ria, Raimundo assumia, no assentamento, 0 papel
de defensor das causas do movimento. Mas, no seu dia-a-
dia, esbarrava nas dificuldades que 0 projeto associativista
Ihe criava, as quais procurava enfrentar vivendo um proces-
so permanente de reflexâo e busca da sua suposta coerência
originaria, para 0 quai nos tomaria, muito cedo, coma refe-
rência importante.
No momento, entretanto, ainda nos tomava coma repre-
sentantes do poder constituido, pela quai procurava se fazer
reconhecer e junto ao quai procurava justificar-se. Para se
fazer reconhecer contava corn sua pr6pria trajet6ria de vida
e corn sua grande capacidade de trabalho. Seu quintal e sua
roça eram impecavelmente cuidados e dos mais prod utivos
da agrovila. Para se justificar, entretanto, debatia-se corn as
dificuldades que 0 compromisso assumido em relaçâo ao
trabalho associado Ihe apresentava. Assim, por exemplo,
quando percebeu que a entrevista tendia a ser encerrada,
apressou-se a ajuntar:
- E lem mais uma coisa que a sennora ntl0 pergunlou e
ntl0 sei se inleressa lambém...

74
- Claro. E deve ter muita coisa mais ainda... A gente
vai voltar muitas vezes... Mas, fala.
- É sobre 0 Irobolho de grupo... No começo, quondo nos
10cOvomos um olqueire e pouco, nos experimenlomos 0 /robolho
de grupo. E eu ero 0 coordenodor, 0 primeiro coordenodor, mos
enlrorom uns elemenlos... queforom caindo no meu grupo.
- 0 senhor nao participou da organizaçao do grupo?
Caindo como?
- Forom coindo porque sobrou muito genle... Porque ou-
Iros niio queriom ou porque os oulros grupos jo eslovom comple-
los ou porque eles niio queriom ser de oulros gropos... Enliio eu
concordei, mas no fim me deu muilo dor de cabeço... É que eu MO
sou de disculir e brigor, mas houve muito provocoçiio e brigo...
- Dentro desse grupo?
- É, denlro do meu... Comigo!
- Corn 0 senhor?
- É, mous /rolos... Me Irolovom de pOlriio... Eu perdio
dios de servifo olrtis de orgonizofilo, mas niio linho compenso-
filo... Mos ossim mesmo fiquei uns dez meses no cargo de coorde-
nodor... E denlro desses dez meses nOs fizemos umo colheilo de
feijiio... E deu umo sofro de feijiio que ficou 0110 ossim... Mos,
quondo começomos 0 colher, com quolro, cinco dios, veio uma
chuvo de onze, doze dios... E perdemos 0 feijiio. AI 0 resullodo
niio deu cer/o porque uns colherom e oulros niio... Oulros niio
colherom nem poro comer.
- E coma isso foi resolvido?
- Eu deixei poro comer... Eu comi 0 feijiio brolodo... Por-
que, depois que perdemos 0 feijiio, codo um foi liberodo poro co-
Iher 0 seu... Mos eu fiquei observondo... Um homem que é "indivi-
duol" Iti pelo Iodo de Iti, Irobolhou - ele e 0 mulherjunlos - e
linIJo um feijiio que ero umo morovilho. No horo de colher, ele e 0
fom/lio orroncarom 0 feijiio em dois dios... Se fossem esperor 0
Irobolho de gropo, linhom perdido 0 deles lombém... Eu fiquei
onolisondo isso. Eu e minho mulher, nos lombém, se nos orru-
mtissemos miios de componheiros, nos colhlomos 0 nosso...

75
- Mas coma esse problema foi resolvido? Se 0 traba-
lho era de grupo, 0 feijao colhido deveria ser dividido por
todos, nao?
- Ntio. Ficou nisso of. Quem co/heu, co/heu, e os que ntio
co/herom forom /iberodos poro co/her 0 seu... Mos jd estovo tudo
perdido... E depois eu SOt de coordenodor. .. Eu ogoro estou no
grupo IV, mas eu continuo ochondo que ntio funciono esse negocio
de co/herjuntos... No grupo tem umo turminho de pessoos que stio
sozinhos (nao têm familia em condiçoes de trabalhar) que gos-
tom oindo de trobo/hor juntos. E e/es têm roziio porque sozinho
ntio se foz noda... So que tem um dela/he, serDiço em turmo tom-
Mm ntio rende muito. Porque no grupo tem esse negocio: eu ntio
posso COTTer, trobo/hor no minho toto/idode, porque 0 outro ntio
trobo/ho firme... Esse ono mesmo eu ntio trobo/hei junto. Eu reu-
ni eu, minho mu/her, meu sogro, esso menino (onze anos), os dois
meninos (nove e dez anos) e... oté a menorzinho (cinco anos).
E/o pego umo rua e voi devogorinho e voi oTToncondo... No
horo de omontoor 0 feijtio poro boter, junto todo mundo... e é
ropidinho. Enquonto que se eu fizesse em grupo io eu so, porque,
quondo 0 outro vem pro mim, e/e vem sozÎnho... Porque crionços
eles ntio oceitom e... nem mu/her e/es oceitom... Porque mu/her no
meio dos homens nem é bom, ntio éP... E tem mois... Vomos supor,
se estti em grupo, um voi mois torde, outro troba/ho menos... horo
do o/moço... hortirio do desconso... Sempre hti umo interdiçtio do
rendimento do trobo/ho. Enttio hti um tipo de poro/isoçtio do
proprio serDiço e eu ntio sou copoz de trobo/hor ossim...
- Parece que nao da muito certo, nao?
- Ntio dti muito œrto. Rende mois se coda um pego efoz 0 seu.
E depois de relatar detalhadamente mais duas expe-
riências frustradas de trabalho em grupo, Raimundo con-
clui: Eu estou citondo isso porque pode ser que o/guém rec/ome,
nos entrevistos, que tem gente que é individuo/isto, que ntio gosto
de trobo/hor em grupo, que isso e oqui/o... Mas é so nesso parle
que a gente vê que nao dticerlo... Agoro, a tomboçao, 0 preporo
do solo, a p/ontoçtio, tudo é em comum. É so mesmo no co/heito e
no corpo que a gente ze/o do que é do gente...

76
Ao nos despedirmos, procuramos reforçar a inquieta-
çao de nosso interlocutor no tocante à questào do melhor
funcionamento do grupo:
- Foi muito bom esse nosso bate-papo. A gente vai
voltar para conversar mais sobre essa questao do funciona-
mento dos grupos. Nôs também achamos que a organizaçao
é importante. Mas ela sô vai dar certo se estiver permitindo
o maior rendimento do trabalho, nao é? Se a organizaçao
estiver atrapalhando 0 rendimento do trabalho, ela nao vai
dar certo... Sao coisas para a gente conversar mais... A gente
vai voltar.
- Se Os vezes eu folci olgumo coiso efTodo... vocês me des-
culpem.
- Para nôs nao tem certo ou errado, seu Raimundo.
o senhor fala 0 que 0 senhor pensa. Um outro pode pensar
diferente... Mas se todos falarem 0 que pensam, vocês aca-
barao se entendendo, nao é?
Estava definida a base de nossa relaçao corn Raimun-
do. Ele nos aparecia coma um casa tfpico da tensao que
supunhamos ser necessario deixar emergir dentro da asso-
ciaçao: a tensao - ou conflito - entre os interesses pes-
soais dos trabalhadores e os ideais associativistas das lideron-
ços. E nos oferecia elementos concretos para 0 questionamento
do discurso militante. É verdade que, no seu caso, a profun-
da formaçao religiosa - tinha sido seminarista - seria um
complicador. Porque 0 levaria sempre ao maniquefsmo do
certo ou errado. Caminho pelo quaI tenderia a fortalecer os
ja referidos mecanismos de exclusao ou invalidaçao de ou-
tros trabalhadores e de suas famflias, conforme veremos,
quando da analise de nossa trajetôria junto a essas famflias e
ao quotidiano do assentamento. Por ora estavamos apenas
começando nossas investigaçoes, e ele nos indicava os cami-
nhos das tensoes existentes a prop6sito da organizaçao.
Tensoes que se reproduziam no seu prôprio grupo e que
supunhamos permear as relaçOes de poder dentro do assen-
tamento coma um todo.

77
Pedrao e Raimundo pertenciam ao grupo que, desde
o prindpio, identificamos coma sendo 0 "grupo dos militan-
tes", porque, além desses dois representantes das CESs,
reunia, entre seus componentes, dois trabalhadQres cuja in-
fluência na assembléia a que tî'nhamos assistido era eviden-
te e que soubemos ligados ao M8Te participantes de antiga
diretoria da associaçao. Um desses lî'deres, Matias, se fazia
acompanhar de um tio e um primo, corn suas respectivas
famûias. E Raimundo nos informara também da presença
de seu sogro, no mesmo grupo. A existência de laços de
parentesco, portanto, era um outro dado importante na
compreensao da 16gica interna desse "grupo de militantes".
Enquanto aguardavamos a oportunidade de entrevistar
esses dois lî'deres dos "sem-terra", sempre divididos entre
os compromissos externos e internos, aproveitamos para ini-
ciar nossas entrevistas corn alguns dos chefes de famllia
que, tendo optado por moror no foIe, nao participavam da
associaçao e estavam instalados em duas areas contî'guas e
separadas da area da agrovila por duas rodovias - os cha-
mados, desde 0 inî'cio, individuois. Nosso programa de tra-
balho previa 0 estudo aprofundado também dessas quarenta
famûias, mas, tendo optado por iniciar nossas investigaç5es
pelas 39 famûias associadas, 0 objetivo dessas entrevistas,
no momento, era fazer nossos primeiros contatos e colher
informaçOes que nos permitissem compreender as razôes
que levaram à divisao do grupo - em ;nd;v;duo;s e associa-
dos. Intuî'amos que essas mesmas razOes ajudariam a expli-
car parte dos problemas que a pr6pria associaçao estava vi-
vendo. Sobretudo porque a discriminaçao dos individuois
continuava existindo no seio da associaçao. E 0 conheci-
mento dessa dinâmica se somaria às informaç5es ja disponî'-
veis, nos nossos prop6sitos de interrogar 0 discurso militan-
te de nossos pr6ximos entrevistados na associaçao. Nossos
prop6sitos, cabe lembrar, de definir um diâlogo crî'tico corn
os mesmos.

78
Nao tardamos a confirmar algo que ja mencionamos
enquanto hip6tese. Isto é, que a organizaçao proposta pelas
lideronços e pelos técnicos estatais coma condiçao de acesso
aos beneficios que eram oferecidos ao movimento pelas
üNa - doaç6es - e pela politica de assentamentos -
créditos subsidiados para a cornpra de maquinas ou equipa-
mentos agricolas, luz, agua, ete. - teve um papel decisivo
nessa divisao entre associados e individuois. Dificultando as
negociaçoes iniciais, uma vez que s6 quem aceitasse 0 siste-
ma da agrovila teria acesso a esses beneficios. Nessa injun-
çao, os que optaram por moror no lote resistiram, evidente-
mente. Ora conformando-se corn a exclusao que Ihes era
imposta, ora afrontando, muitas vezes de maneira organiza-
da e violenta, as lideronços. Mas perdendo sempre. Além
dessas dificuldades, havia também referências aos proble-
mas corn 0 trabalho de grupo, à desconfiança em relaçao à
honestidade das lideronços na gesœo do dinheiro e demais
doaçoes recebidos pelo movimento e à incompetência das
mesmas na administraçao da pr6pria organizaçao. Esses da-
dos ajudaram a reconstruçao da 16gica interna do "grupo dos
militantes" e permitiram um minimo de dialogo crftico corn
seus participantes, ja nessas primeiras entrevistas.
A entrevista corn Matias foi bastante tensa. Embora
nos recebendo de maneira acolhedora - começamos nosso
trabalho corn uma visita a sua casa e sua famflia - , adotou,
na entrevista, um tom agressivo bastante significativo e po-
sitivo aos nossos olhos. Ao que tudo indica, nos tomava por
representantes do poder estataI. Mas, diferentemente dos
dois primeiros entrevistados, nao buscava nosso reconheci-
mento. Muito mais nos afrontava, procurando firmar sua
pr6pria autoridade.
Começou contando, a pedido nosso, sua trajet6ria pes-
soaI. A historia do filho homem em meio a sete irmas, que
ajudava a manter a famflia, ocupando-se da roça enquanto 0
pai se assalariava coma diarista. Historia do pai pobre e ex-
plorado, durante anos e anos, no sitio de um tio rico. Histo-

79
ria do jovem que saiu de casa aos dezenove anos, quando
parte das irmas ja havia se casado e dois irmaos mais novos
ja podiam ojudor no roço. E, finalmente, historia do jovem
que aprendeu sozinho a importância de estar organizado e
de lutar para superar sua pobreza originaria:
- Ho cinco onos que eu estovo no ESlodo de Sao Poulo...
E quotro onos que eu trobolhavo Id... Af eu comecei 0 ver... A
gente tinho 0 cobeço virodo pro corombo... Amovo que cora que
foz greve é nego vogobundo... Por que nao estovo trobolhondoP
Nao estovo gonhondoP Eu tinho umo cobeço ossim... Mos quon-
do você tem umo vida sofrido, você onoliso muito 0 que os outros
fozem, e principolmente se oquilo do cer/o começo 0 onolisor
muito: PÔ! Fez greve e conseguiu oumento Olho! Os coros que-
brorom dois ônibus e no outro dio ônibus ondou direto... Af 0
gente porou pro onolisor... E começou 0 pensor que 0 que 0 gente
possou... os dificuldodes... tolvez lenho sido por couso do gente
nao ter feito nodo... Af 0 gente começou 0 conversor com os com-
ponheiros que foziom greve... E des possorom pro gente quoI 0
imp0r/ôncio do greve... E oi veio 0 Movimento dos Sem-TéfTo .
A gente viu que os pessoos do primeiro grupo tinhom conseguido .
do segundo...
Essas conversas que 0 levaram ao movimento de luta
pela terra aconteciam na igreja do bairro onde morava. Mas
o que nos chamava particularmente a atençao era 0 tom in-
timista corn que Matias nos relatava 0 processo que 0 leva-
ra à luta pela terra. Processo vivido interiormente e que 0
diferenciava, aos nossos olhos, de tantos outros. Porque ele
naD pertencia simplesmente ao M8T, ele se identificava corn
o movimento. 0 que justificava seu papel de liderança e Ihe
permitia ser criativo e critico em sua propria militância:
- A gente, quondo tem umo vido focil, 0 gente nao ligo
muito poro os coisos que os outros fozem... Tem tudo, nao é.p...
Mos quondo você tem umo vido sofrido, vocêonoliso mu;to 0 que
os outros fozem e, principolmente, oquilo que do cer/o... Entao 0
gente ocobo coindo no reolidode Tém muito gente quefolo que 0
gente tem que conscientizor 0 povo Eu nao sei, mos ocho que isso

80
é besteiro. Aeho que eonsciêncio ninguém poe no eobeço de nin-
guém... A gente pego sozin!Jo, por si...
Por esse caminho nosso entrevistado nao perdia a
oportunidade de interrogar nossa suposta autoridade. Falan-
do-nos, por exemplo, da organizaçao atual de seu grupo ele
explica: A gente tem que experimentor vorios tipos de orgonizo-
çiio... Porque 0 gente niio émois crionço... A gente sobe onolisor
tombém 0 que os pessoos pensom... A gente niio é nenhum psieolo-
go nem nenhum pesquisodor, mos tombém do pro onolisor, niio éP
Nao respondîamos a esse tipo de interrogaçao. Senti-
mos que ele nao queria, coma n6s mesmos, uma relaçao
paternalista ou, no caso, uma explicaçao ou justificaçao nos-
sa. E isso, evidentemente, nos estimulava. Ele descobriria
nossa pr6pria autoridade ou nos diferenciaria das autorida-
des que conhecia, na pratica de nossos dialogos apenas iniciados.
No tocante à organizaçao de seu pr6prio grupo, a eficâ-
cia de suas convicçoes parecia evidente. A inovaçao do mo-
mento era resultado da experiência vivida. No ana anterior
os financiamentos para 0 custeio dos cultivos tinham sido
feitos por grupo. 0 coordenador, depois de fazer as despe-
sas comuns corn 0 preparo da terra, 0 plantio e os adubos,
dividia 0 dinheiro restante entre todos os participantes. Isso
criou problemas sérios no casa das despesas eventuais -
quebra de trator, defensivos - e no pagamento da divida ao
banco. Porque ao administrar seu dinheiro, cada famîlia se
deixava levar por suas pr6prias necessidades - alimenta-
çao, saude - e por seus pr6prios critérios de prioridade,
ficando 0 pagamento do banco na dependência apenas dos
sempre incertos resultados da colheita. A soluçao encontra-
da pela grupo para enfrentar esse problema foi um acordo
para que 0 dinheiro permanecesse até 0 final sob a adminis-
traçao do coordenador e, portanto, s6 fosse usado para des-
pesas ligadas aos cultivos. Dessa forma, 0 grupo estava con-
seguindo resolver corn eficacia as referidas despesas
eventuais e chegar ao momento do pagamento da divida
corn dinheiro em caixa.

81
A esse modo de administraçao do dinheiro correspon-
dia uma forma de organizaçao do trabalho, à quaI Raimundo
ja havia se referido e na quaI Matias nao se deteve. Toma-
mos essa omissao coma indicativa da fragilidade de sua li-
derança no assentamento. Isto é, de sua dificuldade em
pensar a organizaçao do coletivo a partir do reconhecimento
dos projetos ou interesses da maioria das familias de traba-
lhadores. No caso, sua dificuldade de olhar para os conflitos
que diferentes projetas ou interesses pessoais produziam no
dia-a-dia do trabalho de todos e de cada um.
É verdade que seu pr6prio grupo, relativamente ho-
mogêneo, nao parecia apresentar conflitos internos muito
acirrados. Além dos ja mencionados laços de parentesco e
afinidades ideol6gicas, ele era formado por familias eviden-
temente bem-estruturadas e empenhadas no trabalho agri-
cola. Era, na expressao dos pr6prios trabalhadores, um gru-
po de fOr/es, resultante, provavelmente, de um processo
gradativo de seleçao dentro do assentamento e tendente,
por conseqüência, a mecanismos de ajustamento progressi-
vo dos interesses de seus componentes. Mas interrogava-
mo-nos sobre a eficacia da liderança de nosso entrevistado
na situaçao de assentamento coma um todo. E esbarrava-
mos na sua forte resistência ao reconhecimento de seus
companlJeiros de luta:
- Hoje estiio acontecendo com a gente algumas coisas efTa-
das... Mas isso niio significa nada... Eu acIJo que coda um vai
cer/o até 0 dia que quer. Se ele niio quer mais, é problema dele...
Agora, eu »110 vou entor/ar também... Eu acIJo que eu tenIJo que
procurarfazer certo, que é para eu poder corri~r 0 fulano que faz
efTado... Porque aqui no assentamento existem pessoas de toda
espécie... Tem pessoas que foram pro movimento com segundos in-
teresses, interesses proprios... Entiio a gente tem desse tipo de pes-
soa aqui... Pessoa que estti sempre de pé atras, niio estti assim de
corpo e alma... Pessoa que 0 dia quefizer uma collJeita boa, larga
tudo e vai embora. Mas existem essas pessoas em todos os assenta-
mentos... E tem gente que fala que um companlJeiro que se perde

82
fracasso mois 0 luto. Mos eu ntïo vejo por of. Porque ontes você
ter duos pessons que tenhom quolidode do que ter doze sem tipo...
Você tem que contor com 0 pessoo que vocêtem certezo que no hora
que preciso esttl oli...
Assim, Matias vai nos contando a hist6ria da divisao
entre individuois e associados e as dificuldades atuais da as-
sociaçao. Através de um discurso que, embora extremamen-
te coerente, nao consegue incorporar a maioria dos trabalha-
dores. Porque para ele 0 objetivo do ossocioçlio ntïo é lucro, 0
orgonizoçlio émois importonte do que 0 roço e os associados
têm que ter presentes essas questoes de prioridode.
Nosso espaço de intervençao se definia por ai. E pro-
curamos ocupa-Io ja nessa primeira entrevista. Inaugurando
um longo processo de trocas corn Matias e sua famllia, con-
forme veremos mais para a frente. Os pontos que nos per-
mitiram avançar nessa troca, ja nesse primeiro momento, re-
feriam-se à quesœo da participaçao/nao-participaçao dos
trabalhadores na associaçao. Depois de chegar ao desfecho
de seus relatos sobre os conflitos vividos corn os individuois,
ele conclui:
- Derom 0 foro. Deu um monte de trobolho e hoje tem so
39 no nssocioçlio.
Diante clesse tom fatalista, argumentamos que talvez
um dia eles voltassem e que vendo os resultados da associa-
çao poderiam, quem sabe, rever suas antigas posiçoes...
Meio surpreso, ele pondera:
- Nlio, nlio volto. Porque coletivismo nlio é pro todo mun-
do. É por isso que eu coloco pro pessool dos (outros) nssentomen-
tos que ninguém deve ser obrigodo 0 ser ossociodo Se nlio entro
no cobeço dele 0 ossocioçlio, melhor deixor de foro Porque senlio
depois ele voi dor problemo poro 0 ossocioçlio...
- É, ninguém deve ser obrigado. Forçado nao da
mesmo certo.
- É,forçodo nlio do certo...
- É, você nao pode forçar...

83
- É, nôo odionto... E 0 gente oqui... Acho que 0 moior
dificuldode do ossocioçiio foi esso, ni.? Nôo foi umo coiso ossim
bem oprofundodo... que desse umo cerlo liberdode... Foi umo coi-
so meio forçodo... Entôo deu problemo pro nos... Porque 0 gente
ochou que, seforçosse um pouco, 0 cora ftcovo...
- Quem sabe um dia des voltam atflis e entram na
associaçao.
- Agora é diffcil entror... É meio diffci!... Porque 0 proposto
do ossocioçiio ero ogoro ou nunco... Porque é diffcil 0 gente começor
do nado... E depois que (a associaçao) tem um cer/o copitol, 0 outro
pessoo que esttf no nado entror com esse volor de copi/oH)
Contamos-Ihe a experiência de um assentamento onde
a associaçao foi sendo progressivamente abandonada por-
que se endividou no banco, levando muitos trabalhadores a
deixarem 0 assentamento. Corn a ajuda do sindicato local,
os associados restantes reorganizaram a associaçao e, bem
assessorados na parte administrativa, começaram a levanta-
la. Pouco a pouco, diante desses resultados, novas fami1ias
que chegavam para substituir os que partiram começaram a
ingressar na associaçao, aproveitando aiguma safra bem-su-
cedida para pagar a sua quota de capital. E a associaçao foi
comprando mais maquinas e crescendo. E conclufmos:
- Faz tempo que nao vamos la. Mas, até onde temos
noticias, esta dando certo. Depois que des começaram a se
organizar nao mais daquela forma que veio imposta, naque-
la idéia do coletivo idealizado... Corn mais realismo... Em
cima das proprias necessidades dos trabalhadores.
- 0 negocio do coiso imposto é dose! Porque dor 0 idéio é
foci!... Mos eu quero ver no profico isso... No dio-o-dio voœvoi
sober se do cerlo ou nôo do... É fogo isso oi.
Nosso dialogo estava começado. Matias ja sabia que
nao éramos portadores do discurso institufdo no assenta-
mento e nos sabfamos por onde passava sua alienaçao a esse
discurso. Ou por onde sua grande capacidade de liderança
estava limitada. Quando estavamos quase terminando nossa
entrevista, chegou Aparecido, 0 presidente da associaçao.

84
Pareceu-nos prov:lvel que estivesse criando uma oportuni-
dade para nos conhecer. Apresentamo-nos corn toda a aten-
çao, explicando-Ihe que tfnhamos pragramado passar por
sua casa nesse mesmo dia e nos desculpando pelo desen-
contra havido na reuniao em que pretendiamos expor a to-
dos as razOes de nossa presença no assentamento. Marcamos a
melhor hora para uma conversa na sua casa e conversamos
sobre assuntos do momento.
Essa entrevista corn Aparecido nos traria significativas
surpresas. A primeira delas ligada ao fato de ele nos aguar-
dar acompanhado de Almir, 0 atual vice-presidente e anti-
go presidente da associaçao. Num primeira momento, en-
tendemos que isso estava Iigado ao formalismo que nos
mesmos pracuramos dar a esse encontra corn 0 presidente
da associaçao. Pouco a pouco, entretanto, fomos perceben-
do que as questoes endereçadas a Aparecido sobre as regras
de funcionamento da associaçao eram respondidas pelo
vice-presidente. Numa evidente demonstraçao de que a
atual diretoria era a simples continuidade da anterior e de
que 0 atual presidente talvez fosse um mera recurso tatico
utilizado por Almir para permanecer no poder. 0 que nao
podia ser tomado coma um mera arranjo formaI, conside-
rando a crise em que a associaçao parecia estar mergulhada,
e aparecia coma especialmente revelador, à medida que
descobrfamos em Almir traços nitidamente paternalistas.
Mal começa a entrevista, ele toma a palavra para res-
ponder às referidas questOes sobre os aspectos formais da
associaçâo e, diante de perguntas sobre coma isso tudo esta-
va funcionando, ou sobre os problemas por eles enfrentados
no tocante ao funcionamento da associaçao, responde:
- A diftculdode que oindo existe... 0 diftculdode moior que
a gente tem é morodio.
Era evidente que nos tomava como representantes de
alguma das aNa das quais estava habituado a receber di-
nheiro - 0 fato de um dos pesquisadores ser francês favo-

85
recia essa sua percepçao, em razao do que apresentava, a
seguir, seus credenciais:
- A organizoçiio a gente tem... a organizoçiio para conse-
guir maquinas, para organizor 0 pessoal, para montar a associa-
çiio como ela existe hoje... A organizoçiio foi bastante di/icil, por-
que 0 pessoal niio era acostumado a isso... mas assim mesmo a
gente conseguiu chegar num ponto que tivesse a associaçiio monta-
da como esta... E daf pra frente batalhar para conseguir jinan-
ciamentos subsidiados, essas coisas... Isso foi bastante dijicil, mas
com a ajuda dos técnicos af a gente conseguiu arrumar dinheiro
do BNDS para comprar esse maquinario que estti af. .. Dafpara a
frente a coisa foi melhorando... E a partir de que a gente conse-
guiu 0 maquinan'o, 0 dijicil foi ter 0 pessoaljunto, para que niio
desista, niio va embora Porque em todos os assentamentos as
pessoas desanimam e viio Mas aqui a gente estafazendo bastan-
te reuniiio para que 0 pessoal se conscientizasse de niio sair, a
gente conseguiu.
Aproveitamos a oportunidade para conversar sobre os
que desistiram da associaçao e ouvimos a ja mencionada
"historia oficial" conduzida, pouco a pouco, para a perda
que isso significou para os individuais, privados que se vi-
ram de maquinario, financiamentos especiais, etc, etc. Ten-
tando interrogar esse discurso, ponderamos ter visto, entre
os individuais, roças e casas que revelavam que eles naD es-
tavam tao mal assim...
- Porque leva sorte... Na agricultura uma parte é sorte...
Depois de um longo discurso sobre os efeitos do clima
nos resultados da agricultura e diante de nossa pergunta so-
bre se os individuais tinham algum tipo de ajuda de fora,
Aparecido responde que niio, niio têm... se têm, niio estou sa-
bendo. Ao que Almir ajunta:
- Eu niio sei... A ajuda que os individuais tiveram foi da
Prefeitura. Com as casas que ela constroiu para eles...
E estende-se numa longa historia, ja nossa conhecida,
sobre duas unicas famîlias que tinham sido assentadas
numa area que a Prefeitura necessitou e que concordaram

86
em receber uma casa nova, em lugar dos barracos que Ja
tinham construfdo, para mudar de area. Ap6s essa tentativa
de generalizar uma situaçao evidentemente particular e ex-
cepcional, continua a falar nas vantagens do maq uinario e
financiamentos obtidos pela associaçao.
Tentando ainda romper corn esse discurso repetitivo e
de auto-afirmaçao, fizemos uma pequena exposiçao sobre as
vantagens econâmicas mais freqtientes entre pequenos pro-
dutores rurais cooperados e perguntamos se ja estava sendo
possfvel observar algumas dessas vantagens entre os traba-
Ihadores da associaçao. Insistfamos que elas seriam um cri-
tério seguro na avaliaçao comparativa das duas experiências.
A resposta recebida foi, novamente, a das inquestionaveis
vantagens do potrimônio do ossoeioçiio.
Num ultimo esforço de romper corn os papéis que os
dois entrevistados desempenhavam nessa relaçao conosco,
introduzimos aIgumas questœs sobre 0 funcionamento do
grupo deles, 0 maior da associaçao - treze familias - que
funcionava quose todo no base do coletivo. Era uma informa-
çao falaciosa porque, na verdade, 0 coordenador tomava 0
dinheiro - crédito-custeio - no banco para todos do grupo
que estivessem interessados e, depois de preparada e se-
meada a terra, dividia 0 dinheiro restante entre os mesmos.
o trabalho dos tratoristas era retribuido no base de troco de
dios ou em dinheiro. Os tratos culturais e a colheita ficavam
por conta de cada familia, podendo também ser feitos corn
troco de dios ou contrataçao de componheiros. Finalmente, in-
terrogados sobre as dificuldades encontradas corn as expe-
riências que tiveram de trabalho em grupo ou coletivo, AI-
mir responde:
- É difiei/... porque tem pessoos que encostom... porque
siio pessoos que niio têm umo inidotivo proprio... que niio têm
umo mente muito desenvo/vido... e dependem de se estor inœnti-
vondo, f%Mo, quose que obrigondo 0 four o/gumo coiso.
o velho discurso desvalorizador dos pr6prios compo-
nheiros. A novidade era que Almir 0 proferia coma responsâ-

87
vel pelos componheiros que desqualificava. E embora 0 fizes-
se para se firmar - ou se fazer reconhecer - diante de nos,
fazia-o coma se fosse 0 proprio encarregado - ou patdio -
dos de mais.
Diante da dificuldade que sentfamos para imprimir à
conversaçao 0 tom do dialogo crftico a que nos propunha-
mos, fizemos uma exposiçao cuidadosa das raz6es e dos ob-
jetivos de nossa presença no assentamento, consideramos ja
conhecer a trajetoria de vida do Aparecido - a "historia
oficial" que ele nos contara no infcio da entrevista - e mar-
camos uma entrevista especial corn 0 vice-presidente. Para
conhecer, segundo Ihe dissemos, um pouco de sua propria
trajetoria e para que ele nos contasse corn mais detalhes a
historia do assentamento.
Parecia-nos da maior importância tentar aprofundar
nosso conhecimento desse personagem que intufmos nesse
grande Ifder do assentamento. Além de dispormos de infor-
maç6es suficientes sobre sua importante participaçao no
movimento e na vida da associaçao, impressionava-nos tam-
bém sua presença forte e incrivelmente carismatica.
Almir mora sozinho. Separou-se da mulher por ocasiao
do acesso à terra, e seus três filhos, ja adultos, trabalham e
moram na cidade. 0 abandono em que se encontram sua
casa e quintal se explica, aos seus olhos e, descobridamos
depois, aos olhos dos componheiros, pela sua solidao. Solidao
que nos pareceu compor-se no tema através do quaI ele vi-
nha exercendo seu carisma e, conseqüentemente, seu po-
der no assentamento: 0 do homem abnegado que da a vida
pela causa comum dos componheiros.
Vestido coma se estivesse chegando do trabalho, ele
nos recebeu calorosamente. Aparentemente nem um pouco
preocupado corn as roupas muito velhas e sujas que usava
- 0 que é incomum entre os trabalhadores - , desculpou-
se pela abandono da casa, ao mesmo tempo em que tirava a
poeira dos bancos para que sentassemos. Essa descontraçao
nos revelava uma capacidade de seduçao apenas intufda no

88
dia anterior. E nos garantia a empatia necessaria ao bom
encaminhamento de qualquer entrevista. Embora nao nos
garantisse facilidade no tocante aos nossos objetivos.
Começamos pela historia da associaçao, precisando
que gostariamos de conhecer melhor as negociaçoes que
ocorreram por ocasiao da divisao entre associados e indivi-
duais. Sabiamos que em torno dessa questao 0 discurso mi-
litante se articulava mais claramente e queriamos conhecer
a forma pela quai Almir se apropriava desse discurso. Nao 0
viamos como um militante tipico.
Interrogado, ele nos respondia corn fluência e paixao,
mas corn um discurso fragmentado, permeado de incoerên-
cias e, especialmente, mais explicativo do que informativo.
Levamos um tempo para perceber que a chave da com-
preensao de seu discurso era 0 esforço que fazia para nos
levar ao reconhecimento da legitimidade de sua Iiderança
no assentamento. Nossa dificuldade talvez se explique pelo
tom sedutor de toda sua fala. Ele nao nos falava corn cum-
plicidade, como acontecia sempre que os entrevistados nos
identificavam coma portadores do discurso militante ou ins-
tituido no assentamento. Ele queria ser reconhecido, mas
nao enquanto solidario aos nossos supostos ideais. Queria
nos sensibilizar para suas qualidades de lider, 0 que acabou
nos permitindo conhecer os caminhos que utilizava para se
firmar junto ao grupo ou, numa outra perspectiva, a forma
pela quaI se apropriava do discurso militante para exercer
seu proprio poder pessoaI. Isto é, transformando-o num dis-
curso demagogico e permeado de referências à sua extrema
capacidade de doaçao e desprendimento. Essa apropriaçao
foi se revelando pouco a pouco e aparece-nos, presente-
mente, coma 0 (inico fio condutor possivel de sua longa e
fragmentada entrevista.
Explicando-nos a divisao entre individuais e associados,
Almir nos conta, ja no inicio da entrevista, que ela se deu em
razao da menlalidade dos pessoas, porque no sislemo de pais que a
genle lem, coda um vale aquilo que lem e coda um vive so para si,

89
sendo, conseqüentemente, difidl chegar num adulto amadure-
âdo nesse eixo da discussao produtiva das coisas cooperadas.
Depois de se dispersar bastante no que deveria ser 0
relato dos diferentes momentos das negociaçoes que leva-
ram à referida divisao, ele retoma seu tema principal: No vir
para a terra a gente brigou em dma dessa assocÎaçtÏo, das coisas
cooperadas... Que a gente tivesse uma base comum, que a gente
ntÏo tivesse divistÏo de roça, que a roça fosse um trabalho total-
mente conjunto, que a gente rachasse a produçtÏo, que a gente divi-
disse 0 lucro e 0 prejuizo...
A referência à necessidade de dividir também os pre-
jUlzos é um elemento-força de sua demagogia. Embora im-
plicita no discurso coletivista, ela raramente é utilizada pe-
las outras lideranças, uma vez que 0 objetivo das formas
associadas ou cooperadas de produçao é minimizar as per-
das. Corn Almir, entretanto, ela é retomada varias vezes,
coma que se compondo à imagem desprendida que ele
constr6i de si mesmo. Relatando suas experiências corn 0
trabalho em grupo, nas quais ele continua insistindo ainda,
coma forma de demonstraçao de sua viabilidade aos demais
companheiros, afirma: ... ai eu continuei, eu pessoalmente... com
mais dois companheiros... tocondo nossas três roças juntas...
Aquilo ali nôs preparamos, plantamos e colhemos. Se der lucro, é
lucro, se der prejuizo, é prejuizo... Mas é dividido em pattes
iguais. Tentando romper corn 0 tom autodemonstrativo des-
se relato, fizemos uma tentativa de interferir no rumo de
seu discurso:
-Você acha que assim rende mais?
- Apesar que ntÏo é render mais... É uma questtÏo de uma
nova forma de sobrevivênda, uma nova forma de mudança na
cabeça da gente que tem tudo para viver sozinho, e dar nada para
ninguém... É uma questtÏo da gente demonstrar uma prtitica para
as pessoas... que 0 prejufzo pode ser dividido e 0 lucro também
pode ser dividido... Essa é a minha intençtÏo... Mostrar para as
pessoas que 0 prejuizo eu posso dividir com e/as... E 0 lucro tam-
bém eu posso dividir...

90
Sentindo que sua demagogia se acentuava à medida
que a entrevista avançava, fizemos uma ultima tentativa de
criar uma situaçao de distanciamento que nos permitisse
um dialogo mais racional. Retomando a questao do dia an~
terior sobre 0 desempenho dos individuais, reintroduzimos a
importância da comparaçào entre eles e os associados como
meio de se chegar aos problemas enfrentados pela associa-
çao. Num primeiro rnornento ouvimos, mais urna vez, o lon-
go discurso sobre as vantagens do patrimônio do associaçiio.
Discurso que se esgotava em si rnesmo, nao chegando nun-
ca aos resultados objetivos dessas supostas vantagens. Co-
rnentarnos que essa analise cornparativa seria, talvez, uma
contribuiçao nossa aos trabalhadores do assentarnento, ja
que iarnos trabalhar tambérn corn os individuais. Diante
dessa nossa colocaçao, ele retorna ainda mais vivarnente seu
esforço de autolegitirnaçao frente a nos:
- Os individuais, veja bem... eles nlio estlio cm situaçiio
muito diflcil... tlio diflcil... Mas, também, tlio fdcil nlio estlio...
Porque eles dependcm, para tudo, do dinheiro... A força deles é 0
dinheiro... E tem horos que, nos aqui no ossociaçiio, nos depende-
mos muito de dinheiro... Mas tem horos que dinheiro para nos
nlio vole nada... Um bote-popo com um companheiro vole mois
do que se eu tivesse uma sacola de dinheiro, porque eu preciso,
talvez, de four umo coisa e nlio posso fozer. .. AI ele ajuda e nos
fazemos... E os pessoas individuais geralmente nlio têm esse rela-
cionamento... É bom dia, boa torde e pronto, nlio senta para dis-
cutir. Porque 0 conhecimento entre uma pessoa e outra é pouco, a
relaçlio entre um e outro émois distanciada...
Estâvamos agora face a face corn a solidao de Almir.
Raiz de sua força, porque nessa sua fragilidade se construfa
a base de sinceridade de seu discurso ou da irnagem que
utilizava para exercer 0 seu poder discricionario no assenta-
rnento. Cornpreenderfamos melhor isso no decorrer do tra-
balho. Mas ja nao tfnharnos duvida de que ele jogava ali sua
propria vida. E essa irnpressao reforçava a sirnpatia inicial
que sentimos por ele e assegurava a base de respeito mutuo

91
sobre a quai construiriamos nossa relaçao durante todo 0
trabalho. Relaçao difîcil e tensa, conforme demonstraremos
mais para a frente. Porque estariamos, permanentemente,
interrogando a seu pr6prio poder.
Nesse momento da entrevista, tentando avaliarrapida-
mente essas emoçôes e impressôes, entendemos que era
hora de conduzir a conversa para a sua trajet6ria de vida.
Sabiamos que essa trajet6ria nos seria apresentada com a
marca da seduçao com a quai procurava nos convencer da
legitimidade de sua liderança. Mas quem sabe conseguiria-
mos, naD tanto as origens remotas de sua solidao estrutural,
porém alguns dos referenciais de realidade da vida que, so-
litariamente, ele jogava no que entendia ser sua luta pelo
bem comum no assentamento.
- Conta pra gente um pouco da sua hist6ria, coma
você chegou nessa luta?
- Meu pai era propriettirio em Espirito Santo. Eu sou
capixaba, natural do Estado de Espirito Santo... Meu pai era
bastante trabalhador, lutador pra caramba! Minha moe... mais
lutadora era a minha moe. Minha moe é de origem alemo, veio
sem saber de nada da Alemanha pra aqui... pro Brasil. No decor-
rer do tempo acabou casando com meu paL. e meu pai tÎnha
propriedade na época... Porque era fdcil pra aTTUmarproprieda-
de quando comecei a me entender por gente. Existia uma mata-
ria... que aquilo noo precisava tomar obediência a ninguém...
(Bastava) que a gente tivesse vontade de trabalhar. A gente ia Id,
demarcava uma drea e ia cultivar, plantar aquilo Id... Com um
espaço de tempo, a gente recebia um documento, fazia escritura
daquilo... E assim meu pai vivia, fazendo isso... Emeu pai era
delegado civil, noo militar... e parava pouco em casa... Ele vivia
mais envolvido com algumas coisas Id pra fora e eu mais minha
moe que iamos pra batalha... carpir, plantar, administrar 0 si-
tÎo... A administraçoo que a gente tÎnha era minha moe... a admi-
nistradora que a gente tinha para 0 sitio mais a casa. Era mais
ela que administrava, porque meu pai pouco parava em casa...
Ai meu pai, noo sei 0 que deu na cabeça dele... começou a vender

92
os propriedodes. A gente tinho nove propn·edodes boos, proprie-
dodes grondes... Quose IOdos elos formodos com cafezol, posto-
gem, caso de forinho, engenho, essas coisos ossim. Ai meu poi co-
meçou 0 vender oquilo Id. (Começou) 0 perder um pouco do
controle que ele tinho, começou 0 vender, vender e, de repentinho,
nos ocobomos em nodo... Ai meu poi nno tinho mois propriedode,
oi nos começomos 0 moror de meeiro, de um lodo pro outro... E
oquilo começou 0 me mor odio... 0 gente tinho tonto coiso e, de
repente, nno tem mois nodo... Meu poi obriu mno tno fdcil... E 0
gente ocobor tendo que ir se submeter oos copriclzos de outros pes-
soos... E comecei 0 ovolior que eu tinho que o177tmor umo terro
poro mim... Umo horo ou outro eu tinho que conseguir o177tmor
umo teTTO...
Feita essa introduçao, Almir nos conta 0 que acabamos
por qualificar de hist6ria do her6i da luta pela terra. Vma
sucessao de epis6dios que começam quando, aos dezessete
anos, apossou-se de umos fozendas que tinho no regino onde
morovo, mas nao levou sorte, nno teve jeito, porque foi despe-
jado junto corn os demais, pela pollcia. Recém-casado, mo-
rou na propriedode do sogro, que também ero umo propriedode
gonho no luto do dio-o-dio, como esto que nos estomos oqui e na
quaI enfrentou muito opressno do polfcio, de cangoceiros, de
pessoos motodoras que iom por Id. Esse epis6dio se mistura,
em sua narraçao, corn uma terra da tia, onde tinha construl-
do umo casinho, um potrimônio, na quaI teve também proble-
mas, porque a tia tinho comprodo umo tefTO grilodo. Depois
de ojudor 0 enfrentor oquelo lu!O, oté quondo (a gente) foi vito-
rioso, foi para 0 Estado do Mato Grosso, onde se opossou de
uma terra dodo pelo [NeRA - Instituto Nacional de Coloni-
zaçao e Reforma Agniria. Terra que Ihe foi tomodo no virodo
de 64, depois de apanhar muito ou levor muitas poncodas
juntamente corn os de mais que haviam recebido terra. Deso-
rientodo, volta para 0 sitio do sogro e permanece hi, corn a
esposa e filhos, por dois anos, ap6s os quais segue para 0
Estado do Paranii, onde os pais jii moravam hii cerca de dez
anos. No Paranii ficou quatro anos tocando terro e, despejodo,

93
mudou-se para Sao Paulo. Ja morando em Sao Paulo, onde
trabalhava no mois dos vezes coma pedreiro, conseguiu uma
terro do INCRA, em Peruibe, Yale do Ribeira - 1974. Segun-
do informa: 0 INCRA deu umo outorizoçiio... noo deu nodo de
legltimo... e 0 gente foi poro /ti... 0 fomilio permonecendo em Soo
Poulo, onde 0 mulher trobolhavo. E entrou, derrobou moto,
plontou bonono, fez olgumos cosinhos... Mos oturei pouco tempo
/ti, porque... noo tinho como sobreviver... E quem estavo /ti dentro
noo podio me pogor poro trobolhor (trabalho de diarista)... E
se eu soisse, perdio 0 terro... Ai 0 situoçiio foi ficando muito difi-
eil e eu vendi 0 sitio... 0 direito que eu tinho. Tinho 4.000 pés de
bonono, tinho 89 pés de loronjo, mongo, tudo produzindo... Eu
vendi 0 direfto pro umo pessoo /ti e construi umo coso, que é onde
o mulher moro, "em Soo Poulo... Eu jd tinho comprodo um terre-
ninho 0 presto{oo, mos of, com 0 dinheiro do sitio, eu construi 0
coso... Comprei 0 motenol e 0 moo-de-obro foi minho... Fui eu
que construi 0 caso.
Toda essa trajet6ria desagua no movimento que deu
origem ao assentamento. Essa sucessao de epis6dios esta
longe, entretanto, de esgotar a trajet6ria de vida de Almir.
Ela se constr6i coma tal na situaçao de assentamento. É a
forma pela quaI ele se apropria da "hist6ria oficial" da luta
pela terra. Somando rigorosamente 0 tempo desses epis6-
dios, conclui-se que ele passou pelo menos a metade de sua
vida produtiva trabalhando coma assalariado, embora fale
pouco desses trabalhos. Por outro lado, no assentamento,
ele passa a maior parte de seu tempo trabalhando coma tra-
torista, no bose de troca de dios ou de diarias. Seù quintal esta
absolutamente abandonado, e sua roça segue 0 tom e 0 rit-
mo do "crédito-custeio" das instituiçOes finance iras: arroz,
feijao e milho, no tempo desses financiamentos. Nada indi-
ca sua aptidao para lidas agrfcolas. E, saberiamos mais tarde,
durante 0 tempo em que esta no assentamento, construiu
uma casa para cada um dos três filhos e mais uma edfcula
onde a (ex) mulher mora, no fundo da primeira casa men-
cionada, que esta alugada.

94
Insistimos em reconstruir aqui esses epis6dios corn 0
objetivo de demonstrar 0 que nos era dado perceber, a pro-
p6sito da qualidade do engajamento de Almir corn () assen-
tamento, nessa altura de nossas investigaçoes. Era-nos evi-
dente que passara a vida empenhado na conquista de uma
terra para si. Esse empenho, entretanto, nao correspondia
simplesmente ao projeto de uma vida com mais autonomia e
mais seguranço da maioria dos trabalhadores assentados. Ele
queria ser proprieltfrio, coma bem afirma ao recriar sua me-
moria de infância, falando de seu pai. E proprietario de
muita terra - "nove propriedades", a partir do que teria
maior controle sobre tudo - 0 controle que 0 pai começou a
perder quando se pôs a vender suas propriedades. E controle
cuja perda significou ter que trabalhar em roças alheias e sub-
meler-se aos caprichos dos outros. Ter que padecer a humilha-
çao da pobreza.
Ora, ja no inicio de seu relato de vida, Almir nos reve-
lava 0 significado de sua luta pela conquista de uma terra:
ser proprietario é ter poder. Mas poder de sujeiçao dos ou-
tros e, mais do que isso, poder que se conquista à revelia de
qualquer estatuto legal ou de qualquer instrumento de re-
gulaçao social. Conforme pode ser observado na forma
coma se representa os caminhos pelos quais 0 pai se tornara
proprietârio. Existia uma mataria... que aquilo ntïo precisava
tomar obediência a ninguém. Nao esta em questào, evidente-
mente, a veracidade de seu relato. Contada coma esta, a
historia de seu pai é mais provavelmente a historia de um
grileiro. Que utilizava 0 trabalho da familia para definir pos-
ses, e sua rede de influências, coma delegado civil, para
transformar essas posses em propriedades passlveis de se-
rem vendidas. Mas coma um grileiro que acaba meeiro ou
tocando roços alheias é pouco provavel na historia desse pals,
o relato de Almir acaba nao se auto-sustentando. 0 impor-
tante, entretanto, é que ele considera posslvel ser proprietâ-
rio ocupando terras. E al vern toda a maneira coma se repre-
senta os diferentes episodios vividos em busca de uma terra

95
para si: apossou-se de uma terra, aos dezessete anos; morou
na "propriedade" do sogro, uma propriedade ganha no luta do
dio-a-dia; ajudou a tia a ganhar uma luta por uma terra grila-
do; apossou-se de uma terra dodo pelo INCRA; terra que lhe foi
tomado, posteriormente, e, final mente, tendo recebido 0 di-
reito de uso de uma terra no yale do Ribeira, vendeu 0 direito
que tinha. Curiosamente, a unica oportunidade vivida de ne-
gociaçao regulada de um direito termina em infraçao das
regras que lhe asseguraram esse mesmo direito.
Começavamos a compreender a ambigüidade da lide-
rança de Almir. Sua revolta contra a humilhaçao a que os
despossuidos estavam submetidos fazia dele um repre-
sentante dos interesses da maioria. Fazia dele um her6i na
situaçao de assentamento. Mas um her6i fora da lei capaz
de assegurar 0 livre exercicio dos direitos de cada um. Por-
que a lei que 0 nosso heroi conhecia era a lei do propriecirio
ou a lei apropriada pelas autoridades constituidas. E 0 risco
era este. Ao lutar pela conquista de uma terra, ele lutava
pela apropriaçao da lei. Pelo exercicio de seu poder pessoal.
As raizes de sua solidao e das contradiçoes que lhe per-
mitiam exercer seu poder pessoal em nome do interesse co-
letivo desvendariamos so mais tarde, quando nos contaria,
num clima de maior confiança reciproca, uma outra trajeto-
ria sua. Por ora, tinhamos indicadores suficientes para saber
que Almir nao podia ser tomado como um militante tipico
na situaçao de assentamento. Porque ele nao se alienava,
simplesmente, ao discurso militante. Ele se apropriava des-
se discurso para exercer, sobre 0 grupo, seu proprio poder. E
isso dava ao discurso militante uma conotaçao evidente-
mente personalista. Como interrogar esse discurso, sem
q uestionar diretamente sua pessoa? E como interrogar as
relaçOes de dominaçao que resultam dessa apropriaçao pes-
soal das regras de convivência? Ou, ainda, como, na pnitica
das relaçOes que se desenvolviam no dia-a-dia do assenta-
mento, Almir realizava esse seu poder pessoal? Essas eram
algumas das questoes que nos colocavamos ao encerrar nos-

96
sa entrevista, sabendo ja que nao teriam soluçao fadl, por-
que, de sua parte, ele parecia também enfrentar dificulda-
des. Sabia, depois dessa conversa, que nao éramos representantes
das conhecidas instituiçOes doadoras de fundos para 0 as-
sentamento. Sabia, também, que nao escivamos ali coma
representantes do projeto estatal, pela quai ja se sentia legi-
timado através de suas relaç6es corn os técnicos do assenta-
mento. No entanto, reconhecia em nos a autoridade dos se-
tores que, no mundo urbano-intelectual, aderiam à causa
dos assentamentos e da reforma agraria. Mas quem éramos
nos, afinal?
Nesse contexto de incertezas de parte a parte, nosso
dialogo propriamente dito apenas tinha definido um ponto
de partida: nao éramos pessoas assimiIaveis ao seu discurso.
TInhamos idéias proprias e 0 interrogavamos sobre suas
proprias idéias. E dessa vez a diferença - a nossa - nao
poderia ser resolvida pelos seus habituais mecanismos de
eliminaçao dos divergentes. Nao pertencfamos ao seu grupo
de amigos e, no entanto, também nao podia nos c1assificar
coma inimigos, embora ameaçassemos, evidentemente, seu
poder pessoal.
De qualquer maneira, a partir dessa entrevista pude-
mos reorganizar nosso programa de trabalho. Como tî'nha-
mos urgência de conhecer a trama das relaç6es de domina-
çao existentes no assentamento, tendo em vista a melhor
operacionalizaçao de nosso programa de questionamento
das mesmas, decidimo-nos por contatar, simultaneamente,
os chefes de familia dos grupos que, par hipotese, teriam se
constituido, em aigu ma medida, em relaçao à evidente e
historica liderança de Almir no assentamento. Assim, conti-
nuariamos nossos contatos ja iniciados corn os que enten-
diamos serem seus aliados - a "grupo dos militantes", de-
fensores, camo ele mesmo, do projeta associaçao - e
entrevistariamos, pouco a pouco, seus provaveis adeptos -
os componentes de seu proprio grupo - e seus igualmente
provaveis opositores - a "grupo dos individuois" da asso-

97
ciaçao. Finalmente, tratariamos de descobrir a possivel rela-
çao existente entre essa liderança que se definia em toma
de Almir e um quarto grupo, que até 0 momento nao tinha
sido mencionado por nenhum dos entrevistados - 0 grupo
que chamariamos, mais tarde, de "grupo dos marginalizados".
Relatar toda essa trajet6ria, passo a passo coma vimos
fazendo até aqui, seria por demais longo e cansativo. Em
razao disso optamos por trabalhar 0 conjunto das entrevistas
realizadas em cada grupo de forma agregada, apenas desta-
cando aquelas consideradas mais significativas para 0 nosso
objetivo imediato. Isto é, para a descoberta das relaç5es de
dominaçao que se desenvolviam no assentamento a prop6-
sito da organizaçâo da associaçao e, conseqüentemente, dos
indicadores corn os quais nossa intervençao poderia interro-
gar, pouco a pouco, essas mesmas relaçoes de dominaçao.
Conhecemos Jooo Gaudêncio, coordenador do "grupo dos
individuois" dentro da associaçao, quando fazi'amos nossa se-
gunda entrevista entre os componentes de seu grupo. Tinha-
mos indicaçœs de sua liderança no mesmo, 0 que nao acontecia
corn todos os coordenadores de grupo. Jooo Gaudêncio foi che-
gando, familiarizado corn todos e manifestando um discreto in-
teresse pela nosso trabalho. Pouco a pouco, e a nosso convite,
foi participando. da conversa. Sua primeira contribuiçao mais
substantiva foi, num tom irônico e perspicaz, a prop6sito do que
chamava de objetivos sociolislos das lideronços. Conversavamos so-
bre os projetas de cultivo do entrevistado principal. Sabi'amos
que, enquanto grupo, os individuois vinham apresentando resul-
tados agricolas mais estâveis e intui'amos, por ai', a explicaçao
possi'vel do agrupamento dos mesmos e das incompatibilidades
corn os projetos agricolas das lideronças. Perguntamos se ambos
tinham pIanos de plantar bananas, coma os demais estavam fa-
zendo. E ele se antecipou na resposta:
- Nos {omos plonlor, mas eslomos porados oindo... Por-
que os oulros foram (buscar as mudas) e exogeraram. Nos com-
binomos mil mudos poro codo um. Mos eles foram e jd Irouxe-
rom 1.300, 1.500, olé 1.700 poro coda um... Nos éromos os

98
segundos. Tlnhomos s;do SOr/endos poro ser 0 segundo gropo que
;0 (buscar mudas no caminhao da associaçao). Como nos estO-
vomos co/hendo 0 feijlio, cedemos 0 /ugor pora oulro gropo. Mos
offoi 0 oulro lombém no nosso frenle... E pegoram mois do que
eslovo comb;nodo (A tarefa era demorada, porque as mudas
tinham que ser colhidas pelos pr6prios interessados, nos ba-
nanais de pequenos produtores do Yale do Ribeira)... Enllio,
nos ficomos porodos... Se MO der mois lempo, vomos deixor
poro 0 ono que vem.
- Vœês discutiram isso na assembléia?
- Discul;mos, 011 com os engenheiros... E foi combinodo
que erom mil mudos pora começor...
- Sei. Mas, depois que eles descumpriram 0 combi-
nado, vocês levaram essa queixa para a assembléia?
- Nlio, nunco mois veio n;nguém pora oqu;... A engenheira
eslovo pora gonhor nenê... Enllio MO f%mos mois nodo... Dei-
xo pra M.
Era curioso que, interrogado sobre uma pOSSIVel quei-
xa a prop6sito do cumprimento de um acordo negociado em
assembléia, Joao Gaudêncio se referisse à ausência dos téc-
nicos estatais. Quando lamos recolocar a questao, ele diz,
afinal, ao que viera:
- A nosso deffolo 1 ;sso of... E 1 duro de exp/;cor. Os cu/-
podos slio os componheiros do genle, que v;vem junlo com 0 genle,
que lrabo/hom lonlo... que d;zem que querem ser socio/;sIOS... Slio
os primeiros que derrubom 0 genle... E slio os coras que esllio
mois enlrosodos (engajados) e que querem ludo emb%do (traba-
lho em grupo)... que d;zem que querem ser sociolislos. E/es mes-
mosfozem 0 ordem ee/es mesmos desmonchom 0 ordem...
E depois de mais alguns exemplos dessas pnlticas,
conclui:
- É por ;sso que eu d;go: eu nlio sou socio/;slo nlio, pora
ser s;ncero. Porque, poro ser socio/;slo, lem que ser socio/islo...
Agora, 0 nosso prob/emo mesmo 1 po/{I;CO, e em roço nlio pode
exisl;rp0/{I;CO. Tem que exisl;r un;lio... e vonlode de lrabo/hor...

99
Pouco a pouco, 0 tom de seu discurso deixava de ser
irânico e expressava uma indignaçao mal contida.
- Polltica, como?
- Um quer ser me/hor do que 0 outro... E a nossa deTTota é
essa... Niio tem uniiio. Os ricos têm uniiio, mas os pobres niio têm.
- Pra ter uniao vocês precisariam conversar mais...
-Tèrvontade!
-Pra que vocês chegassem num acordo que...
- Ter vontade! Mas é duro porque pra mexer com gente é
diffcil... Principa/mente os companheiros que nasceram e se ma-
rom em porta de obra (construçao civi1)... Isso é durol Porque 0
cora niio sabe para onde vai, estd acostumado oser mandado e
quer, às vezes, u/trapassar a/guém que tem mais experiência .
Estti fa/tando cobeça... Em tudo. Era pra nos termos dinheiro .
mais grandezo, entendeu? Porque a teTTa produz, 0 que fa/ta é
cabeça... Porque 0 tempo que entrava dinheiro a rodo, como di-
zem os antigos, era tempo pra (gente) se equi/ibrar. .. Nos tivemos
muitas faci/idades aqui... Mas niio soubemos aproveitor... Quon-
do 0 dinheiro chegavo, a gente niio sabia pra onde io 0 dinheiro...
S 0 via nota, so despesa... Mas, onde niio tem experiêncio, fozer 0
quê.p... Também, era dinheiro fdci/... E dinheiro fdci/ nunca dd
certo... Era pra gente ter uns animais... umo casa... Mas, do mes-
mo jeito que chegamos, estamos... Porque a administraçiio deTTu-
bou nos. Era pra nos ajudar e deTTUbou nos.
Joao Gaudêncio se firmava frente a nos coma agricul-
tor experiente e trabalhador. Contra uma /iderança incom-
petente, autoritaria e nao-confiavel. Como Raimundo, pro-
tegia-se dos mecanismos de discriminaçao do discurso
militante das /ideranças. Mas, diferentemente deste, firman-
do-se contra esse discurso: sociedade no traba/ho, eu niio acei-
to. E construîa sua propria coerência pessoal sobre os desca-
minhos da associaçao. 0 que nos criava algumas dificuldades:
de percebia muito claramente que 0 discurso militante era
utilizado para ocultar 0 exercîcio autoritârio do poder no as-
sentamento. Isso reforçava nossas hipoteses sobre a lideran-
ça de Almir e a alienaçao do "grupo dos militantes" a esse

100
discurso. E nos estimulava a prosseguir na reconstruçao das
situaçôes em que, concretamente, se evidenciava essa de-
sarticulaçao entre 0 discurso e a pnitica, tao bem intufda por
Joao Gaudêncio. Mas nao podfamos nos aliar a ele nesse
esforço de se autodefender e afirmar, a partir de uma crftica
que continha em si mesma elementos de invalidaçao - ou
de discriminaçao - de seus opositores. Sentindo 0 risco de
a entrevista enveredar para um tipo de cumplicidade que
devfamos evitar - a cumplicidade que alimenta as fofocas
e os conseqüentes mecanismos de invalidaçao reefproca en-
tre componentes de uma mesma coletividade - , recondu-
zimos a conversa para as experiências e projetos agrfcolas
dos dois informantes. Corn isso, estarfamos valorizando a
representaçao que eles faziam de si mesmos - agricultores
competentes - e oferecendo-Ihes alguns elementos de com-
preensao da posiçao que planejamos ter no assentamento.
o ponto alto dessa conversaçao foi a reflexao crftica so-
bre os "pacotes agrfcolas" que lhes eram trazidos das agências
financeiras pelas lideronços e pelos técnicos: 0 cultivo do arroz,
feijao ou milho, financiado pelo banco. Ambos questionavam
esses cultivos, alegando a inadequaçao da terra e do clima para
os mesmos. TInham projetos diferentes - algodao, amen-
doim, trigo - mas nao conseguiam financia-los:
- A genle folo em fozer um plonlio dijerenle e eles dizem
que 0 engenheiro noo oprovo... E eu ocho que lem que senIor 0
engenheiro mois nos... Porque nos noo lemos que obedecer 0 enge-
nheiro, nem ele a genle... limos que modificar 0 plonlio... E ele
lem escolo, mas nos lemos a prolica...
Esse dialogo parece ter mudado a qualidade de nossa
relaçao corn 0 lfder do "grupo dos individuois". Quando,
uma semana depois, chegamos a sua casa para uma entre-
vista exclusiva, ja percebemos que, embora ainda crftico em
relaçao às lideronços, dispunha-se a refletir conosco sobre as
dificuldades enfrentadas pela associaçao. Cuidadosos, co-
meçamos perguntando sobre 0 processo de constituiçao e
atual organizaçao de seu grupo. Da mesma forma que seus

101
dois eompanheiros ja entrevistados, respondeu-nos que 0
grupo se eonstituira no base do omizode e do confio1lfo. TI-
nham se eonhecido nas primeiras experiêneias de trobo/ho
emb%do (em grupo) e poueo a poueo foram se escolhendo
uns aos outros. Como um meio de se livrarem dos que gos-
tom de trobo/ho encostodo.
Curiosamente, a organizaçao do grupo nao era, no es-
sencial, diferente da do grupo de Almir. Isto é, os financia-
mentos eram tamados ao banco pelo eoordenador e poste-
riormente divididos pelos demais. 0 preparo da terra e 0
plantio eram feitas em eonjunto e os tratos eulturais e co-
lheita, corn a troca de dias ou contrataçao de tereeiros. In-
terrogado sobre se essa organizaçao estava dando eerto, re-
feriu-se à falta que lhes fazia uma açao eficaz da associaçao:
- Por enquonto voi indo bem... A co/heito me/horou um
pouco... Mos preciso muÎto coiso poro melhoror, viuP... Ter mois
vontode dos coisos, mois gOffO... E 0 genteio estti num ponto que
ninguém quer mois megor mois perto dos outros. Jo noo estomos
como nos éromos um ono otros. Éromos mois unidos... Preciso
ocobor um pouco de critico... Porque tudo que 0 gente foz etes
ochom que estomos fozendo effodo... E/es querem um tipo de um
dominio... E 0 gente noo oceito 0 dominio ... Porque viemos poro
oqui poro ter /iberdode... Porque poro ter outro por cimo do gen-
te, 0 gente ficovo no cidode trobo/hondo de empregodo... Eu omo
que tem... ou 0 gente megor ne/es... ou etes megorem no gente...
Falava das difieuldades que estavam tendo para en-
contrar uma soluçao para 0 problema agricola propriamente
dito. Entendia que, se estivessem mais organizados, pode-
riam estar demandando financiamentos para outros produ-
tos, um sistema de irrigaçao, etc. 0 que nos levava a perce-
ber que pensava a associaçao coma meio de resoluçao das
neeessidades objetivas que enfrentavam enquanto produto-
res agricolas.
Corn uma trajet6ria de pequeno produtor em terras ar-
rendadas, Joao Gaudêneio passou a trobo/hor de empregodo
no cidode s6 quando a expansao das pastagens no Oeste

102
Paulista 0 impediu de conseguir mais terras para arrendar.
Viveu nove anos em Campinas, sendo que nos primeiros anos,
coma pedreîro. Desempregado, trabalhou no corte da cana:
- Eu nunco tinho ftcodo porodo no minho vido... Eu ft-
quei desempregodo... três onos... Ntlo existio emprego... Fui cortor
cono... Nunco tinho cortodo conn no minho vido... E cortor conn
é duro. Af começou esse movimento, esse negôcio de ocompomen-
to... Tinho um vizinho meu que me chomovo. E eu folovo que
ntlo querio... que Jo tinho visto muito coiso de despejo no minho
frente... que se fosse em teTTO do Estodo oindo eu io, mos porticu-
lor, ntlo... que eu Jo tinho visto muitos cosos feios em te!Ta de
fozendeiro ... Aioporeceu esse movimento. E eu me encoixei porque
em tefTO do Estodo eu io... que eles fozem oquelo pressiio, mas
ntlo iom motor ninguém.
Entendiamos que nosso entrevistado se recusava a ser
um fora da lei, assim coma se recusava a se deixar dominar
pela lei das lideranças. Seria esse 0 traço diferenciador dos
trabalhadores que optaram por ser individuois? Era impossi-
vel saber ainda, mas um outro traço diferenciador possive! pa-
recia se confirmar: 0 da relativamente maior eficacia pratica
dessa independência que procuraram firmar enquanto gmpo.
Nosso entrevistado consegue ganhar dinheiro e inves-
tir na sua roça e no seu quintal. Usa 0 minimo possivel os
financiamentos bancarios para custear seus cultivos. Corn
isso, consegue plantar mais cedo que a maioria, consideran-
do a chance de plontor de novo se ntlo der certo (falta ou ex-
cessa de chuvas). Tem aigumas cabeças de gado, uma cria-
çao de porcos para venda, galinhas para 0 consumo e 0
quintal todo aproveitado corn cultivos para alimentar os ani-
mais ou para 0 consumo da famflia.
Toda a entrevista corn ele é marcada pela seu interesse
pela produçao. Seu discurso se constr6i sobre 0 trabalho
corn a roça. Interrogado sobre por que optou por ficar entre
os associados, sem nenhum constrangirnento disse que por
considerar importante a organizaçao do gmpo para a obten-
çao de maquinas e subsidios agrfcolas. E embora insistindo

103
que sociedade no troba/no, ali, nt10 do cetto, entende que so
teriam vantagens se conseguissem continuar unidos ou asso-
ciados para esses objetivos.
Prosseguindo as investigaçôes, verificamos que 0 "gru-
po dos individuais" era constituido, basicamente, por fami-
lias bem-estruturadas e corn relativa tradiçao agr1cola. En-
quanto conjunto, 0 desempenho dessas familias so se
equiparava, no assentamento, ao do "grupo dos militantes",
onde existiam também algumas familias corn tradiçao agri-
cola, embora a liderança estivesse nas maos de trabalhado-
res mais jovens, corn trajetoria pessoal jâ marcada pelo tra-
balho assalariado. Era-nos cada vez mais evidente que
nesses dois grupos estavam reunidas as familias que os pro-
prios trabalhadores chamavam de lottes, referindo-se à capa-
cidade produtiva, na maioria das vezes. E nos inquietava
que esses lottes nao fossem capazes de empreender, juntos,
a soluçao dos problemas da associaçao e do assentamento
coma um todo. Que a direçao da associaçao estivesse nas
maos sedutoras mas ineficazes de Almir, aliadas às dos refe-
ridos militantes.
o conhecimento mais aprofundado da dinâmica inter-
na do "grupo de Almir" aumentou nossa inquietaçao. Em
linhas gerais, esse grupo era constituido por três ou quatro
amigos pessoais seus e uma maioria de famflias fragilizadas
por problemas estruturais. Duas dessas familias, por exem-
plo, eram chefiadas por mulheres sozinhas que, segundo di-
ziam seus proprios companheiros de grupo, nt10 tinnam capa-
cidade nem para seguror os fi/nos na rOfa. Uma dessas
mulheres vinha de ter 0 sexto filho - 0 quinto nascera no
tempo do acampamento - e nos contara que tinha entrado
para 0 movimento porque fora despejada e nao tinha onde
morar. Enquanto a entrevistâvamos, sua raça de arroz se
perdia num matagal e seus companheiros de grupo nao sa-
biam coma pagar sua divida corn 0 banco. Fe/izmente, infor-
ma 0 tesoureiro do grupo, deixamos patte do dinneiro de/a na
minna conta. Conhecendo as dificuldades das duas mulheres

104
corn a administraçao finance ira, a coordenaçao do grupo de-
cidiu reter parte do dinheiro das mesmas para 0 pagamento
do banco, ao final da safra. Mesmo assim, essas quantias
eram insuficientes e as negociaçOes corn os bancos estavam
dificeis, uma vez que os financiamentos tinham sido feitos
em conjunto. Isso explicaria a decisao de, a partir deste ano,
cada trabalhador passar a fazer seu proprio financiamento. E
os técnicos estatais negociavam essa nova sistematica nas
agências bancarias.
Essa pratica de ojudo às companheiras através da re-
tençao de seu dinheiro era relatada como uma estranha ge-
nerosidade. Todos diziam estar em situaçao dificil porque
insistiam em ajuda-las. Os que noo se preocupovom eom os
oulros nao tinham esse tipo de problema. E 0 presidente da
associaçao nos relatou sua boa vontade em mucor os filhos
adolescentes de uma delas, colocando-os para trabalhar em
sua propria roça. A mae nao entendeu suas boas intençoes e
os rapazes permanecem la, vodiondo, enquanto 0 roço de or-
roz motTe no meio do molo. Soubemos, pela mae, que se assa-
lariam como diaristas, quondo meonlrom Irobo/ho, para man-
ter a casa. A outra mulher é boo de /robo/ho, segundo seus
companheiros. Mas nao tem controle sobre os filhos - gos-
10 ludo que lem eom e/es, que preferem procurar trabalho na
cidade... Nao conseguimos nas primeiras tentativas entre-
vista-la. Como, alias, dois chefes de famîlia desse mesmo
grupo. Que a prindpio se escusaram, alegando muito traba-
Iho. Mas que percebemos, pouco a pouco, esconderem-se
de nos. Nessa circunstância, decidimos nao insistir e aguar-
dar 0 momento oportuno para conhecê-Ios.
Como nao tivemos esse problema em nenhum outro
grupo, consideravamos a hipotese de uma pnitica sorrateira
de Almir, tentando obstaculizar nosso trabalho no assenta-
mento. Reforçando essa hipotese, nao obstante nossas rela-
çoes fossem amistosas, ele e 0 presidente da associaçao nos
tinham ocultado reuniOes pelas quais nos sabiam interessa-
dos. E um dos trabalhadores, Valdecy, que se recusava a ser

105
entrevistado, era cunhado e amigo pessoal de Almir. No dia
em que marcamos a entrevista corn esse trabalhador, passa-
mos pela casa de Almir para uma conversa informai, en-
quanta aguardavamos a hora marcada para a entrevista.
Chegando à casa de Valdecy, soubemos pela sua filha que
estava na casa do tio, de onde acabavamos de sair... E pude-
mos ver, a distância, que se encontrava num pequeno grupo
que sala de lâ para alguma outra atividade. Oportunamente,
sua casa seria um de nossos principais pontos de parada nas
visitas que faziamos regularmente às familias do assenta-
mento. Mas a entrevista teria de aguardar seu tempo.
Nao descartâvamos, entretanto, a hip6tese de uma cer-
ta timidez nessa recusa a ser entrevistado. Conversando
corn um deles, numa visita informai, pudemos sentir sua
grande fragilidade. Sem 0 gravador e sem hora marcada pa-
receu-nos receptivo. Conversamos um pouco sobre sua tra-
jet6ria pessoal e pudemos verificar que, morando sozinho e
habituado ao alcool, temia um encontro conosco. Isso tam-
bém foi sendo resolvido corn 0 tempo, embora ele tenha
permanecido sempre numa espécie de silêncio participativo
nos acontecimentas dos quais participariamos no assentamenta.
Corn três outros chefes de familia do "grupo de Almir"
tivemos dificuldades de comunicaçao. Um deles nos rece-
beu totalmente alcoolizado, e dois outros se revelaram mui-
to inibidos corn a formalidade da entrevista. A fragilidade
desses três trabalhadores também nos era evidenciada pela
precariedade de seus quintais e roças e pelo fata de nunca con-
tribuirem corn qualquer opiniao nas reuniôes ou assembléias.
Empenhados em conhecer um lotte desse grupo, en-
trevistamos um senhor de cerca de sessenta anos. De ori-
gem mineira, esse trabalhador nos contou em detalhes uma
trajet6ria de vida onde podlamos reconhecer 0 carater ex-
cludente dos pequenos produtores rurais, inerente aos dife-
rentes ciclos da agricultura no oeste do Estado de Sao Paulo
- café, algodao, amendoim e também gado. Corn um pas-
sado de arrendatario, desempenhava bem os cuidados corn

106
sua roça e apresentava resultados comparaveis aos dos de-
mais !Oftes ja mencionados. Resultados que nos explicava
coma devidos às maquinas da associaçao e à sua capacidade
administrativa. Doente e corn a mulher paralitica, dependia
sempre da contrataçao de diaristas para as tarefas manuais
de sua roça. Sua opçao pela agrovila devia-se a sua absoluta
necessidade das maquinas, e seu vînculo corn 0 grupo, à
uma passagem um tanto ins6lita: embora tendo participado
do movimento, esse trabalhador teve de ausentar-se, por ra-
zoes de saude, no momento em que se deu 0 ingresso na
terra. la considerava sua chance perdida quando foi procu-
rado, em sua pr6pria casa na cidade, por Almir e um outro
componheiro - que fora excluîdo posteriormente do assen-
tamento por ter-se apropriado de dinheiro recebido pela as-
sociaçao. Ambos lhe ped;om para ocupar a casa e 0 lote de
uma famûia que diziam ter desistido do terro. Nao tivemos a
oportunidade de nos informar sobre esse caso, mas a recons-
truçao da hist6ria do assentamento nos permite pensar que
essa desistêncio resultava de um dos muitos confrontos atra-
vés dos quais as lideronços asseguravam seu poder na asso-
ciaçao. 0 importante aqui, entretanto, é assinalar a existên-
cia de um vfnculo de favor entre Almir e esse velho
agricultor de seu grupo. Portador de uma certa sabedoria,
esse trabalhador conseguiu manter-se distanciado das mu;-
tos brigos da associaçao e tocor suo vido apesar delas. 1inha,
evidentemente, crfticas consistentes ao que assistia, mas
atribufa-Ihes explicaç6es religiosas e nao parecia disposto a
envolver-se corn elas.
o unico chefe de famîlia do "grupo de Almir" corn
quem conseguimos, ja nesse primeiro contato, iniciar um
dialogo crftico produtivo foi Vanderley. Corn trinta e oito
anos de idade e uma famflia bastante estruturada, ele tinha
uma significativa experiência corn agricultura tecnificada -
especialmente hortifrutigranjeiros - e administrava bem
sua roça e quintal. Eleito motorista do caminhao da associa-
çao, dedicava parte significativa de seu tempo a v;ogens pora

107
a turmo, corn 0 que ganhava uma quantia irrisoria e insufi-
ciente para se fazer substituir por diaristas em sua propria
roça. Essa situaçao contrastava corn a dos tratoristas que ga-
nhavam por hora de trabalho e faziam valer sua qualificaçao.
Interrogado sobre essa questao, Vanderley foi pouco a pou-
co refletindo conosco sobre essa doaçao extrema que fazia à
causa do ossocioçlio e, conseqüentemente, à propria dinâmi-
ca paralisante do poder existente no assentamento. E em
pouco tempo se constituiria num polo dinamizador da ativi-
dade agricola no seu proprio grupo.
. Essa mesma reflexao nao era possIvel corn os trés jo-
vens chefes de famflia, amigos pessoais e companheiros de
Almir nas suas sucessivas doaçoes ao grupo coma um todo:
viagens para reparaçao de maquinas, compras, ete... Entre
esses se encontrava Aparecido, 0 presidente da associaçao,
Valdecy e um terceiro que nos informara sobre a ja referida
forma de ajudar os frocos. Conhecidos de~de os tempos da
cidade, esses trés trabalhadores tinham em comum uma tra-
jetoria de vida marcada predominantemente pela trabalho
assalariado na construçao civil - pedreiros qualificados.
Nao tinham projetos agricolas proprios e empreendiam seus
cultivos nos limites estabelecidos pelos financiamentos
bancarios e oferecidos pelos técnicos estatais ao conjunto
dos trabalhadores. lima parte substantiva de seus rendi-
mentos vinha do trabalho de tratorista no proprio assenta-
mento. E, quondo os coisos opertovom, trabalhavam coma pe-
dreiros e por empreito, na cidade. Nenhum deles aparentava
qualquer aspiraçao ou tendéncia para a liderança, dando-nos
a impressao de acompanhar Almir apenas em razâo do inte-
resse que tinham pelos pequenos mas substantivos privilé-
gios que a convivéncia do poder lhes oferecia: a chance de
serem tratoristas, de utilizarem 0 caminhao da associaçao
'para seus interesses pessoais, de prepararem suas terras an-
tes das demais, ete...
De seu lado, Almir parecia ter nesses companheiros
nao apenas a ajuda necessaria ao desempenho das tarefas do

108
coletivo, mas, sobretudo, a retaguarda de domesticidade e
honestidade que 0 legitimava junto aos trabalhadores como
um todo. Nao raras vezes ouvimos em nossas entrevistas
alusoes à desconfiança existente no assentamento por falta
de correçao dos antigos Ifderes de associaçao. Também nao
raras vezes pudemos sentir que todas as queixas contra eles
estavam referidas, no passado, ao grupo que cercava Almir.
Procurando justificâ-Io, alguns trabalhadores chegaram a fa-
lar nas mas componhios que 0 levaram a cometer erros. Tudo
nos indicava que esses seus atuais companheiros, acomoda-
dos, trabalhadores e bem estruturados corn suas famllias,
ajudavam-no, presentemente, a se legitimar no poder. A
proposito dos mesmos, as unicas restriçoes que nos foram
apresentadas referiam-se ao fato de serem do cidode - por
oposiçao aos do 1Vço - e, conseqiientemente, inexperientes.
Nossos primeiros contatos corn esses três chefes de fa-
miIia nao foram muito produtivos. Um deles, instruido pro-
vavelmente pelo vice-presidente, demandou-nos financia-
mento para moradia. E todos se estenderam bastante no
relato do sistema de ojudo oos componheiros. Nao se sentiam
livres para 0 di~logo conosco e entendemos que teriam de
ser abordados pouco a pouco e pelo carninho das visitas fa-
miliais, que jâ vfnhamos realizando ao mesmo tempo em
que faziamos nossas entrevistas.
A essa altura, parecia-nos evidente que a integraçao
desse grupo se fazia através de relaçoes tipicamente pater-
nalistas. Apoiado, em troca de favores pessoais, por um pe-
queno grupo de amigos, Almir submetia às suas pr6prias
regras a grande maioria dependente ou sem iniciotivo pro-
prio, conforme nos dizia j~ em nosso primeiro contato. E
procurava legitimar essa dominaçao aos seus proprios olhos
e, especialmente, aos olhos de seus dominados, através dos
pequenos favores ou doaçOes pessoais que Ihes fazia. De-
pendentes e supostamente seus devedores, esses trabalha-
dores eram seus fiéis adeptos ou eleitores em todas as situa-
çoes de impasse vividas pelo coletivo. Como essas pr~ticas

109
se construiam ocultadas pelo discurso militante ou associati-
vista, elas acabavam contando corn 0 apoio do "grupo dos
militantes", alienado, por sua vez, por esse mesmo discurso.
E, como se nao bastasse, Almir se ocupava também de ali-
mentar aigumas dependências pessoais junto a trabalhado-
res do ~'grupo dos individuois", apoiado ora em vinculos de
cumplicidade construidos no tempo dos abusos cometidos
corn 0 dinheiro e demais doaçOes recebidos pelo coletivo,
ora na concessao de novos e significativos favores.
No primeiro caso, trata-se especialmente de um traba-
Ihador cuja desonestidade é sugerida pela maioria e que se-
quer cumpre as exigências minimas do contrato feito corn 0
Estado, porque continua morando na cidade corn sua fami-
lia, onde tem um outro trabalho, e além de deixar 0 lote
residencial abandonado, cria gado no lote agrlcola, de modo
a limitar sua presença no assentamento. Esse trabalhador é
um dos motoristas do caminhao da associaçao, 0 que Ihe
permite nao apenas justificar suas ausências, como manter
uma certa ascendência sobre os demais, dependentes de
sua "boa vontade" para 0 uso do caminhao que é de todos.
o uso do caminhao para suas necessidades pessoais faz par-
te dos rumores persistentes na associaçao. 0 outro caso
pode ser exemplificado pela estreita relaçao de Almir corn
uma famnia que também pertence ao "grupo dos indivi-
duois" - a famnia de Zé da Silva. Por sua pr6pria composi-
çao - cinco filhos adultos - , essa famnia é uma das fortes
no assentamento. 0 pai se ocupa da roça enquanto os três
filhos homens se assalariam fora. Através de suas relaçOes
corn as lideronços, a mae e a filha mais velha conseguiram se
empregar, pela Prefeitura Municipal, na pr6pria agrovila: a
mae é a merendeira da escola e a filha, ajudante de enfer-
magem do posto de saude. Corn essas funçOes, as duas mu-
Iheres conseguem uma inserçào bastante significativa no
quotidiano do assentamento e acabam reforçando 0 poder
dos dirigentes na organizaçao de festas e outras atividades
coletivas queenvolvem as familias como um todo. Traba-

110
lharemos um exemplo dessas pniticas no capftulo ~ quan-
do trataremos de uma festa junina em que tivemos uma
participaçao importante.
A origem precisa desses vfnculos de favor que 0 vice-
presidente mantém corn algumas familias do "grupo dos in-
dividuois" nao pode ser investigada, mas é certo que eles
fragilizam esse grupo, enquanto tal, na negociaçao de seus
proprios interesses. E fortalecem 0 poder das lideronços no as-
sentamento, além de evidenciar suas proprias ambigüidades.
Os primeiros contatos realizados corn 0 "grupo dos
marginalizados" confirmaram a reconstruçao que vfnhamos
fazendo das relaçœs de dominaçao existentes no assenta-
mento. E deram-nos novos elementos para a compreensao
da complexidade das mesmas.
Olfmpio, coordenador desse grupo, é um personagem
novo nessa historia torla. Negro e originario de famflia cam-
ponesa do norte do Estado de Minas Gerais - regiao de
economia de subsistência so muito recentemente procurada
por umo empreso de eucoliplos que possou 0 ser dono de lodos os
lerros - , ele chegou a Sao Paulo corn 21 anos. Conta que
veio cuidar da saude, mas na unica tentativa que fez de vol-
tar, apos oito anos, constatou a impossibilidade de permane-
cer la. A maioria de seus doze irmaos ja havia partido, olerro
ero pouco efroco e 0 jeilo ero vollor para Sao Paulo.
Durante os oito anos que antecederam sua volta à regiao
de origem, Olfmpio esteve empregado como vigia em duas
empresas metalurgicas, ganhando salacio mfnimo. Corn a crise
econômica - oquelos crises de emprego de 78 e 79 - ficou de-
sempregado e, a partir daf, alternou empregos sem contrato de
trabalho e corn saIario abaixo do mfnimo, corn 0 trabalho am-
bulante - venda de doces - na periferia da cidade.
Nessa situaçao de precariedade, ja casado e pai de dois
filhos, estreitou suas relaç6es corn as CERs, ha muito fre-
qüentadas. Assumiu la funçœs de coordenaçao, em troca
das quais recebia alimentos para a manutençao de sua famf-
lia. Essa combinaçao de experiências de agricultura campo-

111
nesa familiar e de subsistência, corn baixos salarios na cida-
de e trocas de favores corn a Igreja, fizeram dele um porta-
dor autêntico do discurso comunitario da Igreja Catolica. A
força dessa coerência parece estar no seu imaginario cons-
truido, de um lado, sobre a experiência da vida comunitâria
rural e, de outro, sobre as frustraçOes da luta pela sobrevi-
vência na cidade. Assim, apos nos falar, nosrolgico, da vida
que levava corn sua famllia em Minos Gerais, explica-nos sua
opçao pela agrovila e pela associaçao, referindo-se à dureza
de suas experiências na cidade:
- Entlio a minha vida ero mais ou menos ossim... Traba-
/hei a vida inteira, mas sempre traba/hei sozinho... Vi que sozinho
nlio vai... E aqui... Esfti cerlo que ainda estamos numa situaçao
diflcil... Mos, perlo daque/a vida que eu tinha... Eu troba/hava e
cada dia 10 vinha 0 pagamento... Eu fazia aque/a feira, mas no
dia 20 aque/a feira acabava... Como eu tinha um conhecimento
muito grande na comunidade, todo mundo sabia da minha vida e
a comunidade me ajudava bastante: um /evava uma /ata de (f/eo,
outro /evava um pouco de açucar... e às vezes, eu comp/etava até 0
dia 25, quando cala 0 va/e... No dia 25 eu fazia aque/a feira,
outra vez... e no dia 5, acabava... e 0 pagamento so sala no dia
10... Era a mesma histOria. Agora aqui, veja... pro comer a gente
tem. Eu (me) /embro que teve vezes, Id na cidade, que minha
mu/her comprava meio qui/o de mandioca pro nos todos... En-
quanto hoje eu estou com esse monte de mandioca.
Para Olimpio, 0 sentimento de fortuna experimentado
no assentamento justifica a opçao pela associaçao. Em con-
traposiçao ao tempo diflcil em que trabalhava sozinho, na
cidade. E 0 extremo reducionismo desse raciocinio parece
explicar-se pelos proprios limites de seu projeto de vida:
um projeto de auto-reproduçao familiar, simplesmente,
coma 0 de seus pais e irmaos, na economia de subsistência
em que viviam.
Esse discurso do aqui ao menos para comer a gente faz é
bastante freqüente entre os trabalhadores. Uma espécie de
contribuiçao do projeto comunitario da Igreja Catolica à

112
"historia oficial" do assentamento. Mas em Olimpio ele pa-
rece ganhar autenticidade. Nenhum momento de sua en-
trevista revela qualquer preocupaçao de enriquecimento ou
sucesso econômico. Agricultor competente e dedicado -
uma das maiores rendas anuais agricolas dos trabalhadores
associados, nesse nosso primeiro ano de pesquisa -, ele
equaciona seu projeto pessoal em termos da simples melho-
ria de qualidade de vida. Corn 0 dinheiro obtido neste ana
de boa safra, construiu uma casa de alvenaria na medida
exata desse projeto: uma grande cozinha e um quarto para
ele, a mulher e os seis filhos - um por nascer. Pegada à
cozinha, uma grande varanda onde instalaria, mais tarde,
equipamentos para a produçao de farinha de mandioca.
Apresentou-nos a casa coma pronta, diferentemente dos de-
mais chefes de famflia que iniciavam suas construçoes corn
quartos separados para filhos e filhas, sala de visitas e pIa-
nos de acabamento mais sofisticado para as proximas safras.
Quando, mais recentemente, Olimpio teve condiçoes de
instalar seus equipamentos para a produçao de farinha de
mandioca, tivemos a oportunidade de ver confirmadas nos-
sas primeiras impressOes sobre a autenticidade de seu pro-
jeto comunitario: sem nenhuma pretensao de lucro, ele re-
criava em sua varanda as relaçœs de troca de sua comunidade
de origem em Minas Gerais. Assistimos à alegria corn que
sua mulher e os vizinhos, cercados pelos filhos, conversa-
vam enquanto a mandioca era ralada, moida e torrada no
forno de lenha rustico. Em troca do uso dos equipamentos,
os vizinhos lhe davam uma parte da farinha pronta e todos
tinham coma unico objetivo 0 consumo doméstico. Interro-
gado sobre as possibilidades de venda da farinha, ele nos
informou que eram pequenas, 0 preço muito baixo, mas
que pretendia ver se conseguia vender 0 suficiente para co-
brir as despesas feitas corn 0 equipamento instalado.
Os limites desse projeto de vida se reafirmavam na
profunda convicçao religiosa de Olimpio, evidente no esfor-
ço de avaliaçao da associaçao, ao quai procuramos induzi-Io:

113
- Voclr sobem que tem mu;tos entidodes que ntio opo;om 0
gente, quer d;zer que somos umo combodo de gondo;odo (vaga-
bundos), que v;vemos brigondo uns com os outros... No verdode,
nos brigomos, mos nosso brigo é construt;vo. Porque tem compo-
nheiros que ntÏo têm oquelo v;stÏo... EnttÏo 0 gente tem que v;ver
brigondo com essos pessoos pora que elos c1zeguem no reolidode...
Mos nos que estomos oqu; dentro, nos sobemos 0 quonto ;sso oqu;
id melhorou... A gente sempre luto e tem esperonço, ntÏo éP Eu
ocho que ;sso oqu; é umo vitorio que é diflcil de expl;cor... que
provo que existe Deus e ele estti com 0 gente. Deus ocomponho esso
nosso luto e estti com os nossos fomll;os... Nos temos consegu;do
muito coiso boo oqu; dentro.
A perfeita integraçao de seu projeto pessoal e do dis-
curso religioso que justificava 0 projeto comunitario-associa-
tivista parecia explicar a força e a fragilidade de OlImpio na
situaçao de assentamento. De um lado, a extrema coerência
existente entre seu discurso e sua pratica fazia dele um per-
sonagem intocavel. Uma pessoa nocivel que, entretanto,
nao conseguia se transformar numa referência importante.
E era no minimo curioso que 0 mais autêntico portador do
projeto comunitario-associativista do assentamento lideras-
se um grupo constituido à margem do poder exercido pelas
I;deronços junto à associaçao.
Nossa hipôtese era a de que essa sua extrema coerên-
cia 0 transformava num elemento incômodo na situaçao de
assentamento. Junto aos ;nd;v;duo;s, pelos limites de seu
projeto pessoal e pela sua incapacidade de criticar a associa-
çao. Naturalizada no seu imaginario, esta nao era passivel
de criticas. Suas dificuldades eram sempre temporarias e se-
riam resolvidas à medida que as pessoas fossem mudondo
seus comportomentos. A relaçao existente entre esses compor-
tamentos e os interesses dessas pessoas lhe passava desa-
percebida, assim coma 0 conflito de interesses que definia
as relaçoes de poder dentro da instituiçao. De outro lado,
junto às I;deronços, sua presença se tomava ainda mais com-
plexa. Portador do discurso militante através do quaI elas

114
legitimavam seu proprio poder, viam nele um concorrente
permanente a seus cargos ou posiç6es de direçao. E um
concorrente ameaçador, porque nao passivel de ser aliciado:
coerente, na pnitica, corn seu proprio discurso, ele questio-
nava necessariamente as prâticas personalistas ou oportunis-
tas às quais em maior ou menor medida todos da direçao
estavam habituados. Agravando 0 quadro, ele nao podia ser
discriminado coma individualista, mecanismo de invalida-
çao utilizado pelas lideron{os para eliminar a concorrência de
qualquer trabalhador divergente de suas pr6prias posiç6es.
Interrogado sobre coma chegou a constituir seu pro-
prio grupo, Olimpio nos falou de uma primeira experiência
corn 0 "grupo dos militantes" e uma segunda corn 0 "grupo
dos individuois". A primeira se teria frustrado por dificulda-
des de relacionamento corn um dos companheiros de mili-
tância catolica, Pedrao, que, segundo informa, defende 0 re-
formo ogrtirio, mas nao a pratica, porque vive bebendo, noo
trobolho e MO cultivo 0 tefTo. No segundo caso, suspeitou da
honestidade do coordenador na administraçao do oleo para
o trator. Viu logo que mio io dor cerlo e nem mesmo tentou
qualquer interferência no sentido da definiçao de mecanis-
mos de controle do uso do combustivel. Falava-nos isso
num tom de cumplicidade, como que deixando subenten-
dido que entre os individuais a solidariedade - ou honesti-
dade - é mesmo impossivel.
Foram esses dados que nos permitiram chegar à hipo-
tese jâ enunciada. Até entiio conversâvamos corn ele um
tanto fascinados pela força de sua coerência pessoal, a quai
parecia se concretizar na energia de seus movimentos lon-
gos e lentos e na sua fala fluente, mas pausada e convincen-
te. Em nenhum momento pareceu-nos preocupado corn a
nossa procedência. Como se 0 fato de estarmos la nos defi-
nisse, necessariamente, coma componheiros de luto, uma ca-
tegoria sempre acima de quaisquer outras, no seu imagina-
rio. Mas também coma se 0 que estivesse nos dizendo fosse
aquilo que diria em quaisquer circunstâncias.

115
Explicando-nos 0 processo de constituiçao de seu gru-
po, pareceu-nos também fragilizado na situaçao de assenta-
mento. Reuniu pessoas que estavam sem grupo ou nao se
ajeitavam nos demais. Pessoas corn as quais tinha um bom
relacionamento pessoal e nada mais que nos sugerisse uma
vontade de fazer valer suas posiçoes ou seu proprio projeto
para a associaçao. Conhecendo essas pessoas, pudemos sen-
tir que se enquadrariam bem na categoria dos frocos do as-
sentamento - alcoolatras, timidos, cansados, destituidos de
projetos para 0 coletivo -, nao fosse 0 forte sentimento de
dignidade que, visivelmente, os diferenciava, por exemplo,
dos dominados do "grupo de Almir". Dignidade que Olim-
pio valorizava, mas que nao sabia transformar em força poli-
tica dentro do assentamento. Porque nao dispunha ele mes-
mo de uma critica mais elaborada das relaçoes sobre as
quais se construia 0 projeto associativista. E era a ausência
dessa critica que neutralizava sua força - ou seu evidente
potencial de liderança - e marginalizava seu grupo do jogo
de poder existente na associaçao.
Terminamos nossa entrevista bastante seguros quanto
às hipoteses orientadoras de nosso projeto de pesquisa. Por-
que 0 conhecimento de Olimpio deixava-nos a impressao
clara de que, asseguradas as condiç6es de livre negociaçao
dentro do assentamento, isto é, substituidas as relaçoes de
dominaçao existentes pelas relaç6es democrâticas que vi-
nhamos propondo, ele despontaria coma uma referência
importante no rumo das negociaçoes a proposito do encami-
nhamento a ser dado ao coletivo no assentamento. Mas
coma interrogâ-Io a partir de seu pr6prio discurso? De modo
a fazê-Io refletir no sentido do alargamento de suas possibi-
lidades de liderança? Ou de seus limites pessoais?
Até 0 momento, nosso diâlogo critico vin ha se cons-
truindo sobre as representaçoes que nossos interlocutores
se faziam das relaçoes entre dirigentes e dirigidos. Interro-
gâvamos representaçoes que supunhamos associadas a prâ-
ticas de dominaçao ou de sujeiçao. Ou, de modo mais geral,

116
a pniticas imobilizadoras da situaçao de assentamento. E
era-nos evidente que Olîmpio se encontrava, até certo pon-
to, imobilizado no exercicio de suas potencialidades. Entre-
tanto, a extrema coerência religiosa de seu discurso, fortale-
cida pelos resultados excepcionais de um ana agrfcola
bem-sucedido, nos criava dificuldades. Tudo lhe parecia ir
bem, e sua fé religiosa 0 levava a crer que 0 que nao ia bem
era assim mesmo e corn 0 tempo melhoraria. Nao se tratava,
para nos, de interrogar essa fé. 8abiamos, por outro lado,
que 0 conforto que sentia no seu projeto de economia de
subsistência era efêmero. Assistiriamos mais tarde a suas
enormes dificuldades corn os problemas de saude das crian-
ças ou da mulher e, conseqüentemente, corn a falta de tem-
po disponivel para 0 cuidado da roça. Porém, nao tinhamos
nenhuma intençao de minar as bases de sua alegria ou, no
nosso entender, as bases de sua propria energia pessoal que
tanto nos impressionava.
80 à medida que pudemos conhecer melhor os demais
componentes de seu grupo - seis chefes de familia - ti-
vemos maior clareza sobre a qualidade da relaçao que teria-
mos corn Olîmpio. Jâ dissemos que esse grupo era compos-
to por familias que, juntamente corn uma parte significativa
das familias do "grupo de Almir", eram consideradas fracas,
e que, entretanto, tinham uma espécie de sentido de digni-
dade que as diferenciava destas. Isto é, procuravam manter-
se independentes dos mecanismos de sujeiçao que 0 arbi-
trio dos dirigentes desenvolvia no seio do assentamento.
Ora, essa independência nos aparecia agora coma uma sorte
de construçao imaginâria. Porque, na prâtica, esses homens
dependiam, para fazer a terra produzir, dos benef{cios que a
associaçao podia lhes oferecer ou facilitar: 0 acesso ao finan-
ciamento bancârio ou ao seguro agricola - sempre negocia-
dos pelos técnicos -, 0 preparo da terra em tempo hâbil
pelos tratoristas da confiança dos dirigentes, os favores do
motorista de caminhao, etc. E era coma se essa dependên-
cia lhes impusesse uma humilhaçao para além dos limites

117
do suportavel. Como se para poder suporta-la eles tivessem
que se construir uma espécie de auto-representaçao de sua
autonomia. Na pratica, acomodando-se numa solidao ou
marginalidade oportuna. Porque, embora imposta pelos
seus dominadores, Ihes permitia delinear os contornos da
dignidade pOSSIVei para eles, enquanto dominados, na situa-
çao de assentamento.
Nossas primeiras entrevistas corn esses homens nao
nos permitiram, também, 0 dialogo crltico programado.
Como se a ténue divis6ria existente entre seus limites e
suas possibilidades nos impedissem de questiona-Ios.
Como se eles precisassem ser primeiramente fortalecidos
para depois serem convidados à reflexao que considerava-
mos necessaria. E coma se n6s precisassemos conhecer me-
Ihor suas possibilidades para, apoiados nelas, iniciar nossa
crltica a seus comportamentos de acomodaçao ou imobilidade.
Interrogamo-nos, a essa altura, até que ponto a coerén-
cia do discurso de Olimpio nao era também uma construçao
imaginaria para ocultar, de si mesmo e também de n6s, uma
fragilidade extrema. E decidimos adotar para corn ele e
todo seu grupo 0 carninho da intervençao programada para
o quotidiano das familias do assentamento. Esse caminho
nos permitia começar pela valorizaçao desses homens e de
suas familias, aos seus pr6prios olhos e aos olhos dos demais
ou, em especial, das lideronços. Para isso bastava-nos 0 cui-
dado de visitas mais regulares e de nossa atençao especial à
singularidade de cada um. Pouco a pouco estariam criadas
as bases para 0 dialogo crltico programado. Dialogo que, na
pratica, se apoiaria no desejo de autonomia corn 0 quai eles
defendiam sua dignidade ameaçada. Ou, na nossa leitura,
corn 0 quai eles nos revelavam suas possibilidades de de-
senvolvimento pessoal, pré-condiçao de sua participaçao
ativa no coletivo.

118
III

o trabalhador e sua famllia no


quotidiano do assentamento

- Vocêl estlio aftrabalhando, lutando... E nlio so no inte-


resse de ajudar a gente, mas fazenda a gente crescer. Porque a
presença de vocêl, além de trazer uma alegria - de ver que vocêl
têm aquela preocupaçlio com a gente... é no ponto de crescer que
vocêl estlio ajudando... Porque nos somos gente de todas as igre-
jas, de todas as naçiJes misturadas. E em todo lugar tem 0 bom e
tem 0 mim, tem 0 feio e tem 0 bonito, tem, sei Id... Tèm sempre um
poderoso no meio, nlio éP Entlio eu acho que a presença de vocêl
faz bem pra todo mundo porque vocêl nlio estlio interessados em
julgar ninguém... Vocêl estlio tentando fazer com que a gente cres-
ça. Porque através de vocêl, puxo vida1Olha, nlio sei pros outros,
mas pra mim as coisas melhoraram muito. Vocêl slio pessoas que
a gente conta os problemas e a gente vê que vocêl entendem... que
sabem repartir, explicar e falar pra gente do problema da gente...
Tèm certas coisas que a gente nlio consegue focil, de um dia para 0
outro. E vocêl conseguem passar isso para a gente. Vocêl nlio di-
zem: olha, eu vou tirar vocêl daf. Vocêl fazem a gente encarar a
reolidade, levar a sério, assumir. Entlio vocêl, pra mim, estlio ali
na luta pra fazer a gente crescer... Vocêl pensam no dia de ama-
nhli da gente...
Esse trecho da fala de Maria de Fatima, quando, ja no
final de nosso trabalho de campo, solicitamos a um grupo

119
de mulheres uma apreciaçao de nossa presença no assenta-
mento, intraduz algumas questoes sobre as quais pretende-
mos refletir, a praposito da relaçao que estabelecemos corn
as familias de trabalhadores em seu quotidiano.
Iniciando a reuniao corn essas mulheres, procuramos
tornar bem clara 0 nosso objetivo: a necessidade de enten-
der melhor nosso proprio trabalho. 80 a partir do que, expli-
câvamos, poderfamos "passar" nossa propria experiência
para outras agentes externos - os técnicos, os militantes
polfticos, os padres, as freiras, os pesquisadores, ete. - que
trabalham nos assentamentos em geral. Insistimos que, em-
bora corn objetivos diferentes - a praduçao, a organizaçao
polftica, a religiao, ete. - , todos esses agentes tinham em
comum 0 compromisso corn 0 sucesso da experiência que
todos os assentados e suas famflias estavam vivendo. E que
se pudéssemos entender bem nosso proprio trabalho, pode-
damos contribuir para aumentar a eficâcia do trabalho des-
ses outros agentes, 0 que seria uma contribuiçao, ao mesmo
tempo, ao sucesso dos assentamentos em geral.
Essa quest:ïo nos parecia muito complexa e nao nos
sentfamos seguras quanto à melhor maneira de encaminhâ-
la. Por outra lado, sabfamos da estima que todas essas mu-
lheres sentiam por nos e temfamos que uma simples pra-
posta de avaliaçao enveredasse para uma banalizaçao de
nossas relaçoes. Isto é, para uma situaçao meramente emo-
cional de elogios e agradecimentos recfprocos. Por esta ra-
zao, sem deixar de lado a importância da afetividade que
nos unia, insistimos na necessidade de uma reflexao mais
elaborada de nosso proprio trabalho.
Mal acabâvamos de expor a quest:ïo, inseguros ainda
quanto à clareza de nossa exposiçao, ouvimos, emocionados,
a referida fala de Maria de Fâtima. Que, depois de algumas
referências à importância do amor que vocês sentem pela gente,
dâ infcio à reflexao coletiva sobre a especificidade de nosso
trabalho no assentamento. Partindo da aceitaçao plena de
nosso engajamento corn a luta que é de todos - vocês estno

120
of trabolhondo, lutondo - e assinalando a importância de
nosso esforço de reconhecimento de cada uma das pessoas
do grupo - vocês têm oqudo preocupoçao com 0 gente - , ela
procura qualificar 0 elemento-chave desse esforço: vocês nOo
estno interessodos em julgor e vocês estno tentondo four com que
o gente cresça, ou, em outras palavras, vocês nao resolvem
nossos problemas, vocês nos mostram que so nos podemos
resolvê-Ios.
o entusiasmo e a precisao de Maria de Fatima defini-
ram 0 tema das conversaçœs que se sucederam. Cada uma
das mulheres presentes procurou acrescentar sua propria
contribuiçao às idéias ja enunciadas. Sempre, estendendo-
se um pouco nos relatos sobre coma nos sentiram positiva-
mente, desde 0 princîpio. Relatos nos quais a empatia era 0
elemento mais significativo.
Procurando fazer avançar um pouco mais a avaliaçao
em curso, perguntamos quai seria a diferença principal en-
tre 0 nosso trabalho e 0 dos outros agentes. Sucederam-se
algumas falas tentando qualificar 0 objetivo de cada um dos
agentes: 0 padre, que vern para a missa e para a doutrinaçao;
a freira que se encontra la por "razao de culinaria", isto é,
para ensinar a aproveitar melhor os alimentos que eles mes-
mos produzem; a LBA - Legiao Brasileira de Assistência,
que la esteve para fazer uma horta, que nno deu cerro porque
tinho que ser coletivo e todas preferiam a horta que ajudamos
a fazer, juntamente corn os técnicos, nos seus proprios quin-
tais... E, mais uma vez, foi Maria de Fatima quem ensaiou
uma resposta mais direta à nossa q uestao:
- Com vocês i di/erente... Vocls' nno estno preocupados em
levor 0 gente pora olgum lugor... Vocês estno preocupodos com 0
gente... Em jour 0 gente crescer... Eu sempre jolo: Meu Deus do
ciu! Como des se preocupom com 0 gente!
Era 0 momento certo para explicar melhor isso que
elas chamavam de nossa preocupaçao. Para insistirmos em
algo que costumavamos dizer-Ihes sempre que oportuno.
Isto é, que acreditavamos que s6 0 que eles mesmos quises-

121
sem fazer daria certo no assentamento. Mas a reuniao foi
interrompida pela chegada do marido'da dona da casa, Rai-
mundo, que, depois de cumprimentar a todos, se sentou e
pediu licença para perguntar a algumas das mulheres pre-
sentes 0 que tin ha sido decidido sobre 0 catecismo das
crianças. E 0 relato dessa situaçao imprevista em nossa reu-
niao de avaliaçao também pode ilustrar aigumas das quest6es
que pretendemos refletir, presentemente.
Vma das mulheres explicou-Ihe que, na reuniao feita
para tratar do catecismo, ficou decidido que sua filha mais
velha, juntamente corn mais duas adolescentes, filhas de
duas das mulheres presentes, se encarregariam das aulas a
serem ministradas às crianças. Que, entretanto, essa decisao
tinha criado problemas. Porque uma das mulheres do assen-
tamento, Rosa, que nao foi à reuniao, ondou dizendo que naD
ia pôr os filhos menores no catecismo, porque as garotas en-
carregadas das aulas SaD muito novas e nao vao sober ensinor
noda. As conversas continuaram afirmando que esso mu/her
esta sempre criondo problemas; nao voi às reunioes e soif%ndo...
Ouvfamos tudo atentamente, sem nos pronunciarmos.
Sabfamos que Rosa ensaiava, no momento, sua participaçao
nas decis6es sobre os interesses coletivos no assentamento.
Fruto, acreditamos, de nossa intervençao junto a ela e sua
famflia. Quando a conhecemos evitava 0 confronto de suas
idéias corn as do grupo. Foi por ocasiao de nossos contatos
iniciais corn as familias da agrovila. Estava na casa de uma
vizinha que visitavamos pela primeira vez e, tendo acompa-
nhado em silêncio toda a conversaçao, convidou-nos, ao fi-
nal, para clzegor até sua casa. Antes mesmo que lhe dissésse-
mos qualquer coisa, mal acomodados no velho sofa que nos
oferecia, perguntou-nos se sabfamos quando receberiam 0
documento definitivo da posse da terra. Ouvindo nossas ex-
plicaç6es - que naD éramos funcionarios do Estado e, por-
tanto, naD dispunhamos de informaç6es precisas sobre essa
questao -, aproximou-se um pouco mais e, num tom inti-
mista, falou-nos de seus pianos de deixar 0 assentamento,

122
vendendo 0 direito de uso da terra, assim que tivessem esse
documento. Corn a voz muito cansada e pausadamente, ex-
plicava-nos que 0 esforço que vinham fazendo era muita
grande para os poucos resultados obtidos. Corn 0 marido
pouco experiente em agricultura, os muitos filhos e um
neto de cerca de sete anos, mal estavamfazendo para {omer.
Como a venda do direito do uso da terra era proibida
no contrato feito entre 0 Estado e os trabalhadores, toma-
mos 0 desabafo de Rosa coma uma prova de confiança. E
surpreendia-nos que todos os insucessos vividos presente-
mente pela famîlia fossem relatados por ela sem nenhuma
das tentativas bastante habituais de responsabilizaçao de
terceiros - 0 banco, 0 Estado, os dirigentes, os vizinhos,
etc. Eles tinham avaliado mal as possibilidades de viver so-
bre uma terra e s6 lhes restava voltar para a cidade. A capa-
cidade dessa autocritica e a esperança desse recomeço apa-
reciam-nos coma um esforço de manter, a qualquer custo, a
pr6pria dignidade.
Nao levamos muito tempo para perceber que essa fa-
mîlia, muito fram, fazia parte das que eram invalidadas pe-
las lideranças. Era 0 momento em que descobriamos a l6gica
interna do "grupo dos marginalizados", e a entrevista corn 0
marido de Rosa confirmava as impressOes que orientavam
nosso trabalho junto a essas familias. Preso às dividas que se
acumulavam no banco - suas colheitas nunca chegavam a
cobrir os financiamentos obtidos para cultivar as roças - ,
ele mal se dava conta da possIve] existência de uma relaçao
entre seus insucessos e 0 que mais se passava no assenta-
mento. Agravando 0 quadro, acabava de lhe ser roubada
uma vaca, que, além de fornecer 0 leite para 0 sustento da
familia - parte dele era vendido - , representava a unica
reserva de dinheiro de que dispunha... Assim fragilizado,
naD nos parecia disponive1 para 0 nosso dialogo critico.
Passamos a visitar a familia corn freqüência e a nos in-
teirar, pouco a pouco, de suas possibilidades e dificuldades
quotidianas: a filha solteira que acabara de ter um bebê, as

123
crianças e a escola, os adolescentes e 0 trabalho, 0 pai e 0
rumo das negociaçoes que fazia no banco, 0 trabalho da
mae, lavando e costurando roupas para fora. Ouvindo-os
atentamente e dando uma ou outra sugestao, pudemos che-
gar ao n (jcleo mais vitalizado da famflia: a mae. Pudemos
descobrir uma Rosa enérgica e animada, por tras de sua apa-
rência cansada e deprimida. Ou a beleza apenas intufda da-
quele rosto cansado e maltratado.
Rosa era 0 interlocutor que buscavamos ou corn quem
passarfamos a dialogar mais criticamente. Suporte de tudo
que se passava na famflia, ela nao apenas acompanhava de
perto as atividades do marido corn a roça e 0 banco, coma
empreendia a liderança das atividades domésticas, integran-
do os filhos num clima de alegria e produtividade. Sur-
preendemo-Ia, por duas vezes, reunida corn as filhas e uma
sobrinha, para fazer a farinha de mandioca ou a pamonha.
Nessas ocasioes, mostrou-se alegre e animada. Sem inter-
romper 0 trabalho, pediu a uma das filhas que nos fizesse
um café e, corn um humor inteligente, contando historias
ou relembrando 0 tempo em que, jovem e bela, despertava
o interesse masculino, introduziu-nos na conversa iniciada
antes de nossa chegada. Uma conversa feminina, sobre ex-
periências amorosas das filhas e sobrinha, que participavam
alegremente do clima de sensualidade criado pela mae, en-
quanto ralavam 0 milho ou a mandioca. Antes de nossa saf-
da, respondendo a alguma pergunta nossa, retomava temas
de conversas anteriores, procurando nossas opinioes.
Aprendemos a contrapor nossas opini5es às suas, pro-
curando reforçar sua propria capacidade de discernimento.
E entrando muitas vezes na tonalidade sempre feminina de
seu humor. Uma das primeiras dessas nossas experiências
foi a prop6sito do casamento/nao-casamento do pai do bebê
recém-nascido corn sua filha. Ja tfnhamos assistido ao cons-
trangimento de seu marido frente à exigência - suposta-
mente de todos - de uma atitude mais rigorosa no sentido
desse casamento. 0 velho pai, carinhoso, nao parecia con-

124
vencido dessa necessidade. Mas, sentindo-se julgado no seu
papel de pai, nao conseguia se definir em alguma direçao.
Sem muita condiçao de conversar diretamente corn ele,
quase sempre ausente, aguardavamos 0 momento em que
Rosa 0 liberasse desse peso. Deixando aos jovens a decisao
de suas vidas.
Procurando, meio intuitivamente, interferir na situa-
çao, tentamos um dia iniciar uma conversa sobre a necessi-
dade da jovem mae pensar num trabalho que desse rumo
para sua vida. Rosa, sempre atenta, expôs-nos toda a sua
angustia. Indo desde as conseqüências morais até as mate-
riais a serem enfrentadas por uma mac solteira. Concorda-
mos corn a gravidade da situaçao, mas para interroga-Ia so-
bre as vantagens de um casamento a contragosto. Sobre 0
que a filha ia fazer tendo que viver corn um morido desses.
Muito viva, ela reagiu, de inkio, corn uma longa e séria re-
flexao sobre casos conhecidos de casamentos infelizes. Para
chegar a seus proprios socrijfcios pessoais e às suas lembran-
ças do tempo em que era jovem e bonita. E era coma se
estivesse finalmente livre para ver a mulher que existia na
filha. Como se estivesse induzindo a filha que tinha 0 bebê
no colo a tomar corn as maos sua juventude e sua beleza... A
partir dai, nao nos era dificil conduzir a conversa para a ne-
cessidade de a filha começar a pensar num trabalho que Ihe
assegurasse 0 minimo de autonomia financeira para 0 cuida-
do de seu proprio filho.
A essa altura, Rosa ja havia iniciado conosco um diâlo-
go sobre seus muitos dissabores na situaçao de assentamen-
to. Sobre as inumeras vezes em que se sentira discriminada
pela favoritismo das lideronços ou dos dirigentes da associa-
çao. Desde os tempos do acampamento, quando recebiam
roupas e alimentos coma doaçao, até recentemente, corn 0
uso do trator ou do caminhi'io. Invariavelmente contrapu-
nhamos ao seu discurso de vftima questôes que a levavam a
refletir sobre sua propria responsabilidade nisso tudo: por
que se conformava, nao brigava pela que era dela, etc.

125
Como sempre nos acontecia, nao tinhamos muita se-
gurança sobre os efeitos, a curto prazo, dessas nossas inter-
vençoes. Quando a vitalidade evidente dessa mulher - e
dessa familia - começaria a transbordar de seu pr6prio in-
terior e a repercutir nas relaçoes que marcavam a vida do
assentamento como um todo? Nossa primeira surpresa, nes-
te sentido, foi a participaçao de Rosa numa série de reuniœs
de mulheres que ajudamos a técnica a promover, tendo em
vista 0 desenvolvimento das hottas domiciliares, das quais
trataremos mais para a frente. E agora, quando estamos fa-
zendo nossa primeira reuniao de avaliaçao - que acabou
sendo a unica - , deparamo-nos corn uma situaçao em que,
frente a um comportamento de Rosa, 0 grupo que organiza
a participaçao das mulheres nas questôes do assentamento
parece hesitar em dar prosseguimento aos habituais meca-
nismos de invalidaçao das familias consideradas fracos...
Diante de nosso silêncio, 0 grupo interrompe 0 circulo
de suas pr6prias conversaçoes para nos perguntar:
- 0 que vocês pensam dissoP Você5 acham que essas meni-
nas ntJo têm condiçôes de dar au/as de catecismoP
Ponderamos que 0 problema nao nos parecia ser bem
este. Que a competência das meninas poderia ser facilmen-
te demonstrada, ja que elas tinham feito a primeira comu-
nhao e contavam corn a assessoria do padre e dos pais, mui-
to cat6licos. Mas que, provavelmente, 0 comportamento de
Rosa estaria questionando outras coisas. Por exemplo, 0
pr6prio critério de seleçao dessas meninas. Afinal, por que
nao uma filha dela? Ou, em outras palavras, sera que ela nao
se sentia, no fun do, excluida dos processos de decisao que
levaram à escolha dessas meninas? Sera que nao estaria de-
monstrando, corn seu comportamento, uma vontade de par-
ticipar do encaminhamento das questoes coletivas que vi-
nha sendo feito pelo grupo de mulheres?
A essa altura algumas vozes se uniram para repetir que
Rosa era dificil, desconfiada, nao vinha às reunioes, ete, ete.

126
Concordamos que ela parecia mesmo ser muito ressen-
tida, mas sera que esse ressentimento nao vinha sendo re-
forçado pelas praticas das lideronços dentro do assentamen-
to? Sera que ninguém do grupo se sentia sensibilizado para
a importância de procurar ouvi-Ia melhor no que tinha a di-
zer? Ninguém no grupo era capaz de reconhecer nela uma
pessoa corn idéias pr6prias? De aproximar-se mais deIa para
ouvir suas razoes? E aproveitamos para encerrar nossa reu-
niao, retomando, a partir das dificuldades que 0 grupo en-
frentava corn Rosa, 0 que havia de espedfico na nossa rela-
çao corn todas as pessoas do assentamento. Mostrando-Ihes
que 0 omor que elas nos atribufam era 0 reconhecimento da
importância do que todos tinham a nos dizer e nossa preocu-
pOçOo corn 0 crescimento de cada um, a contra-face da certeza
que tfnhamos de que as soluçOes para os problemas do as-
sentamento s6 seriam encontradas quando elas mesmas fos-
sem capazes de se ouvir e de se reconhecer mutuamente.
Foram muitas as situaçOes significativas que vivemos
junto às famflias dos trabalhadores no sentido de nossos ob-
jetivos principais: 0 reconhecimento da autonomia das pes-
soas e a interrogaçao das praticas que os impediam de exer-
cer essa autonomia. Dificilmente poderfamos reconstruf-Ias
em sua totalidade e, mais ainda, dificilmente conseguiria-
mos dar conta de analisar corn precisao 0 significado de to-
das e1as. Quando 0 reconhecimento do outro é um preceito
pessoal e a mola principal do interesse pela pesquisa, as re-
laçOes vividas no trabalho de campo tendem, às vezes, a
fluiT sem que possamos nos dar conta das sutilezas de todas
as suas mediaçoes. Sobretudo em se tratando da observaçao
da vida quotidiana, onde em prindpio, tudo é significativo
e a qualidade das relaçoes vividas ou observadas ganha rele-
vância sobre 0 conteudo objetivo das mesmas: a saude do
bebê, a escola da criança, 0 trabalho do adolescente, 0 modo
de fazer a pamonha, 0 agasalho para 0 frio, 0 combate às
moscas, 0 fungo da goiabeira, a doença das galinhas, a im-

127
pertinência do vizinho, 0 alcoolismo do marido, a sexualida-
de dos jovens, a divida do banco, a falta de chuva, etc, ete.
Ja procuramos demonstrar que no casa das entrevistas
tinhamos a preocupaçao principal de conhecer e interrogar a
trama de relaçoes que os trabalhadores estabeleciam entre
si, a prop6sito da organizaçao das atividades ligadas à produ-
çao e à pr6pria associaçao. Ora, a definiçao desse objetivo
especifico delimitava 0 espaço de nossa pr6pria intervençao,
permitindo-nos um maior controle sobre a qualidade da re-
laçao estabelecida corn os produtores associados. Tratava-se,
grosso modo, de demonstrar-Ihes que nao estavamos ali
coma porta-vozes de quaisquer das instituiçOes presentes
- Estado, Igreja, MS'T, etc. -, mas coma portadores de
uma proposta de livre diâlogo e de livres negociaçoes entre
eles, na busca de soluçoes para as referidas questoes de or-
ganizaçao. Nesse sentido, nao tardamos a perceber que a
construçao ou reconstruçao da autonomia desses novos pro-
dutores passava pela interrogaçao das relaçoes de domina-
çao que se recriavam no assentamento, sustentadas pela
"moral militante" e pela "moral cat6lica" que instruiam 0
projeto associacionista. Assim sendo, bastava-nos interrogar,
de um lado, 0 discurso militante - de esquerda ou cat6lico
- das lideranças ou de seus subordinados e, de outro, uma
espécie de "contra discurso militante" que se construia, coma
reaçao, entre os trabalhadores que, resistindo às praticas auto-
ritârias das lideronços, tendiam a se isolar e a se eximir de qual-
quer compromisso para corn os problemas do coletivo.
Em se tratando das visitas às familias, entretanto, nos-
sa tarefa era muito mais complexa. Sabiamos que, no nivel
da vida quotidiana, os obstâculos à autonomia das pessoas
se definiam pelos valores da moral social dominante, isto é,
da mesma moral que, historicamente, mediou os processos
de discriminaçao e sujeiçao desses trabalhadores ou, mais
precisamente, 0 mesmo sistema de valores sobre os quais se
construiram os comportamentos de autodesvalorizaçao, de
desconfiança, de resistência sorrateira, etc, de que esses tra-

128
balhadores sao portadores e que estiio na origem das relaçœs
de dominaçao recriadas na situaçao de assentamento. ara,
interrogar essa moral era ir muito além da interrogaçao da
"moral militante", mera construçao imaginaria legitimadora
das praticas de dominadores ou de dominados. Era interro-
gar todo 0 sistema de significados sobre os quais os traba-
lhadores e suas familias desenvolviam, sim, essas praticas,
mas, também, suas praticas sociais como um todo. a que
nos colocava diante de uma velha e controvertida questiio
ética. Em nome de quaI valor maior ttnhamos 0 direito de
criticar os valores estruturantes das vidas desses trabalhado-
res e de suas famîlias? Em princfpio, em nome da autono-
mia e, conseqüentemente, da emancipaçao dessas pessoas.
Mas como pensar a libertaçao das pessoas negando-Ihes os
valores basicos? E, por outro lado, coma liberta-Ios sem
questionar os valores que os condenam a existir socialmen-
te em sujeiçao?
Essas quest5es nos remetiam à da prioridade, para
efeito de analise e intervençao social, das realidades indivi-
duais ou das coletivas. Conforme ja dissemos, pretendlamos
pensar os assentamentos dentro do processo mais geral de
democratizaçao da sociedade brasileira. Mas sem perder de
vista a necessaria transformaçao de cada um dos trabalhado-
res assentados nesse processo.
Nessa perspectiva de transformaçao simultânea da so-
ciedade como um todo e dos indivlduos que a constituem,
consegulamos esboçar alguns dos limites que nos permi-
tiam enfrentar 0 referido desafio ético. Interrogarlamos os
valores dos trabalhadores e de suas familias sempre e ape-
nas quando, na pratica, eles estivessem se apresentando
coma obstâculo à liberdade pOSSIVel das pessoas. Isto é,
quando seus valores estivessem inibindo a emergência de
novas praticas sociais jei anunciadas pelos prâprios conflitos
existentes no assentamento. Acreditâvamos, èom isso, estar
apenas minimizando os efeitos paralisantes desses valores

129
ou, no ângulo contrario, acelerando 0 tempo de um processo
de transformaçao em curso.
Um exemplo desse nosso procedimento metodol6gico
pode ser 0 tratamento dado às situaçoes criadas corn as
maes solteiras dessa pequena coletividade. A constataçao da .
existência de cinco adolescentes solteiras gravidas, ja nos
primeiros meses de nosso trabalho de campo - esse mlme-
ro dobraria no final-, nos levava a pensar que a questao da
criaçao de novas regras para a sexualidade dos jovens - a
nosso ver, liberdade sexual corn responsabilidade - estava
colocada na coletividade. Sabiamos, por outro lado, do peso
dos valores dominantes sobre a sexualidade e podiamos
imaginar quanto a infraçao às regras convencionais podia se
transformar em campo privilegiado para a reproduçao das
praticas de dominados que dificultavam a integraçao do
grupo e, em conseqüência, seu fortalecimento polItico.
Nessas circunstâncias, sentimo-nos autorizados a intervir
junto a cada uma das familias como portadores, nôs mes-
mos, de novas regras de relaçoes sexuais entre os jovens.
Sempre nos limites dos conflitos vividos por elas.
N um primeiro momento nossa intervençao se limitava
a interrogar, corn nosso comportamento, os habituais meca-
nismos de invalidaçao das jovens gestantes ou maes. Apro-
veitando a oportunidade das visitas familiais, interessava-
mo-nos por todas as pequenas iniciativas que cercam a
chegada de um bebê em qualquer familia: saude, roupas,
alimentaçao da mae, etc. Nossa expectativa era a de libera-
los - pelo menos frente a n6s - dos valores que os leva-
vam a transformar os outros - os certos - em juizes de
seus pr6prios comportamentos - errados - e os impediam
de viver as emoçœs dessa maternidade socialmente proibida.
Quando 0 momento da conversa sobre a maior angus-
tia vivida pela famîlia - 0 casamento salvador dos pais da
criança - chegava, adoclvamos um comportamento mais
direto. Reconhecendo-Ihes as preocupaçoes, mas mostran-
do-Ihes que a situaçao era muito mais complexa. Que nao

130
bastava que os jovens pais se casassem, mas que era precisa
saber se tinham vontade e condiç6es de viver juntos e de
constituir uma famllia. E, por ai, procunivamos resgatar os
direitos esquecidos da jovem mae: continuar os estudos,
profissionalizar-se, encontrar um companheiro - ou marido
- adequado, etc. 0 rumo dessas conversas dependia, evi-
dentemente, da disposiçao dos pais da criança para 0 casa-
mento. Mas, em qualquer caso, nossa intervençao parecia
importante. Porque introduzia na situaçao a idéia de que
essa maternidade nao deveria impedir a jovem mae de es-
colher a vida que queria ter. Idéia à quaI os pais da jovem
reagiam sempre positivamente. Como que liberados de um
peso mator.
Na verdade essa pnitica nao nos aparecia coma algo
novo. Nos pertencemos a uma geraçao e a uma categoria
social que viveu essa mudança de regras do comportamento
sexual. Quantas vezes abordamos essa quesmo junto a ami-
gos, vizinhos, colegas de trabalho, familiares! A novidade,
entretanto, existia: era a primeira vez que pensavamos essa
pratica coma um dos meios de transformaçao de uma pe-
quena coletividade. E surpreendiamo-nos corn seus resulta-
dos. Os quais podem ser ilustrados corn a evoluçao de um
dos casos em que interferimos.
Trata-se de uma adolescente, filha unica em meio a
três irmaos, de um casaI do "grupo dos marginalizados".
Quando conhecemos seus pais, des nos recebiam alegre-
mente e festejavam uma excelente safra de arroz. Pouco de-
pois, passamos a encontra-Ios quase sempre alcoolizados,
corn a roça por plantar e uma certa recusa em receber-nos.
SO às vésperas do nascimento do bebê soubemos da gravi-
dez de sua filha Dinda. Nao tinhamos nos aproximado de-
les para tratar desse problema, quando a mulher - Lucia
- nos procurou para perguntar se podiamos, aproveitando
nossa viagem de volta ao assentamento no dia seguinte, pe-
gar sua filha e 0 bebê, no hospital. Cqncordamos, depois de
perguntar-Ihe sobre 0 parto, 0 netinho, ete.

131
Chegando à cidade, no final da tarde, passamos pelo
hospital para nos informar sobre a saîda da mocinha corn a
criança. No dia seguinte, na hora regulamentar, estâvamos
hi. Mas havia complicaç6es: a criança nao tinha roupas para
sair. Compramos as roupas e as complicaç6es continuavam:
o médico nao havia chegado para dar alta à paciente e à
criança... Cerca de uma hora mais tarde, nova complicaçao:
a jovem mae nao se deixava examinar pela médico. Acredi-
tando nessa informaçao trazida pela enfermeira, pedimos li-
cença para conversar corn a jovem. Que nos recebeu - a
pesquisadora - um tanto surpresa, explicando, perplexa,
que 0 médico nem sequer tinha estado la... Sem questionar
a veracidade da informaçao dada pela enfermeira, pedimos-
lhe para dizer ao médico que a jovem 0 estava esperando
para 0 exame de rotina. Mas os resultados de nossos esfor-
ços nao apareciam: 0 bebê continuava pronto, aguardando a
alta da mae.
Ja havia se passado três horas de nossa chegada ao hos-
pital. Impacientes, entramos na sala de distribuiçao e, por
indicaçao da e nfermeira, encontramos 0 médico, a quem
nos apresentamos e expusemos a situaçao. Surpreendido na
sua negligência, ele se pôs a gritar, afirmando que nao gos-
tava de ser abordado dentro do hospital. Dissemos-Ihe que
o problema era dele, enquanto responsavel pela desorgani-
zaçao de seu pr6prio local de trabalho. E que n6s também
nao gostâvamos da espera a que nos estava submetendo...
Mais revoltado, mas procurando se conter, ele forçou um
sorriso de indiferença: 0 que 'Vocês querem? Jô foço muito em
ocordor de modrugodo pora otender umo indigente.
Indignados, dissemos-Ihe que isso era sua obrigaçao, que
se ele trabalhava ali era porque isso lhe oferecia alguma vanta-
gem, que se nao estava satisfeito devia se organizar corn seus
colegas para reivindicar melhores condiç6es de trabalho, que
nao tinha 0 direito de descarregar suas frustraçôes em qual-
quer paciente, muito menos nos "indigentes", ja que enquan-

132
to médico era um privilegiado nesse pais e responsavel, en-
quanto tal, pela existência de "indigentes", ete., etc.
Em menos de dez minutos, mae e filha recebiam alta.
Nossa indignaçao foi crescendo, enquanto entregavamos
ambas à famHia e continuavamos nossas visitas, contando
sempre 0 que se passara no hospitai. À noite, jantando, ain-
da nos interrogavamos sobre a necessidade de um artigo no
jornal local ou coisa parecida. Mas pouco a pouco percebia-
mos que 0 principal estava feito. A demonstraçao à famHia
da jovem e às demais familias do assentamento de que elas
tinham 0 direito de ser bem tratadas em quaisquer circuns-
tâncias. Esse incidente havia fortalecido nossos objetivos de
reconhecimento da mae solteira junto a sua pr6pria famllia
e ao grupo como um todo.
Uma semana depois aconteceu a festa junina da quai
trataremos no pr6ximo capitulo. Nessa festa, 0 pai da jovem
mae - Augusto - dançava alegremente a quadrilha, en-
quanto ela, depois de um longo periodo de reclusao em
casa, assistia a tudo amamentando 0 bebê, coma faziam as
maes dos bebês legitimados socialmente.
Nesse caso, 0 jovem pai concordou em casar-se corn a
garota. Mas nossa intervençao abria a Augusto e Lucia no-
vas possibilidades. Muito mais do que preocupados corn 0
julgamento dos vizinhos, passaram a se preocupar corn 0
emprego do rapaz, 0 bem-estar da filha, as instalaçOes do
nova casaI. Sempre que nos encontravamos, reforçâvamos
essas preocupaçOes. E ouviamos detalhes sobre as dificul-
dades que iam, pouco a pouco, sendo resolvidas. Ao mesmo
tempo em que éramos convidados para um café corn bolo
num dos dias - podiamos escolher - em que a netinha
vinha visita-los.
Esse casai deixou de beber corn a ajuda de uma seita
religiosa. Seria excessivo afirmar que 0 bom encaminha-
mento desse problema vivido corn a filha foi decisivo nesse
processo. Mas é possivel pensar que, na hip6tese contraria,
eles teriam ido mais longe na crise em que se encontravam.

133
Nos demais casos em que tivemos uma participaçao, 0
casamento dos pais da criança naD se realizou. Mas os resul-
tados positivos da nossa intervençao, tendo em vista 0 gru-
po coma um todo, naD foram menores. Entendemos que,
nessas situaçoes, nossa intervençào apenas reforçava enca-
minhamentos ja vislumbrados pelo proprio grupo familiar.
E 0 fazia, na medida em que interrogava os valores que es-
tariam levando essas pessoas a se conformarem ao mani-
qUelsmo do "bem" e do "mal" dominante em nossa socie-
dade. Forçando um casamento precario, ou discriminando a
mae infratora e, por conseqüência, punindo-se a si mesmas
ou assumifido-se coma culpadas diante do julgamento dos
outros. Em outras palavras, procuravamos intervir no senti-
do de romper corn a tendência inercial dos comportamentos
instituldos. E nossa expectativa era, cabe lembrar, a de que,
afrontando julgamentos, os trabalhadores e suas familias se
sentissem livres para perceber que 0 problema - ou 0 mal
- vivido solitariamente era um problema que ameaçava a
todos e que, portanto, poderia ser enfrentado conjuntamente.
Nesse pequeno grupo de familias, fragilizadas por suas
proprias trajetorias e unidas ainda em caniter precario, pela
expectativa de uma vida corn mais segurança, era-nos POSSI-
ve! observar claramente os efeitos desagregadores desses
valores maniquelstas. Ja mencionamos, no capltulo anterior,
que as relaçoes de dominaçao existentes na situaçao de as-
sentamento se renovavam através de mecanismos de invali-
daçao calcados, naD raras vezes, nessa mesma logica conser-
vadora, porque inibidora do encontro ou da comunicaçao
entre as pessoas. Em linhas gerais, porque os dominadores,
arvorados em "certos" pela propria alienaçao do discurso
militante - ou do "discurso oficial" - , discriminavam os
demais, tidos coma "errados" pela nao-adesao a esse mes-
mo discurso. Enquanto os discriminados, em lugar de se
unirem contra essa violência comum à quai estavam subme-
tidos, tratavam de se afirmar através de outros positivos que
se construlam, também, sobre supostos negativos dos ou-

134
tros. Por exemplo, os declaradamente individuois, que se
apresentavam como os que gostavam e sabiam trabalhar,
contra os que naD gostavam nem sabiam. Nessa categoria
dos que naD sabiam trabalhar incluiam seus dominadores e
muitos de seus proprios companheiros dominados. Esse
processo de julgamento, ou invalidaçao redproca e circular,
impedindo a todos de se encontrarem a proposito dos pro-
blemas que deveriam enfrentar em comum, enquanto no-
vos produtores curais.
ara, 0 papel dos valores da moral social dominante e
da sua logica de reproduçao nesse processo de invalidaçao
circular presente no quotidiano do assentamento era espe-
cial mente significativo. E a reconstcuçao de algumas das si-
tuaçôes que vivemos através das visitas às familias permite
aprofundar um pouco mais sua analise. Para 0 que, novamen-
te, a quesœo ligada às maes solteiras pode ser esclarecedora.
Jovens e adolescentes solteiras engravidavam em dife-
rentes familias dos diferentes grupos do assentamento. Se-
ria de se esperar que esse fato despertasse, entre essas fami-
lias, a consciência de terem em comum 0 problema da
orientaçao sexual dos seus filhos. Mas nao. Elas se serviam
disso para colocar em pratica, entre elas mesmas, os referi-
dos mecanismos de invalidaçao. Nas familias naD atingidas,
pelo julgamento dos pais que nào sobem educor, nào ensinom
re/igiào ou nào contr%m osfi/hos. Muitas vezes, até duvidan-
do dos prindpios morais desses pois, que provavelmente naD
tiveram também uma educaçao condizente corn os bons
costumes. Como contrapartida desse comportamento, havia
a autovalorizaçao dessas familias que sabem educar os filhos
e esœo, portanto, livres do risco de ver uma filha solteira
gravida. A naD ser por ingratidao da pr6pria filha.
Por outro lado, corn as familias que enfrentavam 0 pro-
blema, a reaçao era mais diversificada. Em se tratando de
familias ja discriminadas pelo coletivo, a tendência era a in-
trojeçao do julgamento dos outros. a caso das familias men-
cionadas, ambas do "grupo dos marginalizados", nas quais a

135
tendência, antes de nossa intervençao, parecia ser a maior
marginalizaçao ainda. Entre as familias reconhecidas coma
bem-sucedidas no assentamento, a pnitica era de culpabili-
zar as jovens infratoras e tentar revalorizar-se através de ou-
tros positivos que pudessem continuar justificando sua pro-
pria distinçao. 0 que acabava intensificando os referidos
mecanismos de invalidaçao circular. Foi 0 que aconteceu
corn a familia de seu Gregorio, reconhecida coma portadora,
por excelência, dos bons valores e dos bons costumes.
Ja na nossa entrevista inicial corn seu Gregorio tivemos
a oportunidade de conhecer a origem do sentimento de su-
perioridade corn que ele procurava se distinguir dos demais
companheiros de assentamento. A historia de seus mais de
setenta anos de vida é marcada pelo relato de muitos paren-
tes bem-sucedidos e das terras e trabalhos dignificantes que
possuira na Bahia, sua regiao de origem. A vinda para 0 as-
sentamento decorreu da insistência de Aparecido, seu filho
mais velho, 0 ja mencionado presidente da associaçao. A
presença forte de dona Maria, cerca de quinze anos mais
nova que 0 marido e mae de quinze filhos, ja nos aparecia
coma um elemento decisivo na garantia da unidade e do
conseqüente prestigio dessa familia. Muita sadia e bem dis-
posta, ela ajudava 0 marido na roça e se ocupava da casa
onde moravam mais duas filhas - a mais velha e a mais
nova - e para onde costumavam vir, nos fins de semana,
outros filhos corn as respectivas familias. As relaçoes de seu
Gregorio corn as lideronços eram bastante chegadas e sua
aproximaçao corn os agentes externos - 0 padre, os enge-
nheiros, os pesquisadores -, sempre marcada pela necessi-
dade de se valorizar e de se fazer reconhecer, perante os
outros, na sua propria distinçao. Diferentemente dos de-
mais chefes de famHia, ele nao estava interessado em saber
se éramos ou nao representantes do Estado e, conseqüente-
mente, nem em se apropriar de nos para 0 exerdcio do pro-
prio poder no assentamento. Ele ja se sentia poderoso en-
quanto representante dos valores morais dominantes: bom

136
chefe de familia, bom pai, bom cat6lico, hem educado, hem
informado, hem de vida, ete, ete. E procurava se aproximar de
n6s para reafirmar perante os outros essa sua auto-imagem.
Curiosamente, a filha mais velha de seu Greg6rio, de
cerca de trinta e três anos, era mae solteira de um garoto de
quatro anos, na época de nossa chegada ao assentamento. 0
que nos explicava 0 fato de estar ali, sempre ocupada corn
trabalhos domésticos e controlada pelos pais. De passagem
e corn uma expressao desgostosa, cie nos falou dessa contra-
riedade de sua vida. Mas preferia falar-nos dos muitos ami-
gos ricos e importantes que sempre tivera pela vida. Ou dos
muitos problemas que os vizinhos, sempre ignorantes e
atrasados, Ihe criavam. Questionado, mudava sempre de as-
sunto. De tal forma que nossos esforços de interroga-Io
sempre se mostraram inuteis, apesar de termos tido uma
convivência bastante regular corn sua familia. Motivados
pela abertura que dona Maria nos oferecia, sempre cercada
de suas muitas filhas e sempre disposta a levar as conversa-
çoes para longe do velho. Ocasiœs em que 0 pesquisador se
nutria de informaçOes sobre a velha sociedade rural brasilei-
ra, da quai seu Gregorio era, sem duvida, um representante,
e a pesquisadora continuava so 0 trabalho de observaçao e
intervençao no quotidiano da familia.
Menos de seis meses de trabalho de campo se haviam
passado, quando a filha mais velha de seu Gregorio engravi-
dou novamente. 0 pai, filho de uma familia quase vizinha,
tinha pouco mais de vinte anos. E seu Gregorio preferia nao
tocar no assunto, enquanto no lado feminino da fami1ia as
confidências aconteciam. Começando corn a justificativa da
moça, sobre as muitas promessas de casamento que 0 jovem
Ihe fizera, passando pela desqualificaçao do mesmo e termi-
nando, por interferência da pesquisadora, corn a reflexao so-
bre 0 despreparo e a irresponsabilidade corn que essa moça
conduzia sua propria vida. Ao mesmo tempo em que se fa-
lava de pi1ulas anticoncepcionais e de emprego para criar os
filhos, que agora seriam dois.

137
Mas 0 interessante é que, enquanto esse problema fa-
miliar se desenvolvia, seu Gregorio se arvorava em juiz de
um grupo de mulheres que começava a se organizar para F
tratar de problemas ligados à saude e ao transporte no as-
sentamento. Orna das vezes em que algumas dessas mu-
lheres pa~saram pelas diferentes familias explicando sua
causa e solicitando uma pequena contribuiçao em dinheiro
para 0 pagamento das passagens do ônibus que as levaria
até a prefeitura da cidade, expulsou-as de sua casa afirman-
do que naD ia dar dinheiro para financiar a Jalla de vergonho
dessas vogobundos interessadas, na verdade, em encontrar
pretexto para abandonar seus lares e trair seus maridos.
Descobria, sem duvida, 0 positivo de que estava necessitan-
do para compensar 0 negativo que a fil ha lhe infringia. E
procurava se distinguir a partir da inquestionâvel dedicaçao
de dona Maria enquanto esposa e mae.
Na ultima visita que lhe fizemos, apos um ana da in-
terrupçao de nosso trabalho de campo, soubemos que a fi-
lha mais nova, adolescente bonita, estudiosa e catequista
das crianças do assentamento, tivera um bebê, cujo pai é
fil ho de um dos trabalhadores mais discriminados do assen-
tamento: alcoolatra, um segundo casamento corn mulher de
comportomenlo duvidoso e ameaçado de exclusao pelo nao-
cumprimento das regras do contrato feito corn 0 Estado.
Encontramos seu Gregorio adoentado, falando na ne-
cessidade de um filho para sucedê-Io nos trabalhos da roça.
Mas recusando-se, coma sempre, a adentrar 0 terreno de
suas proprias fragilidades. E exaltando-se pouco a pouco na
discussao de um tema colocado por ele mesmo: 0 das regras
estatais para 0 assentamento. Om de seus genros acabara de
comprar 0 lote de uma assentada que voltara para a cidade,
e ele desfiava, colérico, as deficiências da desistente, num
esforço desmedido de valorizaçao das qualidades de seu
gemo... Distraiu-se, depois, mostrando 0 quintal para 0 pes-
quisador. Quintal dos mais criativos e bem cultivados da
agrovila e do quaI se envaidecia, corn razao.

138
Na habituaI conversa das mulheres, dona Maria e duas
filhas, Iavando a mandioca ralada para separar a farinha do
poIviIho, aproveitavam a ausência do velho para contar os
incidentes a prop6sito do mais recente jovem casaI. Nem 0
pai do rapaz nem seu Greg6rio concordaram em autorizar 0
casamento dos jovens. Que vivem juntos num quarto pega-
do à casa do pai do rapaz, 0 quaI nao é recebido na casa da
moça, nem mesmo como visita. Na ultima vez que a filha os
visitou, 0 rapaz chegou de surpresa e foi expulso por seu
Gregorio, que caiu doente, desde entao. Afora a preocupa-
çao corn a saude do velho, dona Maria administra tudo corn
tranqüilidade e segurança. Ajudando a filha, que diz estar
contente corn a criança e 0 "marido", e integrando-os, como
pode, aos irmaos e à vida da famllia. Entendemos que seu
Greg6rio prefere morrer a aceitar qualquer parentesco corn
o filho do ultimo dos seus vizinhos. E que este nao perde a
oportunidade de invalidar seu Gregorio, mesmo que através
da filha, ja que, afinal, 0 erro é sempre das mulheres. Seu
filho nao se casara, enquanto depender de sua autorizaçao,
corn uma moça evidentemente mal encaminhada, conforme
andou declarando.
Nosso comportamento frente a esse quadro ia, eviden-
temente, aIém da intervençao pontual junto a cada uma das
familias que se defrontavam corn esses problemas. 0 sim-
ples fato de visitarmos as famHias das maes solteiras definia
condiçOes para 0 tratamento do problema junto às demais
familias. Indiretamente, porque interrogava seus proprios
julgamentos maniqueistas. Como discriminar como "erra-
do" ou "mau" alguém que vern merecendo nosso reconhe-
cimento? E, diretamente, abrindo espaço para que as pes-
soas procurassem saber nossa opiniao sobre 0 tema.
A sutileza dessas situaçoes de conversaçao merece ser
mencionada. Porque nem sempre elas surgiam de maneira
transparente e destituida de intençoes discriminat6rias. A
fofoca, instrumento eficaz por excelência dos referidos me-
canismos de invalidaçao, era dificultada pela nossa evidente

139
solidariedade para corn as familias das maes solteiras. Mas,
mesmo assim, algumas tentativas se esboçavam. Pelos ca-
minhos, também habituais, do julgamento disfarçado em
solidariedade: 0 caminho do sofrimento dos pois, do efTO do
ft/ho, do pobre destino do crionça, etc... Nessas ocasioes esta-
vamos sempre alertas para contrapor a esses comentarios ar-
gumentos construfdos sobre a idéia da responsabilidade e
dos direitos de cada um dos envolvidos na situaçao. Admi-
tindo, sim, que havia ai um problema, mas um problema
ligado ora aos prejufzos que a jovem mac teria no tocante a
sua formaçao escolar ou profissional, ora às dificuldades que
os pais estavam encontrando em assegurar uma orientaçao
sexual adequada aos filhos. Por af sugerindo que 0 proble-
ma poderia ocorrer corn os filhos de nossos proprios interlo-
cutores e era, portanto, um problema de todo 0 grupo de
famûias do assentamento. E so indo além quando havia interes-
se manifesto das pessoas interrogadas pela nossa argumentaçao.
É interessante observar que, ao impedir 0 desenvolvi-
mento de uma conversaçao construfda sobre esses julga-
mentos disfarçados em solidariedade, acabavamos criando
condiçoes para um dialogo mais direto ou transparente. A
fofoca é também uma forma de falar de si através do outro
- ou de se mostrar bom em relaçao ao mau que é 0 outro.
E, quando essa possibilidade naD existe, a conversaçao
pode tender para a auto-exposiçao de cada um. Ou a livre
expressao para a quaI procuravamos orientar, corn nossa in-
tervençao, cada um dos nossos interlocutores.
A trajet6ria de nossos dialogos corn Raimundo a propo-
sito da quesmo da sexualidade dos jovens ilustra bem esse
processo. Catolico convicto e cioso do bom comportamento
de sua famûia, ele abordou esse tema conosco muito antes
de conhecer nosso interesse pelas familias das maes soltei-
ras. Num tom evidente de fofoca e pela caminho direto do
julgamento moral dos pais das filhas "culpadas". 0 que nos
levou a abordar também diretamente a complexidade do
julgamento dos filhos alheios, quando temos nossos pro-

140
prios filhos. A brecha desejada por ele para abordar a impor-
tância da formaçao religiosa das crianças. Através da quaI se
distinguia coma pai responsavel e competente, por oposiçao
aos outros, irresponsaveis e incompetentes. Sem querer en-
trar na discussao de seus prindpios religiosos, comentamos
que n6s mesmos, coma provavelmente outros dentro do
pr6prio assentamento, nao tinhamos religiao, tinhamos fi-
Ihos e a preocupaçao de educa-Ios bem. Que respeicavamos
muito sua forma de educar os filhos, mas sabiamos que nao
era a unica possivel... E procuravamos mudar de assunto,
ganhando tempo para refletir melhor sobre essa situaçao.
Confundia-nos um pouco 0 fato de estarmos, mesmo
que indiretamente, interrogando sua coerência religiosa. E
decidimos, mais uma vez, que s6 0 fariamos à medida que
ele mesmo nos interrogasse. 0 que nao tardou a acontecer.
Refletindo sobre 0 que ouvira de n6s, abordou-nos sucessi-
vas e insistentes vezes sobre diferentes ângulos da morali-
dade sexual - 0 casamento, a separaçao, 0 adultério, a pros-
tituiçao, ete. -, recaindo, a cada novo bebê "ilegitimo" que
surgia no assentamento, na questao da formaçao dos jovens.
Bastante fluente na utilizaçao dos argumentos de sua moral
cat6lica, ele mesmo fazia avançar esses debates, que dura-
ram 0 tempo de nossa permanência na agrovila. Habituamo-
nos a contrapor a seus argumentos situaçôes de fato, insis-
tindo na idéia de que as pessoas têm diferentes maneiras de
abordar a vida e de resolver seus problemas. Por esse cami-
nho, a conversa sobre as maes solteiras acabou chegando ao
direito à liberdade sexual dos jovens. Momento em que Ihe
falamos de outros ambientes onde os jovens tinham vida
sexual independentemente do casamento, corn 0 consenti-
mento dos pais. 0 problema da gravidez se reduzindo ao
uso de anticonceptivos por parte das moças ou dos rapazes.
Visivelmente surpreso, os olhos arregalados, ele nos pediu
mais informaçôes sobre esses fatos. Para conduir, reflexivo,
que no assentamento isso nao seria possivel porque, frente
a uma moça educada dessa maneira, os rapazes - ou os

141
homens em geral - tenderiam a se oproveitor do situoçiio...
Ponderamos que ele estava certo e que se tratava, evidente-
mente, de se conseguir definir regras que fossem comuns a
todos, de orientar sexualmente os jovens do assentamento,
homens ou mulheres... Mas sentimos que ele se apegava ao
argumento do suposto utilitarismo do comportamento se-
xual masculino, para se promover, ele mesmo, como ho-
mem sexualmente responsavel...
Interrompemos nosso trabalho de campo sem saber
avaliar com maior precisao os resultados de todas essas con-
versas corn Raimundo. Sabiamos que seu interesse pelo
tema estava ligado ao fato de ter duas filhas, sendo uma
pré-adolescente. Mas, embora tendendo, pouco a pouco, a
abandonar as certezas que 0 levavam a discriminar os de-
mais pais, fazia-o pelo carninho mais confortâvel e abstrato,
das normas e prindpios de comportamento. 0 que nos im-
pedia de chegar, corn ele, à realidade concreta de sua fami-
lia e do assentamento.
Recentemente - cerca de um ano apos nossa saida de
campo - recebemos um convite para participar de um cur-
so sobre cooperativismo promovido pelo Departamento de
Assuntos Fundiarios, do Instituto de Terras do Estado de
Sao Paulo, por solicitaçao de um grupo de trabalhadores do
assentamento. Aproveitamos a oportunidade para revisitar
algumas das famîlias. E, mais uma vez, depois de nos atuali-
zar sobre os caminhos de sua roça, de seu grupo e da asso-
ciaçao, Raimundo nos reconduziu para 0 velho tema das
maes solteiras. Dessa vez, para surpresa nossa, diante da
mulher e da filha mais velha, agora quase mulher.
Começou, emocionado, comentando 0 caso da filha de
seu Gregorio, seu companheiro de rimais religiosos, esse po-
bre poi que vivia esso vetgonllO... Mas para dizer que nao con-
seguia entender 0 acontecido, ja que 0 componheiro era tao
religioso e se ocupava tao bem da famllia... Confuso, reto-
mou 0 discurso moral de sempre para nos mostrar como vi-

142
nha orientando os filhos e finalizou dizendo-nos que prefe-
no mOTTer a ter que viver um desgosfo tamanho.
Como ele conhecia bem nossas idéias, pensamos que
talvez estivesse solicitando nossa ajuda na orientaçao da
pr6pria filha. Mas a situaçao era delicada e nos perdemos
um pouco em algumas generalidades até que, frente a sua
insistência, resolvemos abordar diretamente a quesœo. Re-
tomando, didaticamente, nossos velhos argumentos, ja que,
dessa vez, faIavamos para sua fil ha, ou s6 aparentemente
para ele. Em resumo, lembramos nosso respeito de sempre
pela sua pr6pria moral cat6lica, enquanto referencial de
comportamento util para ele mesmo. Mas nao necessaria-
mente para seus filhos. Continuamos, insistindo no direito
destes de escolherem sua moral e insistimos na idéia de
que essa escolha s6 poderia ser boa se apoiada numa base
de informaçOes. Passamos, a seguir e dirigindo-nos clara-
mente à filha, a falar de q uanto essa escolha significa assu-
mir a responsabilidade sobre a pr6pria vida e 0 pr6prio cor-
po. Retomando a quesœo dos prejulzos de um comportamento
sexual irresponsavel - 0 comprometimento do projeto de
vida da jovem - e adentrando 0 problema dos anticoncep-
tivos... Para finalizar, dissemos a Raimundo que achavamos
que ele tinha 0 direito de ensinar sua religiao à sua filha,
mas que tinha também 0 dever de procurar uma orientaçao
sexual para ela. Para que ela pudesse, livremente, escolher
sua maneira de viver e de ser responsâvel.
Durante essa nossa longa fala, nosso receio se transfor-
maya em entusiasmo à medida que Raimundo nos escutava
balançando positivamente a cabeça. E à medida que a filha
nos acompanhava, os olhos inteligentes através dos 6culos
de leitura, 0 livro esquecido sobre os joelhos. A mae tinha
os olhos baixos e s6 os levantou, visivelmente aliviada,
quando a conversa tomou outros rumos.
Ao tempo dessa nossa ultima visita a Raimundo, jâ ti-
nhamos ultrapassado os limites da intervençao que nos ha-
viamos, de inicio, programado. Os dois_capitulos que se se-

143
guem tratarao especificamente dessa questao. Para que 0
leitor, entretanto, nos acompanhe nas reflexœs que pude-
mos fazer através dessas visitas às familias, é necessario an-
tecipar-Ihe algo sobre a descoberta que nos levou a intervir
para além dos referidos limites. TInhamos, desde 0 princî-
pio, a expectativa de que nossa intervençao junto a cada um
dos trabalhadores e a cada uma das pessoas de suas familias
poderia repercutir no grupo coma um todo, fazendo eclodir
seus conflitos e redefinindo as relaçœs dessas pessoas entre
elas mesmas. Mas nao sabfamos exatamente que, por esse
carninho, escivamos nos constituindo em mediadores, por
excelência, dessa passagem da transformaçao dos indivf-
duos para a transformaçao do grupo coma um todo. E tam-
bém naD sabfamos exatamente que essa passagem exigia,
em alguma medida, essa mediaçao.
Dra, essas "descobertas" est1lo na base das reflexoes
que pudemos fazer a proposito dessa experiência vivida
corn Raimundo e sua familia: safmos de sua casa um tanto
perplexos. Nao tfnhamos 0 habito de assumir, na nossa in-
tervençao junto a essas familias, papéis que nos levassem a
dizer aquilo que deviam fazer de suas proprias vidas. Procu-
nlvamos interroga-Ias corn nossos argumentos, mas nao de-
cidfamos por elas. E, no entanto, 0 proprio Raimundo nos
induzira a isso. Conhecia as nossas posiçœs e queria que as
expuséssemos à sua filha. Nao, refletimos depois, que ja
tivesse feito uma revisao de sua moral. Era, sem duvida, 0
medo do julgamento dos outros que 0 levava a pensar que
sua filha precisava evitar, a qualquer custo, 0 risco de uma
gravidez. Mas, em todo caso, isso ja era um avanço. Porque
ele safa, finalmente, de sua posiçao de juiz do comporta-
mento dos filhos alheios para conversar conosco sobre seus
proprios filhos. Isto é, sobre 0 problema que deixava escon-
dido quando, julgando 0 comportamento dos outros jovens
e dos outros pais, procurava se distinguir diante de nos.
Mais ainda, procurava argumentos que pudessem auxilia-Io
a refletir melhor sobre a educaçao que vinha dando aos fi-

144
Ihos, sem se deixar expor nas suas incertezas ou inseguran-
ças. Nesse sentido, agora eIe avançava. Mas alienava-se a
nos, e era isso que nos inquietava. Porque, transferindo-nos
seu poder de orientaçao da filha, estava ainda se protegendo
e à sua moral. Na pratica, porque naD assumia as conse-
qüências dessa orientaçao. E, conseqüentemente, nao in-
corporava ainda a mudança que, àqueIa altura, ja considera-
va necessaria. Necessaria, cabe lembrar, para que naD
corresse 0 risco de ver-se exposto ao julgamento dos outros.
E af estava, novamente, 0 limite de sua autonomia pessoaI.
No que se refere à dinâmica interna de seu microgru-
po familiar, nao poderfamos fazer diferente. Nao voltarfa-
mos tào cedo a visita-los e, intuitivamente, decidimos nao
perder a oportunidade de servir de mediadores do encontro
daqueIa jovem corn aqueIe pai e daquela mulher corn aque-
le marido. Isso naD significava que os problemas existentes
entre eIes estivessem resolvidos. Para isso seria necessario
que cada um se percebesse autônomo nesse encontro que
dependia ainda de nossa mediaçao.
o que mais nos impressionava na experiência, entre-
tanto, era a possibilidade que vislumbravamos de poder, se
tivéssemos disponibilidade de tempo, ser mediadores do
encontro dos pais do assentamento a proposito da orienta-
çao sexual que vinham dando a seus filhos. Era certo que,
como Raimundo, muitos deles confiavam em nos e nos in-
vestiam do poder de decidir melhor sobre essa questào que
tanto os atormentava. Nao nos seria dificil reuni-los para dar
infcio a um trabalho nesse sentido. Apenas, nessa hip6tese,
nao terfamos necessidade de exercer esse poder que era de-
les. Poderfamos funcionar como mera garantia da livre ex-
pressao e da livre negociaçào entre eIes. Isto é, como me-
diadores do encontro dos mesmos. De tal sorte que,
reconhecidos nas suas singularidades e, conseqüentemente,
liberados do risco da invalidaçào, eIes pudessem decidir,
eIes mesmos, sobre os melhores caminhos para a educaçào
de seus filhos.

145
o que significava essa nossa possibilidade - ou as ou-
tras que fomos construindo à medida que nossas visitas às
famîlias prosseguiam - frente ao nosso objetivo espedfico
de liberar esses trabalhadores para negociarem, conjunta-
mente, as soluçôes para os candentes problemas que esta-
vam enfrentando, a prop6sito da organizaçao da produçào e
da associaçao no assentamento? Era-nos diffcil avaliar corn
precisao e aprendîamos a conviver corn essa incerteza. Mas
nao tardamos a perceber que 0 espaço de imbricaçào entre
os comportamentos inerciais do quotidiano construîdo sob
os valores da moral social dominante e as relaçôes de domi-
naçao recriadas na situaçao de assentamento pela "moral
militante" era bastante evidente. Muito provavelmente por
tratar-se de um pequeno grupo de famîlias, vivendo pr6xi-
mas umas às outras e enfrentando desafios comuns. De
qualquer modo, isso nos levava a crer que 0 caminho em-
preendido da intervençao nos dois nîveis de organizaçao de
vida no assentamento - 0 do quotidiano e 0 poHtico-eco-
nâmico -era um caminho fértil para os nossos objetivos.
Nossa relaçao, bastante continuada, corn um dos casais
do assentamento - Matias e Maria de Fatima - ilustra a
referida imbricaçào:
Conhecemos Matias, 0 representante do MST, ja men-
cionado no capîtulo anterior, no Seminario de Botucatu,
quando lhe expusemos nossas intenç5es de trabalhar no seu
assentamento, onde chegamos procurando por sua casa. Fo-
mos recebidos por sua mulher, Maria de Fatima, negra, cer-
ca de 37 anos, falante, calorosa e acolhedora. Apresentamo-
nos, conhecemos as crianças, conversamos um pouco,
informamo-nos sobre os horarios mais provaveis para encon-
trar seu marido em casa e nos despedimos prometendo vol-
tar em breve. Surpreendiam-nos suas caracterîsticas pes-
soais, ja que Matias era loiro, muito jovem - vinte e oito
anos - e bastante reservado no seu discurso e no seu rela-
cionamento conosco. Bastante atraîdos pelo seu cigor mili-
tante e pela dignidade corn que procurava manter uma cer-

146
ta distância em relaçao a n6s, creditamos essa evidente dife-
rença existente entre ele e Maria de Fatima a uma provavel
busca de coerência pessoa!. No sentido da maior integraçào
entre sua vida pessoal e suas praticas poHticas. E sentimo-
nos fortemente atraidos por essa mulher prosaica, alegre e
continente. Essa simpatia que, por razoes diferentes, nos
ligara desde 0 inicio a um e outro explica também a quali-
dade da relaçao que estabelecemos corn 0 casaI, durante
todo 0 tempo de nosso trabalho.
Mas nao tardamos a descobrir que a relaçao entre os
dois nao se construia, conforme imaginamos, sobre qual-
quer exigência de coerência entre ideal de vida e ideal mili-
tante por parte de Matias. Aparentemente, sim, porque 0
encontro - ou desencontro - do casaI se definia sobre 0
conflito acirrado entre 0 projeto militante de Matias e 0
suposto projeto burguês de Maria de Fatima. No essencial,
entretanto, 0 que estava em questào entre os dois era 0 ve-
lho jogo da invalidaçao reciproca, resultante do maniqueis-
mo da moral social dominante ou burguesa, conforme ele nos
disse tantas vezes. No bojo do quaI 0 casaI nao conseguia se
encontrar para a livre negociaçao de seus problemas, a partir
do reconhecimento reciproco de suas diferenças pessoais.
Por ocasiao de nossa visita para marcar a entrevista
corn Matias, nao tivemos coma recusar 0 almoço que Maria
de Fatima, sem nos consultar, enriquecia corn ovos fritos e
quiabo colhido do quintal e refogado na gordura de porco
preparada por ela mesma. Era boa cozinheira e se envaide-
cia disso. Almoçamos conversando, e ela lamentou 0 estado
de sua casa, corn 0 papelao das paredes rasgado por todos os
cantos, as goteiras do telhado e a insegurança que sentia
quando 0 marido viajava para as coisas do movimento e ela se
via s6 corn as três crianças. Seu tom brincalhao e a presença
do marido suavizavam a critica de negligência que Ihe fazia.
E preferimos, nesse primeiro contato direto corn 0 casaI, ce-
der ao clima de alegria que nos ofereciam.

147
Chegando para a entrevista corn Matias, soubemos que
Maria de Fatima tinha ido à cidade levar uma das crianças ao
médico. Comentando, corn ele, a alegria corn que ela vinha
nos acolhendo, sentimos pela primeira vez seu desconforto:
- É que ela foi modo de uma outra forma... Segundo ela
conta, porque a gente niio foi modo no mesma regiiio... Ela é de
M;nas Gerais e eu, do R;o de Janeiro...
Intuindo a existência de tensOes no casaI e respeitan-
do, de um lado, a ausência da mulher e, de outra, 0 descon-
forto de nosso interlocutor, aproveitamos a referência à sua
regiâo de origem para dar inicio a sua historia de vida. Ele,
entretanto, retomou 0 tema das diferenças do casaI:
- É, eu nase; no Estado do R;o. Sou de dezembro... em
dezembro prox;mo vou fazer v;nte e nove anos... E ela ... ela va;
completar trinta e oito anos...
Induzimos a conversa, mais uma vez, para sua propria
historia. A quaI ele começava fazendo referência à dureza
do trabalho precoce e às muitas dificuldades vividas na sua
infância. Como que deixando implicitas as muitas facilida-
des vividas por Maria de Fatima. Mas tomando 0 cumo pra-
posto por nos para, so mais para a frente, retornar ao seu
ponto de partida. Isto é, continuar a se comunicar conosco
através de suas diferenças corn a propria mulher. Quando
solicitado, por exemplo, a nos falar de sua decisâo de ingres-
sar no movimento de luta pela terra, ele explica:
- A gente quondo tem uma vida fddl, a gente niio Iiga mu;to
para 0 que os outros fazem... Tem tudo, niio éP Mos, quando você
tem uma vida softida, vocêanalisa 0 que os outrosfazem ...
Nesse trecho, jâ citado, Matias nos deixava clara sua
necessidade de se firmar diante de nos pela invalidaçâo de
Maria de Fâtima. Assim coma da 0 fizera mencionando, em
nossa visita anterior, a negligência do marido. Coerentes
corn nossa determinaçâo pessoal de nunca entrar nesse jogo
e um pouco inseguros corn a novidade da situaçâo - ainda
nâo tinhamos sido desafiados a intervir nos mecanismos de
invalidaçâo reciproca entre marido e mulher -, conduzi-

148
mos a conversa para 0 terreno mais seguro da organizaçào
dos grupos e da associaçào, onde os limites de nossa inter-
vençao eram definidos pela ja conhecido discurso militante.
A chegada de Maria de Fatima, quando a entrevista ja se
encaminhava para 0 seu término, criou as condiçOes de que
precisavamos - a presença dos dois - para adentrar 0 conhe-
cimento e a interrogaçao dos problemas vividos pela casaI.
Entrando, ela nos cumprimenta calorosamente e, ofe-
gante, reclama da distância do ponto de ônibus e do des-
conforto da espera do médico. Conta-nos, depois e por de-
manda nossa, toda a orientaçao recebida para a extraçào de
um berne na cabeça do garoto mais velho. Sempre falando,
percorre a casa perguntando ao marido das outras crianças e,
sabendo-as na vizinha, da inicio à preparaçao do café que
nos serviria, ao mesmo tempo em que se estenderia no rela-
ta dos muitos problemas de saude que as crianças ja enfrenta-
ram. Quando Matias tenta participar da conversa, assinalando
a fragilidade do filho do meio ao nascer, da intervém firme:
- E/e é homem... Nem sobe bem Mu/her é quefico o/i, dio
e noite, sem dormir. .. Ah! SO Deus sobel Mas hoje, eu tenho umo
gronde vitOrio 0 contor! (a saude do garotinho, depois de um
ana e meio de idas e voltas ao médico e ao hospital).
Diante da evidente necessidade de interrogar 0 virtuo-
sismo materna corn a quai Maria de Fatima invalidava a
participaçao do marido no trato das crianças, mas sentindo-a
fragil frente ao racionalismo militante do mesmo, procura-
mos mudar 0 tom da conversa, introduzindo uma questào
sobre a participaçao das mulheres na organizaçao do assen-
tamento, à quai ela se apressa em responder:
- Ah! É muito pouco! Existe muito fo/to de entendimento
entre os mu/heres... Niio se onimom, niio foum nodo... Eu ocho
que têm tontos oqui que niio têm C1J'onço pequeno, niio têm nodo...
E oieu fico pensondo: Por que eu que vou.?
Nossa intençao de fortalecer Maria de Fatima se frus-
trava. Matias, aproveitando a vulnerabilidade exposta da es-
posa, intervém vitorioso:

149
- É Îsso que eu folo ... Estd diftcil! Diftcilporque as mulhe-
res se preocupom muito com 0 questiio fom;l;or. Se têm dois filhos,
niio poram. Estiio 0 todo hora sujos, têm que estor lovondo, têm
que estor cozinhondo... mos, eu otljofolei... Eu ocho que 0 tempo
10 gente que foz... Agora, folto um pouco de interesse dos mulhe-
res. Inclus;ve ;sso eu nota no m;nho proprio mulher. Entiio eu
posso d;zer isso... Porque se m;nho roço tem que mOTTer no moto
porque eu tenho umo ossembléio Itf em cimo, elo voi mOTTer. Por-
que quolquer problemo que eu tenho eu vou d;scutir oondeP É no
ossembléio... A ossembléio 1 poro 0 vido todo, enquonto que 0
roço, niio. Se eu perder umo, vem outro. Entiio eu tenho que dor
prioridode àquilo que 1 mois necessono, enquonto que elo (apon-
ta para a esposa) niio do esso priondode... Elo penso ossim:
bom, eu tenho que dor bonho no meu filho ogora e esttf no hora do
reuniiio Itf em cimo, entiio eu vou dor bonho no meu filho e perco
o reuniiio. E niio lossim. Se sobe que voi ter reuniiio às 18 horas,
entiio do bonho no moleque às 16 horas. E elo niio. Siio 16 horas
e elo vo; lovor 0 roupa, vo; dor oguo pros b;chos... voi fozer
outras coisas... pro deixor oquele hororio do reuniiio poro dor
bonho no crionço... Entiio 1 isso, niio do prioridode... Entiio eu
ocho que 1porquefolto interesse...
Pensando contribuir para uma possivel defesa de Ma-
ria de Fatima, ja que a sabiamos realmente sobrecarregada
corn as crianças pequenas e as freqüentes ausências do ma-
rido, perguntamos-Ihe das mulheres que têm filhos cresci-
dos e maridos mais presentes. Antes que ela tivesse condi-
çoes de dizer qualquer coisa, Matias retomou a palavra,
mais enfatico ainda:
- (EIas) pensom oss;m tomb/m... Entiio 1 esse 0 proble-
mo... Às vezes, umo mulher folo ossim: Ah! As mulheres têm que
port;cipor do com;ssiio de negocioçiio. (Especialmente) pora ir
pora Siio Poulo... 1èm que ter mulher no meio. Mas voœfolo no
ossembléio e niio oporece umo mulher. Entiio, como 1 que elo vo;
d;scutir um problemo se elo niio sobe do que se esttf tratondoP
Niio tem jeito! Jo chegou ocosiiio do gente four umo ossembléio e
tirar trés homens pora;r pora Siio Poulo paro negocior. E, de-

150
pois que eslti oprovodo no ossembléio, ossinodo e Iwo, dugor
umo mulher poro dizer que lem que ir umo mulher, que é umo
folIo de respeilo poro os mulheres, que nao sei 0 que... AI, 0 genle
foz 0 seguinle pergunlo: Você porticipou do discussao? Sobe do
que estti se lralondo oqui? E elo diz: Nao, mos lem que ir umo
mulher... Mos como que lem que ir? Folor 0 qui? Four 0 que, se
nao porticipou oqui?
Inibida diante desse discurso coerente e apaixonado, Maria
de Fatima se submete a ele: É, os mulheres sao convidot/os
poro ir no ossembléio
Sem mudar de tom, Matias continua expliqndo que
nunco exisliu umo ossembléio fechodo onde se folasse que so tinho
que ir homem, que lodos os mulheres que vao Ilm a polovro livre
e que a ûnica restriçao existente, pelo regulamento, refere-
se à possibilidade de um s6 vota por familia. Mas, segundo
argumenta, isso nao é uma limitaçao, porque se ele nao
pode ir à assembléia, Maria de Fatima pode ir e votar por
ele... E, se liver 0 mondo e a mulher, ou 0 mulher vola, ou 0
mondo... Nesse momento, pressentindo nosso questiona-
mento, acrescenta em tom reflexivo:
- É, é um problemo. Para 0 vOloçao lem esse problemo. É
umo queslao que eslti no documenlo... Mos que pode mudor. É so
ocrescenlor que coda fom/lio lem que voler dois volos...
Percebîamos a inconsistência de sua argumentaçao.
Em especial, sua incapacidade de questionar a organizaçao
da associaçao ou das assembléias, sabidamente distanciada
dos problemas do quotidiano do assentamento, sempre
mais mobilizadores do interesse feminino. Iriam por al nos-
sas interrogaçOes, procurando mostrar-Ihe que a participaçao
das mulheres em qualquer organizaçao pressupoe a redefi-
niçao da pr6pria organizaçao. Que ele pensava a participa-
çao da mulher dentro de uma organizaçao feita s6 pelos ho-
mens... Mas lidavamos no momento corn uma outra
dificuldade. Percebîamos também que, nesse momento, ele
nos tomava coma portadores do discurso feminista militan-
te, corn 0 quai nao querîamos ser identificados. Esse discur-

151
so que aparecia na fala das trabalhadoras (algumas poucas,
provavelmente) que insistiam na participaçao das mulheres
em nome de princfpios abstratos: tem que ir mu/her ou é um
desrespeito para com os mu/heres.
Tentando criar condiç6es para a nossa intervençao,
procuramos trazer a discussao para os problemas objetivos
do assentamento. Comentamos que achavamos tudo isso
muito estranho porque, até onde sabîamos, as mulheres ti-
nham tido um papel importante no movimento de luta
pela terra. Ao que Matias acrescentou:
- É, 0 pope/ dos mu/heres foi muito imporlonte no questâo
do orgonizoçâo, quondo a gente estovo ocompodo. Porque... eu
considero, opesor do minho mu/her MO estorjunto, que a mu/her
foi 0 braço direito do /uto do gente. Porque quondo umo mu/her
estovo Id no ocompomento, e/o estovo com umo crionço. Entâo,
quondo chegovo umo pessoa para entrevistor, nâo io entrevistor
um homem, io entrevistor a mu/her... Por quêP Porque ero a mu-
/her que estovo Id, estovo orgonizondo. Orgonizovo a /impezo,
orgonizovo os questifes de soude, isto e oqui/o... Os homens erom
mois para soir pro fora, para four oTTecodoçâo, four debote...
Ai ero mois os homens. Porque nâo ero umo questâo que a gente
esco/hio... Mos eu omo que teue umo impOrlôncio bostonte gronde...
E que isso poderio dor continuidode oqui. Mos, quondo mego num
/ugor onde tem um bOTToquinho onde moror, 0 pessoa/ ocomodo um
pouco... E esso ocomodoçâo caiu principo/ment& nos mu/heres...
Antes que ele enveredasse novamcnte para 0 seu dis-
curso militante, aproveitamos a oportunidade para assinalar
que a organizaçao agora cra outra e que nao tinham sido s6
as mulheres que tinham deixado de participar. Que ele
mesmo nos havia falado da pequena participaçao dos ho-
mens nas questoes ligadas à associaçao... Mas estivamos
preocupados em resgatar a presença de Maria de Fatima na
conversaçao e percebîamos que a energia dessa presença
nao estava na sua capacidade de contra-argumentar 0 dis-
curso do marido. Essa energia estava no dia-a-dia das prati-
cas corn as quais procurava resistir à invalidaçao que ele Ihe

152
impunha pela força do discurso militante. Intuitivamente, re-
conduzimos a conversa para 0 espaço dela: a saude das crian-
ças e 0 delicioso pao caseiro que nos servira corn 0 café. Fala-
mos de nossa pr6pria experiência corn doenças infantis e
alongamo-nos na troca de experiências sobre paes caseiros,
conscientemente preocupados em valorizar seus interesses
frente ao marido. Mas despedimo-nos ainda necessitados de
uma reflexao mais cuidadosa sobre essa experiência.
Era-nos evidente que ambos nos tomavam por repre-
sentantes de algo positivo, corn 0 quaI queriam ser identifi-
cados, firmando-se contra 0 negativo que viam no outro. Sa-
biamos que para romper corn esse jogo bastava-nos recusar
a posiçâo de juiz que nos atribuiam. Através da interrogaçao
cuidadosa dos valores sobre os quais eles construiam, de um
lado, 0 positivo corn 0 quaI nos identificavam e queriam ser
identificados. E, de outro, 0 negativo corn 0 quaI procura-
vam invalidar-se mutuamente. Exatamente coma vinhamos
procurando fazer nas entrevistas corn chefes de famûia e
acabavamos de fazer corn 0 pr6prio Matias, a prop6sito da
organizaçao da associaçao e da produçao no assentamento
(capitulo anterior). Mas essa nova situaçâo tinha alguns
complicadores. Em primeiro lugar, 0 fato de estarmos traba-
Ihando ao mesmo tempo corn os dois p610s de uma mesma
relaçao. Relaçao de dominaçao, ao que tudo indicava. E, 0
complicador maior, relaçao de dominaçao construida pela im-
bricaçao da moral social dominante corn a "moral militante".
Aparentemente tudo se passava como se 0 desencon-
tro dos dois decorresse do comportamento militante dele e
do comportamento burguês dela. Tomando-nos como repre-
sentantes de seu pr6prio ideal militante, Matias procurava
desqualificar os cuidados, supostamente burgueses, de Ma-
ria de Fatima em relaçào à famûia. Ela, por sua vez, toman-
do-nos como representantes de seu pr6prio ideal de vida -
como pessoas socialmente bem situadas - procurava des-
qualifica-Io pelo abandono dos cuidados corn a familia. E
tudo seria simples se se tratasse apenas de despertar, de um

153
lado, 0 interesse do militante para as questoes da vida quo-
tidiana e, de outro, 0 interesse da nâo-militante para a im-
portância da organizaçâo e do movimento. 0 que, alias, nâo
tardamos a conseguir fazer. Mas a briga do casai indicava a
existência de um desencontro mais profundo. E sentlamos
claramente que, nesse desencontro, a determinaçâo maior
era a dos valores da moral social dominante. Porque, por
tras da racionalidade dos argumentos do militante, havia a
ira do marido ameaçado no seu papel tradicional de quem
dita as normas e decide tudo. Assim como, pOT tras das
queixas de Maria de Fatima, havia 0 ressentimento da espo-
sa privada de seu papel, também tradicional, de matriz ab-
soluta da vida familiar. Tudo nos levando a crer na existên-
cia de uma relaçâo macho-fêmea que impedia 0 encontro
das pessoas em presença uma da outra. E estavamos diante
de um casa tlpico de dominaçâo do homem sobre a mulher,
cunhado pelos valores da moral social dominante e mascara-
do pelos valores da "moral militante".
Decidimos, diante desse diagn6stico, intervir mais di-
retamente na interrogaçâo desses papéis tradicionais. Pres-
sentindo que qualquer investimento significativo no nlvel
da moral militante correria 0 risco de legitimar 0 poder que
o marido exercia sobre a esposa. E todo 0 jogo de invalida-
çâo recfproca a que estavam habituados. Conscientemente,
passamos a valorizar as habilidades domésticas de Maria de
Fatima a seus pr6prios olhos e aos olhos de Matias. Interro-
gando-a sempre que procurava se servir delas para invalidar
Matias. Ocasioes em que procuravamos legitimar a seus
olhos as preocupaç6es dele corn 0 movimento. Ao mesmo
tempo, sem abandonar a conversa ja iniciada corn Matias
sobre os mmos da associaçâo, acrescentamos a ela temas da
vida quotidiana que pareciam interessa-lo: educaçâo dos fi-
Ihos, economia doméstica e os projetos para sua roça. Procu-
rando interroga-lo sempre que procurava invalidar a mulher
nas decis6es relativas a quaisquer desses temas de seu inte-
resse evidente.

154
Seria tango demais relatar todo esse nosso caminho.
Longo e difi'cil porque, muitas vezes, s6 tlnhamos consciên-
cia clara de nossa intervençao quando nos vlamos diante de
seus resultados. Na verdade, à medida que nossas visitas se
sucediam, fomos nos ligando afetivamente ao casaI e passa-
mos a trabalhar corn ambos coma parte de nossos momen-
tos de descanso, aproveitando um café que Maria de Fatima
nos oferecia no meio da tarde, um almoço caprichado num
dia de reuniao da associaçao, uma parada de passagem
quando, depois de alguns dias fora, chegavamos para conti-
nuar nossas visitas, entrevistas ou participaçao em reuni6es.
E essa convivência ia aumentando nossos espaços de inter-
vençao sem que nos apercebêssemos, sempre, disso. A re-
construçao de uma das situaçoes vividas junto ao casaI
pode, entretanto, ilustrar parcialmente esse processo:
Maria de Fatima se ocupava corn esmero da alimenta-
çao das crianças e do marido. Excelente cozinheira, fazia
render 0 toucinho que deixava secar sobre 0 fogao e os tem-
peros que cultivava num pequeno canteiro protegido do sol
forte pela sombra do barraco de papelao. Mas, tendo desen-
volvido essa sua aptidao trabalhando coma cozinheira de
uma famûia rica durante cerca de dez anos, tinha referên-
cias urbanas na questao da alimentaçao. As quais Matias
aproveitava para criticar, sempre que podia. Recusando-se
mesmo a corner seu delicioso pao, além dos biscoitos e bo-
los que guardava em latas que eram abertas sempre que nos
servia um café. Numa das vezes em que passamos por la no
começo da manha, olhando para 0 pao sobre a mesa, comentou:
- Vom vejam... Tanta mandioca e tanta batata doce no
quintal! Na roça a gente tem que comer mandioca ou batata doce
de manho. Eu prefiro. E noo como esse poo!
Assinalamos que 0 pao era muito born, que se tratava
de uma quesœo de habito, dificil de mudar... E encaminha-
mos a conversa para 0 custo da farinha, as possibilidades do
pao de mandioca, do bolo sem manteiga, etc.

155
Para compensar esses seus habitos, Maria de Fatima
procurava vender aigu ma produçao do quintal: ovos ou gali-
nhas, em especial. Mas Matias também se opunha:
- Possei fonfo fome no minho vida que niio gOSfo de vender
essos coisos. Isso é pro comer. Pro comer ofé niio poder mois...
Um dia, elo querio vender ovos. la compror 0 que com esse dinhei-
roPMondei/rifor fMO. Comi, eu OrAO, mois de umo duzio de ovos!
Insistfamos em conduzir a conversa para um espaço
mais racional. Por exemplo, 0 preço relativo do frango, dos
ovos, do pao ou do bolo... Em diversas ocasioes Maria de
Fatima ja nos havia falado de seu desejo de fazer algo para
vender. Procuravamos incentiva-Ia falando das possibilida-
des que 0 quintallhe oferecia para doces, do sabao, das suas
habilidades de costureira... Levantâvamos a hipotese de fa-
zer isso corn algumas outras mulheres e discutfamos a ques-
tao da comercializaçao. Na nossa primeira visita apos a con-
versa sobre 0 pao, nos a encontramos fazendo pao e biscoitos
para vender no proprio assentamento. Tratamos, evidente-
mente, de anima-la, fazendo corn ela 0 calculo do preço de
custo e do preço de venda. E sugerindo-Ihe locais mais ba-
ratos para a cornpra da farinha. Nao raras vezes tivemos a
oportunidade de vê-Ia utilizando 0 dinheiro ganho para as
compras da cidade... E nunca mais ouvimos Matias se quei-
xar do pao.
Situaçoes semelhantes se sucediam a proposito da
educaçao das crianças, do trabalho no quintal ou na raça,
das viagens dele para os coisos do movimenfO. Estas procura-
vamos valorizar, interessando-nos pelo tema e pelo desenro-
lac das reunioes às quais comparecia. Nessas oportunidades,
trocavamos idéias sobre 0 MS'T.
Apos cerca de um ana dessa convivência, aigumas mo-
dificaç5es na vida do casaI começaram a nos surpreender:
De um lado, Matias pedia um afastamento de suas
funçoes junto ao movimento, para se dedicar mais à raça.
Explicava-nos que 0 pagamento do rapaz que havia contra-
tado para seus trabalhos tinha consumido parte significativa

156
de seus ganhos. Que perdera 0 seguro do banco porque nao
tivera tempo de carpir 0 feijao que a falta de chuva nao
deixou vingar... E começava a fazer pIanos para a casa que
pretendia construir. Pedia sugestoes para a planta, na quaI
deveriam existir um escrit6rio para e1e e uma grande cozi-
nha para Maria de Fatima, e discutia longamente seus pIa-
nos agrî'colas, ocasiao em que aproveitavamos para falar das
experiências bem-sucedidas dos individuais, tao discrimina-
dos pelos militantes.
De outro lado, Maria de Fatima fazia progressos insus-
peitaveis. Quando a conhecemos explicou-nos que nao tra-
balhava na roça porque tinha problema de pressao. "Proble-
ma dos nervos", que a levava a tomar calmantes receitados
pelo médico, que sempre lhe recomendava também um
emagrecimento. Sugerimos-Ihe alguns cuidados corn a dieta
alimentar e lemos para e1a alguns dos riscos registrados na
bula dos calmantes. E, agora, Maria de Fatima ia para a roça
nos "momentos de aperto", nao falava mais em médico ou
doenças e emagrecia.
Dm dia, recebeu-nos euf6rica. Queria nos contar que
fizera uma reuniao corn um grupo de mulheres para resol-
ver a q uest1io do posto de saude. 0 prefeito tinha tirado 0
médico e a enfermeira do posto e 0 pessoal es/a'Oa acomodado.
Ap6s a reuniao, haviam decidido ir à Prefeitura e obtido a
promessa de ter um médico pelo menos duas vezes por se-
mana... Agora pretendiam ficar alertas. Se 0 médico nao
viesse, iriam la novamente. E organizavam-se para ir à pro-
xima assembléia expor esse trabalho para todos. Porque, a
partir dar, pretendiam resolver também 0 problema do âni-
bus que ainda nao. vinha até a agrovila e 0 problema dos
adolescentes que trabalhavam de dia e nao tinham transpor-
te para ir à escola à noite...
Desde 0 dia de nos~a entrevista inicial, nunca mais
chegamos a falar-Ihe em organizaçao de mulheres. Limita-
vamo-nos a comentar, quando e1a mencionava problemas da
agrovila, que tudo ia mal porque e1es estavam permitindo.

157
Porque nao havia um interesse de todos por essas quesroes...
Mas era evidente que ela se fazia lider desse grupo de mu-
lheres por influência nossa. Numa das vezes em que nos
contava, e~ detalhes 0 que se passara numa das reuniôes
do grupo, disse, referindo-se à pesquisadora: AI, eu fiz como
você. .. eu folei...
Habituamo-nos a procurar Maria de Fâtima sempre
que chegâvamos ao assentamento, para saber das novidades
sobre 0 grupo de mulheres. E a passar junto a algumas ou-
tras para comentar 0 que se vinha passando e discutir possi-
bilidades de encaminhamentos para os problemas que en-
frentavam. Nao tfnhamos tempo suficiente e nao sentfamos
necessidade de uma interferência mais direta nossa no gru-
po. Até que alguns problemas começaram a acontecer: Ma-
ria de Fâtima, sentindo dificuldades em ampliar a participa-
çao das mulheres nas tarefas empreendidas pela grupo,
começava a desenvolver um discurso de invalidaçao das
mesmas. Nos moldes do discurso utilizado pelas lideranços.
Isto é, referindo-se ao individuolismo, desinteresse, folto de so-
lidon"wode e, até, ignorôncio ou ifTesponsobilidode dessas mu-
lheres que se recusavam a qualquer participaçao. Questio-
namos essas avaliaçôes sugerindo-Ihe a necessidade de
ouvir as mulheres que pretendia trazer para 0 grupo, saben-
do sempre que as pessoas sô participam quando se sentem
realmente envolvidas. Mas as coisas pioraram. Na nossa vi-
sita seguinte, Maria de Fâtima tinha pIanos bastante con-
servadores para 0 grupo: acabar corn a indecêncio dos jovens
que ficom nomorando pelos contos, e pressionar os pais dos
adolescentes que andavam invadindo a escola para quebrar
lâmpadas, vidraças, ete.
Entendemos que esses novos pIanos de Maria de Fâti-
ma poderiam corresponder a uma necessidade sua de se va-
lorizar perante mulheres de familias socialmente reconheci-
das no assentamento e que nao tinham ainda aderido ao
grupo. E suspeitamos que essa necessidade poderia estar
relacionada ao fato de estar sendo vftima de discriminaçoes

158
por parte dessas mes mas familias - 0 mencionado processo
de invalidaçao circular.
Confirmando nossas suspeitas, dois ou três dias depois,
Maria de Fatima e mais duas mulheres foram agredidas por
seu Gregorio quando passavam por sua casa para pedir uma
pequena contribuiçao em dinheiro para 0 pagamento das
passagens de ônibus das mulheres que iam à cidade para 0
trabalho de pressao junto ao prefeito. Conforme ja mencio-
namos, seu Gregorio as acusara de estarem pedindo dinhei-
ro para abandonar seus afazeres de maes de famflia e irem
se divertir ou passear na cidade. A referência ao suposto
comportamento imoral das mes mas, bastante clara.
Diante desse quadro, entendemos que tfnhamos de
intervir nesse processo. Que esse grupo nao conseguiria as-
segurar sua continuidade sem 0 apoio de pessoas como nos,
que, reconhecidas por todos, pudessem legitimar suas ini-
ciativas. Como dispunhamos de pouco tempo - fazlamos,
nesse momento, nosso trabalho de campo junto aos traba-
Ihadores que haviam optado, desde 0 inkio, por naD penen-
cerern à associaçao - e soubéssernos do interesse da agrô-
noma do assentamento pelo grupo de mulheres, associamo-nos
a da para discutir corn as mulheres algurn projeto de açao
que pudesse reunir 0 rnaior numero posslvel de participan-
tes. E essa experiência merece ser destacada, mesmo que
brevemente, porque mostra 0 encontro de Matias e Maria de
Fatima enquanto militantes, além de ser reveladora, em si
mesma, da imbricaçao existente entre os problemas da vida
quotidiana e as relaçOes de dominaçao através das quais as
lideronços se mantinham no poder dentro do assentamento.
A convocaçao da primeira reuniao de "mulheres, corn a
nossa panicipaçao, foi feita pelo proprio grupo de Maria de
Fatima. 0 comparecirnento foi bastante significativo. Nao
apenas estavam presentes rnulheres das famflias reconheci-
das do assentamento - a mulher de seu Gregorio, por
exemplo -, como mulheres de famflias mais freqüente-
mente invalidadas no coletivo, como Rosa e Lucia.

159
Lamentavelmente, nao tinhamos condiçoes de promo-
ver um trabalho de discussao prolongada, de modo a ir fa-
zendo emergir, da discussao mais livre entre elas, interesses
comuns que pudessem ser orientados para programas de
açao coletiva. Iniciamos a reuniao expondo-Ihes nosso inte-
resse em, aproveitando os avanços do grupo de mulheres
que se vinha formando, participar de algum programa que
viesse a fortalecer a participaçao das mulheres na melhoria
de suas pr6prias vidas no assentamento. Mencionando, uma
a uma, as recentes conquistas realizadas pela grupo ja exis-
tente, insistimos num roI de problemas que careciam, até 0
inomento, de soluçao. Tudo, desde 0 abandono dos espaços
publicos - a praça, as ruas, a escola, ete. -, até as questOes
da alimentaçao, da saude, da profissionalizaçao dos adoles-
centes, ete. Explicamos, a seguir, nossas pr6prias limitaçOes
de tempo - s6 podenamos estar presentes quinzenalmente
- e a oportuna participaçao da agrônoma.
É dispensavel entrar no detalhamento dos calorosos
debates que se sucederam a prop6sito de cada um dos pro-
blemas enunciados por n6s. A nossa pressa e a especialida-
de técnica da agrônoma acabaram por conduzir esses deba-
tes para a proposta de uma horta a ser feita pelas mulheres
interessadas - cerca de 21 - em seus respectivos quintais.
Interferia também nessa decisao a presença semanal de
uma freira para ensina-Ias a se alimentar melhor, a partir das
possibilidades existentes nos seus quintais.
Nas etapas de planejamento coletivo dessas hortas, ti-
vemos a oportunidade de assistir e discutir corn essas mu-
lheres novas formas de relacionamento entre elas mesmas,
entre elas e seus filhos e maridos e entre elas e 0 Estado.
Todas participaram da elaboraçao de um projeto através do
quaI demandavam ao DAF - Departamento de Assuntos
Fundiarios - uma ajuda em sementes e dinheiro para a
compra de esterco e arame para cercar as hortas. Os maridos
e os filhos foram convocados a participar das tarefas de
construçâo das cercas, transporte manual do esterco e con-

160
fecçao dos canteiros. Trocas de experiência foram progra-
madas na formaçao de mudas e tarefas de transplantaçao
das mesmas... E era um prazer assistir à alegria corn que
todas se reencontravam por ocasiao das reuniOes. Apenas
para citar um exemplo, assistimos, numa saida de reuniao, a
dona Maria, mulher de seu Greg6rio, e Maria de Fatima
relembrando as muitas tarefas que fizeram juntas, no come-
ço do assentamento, antes da demarcaçao dos lotes...
Mal os canteiros começaram a ser semeados e as pri-
meiras mudas transplantadas, surgiu a primeira dificuldade
inesperada: a fixaçao de um diferencial de pagamento da
conta de agua para as familias que estavam fazendo suas
hortas. Aparentemente, uma mera quesœo técnica, mas na
realidade bastante mais complexa e reveladora das muitas
dificuldades existentes no relacionamento das trinta e nove
familias que, associadas, moravam na agrovila.
Às vésperas da chegada das compras subsidiadas pelo
DAF, quando se planejava a divisao e distribuiçao das mes-
mas, duas mulheres que vinham participando dos trabalhos
informaram às demais sua desistência do projeto: a mulher
do ja mencionado presidente da associaçao - agora ex-pre-
sidente, porque, vencido seu prazo, seu substituto eleito era
Matias - e dona Cida, a merendeira da escola, mae da fa-
mllia do grupo dos individuois que contava sempre corn a
proteçao de Aimir, 0 antigo vice-presidente. Ambas alega-
ram desinteresse e oposiçao dos maridos. Na euforia dos
acontecimentos -,- as sementes estavam sendo distribuidas
- passou desapercebido pelo grupo que esses maridos
eram os dois encarregados da administraçao da agua no as-
sentamento. Os poucos comencirios sobre a desistência das
duas componheiros giraram em torno do fato de elas ja terern,
em seus quintais, uma pequena horta...
Quando os canteiros jâ estavam semeados, 0 inespera-
do: a falta d'âgua! Alegando pequenos problemas de funcio-
namento da bomba d'âgua, os referidos encarregados passa-
ram a liga-la em pequenos periodos do dia, coincidentemente

161
incompativeis corn os honirios adequados para molhar os
canteiros... Na nossa ausência e conhecedoras das muitas
dificuldades ligadas à quesœo do pagamento coletivo da
conta de ligua, as mulheres naD souberam tomar a iniciativa
de se reunir para resolver 0 problema. Foram se defenden-
do coma podiam, guardando ligua nos preclirios recipientes
disponiveis, tirando ligua do poço jli desativado no proprio
quintal, emprestando ligua do poço do vizinho e participan-
do do diz-que-diz-que jli instaurado.
Chegando ao assentamento, imediatamente tratamos
de convocar uma reuniao para a discussao do problema. À
quaI compareceram, além das mulheres envolvidas, alguns
maridos das mesmas, 0 coordenador do "grupo dos margina-
lizados" - Olimpio - e 0 lider do grupo dos individuois -
Joao Gaudêncio.
Depois de certa agitaçao em toma da mti-fé dos respon-
sliveis pela administraçao da ligua e de suas esposas, as dis-
cussOes foram organizando-se e revelando a complexa trama
de relaçoes existentes por trâs da questao. Na verdade, a
referência à necessidade de pagar a âgua consumida pelas
hortas era de origem desconhecida. Mas todas associavam
essa necessidade ao corte de ligua feito pelos encarregados
e temiam ser injustiçadas por esse pagamento. Diante de
nossa argumentaçao de que era obvio que quem gastasse
mais deveria pagar mais, elas se puseram a denunciar todas
as irregularidades existentes na administraçao do consumo
da ligua. Ocasiao em que pudemos nos inteirar da amplitu-
de do problema. A conta era, habitualmente, dividida em
partes iguais pelas trinta e nove familias do assentamento.
Mas 0 consumo era evidentemente desigual: havia os que jli
tinham horta, os que tinham animais e os que reuniam num
s6 quintal vlirias familias... 0 projeto das hortas foi a gota
d'âgua nessa questao maior. E gota d'ligua porque, desta
vez, 0 diferencial de consumo fugia ao controle das lideron-
ços. Analisando as informaçOes, percebiamos que os que ti-
nham excesso de consumo eram, na maioria das vezes, liga-

162
dos às /ideronços. As poucas exceçôes, dentre as quais Joao
Gaudêncio ali presente, pareciam esquecidas porque po-
diam forçar a emergência do conflito e 0 necessario confron-
to que, afinal, 0 projeto das hortas colocava em movimento.
Ao final da reuniao, a participaçao dos dois representantes
de grupo presentes dava 0 acabamento necessano às discussôes.
Pedindo licença para falac, ja que nao eram participantes do
grupo reunido, lembraram que 0 problema era antigo e que
estavam ali para acompanhar os acontecimentos. Porque
achavam justo que cada um pagasse pela pr6prio consumo
de agua, mas desde que todos 0 fizessem. A reuniao foi en-
cerrada corn uma proposta de uma assembléia geral para
tratar da q uestao.
Nessa assembléia, voltlivamos ao nosso papel inicial de
observadores. Era a primeira a que assistiamos desde a série
de assembléias nas quais fomos convidados a participar ati-
vamente, conforme sera relatado no cap. V. Uma opoftuni-
dade, sem duvida, de avaliar possiveis resultados de nossa
intervençao no assentamento. Porque, pela primeira vez,
viamos uma assembléia ser hem conduzida sem a interfe-
rência direta de mediadores. Mas interessa no momento
destacar a coordenaçao rigorosa de Matias, acompanhada da
participaçao de Maria de Fatima, que, coma representante
do grupo de mulheres, defendia seus direitos e encaminha-
va sugestôes à proposta vencedora do marido presidente:
profissiono/izor 0 trabalho de administraçao da agua - os
referidos responsaveis argumentavam fazer isso coma favor
- e atribuir um sistema de pesos proporcionais para os di-
ferentes itens de consumo de agua das familias.
Depois dessa reuniao, pouco pudemos voltar ao assen-
tamento. Apenas 0 suficiente para visitar as hortas que se
desenvolviam viçosas por todos os cantos. E soubemos que
muitas se perderam ou se reduziram pela dificuldade de co-
mercializaçao dos excedentes e devido a um vendaval que
destruiu a caixa d'agua, em cuja reparaçao os trabalhadores
levaram um longo tempo. De onde concluimos que a co-

163
nhecida paralisia crônica das relaçoes entre eles se manti-
nha pela falta de mediaçao competente: n6s tinhamos nos
retirado e a agrônoma se afastara em razao de uma gravidez
de risco.
Em todo 0 caso, revisitando Maria de Fatima e Matias,
na 6ltima oportunidade ja citada, guardavamos conosco a
expectativa de informaçOes sobre os mais recentes avanços
da associaçao e do grupo de mulheres. Nao os tinhamos dei-
xado mais liberados de suas divergências, no tocante à parti-
cipaçao nas quest6es pollticas do assentamento, à frente
dessas duas organizaçOes? Surpresos, soubemos que Matias
passara a direçao da associaçao à frente, vencido seu prazo
regulamentar, tendo feito muito pouco pelo coletivo. E que
o grupo de mulheres se desfazia, sem qualquer liderança.
Tudo indicando que 0 desencontro do casaI explicava, pelo
menos parcialmente, esse nova quadro.
Maria de Fatima, emocionada, nos abraçava e nos con-
tava os 6ltimos acontecimentos. Durante nossa ausência, de
cerca de um ano, Matias teria se envolvido em aventuras
amorosas, que estavam na boca do povo, levando-a a procurar
um advogado para se informar sobre seus direitos no casa
de uma separaçao. Depois disso, as coisas começavam a me-
Ihorar: ele noo batia mais nos crianças e começava a respeitâ-Ia,
ao que tudo indicava. Limitamo-nos a escuta-Ia longamente.
Solidarios corn a sua dor e corn a gravidade da situaçao.
De seu lado, Matias, ocupando posiçao importante no
curso do quaI participavamos, nos recebia da forma acolhe-
dora e polêmica de sempre. A prop6sito das idéias que ex-
p6nhamos, na qualidade de convidados do DAF, no pr6prio
curso. Nos intervalos falou-nos dos descaminhos da associa-
çao, mas parecia-nos coerente nos seus prop6sitos militantes
dentro do assentamento: acreditando frrmemente na idéia de
uma cooperativa coma soluçao para alguns de seus problemas.
Lamentando nossa ausência nesse periodo em que 0
casaI enfrentou graves confrontos, refletimos depois sobre 0
acontecido, à luz de nossas hipôteses sobre os efeitos de

164
nossa intervençao na vida quotidiana dos trabalhadores.
Soubemos, desde 0 inicio, que 0 desencontro de Maria de
Fatima e Matias era s6 aparentemente ligado à questao da
militância. AIimentamos, por algum tempo, a expectativa
de que, uma vez desvendada a seus pr6prios olhos essa repre-
sentaçao imaginaria de seus problemas, eles tenderiam a se
encontrar para resolvê-Ios. E acreditamos que 0 interesse de
Maria de Fatima pelas coisos do ossen/omen/o, associado ao
fato de que Matias começava a se voltar mais para a sua roça
e para os interesses da famûia, significavam um avanço
substantivo nessa direçao. S6 nao previmos que a necessaria
eclosao de seus conflitos pessoais fosse atingir dimensOes
tao agudas. Nao no tocante à possibilidade de uma separa-
çao do casai, jli que esta sempre existe, mas pela gravidade
dos fatos que a cercaram. Isto é, pela repercussao de seus
problemas pessoais no coletivo e pelo sofrimento adicional
que isso Ihes produziu.
Apesar de um certo desconforto ético - até que ponto
tinhamos 0 direito de interromper nossa mediaçao antes
que os conflitos que faziamos emergir se resolvessem? -
pudemos avançar em nossas reflexoes. Imaginamos que
Matias, desarmado de seus argumentos habituais de invali-
daçao de Maria de Fatima - suas supostas caracteristicas
apollticas e burguesos -, nao suportou uma convivência iguali-
tliria corn ela, 0 face a face de um casai que se encontra en-
quanto pessoas, e fez valer sua dominaçao pelo caminho da
relaçao macho-fêmea. Atingindo-a na sua pr6pria dignidade
de mulher... Maria de Fatima, por sua vez, reagiu positiva-
mente. Recorrendo à lei que obrigava Matias a se colocar num
piano de igualdade corn ela. Ou procurando seus direi/os.
N a parte final do curso, ocasiao prevista para a nossa
exposiçao e que acabou reunindo um numero maior de par-
ticipantes, ela estava la. Bem vestida e carregando a sua dor
corn a dignidade da pessoa que sabe de seus direitos... É
dificil prever 0 desfecho dessa trajet6ria do casai que come-
çou corn a nossa intervençao. Sobretudo porque nao esta-

165
mos la para assegurar 0 envolvimento pOSltlVO do grupo
corn a situaçao. Tememos a invalidaçao de Maria de Fatima
pelas pr6prias companheiras. Pelos caminhos sutis da moral
social dominante, que facilmente poderiam explicar todo 0
acontecido, responsabilizando-a por ter-se deixado levar
pela militância e abandonado sua dedicaçao de esposa... a
que a colocaria na posiçao de ter que escolher entre 0 retro-
cessa a seus antigos papéis de esposa ressentida ou a adoçâo
de uma postura militante endurecida - e, conseqüente-
mente, menos eficaz - pela frustraçao de suas dimensOes
femininas ou de suas necessidades enquanto mulher.
Preocupa-nos também a situaçao de Matias. Como
p610 dominante da relaçao, ele bem podera contar corn os
valores vigentes para continuar firmando sua dominaçao so-
bre Maria de Fatima. Mas tera crescido pouco nas suas evi-
dentes caracterlsticas de liderança. Acreditamos que seu
crescimento, enquanto llder, depende do desenvolvimento
de sua capacidade de reconhecimento dos outros. No que
ele parecia avançar bastante. Mas corre 0 risco de entrar em
retrocesso, se nao aprender, nessa histOria toda, a reconhe-
cer a pessoa que existe em Maria de Fatima.
a importante desse nosso esforço de reconstruir, aqui,
essa experiência precocemente interrompida é, mais uma
vez, apontar possibilidades de intervençao geradas pela nos-
sa pratica de interrogaçao das relaçoes de dominaçao no
quotidiano das famllias de trabalhadores. Tudo parece nos
indicar, por exemplo, que se tivéssemos condiçOes de pro-
longar nossa permanência em campo, nosso trabalho junto
ao grupo de mulheres teria ganho proporçOes bastante sig-
nificativas no processo de democratizaçao das relaçoes na
situaçao de assentamento. Vimos como um projeta aparen-
temente simples coma 0 das hortas acabou levando 0 grupo
de mulheres a interrogar as relaçOes de dominaçao existen-
tes. Ainda, coma Matias, enq uanto presidente da associaçao
e frente à pressao do problema criado pela açao do grupo de
mulheres, teve condiçOes de regulamentar um problema

166
antigo e aparentemente insoluvel da associaçao: 0 pagamen-
to da agua em termos proporcionais ao consumo de cada
famflia. E é possivel supor, a partir do conhecimento dos
efeitos da participaçao politica de Maria de Fâtima na sua
relaçao corn Matias, que desse projeto-horta tenamos che-
gado, facilmente, e no pr6prio grupo de mulheres, à interro-
gaçao das relaçoes de dominaçao existentes no interior de
cada famflia. RelaçOes inibidoras da participaçao mais ativa
das mulheres na definiçao dos rumos do assentamento
coma um todo. Corn resultados positivos também para a
participaçao mais criativa dos proprios homens. Nao apenas,
porque induzidos a uma relaçao mais igualitâria corn suas mu-
lheres, tenderiam a superar suas posiçœs de dominados ou de
dominadores na propria situaçao de assentamento. Mas por-
que, frente à concretude dos desafios criados pela participaçao
mais ligada aos problemas do dia-a-dia, por parte das mulhe-
ces, seriam mais incentivados a romper a paralisia das celaçœs
sociais nas quais se encontram, quase sempre, acomodados.
Essa dialética entre as relaçœs quotidianas e as relaçOes
de dominaçao existentes na situaçao de assentamento foi
evidenciando-se como uma constante à medida que avançâ-
vamos na nossa trajet6ria de investigaçao e interrogaçao das
relaçOes sociais obstaculizadoras do que entendî'amos ser 0
processo de democratizaçao das relaçOes sociais no interior
da agrovila. Revelando-nos, cada vez mais, a forte imbrica-
çao existente entre os valores da moral social dominante e
os da "moral militante" na produçao das relaçoes de domi-
naçao paralisantes ou inibidoras de pniticas sociais mais
criativas entre os' trabalhadores.
Seria longo demais entrar aqui na reconstruçao de outras
situaçOes significativas dos efeitos dessa nossa dupla interven-
çao, orientada para a valorizaçao das pessoas nas suas singula-
ridades e tendo em vista sua participaçao criativa na coletivi-
dade. Mesmo porque nosso objetivo é colocar em discussao
nossa propria metodologia de trabalho. Para 0 que acredita-
mos ja ter reconstruido situaçOes exemplares suficientes.

167
Apindice: noms metodoMgicos

Alguns encaminhamentos adotados no dia-a-dia de


nossa trajet6ria de conhecimento e interrogaçao dos traba-
lhadores e de suas familias podem ser uteis ao leitor. Em
primeiro lugar, nossa atitude vigilante para evitar, na nossa
relaçao corn eles, a reproduçao de comportamentos paterna-
listas. 0 que nem sempre era facil, ja que em algumas situa-
çOes a necessidade de ajuda, inclusive financeira, era evi-
dente. Mas resistimos. Uma unica vez emprestamos
dinheiro a uma trabalhadora que, embriagada, nos deman-
dava. Em contrapartida, nos afastamos dela, firmando nosso
descontentamento. 86 nos reaproximando quando, por ini-
ciativa dela, sentimos que ja começava a nos ver pela quali-
dade do que tînhamos a lhe oferecer - nossa escuta e nos-
sas opiniOes. Por outro lado, sabîamos que essa pr6pria
escuta e essa atençao - na linguagem de um trabalhador,
essa consideroçt1o - podiam desenvolver comportamentos
de prestaçao de favores deles em relaçao a n6s. As velhas
praticas de subserviência corn as quais procuravam ganhar 0
reconhecimento de seus patrOes. Nao querîamos esses favo-
res e, ao mesmo tempo, nao querîamos também cortar-lhes
a possibilidade de retribuir nossa atençao. Começamos acei-
tando, sempre, 0 cafezinho. Pedindo-lhes que 0 fizessem
sem açucar, 0 que a princfpio os surpreendeu, mas rapida-
mente passou a ser vivido coma uma atençao especial que
nos faziam. A notîcia circulou entre as familias e chegamos
a ser recebidos corn café sem açucar - uma pratica inexis-
tente entre eles - em algumas de nossas primeiras visitas.
Corn relaçao aos freqUentes convites para 0 almoço, decidi-
mos adotar um comportamento diferente. Evitando aceitâ-
los em meio a nossa rotina de trabalho e combinando um
dia possîvel para ambas as partes. Ocasiao em que, freqüen-
temente, eles nos preparavam um frango criado no quintal e
caprichavam no feijao que 0 pesquisador francês tanto apre-
ciava. Corn isso querfamos, ao mesmo tempo, livra-los da

168
obrigaçao de nos servir almoço e valorizar 0 almoço que nos
ofereciam em situaçôes excepcionais. No inicio, levavamos-
lhes pao - 0 apreciado poo do cidode - como forma discre-
ta de retribuiçao. Mas rapidamente percebemos que essa
nao era uma pratica adequada, porque formalizava situaçôes
de agradecimento redproco e nos deixava sempre em con-
diçoes de superioridade. Eles nos ofereciam também pro-
dutos de seus quintais - ab6boras, mandiocas, batata doce,
etc. - , e n6s nos dispunhamos a ajuda-Ios em situaçôes de
emergência, transportando algum doente para 0 hospital -
ou vice-versa - ou mesmo comprando-Ihes alguns remé-
dios na cidade. Nao como regra, mas quando presentes per-
cebfamos suas necessidades. As quais procuravamos, sem-
pre que possfvel, vincular a nossos horarios de trabalho.
N osso objetivo era dar a essas trocas 0 carater de uma
relaçao amistosa de solidariedade e, sobretudo, informaI. Acei-
tando ou recusando convites ou demais ofertas, conforme nos-
sas pr6prias conveniências ou necessidades e deixando-os li-
vres para fazer 0 mesmo. Mas tfnhamos sempre a sensaçao da
necessidade de materializar, por algum caminho, aquilo que
lhes oferecfamos de maneira especial: nossa atençao. E a opor-
tunidade nos foi dada pelas fotografias que tiravamos - 0
pesquisador - à medida que desenvolvfamos nosso trabalho.
As quais utilizavamos também como meio de descobecta e
interrogaçao de seus valores - experiência que mereceria
uma reflexao sistematica à parte - e que passamos a oferecer-
lhes corn cecta freqüência. Essas fotos, que eles tanto aprecia-
vam, eram presentes que nao corriam 0 risco de cair na banali-
zaçao das trocas de presentes habituais. )a que nao eram fotos
convencionais que eles nos demandariam e porque falavam
diretamente de nosso pr6prio trabalho. Concretizando a aten-
çao que dispensavamos para com as brincadeiras ou a escola
das crianças, a convivência familiar, 0 trabalho na roça, as lidas
domésticas, as reuniœs dos trabalhadores, ete...
Quanto ao risco das relaçôes paternalistas, uma outra
decisao nossa precisa ser mencionada. Existem, no assenta-

169
mento, algumas poucas famllias sem um mî'nimo de condi-
çoes para empreender 0 cultivo de suas terras. Familias de
pessoas desestruturadas pelas suas pr6prias trajet6rias indi-
viduais e que carecem de uma assistência especializada, in-
clusive médica. A princlpio, procuramos conhecer também
essas familias, mas percebemos muito cedo que nossos re-
cursos e objetivos nao nos permitiam uma abordagem rigo-
rosa delas. E que, assim sendo, correnamos 0 risco de ter
que assumir corn eles um papel protetor-doador que amea-
çaria a qualidade de nossas relaçOes com as demais familias.
Nao era, em grande medida, sobre a fragilidade dessas pes-
soas que Almir construî'a seu discurso de dominador gene-
roso ou solidario? E nao era, também, sobre esse tipo de
fragilidade que os agentes da Igreja vinham construindo
seus projetos de relaçôcs comunitârias fraternas e reprodu-
toras da pobreza no bojo da situaçao de assentamento? Por-
que homogeneizadoras e inibidoras da emergência dos con-
flitos e do confronto das diferenças existentes entre essas
familias de trabalhadores? Entendemos que nossos esforços
junto a essas famllias seriam imlteis frente aos nossos obje-
tivos de fazer emergir esses conflitos e optamos por limitar
nossa relaçao corn e1as a aIgumas visitas mais fllpidas e a
uma acolhida mais cuidadosamente atenciosa nos eventos
coletivos. De modo a evitar 0 risco de invalida-las, mas sem
nenhuma expectativa maior sobre os resultados de nossa in-
tervençao junto a e1as.
Finalmente, é provavel que esteja ligada a essa mesma
questao um outro encaminhamento que, dessa vez de for-
ma nao programada, acabamos dando ao nosso trabalho.
Conforme ja procuramos deixar c1aro, começamos nossas vi-
sitas valorizando igualmente todas as familias. E mantive-
mos esse princlpio de reconhecimento da existência e da
singularidade de cada uma até 0 fim de nosso trabalho. Mas
na nossa pratica de questionamento acabamos tendendo a
priorizar uma parte dessas familias. Na fase em que as esta-
vamos conhecendo ainda, isso nao ocorria. À medida, entre-

170
tanto, que adentnivamos suas especificidades, coincidindo
corn 0 periodo em que nos envolviamos mais diretamente
corn as questOes da associaçao e nosso tempo se tornava
mais escasso, fomos investindo maior energia nas familias
ou pessoas que, percebemos agora, tinham maiores possibi-
lidades de emergir como sujeitos importantes do processo
de democratizaçao das relaçOes sociais dentro do assenta-
mento. Yale dizer, pessoas que reagiam mais significativa-
mente ao nosso questionamento. Questionando-nos tam-
bém, muitas vezes. Continuamos procurando visitar todas e
acompanhando, corn exceçao das poucas familias desestru-
turadas ja mencionadas, a reflexao de seus problemas parti-
culares. Mas aigumas começaram a nos aparecer como mui-
to conformadas ou acomodadas e acabamos visitando corn
maior freqüência e trabalhando corn maior empenho as fa-
milias que tinham pessoas fortes, sobre as quais nos apoiâ-
vamos em nossa intervençao. Mas pessoas fortes nao no
sentido jâ mencionado de serem portadoras de capacidades
valorizadas pelo "discurso oficial" das /ideronços ou pelo dis-
curso contra-oficial dos chamados individuois. Pessoas fortes
no sentido de vitalizadas e inconformadas corn as tantas vio-
lências ou dificuldades a que todos estavam submetidos.
Parece certo que essa tendência de nossa prâtica pas-
sou bastante pelos nossos objetivos de intervir na singulari-
dade das pessoas e das familias, tendo em vista 0 melhor
desenvolvimento do coletivo ou do assentamento como um
todo. Mas é bastante provavel que ela nao se explique por
esse "nico caminho. Que ela esteja ligada a caracteristicas
pessoais nossas, dificeis de serem analisadas neste texto. E
que, entretanto, também precisam ser oferecidas à discus-
sao, se 0 objetivo deste texto é contribuir para a reflexao do
papel do mediador junto a populaçOes que, como essa dos
assentamentos, mobilizam nossa vontade polftica de trans-
formaçao social.

171
Segunda Parte

A questao da mediaçao do
encontro entre os trabalhadores
e entre suas famflias
IV

A festa junina: a virtualidade das


relaç6es democraticas

No quinto mês de nosso trabalho de campo, quando ja


tî'nhamos avançado bastante na nossa pratica do dialogo Crl-
tico junto a cada produtor da associaçao e às pessoas de suas
famHias, sobreveio-nos a possibilidade de observar aIguns
dos efeitos dessa sistematica de intervençao e de desenvoI-
vê-Ia: a festa junina.
A princî'pio pensamos tratar-se de mera oportunidade
de aprofundar nosso conhecimento das reIaçôes que essas
pessoas vinham desenvolvendo no seio da associaçao e no
quotidiano do assentamento. Na medida em que esta festa
necessitava de uma organizaçao e promoveria 0 encontro de
todos os membros da coletividade. E procuramos nos orga-
nizar para 0 papei de observadores passivos, que vî'nhamos
desenvolvendo sempre que se tratava de acontecimentos
do coletivo. Pouco a pouco, entretanto, fomos percebendo
que, desta vez, nossa participaçao tendia a se transformar
numa referência importante para grande parte da populaçao
da agrovila.
Sentindo 0 que nos aparecia corn um apelo das pessoas
ao nosso maior engajamento e intuindo que esta poderia ser
uma oportunidade de demonstrar a todos, dirigentes e diri-
gidos, a possibilidade, entre eIes, das novas reIaçôes sociais

175
que pretendiamos estar criando junto a cada um, decidimos
romper corn nossas reservas e intervir diretamente num dos
itens da pauta dos festejos: a quadrilha, que vinha sendo
anualmente realizada para crianças e jovens e que propu-
nhamos fosse realizada também corn os adultos. Essa expe-
riência nos permitiu, de um lado, testar a virtualidade dos
efeitos, no coletivo, de nossa pratica de reconhecimento e
fortalecimento da autonomia de cada uma dessas pessoas
em particular. De outro, levou-nos a elaborar melhor essa
passagem de nossa intervençao junto a cada uma delas para 0
coletivo. A queslao, central neste texto, da mediaçao portado-
ra de relaçOes sociais democraticas construidas sobre a autono-
mia das pessoas e orientadas para 0 grupo como um tooo.
A festa foi programada para 24 e 25 de junho, e soube-
mos dela numa assembléia de 2 de maio, a segunda a que
assistiamos.
Estavamos la enquanto observadores passivos, curiosos
de compara-la à primeira assembléia de nosso periodo de
permanência em campo. Auxiliados, agora e para 0 efeito
dessa comparaçao, pelo conhecimento de cada um dos par-
ticipantes e das relaçoes existentes no seio da associaçao.
Estranho espetaculo, novamente! Que repete em cari-
catura 0 antigo. Chegamos como "convidados", entre aspas,
porque na verdade soubemos da assembléia em conversa de
passagem corn um dos trabalhadores. E nem sabiamos mui-
to hem como tinha sido feita a convocaçao. Nada de formaI
ou oficial, em todo caso. Tanto mais que a diretoria nao se
reunia desde a nossa chegada, e a ordem do dia fora flXada
pelo presidente e 0 vice-presidente, tudo indicando que em
conversaçOes corn os militantes... E cada um vai ouvir 0 que
deve ser tratado, na pr6pria reuniao.
A chegada dos associados se realiza no mesmo ritmo da
assembléia precedente. A reuniao esta marcada para as
8,30h no barracao, e apenas às 9,30h um grupo significativo
esta presente. Cada um chega na sua hora e corn a mesma
postura de quem vern ver, mais uma vez, 0 que vai se pas-

176
sar... Ou de quem poderia também nao estar ta, sem que
isso tivesse alguma importância.
Sao vinte e um os chefes de famflia presentes e, agora,
ja podemos identifica-los. Do "grupo de Almir", 0 vice-pre-
sidente e lider paternalista, ha ele e seus "amigos". Que sao
cinco ao todo, de um grupo de treze. Faltam os mesmos
que na assembléia precedente, os "assistidos". Do "grupo
dos militantes", sao oito. Dentre os quais 0 representante
do M8T e 0 representante da CEA - Comissao Estadual
dos Assentados. Do "grupo dos individuois", sao quatro.
Mas dois vao partir antes mesmo do infcio das discussOes,
dentre os quais 0 secretârio da associaçao, protestando que
têm outras coisas a fazer do que esperar. E é verdade que
estavam dentre os primeiros a chegar. Finalmente, do "gru-
po dos marginalizados", sao quatro. E, assim, restam sendo
dezenove os chefes de famflia presentes, e vinte os ausen-
tes, no momento em que se engaja a reuniao.
Très personagens se colocam no centro de um circulo
aproximativo: 0 presidente, 0 vice-presidente e 0 militante
do M8'f. É este ultimo que toma primeiro a palavra. Para
dizer que, !loje !ltf decisoes 0 tomor a prop6sito da so/idoriedode
para corn os outros compon!leiros e, a proposito da indicaçao
de um novo delegado para a CEA. Ele diz que 0 M8T estâ
na origem do assentamento, que existem, nesse momento,
muitas famîlias acampadas que têm necessidade de ajuda e
que, da mesma forma que nos reœbemos ojudo quondo estOvo-
mos no mesmo situoçiio, nos temos ogoro 0 dever de ojudor esses
compon!leiros. Ele relembra que uma decisao ja havia sido
tomada, ha muito tempo, em assembléia gelaI. Que cada
um se comprometera a dar 10% de sua colheita para esses
companheiros e que, no entanto, isso nunco foi executodo.
Que é necessario, portanto, que 0 partir de ogoro coda um
posse 0 dar um pouco de suo co/!leito. Em seguida, informa
que um assentamento estâ ameaçado de expulsao pelo pre-
feito da municipalidade, que pretende construir na area
sete mil casas populaces. Que, em face disso, seria bom que

177
se discutisse em assembléia um meio de todos manifesta-
rem solidariedade aos companheiros ameaçados. Enfim, a
prop6sito da CEA, trata-se de substituir 0 mandato de Pe-
drao, elegendo um outro representante. E acrescenta que
nesto comissiio siio decididos coisos importantes para todos nos e
que seria bom aproveitar a oportunidade para retomar oque-
/0 proposto de previsao de uma verba da associaçào para ga-
rantir esse componheiro nas suas necessarias viagens e nos
seus momentos de ausência de sua roço. Quando 0 militante
terminou, 0 presidente acrescentou que era necessdrio tom-
bém fa/or do festa.
A pauta enunciada, aguardamos a abertura de uma dis-
cussao sobre cada um dos seus itens. ara, 0 que vai se pas-
sar durante dois terços da reuniao que vai durar pecto de
três horas? Assiste-se a monologos dos três mencionados
atores desta assembléia, apenas entrecortados uns pelos ou-
tros, diante de uma assembléia muda ou quase muda, apa-
rentemente indiferente a tudo que se passa.
a vice-presidente começa, retomando a questao das
ausências nas assembléias e da fa/ta de respeito aos compro-
missos ossumidos para com os componheiros. Numa estranha
repetiçao das mes mas lamentaçOes da assembléia ante ri or,
sobre os pessoos que siio convocodos e niio vêm. À quaI acres-
centa 0 problema dos muito poucos que têm ojudodo os compo-
nheiros que estiio em /uto no intenor...
Começam, enmo, as intervençœs entrecortadas dos
referidos atores, através das quais cada um corn seu proprio
discurso julga os outros que nao respeitam os engajamentos
e dao sua argumentaçào pessoal ou sua autojustificaçao para
a necessidade de respeita-Ios. 0 presidente, sempre coma
que fora da pr6pria pele e coma que se esforçando para in-
terpretar um texto que lhe fora escrito por Almir - 0 vice-
presidente, inicia: Eu, eu niio gon/zo nodo poro four 0 que eu
foço... Duronte 0 tempo que eu gosto com a ossocioçiio, eu MO
trobo/ho no minho roço e ninguém foz isso no meu /ugor. Mas
Almir parece nao ter concluldo ainda seu discurso sobre 0

178
descompromisso dos presentes e ausentes e continua repe-
tindo seu tema principal da assembléia anterior: Como se e;x-
p/ico que onles, quondo nos Ilnhomos um polrlio, nos fOzlomos
ludo que e/e mondovo e que, ogoro, que nos somos nosso proprio
polrlio, ninguém foz 0 que lem de four, 0 que foi decidido em
ossemb/éio? .. Nessa altura, 0 militante 0 interrompe para,
ironicamente, comentar: Hoje, codo um de nos é seu proprio
polrlio, mas nlio lem mois empregodo... Finalmente, quando a
assembléia começava a dar mostra de cansaço, os dois traba-
lhadores restantes do "grupo dos individuois" se retirando,
Almir inaugura, aos nossos 01h08, 0 que entenderiamos mais
tarde ser sua cafta principal de definiçao desse estranho e
repetitivo jogo:
O/hem, eu vivo oqui com quase noda.o. O/hem pro minlzo
co/ço e pro minho comiso - estava vestido coma quando nos
recebeu em sua casa, corn roupas velhas e de trabalho. 0 que
eu como... Eu /evo umo vido misertivel... Se eu mOTTO, eu vou ser
enleTTodo ossim - m08tra as roupas - e com esses sopolos -
levanta um dos pés para mostrar um sapato em frangalhos.
Eu podio eslor rico, Iti foro... Eu sou um proftSsiono/... sou mes-
Ire-de-obras... Mos oqui eu concordo em viver esso vido misero-
veL. Eu Irobo/ho poro os oulros... Eu dou meu Irobo/ho, eu dou
meu dinheiro... Mos pro quê? Se ninguém c%boro?... Mos ogoro
eu jo eslou consodo... Coda um que foço 0 que é de sun responso-
bi/idode... Meu poi dizio sempre que 0 esperonço é 0 ti/limo que
mOTTe... Eu oindo nlio perdi 0 esperonço, mos c1tego. Codo um
que foça 0 que lem de fozer. .. Eu nlio sei nodo de leorio - refe-
ria-se a nossa presença, provavelmente -, mas eu faço 0 que
lem defour, eu conlzeço 0 prtitico. Eu sempre /Ulei, desde 0 começo,
pe/o ossocioçiio, pelo comunidade... Agoro, que codo um se vire...
Como que procurando, de um lado, dar força à posiçao
de Almir e, de outro, resgatar a diferença de sua pr6pria p08i-
çao, 0 militante do MST faz uma 61tima e breve intervençao
para lembrar que, tendo de escolher entre visitar seu filho no
hospital e vic à assembléia, naD hesitou em vic à assembléia.

179
Definido 0 clima das "negociaçOes", isto é, a total im-
possibilidade de expressao de quem quer que esteja contra
as posiçOes das lideranços, os mesmos três atores começam a
encaminhar propostas de resoluçao dos sempre renovados
problemas: as ausências e 0 descompromisso para corn as de-
cisOes de assembléia. 0 vice-presidente evoca um trabalho
de conscienlizoçoo, e 0 militante se opoe a ele, dizendo que a
soluçao é abandonar os que nao têm consciência a eles mes-
mos. 0 vice-presidente fala de maior controle e de recursos à
justiça, e 0 militante fala de expulsao da associaçao, de solu-
çao radical. A custo, ouve-se 0 coordenador do "grupo dos
marginalizados" dizendo que se lui confusoo é porque noo lui
organizoçiio. Vma crîtica à direçao que cai no vazio, sem que
nenhuma outra contestaçao se manifeste... E contra a quai
uma outra voz se faz ouvir: quando é pro receber lodo mundo
quer, mas, quando é pro dar, noo lui ninguém. Reforçada, desta
vez, por uma outra: agora que coda um lem sua terrinha, nin-
guém pensa mois nos outros...
Ap6s esses comencirios, as decisOes sao tomadas como
que da autoridade dos responsâveis. Decide-se renovar 0
mandato de Pedrao como delegado do assentamento na
CEA E, nao havendo outro interessado, parece-nos que nao
hâ também 0 que votar. Esquece-se a questao da previsao
de um fundo para as despesas regulares do referido delega-
do. Afirma-se que se passarâ nas casas para coletar os merco-
dorios para os companheiros acompodos . Acreditamos que,
devido à ausência de qualquer manifestaçao em contrârio, a
decisao tomada anteriormente continua vâlida. E marca-se
uma reuniao para quinta-feira, corn os representantes do re-
ferido assentamento ameaçado, para ver 0 que se pode fazer
para apoiâ-Ios - reuniao que nao chegarâ a se realizar.
Quando entendemos que a assembléia estâ terminan-
do, todos se movimentando para partir, uma jovem faz sua
entrada no meio deste ajuntamento de homens. É Bernade-
te, que vern lembrar a necessidade de tomarem decisoes
sobre a comissao organizadora da festa. Vma comissao den-

180
tre eles, os homens, ja que da participaçao feminina ela
mesma parece estar se encarregando... Bernadete ja é nossa
conhecida. Faz parte do nucleo militante desde 0 momento
da luta pela conquista da terra. Foi quem, segundo seu pai,
o convenceu a entror no movimento. Este, por sua vez, é Zé
Rodrigues, 0 jâ mencionado chefe de uma das famflias do
"grupo dos individuois" que mantém troca de favores corn
Almir. No seu discurso, Bernadete é feminista, socialista e
cat6lica. Na pratica, é assistente de enfermagem do centro
de saude do assentamento, responsavel pelo catecismo das
crianças e animadora dos jovens, de um modo gelaI. Havia
participado da organizaçao da festa no ana anterior e, co-
nhecedora das muitas dificuldades entiio enfrentadas, vern
para dizer da necessidade de nao se deixor tudo poro 0 ulti-
mo norD como oconteau no ono possodo.
Uma parte dos presentes ja saiu, quando ela acaba de
dizer ao que vern. E é sobre lamentaç5es a prop6sito da
passividade da maioria das famflias no ana anterior que re-
começam as discussôes. 0 vice-presidente lembrando que
uma minoria tinno sido obrigodo 0 four tudo... e que este ana
deixara a coordenaçao para os outros e se contentara em cur-
tir os festejos, em lugar de continuor dondo meu tempo paro os
outros... Ao que 0 presidente acrescenta: Tonto mois que oque-
les que nao participom sao os primeiros 0 criticor... Algumas
conversas paralelas nos informam que 0 festo nao rendeu
noda, deixando a sugestâo de que teria havido apropriaçao,
por parte dos organizadores, dos ganhos em dinheiro da fes-
ta... E esse discurso viciado promete ir longe, quando 0
coordenador do "grupo dos marginalizados", OHmpio, se le-
vanta para dizer que, se todos estiverem de acordo, este ana
ele se encarregara da coordenaçao geral da festa.
Pegos de surpresa, todos concordam. E Olfmpio conti-
nua seu discurso, lembrando algumas das tarefas habituais
da preparaçao - a arrecadaçao de prendos e de dinheiro na
cidade, a compra das bebidas e da carne para 0 churrasco,
etc. - e a conseqüente necessidade de poder contar corn a

181
ajuda de alguns companheiros, ou da comissao. Mas os ânimos
parecem ter-se esfriado e decide-se que ele mesmo, Olim-
pio, se encarregara de convocar uma reuniao para se decidir
sobre todos esses encominhamentos.
Ja bastante conscientes dos mecanismos de invalidaçao
que estavam na base da tao insistentemente Iembradafalta
de participaçiio e prevendo que eles poderiam se renovar no
processo de organizaçao e realizaçao da festa, ficamos positi-
vamente impressionados corn a apresentaçao e aprovaçao
de Olfmpio para a coordenaçao dos festejos. E, neste mes-
mo dia, passamos por sua casa para deixar a primeira doaçiio
em dinheiro, dentre as outras que ele deveria buscar. Nosso
objetivo, nesse momento, era reforçar, frente a ele mesmo e
frente aos outros, isso que entendlamos ser uma tentativa
de exercer sua Iiderança.
Cerca de pouco mais de uma semana depois, chegando
ao assentamento para nosso trabalho habituaI e procurando
saber dos preparativos da festa, fomos informados de que
seriam tratados em reuniao marcada para este mesmo dia.
No horario do almoço, coma convinha a uma reuniao so
para os interessados e corn pauta restrita. Encontramos Olim-
pio iniciando sua exposiçao preliminar, aproximadamente
na hora prevista, e registramos a presença de um pequeno
grupo de quatro ou cinco mulheres, dentre as quais se en-
contrava Bernadete. Enquanto procurava.mos um Iugar para
nos sentar - 0 evento acontecia numa das duas salas de
aula da escola - pudemos observar que os demais presen-
tes eram as lideranços de sempre, somadas a dois ou três
chefes de famllia que supusemos representarem a Iiderança
possIvel de Olimpio.
o coordenador começou expondo as iniciativas ja to-
madas e as doaçôes recebidas. Quando terminou, todos os
presentes opinaram sobre 0 que fazer nas etapas iniciais da
preparaçao da festa: 0 cartaz de divuIgaçao, a arrecadaçao
das prendas e das doaçoes em dinheiro... E, pouco a pouco, na
distribuiçao das tarefas, foram candidatando-se as lideranços:

182
Aparecido, 0 presidente; Matias, 0 representante do MS'r,
Pedrao, 0 deIegado da CEA; Raimundo, militante cat6lico, 0
motorista do caminhao e outros "amigos" de Alrnir, desta
vez ausente, mas muito hem representado. Curiosarnente,
desta feita, nenhum discurso aconteceu para dizer dos ou-
tros que nao participam. 0 que ja podia ser entendido coma
um resultado positivo da nova coordenaçao de Olimpio.
Mas haveria outros resultados positivos? Sua participaçao
seria suficiente para assegurar a participaçao de tantos habi-
tualmente excluidos? Soubemos ao final da reuniao que os
lucros dalesta seriam destinados à associaçao. 0 que isso po-
deria significar em termos da organizaçao e da realizaçao da
festa? Em todo caso, os encarregados começaram a se movi-
mentar para as referidas providências. E um vaivém diario à
cidade passou a fazer parte da rotina do assentamento.
Dia 29 de maio houve uma reuniao da comissao orga-
nizadora da festa, da quai nao participamos. Mas Raimundo,
companheiro de militância cat6lica de Olimpio nos contou,
indignado, que este fora gravemente ofendido por Apareci-
do, 0 presidente, por ocasiao da discussao das tarefas de reali-
zaçao da festa. Nao souhe contar-nos detalhes mais objetivos,
mas insistiu nas ofensas pessoais dirigidas ao coordenador,
que acabou deixando a reuniao. Sem nenhum constrangi-
mento, 0 mesmo grupo marcou uma segunda reuniao, para
a quai OHmpio nem sequer foi convocado. Raimundo pre-
tendia conversar corn 0 presidente, tentando convencê-Io a
se desculpar perante Olimpio... Souhemos, depois, que este
compareceu espontaneamente à reuniao e, ap6s um pedido
de justificativa para as ofensas que sofrera e uma troca vio-
lenta de desqualificaçOes redprocas, saiu para nao mais voltar,
dizendo que nao participaria mais da festa.
Receando ser invasivos, nao fomos a esta reuniao, que
se anunciava delicada para todos os participantes. E nao ti-
vernos condiçôes de nos informar sobre qualquer detalhe
mais significativo de um desencontro pessoal entre OHmpio
e Aparecido. Tudo nos levando a crer que, mais urna vez, as

183
lideronços retomavam 0 controle de tudo, livrando-se deste
voluntario decidido a participar, 0 coordenador do "grupo
dos marginalizados". Era a primeira vez que assistî'amos, na
pnltica, à exclusao de um trabalhador que, no discurso das
lideronços, fazia parte dos outros acusados de nao participa-
çao. Um flagrante delito de apropriaçao abusiva do poder
que enœndî'amos, cada vez mais, pertencer à 16gica da re-
produçao das referidas lideronços.
Diante desse quadro, distanciamo-nos um pouco mais
dos organizadores da festa e mantivemos nossa prâtica de
demandar informaçœs sobre seus preparativos junto às de-
mais pessoas. Fizemos uma visita à famllia de Olimpio, mas
mantivemos 0 clima habituaI de nosso trabalho. Perceben-
do que ele procurava ocultar sua mâgoa e preservar sua dig-
nidade, afirmando ter decidido nao mais participar da festa,
respeitamos seu silêncio e contentamo-nos em prestar-Ihe
solidariedade apenas corn nossa presença. Em todo caso, es-
ses aconœcimentos confirmavam também nossas hip6teses
iniciais de que a autonomia e coerência pessoal de Olimpio
incomodava as lideronços justamente nas suas prâticas de
abuso do poder. Nao era ele um dos mais fervorosos defen-
sores da organizaçao comunitaria? E, nesœ sentido, um por-
ta-voz também do "discurso oficial"?
Visitando as familias, nao era fâcil obter informaçOes
sobre a organizaçao da festa. Corn a maioria das mulheres,
por exemplo, nao percebî'amos nenhum envolvimento mais
direto corn as etapas preparat6rias. Todas aguardavam 0
evento, umas mais, outras menos animadas, mas tudo se
apresen tava como se os preparativos nao passassem por
elas. Sabî'amos, entretanto, através de Bernadeœ, das mui-
tas tarefas a serem cumpridas pelas mulheres: as quadrilhas
- de crianças, jovens e adultos - e a confecçao dos pratos
domésticos - bolos, doces, salgadinhos e assados, que se-
riam vendidos no momento dos festejos. E, observando as
mercadorias - recebidas coma doaçao ou compradas -
que se acumulavam no canto da sala da casa da militan-

184
te - açucar, farinha, 6leo, etc. -, ao mesmo tempo em que
a ouvfamos falar dos muitos frangos, batatas-doces e ab6bo-
ras ja doodos pelos componheiros, perguntâvamo-nos coma as
mulheres se organizariam para preparar isso tudo.
Vistas do exterior, essas tarefas nao apresentavam
maior complexidade. Mulheres de experiência nao fal-
tavam na agrovila. Elas haviam mostrado, nos tempos do
acampamento, suas multiplas aptidôes para gerir em co-
mum longos meses de vida precaria, para 0 bem da coletivi-
dade. E a preparaçao ponmal de alguns pratos para a festa
seria uma coisa que lhes proporcionaria grande prazer.
Quanto às quadrilhas, parecia ser suficiente um apelo para
que todos, crianças, jovens e adultos, comparecessem...
Chegamos a considerar a hip6tese de que uma organi-
zaçao ja existisse por tras desse aparente desinteresse das
mulheres. Que, no momento oportuno, tudo se engrenaria
coma parte de uma rotina ja constitufda. E todas estariam,
de um lado, desempenhando suas habilidades domésticas
na confecçao dos referidos pratos e, de outra, ao lado de
seus maridos, executando os diferentes passos da quadrilha.
Afinal a experiência da festa junina pertencia à trajet6ria de
cada uma dessas mulheres, e as tarefas a serem empreendi-
das nao eram coisa muito diferente das ja desempenhadas
na pequena historia que tinham vivido em comum.
À medida, entretanto, que os dias passavam e que se
aproximava a data dos festejos, fomos forçados a constatar
que tudo era muito mais complexo. Havia, sim, uma pratica
constitufda no tocante à participaçao das mulheres na festa.
Mas tratava-se da mesma pratica da concentraçao do poder
nas maos de uma minoria, pela exclusao da maioria, à quaI,
supostamente, os eventos se destinavam. Bernadete reunia
em toma de si um pequeno grupo de mulheres, sempre os
mesmos, que começavam a se referir às tarefas pragramadas,
para se valorizar aos seus proprios olhos - ou aos nossos -
e denegrir a imagem do resta das mulheres, que nao sabiam
senao se oproveitor do que elas sempre faziam. E, quanto às

185
quadrilhas, nao houve problema para reunir as crianças, que
ja começavam a comparecer aos ensaios. Mas tudo se com-
plicando para a quadrilha dos jovens e, sobretudo, dos adul-
tos. Aquela, possivel graças a um pequeno grupo cujos pais
tinham boa vontade - os amigos de Bernadete. Mas, a dos
adultos, impossivel, porque eles niio costumam mesmo parlici-
par. É sempre assim.
Era-nos facil, a estas alturas, compreender 0 que se
passava a prop6sito das quadrilhas. De um lado, as ja men-
cionadas relaçOes de invalidaçao circular. Construidas sobre
os valores da moral social dominante, através dos quais cada
um tendia a julgar os outros e a transforma-los em juizes de
si mesmo. Ja conheciamos suficientemente as relaçoes des-
sas familias umas corn as outras e no seio delas mesmas,
para entender a dificuldade que teriam em se dispor ao con-
tato epidérmico que significava participar de uma quadri-
lha. As filhas? Mas nao havia uma jovem de dezesseis anos
que vinha de dar à luz uma criança sem pai reconhecido? E
as tan tas outras? Nao havia pais que nao sabiam educor os
ftlhosP Pais omissos ou, até, incapazes? E os pais, eles mes-
mas? Havia mulheres que... homens que... Havia hist6rias de
casais e casais que nao queriam se mÎsturar... As familias que
se consideravam corretas corn relaçao às outras, nao corre-
tas... E, enfim, nao nos era diffcil supor, até, a existência de
taotos outras aparentemente pequenos medos - de nao sa-
ber dançar, de nao estar corretamente vestido, de se apresen-
tar corn a mulher feia ou corn a marido alc06latra, ete - ini-
bindo a vontade de participaçao desses casais nas quadrilhas.
Em outras palavras, à medida que nossas investigaçoes
avançavam, éramos levados a retomar a conhecida proposi-
çao sobre a peso relativamente maior da moral social domi-
nante sobre os dominados, presente em nossas hip6teses
iniciais. Surpreendiam-nos, sempre, a extrema fragilidade
dessas mulheres, homens e crianças do assentamento. A
quai entendiamos, para nosso pr6prio usa, camo uma baixa
auto-estima decorrente de uma espécie de ressentimento

186
original. Ligado, provavelmente, ao fato de terem incorpo-
rado, para si proprios, os valores através dos quais eles foram
historicamente discriminados. Isto é, os mesmos valores
que deram sustentaçao às perversas relaçOes de dominaçao
que se encontram inscritas em suas trajetorias individuais e
social. Tendo-os como referência de seus proprios padroes
de comportamento e vivendo em condiçOes objetivamente
inadequadas à reproduçao dos mesmos - falta de dinheiro,
de escola, de assistência médica, ete. - essas pessoas muito
dificilmente podiam corresponder ao que e1as mesmas en-
tendiam como sendo 0 correto ou 0 bom. Dai' sua extrema
vulnerabilidade e, acreditamos, suas praticas sociais que
convencionamos chamar de mecanismos de invalidaçao cir-
cular. E, certos ou errados em nossas analises, sentfamos
c1aramente que a participaçao desses casais na quadrilha
passava, na sua essência, pelo medo do julgamento dos ou-
tros. Medo que poderia se reduzir na hipotese de um me-
diador que, sendo reconhecido por todos, lhes assegurasse
reconhecimento. De um mediador portador, na nossa lin-
guagem, de novas regras de comportamento.
Ora, a presença dos militantes - ou das lideronços -
como mediadores da realizaçao da festa nao ia por esse ca-
minho. Muito pelo contrario. Conheciamos também sufi-
cientemente as relaçOes entre militantes e nao militantes na
situaçao de assentamento, para saber que elas se vinham
constituindo pela reproduçao dos mecanismos de invalida-
çao da moral social dominante, recriados ou mascarados
pela "moral militante"... Mecanismos de invalidaçao através
dos quais os militantes se apropriavam do poder, discrimi-
nando e excluindo a maioria para a quaI supunham ser des-
tinados os seus muitos esforços para corn 0 quesliio do orgoni-
zoflio. Nao fora a isso que assistimos por ocasiao da
assembléia em que se aprovou, à contramao, a coordenaçao
de Olimpio para a festa? E nao fora também isso que pare-
cera acontecer por ocasiao da sua exclusao das mesmas fun-
çOes de coordenaçao? E nao era isso que esclvamos vendo

187
acontecer através do pequeno grupo de mulheres que se
reunia em torno de Bernadete para a preparaçao da festa? E a
prâpria Bernadete? De onde vinha a sua indicaçao para a coor-
denaçao da participaçao das mulheres, jovens e crianças na
festa? Pois bem, diante desse quadro, entendemos que a difi-
culdade em reunir os casais para a quadrilha estava claramente
relacionada à prâtica militante no assentamento. E decidimos
entrar no jogo, inscrevendo-nos para dançar na quadrilha e
oferecendo-nos para convidar, pessoalmente, os casais.
Pretendîamos, corn essa decisao, atingir dois objetivos:
primeiro, testar os efeitos de nossa prâpria prâtica junto aos
trabalhadores e suas famîlias, tendo em vista 0 desenvolvi-
mento de novas e mais democrâticas relaçOes entre eles. E,
em segundo lugar, dar aos militantes uma demonstraçao
dessa possibilidade.
Neste caso, devîamos tomar 0 cuidado de nao eliminar
ou excluir Bernadete de sua posiçao de poder. Porque en-
tendîamos que essas prâticas de dominaçao desenvolvidas
pelos militantes eram, elas mesmas, resultantes das relaçOes
de dominaçao que eles haviam aprendido em suas prâprias
trajetârias de vida. E, neste sentido, pretendiamos ser peda-
g6gicos. Querîamos que aprendessem, pela nossa mediaçao,
a existir, sim, enquanto /ideranças, mas dentro de uma nova
unidade. De tal sorte que essa liderança resultasse da legiti-
maçao do coletivo e nao do exercîcio arbitrârio do poder,
coma vinha acontecendo. 0 que pressupunha a existência
de relaçoes democrâticas entre todos os trabalhadores e suas
famîlias. RelaçOes regidas por regras - ou leis - vâlidas
para todos e asseguradoras da autonomia da livre expressao
de cada um. E era para a garantia dessas novas regras que
nos candidatâvamos a mediadores da quadrilha dos adultos.
Coerentes corn esse nosso objetivo, oferecemos a Ber-
nadete nossa ajuda. Ela continuaria coordenando os ensaios
e marcando a quadrilha. Se tudo desse certo, ela teria condi-
çoes de ultrapassar suas prâticas autoritârias: procurando

188
transformar-se em liderança democnitica, ou cedendo seu
espaço a outras que surgissem.
Todas essas reflexOes feitas, restava-nos ainda uma in-
certeza. Nao tinhamos daras nossas reais possibilidades de
poder nos apresentar junto às familias coma garantidores
dessas novas regras de convivência que supunhamos estar
propondo. É certo que vinhamos nos empenhando em
construir nossa posiçao no assentamento neste sentido. Re-
conhecendo cada um na sua singularidade e interrogando,
sem cessar, as praticas de invalidaçao ou de julgamento re-
dproco. Mas nossa presença em campo era muito recente e
ainda nao tinhamos aprofundado nossa pratica de dialogo
crltico corn todas as familias. Em qualquer caso, preparamos
nossas visitas estimulados pela aceitaçao que vinhamos en-
conteando junto à maior parte delas. E nos programamos
para transformar a participaçao na quadrilha em tema de
nosso processo de investigaçao e questionamento. Discutin-
do corn cada um seus proprios argumentos, de modo a leva-
los a pensar nessa festa coma um evento de todos que per-
tenciam à coletividade.
Sabiamos que todas unidades familiais nao eram sus-
cedveis de participar da quadrilha dos adultos. Havia os ca-
sais protestantes, que se interditavam quaisquer festejos
fora de seus drculos restritos. Havia os casais de velhos, nao
raras vezes doentes. Havia os celibatârios, viuvos e separa-
dos, homens ou mulheres. E havia dois trabalhadores quase
sempre ausentes, porque suas familias moravam na cidade.
Isso totalizando cerca de dezoito familias. Mas decidimos
visitar cada uma das teinta e nove familias existentes na
agrovila. Porque nosso objetivo, para além da quadrilha, era
recriar a idéia da festa enquanto espaço de encontro deles
corn eles mesmos.
A reaçao de todos ao nosso convite para a quadrilha
nos surpreendeu. Nada parecido corn a argumentaçao em
contrario que esperavamos. 9s que tinham os impedimen-
tos acima mencionados, os expunham, agradecendo 0 con-

189
vite. Nesses casos, corn exceçao dos protestantes e dos que
tinham as familias na cidade, todos se animaram corn a idéia
de uma quadrilha de adultos e conversaram sobre a festa.
Alguns dos que nao tinham parceiros consideraram a hipo-
tese de consegui-los... Dentre os demais, um pequeno gru-
po se justificou - nao gostavam de dançar, mas animando-
se também. Perguntando detalhes e aprovando a idéia.
Iriam assistir à quadrilha, de qualquer maneira. E cerca de
quinze casais aceitaram 0 convite. Sem grande resistência.
Ou apenas alegando os mencionados pequenos medos -
ntJo sei donçor, ntJo tenno roupo, etc. Que eram tratados como
coisa secundaria, ja que, insistiamos corn bom humor, nos
também nao sabiamos dançar, quase ninguém sabia, nin-
guém ia lâ pra dar um show, a roupa podia ser adequada
corn algum pequeno adereço, um lenço ou uma fita no ca-
belo, um batom nos labios, um rouge forte nas faces... e,
enfim, nossos esperados dialogos criticos se transformando
em alegria pela possibilidade de cada um participar da qua-
drilha ou da festa como um todo. Em alguns poucos casos
houve resistência maior do marido ou da mulher. A quaI
quase sempre conseguiamos contornar. Onde um queria ir,
o outro acabava concordando...
Paramos, evidentemente, para refletir sobre essa rea-
çao inesperadamente entusiasmada pela quadrilha dos
adultos - diziamos "dos velhos" ou "dos pais". Pareceu-
nos certo que a maioria era receptiva à idéia da festa. À quaI
compareceriam mesmo sem a nossa mediaçao. Mas 0 que
era novo era a animaçao, a disponibilidade para a quadrilha.
A partir dessa visita nao encontravamos mais ninguém que
nao nos falasse dela. As mulheres, pedindo-nos sugestao so-
bre as roupas de toda a familia, e os homens referindo-se,
pelo menos de passagem, ao nosso encontro por ocasiao do
ensaio - apenas um e às vésperas da festa, por sugesœo nos-
sa. Esse quadro nos parecia assegurado pela nossa mediaçao.
Quase todos da diretoria ou das lideronços aceitaram
participar da quadrilha. 0 presidente, que se substituira a

190
Olimpio na coordenaçao do evento, um dos primeiros. Al-
mir hesitou corn a quesœo da parceria. Deveria encontrar
uma, acenou-nos corn varias possibilidades pelo caminho e
acabou nao dançando. Matias resistiu bastante. Militante
convicto, surpreendeu-se corn a propria idéia de dançar. Sa-
blamos que sua dificuldade passava também pela fato de
aparecer ao lado de Maria de Fatima, que se animou desde
o prindpio. Mas, mesmo nos questionando 0 tempo todo,
porque também lamos dançar, acabou dançando...
Sentlamos que a adesao de cada um nao passava da
mesma maneira pela nossa mediaçao. Alguns, os das fami-
lias que se consideravam "de bem" ou corretas, como seu
Gregorio, por exemplo, animavam-se pela possibilidade de
se distinguirem ainda mais, dançando ao nosso lado. Outros,
entre os quais se destacavam os casais dos grupos dos indivi-
duo;s e dos morgino/izotios, também iam dançar porque nos
mesmos dançarlamos. Mas isso parecia simplesmente ga-
rantir-lhes 0 direito à participaçao. Os das /ideronços, em al-
guns casos, pareciam querer se assegurar, eles mesmos, de
seu controle habituaI... Nao deviam cedê-lo a nos, em todo
caso. A pronta adesao de Aparecido, por exemplo, pareceu-
nos mais um meio de firmar seu papel de coordenador... E,
refletindo sobre essas diferenças, ponderamos que 0 fun da-
mental era que todos dançariam corn todos e em igualdade
de condiçoes.
Nosso envolvimento corn a quadrilha abre-nos mais
espaço, junto aos organizadores, para 0 acompanhamento
dos preparativos. Que, mesmo corn a nossa presença - de
meros observadores - , se realizam em continuidade corn as
pniticas de abuso de poder e de exclusao que marcaram 0
inicio do processo: as diferentes tarefas sao monopolizadas
pela pequeno nucleo dominante e desenvolvem-se, em
conseqüência, na improvisaçao e na imperfeiçao. Trata-se
de construir as barracas para 0 churrasco, as bebidas, os pas-
téis, a venda de doces? A construçao vai se arrastar durante
muitos dias, corn as mesmas três ou quatro pessoas, dentre

191
as quais 0 ator principal é 0 vice-presidente que foz fudo. A
ausência de divisao de tarefas e a impossibilidade da troca
de saberes induzem à livre iniciativa por parte daque1es que
exercem seu poder pessoal e discriciomlrio. Trata-se de re-
colher os donativos junto aos comerciantes? AI, igualmente,
sao duas pessoas do pequeno nucleo que 0 fazem. Nada é
claro nessa coleta nao submetida a nenhum controle. A du-
vida se instala, sem prova sobre a quantidade e a destina-
çao desses produtos. Trata-se de comprar a carne para 0
churrasco dos dois dias de festa? Sao 0 presidente, 0 vice-
presidente e um dos membros de seu grupo que se encarre-
gam de compra-la.
Convidados a conduzir 0 trio em nosso carro, acompa-
nhamos a proeza. Eles decidem, de inicio, comprar uma
vaca ou um boi ainda vivo. Um vizinho trabalha para e1es,
nesse dia, corn sua maquina de cortar e bater 0 milho. Ele
cria alguns animais na fazenda de um amigo. Ele trabalha.
Os três interrompem seu trabalho, que é pago em horas por
um dos assentados, para Ihe propor ir ver os animais que
estiio a uns trinta quilômetros de la. 0 momento nao Ihe
parece bom, porque e1e esta cortando uma roça de milho. A
discussao começa ao lado da maquina, sobre 0 que seria
bom comprar: 0 animal vivo ou a carne ja preparada no
açougueiro. 0 vizinho Ihes explica que levariam vantagem
comprando tudo preparado no açougueiro, porque nao per-
deriam tempo procurando 0 animal... Além de que, nesse
caso, estariam pagando a carne e os ossos... Nao se trata de
seu interesse, mas e1e é convincente. Os três acabam, entre-
tanto, por convencê-lo a acompanhâ-los. Ele interrompe
seu trabalho, cujo preço deve continuar a correr por conta
de quem 0 contratou. Nos vamos a trinta quilômetros de la.
Os animais estiio em liberdade numa fazenda, misturados a
muitos outros. Toma-se 0 tempo de aparta-los, de examina-
los. Mas 0 que olham exatamente nossos três parceiros?
Que experiência e1es têm de animais de corte? Isso leva
duas horas. Para concluir que nao yale a pena e que é me-

192
Ihor comprar tudo preparado no açougueiro... Alguns dias
mais tarde é 0 vice-presidente que vai escolher 0 açouguei-
ro e negociar 0 preço da carne, que sera considerado muito
alto em seguida. E, ap6s a negociaçao, ete voltara corn um
grande pacote de carne, presente pessoal do açougueiro...
Corn a cerveja 0 processo sera parecido... E, enfim, as
coisas acontecem segundo a boo von/ode de alguns e, princi-
palmente, do responsavet, no final das contas, por todas as
operaçOes - Almir, 0 lIder da associaçao.
Na antevéspera do primeiro dia da festa, quando as
crianças estao ensaiando a quadrilha, ha uma aglomeraçao
importante de pessoas petos lugares onde a festa se prepara.
o pequeno nucleo que fez a quase totalidade das tarefas
chama para uma assembléia completamente improvisada,
no meio da agitaçao, para informar 0 que ja foi feito e 0 que
resta a decidir. Assiste-se enœo, na animaçao barulhenta da
repetiçao incessante dos passos da quadrilha, a uma curiosa
sessao de autojustificaçao. É 0 vice-presidente que toma a
palavra. Espera-se que ete apresente informaçOes e argu-
mentos para solicitar a opiniao e a decisao da assembléia.
Seu discurso, no entanto, é de justificaçao, por argumentos
completamente estranhos ao objeto em questao.
Ele começa por dizer que desde as cinco horas da ma-
nha trabalha fora, para a associaçao, que esta cansado e que
amanhii vai trabalhar para si mesmo, na roça. Deixa enten-
der claramente que fez tudo até aqui e que ogoro ocobou.
Esta consodo de four /udo no lugor dos ou/ros. 0 tema evoca-
do primeiramente, a compra da carne, é envolvido numa
espécie de nebulosidade, que desloca a atençao para 0 seu
proprio mérito e a culpa dos outros, os que niio fozem nodo.
Depois, ete continua, dizendo que aman ha vai à cidade,
onde 0 sindicato deve emprestar-Ihe 0 carro de som corn
um operador. Diz que etes esœo em greve, os metalurgicos,
e que talvez 0 operador nao possa vir, mas que, neste caso,
ete se ocupara pessoalmente, que assumira a responsabili-
dade de comprar um apare1ho de som. E insiste mais de

193
uma vez: eu assumo, e se vocês queIJrarem eu serei 0 responstivel.
Na realidade, 0 carro de som nao vira e ele comprara um
aparelho de som, dizendo que se a associaçao nao 0 quiser,
ele 0 pagara de seu proprio bolso... E 0 aparelho sera pago
pela associaçao corn parte dos beneficios da festa.
Continuando, ele anuncia: nos pensamos em convidar um
conjunto famoso para 0 domingo il noite, Os Fi/hos de Minas
Gerais. Isso va; trozer muito gente e voi dor muito lucro pro
festo... Eles estiio cobrando pouco, perlo do que estiio ocostumodos
o cobrar: 250 em lugor de 500 ou 1.000... Isso porque eles siio
omigos de um om;go meu... E, depois, se nos niio pudermos co-
brir 0 despeso, eu pago... eu pogo com 0 meu bolso... A estas
alturas uma voz procura se fazer ouvir no tumulto, para se
posicionar contra esse tipo de espetaculo no domingo à noi-
te, segundo e ultimo dia da festa: Todo mundo jô terô ;do
embora... todos os que vierom de foro... so voi ter os pessoas do-
qui e nos jô niio vomos ter mois dinheiro poro gostar... Isso vo;
comer todo 0 lucro do festo... Sua voz é abafada pela tumulto,
e 0 voto favonlvel é dado sem discussao alguma. Os fatos
mostrarao mais tarde que este que se opunha à contrataçao do
conjunto tinha razao. Que, corn efeito, isso nao trouxe muitas
vantagens e consumiu uma boa parte do beneficio, sem que 0
vice-presidente pagasse qualquer coisa de seu bolso.
Esta reuniao improvisada termina corn um apelo feito
a todos pela presidente no sentido de ojudor, omanhii, a ter-
minar as coisas para a festa. Ao quaI Bernadete, a responsa-
vel do lado das mulheres, acrescenta: E as mulheres!... Nos
precisomos do porticipoçiio de todos omonhii! No dia seguinte
havera quatro homens presentes e quatro mulheres. E 0
presidente nos dira: Volis' vêem, volis' estovom /ô ontem il noÏfe,
quondo eu pedi 0 todo mundo paro vir. Vocês escutorom... Vejom,
ogoro, quontos vierom!
Nossa curiosidade é grande quando, a 26 de junho,
chega 0 dia do inlcio da festa. Considerando as coisas do
exterior, nos ja sabemos bastante. A festa vai ter lugar num
dos barracOes da associaçao e vai reunir, além da grande

194
maioria das familias, muitos dos seus parentes da cidade
que foram convidados. Havera igualmente convidados das
CEBs, que ajudaram vigorosamente por ocasiao do acampa-
mento e dos primeiros tempos de instalaçao sobre as terras.
Uma missa sera celebrada no final da tarde, pelo padre que
serviu de intermediario entre as familias e a populaçao cato-
lica local, no momento da chegada dessas famflias e que
continua a assistir a coletividade.
A festa começara a partir das oito horas. E, enquanto
objeto social situado no espaço, anuncia-se coma uma im-
portante reuniao de pessoas. Mas nossa curiosidade é mais
exigente e vai além da contemplaçao desse ajuntamento. 0
que nos interessa é a qualidade da unidade - do "nos" -
que se vai realizar nesta festa. Isto é, a festa do ponto de
vista da experiência (Laing, RD., 1969) de seus proprios
participantes, da relaçao das pessoas entre si. E também da
relaçao de cada uma delas conosco. 0 que ela vai oferecer
de novo, do ponto de vista do comportamento de cada um
em relaçao aos outros, coma manifestaçao da experiência
que cada pessoa fez, por ela mesma, do encontro vivido co-
nosco, no curso de nossos dialogos crfticos? Vamos assistir a
uma aproximaçao superficial e conservadora dos antagonis-
mos internos à associaçao, à familia e às famflias, ou vai sur-
gir um grupo (Sartre, J. P., 1972) construfdo sobre 0 encon-
tro entre pessoas autônomas? Nesta ultima hipotese, coma
deveremos olhar para a relaçao entre a existência de um tal
grupo e nos mesmos?
Nos chegamos na hora prevista para a missa e estamos
diante do altar rudimentar preparado num dos lados do bar-
racao. 0 padre esta al. Estamos impressionados corn a insig-
nificância da assistência: uma dezena de homens e mulhe-
res e algumas crianças. Reconhecemos OHmpio e sua
mulher, cercados de sua sorridente criançada. É 0 lfder do
"grupo dos marginalizados" e 0 homem do rigor comunitâ-
rio que foi afastado, pelo nucleo militante, da organizaçao
da festa. Ele esta af, mas nao participara dos acontecimen-

195
tos que se sucederao. Esta também seu companheiro de
militância catolica, Raimundo, corn sua pequena familia. 0
presidente da associaçao e sua mulher. Seu pai, 0 velho seu
Gregorio, e dona Maria. E 0 vice-presidente, Almir, que nao
deixa de se ocupar ostensivamente dos ultimos preparati-
vos, em toma do altar. Por duas vezes ele vern falar no ouvi-
do do padre, antes do inîcio do oficio. 0 militante do MST
- Matias - chega por ultimo corn sua mulher - Maria de
Fatima - e seus filhos. E é so. Muito pouca gente. Do
exterior, nas comunidades de base, esta pequena coletivida-
de de sem-terras nao aparece coma uma experiência mili-
tante? 0 menos que se pode pensar é que as familias catoli-
cas da associaçao nao formam uma unidade na comunidade
proposta pelos militantes.
o sermao pronunciado pelo padre acrescenta elemen-
tos de compreensao àqueles de que nos ja dispomos. Apos
ter-se felicitado Pelos progressos ocorridos no assentamento
- a chegada da luz e as casas em construçao, ele vai rapida-
mente para as constataçôes desagradaveis: alguns se encar-
regam de todas as tarefas, enquanto que a maioria nao faz
nada, apenas se aproveita do que é feito. Muitos se acomo-
dam, agora que ja estao na terra, e esquecem os irmaos que
estao acampados... Ele retoma, corn toda sua autoridade, 0
discurso que ouvimos, desde nossa chegada, da parte da mi-
noria dirigente, e nos compreendemos 0 que 0 vice-presi-
dente lhe despejou ao pé do ouvido alguns minutos antes.
Os cantos que acompanham 0 oficio religioso foram
cuidadosamente escolhidos. Ha, é certo, aqueles que exal-
tam a luta pela terra. Mas ha também um canto que exalta
particularmente a moral familial, simbolizada pela esposa e
pela mae crista. Este canto ressoa em nos de maneira ambi-
gua, porque de manha haviamos entrevistado 0 padre, no
seu escritorio na cidade, e ouvimos dele um discurso extre-
mamente critico em relaçao a ceftos mulheres da ossociaçiio,
corn 0 quaI nos sugeria a existência, na agrovila, de um an-
tro de prostitutas. E ele nao era menos sugestivo corn certos

196
homens caracterizados como alc06latras ao lado das mulhe-
res prostituidas. Nos sabiamos que essa estigmatizaçao e
condenaçao eram 0 pao quotidiano das pessoas "de hem"
da cidade, ao falarem do assentamento. Elas enviavam a
uma realidade estrangeira àquela que nos conhedamos, e
eis que isso era agora retomado de maneira mais insidiosa,
através do canto religioso, exaltando a boa mae e a boa es-
posa. Nos nos pusemos a pensar que essa Igreja militante,
que ajudava corn tanta força as familias no momento da luta
pela terra, trazia nela a morte da comunidade que pretendia
criar, uma vez a terra conquistada. 0 padre simbolizava es-
tas morais militante e catolica, de todas as invalidaçœs. Pa-
recia-nos, de outro lado, pouco preocupado corn a qualidade
de seus adeptos, os mais ostensivamente devotados, como
se a aparência do poder que eles tinham sobre a coletivida-
de lhe bastasse. Nao nos dissera que tinha a intençao de
candidatar-se a deputado? 0 poder que ele contribuia para
caucionar no assentamento parecia ser, aos seus olhos,
aquele que lhe garantiria mais votos.
Quando nos entramos, à noite, no barracao decorado
por guirlandas de pape1 recortado em bandeirolas amare1as,
verme1has, azuis e brancas, 0 lugar ja estava repleto de pes-
soas. À esquerda, entrando, ha 0 bar, os braseiros para 0
churrasco e os balcôes para os doces e os frangos. 0 vasto
espaço reservado para 0 desenrolar das quadrilhas vern em
seguida. Ao fundo, ha 0 tablado onde estiio instalados dois
violonistas e, ao lado dele, 0 aparelho de som cornprado
pe10 vice-presidente. Ao longo do espaço de dança, à direi-
ta, as mesas e cadeiras e, do outro lado, à esquerda, 0 unico
limite das paredes do barracao. Todo esse ordenamento ma-
terial é animado de presenças que nos conhecemos hem.
Destaca-se de inlcio, no primeiro pIano, proximo ao
bar, um pequeno grupo dominado pela alta estatura e a for-
te corpulência do padre. Reconhecemos nosso de1egado de
re1açôes exteriores. Ele tem a seu lado três pessoas que,
logo saberemos, SaD das comunidades de base urbanas. Ha

197
igualmente 0 velho seu Gregorio e, nas imediaçœs, nosso
vice-presidente, ostensivamente ocupado, sob os olhos do
padre, no carregamento das caixas de cerveja. 0 padre é
cortejado pelos que vêm legitimar sua autoridade e que, ao
mesmo tempo, vêm legitimar-se junto aos outros. Ele aper-
ta as maos de todos que passam por perto. Entrando na sala,
nos fazemos parte destes. Ele nos envolve corn um tom de
conivência paternal em relaçao a essas pessoas que nos cer-
cam: "Eu faço questao de corner na casa deles... eles ficam
contentes... Eu gosto muito dessa peaozada..." N6s nos so-
bressaltamos porque se trata nada menos do que de uma
palavra - peaozada - muito depreciativa, mesmo se pro-
ferida num tom afetuoso... Mastamo-nos rapidamente, re-
cusando uma proximidade que se assemelha forte mente a
uma coalizao de "senhores" ou "patrOes".
Observamos, deslocando-nos, que todos os postos de
responsabilidade estao nas maos do nucleo dirigente mili-
tante e de seus dependentes; enquanto que, corn efeito, as
demais familias estao aproveitando-se da festa, simplemen-
te, coma os primeiros nao deixarao, de oportunamente, lhes
reprovar. No espaço das danças vemos, no momento, 0 fun-
do multicolorido das formas volteadas da quadrilha dos jo-
Yens. Familias ou homens s6s estao sentados às mesas de
ferro vermelho. N6s somos solicitados, a cada mesa, para
partilhar um copo de cerveja e trocar aIgu mas palavras. Do
outro lado da pista, três mulheres estao de pé, apoiadas na
parede do barradio, cercadas pela vaivém animado das
crianças. Elas têm, cada uma, um bebê nos braços e olham
tranqüilamente os movimentos da quadrilha, sem preocu-
paçao aparente corn 0 olhar dos outros. Uma delas é mae
solteira e outra carrega 0 filho de uma relaçao ilegitima corn
o chefe de uma outra famûia, também ali presente.
o ambiente muda de repente. A quadrilha dos jovens
vern de terminar, e Bernadete, a mestre-de-cerimônia, cha-
ma pela quadrilha dos adultos. A pequena corte do padre se
despede, e ele resta isolado perto do bar, a conversar corn 0

198
vice-presidente, que nao se juntou à pista de dança. Casais
se levantam das mesas. Forma-se entlio a quadrilha, esta
quadrilha que nao estava programada para aconteeer...
Pede-se ao casaI de pesquisadores para se colocar à
frente. Depois é 0 militante do MST e sua mulher, 0 mili-
tante cat6lico do "grupo dos militantes" e sua mulher...
Dois casais cujos maridos SaD sempre distinguidos coma in-
dividuois. A seguir, os pais do presidente, 0 casaI mais velho e
mais inclinado a se considerar acima de todo mundo no quoti-
diano da agrovila. Hâ ainda 0 alc06latra, cuja filha solteira vern
de ter um hebê e cuja mulher andou a se matar no alcool... E,
finalmente, homens e mulheres mais jovens, casados ou nao,
filhos e filhas de casais da associaçao ou convidados.
Assim, portanto, al estlio reunidos os jUlzes e os réus.
Os militantes e os individuois. Os maridos e as mulheres.
Maridos dentre os quais estlio os que argumentam seu en-
gajamento militante e a suposta passividade polftica de suas
mulheres para se construlrem uma posiçao de supe-
rioridade, de modo a dissimular melhor seu machismo, sem
contar seu racismo ou outras formas de preconceito. Os ca-
sais "de hem" e os casais "nao hem". Os primeiros, casais
que conseguem manter, no dia-a-dia, as aparências de nor-
malidade, que orquestram os rumores - ou as fofocas,
transformando-os em invalidaçao dos outros, até 0 dia de
serem, eles mesmos, invalidados. E os segundos, que nao
dispœm de meios para manter essas aparências, que se iso-
lam, aguardando, muitas vezes, 0 momento de se firmarem
através do mesmo mecanismo.
Todo mundo esta fantasiado segundo 0 costume. A
fantasia é entendida coma uma caricatura do homem rural.
Consiste em introduzir 0 inesperado, a discordância, a de-
sordem na ordem habituaI de se vestir. Justapœm-se de
maneira inesperada as peças da vestimenta, casam-se cores
berrantes, multiplicam-se os remendos. Enrolam-se as abas
dos chapéus, para dar às silhuetas 0 aspecto mais esculham-
bado posslvel. As mulheres colorem suas faces corn "rou-

199
ges" os mais vivos e ornam seus cabelos corn fitas ou peda-
ços de tecidos os mais variados. Esses trajes, burlescos e
plenos de artiffcios, confundem uns e outros numa unidade
cintilante e alegre.
A quadrilha se coloca em movimento, sob as ordens da
animadora, e começa a desenvolver suas figuras estabeleci-
das pela tradiçao. É, de inicio, 0 ordenamento dos casais
sobre a pista, uns atras dos outros. Depois 0 primeiro casai
inicia um caramanchao sob 0 quai cada um dos casais vai
passar e, por sua vez, formar um novo caramanchao. Os ca-
sais se separam e os parceiros se colocam face a face. Entio
homens e mulheres se alternam, para formar novos pares,
que se rompem em roda dos homens e roda das mulheres.
E, enfim, os casais originais se formam novamente... 0 inte-
ressante sao as aproximaçOes variadas que se produzem no
curso dessas figuras sucessivas. Diferentes situaçOes onde
jUlzes e réus, "bons" e "maus" multiplicam os contatos su-
postamente imposslveis alguns dias antes. E, depois, esta
alegria que se nutre, sem preconceitos, do irrisorio, da falta
de jeito do outro e do movimento geral de todos.
Quando a quadrilha termina e os casais se dispersam, a
alegria esta estampada em todos os rostos, e nao é no da
animadora que a satisfaçao é menor: ela esta enrubescida
corn esta realizaçao que julgava imposslvel e se aproxima de
nos para dizê-Io, as idéias confusas sobre 0 que acaba de se
passar sob seu comando. Assim, 0 encontro é pOSSIVel entre
os militantes e os individuois, os "puros" e os homens "co-
muns". Entre os dependentes dos militantes, companheiros
ou sujeitados e os outros, entre 0 homem militante e sua
mulher "burguesa", 0 branco e a negra. Entre a mulher
"feia" e as outras mulheres e os outros homens. Entre os
casais "superiores" e os casais e pessoas "inferiores". Entre
os pais das maes solteiras e os outros... As pessoas podem
encontrar-se sem a preocupaçao da presença dos outros em
si, enquanto jUlzes, e sem a preocupaçao de julgar os outros.

200
A fusao retrocede, cada um toma seu lugar a uma
mesa. Que se passa agora na cabeça de uns e outros? Tudo é
complicado. Viveu-se um encantamento? Ha do que pensar
que na cabeça dos dominadores, dos juizes, as idéias de do-
minaçio retomam seu lugar. Enquanto que entre os domi-
nados efervesce a estranha revelaçio de uma liberdade pos-
sivel na igualdade vivida nos instantes que vêm de se
passar. Pode haver mudança dos dominadores sem tomada
de consciência violenta por parte dos dominados? Sem sub-
missao dos dominadores a uma lei comum, aquela do direi-
to de cada um na liberdade de existir na sua diferença? As
mudanças nao fazem senao começar para alcançar 0 grupo.
A famllia-grupo, as famllias-grupo, a associaçio grupo (Sar-
tre, J. P., 1972), que sejam outra coisa que unidades iner-
ciais, onde ninguém existe por si mesmo, mas s6 em funçio
dos "outros".
Aiguns dias ap6s a festa, quando mostraremos as fotos
que tiramos, em diferentes momentos de seu desenvolvi-
mento, n6s nao ficaremos surpresos corn a reaçio negativa
do presidente da associaçio, descobrindo que a primeira
foto é de uma menina negra, além de filha do Hder do "gru-
po dos marginalizados" eliminado no momento dos prepa-
rativos da festa. Ela esta s6, sorridente, sentada em uma das
mesas do saHio de festas ainda vazio do grande barradio.
Seu desconforto nao nos passara desapercebido e se repetira
diante das fotos das maes solteiras ou ilegitimas e de outras
pessoas habitualmente invalidadas. Outras, que se unirao a
ele para ver as fotos, terao reaçOes semelhantes. A tal ponto
que, diante da evidente pressa do presidente em passar
pela primeira foto, na segunda vez que recomeçava a série,
em razao da chegada de novos interessados, nao resistimos à
tentaçio de dizer-Ihe 0 quanto achavamos bonita essa meni-
na. 0 que Ihes permitira, mal ou bem, expressarem-se: é
mesmo? Esso menino?.. Nao sera a primeira vez que 0 olhar
de nossa maquina fotografica os estarâ questionando. Mais
tarde, 0 presidente nos procurara corn a intençio de usar

201
nossas fotos para começar uma espécie de arquivo da hist6-
ria do assentamento. Ete nos prop6e selecionar alguns ne-
gativos para reproduçao e, diante de nossa disponibilidade
para doar todo 0 cojunto para a associaçao, nao se mostra
menos incomodado.
Nos dias que se sucedem à festa, somos conduzidos a
fazer uma avaliaçao para n6s mesmos disso que vern de se
passar. Pudemos assistir, de um lado, ao desdobramento das
relaç5es entre os associados e entre as suas famflias, que se
constitulram no assentamento desde a sua criaçao. Ao des-
dobramento deste poder militante, masculino e feminino,
funcionando ao arbltrio de alguns e à exclusao da maioria e
funcionando, igualmente, à ineficacia e à improvisaçao. Mas
vimos também surgir uma situaçao nova, inédita, 0 encontro
fusional de pessoas em relaç6es habituais de antagonismo,
num acontecimento pontual - a quadrilha.
o sucesso da quadrilha representa para nôs uma satis-
façao. Ela nos traz um ensinamento precisoso sem, entre-
tanto, deixar de nos renovar uma preocupaçao importante.
Sentimos a satisfaçao da demonstraçao, aos olhos de todos,
da possibilidade de se encontrarem segundo uma lôgica es-
trangeira àquela que preside as aproximaç5es superficiais
ou aparentes habituais. Essa lôgica decorre de nossa pnitica
e constitui 0 ensinamento precioso que tiramos desse en-
contro. A pratica do dialogo critico conduzida junto a cada
um produziu a possibilidade de todos se encontrarem de
uma maneira nova. 0 fato de encontrar cada um enquanto
pessoa autônoma e a crltica das diversas relaçôes de domi-
naçao introduzida nesse encontro fizeram nascer a virtuali-
dade das relaçôes construldas sobre a autonomia dessas pes-
soas. Nao se trata mais, na quadrilha, de individualidades
portadoras de papéis carregados de valores normativos, con-
duzindo à invalidaçao de uns pelos outros, que simples-
mente se roçam ou se resvalam, mas de pessoas autônomas
que se encontram ou se comunicam. Ha uma reciprocidade
na igualdade entre todos que confere ao acontecimento seu

202
carater fusional, que tem 0 sabor de uma reciprocidade per-
dida e reencontrada. De onde cintila uma alegria que nao se
acha senao na liberdade. Esse encontro na quadrilha, essa
alegria que a penetra, essa liberdade vivida nesse instante
poderiam conduzir-nos facilmente à euforia. Nos nao deixa-
mos, entretanto, de estar atentos a toda a complexidade do
que se passa.
Na relaçao nova que cada um estabelece corn os ou-
tros, ha certamente a manifestaçao de uma virtualidade das
relaçi5es que estamos propondo. Mas essa virtualidade nao
se realiza senao pela nossa mediaçao. 0 que significa que a
autonomia de cada um, manifesta no encontro dos outros,
nao esta suficientemente interiorizada para que do proprio
grupo possa nascer um tal encontro. De uma outra maneira,
isso quer dizer que a relaçao de cada um corn os outros esta
carregada de uma relaçao a nos que é, na realidade, uma
alienaçao que pode permanecer. Seja na hipotese de nosso
desaparecimento, corn a possibilidade de uma recalda na
inércia anterior, seja na de nossa continuidade, corn a possi-
bilidade da recriaçao dos vî'nculos de dependência a que
todos estio habituados. Isso define uma preocuçao precisa
no que se refere a esse nosso papel mediador: 0 cuidado de
nao tomar 0 poder no grupo. Isto é, a atençao de nao nos
instalarmos numa posiçao carismatica que comprometeria a
experiência de libertaçao, erigindo-nos em libertadores, ou
em novos patrOes.
Entendlamos, a partir dessa experiência, que nossa in-
tervençao posslvel junto ao grupo deveria se fazer em conti-
nuidade corn 0 trabalho de encontro que vlnhamos fazendo
corn cada um, através de nosso procedimento de dialogo
crî'tico, de modo a marcar uma distância calculada para reen-
viar nossos interlocutores a eles mesmos. No capltulo que
se segue teremos a oportunidade de demonstrar esse cuida-
do numa experiência de intervençao junto à totalidade do
grupo dos associados.

203
v

A partilha do maquinario:
a possibilidade de
negociaçoes democraticas

Passada a festa, continuamos nosso trabalho de obser-


vaçao e de dialogo cri'tico corn os membros da associaçao e
corn as famflias. Nossa irrupçao no campo coletivo organiza-
do, no momento da festa, ainda que restrita, aureolava-nos
de uma força aumentada. A mensagem da quaI éramos por-
tadores, de um encontro entre as pessoas sobre a base da
autonomia de cada uma, começava a desenhar seus contor-
nos corn maior clareza. Sentfamos que nossa presença nessa
pequena coletividade se transformava numa referência im-
portante. Como se as as pessoas, tendo ja vislumbrado a
possibilidade de novas re1açOes entre elas mesmas, esperas-
sem de nos a indicaçao dos caminhos que as conduziriam a
essas relaçœs. E nunca fomos tao solicitados a dialogar so-
bre seus proprios problemas. Procuravam-nos para trocar
idéias sobre tudo. Como que tentando, e1as mesmas, preci-
sar 0 conteudo das expectativas ainda indefinidas do que
poderi'amos fazer por elas. Ou 0 conteudo do novo papel
que deverfamos desempenhar junto ao coletivo e do quaI
n6s mesmos nao tfnhamos maior clareza. A nao ser a certeza
de que, em quaisquer circunstâncias, deveriamos nos em-
penhar em assegurar a emergência das regras - ou das Ieis
- de negociaçao democratica entre os componentes do

205
grupo no quai estivéssemos intervindo. Sob pena de nos
vermos transformados nos novos mestres - ou patrOes -
que, de algum modo, todos nos pareciam estar procurando. !"
Esse clima de aceitaçao incondicional de nossa presen-
ça aumentava nossa cautela e nossa responsabilidade. De
um lado, tornando-nos mais cuidadosos, no sentido de nao
nos deixar substituir aos nossos interlocutores nas decisOes
que eles deveriam tomar. De outro, levando-nos a refletir
sobre as conseqüências do poder que passavamos a ter so-
bre todos, à medida que os conheciamos melhor ou mais
intimamente. E foi por esse caminho que acabamos encon-
trando a soluçao para esse constrangimento que nosso pro-
prio itinerario de intervençao junto aos trabalhadores e suas
familias nos criava.
Entre os diferentes problemas que nos eram trazidos,
muitos se referiam à organizaçao da produçao e da associa-
çao do assentamento. Ora, à medida que nossa critica a essa
organizaçao avançava, começâvamos a ter dificuldade em
manter, junto a cada associado, a posiçao de transparência e
imparcialidade que nos tinhamos programado. Para sermos
transparentes precisavamos criticar as relaçOes de domina-
çao existentes, e corriamos 0 risco de ser parciais, se nos
permitissemos questionar as prâticas dos dominadores junto
aos dominados e vice-versa. Entendemos, a partir dessa di-
ficuldade, que era hora de socializarmos 0 saber que deti-
nhamos sobre nossos interlocutores. E decidimos apressar 0
momento do relatorio que Ihes prometemos apresentar
quando tivéssemos elaborado nossas primeiras observaçOes
sobre a situaçao de assentamento.
Trabalhamos um mês na preparaçao deste relat6rio.
Nao era facil. Além de didatico, ele deveria ser rigoroso. No
sentido de conter a critica que vinhamos fazendo dos domi-
nadores e dos dominados e no sentido de reproduzir clara-
mente 0 conhecimento que começavamos a acumular sobre
os limites desses trabalhadores frente aos desafios da situa-
çao na quai estavam colocados. Nosso fio condutor, as suas

206
possibilidades. Essas mesmas que nos levavam a acreditar
na importância desse trabalho.
No mês de outubro, nove meses ap6s nossa chegada à
agrovila, pareceu-nos suficientemente elaborada a avaliaçao
que prometemos apresentar aos produtores e suas familias
nos primeitos dias de nosso trabalho no campo. E foi no
decorrer de uma reuniiio geral dos habitantes da agrovila
que fizemos esta apresentaçao. Ap6s a quai, um longo pro-
cesso de negociaçao democrâtica se engajou. No curso de
cinco meses de reuniœs nos diferentes niveis da organiza-
çao da associaçao, a paralisia observada na administraçao das
coisas de interesse coletivo se resolveu. Os associados divi-
diram 0 parque de mâquinas entre os grupos que compu-
nham a associaçao e uma nova definiçao das relaçœs no
seio do assentamento se anunciou. Nossa mediaçao nesse
processo pareceu-nos da maior importância.
Fixamos um dia para a apresentaçao do que estâvamos
chamando nossa primeira avaliaçao. Passamos em cada uma
das casas para 0 convite: dia 12 de outubro, às 20 h, na escola.
Gratificante surpresa, na hora marcada, a quase totali-
dade da populaçao da agrovila esta ali: homens, mulheres,
crianças. Ha um momento de suspense, bem significativo a
nossos olhos. 0 "delegado das relaçOes exteriores", 0 mili-
tante do M8T, seu companheiro mais pr6ximo, assim como 0
vice-presidente, se fazem esperar. Vào eles minar a reuniao
na quai sabem que sua pratica dirigente vai ser questiona-
da? Eles nao tardam a chegar, mas quiseram corn isso, ao
que tudo indica, marcar uma posiçao. Todo mundo estâ ali.
o casai de engenheiros - os técnicos estatais - toma lu-
gar, ele também, na assembléia reunida, enquanto n6s ocu-
pamos a mesa do professor da escola... Cada um se dispœ
expontaneamente numa postura de atençao que rompe ra-
dicalmente corn 0 que estamos habituados a ver. Vai-se até
a exigir ordem das crianças, pedindo que se retirem da sala,
pequena para todos, e permaneçam bem comportadas no
patio da escola. A curiosidade é grande. Para uns, de ouvir 0

200
que esta proibido de dizer e, para outros, de saber coma nos
vamos dizê-Io.
Na nossa exposiçao, ha uma solida introduçao, onde,
apos ter lembrado 0 compromisso assumido inicialmente.
corn eles, de prestar contas de nossas observaçOes e reflexô-
es em reciprocidade à nossa acolhida pela coletividade, n6s
abordamos 0 contexto geral, poli'tico e econâmico, no quai
se situa a experiência que eles estao vivendo: a evoluçao
poli'tica da quesœo da reforma agraria no periodo de transi-
çao democratica. As condiçôes econâmicas nas quais eles
esœo colocados e que demandam uma cooperaçao entre
eles. A experiência que eles vivem depois de quatro anos
constitui uma experiência de cooperaçao? A quantas eles
andam nessa experiência?
A exposiçao de resultados começa, naturalmente, pelo
enunciado de um certo numero de elementos positivos que
constatamos, considerando, de um Iado, a grande dificuldade
que é gerir um modo de organizaçao da produçao corn forte
componente coletivo, do quaI eles nao rem nenhuma expe-
riência. E considerando, de outro lado, 0 carater nova da expe-
riência de vida em comum que eles esœo tendo de organizar,
depois de anos e anos de errância rural e urbana. Mas nos
vamos rapidamente ao centro de nossa exposiçao, que consis-
te em insistir duramente no que de preocupante pudemos
observar, e nas explicaçOes a que chegamos, tendo em vista a
superaçao das dificuldades que todos vêm encontrando.
Três sao os principais pontos problematicos no assen-
tamento, na nossa interpretaçao: 0 da forma de exploraçao
agrîcola adequada ao assentamento, 0 estado catastrofico
das maquinas e 0 funcionamento da associaçao.
Para demonstrar a quesœo de uma forma de explora-
çao agrîcola adequada ao desenvolvimento de cada uma das
famllias e do grupo coma um todo, apresentamos um relato-
rio econâmico das atividades de produçao e das conseqüên-
cias que delas resultam para cada um dos associados. 0 es-
tudo aprofundado de dez famllias selecionadas por grupo e

208
pelos diferentes desempenhos econômicos na ultima safra
permite-nos mostrar-lhes a desigualdade e insuficiência dos
resultados que vêm obtendo: uma minoria consegue, corn
seus cultivos, um certo crescimento econômico. Isto é, con-
segue vender uma quantidade de produtos suficiente para
completar suas necessidades no mercado, investir na explo-
raçao da terra sem recorrer ao financiamento bancario e ad-
quirir bens duniveis, notadamente material para uma casa
de alvenaria em construçao. Uma outra mi noria se reproduz
nas condiçoes as mais diflceis, recorre à assistência dos ou-
tros e nao consegue fazer face ao endividamento decorren-
te do financiamento da produçao. Finalmente, os outros, a
maioria, conseguem nutrir-se corretamente pela exploraçao
da terra e vender um pouco no mercado, mas buscam no
trabalho assalariado ocasional, de um ou de varios membros
da famflia, 0 excedente indispensavel a um consumo acres-
cido de bens nao duraveis ou duraveis. Em média, cada um
tem um nîvel de vida superior ao que tinha antes do acesso
à terra: come-se melhor, veste-se melhor, educa-se melhor
as crianças e todos dizem ser mais felizes do que eram na
cidade. 0 que é muito positivo. Mas a combinaçao terra,
trabalho e dinheiro, potencialmente existente, esta loge de
se realizar de um modo satisfat6rio. Além do dinamismo es-
perado da cooperaçao nao existir.
F azendo referência aos individuois - alocados fora da
agrovila - , que conseguiram resistir às injunçOes de entrar
para a associaçao, instalando-se sobre suas terras sem ne-
nhuma ajuda e que apresentam resultados econômicos em
média superiores, n6s nos perguntamos se a concepçao do
projeto-associaçao e as condiçOes de sua execuçao nao aca-
barn por entravar os melhores, em lugar de ajuda-los, e nao
criam junto aos outros uma acomodaçao, em lugar de obri-
ga-los a tirar 0 melhor deles mesmos.
Por outro lado, analisando os elementos que explicam,
na ultima safra, a diferenciaçao dos resultados obtidos pelos
dez prod utores analisados, n6s nos perguntamos se os pro-

209
dutores associados estao tendo condiçôes de planejar suas
roças de modo a potencializar 0 uso dos meios dos quais
dispôem. Os melhores resultados obtidos foram os dos pro-
dutores que naD recorreram ao financiamento bancario e
que plantaram também a mandioca, que naD esta prevista
no "pacote" financiado pela banco - arroz, feijao e milho.
Isso nos leva a pensar que este "pacote" precisa começar a
ser interrogado. É verdade que a ultima safra foi boa, mas
foi a primeira depois de trés anos de fracasso. E os preços
baixos do mercado, mais os juros do financiamento, se en-
carregaram de reduzir-Ihes as vantagens. Outros fatores de
diferenciaçao também san mencionados: quantidade de
mao-de-obra, saber agrlcola, condiçoes de comercializaçao...
Para lembrar que 0 planejamento da produçao de cada fa-
mûia tem de ser feito levando em conta as particularidades
de cada uma delas8• E para sugerir que os espaços de coope-
raçao sejam programados no sentido de potencializar as con-
diçôes inscritas nessas particularidades. 0 que nos leva para
o segundo ponto central de nossa exposiçao.
Para falar do estado catastrofico das maquinas, inicia-
mos pela relatorio feito pela presidente da associaçao no
curso da primeira assembléia à quaI assistimos. Nossas ob-
servaçôes posteriores mostraram que, neste estado, os trato-
res san mal aproveitados. Nao apenas nao atendem às ne-
cessidades mais imediatas dos associados, que muitas vezes
vém seus plantios atrasarem, coma naD podem ser utiliza-
dos para os serviços programados fora do assentamento, vi-
sando à obtençao de dinheiro para sua propria manutençao
e para outros projetos da associaçao. Conversando corn to-
dos, pudemos saber que esta situaçao nao apenas naD mu-
dou nos nove meses que estamos no assentamento, coma é
muito antiga e se liga a problemas de ma administraçao. 0
que nos conduz, por sua vez, ao terceiro ponto de nossas
preocupaçôes: 0 funcionamento da associaçao.
Este ponto central, espinhoso e delicado, que toca 0
cerne das relaçôes existentes entre nossos espectadores e

210
que justifica a presença deles nesta reuniao, este ponto nos
decidimos abordar de um modo humoristico-teatraL Fazen-
do uma descriçào caricatural das assembléias às quais pude-
mos assistir. Nossa intençào é apresentar uma critica severa
das relaçôes que se desenvolveram entre eles desde a cria-
çao da associaçao, mas queremos fazê-Ia de modo a abrir a
possibilidade de uma nova qualidade de relaçao entre eles.
N 6s nao q ueremos que essa critica reproduza os mecanis-
mos de invalidaçào aos quais todos estîio habituados. 0 que
significaria uma mera inversao das velhas relaçoes, decor-
rente da exclusao dos dirigentes atingidos pela nossa critica.
Quanto mais que nao ha nenhum "puro" neste jogo que
vern desenrolando-se ha quatro anos. Os que estiio coniven-
tes corn os abusos dos dirigentes também têm, na nossa lei-
tura, seus interesses inconfessaveis... E é por esse caminho
que procuramos carregar nas cores de nossa descriçao. É ne-
cessario que cada um possa rir à custa do outro e todos à
custa uns dos outros. Rir deles mesmos para encontrar jun-
tos uma nova maneira de se relacionar. Todos os elementos
da descriçào feita anteriormente (capitulo 1) SaD retornados
neste momento, mas de um modo cômico. As chegadas em
atraso, as posturas, os discursos dos dirigentes, a simulaçào
das discussOes, a farsa das decisoes. Todos parecem reco-
nhecer-se nessa descriçào e riem copiosamente. S6 0 vice-
presidente nao parece-se divertir muito: ele vai e vern, sai e
entra, manifestamente pouco à vontade.
A partir dessa apresentaçào caricata nos nos engajamos
numa longa explicaçao sobre 0 que se passa entre des, a
nossos olhos. Ressaltamos, de inicio, que 0 projeto agricola
do Estado, no quaI eles entraram sob forte injunçao no mo-
mento da criaçào do assentamento, era um projeto comple-
tamente estranho às experiências e expectativas de todos.
Pretendia coloca-Ios imediatamente numa certa concepçào
de eficacia e modernidade. E nao levava em conta suas pos-
sibilidades e suas aspiraçoes.

211
Dizemos, em seguida, que esse projeto, por mais ina-
deq uado que fosse no inicio, teria podido ser corrigido e
teria podido evoluir de um modo positivo, casa se tivesse
criado condiçôes de uma critica construtiva no dia-a-dia de
sua execuçâo. Mas fez-se desse projeto um projeto militan-
te e inquestionavel. Corn dois agravantes bastante conside-
raveis: de um lado, a falta de competência técnica e a falta
de experiência de relaçôes democraticas da maioria dos pro-
dutores ali presentes. Corn pouco conhecimento de agricul-
tura moderna, sem nenhum conhecimento de gestao coleti-
va e habituados a obedecer a "lei do patrao" - ou a
infringi-Ia -, eles todos estavam pouco preparados para
afrontar organizadamente 0 "poder militante". De outro
lado, os técnicos ou engenheiros do Estado, encarregados
de assessora-Ios, deixaram-se absorver pelas multiplas tare-
fas relativas às relaçôes dos produtores corn 0 Estado ou os
financiamentos externos e se apoiaram nas lideronços no que
toca à gestao técnica, administrativa e polîtica dos neg6cios
cornuns. Dando seu apoio incondicional aos militantes diri-
gentes da associaçao. Que, coma os demais associados, nao
estavam preparados para 0 cumprimento dessas tarefas.
Nessas circunstâncias, os dirigentes militantes nao
apenas improvisaram a administraçao dos interesses co-
muns, coma deixaram-se seduzir pelas facilidades do poder.
E teceram relaçàes pessoais semelhantes às que conhece-
ram no passado, quando eram empregados nao qualificados,
rurais ou urbanos. 0 parentesco, 0 companheirismo e a sujei-
çao penetraram 0 quotidiano da associaçao. Assim sendo, as
crfticas mais sensatas, que surgiram da parte dos que eram
menos inclinados a entrar nessas relaçôes, nao puderam ja-
mais ser levadas em consideraçao. 0 apoio das autoridades
às regras inquestionaveis do discurso militante e as facilida-
des decorrentes das relaçàes de dominaçâo paternalistas do-
minantes tornaram vas todas as interrogaçôes. Diante dessa
impossibilidade de se fazer ouvir, os mais lUcidos se fecha-
ram sobre eles mesmos. Nao sem buscar, muitas vezes, tirar

212
proveito pessoal do bem comum. Eles acharam, na intransi-
gência dos militantes e no abuso do poder, 0 argumento fa-
cil para as suas proprias inconseqüências.
o resultado desse jogo de açôes e reaçôes é que, sob
aparência de gestao pela base, pelos proprios produtores, se
desenvolveram entre todos relaçôes que lembram aquelas
que cada um viveu anteriormente, de patroes e emprega-
dos, nao reguladas por uma lei cornum, mas pela "lei do
patrao", que funciona ao arbitrario. E onde os empregados,
sahendo-se sem direito a ter direitos, reagem segundo um
cenario conhecido. Buscando os favores do patrao em pre-
jufzo dos outros ou simulando aceitaçao da ordem estabele-
cida e fazendo 0 que hem entendem, conforme a logica dos
comportamentos escondidos ou sorrateiros.
As conseqüências de tudo isso sao as que se pode ob-
servar presentemente. 0 estado deploravel do hem comum
e a desconfiança entre todos. A crise da associaçao e a para-
lisia do grupo para resolvê-la.
Terminando, nos lembramos a necessidade de eles
aprenderem a se relacionar democraticamente, sob pena de
nao conseguirem levar a bom termo as dificuldades que es-
tao enfrentando. Insistimos que uma relaçao realmente de-
mocratica seria aquela onde a expressao do ponto de vista
diferente do outro nao seria mais considerada coma um "pe-
cado contra a causa", e todos teriam direito igual de se expri-
mir livremente, num debate regido por uma lei comum.
Nossa exposiçao durou em torno de uma hora e meia e
foi ouvida na maior atençao, do começo ao fim. Vma vez
terminada, todos se distendem, e comentarios de todos os
cantos enchem a sala de um burburinho surdo.
Essa maneira pela quai nos dirigimos à coletividade
dessas famûias é completamente nova, comparada a tudo
que elas conheceram desde os primeiros tempos de seu
agrupamento. Houve, de infcio, 0 discurso apaixonado dos
padres das CEBs e leigos militantes do MST ou de partidos
polfticos, que justificavam sua unidade, colocando em evi-

213
dência a exploraçao e a exclusao a que todos estiveram até
entao submetidos. E que fundavam a necessidade de esta-
rem unidos dali para a frente, num projeto comunicirio, co-
letivista, igualitario e fraterno. Houve, em seguida, 0 discur-
so racionalista e progressista dos engenheiras do Estado,
propondo-Ihes, sob forte injunçao, 0 modelo eficaz, implici-
tamente socialista, do "trabalhador coletivo". Modelo inte-
riorizado e orquestrado, na pratica dos primeiras tempos,
pelos militantes da Igreja e do MS'f. Depois houve 0 discur-
so repetitivo dos militantes dirigentes. Discurso de autojus-
tificaçao, de uma sa verdade e de invalidaçao e de estigma-
tizaçao dos que discordassem dela - os individuois. Eis
que, de repente, um discurso inaudito se faz ouvir. 0 da
igualdade de cada um no direito de se exprimir livremente,
sob uma lei comum partilhada por todos. Mais do que isso,
um discurso que envia dirigentes ou dirigidos a si mesmos e
que interroga cada um na sua relaçao corn os outras, subme-
tendo-os, no limite, ao veredicto da coletividade.
o trabalho de dialogo crî'tico que perseguimos durante
nove meses junto a cada um dos presentes preparau, sem
duvida, 0 momento que todos estao vivendo. Mas ele naD
se fazia agir até aqui senao pela encontro de cada um corn
os pesquisadores-interventores, nos mesmos. E agora eles
estao todos reunidos, sob 0 olhar uns dos outros, nossa pre-
sença impedindo qualquer escapatoria, ao mesmo tempo que
garantindo a liberdade de expressao que vimos propondo.
Entretanto, muito novo, tudo é dificil. Vemos isso pelo
conteudo dos apartes que se seguem à nossa exposiçao. É 0
"delegado das relaç5es exteriores", que rompe 0 silêncio
instaurado apos 0 burburinho das primeiras manifestaçoes.
Ele retoma seu discurso habituaI da falta de formaçao de
cada um a prap6sito do coletivismo e do socialismo, para
propor que se redobrem os esforços de conscientizoçtio dos
componheiros. Em seguida é Matias, 0 militante do MS'T, que
toma a palavra: ele lamenta 0 fato de os componheiros naD se
interessarem pela que se passa no exterior para ver que a

214
luto continuo. A maior parte, diz ele, acomoda-se agora que
tem seu pedaço de terra. Depois é Aparecido, 0 presidente
da associaçao, que fala da falta de responsabilidade de cada
um em relaçao ao bem comum e da faIra de respeito ou
engajamento corn as decisOes tomadas em assembléia geral.
Aquele que ocupa de fato 0 poder, desde a criaçao da asso-
ciaçao, Almir, pede enmo a palavra. Esta claro para todos
que ele é 0 principal visado pela critica que fizemos da as-
sociaçao. Desde 0 começo da reuniao ele se singularizou
pela sua atitude. De inlcio, foi 0 ultimo a chegar e nos trajes
que se habituou a usar nos momentos em que precisa fazer
valer 0 seu carisma: trajes de quem vern de trabalhar a terra.
No momento em que falamos da desconfiança entre todos,
saiu da sala. Voltou um pouco mais tarde, aproximando-se
da mesa onde nos estavamos. Partiu, depois, para um canto
da sala, onde se agachou e acabou sentando-se no chao.
Agora ele se levanta para falar e entabula 0 longo discurso
ao quaI esta acostumado. S6 que, pela primeira vez, numa
posiçao de fragilidade:
- Nos somos umo comunidode Umo comunidode de cris-
toos... A !grejo mudou minho vido porque 0 !grejo é 0 povo .
E eu vi que isso é bom, porque oqui ninguém motTe de fome .
porque 0 gente do pora quem tem neœssidode... Aqui nos somos
seres humanos... Mos é verdode que nos tombém somos selvogens.
É verdode que hd desconftonço, mas eu noo tenho nodo... tudo
que eu tenho é esso roupo e esse sopoto velho... Mos eu ocho mesmo
que nos somos desumonos.... Nos somos tombém desumonos....
Compreendemos, no prosseguimento desajeitado de
suas palavras, que ele pretende criticar-se, justificar-se e ao
mesmo tempo se fazer absolver pela comunidade partilhada
por todos. A situaçao é delicada. Nos pretendemos manter 0
rigor de nossa critica, mas nao queremos que as coisas to-
mem 0 cumo habituaI de se resolverem pela eleiçao de um
"bode expiatorio". Nao queremos vê-Io criticado e critican-
do os que, segundo ele mesmo, MO porticipom ou gostom de
ser mondodos. Nosso objetivo, nesse momento, é fazer corn

215
que os conflitos aflorem no grupo coma um todo. Intuitiva-
mente, n6s interrompemos 0 siiêncio corn que ouviamos as
sucessivas intervençOes da piatéia, para diaiogar corn ele.
Numa deferência à sua reconhecida iiderança. Mas para
reafirmar-ihe, e a todos os presentes, a base de nossa critica
a suas praticas de dirigente. Em resumo, n6s ihe dizemos
que, corn efeito, somos todos seres humanos e que a uniao
dos produtores associados do assentamento é nao s6 deseja-
vel, coma necessaria ao crescimento de todos. Que, entre-
tanto, os seres humanos sao diferentes, rem projetos e
idéias diferentes, razao pela quai é precisa respeitar a liber-
dade de expressao de cada um na sua diferença, para que
essa uniao possa existir. Mas n6s sentimos, ao mesmo tem-
po em que procuramos interrogar diretamente Almir, que
nossas propostas colocam em causa nao apenas suas prati-
cas, enquanto dirigente, mas sua pr6pria vida, ou 0 sentido
que ele lhe deu, desde que se engajou na luta pela terra.
Ele busca, agora, mais uma vez, a unidade de todos tal coma
ele a entende, a unidade capaz de preservar sua posiçao domi-
nante na associaçao. E ele nao esta, portanto, disposto a se
submeter ao livre exercicio da vontade de cada um...
É 0 militante cat6lico do "grupo dos militantes", Rai-
mundo, que encerra as falas dos "donos" habituais da pala-
vra, para uma liçao em forma de mecifora, onde a associaçao
é uma maquina corn suas diferentes engrenagens, e onde a
comunidade-maquina nao pode funcionar se cada associa-
do-engrenagem nao cumpre suas obrigaçOes. Nas condiçoes
habituais, esta mecifora, uma espécie de "moral da hist6-
ria", deveria botar fim à reuniao. Todos permanecem senta-
dos, entretanto. Mudos, mas coma que engajados nesta
nova possibilidade de liberdade de se expressarem.
o engenheiro toma a palavra. Ele quer sublinhar toda
a importância que atribui ao que vern de ouvir. Mas toman-
do para si 0 papeI de acomodar as tensoes geradas pela nos-
sa exposiçao. Tudo indica que ele entendeu a critica que
fizemos à ideologia militante, às praticas dos dirigentes e,

216
por extensao, às suas pr6prias prâticas. Afinal, foi corn 0 seu
apoio, solidârio ao do padre e das demais autoridades que
por ali passaram, que essa direçâo se instalou e se manteve
no poder. Até entao ele nao se tinha interrogado sobre a
representatividade do grupo no poder depois de quatro
anos. Mas desde 0 prindpio aberto a nossas posslveis contri-
buiç5es - embora politicamente comprometidos corn a
"causa" dos assentamentos, ele e sua mulher nao desempe-
nharam 0 papel de militantes tî'picos que chegamos a ver
entre técnicos estatais de outras experiências - , ele se
aproveita da situaçâo para tentar dar um passo à frente.
Pragmâtico, retoma as questôes dos maus resultados da pro-
duçâo e da mâ gestao das mâquinas aos quais nos referimos.
Habilidoso, considera que os problemas de funcionamento
da associaçao poderao ir sendo tratados ao mesmo tempo
em que todos estiverem resolvendo as questôes da produ-
çâo e das mâquinas. E sugere que se comece por esta ulti-
ma, mais urgente, jâ que a terra recém-plantada terâ neces-
sariamente de esperar. Finalizando, prop5e à assembléia
que sejamos convidados a acompanhar 0 processo de solu-
çao desses problemas da gestao das mâq uinas.
Todos concordam, entusiasmados, corn a proposta do
engenheiro, que se compromete a apresentar um calendârio
dos trabalhos, assim que tiver conversado conosco e corn a
diretoria. Mas todos continuam sentados, como que aguar-
dando a oportunidade de se expressarem. A quai nos trata-
mos de garantir, sugerindo que se manifestem aqueles que
tenham ainda algo a dizer, de preferência entre os que ain-
da nao puderam falar. E foram longas, ainda, as falas que se
sucederam. Detalhando, sem inovar, as questOes em pauta:
a mâ administraçâo das mâquinas e da associaçâo. Ou a in-
competência e 0 poder absoluto dos dirigentes. A principal
novidade, a manifestaçao daqueles que até entao nao ousa-
vam fazê-Io, ou nao puderam ser ouvidos. Além da reuniao
terminando inteira, corn a presença de todos e 0 compromisso

217
do reencontro dos associados para dar inicio às negociaç6es
sobre uma nova forma de gesœo do parque de maquinas.
Apos esse encontro corn toda a populaçao reunida da
associaçao, e antes de dar inicio às reuni6es que se sucede-
riam em busca de uma nova forma de gerir 0 parque de
maquinas, nos nos preocupamos em bem compreender 0
que vinha de se passar entre nos e essas pessoas, e entre
elas mesmas. Todo mundo se reuniu, pela primeira vez de-
pois dos primeiros tempos do assentamento, quando se tra-
tava de criar a associaçao, em contraste absoluto corn todas
as assembléias que puderam ter lugar a seguir. E 0 clima foi
completamente diferente do clima dessas assembléias do-
minadas pela nûcleo dos militantes. Durante uma longa
hora e meia, cada um, homens, mulheres e jovens estive-
ram atentos a nossa exposiçao. E em seguida todos pude-
ram se exprimir. Nenhuma duvida que tenha sido nossa
presença que produziu esse ajuntamento expressivo. Mas a
questao consiste em saber se 0 sentido desse ajuntamento
se esgota na nossa pessoa, ou se nao ha aigu ma coisa de
nova entre eles, para além dessa unificaçao através de nos.
a que esta em jogo na resposta a essas quest6es é im-
portante. Nos fizemos tudo, desde os primeiros contatos
corn cada um, para dizer que nao estavamos a serviço de
nenhuma "causa" em curso na situaçao do assentamento.
Que nao éramos portadores de nenhuma "bandeira" politi-
ca, de nenhuma "religiao", e que nao estavamos preocupa-
dos senao corn a autonomia das pessoas e corn a livre rela-
çao entre elas mesmas. E nos nos preocupamos em nao nos
deixar substituir aos nossos interlocutores em suas proprias
decis6es. Estando atentos para reenviar cada um a si mesmo
na sua relaçao corn 0 outro e corn os outros. Mas nos esta-
mos agora de posse de um saber sobre todos que é eviden-
te, e a confiança de cada um em nos é tao grande que nos
permite pensar que eles nos delegariam de boa vontade 0
poder de resolver, por eles, seus problemas. De outro lado,
se é verdade que nossos dialogos criticos fizeram nascer em

218
cada quaI uma nova possibilidade de existir, também é ver-
dade que essa experiência para si nao teve ainda a ocasiao
de se transformar em comportamento novo frente aos ou-
tros. Nesse particular, os limites da experiência vivida na
nossa recente reuniao san bastante significativos. É certo
que todos provaram ali 0 sabor de uma nova forma de se
relacionar. Entretanto, nada nos pode indicar que os diri-
gentes nao restaram sobre suas posiçoes. E que os dirigidos,
embora tendo podido se exprimir livremente, continuaram
fragmentados e separados. A questiio da competência na
abordagem dos problemas da gestiio dos bens comuns e da
gestiio do debate democratico, essas questoes restam intei-
ras, enquanto pniticas a ser desenvolvidas ou aprendidas.
Tudo isso nos leva a crer que nossa mediaçao é neces-
saria para que 0 grupo possa avançar. E que, nessa media-
çao, nos precisamos estar muito vigilantes para nao nos
transformar nos substitutos dos "donos" do poder até entiio
personificados nos militantes dirigentes. A clareza desse de-
safio nos conduz naturalmente a pensar que nos esta dado
perseguir, no campo do coletivo dessas familias e desses
produtores associados, 0 trabalho engajado junto a cada um,
de emergência de novas e democraticas regras de relaciona-
mento entre eles.
No dia 19 de outubro temos um encontro corn 0 casaI
de engenheiros para a avaliaçao de nossa exposiçao e de
seus efeitos junto à coletividade, assim coma para planejar 0
encaminhamento do processo de redefiniçao da administra-
çao coletiva do parque de maquinas.
Nosso primeiro objetivo é aprofundar nossa analise crlti-
ca sobre 0 jogo do poder existente na situaçao de assentamen-
to. De modo que eles possam se aperceber dos caminhos atra-
vés dos quais, em respeito às hierarquias de poder vigentes,
rem sido levados a caucionar e, por isso mesmo, a coroar 0
funcionamento da associaçào à degradaçào e à paralisia. Isso nao
é diffcil, uma vez que eles, enquanto técnicos estatais respon-

219
saveis pelo bom desempenho economlCO dos assentamen-
tos, vivem no dia-a-dia as dificuldades por nos registradas.
Afinadas nossas respectivas analises, a necessidade de
romper corn as relaçOes de dominaçao que se exercem na
associaçao sob a aparência de relaçoes democraticas apare-
ce-lhes coma evidente. Trata-se, grosso modo, nao mais de
"fazer passar" nas assembléias um projeto previamente
acordado corn a diretoria. Mas de assegurar 0 debate coleti-
vo deste projeto, de modo que, suficientemente criticado,
ele possa emergir, modificado, coma projeto do coletivo. Ou
possa servir de referência para a construçao de um outro
que preencha esta condiçao. Trata-se, em sintese, de asse-
gurar 0 debate gerador da unidade do proprio grupo. Porque
baseado na livre expressao de cada um, no confronto das
posiçoes em conflito e na negociaçao possive1 entre estas
mes mas posiçoes.
Na nossa leitura, esse devia ter sido 0 papel desses en-
genheiros desde 0 principio. E parece-nos providencial que
eles possam exercê-lo neste momento. Corn a nossa cauçao,
ja que, corn suas praticas de apoio ao poder militante, nao
conseguiram mostrar-se confiaveis aos olhos de todos e nao
poderiam funcionar coma garantia do direito à livre-expres-
san de cada um e, em conseqüência, da livre negociaçao
pelo coletivo. Mas a disposiçao dos engenheiros em assumir
a coordenaçao do processo de negociaçao de uma nova forma
de gesâio coletiva do parque de maquinas simplifica as coisas
para nos. Diminuindo nosso espaço de intervençao e, acredi-
tamos, 0 risco da alienaçao dos associados a nossas pessoas.
Estando decidido que 0 problema da criaçao de novas
relaçoes no seio da associaçao se liga à coordenaçao compe-
tente das discussoes e das negociaçoes, 0 planejamento do
encaminhamento a ser dado ao processo é simples. Trata-se
de programar reuniOes em cada uma das instâncias da estru-
tura, em si mesma democratica, da associaçao: a diretoria, os
grupos e a assembléia gelaI. A novidade é que, desta vez,
todos san convidados a participar da preparaçao das assem-

220
bléias, formalmente definidas coma instância das decisoes
sobre as coisas do interesse coletivo. Esse trabalho de pre-
paraçao das assembléias é parte importante do processo de
aprendizagem da democracia no quaI estamos empenhados.
A diretoria da associaçao é eleita para preparar 0 traba-
Iho das assembléias e executar suas decisOes. Dia 25 de ou-
tubro, toda a diretoria eleita se reune por demanda nossa e
dos engenheiros. Até onde podemos observar, é a primeira
vez que ela se reune completa. Fomos informados de que
habitualmente as reuniOes da diretoria têm sido feitas pelo
presidente, 0 vice-presidente e 0 tesoureiro, que pertence
ao "grupo dos militantes". 0 secrecirio, do "grupo dos indi-
viduois", nao tem sido convocado, assim coma todos os
coordenadores de grupos. Substitui'dos, muitas vezes, por
um ou outro dos militantes reconhecidos pela vice-presi-
dente. Pois bem, desta feita estao todos la, embora corn
postos de importância evidentemente desiguais. 0 que nos-
sa presença deve corrigir, impondo uma igual participaçao a
cada um dos presentes e, ao que tudo indica, possibilitando
uma confrontaçao real de diferentes pontos de vista.
A questao é uma nova e mais eficaz forma de gestao
das maquinas. As trocas começam em torno da ma gestao
das mesmas. Sao lembrados: 0 estado de deterioraçao em
que elas se encontram, uma vez que nao podem ser repara-
das pela falta de dinheiro; a ma distribuiçao dos tratores no
momento da preparaçao da terra e dos plantios; a subutili-
zaçao do parque e a apropriaçao do mesmo por indivi'duos
ou pequenos grupos - os tratoristas -, em prejuîzo da
maioria. É lembrado ainda 0 funcionamento habituaI das
assembléias, onde as decisoes san tomadas e nao san execu-
tadas - ou san contrariadas. Avança-se sobre 0 grande dilema
até entao proibido de ser sequer mencionado diante de outros
que nao nos mesmos: rever a organizaçao da gestao, mantendo
a propriedade da associaçao sobre 0 parque, ou bem dividir as
maquinas pelos grupos, que ficariam assim sob a responsabili-
dade mais imediata dos interesses dos produtores.

221
Esta claro que os espiritos nao estao maduros para
abordar essa questao sobre 0 pIano técnico e econômico. 0
clima esta carregado de afrontamentos ideologicos e pes-
soais que se desenvolveram desde 0 inicio da associaçao e
que devem encontrar um certo desenlace. Reconhecemos
aH os problemas encontrados por ocasiao das assembléias
gerais, mas desta vez os afrontamentos abertos sao possi-
veis. E através das intervençoes sucessivas dos repre-
sentantes dos grupos e da organizaçao rigorosa, por parte
dos engenheiros e dos pesquisadores, das idéias em discus-
sao, 0 jogo anterior é desmontado. A acusaçao da direçao
àqueles que nao respeitam as decisOes tomadas é cassada
pela denuncia da falta de liberdade real de discussao nas
assembléias. Por outro lado, a omissao sistematica de al-
guns, identificada pelos militantes como desinteresse ou
traiçao à causa, é reconhecida por todos como conivência
corn os detentores do poder... Tudo se encaminhando para a
conclusao de que sao as condiçoes nas quais sao tomadas as
decisoes que importam, uma vez que tomadas em mas con-
diçoes elas trazem em si sua propria desventura.
Nesse novo contexto, que vai se criando ao mesmo
tempo que a critica das velhas praticas das reunioes vai
avançando, cada representante de grupo exprime seu ponto
de vista favoravel à partilha das maquinas pelos grupos. Sur-
preendentemente, chega-se a uma unanimidade por esta
partilha. Uma unanimidade que nos aparece imediatamente
como falsa. Porque a direçao, corn exceçao do secretario,
tem, corn toda evidência, uma posiçao ressentida. E nos po-
demos entender muito bem, na sua aprovaçao: "Tudo bem,
nos concordamos corn a divisao das maquinas, mas vocês
vao ver no que vai dar..." Essa posiçao encerrando, nestas
circunstâncias, quase uma ameaça de sabotagem. 0 poder
ameaçado se rompe pela fragilidade de sua argumentaçao
técnica em defesa da manutençao da propriedade e de ges-
tao comum do parque de maquinas. Mas ele promete voltar
a se impor.

222
Em conclusao a esta reuniao, programa-se 0 aprofun-
damento da questao dentro de cada grupo. E nos nos dete-
mos um pouco para refletir sobre 0 que se passou nesse
encontro. Esta colocado em causa 0 funcionamento da asso-
ciaçao. De um lado, no tocante ao jogo da "normalidade"
construlda sobre 0 pressuposto do canlter "bom" do coleti-
vo, que supoe "mâ" toda afirmaçao da vontade das indivi-
dualidades que 0 compoem. E, de outro, quanto ao abuso
do poder que resulta do exerdcio dessa "normalidade". É
evidente que 0 exerdcio desse duplo jogo tem sido possIvel
até aqui pelo apoio tacito ou declarado daqueles que encar-
nam 0 poder exterior - os engenheiros, as agências finan-
ceiras do proprio Estado, a Igreja, e as ONGs que doam di-
nheiros ou bens de consumo para os associados - e pela
passividade dos declarados "anormais" - os mais 16cidos,
sempre ameaçados da exclusao das tantas benesses. A mu-
dança se produz, assim, desde que se estabeleçam relaçàes
de força que permitam uma expressao real de cada um dos
envolvidos. Nesse novo contexto, ao afrontamento interpes-
soal se substituem os afrontamentos ou conflitos de idéias,
de projetos, de saberes. 0 que permite uma discussao que
começa necessariamente pela revelaçao das ïncompetên-
cias, da falta de saber e da mâscara da apropriaçao privada
do poder e de seu exerdcio abusivo. Esse é 0 caminho que
se nos anuncia como inevitâvel no processo de recriaçao das
relaçoes entre os produtores associados que nos propornos
estar ajudando a desenvolver.
A reuniao de cada um dos grupos tem, é certo, a fun-
çao de conduzir a uma soluçao para a gestao das maquinas.
Para nos, entretanto, trata-se sobretudo de desenvolver as
condiçoes de um debate no seio de cada grupo, de tal modo
que a soluçao adotada seja aceita por todos os produtores.
Isso nos dissemos desde 0 inkio da reuniao corn 0 primeiro
grupo, 0 dos militantes, e repetiremos quatro vezes: "Eu
quero explicar um pouquinho mais por que nos estamos
aqui, por que nos aceitamos a proposta de vocês, feita atra-

223
vés dos técnicos, de participar desse processo de soluçao
dos problemas das maquinas... Nos achamos que aqui no
assentamento as coisas vao mal porque SaD mal resolvidas ~
no momento da decisao, e achamos que podemos ajuda-Ios
a discutir melhor e a tomar uma decisao que resulte da livre
negociaçào entre vocês mesmos. Nos acreditamos que so
assim cada um de vocês vai levar a sério a decisao aprovada
na assembléia. E que se, ao contrario, a decisao for tomada
coma vern acontecendo sempre, sem uma discussao onde
todos tenham a oportunidade de se expressar, depois da as-
sembléia cada um de vocês vai voltar para casa sabendo que
nada do decidido vai ser cumprido... Esse problema das ma-
quinas nao é pequeno. Tem sido retomado em todas as as-
sembléias gerais e so tem crescido, aumentado... Pessoal-
mente, nos nao temos posiçào tomada sobre ele. Nos nao
sabemos se é melhor dividir ou naD a gestao das maquinas...
mas pensamos que se vocês discutirem 'pra valer' desta vez
encontrarao uma boa soluçao e as coisas vao avançar..."
o conjunto dos membros desse grupo que chamamos
de "grupo dos militantes" esta presente. Sao dez, sob a
coordenaçào competente de Gerônimo, um jovem militante
saido de outro assentamento do MS!: Diferentemente do
que aconteceu corn a diretoria e do que vai acontecer corn
os demais grupos, a reuniiio começa indo diretamente ao
seu tema central: a gestiio das maquinas. Convidados a falar,
cada um dos dez participantes se expressa a favor da parti-
lha das maquinas pelos grupos. As razOes dessa opçào também
SaD daras: nos grupos as pessoas se conhecem melhor, sao
mais facilmente confiaveis, podem ser melhor controladas e
rem condiçOes de cuidar melhor daquilo que lhes pertence.
Sabiamos que esse grupo era 0 unico a funcionar eficaz
e democraticamente e esperavamos uma reuniiio sem mui-
tas tensOes. Mas surpreendemo-nos, até certo ponto, corn a
firmeza de sua decisao de dividir as maquinas pelos grupos.
Nao era esse grupo que se aliava ao do vice-presidente, AI-
mir, em todos os momentos de decisao sobre os destinos do

224
coletivo? Nâo eram esses militantes porta-vozes do "discur-
so oficial" que legitimava coma "bom" tudo 0 que era cole-
tivo e coma "mal" qualquer inicitiva no sentido contrario?
As conversaçOes que se sucedem nos permitem responder a
essas questOes. Gerônimo é 0 primeiro a tomar a palavra
para nos explicar 0 que se passa, coma que adivinhando
nossa dificuldade, e para colocar em discussâo aquilo que 0
estava preocupando a prop6sito da partilha das maquinas.
Explica-nos que esse processo também aconteceu no assen-
tamento, onde um seu irmâo é Ifder de um grupo. Que ele
resulta de erros cometidos no inicio da organizaçâo da asso-
ciaçâo e que sâo irreversiveis. As pessoas foram obrigadas a
se associar e por isso as coisas nâo avançaram. Dai estar sen-
do necessario vO/for um pouco ofrtis para começor de novo...
Suas preocupaçOes sào de ordem técnica e de ordem
moral ou ideol6gica. Quer discutir os critérios a serem utili-
zados na divisâo das maquinas. Considera as dificuldades
decorrentes do fato de os grupos serem desiguais. E interro-
ga-se sobre a conveniência de se dividir apenas os tratores
corn seus respectivos implementos ou de incluir também
nessa partilha 0 caminhâo e a maquina de beneficiar arroz.
Pessoalmente esta mais inclinado a dividir tudo, ja que a
experiência tem mostrado que 0 odminisfroçOo do ossocioçOo
m'io funciono mesmo. 0 caminhâo nâo esta quebrado, a mais
de 400 km dali e ja ha mais de um mês? Finalmente, decla-
ra-se preocupado corn 0 destino da associaçâo, que, girando
até 0 momento em torno da propriedade e administraçâo
dessas maquinas, deveria agora encontrar uma nova razâo
de ser. 0 que lhe parece positivo, uma vez que ha problemas
muito mais importantes a serem enfrentados, como a comer-
cializaçao e a busca de financiamentos externos para a compra
de equipamento de irrigaçâo das culturas. Esse, a seu ver, é 0
papel da associaçao, mais politico do que administrativo.
Sua extrema lucidez nos surpreende mais ainda. Pela
frieza corn que ele se expressa quanto à preocupaçâo desse
grupo em relaçâo aos demais. Dos fortes em relaçâo aos fro-

225
cos, coma eles mesmos costumam dizer, falando uns dos ou-
tras. Essa frieza nao passa desapercebida a Raimundo, 0 mi-
litante cat6lico do quaI ja temos tratado. Sempre preocupado
corn a coerência crisœ de suas praticas, ele toma a palavra
para uma longa justificaçao dessas decisOes de seu pr6prio
grupo, encaminhando seu raciocinio culpado para 0 bem
que isso acabara trazendo a todos, que, livres de embaraços
da ma administraçao e dos privilégios criados pelos dirigen-
tes no uso das maquinas, poderao ter 0 acesso às mes mas
simplificado. Apraveita, entao, para registrar uma queixa a
prop6sito dos privilégios existentes no seio de seu proprio
grupo, lembrando que teve seus cultivos atrasados porque
nao conseguiu que lhe preparassem as terras a tempo.
Essa colocaçao de Raimundo rampe 0 equililirio do
grupo. Mas so por algum tempo. Gerônimo explica-Ihe e a
nos que 0 problema passa pela fato de ele nao se dispor à
troca de dias decidida no grupo. Isto é, para um dia de tra-
balho do tratorista, dois dias de trabalho do dono das terras
trabalhadas. 0 critério parece injusto ao militante cat6lico,
mas é questao fechada no grupo.
As conversaç6es sobre os critérios técnicos de partilha
das maquinas prosseguem, e a reuniao termina corn um roi
de sugest6es que deverao ser levadas à assembléia.
Duas reflex6es nos foram possiveis ap6s essa reuni1io.
De um lado, a prop6sito da forte integraçao desse grupo,
comparado aos demais. Trata-se de um grupo formado por
militantes e por uma consideravel rede de relaç6es fami-
liais. Como militantes, eles tiveram a chance de se escolher
e de trazer consigo suas respectivas familias: tios, primos,
sogros, ete.. Por outro lado, 0 bom funcionamento do grupo
começa a levar seus integrantes a ver corn certa fadiga os
muitos problemas existentes nos demais, uma carga exces-
siva para suas forças. Matias expressa bem esse cansaço.
Nao perde a oportunidade de dizer que é melhor ter um
companheiro convido do que muitos sem von/ode... Preocupa-
nos, evidentemente, que Hderes coma Gerônimo e Matias

226
nao se disponham a colocar sua liderança a serviço da coleti-
vidade. No momento eles estlio, sem duvida, apostando na
situaçao financeira equilibrada do grupo - têm dinheiro
em caixa - para garantir boas condiçoes de negociaçao na
partilha das maquinas. E uma das propostas que encami-
nham refere-se à possibilidade de os grupos completarem,
corn dinheiro, eventuais diferenças de valor do maquinario
em negociaçao. Gerônimo chega a falar em comprar 0 cami-
nhao. Mas, de qualquer maneira, parece-nos melhor que es-
ses interesses pessoais venham à tona e se confrontem corn
os interesses dos demais. Eles nao estiveram presentes na
situaçao de assentamento desde sempre? Embora mascara-
dos pelo discurso associacionista-coletivista, sob 0 quaI se
desenvolviam as redes de influência e de privilégios das li-
deranços e de seus aliados?
o segundo grupo a se reunir é 0 que nos chamamos
"grupo dos individuais". É um grupo de nove que se carac-
teriza pela idade madura de seus participantes (40 a 50
anos), pela solidez da maior parte das famûias e pela afirma-
çao pessoal de cada um de seus membros, de sua vontade
de existir individualmente no seio da associaçao. Para eles,
as maquinas de propriedade comum nao SaD consideradas
como manifestaçao de uma unidade ideologica, mas coma
uma questao de eficacia e de realismo. Eles se caracterizam
também pela origem predominantemente rural e pela capa-
cidade de bem cultivar suas terras. Mas é um grupo cuja
unidade se define mais coma uma reaçao à negaçao da indi-
vidualidade de cada um pelos militantes do que por um
prindpio qualquer partilhado por rodos: os laços entre eles
nao passam nem pela religiao nem por uma ideologia co-
mum. É um grupo de pequenos produtores que vêem inte-
resse numa cooperaçao que mantenha a autonomia de cada
um, simplesmente fortalecendo-os no acesso à tecnologia
agrlcola ou ao mercado. Nem romantismo da açao nem mili-
tantismo revolucionario.

227
o encontro desse grupo se faz numa das salas da escola
e naD na casa de um de seus membros, coma aconteceu
corn os demais. Sinal de sua unidade negativa? De maneira
igualmente significativa, a primeira palavra é para dizer que
o grupo naD tem coordenador e que coda um coordena 0 que é
seu .,. Entretanto, é designado um coordenador para a reu-
nHio. E significativo ainda é 0 fato de que cada um que
toma a palavra se refere aos que detêm 0 poder, os dirigen-
tes, coma eles. 0 "n6s" se definindo por oposiçao a esse eles
e nunca se exprimindo diretamente. Nao se fala em "nos".
Ao longo da reuniao esse eles vai aparecer tantas vezes que,
para conhecer a posiçao do grupo, nos seremos obrigados a
reenvhi-Ios a um "mas, e vocês?"... Nao ha posiçao tomada
anteriormente. Cada um fala um pouco ao acaso e na pri-
meira pessoa: eu. Sao evocadas, uma a uma, de maneira des-
coordenada mas judiciosa, todas as dificuldades e todos os
males a proposito da gestao das maquinas, da organizaçao
do trabalho, da falta de cuidados de manutençao, da falta de
consciência e responsabilidade... Sao denunciadas a onipotên-
cia e a môjé dos dirigentes e dos militantes socialistas, que
em realidade se comportam de maneira mais egoista do que
todos, além do fato de a maioria naD ter prestigio - vez - a
seus olhos. Fala-se de golpe, de posiçoes de força nas assem-
bléias. Todos san pela divisao das maquinas entre os peque-
nos grupos. 0 que, afinal, na prôtico jô estô acontecendo, uma
vez que cada grupo tem sob sua responsabilidade 0 uso de
um trator.
Transparece, num certo momento, uma inquietude a
proposito dessa partilha das maquinas que os envia ao pro-
blema de sua propria separaçao no seio do grupo. Saberao
eles gerir 0 trator que Ihes sera destinado? Esse constrangi-
mento aparece através de comentarios sobre um minimo
de organizoçiio para cuidar também da manutençao da ma-
quina, até agora por conta da associaçao. A soluçao de colo-
car 0 trator trabalhando para fora nos periodos em que esti-
ver ocioso aparece-lhes como algo obvio. Mas na associaçao

228
isso ja nao foi aprovado? E nao funcionou... A consciência
de que a coisa é mais complexa e exige organizoçoo atloran-
do... Tudo se passando coma se eles estivessem embarcan-
do numa situaçao vivida coma um compromisso a ser assu-
mido em relaçao a um antigo desejo: 0 de ter seus proprios
instrumentos para trabalhar sua propria terra.
Esta claro que 0 problema desse grupo é 0 de sua
propria integraçao e que esta nao pode se fazer senao atra-
vés da negociaçao dos interesses de cada um, isto é, senao
cimentada sobre a afirmaçao de seus proprios direitos. Di-
reitos que lhes têm sido negados na situaçao de assenta-
mento. Porque recriados na razao mesma da exclusao des-
ses homens do centro das decisoes a prop6sito do bem
comum. Nao sao eles os individuais? Os traidores da causa?
Nesse contexto des aprenderam a exercer seus direitos de
forma reativa. Quase que como quem infringe a lei - a lei
dos militantes - em lugar de respeita-Ia. E a importância
dessa reuniao reside exatamente ai, no fato de da estar legi-
timando, a seus olhos, 0 direito de esses homens exercerem
seus direitos. Nosso papel, 0 de ajuda-Ios a se reintegrarem
a partir dessa nova realidade. Isto é, nao mais pela negaçao
do que eles querem, mas pela afirmaçao do "n6s quere-
mos". Nesse sentido. procuramos conduzi-Ios a uma refle-
xao mais prolongada do projeto de partilha das maquinas
que, enquanto grupo. eles levariam à assembléia. Insistindo
cm que se la chegassem mal organizados teriam menos
chances de fazer valer. nas discussOes. suas proprias idéias
ou opiniOes. Se bem que des nao nos parecem motivados
para essse aprofundamento. Sabem-se diante da oportuni-
dade de receber um dos quatro tratores grandes existentes.
Sao nove trabalhadores - 0 numero médio de componen-
tes dos quatro grupos - que vivem uma espécie de alivio
por se verem. finalmente, livres das tantas invalidaçOes.
Preocupa-nos, sem duvida. a ralta de interesse mani-
festada por esses homens acerca dos destinos da associaçao.
Epelas dificuldades que teriam de enfrentar. sem uma base

229
de integraçao mais consistente, na administraçao de suas
proprias maquinas. Sobretudo porque teriam de lidar, no
seu proprio grupo, corn dois elementos evidentemente
oportunistas - os que tinham outras atividades na cidade e
nao cumpriam 0 contrato feito corn 0 Estado - , que se liga-
ram a eles exatamente pela sua fragilidade: a ausência de
regras resultantes de um minimo de integraçao grupal.
Segue-se a reuniao corn 0 grupo que estamos chaman-
do de "grupo dos marginalizados", coordenado por Olfmpio,
o militante catolico que vern sendo excluido dos espaços de
liderança pelos demais militantes. Estao os sete reunidos na
casa do coordenador, unidos por uma so preocupaçao: coma
obter um dos quatro tratores e alguns implementos, se 0
numero de membros do grupo nao perfaz a proporçao de
associados que supostamente lhes asseguraria 0 direito a
essa maquina - 25%. Uma soluçao pensada pela coordena-
dor esta totalmente fora da realidade: indenizar os partici-
pantes dos outros grupos, partindo do preço de compra dos
tratores e nao do preço atual. 0 que evidentemente lesaria
os demais associados, levando em conta 0 sistema inflacio-
nario em que vivemos. Percebendo que todos permanecem
mudos, coma que compactuando corn essa proposta magica,
decidimos demonstrar-Ihes que ela nao teria a menor chan-
ce de ser aceita. Surpresos, verificamos que Olfmpio se obs-
tina na sua posiçao, coma se a decisao final estivesse em
nossas maos e se tratasse, agora, de nos convencer de suas
proprias razôes. Quando chegamos a entender isso, a reu-
niao ja quase se esgotou no discurso monotematico do coor-
denador. Uma nova intervençao nossa se faz necessaria.
Para explicar, mais uma vez, 0 que ja tinhamos, de outra
maneira, explicado no infcio. Isto é, que nao temos posiçao
definida e nenhum poder de decidir nada. Que estamos ali
para ajuda-Ios a elaborar melhor a proposta que levarao à
assembléia. Finalmente, que entendemos que, se chegarem
à assembléia corn aquela proposta, nao terao a minima con-

230
diçao de se defenderem. Que 0 direito deles existe, mas
também 0 dos outros, ete, ete.
A partir daf todos começam a se pronunciar. Deixando-
nos perceber que tinham conversado antes sobre 0 assunto
e que a dificuldade é, corn efeito, grande. Considera-se a
hip6tese de alguns do "grupo de Almir" - de treze ele-
mentos -passarem para este grupo. É dificil. Os maisforles
do grupo, os "amigos" de Almir, naD concordam, e os mais
frocos, coniventes corn a posiçao de assistidos na quai vêm
vivendo, também naD terao interesse. Alguns deles ja passa-
ram por este grupo e optaram pela proteçao que os "donos"
do poder Ihes ofereceram. DissoIver esse grupo peIos outros
três também é impossfve1. Todos os que aIi estiio se esco-
Iheram mutuamente e vivem a marginalidade que Ihes é
imposta pelas lideronços coma 0 espaço da dignidade que
Ihes é permitida na situaçao de assentamento. Nao se chega
a uma conclusao, mas, à medida que as conversas avançam,
vai nascendo no grupo a consciência de que as negociaçOes
a serem enfrentadas serao duras e que eles precisam se ar-
mar de propostas negociaveis e de argumentos convincen-
tes. A confrontaçao dos interesses de cada um e de cada
grupo, até entiio disfarçada pelo maniquelsmo do "discurso
oficiaI", é agora inevicive1. A marginaIidade na quaI estive-
ram acomodados de nada Ihes adiantara. Assim como naD
Ihes ajudara 0 discurso da igualdade construfda sobre a idéia
da fratemidade, do quaI OHmpio é 0 mais coerente defen-
sor. Trata-se, desta feita, da igualdade no direito de cada um
a se exprimir e a defender seus interesses. De encontrar
uma soIuçao negociada para 0, agora transparente, conflito
dos interesses em pauta.
o ultimo grupo é 0 do presidente e do vice-presiden-
te. Que se reune no barraco deste ultimo, Almir, que reina
na associaçao depois de quatro anos. Nove membros do
grupo estiio presentes, quatro ausentes. Vimos que esse
grupo foi formado em tomo de uma pessoa carismatica, re-
criando as relaçOes patemaIistas presentes na trajet6ria so-

231
cial desses sUJeltos da luta pela terra. Constitui-se, cabe
lembrar, de um pequeno nucleo de omigos ou eomponheiros
de Almir e de uma maioria de dependentes ou assistidos
fnigeis e sem personalidade afirmada. Ha os fiéis e os sub-
missos... Trata-se do grupo mais importante. Porque define,
no seu bojo, a tendência dominante nas relaçoes existentes
na agrovila e na associaçao. Essa reuniao é uma ilustraçao
caricatural do jogo do vice-presidente em relaçao aos outros
membros do grupo e, por extensao, em relaçao à associaçao
e aos outros grupos.
Todo 0 encontro se desenrola, corn efeito, em torno da
exacerbaçao da pessoa de Almir, que vive um momento di-
fkil, interrogado que foi pela apresentaçao dos primeiros re-
sultados de nossas investigaçoes. Toda a construçao do uso
abusivo do poder, elaborada nos quatro anos de existência
da associaçao e denunciada na nossa crftica, evidencia-se na
pessoa mesma desse vice-presidente. Cerca de 75% das pa-
lavras proferidas no curso das duas horas de reuniao é dele.
QuaI é a sucessao de seus argumentos e quaI é a sua coerên-
cia? Tudo, como nas assembléias que ja reconstrulmos, é
autojustificaçao e acusaçoes aos outros. Desta feita, mais
agressivas, uma vez que ele se sente realmente ameaçado.
Em nenhum momento esboça uma autocritica. 0 que nos
leva a pensar que nosso trabalho corn ele, em particular,
esta so começando. Tentaremos, mais tarde, resgatar a im-
portância do seu lado que chamamos de aventureir0 9 para a
coletividade. Agora, trata-se mesmo de continuarmos a in-
terrogar seu absolutismo e sua preporencia, tendo em vista
a liberaçao de seus aliados e de seus assistidos dentro do
grupo. Para 0 que nos basta uma presença silenciosa. Ja que
seu discurso é também dirigido a nos:
- Entno, tudo bem. Eu vou expor oquilo que tenho no
minho cobeço.... Esso discussno que estti tendo dentro dos gropos,
néP Isso of jd vem hd longo tempo, esse desentendimento... Eu
oeho que 0 ossocio{tio estti perdendo espofo, estti mOTTendo, no
verdode... Esso semonD eu fui eobrado, pora que eu ftzesse olgu-

232
mo co;so... Eu disse que oceitovo 0 proposto... Eu omo que tem
mesmo 0 que four... A soude, 0 escolo... porque nos v;vemos
numo comun;dode....
A referência ao abandono em que se encontram a sau-
de, a escola e os demais interesses comuns da coletividade
esteve presente na exposiçao que fizemos aos trabalhado-
res. Assim sendo, entendemos que Almir nos critica por ter-
mos justo decidido intervir na quest30 do maquinario. Su-
gerindo-nos novos espaços de intervençao.
- (Mas) eu 11tïo me propus poro ;r rediscut;r nodo. Jo foz
um ono mois ou menos que eu MO so;o poro foro... Noo é porque
eu MO tenno mois corogem, MO é porque orrumei 0 v;do, noo é
porque tenno mois d;nneiro, porque ;nfel;zmente estou v;vendo m;-
serovelmente como codo um... So que eu noo posso ser mestre...
Eu noo tenno que ser mestre de tnnto e nove fom(/;os... Porque
poro superor 0 cobeço do povo que nos temos... Nos temos 90%
do povo oqu; dentro (que) é ;nd;v;duol;sto... Eles pregom umo
comun;dode, mos no fundo MO é comun;dode... Prego por fing;-
mento, pro oproveitor... Eu tenho 0 m;nno tese, umo co;so cloro,
bronco, posÏ/;vo... 0 que eu folo ogoro, eu folo omonno... mas
nos temos 90% dos pessoos que folo isso noje, mos omonno MO
foz 0 que folou... Voltondo otros, em cimo disso, do d;scussoo
;nterno que tem noje... 0 mo;or problemo que nos temos é 0 fundo
monettirio que nos temos... Porque n;nguém oqu; nunco teve
nodo... nem com;do troe... E noje tem um Irotor que vole 100.000
C17tzodos... E 0 pessoo d;z que tem que kvor esse trotor pro eln...
Tem um monte de proposto que jo oUfJÏ... logo logo MO vo; ter mois
Irotor no ossocioçiio... É noqu;lo que 0 ossocio{iio vo; pro buroco...
Almir esta sugerindo que as pessoas querem dividir as
maquinas para vendê-las. E passa, de repente, de seu inte-
resse pela associaçao para seus interesses pessoais ameaçados:
- Porque... oonde vo; ficor 0 meu d;reito em codo co;so?
Eu noo sou ottirio, eu noo sou culturodo (culto, letrodo), mas
ottirio noo sou... Eu com; cinZIJ, po, muvo... cOfTendo no ruo,
ped;ndo esmolo pro comun;dode... e meu d;reito vo; ser ofonodo.p
o meu noo vo; ser, eu tenno certezo que noo vo; ser...

233
Refere-se, entao, à suposta desonestidade dos grupos
de Olimpio e dos militantes. Reconhece nossas boas inten-
çOes - dos pesquisadores e do engenheiro, mas para suge-
rir que somos ingênuos, porq ue: vocês pensam que é uma coisa,
mas quando vocês passam no final da semana, vocês viio ver que
des fogem da rea/idade... etes se aproveitam... Para afirmar sua
superioridade: a minha coisa é prdtica, niio é teonca... porque
amanhii pode me dar um desespero e eu matar um... em um se-
gundo... Se tomar 0 que eu tenho, eu mato... mato até meu pai...
o engenheiro intervém para observar que ha outras
coisas a fazer corn a associaçao, as compras, as vendas, ete.
Um membro do grupo diz que desde 0 principio a idéia é
esta, mas que isso nao avançou. E 0 vice-presidente perse-
gue sua nova obsessao, a de que nao deixord nada de graça,
nessa divisiio, mesmo que se veja s6, contra os trinta e oito
associados restantes. Ele ira à Justiça e ganhara. Os demais
continuam em silêncio, e olhando para n6s e para des, AI-
mir retoma, agora, 0 conhecido discurso das suas muitas
doaçOes, orientado para 0 ataque aos individuais. 0 enge-
nheiro tenta mudar, mais uma vez, 0 rumo da reuniao, per-
guntando-Ihe por que de se doou tanto em lugar de exigir
dos outras que cumprissem suas tarefas. Ele responde que
precisa refletir para responder a essa pergunta, mas seu tom
é 0 de quem, refletindo, descobrira renovadas suas qualida-
des... N6s continuamos silenciosos, esperando que sua ira
se esgote, pouco a pouco.
Quando seu discurso termina, 0 engenheiro tenta abrir
a discussao corn os demais presentes, reconduzindo seus
pr6prios argumentos para bases mais realistas, menos emo-
cionais. Mas 0 vice-presidente continua no seu discurso fe-
chado e, mais exaltado ainda, continua a atacar os outros.
Todos os outras, aqueles que querem pagar 0 trator ao preço
de compra, referindo-se à proposta original do grupo de
Olimpio; os militantes, que pregam a comunidade mas que
na verdade nao passam de aproveitadores; 0 coordenador do
"grupo dos mi/itantes" e seu irmao traidor do assentamento

234
vizinho... Ele ataca também a equipe de pesquisadores e 0
pr6prio engenheiro, 0 mesmo que até recentemente 0 sus-
tentava no poder. Mas nao consegue fazê-Io diretamente.
Ameaça-nos, na verdade, corn 0 que entende serem os des-
dobramentos da partilha de maquinas: Voclr pensom que divi-
dir os maquinos voi resolver.? Voclr vôo ver! Meu gropo voi so-
ber odminislror os mtiquinos. Mos e os oulros'? Logo, logo MO
hovera mois Irolores por oqui. Eles vôo ocobor vendendo ludo...
E 0 ossocioçiio.? A ossocioçoo soo os Irolores, se 0 genle divide, elo
voi mOTTer. .. 0 engenheiro decide dirigir ele mesmo a reu-
niao, propondo que se faça "uma rodada", para que todos se
manifestem. Curiosamente, um a um e timidamente, os as-
sistidos começam a esboçar suas cri'ticas aos critérios de uti-
lizaçao dos tratores, sempre favorecedores dos tratoristas da
associaçao, para conduir pela conveniência de dividir os
tratores pelos grupos. Os tratoristas aos quais eles se refe-
rem sao do "grupo dos militantes" e do pequeno n6deo dos
omigos de Almir. 0 que nos leva a pensar que essa cri'tica,
uma vez aprofundada, interrogaria 0 funcionamento do pr6-
prio grupo aH reunido. Falando em seguida, cada um dos
omigos do vice-presidente, entre os quais 0 coordenador for-
maI do grupo, alega a vontade da maioria, para votar tam-
bém a favor da divisao dos tratores pelos quatro grupos. 0
ultimo a falar, Aparecido, 0 presidente da associaçao, alon-
ga-se um pouco mais na direçao dos argumentas de Almir a
prop6sito do futuro ameaçado da associaçao. Mas para, uma
vez cumprido seu compromisso de lealdade, terminar vo-
tando pela partilha, ja que é 0 vonlode do moiono. Sentimos
nesse discurso pretensamente conciliat6rio, um tom de alî'vio.
Aparecido nos parece cansado do papel que vinha assumindo
de "testa de ferro" de Almir na administraçao da associaçao. E
o nosso "her6i da luta pela terra", 0 nosso aventureiro atrelado
ao discurso militante esta s6, por enquanto.
Esta reuniao nos permitiu ver coma pode reagir um
poder estabelecido sobre a base da ideologia associativista
militante, desde que interrogado de maneira rigorosa e radi-

235
cal. 0 que surge aqui é a singularidade da pessoa que diri-
giu 0 processo de constituiçao do poder, desde 0 inicio da
formaçao da coletividade. 0 exercfcio do poder coma meio ~
de afirmaçao de seu eu, e a ideologia da associaçao como
mascara ou meio de chegar a seus fins. A denuncia dos ou-
tros como a rejeiçao de um "n6s" cujo princfpio de unifica-
çao nao seja um "eu" exacerbado. E, finalmente, a apariçao
sob os escombros do "eu", do egoismo. 0 aventureiro, pri-
vado do censo de sua vida, revela-se 0 que ele é: 0 parasita,
outrora soberbo, do militante (Sartre, J. P., 1950, pp 9 a 29).
Nossa presença nessa reuniao deu continuidade à criti-
ca das relaçoes de poder que se construiram em torno desse
lider carismatico, permitindo a revelaçao progressiva de
suas praticas e de seu discurso mistificador. E iniciando 0
processo de liberaçao, de um lado, dos submissos ou assisti-
dos que ele utilizava e que se deixavam utilizar. De outro
lado, de seus omigos, que mesmo beneficiados pelos seus
favores nao deixavam também de existir na dependência de
sua vontade absoluta. Sabiamos que esse processo estava s6
começando e que poderia entrar em retrocesso na hip6tese
da inexistência de uma mediaçao competente para assegu-
rar a transiçao que se esboçava. Mas aquecia-nos observar
que, mesmo esses produtores mais frageis e mais acomoda-
dos à situaçao de assistidos, desde que colocados em condi-
çôes favoraveis, começavam a afirmar seus projetos pessoais
e seus desejos mais profundos.
Dia 7 de novembro tem lugar a primeira das seis as-
sembléias gerais nas quais os associados resolverao 0 até en-
tao insoluvel problema da administraçao do parque de maqui-
nas da associaçao. Sao quatro meses de intensas negociaçoes
que começam. Nao sobrecarregaremos nossos leitores corn a
sutileza das observaçOes que pudemos fazer em todo esse
processo. Mas tentaremos reconstruir as situaçôes que conside-
ramos mais significativas para os objetivos do presente texto.
A primeira assembléia reune, na escola, a totalidade
dos chefes de familia. É 0 engenheiro que dirige a reuniao

236
do começo ao fim. E nos estamos presentes junto aos de-
mais, assim como a engenheira, sua esposa. Ele impOe, de
inicio, uma ordem formai à assembléia. Convidando os
coordenadores dos quatro grupos para comporem a mesa da
coordenaçao e estabelecendo as regras de praxe para os de-
bates: inscriçao para falar, tempo maximo das intervençOes
e tempo limite da reuniao - a unica regra que nao podenl
ser cumprida.
o engenheiro começa lembrando que essa assembléia
faz parte da programaçao que eles nos delegaram fazer, por
ocasiao da reuniao para discussao dos resultados de nossa
pesquisa, para encaminhar a soluçao dos infinitos proble-
mas ligados à administraçao do parque de maquinas da as-
sociaçao. Lembra também que sua intençao é dar continui-
dade a esse processo de enfrentamento organizado dos
problemas da associaçao, realizando a seguir reuniôes para tra-
tac da melhoria da produçao no assentamento. E sugere que
as discussOes se façam em duas etapas: a de saber se as maqui-
nas vao ser administradas no seio de cada grupo, ou se vao
continuar sendo administradas pela associaçao; e a de saber
como serao administradas num ou noutro caso. Propôe, enœo,
que cada coordenador exponha, a proposito da primeira ques-
tâo, 0 ponto de vista de seu grupo. Apos 0 que serao abertas as
inscriçOes para as intervençOes de todos os interessados.
o trabalho realizado através das reuniôes preparatorias
da assembléia, nos grupos, mostrou seus primeiros resulta-
dos positivos. As exposiçOes dos coordenadores foram obje-
tivas e eficazes, revelando 0 quanto a quesmo tinha sido
amadurecida. 0 coordenador do "grupo dos marginaliza-
dos", Olimpio, declara que sua decisao épela administraçao
nos grupos, mas que eles esœo preocupados corn 0 fato de,
sendo em numero de sete, poderem encontrar um meio de
ficar ao menos corn um trator e alguns implementos basicos.
Eles precisam ter corn 0 que trabalhar a terra, mas nao que-
rem lesar ninguém. 0 porta-voz do "grupo dos ;nd;v;duois"
nao pode perder a oportunidade de criticar os dirigentes da

237
associaçao e usa parte de seu tempo para lamentar 0 estado
crftico em que se encontram as maquinas. Mas para chegar
logo à conclusao de que, infe/izmenle, diante dessa situaçao,
o grupo pensa que a divisao das maquinas pelos grupos é
preferfvel, por permitir um melhor controle das lorifos de
monulençt'io. 0 coordenador do "grupo dos militantes" avan-
ça um pouco mais. Declara que todos optaram pela necessi-
dade de dividir as maquinas, exceçao feita ao caminhao e à
maquina de beneficiar arroz, que deverao continuar sob a
administraçao da associaçao. Finalmente, 0 coordenador do
ultimo grupo, 0 do presidente e do vice-presidente, expres-
sa, dentro de um nova arranjo, a divisao existente entre 0
lfder do grupo, Almir, e a quase totalidade de seus mem-
bros. Ele diz que para seu grupo ha varias proposiçOes: uma,
de mandar consertar todos os tratores e pensar uma nova
forma de administra-los na pr6pria associaçao. Nessa hip6-
tese as despesas corn os consertos poderiam ser pagas corn 0
dinheiro da venda do pequeno trator corn 0 quaI iniciaram 0
preparo de suas terras, mas que resta ocioso, desde que con-
seguiram financiar a compra dos quatro grandes e mais efi-
cazes. A segunda proposiçao é fazer esses mesmos concer-
tos e dividir os quatro tratores pelos grupos, mantendo 0
caminhao e a maquina de arroz na associaçao. Finalmente,
dividir os tratores no estado em que se encontram.
o engenheiro repete as quatro posiçoes que vêm de
ser expostas - a partilha de todas as maquinas, a partilha s6
dos tratores no estado em que se encontram, ou devida-
mente reparados e a manutençao da administraçao da asso-
ciaçao, uma vez que reparado todo 0 parque de maquinas.
Entào da a palavra à assembléia, segundo a ordem de inscri-
çao dos interessados. Abrem-se trocas cuidadosas para escla-
recer e interrogar as posiçoes apresentadas. 0 clima geral
das intervençoes épela partilha, e pouco a pouco eles se
dirigem para a dificuldade decorrente da desigualdade dos
grupos: treze, dez, nove e sete membros. Resistindo a en-
trar nesse clima, Aparecido, 0 presidente, coloca a questào

238
de saber 0 que ocorrenl corn a associaçao, uma vez feita a
divisao das maquinas. Afirma que ela vai desaparecer. AI-
guém, do "grupo dos militantes", lembra que esta sendo
partilhada apenas a administraçao das maquinas, naD a sua
propriedade, que, de acordo corn 0 regulamento, naD pode
ser transferida. Isso instaura um desconforto generalizado.
o quai Almir utiliza a seu favor, comentando que, corn esse
dispositivo regulamentar, a administraçao das maq uinas pe-
los grupos cria um risco que os associados nao devem correr.
E ele tenta concretizar seu argumento, explicando que se
um grupo naD se ocupa competentemente de seu trator, to-
dos os associados estarao sendo prejudicados, uma vez que
esse trator é de todos... 0 desconforto aumenta e comenta-
rios começam a se entrecruzar, revelando a frustraçao de
cada um frente à impossibilidade legal de ser proprietario
de seus instrumentos de trabalho.
A questao é complexa, e 0 engenheiro intervém, pro-
curando reconduzir à ordem a assembléia e explicando que,
de fato, 0 que se esta discutindo é a administraçao das ma-
quinas e naD a sua propriedade. Que a administraçao por
grupo significa, simplesmente, dar continuidade a algo que
na pratica ja se iniciou, uma vez que 0 usa dos tratores ja
esta dividido pelos grupos. Tratando-se agora, portanto, de
descentralizar também a responsabilidade pela manutençao
das mesmas. Condui, lembrando que 0 regulamento da as-
sociaçao foi elaborado por eles mesmos e prevê regras para
sua eventual alteraçao. Alguns apartes saD pedidos para re-
forçar esta possibilidade, e a reuniao retoma seu curso, atra-
vés da evocaçao da questiio da manutençao ou naD da admi-
nistraçao do caminhao e da maquina de arroz na associaçao.
o que significa, num outro ângulo, a preservaçao do direito
de usa de ambos por todos os associados.
É 0 momento oportuno para a expressao do sentimen-
to da quase totalidade dos produtores a prop6sito da impor-
tância que a associaçao tem para a coletividade. Eles que-
rem dividir os tratores, mas sentem 0 risco da fragilizaçao da

239
associaçao. Sobretudo porque a associaçao que conhecem é
esta que se constr6i sobre a propriedade coletiva do bem
comum. 0 clima é de uma certa angustia e de grande serie-
dade. Dm senhor idoso, um dos poucos independentes do
"grupo de Almir", faz um longo discurso a proposito da uni-
dade. Lembra a histOria da associaçao, concluindo que nos
niio devemos esquecer que tudo que nos temos aqui foi porque nos
éramos um povo unido. A seguir, lamenta a desuniao atual,
constatando corn tristeza que 0 estado de degradaçao dos
tratores se deve ao fato de eles terem sido recebidos prati-
camente de graça - foram comprados corn dinheiro em-
prestado pela Banco Nacional de Desenvolvimento, a ser
pago a longo prazo e sem correçao. - A gente niio dd va/or
para aqui/o que recebe de graço, sem esforço... Aproveitando isso
que parece ser um momento de hesitaçao da assembléia,
Aparecido, 0 presidente, volta a se opor à partilha dos trato-
res. Propœ que se sentem, os tTinta e nove, para repensar a
administraçao dos mesmos na propria associaçao. Seniio a as-
sociaçiio vai morrer e nos vamos começar a pisar uns nos outros...
A/ém do mois, quem sabe 0 que vai acontecer nos gT7Jpos.~ Quem
pode garantir que Iti serti me/hor?
Esse revigoramento do interesse pela associaçao nos
aparece coma positivo. Na verdade temiamos que 0 desper-
tar dos interesses individuais, depois de quatro anos de con-
tinuada violentaçao em nome da cousa, apagasse da memo-
ria desses produtores as tantas conquistas que conseguiram
por estarem unidos. Mas receamos também que essa emo-
çao coletiva os conduza, mais uma vez, ao nao enfrentamen-
to dos conflitos existentes na coletividade, esses mesmos
que, até agora impedidos de se manifestar, levaram a asso-
ciaçao à paralisia em que se encontra. 0 que, afinal, nao
acontece. Do "grupo dos individuais" surgem propostas para
se dividir apenas os tratores, mantendo 0 resta no seio da
associaçao, a fim de que ela possa sobreviver. Matias, do
"grupo dos militantes" e futuro presidente da associaçao,
intervém para falar das muitas possibilidades de desenvol-

240
vimento da associaçao - compra e venda de produtos, con-
tatos exteriores para a obtençao de novos subsidios, ete. -
e para reforçar a posiçao de seu grupo pela divisao dos trato-
res: nos jo tentomos duos odm;nistroçoes desde os tempos do
ocompomento... e nos MO consegu;mos oœrtor... Por que noo ten-
tor um outro com;nno? 0 coordenador do "grupo dos margi-
nalizados" intervém, final mente, para indicar que é hora de
passarem à negociaçao de fato. Nos queremos d;v;dir os troto-
res, mas noo é por isso que nos vomos obondonor 0 ossoaoçiio.
Nos noo queremos ocobor com 0 ossoaoçiio... Nosso an;co preo-
cupoçoo é que nos somos so sete e precisomos de um trotor e de
olguns ;mplementos... Nos queremos negoaor ;sso obrindo mOo do
d;reito 0 outras coisas...
o engenheiro toma entao a palavra para relançar a dis-
cussao das propostas em pauta: a administraçao dos tratores
pela associaçao ou pelos grupos e a manutençao do cami-
nMo e da maquina de arroz na associaçao ou a inclusao das
mesmas na partilha do parque de maquinas pelos grupos.
Feito isso, ele propoe que a votaçao se faça em duas etapas
e convida dois voluntarios para falar a favor e contra as duas
primeiras propostas. Trinta e quatro associados votam a fa-
vor da administraçao dos tratores pelos grupos. Seguindo 0
mesmo procedimento, a totalidade dos associados vota pela
conservaçao do caminhao e da maquina de arroz na associaçao.
Acertadas essas questôes, Olimpio volta à sua preocu-
paçao principal: a pequena dimensao de seu grupo e a in-
tençao do mesmo de noo renunaor 0 ter um trotor e olguns
;mplementos... A assembléia entra num processo de irritaçao
crescente. Abre-se uma discussao onde surgem propostas
diversas. Agressivas ou conciliadoras em relaçao ao coorde-
nador do "grupo dos marginalizados". 0 poder ameaçado
dos dirigentes da associaçao Ihe empresta as piores intençôes,
chamando-o de oportunista e acusando-o de estar lesando 0
interesse dos demais.
Diante da exaltaçao crescente dos ânimos, n6s decidi-
mos fazer ai nossa primeira intervençao. Lembrando a in-

241
tençao do grupo minoritario em negociar seus interesses e a
impossibilidade de iniciar essas negociaçôes antes que os
critérios da divisao das maquinas pelos grupos estejam defi-
nidos. Aiguns se manifestam apresentando sugestôes para a
definiçao desses critérios. Mas a questao é complexa, e 0
engenheiro propOe uma data para dar prosseguimento a
essa discussao.
Esta assembléia pode ser considerada um modelo de
pratica democratica, sob a direçao do engenheiro, devida-
mente auxiliado pelos representantes de todos os associa-
dos, os coordenadores dos grupos, e corn um encaminha-
mento marcado por regras previamente estabelecidas.
Através desse encaminhamento bem orquestrado, cada um
pôde avançar seus argumentos, e as decisOes foram tomadas
na transparência e no rigor. Vma unica reserva deve, entre-
tanto, ser considerada. É evidente que a adesao da quase
totalidade dos prod utores à descentralizaçao da administra-
çao dos tratores e respectivos implementos decorre da des-
crença generalizada na capacidade de gestao dos bens cole-
tivos por parte dos dirigentes. No entanto, a critica aos
mesmos ficou subentendida, nao emergiu corn a intensida-
de existente no espirito de cada um dos associados. Sempre
que ela se esboçou, a tendência foi de se escorregar para a
administraçao das maquinas pelos grupos, sem que se fizes-
se 0 julgamento da pratica da administraçao anterior.
Parece-nos que esse procedimento tem qualquer coisa
de necessario - "lavar a roupa suja" nesse exato momento
nao seria produtivo - e que ele é, ao mesmo tempo, signi-
ficativo. A recusa da maioria em adentrar essa critica revela
a convicçao sobre a irreversibilidade da situaçao: a descren-
ça definitiva na capacidade de recuperaçao dos dirigentes.
Mas essa atitude pode ter conseqüências negativas para a
dinâmica dessa pequena coletividade. Porque, sentindo-se
desacreditados sem explicaçao e, conseqüentemente, sem
direito a defesa ou justificaçao, esses dirigentes poderao
continuar dizendo que estavam certos e que foram sabota-

242
dos pelos outros. Mais do que isso, naD tendo sido interro-
gados diretamente na sua competência e no seu abuso do
poder, poderao desenvolver atitudes reativas e de ressenti-
mento. Nesse sentido, a agressividade do presidente para
corn 0 coordenador do "grupo dos marginalizados" nos pare-
ceu sintomatica. Nao estariam eles tentando, através da in-
validaçao de Ollmpio, criar uma nova unidade em torno de si
mesmos e, em decorrência, uma reconstituiçao de seu poder
pessoal? A assembléia seguinte nos esclareceria essa duvida.
A segunda assembléia, realizada no dia 21 de novem-
bro, conta corn a presença de trinta e três chefes de famûia.
Ela prevê a discussao dos critérios de divisao dos tratores e
de seus implementos pelos quatro grupos de associados.
Seu encaminhamento devera seguir as mesmas regras da as-
sembléia anterior.
A reuniao da manha começa corn um gesto teatral do
vice-presidente: mal instalada a seçao, ele pede a palavra,
avança em direçào à mesa da coordenaçao corn um papel na
mao e anuncia que esta pedindo sua demissao do cargo de
vice-presidente da associaçao. Segue-se um pequeno mo-
mento de silêncio. Nenhum comentârio, nenhuma reaçào.
Como se nada de importante tivesse acontecido, um
dos coordenadores de grupo propoe que antes de adentrar
os debates sobre a partilha das maquinas, seja aproveitada a
reuniao de todos para a discussao de alguns problemas cujas
soluçoes vêm sendo adiadas na associaçao. Do que se trata?
Da evidência de ma administraçao das coisas: ha os que ain-
da nao pagaram suas despesas de combustî'vel à associaçao
- um que nao paga ha quatro meses e oito devedores ha
dois meses; ha os que se comprometeram a dar meio saco
de feijao para 0 pagamento da dîvida à LBAe que ainda nao
o fizeram; ha os que nao pagaram as diarias dos tratoristas
que prepararam suas terras para 0 plantio e ha, finalmente,
os que nao pagaram 0 financiamento feito pela associaçao
para a compra de calcario. Como essas questôes naD dizem
respeito à programaçao na quai estamos engajados, 0 enge-

243
nheiro deixa a coordenaçao corn os representantes de grupo
que participam da mesa e, por mais de duas horas, assisti-
mos à reproduçao parcial do que se passava nas assembléias
regulares da associaçao. Cada um dos temas vai ser aborda-
do na maior ma-fé dos devedores e frente à inacredicivel
tolerância dos outros, coma se temessem aprofundar a bre-
cha existente entre eles, ou coma se cada um fosse detentor
do conhecimento de alguma falha inconfessavel do outro...
É verdade que a ordem das intervençoes é mantida e que,
desta feita, 0 discurso manipulador do vice-presidente, ou
de alguns de seus prepostos, nao se faz ouvir.
N6s acompanhamos essas discussOes perplexos corn a
indiferença de todos diante do pedido de demissao de AI-
mir. Entendemos que, criticado indiretamente pela maioria
absoluta que na assembléia anterior optara pela partilha das
maquinas e, conseqüentemente, condenado a nao poder se
defender, ele nao tinha tido nenhuma oportunidade de ser
reconhecido nas suas qualidades. Nesta circunstância, resta-
va-Ihe a saida honrosa de se demitir. 0 que nos soava coma
uma reproduçao, desta vez às avessas, dos mecanismos de
invalidaçao através dos quais a unidade desses produtores
costumava se definir e redefinir. E se essa nossa hip6tese
era verdadeira, 0 nosso aventureiro-militante nao s6 nao te-
ria condiçoes de fazer sua necessaria autocritica, coma volta-
ria a agir em busca do reconhecimento do seu poder pes-
soal. la nao observamos que esses mecanismos de invalidaçao
sao circulares?
Ao meio-dia deve começar a ser discutida a quesœo da
partilha das maquinas. Mas, jâ sob a coordenaçao do enge-
nheiro, a reuniao envereda pela proposta de um dos repre-
sentantes de grupo sobre os meios para se ir buscar 0 cami-
nhao da associaçao, que esta quebrado ha mais de um mês e
a 400 km de la. 0 que ilustra ao maximo a ma administraçao
do bem comum pela associaçao. E às 16,30 h é retomada,
enfim, a discussao programada na assembléia anterior. Que
vai durar até as 22,30 h.

244
o problema da definiçao de critérios para essa partilha
é bastante complexo. Ha a ja mencionada heterogeneidade
dos grupos. E ha 0 estado em que se encontram os tratores,
necessitados de investimentos maiores ou menores, para se-
rem reparados. Para contornar esse problema é sugerido um
sorteio. Mas muitos nao concordam, e isso nao resolve 0
problema das diferenças dos grupos. Aigumas tentativas de
atribuir um valor aos implementos sao feitas, de modo a asse-
gurar corn eles a necessaria igualdade entre todos os associa-
dos. Mas seria necessacio avaliar também os tratores, e camo
fazê-Io? QuaI a relaçao posslvel entre 0 preço de compra e 0
preço de venda? Camo avaliar 0 desgaste maior ou menor das
maquinas? 0 custo dos concertos a serem providenciados?
Permeando todas essas discussOes esta sempre a difi-
culdade existente corn 0 grupo de sete. A do grupo de tre-
ze, a grupo de Almir, parece facilmente resolvida corn uma
proposta dele mesma, falando pela primeira vez depois de
seu pedido de demissao no inicio da man ha, de atribuir ao
grupo 0 pequeno trator que sobra, 0 quinto trator. À medida
que as discussoes prosseguem, sem via de soluçao se anun-
ciando, 0 "cerco" sobre 0 grupo de Olimpio cresce. A tal
ponto que ele, silencioso até aquele momento, se inscreve
para falar. E coma quem tem um trunfo até agora escondi-
do, vai, calmamente, expondo sua proposta: eles sabem que
san poucos; entendem que a divisao de tudo devera ser fei-
ta respeitando 0 direito igual de cada um sobre 0 conjunto
das maquinas que seran divididas; nao querem, entretanto,
se ver privados de um trator e dos implementos basicos,
sem os quais teriam muita dificuldade de cultivar suas ter-
ras; conversaram muito e conclulram que a ûnico meio de
assegurar esse minima, do quaI nao padern abrir mao, é re-
nunciar à parte que lhes cabe no caminhao e na maquina de
arroz, que continuarao sob a administraçao da associaçao...
Essa proposta inesperada gera um momento de silên-
cio na assembléia. Como que prevendo complicaçoes, Rai-
mundo, 0 companheiro de militância cat6lica de Olfmpio,

245
do "grupo dos militantes", pede a palavra e faz um longo
discurso lembrando que ali todos devem considerar-se irmaos,
que nao se trata de passar ninguém para tnis, mas também
eles nao devem esquecer-se de que saD todos irmaos... Era a
nota que faltava para que os ânimos se exaltassem. E é AI-
mir que volta à cena, ao que tudo indica, revigorado. Ele
começa cauteloso. Pensou, de inkio, que nao seria justo
que 0 grupo de Olfmpio nao tivesse um trator... Depois,
falando corn os componheiros, foi percebendo que também
nao seria justo que eles tivessem mois do que os outros... que,
por outro lado, essa idéia de renunciar ao caminhao parecia
muito mais umo jogodo, uma vez que eles mesmos declara-
ram desejar participar da associaçao... e, afinal, corno partici-
par da associaçao sem ter direito ao uso do caminhao? Ou da
maquina de arroz?
Lançada a suspeita sobre a honestidade dos sete, os
ataques se sucedem. Sua intençao original de indenizar os
demais corn base no preço do custo dos tratores é lembrada,
e 0 tumulto ameaça se instalar. 0 engenheiro tenta organi-
zar a discussao, lembrando que a avaliaçao do equipamento
ainda nao foi feita e que, assim sendo, é impossfvel saber
corn precisao se 0 que 0 grupo esta propondo é justo ou
injusto. Alguns dos participantes trocam idéias a prop6sito e
propôern que 0 casai de engenheiros faça uma pesquisa de
preços para que eles possam, afinal, proceder às negociaçOes.
A proposta é aceita corn a condiçao exigida pelos engenhei-
ros, de dois dos associados os acompanharem nas pesquisas.
A apresentaçao desta lista de preços devera dar infcio à pr6-
xima assernbléia. Ela permitira avaliar 0 valor total do equi-
pamento e, por conseqüência, a quota de cada associado.
Sobre 0 que serao feitas as negociaçôes.
Para encerrar a reuniao, faltava a decisao sobre a viabi-
lidade da proposta de Olfmpio. Isto é, sobre a possibilidade
de seu grupo negociar um trator usando 0 direito de uso do
caminhao e da maquina de arroz da associaçao. 0 clima de
tensao ressurge. A desconfiança é grande. Almir retoma seu

246
discurso demag6gico. Dividido entre a defesa do direito
igual de cada um e as ameaças feitas por ocasiao da reuniao
do seu grupo, sobre recorrer à Justiça se perceber que esta
sendo lesodo, um pouquinho que sejo. Nao perde a oportunida-
de também de atacar OIlmpio, que, curiosamente, nao se
exalta um s6 momento. Esboça-se a possibilidade de uma
unificaçao dos trés grupos maiores contra 0 grupo de sete.
N6s nos interrogamos sobre a conveniéncia de uma inter-
vençao nossa. Mas a serenidade e objetividade de Olimpio
vai resolvendo 0 impasse. Imperturbavel, ele vai respon-
dendo às duvidas da platéia e demonstrando que sua pro-
posta é justa, uma vez que as referidas maquinas, que até
entao pertencem aos trinta e nove associados, passarao a
pertencer apenas a trinta e dois, aumentando a quota de
cada um. E que des serao sete a pagar os serviços dessas
maquinas, 0 que aumentanl a entrada de dinheiro para a
manutençao das mesmas, etc. Finalmente, que tudo isso
deveni ser calculado rigorosamente, incluindo-se nas listas
de preços 0 valor dessas duas maquinas... Esgotada essa ar-
gumentaçao, 0 engenheiro coloca a proposta em votaçao, e
ela ganha por significativa maioria. Trés ou quatro se abs-
rem, dois ou trés votam contra. 0 impasse parece resolvido.
A assembléia durou 0 dia inteiro e parte da noite. A
manutençao das regras de funcionamento, a partir do mo-
mento em que 0 engenheiro assumiu a coordenaçao, nao foi
facil. Comparada à primeira assembléia, esta foi mais repre-
sentativa das dificuldades que essas pessoas encontram para
se relacionar enquanto cidadaos. Grande parte das discussOes
se fez a partir de intençôes emprestadas a uns e outros. 86 a
intervençao firme do engenheiro, evidentemente apoiada
no nosso silêncio participativo, conseguiu trazer a discussao
para 0 pIano objetivo dos direitos de cada um. As interven-
çôes mais objetivas eram, muitas vezes, dirigidas a n6s, os
pesquisadores. A tranqüilidade de Olimpio, por e.xemplo,
nutria-se de nossa presença. N6s desconhecfamos, até en-
tao, a sua proposta, mas de a defendia olhando para n6s.

247
Assim coma resistia a qualquer tentaçao de entrar nas pro-
vocaçàes de Almir, coma que imitando nossa pr6pria sereni-
dade. Mais tarde nos agradeceria por isso que viveu coma
sendo nosso "apoio"... Por outro lado, essa assembléia reve-
lou também corn maior clareza os caminhos do aprendizado
necessario por parte desses trabalhadores. Confrontados
corn os limites de seu proprio saber - 0 desconhecimento
dos preços do equipamento e dos meios para obtê-Ios - ,
e1es, desta vez, nao recorreram a improvisaçoes. Demanda-
ram a assessoria do saber dos engenheiros. E, no limite, aca-
baram tomando todas as decisoes apoiados no prindpio da
igualdade e no respeito aos direitos de cada um.
No contexto geral dessas reflexàes, 0 que mais nos
chamava a atençao era a nova tentativa de Almir de retomar
o poder junto ao coletivo, unindo a maioria a partir da inva-
lidaçao de Ollmpio e seu grupo. E, em contrapartida, a ca-
pacidade desse grupo de, nas condiçoes de livre exercicio
de sua palavra e de defesa de seus direitos, romper corn 0
circulo vicioso da unificaçao construlda sobre os habituais
mecanismos de invalidaçao. Nosso pape! mediador nesse
processo, coma asseguradores das regras de negociaçao de-
mocratica, evidentemente necessario. Tudo nos levando a
crer que 0 poder ameaçado dos dirigentes nao cessaria al
suas tentativas de se manter tal coma estava constituldo. A
autocritica à quai pretendlamos leva-los dependia do quan-
to a coletividade fosse capaz de contesta-los.
A terceira assembléia geral, realizada no dia 6 de de-
zembro, também tomou todo 0 dia e adentrou 0 começo da
noite. E também teve inicio corn questoes pendentes da
associaçao: 0 pagamento do conserto do caminhao, ja trazido
para 0 assentamento; os conflitos em toma dos animais de
alguns, que, deixados soltos, pisoteiam as roças de seus vizi-
nhos, e 0 problema de um dos associados que nao mora no
assentamento, contrariando as regras, do contrato feito corn
o Estado, e que deveria ser e1iminado, cedendo seu lote
para alguma outra famHia necessitada...

248
Quando a questao da partilha das maquinas é retoma-
da, uma informaçao inesperada: 0 coordenador do "grupo
dos individuais" anuncia que, dali em diante, eles san dez e
naD apenas nove. Om dos participantes do grupo de Olfm-
pia passou para seu grupo. Reduzindo ainda mais a capaci-
dade de negociaçao daquele, que passa de sete para seis
membros. Novas complicaçOes se anunciam. Sabendo disso,
o engenheiro apressa-se em apresentar 0 levantamento feito
dos preços detalhados do equipamento em negociaçao.
Tudo indicando que as tensOes inevitaveis se resolverao so-
bre 0 critério objetivo do "poder de compra" de cada asso-
ciado. Mas 0 coordenador do "grupo dos militantes" pede a
palavra para dizer que ha uma questao naD resolvida na as-
sembléia anterior, que precisa ser discutida. Trata-se da par-
ticipaçao do grupo de Olimpio na associaçao, uma vez que
ele consiga negociar seu pr6prio trator renunciando a sua
parte no caminhao e na maquina de arroz da associaçao.
Essa intervençao nos surpreende, ja que entendiamos
que tudo a esse respeito estivesse resolvido. Desde a pri-
meira assembléia, Olimpio declarara a intençao do grupo de
continuar participando da associaçao, e do pr6prio "grupo
dos militantes" surgiram intervençi5es calorasas no sentido
de ampliar as funçOes da associaçao, que indevidamente vi-
nha sendo confundida corn a mera gestao do parque de ma-
quinas. Mas este é 0 espaço da racionalidade possivel num
momento dado. E 0 momento agora é outra. A proposta do
militante-coordenador é de que esse grupo seja excluido da
associaçao. E a ira crescente de seu discurso, acusando
Olimpio de oportunismo, seguida da ira de outros compo-
nentes de seu grupo e do pr6prio Almir, apoiado mais uma
vez pelo presidente da associaçao, deixam clara que a ten-
tativa de unificaçao dos três grupos contra 0 "grupo dos
marginalizados" seguiu seu curso ap6s a ultima assembléia.
A transferência de um dos membros deste ultimo grupo
para 0 "grupo dos individuais" compondo esse quadro. Corn
essa "manobra", sao agora dois grupos de dez e um de tre-

249
ze. Uma das propostas é de que os seis restantes se dividam
entre os grupos de dez, de modo a formar três grupos de
treze... Mas é a virulência das agressoes surgidas de todos os
cantos a recair sobre Olimpio que nos chama a atençao... A
tal ponto, que nos sentimos obrigados a intervir.
Como até agora nao nos tfnhamos pronunciado direta-
mente sobre essa questao, nossa simples inscriçao para falar
reconduziu à ordem a assembléia. Um grande silêncio se
fez, e nos pudemos desnudar, no calor da hora, 0 jogo ao
quaI todos estavam habituados. Mostrando que 0 empenho
do grupo de Olimpio em negociar seus proprios direitos
ameaçava 0 absolutismo do poder até entao constitufdo no
assentamento. E, ao mesmo tempo, dava uma oportunidade
aos dirigentes, que nao se dispunham a se autocriticar e a se
assumir enquanto poder democnitico, de se aliar à maioria e
continuar reinando Que era este 0 oportunismo que po-
dfamos enxergar ali Aproveitamos para deixar mais clara
nossa crftica iniciada por ocasiao de nossa reuniao-relatorio
e para insistir que nao tfnhamos nenhuma intençao de con-
tribuir para a invalidaçao das lideranças existentes no grupo,
mas que entendfamos que ja era hora de essas lideranças
passarem a se exercer enquanto tais. 1sto é, colocando suas
capacidades a serviço do interesse da maioria, ete, etc. Para
o que eles precisavam rever suas velhas praticas e seus ve-
lhos vlcios. Trazidos, seguramente, das relaç6es que todos
eles viveram antes de se unirem para a conquista da terra...
E responsaveis, em 6ltima analise, pela desuniao a que to-
dos se referiam falando do assentamento e da associaçao...
Curiosamente, essa era a parte de nossas anâlises que mais
parecia interessar a todos. Eles pareciam se reconhecer no
que falavamos e balançavam a cabeça positivamente.
Terminada essa avaliaçao do que se estava passando,
consideramos que a questiio da composiçao dos grupos ja
tinha sido suficientemente discutida e resolvida nas reuni6es
anteriores, so devendo voltar à pauta no caso de parecer in-
teressante ao grupo de OHmpio, que se via em situaçao

250
mais difi'cil do que ja estava corn a salda de um de seus
membros. E finalizamos dizendo que, a nosso ver, tratava-
se, agora, simplesmente de votar 0 direito desse grupo de
continuar participando da associaçao, ja que a renûncia do
mesmo ao direito de uso do caminhao e da maquina de ar-
roz criava, corn efeito, um fato novo para a associaçao. No
mais, tratava-se de dar inkio às negociaçoes sabendo que os
critérios estavam bem definidos e que, portanto, ninguém
teria chance de Iesar ninguém.
OIlmpio rompeu 0 silêncio que se criara apos a nossa
fala. Para reafirmar que seu grupo nao tinha intençao de se
dissolver pelos outros e que estava preparado para as nego-
ciaç6es que se sucederiam. 0 engenheiro abriu entao 0 de-
bate sobre a questao da participaçao do grupo na associaçao.
OIlmpio defendeu seu interesse apoiado na coerência de
seu discurso sobre a uniao e a igualdade na fraternidade.
Outras defesas de sua posiçao surgiram. Em especial a de
seu companheiro de militância catolica, do "grupo dos mili-
tantes" e a de seu Chico, 0 senhor idoso independente do
grupo de Almir. Falando da importância de continuarem
unidos, e1e retomou uma frase que ja nos tinha falado ou-
tras vezes. Eu sempre folo, nos jti consfro(mos umo picodo. De-
vogor podemos fozer desso picotlo umo rodovio. As lideranças
permaneceram silenciosas, e 0 coordenador colocou a ques-
tao em votaçao. Maioria absoluta pela continuidade do gru-
po na associaçao. Rompia-se, desta feita, a velha pratica de
exclusao dos que resistiam a submeter-se à vontade absolu-
tista das lideranças. 0 que era bastante significativo, consi-
derando a historia do assentamento coma um todo: primei-
ramente a exclusao originaria e constitutiva dos que nao
q ueriam morar na agrovila, os individuois, alocados em seus
proprios lotes em acea contlgua à dos lotes da agrovila. De-
pois, a exclusao de um grupo desses individuois que havia con-
seguido sua participaçao na associaçao, nao obstante morarem
em seus proprios lotes. A autonomia do grupo no tocante à defi-
niçao das regras de uso do equipamento coletivo inviabilizou

251
sua permanência na assOClaçao. E agora, no bojo da propria
agrovila, um nova grupo corria 0 risco de ser excluido.
Iniciam-se a seguir as negociaçoes programadas. Que
tomarao toda a segunda parte desta terceira assembléia e
mais três outras, realizadas em janeiro, às quais nao pude-
mos assistir. Soubemos, entretanto, que apoiadas sobre cri-
térios objetivos aprovados pelos associados, elas puderam
desenvolver-se sem maiores dificuldades. Ao grupo de
Olimpio coube um trator em bom estado, mas nenhum im-
plemento. Era a regra do jogo, e 0 grupo nao nos pareceu
abalado quando do nosso retomo ao assentamento. Tinha
encaminhado um pedido de financiamento, assessorado
pelo engenheiro, para compra desse equipamento e preten-
dia funcionar alugando os implementos dos outros grupos,
até que os seus proprios fossem comprados. 0 grupo de AI-
mir, dos treze membros, recebeu 0 trator menor coma dife-
rencial a que tinha direito.

252
Conclusao
Intervençao alienante e mediaçao
libertadora

Chegamos ao final desse trabalho um tanto perplexos


corn as possibilidades de intervençao que nossa prâpria pra-
tica nos havia criado no assentamento. É certo que havla-
mos programado, cuidadosamente, a relaçao que procurarî'a-
mos desenvolver corn cada uma das pessoas dessa pequena
coletividade. Partindo da importância do desenvolvimento
de relaç6es democraticas, ou de igualdade, entre elas e ten-
do em vista a transformaçao das mes mas em cidadas cons-
cientes de seus direitos e capazes de se organizar politica-
mente para a defesa dos mesmos. E também é certo que
sablamos, pela menos teoricamente, dos desdobramentos
posslveis dessa intervençao programada. Sablamos, por
exemplo, que a experiência de uma relaçao de igualdade
vivida conosco poderia abrir, para cada uma dessa pessoas, a
possibilidade de relaç6es novas e de igualdade entre elas
mesmas e corn os demais agentes externos. Mas nao prevla-
mos a intensidade corn que isso se produziu. Sobretudo,
nao prevfamos que nossa posiçao de defesa da autonomia
das pessoas, pela via da interrogaçao da dominaçao na quaI
elas estavam presas, se transformaria numa forte presença
nossa na situaçao de assentamento. Ou, sob um outro ângu-
10, que nossa relaçao de reciprocidade corn a quase totalida-

253
de dessas pessoas seria tal que acabaria nos investindo do
poder de criar relaçoes novas entre elas.
Ora, assim ampliado e redefinido nosso campo de in-
tervençao, nossa responsabilidade no desenrolar dos aconte-
cimentos nos colocava um desafio maior: 0 de evitar transfor-
marmo-nos numa encarnaçao dos "senhores" ou dominadores
que combatiamos. De modo a fazer corn que, sob essa pre-
sença, pudesse irromper a lei democratica que deveria reger
as relaç6es entre todos os membros da coletividade.
Retomamos a seguir, de maneira sintética, os caminhos
da reflexao que nos levaram a encontrar uma saida positiva
para este desafio. Esta reconstruçao nao pretende ser mais
do que um ensaio, uma vez que resistimos à tentaçao de
utilizar conceitos de campos te6ricos corn os quais temos
antigas afinidades, mas que nao saD os nossos\O. Sem, entre-
tanto, podermos deixar de recorrer às importantes contri-
buiçoes que eles nos oferecem para a maior aproximaçao da
realidade estudada. N6s procuramos resolver essa tensao
criada pelo carater necessariamente interdisciplinar de nos-
sas analises recorrendo 0 mais possivel a nossa experiência
concreta. De modo a oferecer ao leitor os referenciais de
realidade sobre os quais nos apoiamos para refletir sobre 0
que vivemos coma uma espécie de experimentaçao.
o ponto de partida de nossas reflexoes saD as questoes
corn as quais nos surpreendemos em nossa trajet6ria de pes-
quisa-intervençao. Como explicar a confiança que cada uma
das pessoas do assentamento nos depositava? Como e em
que medida essa confiança nos investia do poder de exercer
o papel de mediadores de novas relaç6es sociais entre elas?
E quais eram, precisamente, as exigências dessa mediaçao,
tendo em vista a emergência, na situaçao de assentamento,
de relaçoes sociais construidas sobre a autonomia das pes-
soas? Ou, em outras palavras, coma evitar 0 risco de nos ver
transformados no p610 dominador das relaçoes de domina-
çao das quais essas pessoas deviam libertar-se? Evitando 0

254
risco de que se alienassem a n6s, transferindo-nos responsa-
bilidades que s6 poderiam ser suas?
A resposta a essas questOes nos é sugerida pela reto-
mada sistematica dos recursos metodol6gicos adotados na
nossa pratica de conhecimento-intervençào. Três momentos
principais devem ser considerados: 0 momento do primeiro
contato corn a coletividade, 0 momento do encontro de cada
pessoa na associaçào e na familia, e 0 momento das relaçoes
corn a coletividade no seu conjunto.
Quando entramos em contato corn 0 coletivo das trinta
e nove famflias reunidas na associaçao, n6s ja sabemos um
certo numero de coisas. Sabemos que existe uma certa or-
dem na associaçao e nas relaçOes entre as famflias associa-
das. E sabemos que esta ordem determinara a forma pela
quaI todas as pessoas do assentamento vao nos perceber e
receber. No que se refere à associaçao, n6s nao sabemos
exatamente quaI é esta ordem, mas sabemos que ha uma
experiência de criaçao de um modo de organizaçao da pro-
duçao de tipo semicoletivista, sob uma direçao militante de
ideologia socialista~oletivista e cat6Iica-comunitaria. Dra,
enquanto personalidades vindas do exterior e introduzidas
no assentamento pelos componheiros, n6s s6 podemos ser
percebidos como pessoas que "têm a ver" corn a ordem rei-
nante no seio da coletividade, ou como representantes des-
sa ordem. Em conseqüência, sem nenhuma precauçao de
nossa parte, n6s seremos tomados, de um lado, pelos agen-
tes militantes intervenientes e pelos militantes dirigentes
da associaçào como seus aliados, gente nosso. De outro lado,
seremos tomados pelos nao militantes ou contestatarios da
forma de militância existente também como representantes
da ordem militante, gente deles. Desta maneira, 0 jogo de cada
um em relaçâo a n6s sera determinado pela sua posiçao nas
relaçOes de força constitutivas da coletividade. Isto é, os diri-
gentes procurando se legitimar aos olhos dos dirigidos através
de n6s, e os dirigidos procurando se legitimar aos nossos olhos,
enquanto conformes ao modelo encarnado pelos dirigentes.

255
Da mesma forma, no que se refere à ordem existente nas
re1açOes entre as pessoas na famllia e entre as famllias, nos
sabemos que seremos percebidos e recebidos, também al,
enquanto garantia dessa ordem. Nos somos um casaI urba-
no, de uma certa categoria social, que demonstra, através de
sua maneira de vestir, de falar e de ser, todo um quadro com-
portamental, pertencer às "pessoas de bem". E nos seremos
também al vistos coma representantes dessas pessoas.
o que esse nosso saber significa? Significa que se nos
estabe1ecemos uma comunicaçao corn as pessoas, enquanto
participantes da comunidade constitulda entre e1as em
nome de uma causa partilhada em cornum, nos ratificamos a
ordem existente no seio da coletividade. E nos confirma-
mos, aos olhos de cada uma delas, a representaçao que e1es
têm de nos. Colocando-nos numa logica de somatoria ou
agregaçao que é conservadora das re1açoes internas da cole-
tividade. E adotando uma forma de encaminhamento do
nosso trabalho que nao estaria nem conforme às nossas exi-
gências de conhecimento nem conforme às nossas exigên-
cias de intervençao. Assim sendo, tlnhamos que adotar uma
posiçao diferente, em ruptura corn a representaçao que to-
dos tenderiam a se fazer de nos mesmos: nos nos recusamos
a entrar na atmosfera simbiotica do companheirismo, tendo
coma objetivo 0 desenvolvimento de uma forma de comuni-
caçao construlda sobre 0 principio da igualdade de cada um
diante de nos no direito de se exprimir, submetendo-nos, nos
mesmos perante e1es, a este prindpio ou lei comum.
Nesse momento de nossos contatos iniciais corn a cole-
tividade, entretanto, nossa recusa à linguagem do compa-
nheirismo so pôde expressar-se pela nosso silêncio e pela
nossa dedaraçao de intenç5es. Nos observamos passiva-
mente os acontecimentos que reunem pessoas envolvidas
corn os interesses do comunidode e nos apresentamos, à asso-
ciaçao e a cada uma das pessoas, coma portadores de uma
unica certeza: a de que as soluçôes para os problemas que
elas vêm enfrentando dependem da capacidade que e1as ti-

256
verem de dialogar, ou trocar idéias, sobre as necessidades
ou objetivos de cada uma. De que 0 interesse coletivo se
construira a partir do encontro e da negociaçao dos interes-
ses individuais, ou naD se construira.
Mas n6s conhecemos os limites dessa observaçao pas-
siva e desse discurso abstrato. E acreditamos que eles s6
poderao ser ultrapassados na pratica das relaçoes ou do en-
contro que pudermos estabelecer corn cada um dos produ-
tores associados e corn cada uma das pessoas de suas fami-
lias. 0 segundo momento de nossa pratica de intervençao,
programada para 0 desenvolvimento do que chamamos de
dialogo critico.
Como se apresenta esse dialogo critico no nosso traba-
lho? Ele é construido em torno de três procedimentos indis-
sociaveis: uma escuta informada por nossa concepçao das
re1açOes entre as pessoas, um questionamento em acordo corn
essa concepçâo e uma atençao rigorosa no sentido de re-enviar
as pessoas a e1as mesmas nas suas re1açOes corn as outras.
Na pratica, essa escuta significa uma certa maneira de
entender aquilo que nos dizem. Tendo coma hip6tese a
existência, na situaçao de assentamento, de re1açoes estra-
nhas àquelas democraticas que estamos propondo, n6s en-
tendemos, no discurso dos dominadores ou dos dominados,
de uma parte, a expressao do jogo de poder que reproduz as
relaçoes existentes. De outra parte, a expressao dos confli-
tos que esse mesmo jogo oculta ou impede que se manifes-
tem. Conflitos que contêm as possibilidades da superaçao
dessas mesmas re1açOes ou, em outras palavras, de recria-
çao das relaçoes de dominaçao em relaçoes de igualdade, ou
democraticas - os termos em presença, dominantes e do-
minados se encontrando numa nova unidade no movimento
de totalizaçao.
Assim, no pIano de nossa intervençao junto a cada um
dos produtores da associaçao, nossa escuta é duplamente
se1etiva. Ela busca, de um lado, os discursos que expressam
os mecanismos de reproduçao do poder constituido, os dis-

257
eursos que devem ser interrogados. No discurso do militan-
te, ela entende a alienaçao, que se manifesta coma defesa
de uma causa em detrimento do reeonhecimento de eada
um dos produtores assoeiados. No diseurso da ajuda aos in-
capazes ou assistidos, ela entende a dominaçao exereida atra-
vés de vineulos de favor e de subserviência. Nas expressoes
de "eamaradagem", ela entende a eumplicidade e 0 oportu-
nismo. E, da mesma maneira, no diseurso dos nao militantes
eiosos de sua propria individualidade, ela entende 0 uso das
vantagens da eoletividade sem 0 eompromisso das obrigaç6es
que Ihes eorrespondem. E no diseurso dos dependentes ou
"assistidos", ela entende também a alienaçao e 0 oportunismo.
De outro lado, nossa eseuta busca também os diseursos
que expressam as possibilidades da superaçao das relaçoes
de dominaçao existentes. Aqueles que deverao ser fortaleei-
dos para se contrapor aos diseursos legitimadores do jogo de
poder constituido. Grosso modo, os discursos que eneami-
nham a necessaria artieulaçao entre a autonomia das pessoas
e a eooperaçao no assentamento - base, aos nossos olhos,
do bom desempenho ou da efideia da associaçao. Trata-se,
quase sempre, de discursos fragmentados, que aparecem
sob a forma de autocritiea, nos dirigentes ou militantes e
sob a forma de resistêneia solitaria ou critica ressentida, nos
dirigidos ou excluidos do poder.
É da interrogaçao desses diferentes discursos que se
constroi 0 dialogo critico ao quaI nos referimos. Dialogo di-
ficil, sem duvida. Especialmente porque seu objetivo é esti-
mular a critica que eada um de nossos interlocutores é capaz
de fazer. Evitando, a qualquer custo, que ele se aliene dian-
te de nosso proprio discurso e, portanto, de nos mesmos: a
atençao relativa à necessidade de reenviar as pessoas a elas
mesmas nas suas relaçoes corn as outras. E nesse particular
nosso proprio discurso, necessariamente transparente, é sem-
pre a nossa maneira de ver e pretende ser entendido coma
mera interrogaçao da maneira de ver de nosso interlocutor.

258
o encaminhamento desse dialogo crîtico junto a cada
familia e a cada pessoa na familia é mais complexo. Porque
ele visa à descoberta do segredo da inércia dessas pessoas e
dessas familias do ponto de vista da abordagem, enquanto
grupo, dos problemas que Ihes saD comuns. Isto é, ele visa à
descoberta das relaçOes existentes entre essas pessoas e que
as impedem de se encontrar para se unificar contra tudo
que pesa sobre elas, ou que as oprime.
Neste sentido, nossos pressupostos saD as conhecidas
proposiçoes sobre 0 carater inercial dos efeitos da moral so-
cial dominante em nossa sociedade e sobre a maior vulnera-
bilidade relativa dos setores populares ou dominados a es-
ses efeitos. E nossa hip6tese, a de que esses comportamentos
inerciais reproduzidos no quotidiano do assentamento con-
tribuem grandemente para a reproduçao das relaçoes de do-
minaçao que pretendemos ver transformadas em relaçoes
democraticas, entendidas aqui coma livre comunicaçao e li-
vre encontro entre pessoas autônomas. Mas a observaçao e a
interrogaçao desses comportamentos e dos discursos que Ihes
correspondem saD mais diffceis. Elas dependem de um olhar
mais sutil e de mais tempo. E nos as empreendemos sempre
habitados por algumas incertezas e corn muita precauçao.
Refletindo sobre nossa pratica e seus efeitos benéficos
à transformaçao dessas relaçoes, nos descobrimos diferentes
tempos de observaçao e de intervençao.
o primeiro tempo é aquele onde 0 observador, encon-
trando cada familia e cada pessoa na famîlia, se acha coloca-
do num jogo microssocial do quaI querem fazê-lo ator. Este
jogo microssocial é um processo no quaI cada pessoa ou
cada familia é juiz ou é julgada pelas outras. Nesse processo
de julgamento, que resulta na invalidaçao de uns pelos ou-
tros, 0 observador se vê colocado no papel de juiz da situa-
-microssocla
çao ' . 111
.
Num segundo tempo, que é 0 dos encontros sucessi-
vos corn as mesmas pessoas e as mesmas familias, é um ver-
dadeiro jogo de invalidaçao circular "tournante" que é dado

259
ao observador assistir. Os jUlzes de ontem tornando-se os jul-
gados de hoje, e estes, os jUlzeS de amanha.. É claro que esta
estrutura de relaçœs encerra 0 segredo da inércia que preten-
demos conhecer ou, na pflltica, da justaposiçao das pessoas e
das famllias. Na sucessao desses encontros observa-se a aflf-
maçao de cada pessoa ou famûia pela expressao de sua confor-
midade a um modelo de comportamento ou a papéis de "pes-
soas de hem". E observa-se 0 encolhimento daquelas que saD
julgadas, numa atitude de culpabilidade e de ressentimento.
Corn relaçao à primeira situaçao microssocial, nossa ati-
tude inicial é de observaçao passiva. 0 sentido dessa atitu-
de é a critica do positivo tomado coma referência pelas pes-
soas que julgam as outras. Suas expectativas saD a de serem
reconhecidas por nos através desse positivo que nos encar-
namos aos seus olhos. E nosso silêncio, a recusa deste jogo
e deste reconhecimento.
No que se refere à segunda situaçao microssocial, de
invalidaçao circular, nossa atitude é mais ativa. Trata-se,
num primeiro tempo, de valorizar corn uma atençao espe-
cial as famIlias tendencialmente invalidadas pelas "famllias
de bem", freqüentemente identificadas corn as famIlias dos
dirigentes e dos militantes. Corn essa atitude, começamos a
interrogar as praticas de invalidaçao dessas famIlias. Relati-
vizando 0 negativo a partir do quaI os julgados se sentem
culpados e, conseqüentemente, interrogando 0 positivo a
partir do quaI sao feitos os julgamentos. Entretanto, na me-
dida em que os julgados de hoje se transformam nos jUlzes
de amanha, nossa atitude procura ir além. Iniciando 0 dialo-
go critico programado e informado, agora, pela escuta que
entende as sutilezas desse jogo nos discursos de autovalori-
zaçao e de ressentimento.
Os efeitos dessas nossas praticas de intervençao naD se
fazem tardar. Liberadas desse positivo que transforma a to-
dos em jUlzes e julgados, ou da mascara da conformidade
aos papéis sociais esperados de cada uma das pessoas, todas
elas começam, pouco a pouco, a se abrir para a possibilidade

260
de uma palavra sobre si mesmas. 0 encontro conosco se
fazendo através de uma troca permanente de idéias sobre as
situaçôes vividas quotidianamente pelos nossos diferentes
interlocutores. Nesta troca, n6s nao cessamos de questionar
os valores da moral social dominante, que entendemos esta-
rem impedindo as pessoas de ver juntas os problemas que
lhes sao comuns e, portanto, de abordar conjuntamente a
resoluçao desses mesmos problemas. E nao cessamos de in-
terrogar os valores que as separam umas das outras pelos
mencionados mecanismos de invalidaçao circular. Finalmen-
te, procuramos deixa-Ias, sempre, na certeza de que depende
delas escolherem seus caminhos. N6s procuramos, simples-
mente, mostrar-Ihes que existem outros caminhos possfveis.
Cada uma restando livre na escolha que faz de si mesma.
Refletindo, à distância, sobre essas nossas praticas,
conclufmos que a chave da compreensao da confiança que a
quase totalidade das pessoas do assentamento nos deposi-
tou se acha no fato de cada uma delas ter vivido conosco
relaçôes que as liberaram do fardo representado pelas con-
dutas de conformidade aos padrôes da moral social domi-
nante e aos padrôes da moral militante. Considerando que
nossas praticas tinham coma pressuposto e coma objetivo a
autonomia das pessoas, nossa compreensao desse processo
é que essa confiança resulta do encontro das aspiraçôes, ou
dos desejos dessas pessoas, corn nossas pr6prias aspiraçôes,
ou nossos pr6prios desejos.
Essa confiança, construfda no dia-a-dia de nossas rela-
çôes corn cada uma das pessoas ou das familias dessa pe-
quena coletividade, tem desdobramentos que se eviden-
ciam no momento da nossa intervençao junto à coletividade
enquanto grupo. 0 fato de cada pessoa saber que tî'nhamos
as mesmas praticas junto a cada produtor da associaçao e a
cada uma de suas respectivas famflias colocava, em si mes-
mo, a virtualidade de novas relaçôes entre todos. Relaçœs à
imagem daquelas que cada um pôde desenvolver conosco.
E é essa virtualidade que se vai realizar por ocasiao de nossa

261
primeira intervençao ativa junto aos associados e a suas fa-
mllias, enquanto coletivo: 0 momento da festa junina.
Até este momento, nossa intervençao junto a esse co-
letivo fora puramente passiva. Nos nos contentamos em
questionar as relaçoes entre as pessoas, na relaçao que esta-
beledamos corn cada uma delas. Numa espécie de trabalho
subterrâneo, enquanto na superficie continuavam a se de-
senvolver relaçoes de invalidaçao e de exclusao construidas
sobre a moral militante e a moral social dominante. Entre-
tanto, a observaçao do que se passa na etapa dos preparati-
vos da festa, confirmando nossas observaçOes anteriores,
nos induz a uma nova certeza: ha uma logica de reproduçao
das relaçoes de dominaçao nessa coletividade que nao pode
ser rompida senao do exterior. Isto é, de uma intervençao
orientada para esse objetivo espedfico. A partir dai, decidi-
mos tentar transformar numa realidade coletiva a igualdade
na liberdade de existir de maneira autônoma que caracteri-
za nossa relaçao corn cada uma dessas pessoas. E decidimos
fazê-Io transformando-nos em mediadores das relaçoes en-
tre elas, para que elas se encontrem segundo esta mesma
16gica. Isto é, sobre a afirmaçao do que elas sao e nao em
funçao do que elas imaginam que devem ser, tendo coma
referência normas definidas fora delas mesmas e que as co-
locam ora coma "boas", ora coma "mas".
Vemos, entlIo, que 0 resultado dessa mediaçao é a par-
ticipaçao de todos numa unificaçao até aqui considerada im-
possivel. Esta claro para nos que esta situaçao é um desdo-
bramento de nossa intervençao anterior. Mas, também, que
ela deve ser entendida coma revelaçao de uma possibilida-
de e, de modo algum, coma manifestaçao de uma mudança
duravel nas relaçoes entre seus participantes. Nos estamos
perfeitamente conscientes de que é nossa mediaçao que
toma possivel, neste momento, esta atmosfera fusional. En-
tretanto, esta revelaçao de uma possibilidade é essencial aos
nossos olhos. Ela indica um caminho de recriaçao "depasse-
ment" das relaçOes existentes e nos convida a refletir sobre

262
os meios de uma açao de mais longo termo, que enraize em
cada uma das pessoas e em todas elas uma nova maneira de
se relacionar. E, novamente, n6s estamos preocupados corn
a questao de saber coma conduzir esta açao, de modo a nao
cair na armadilha de nos transformar em p6lo de novas rela-
çoes de dominaçao. Ou de modo a assegurar que nossa me-
diaçao possa encaminhar 0 encontro de pessoas livres.
a periodo que se sucede à festa e prepara 0 momento
da organizaçao do processo de negociaçao que resulta na
partilha do parque de maquinas entre os quatro grupos que
compoem a associaçao nos permite resolver a primeira des-
sas preocupaçoes. Ap6s a festa, todos nos procuram para
conversar sobre tudo, e n6s sentimos que, na confiança que
nos depositam, existe a expectativa de que façamos mais
pela coletividade. Inquietos corn esse c1ima, que nao chega-
mos a compreender totalmente, decidimos apressar a pro-
metida apresentaçao de nossa primeira avaliaçao sistematica
da situaçao de assentamento. E esta apresentaçao nos da a
oportunidade de fazer avançar nossa reflexao a prop6sito da
questao da mediaçao e dos mediadores: os produtores nos
convidam a acompanhar 0 processo de negociaçao que de-
vera resolver os problemas que identificamos coma sendo
os mais agudos da associaçao.
N6s estamos convencidos de que, ao nos fazerem esse
convite, os produtores procuram nos investir formalmente
de um poder sobre eles. E n6s sentimos que a eficacia de
nossa mediaçao, tendo em vista 0 desenvolvimento de rela-
çoes democraticas no seio da associaçao, depende da manei-
ra coma n6s desempenharmos esse poder. Eles nao nos es-
tao convidando, evidentemente, para 0 exerclcio do poder
do quaI éramos portadores, a seus olhos, quando la chega-
mos. Dm poder que nao era propriamente 0 nosso, uma vez
que resultava do fato de sermos vistos coma representantes
da ordem constituîda na coletividade: a ordem militante da
associaçao e a ordem social dominante no quotidiano das
famîlias. ara, esse poder n6s soubemos recusar e, agora, os

263
produtores nos convidam para 0 exerdcio de nosso proprio
poder. Intimamente ligado, sem duvida, à confiança que
construimos na coletividade. Mas que, em termos analiti-
cos, tem sua especificidade definida pelo fato de sermos
reconhecidos coma detentores de um saber sobre a propria
coletividade. Um saber que se construiu através do reco-
nhecimento de cada um de seus membros e que, por isso
mesmo, tem a confiança de todos e bem pode ser utilizado
para ajudar a resolver seus problemas.
Entretanto, embora nos reconhecendo pelo nosso pro-
prio saber, ao nos investirem de um poder sobre eles, os
produtores esœo também nos oferecendo 0 lugar de seus
antigos senhores ou patroes - le fauteuil du maître. 0 mes-
mo que vern sendo ocupado, em condiçoes precarias, pelas
"Iideranças" e demais agentes externos. Eles nao conhecem
suficientemente as regras da convivência e das negociaçoes
democraticas e esœo, sem duvida, à procura de alguém que
resolva por eles seus problemas. De onde a importância de
nossa maior atençao no sentido de nao ocupar esse lugar
que nos é oferecido, fazendo de nossa participaçao no pro-
cessa de negociaçoes para 0 quai somos convidados uma
oportunidade de nos transformarmos em mediadores das re-
laç6es democraticas que queremos ver constituidas na associa-
çao. Melhor dizendo, uma oportunidade do aprendizado, por
parte dos produtores associados, do exerdcio dessas relaç6es
'" enquanto grupo. u
democratlcas
Reconhecidos pelo nosso saber, nos nao podemos dei-
xar de pensar que os riscos desse saber sao igualmente gran-
des. Ele é, seguramente, a condiçao requerida, indispensa-
vel à mediaçao a que nos propomos. Capaz de criar novas
relaçoes entre os produtores associados e entre eles e os
agentes externos. Mas à condiçao de que nos mantenhamos
coerentes corn nossos prindpios, ou seja, que nossa inter-
vençao permita que novas relaç6es se construam sobre a au-
tonomia das pessoas no direito de se exprimir e de negociar
livremente as soluçoes dos problemas que Ihes sao comuns.

264
Sem 0 que essas soluçoes naD serao eficazes. porque naD
contarao corn 0 empenho e a participaçao dos associados.
Participaçao que resulta do livre engajamento de cada um.
Fora dessa condiçao. cabe repetir. nos corremos 0 risco de
ocupar "le fauteuil du maître" e de nos constituir em nova
fonte de alienaçao. reproduzindo pela nossa mediaçao os
comportamentos de dominados e a separaçao entre as pes-
soas que caracterizam a situaçao de assentamento.
Quando aceitamos 0 papel de mediadores no processo
de negociaçao a proposito da administraçao do parque de
maquinas. nos estamos habitados por essa preocupaçao. Ê
certo que até aqui nos tornamos 0 cuidado de naD permitir
que essas pessoas se alienem. transferindo a nos suas res-
ponsabilidades. Questionando simplesmente suas praticas e
reenviando cada uma a si mesma a proposito de suas esco-
lhas. Mas. agora. trata-se de um processo coletivo de toma-
da de decisoes. E é necessario que nos mantenhamos no
papeI de mediadores. evitando qualquer intervençao direta
nas decisoes. Que nos sejamos capazes de assegurar a ade-
saD de todos a uma lei comum. de modo a tomar posslveI a
negociaçao entre eles mesmos.
Ê por isso que nos tomamos a precauçao de passar pela
organizaçao da propria associaçao e de confiar aos engenheiros
a administraçao dos debates sobre as questOes técnicas. resta-
belecendo-os. assim, no papel que a nossos olhos é 0 deles: 0
de mediadores. Isto feito. nosso proprio papel se redefine: fi-
xar e garantir as regras da negociaçao. De tal modo que os
conflitos ou os antagonismos internos do grupo de associados
possam aflorar e encontrar uma via de soluçao. Nestas circuns-
tâncias. nossa intervençao sa é necessâria para garantir 0 cum-
primento das regras e a emergência de uma nova ordern.
Depois de ver reconstruldos os meios de um trabalho
orientado para a construçao da autonomia das pessoas numa
pequena coletividade submetida a uma lei comum. uma 61-
tima quesœo nos parece importante. Orna questao que esta
no cerne de toda essa empresa: 0 que deve obter de si mes-

265
mo 0 interventor, para agir coma verdadeiro mediador, isto
é, coma portador da liberaçao e nao da alienaçao? Ou, sob
um outro ângulo, em que condiçao esse interventor podera
se prevenir contra 0 risco de se tomar objeto de alienaçao
que esta contido, necessariamente, na sua empresa de libe-
raçao do outro?
No seio desta questao, esta a critica da figura do caris-
ma, 0 inimigo da liberdade de todos, que decorre da igual-
dade assegux,ada por uma lei comum. Que é 0 carisma? A
apropriaçao do'outro e conseqüentemente também da lei a
partir do amor que ele nos tem. Pela necessidade de ser
valorizado através deste amor, que se toma a mascara da
vontade de poder discricionario. Nossa hip6tese, a partir
dessa experiência, é que aquilo que 0 interventor deve exi-
gir de si mesmo para ser 0 mediador que estamos propondo
é a plena consciência de seus pr6prios limites e possibilida-
des. De tal sorte que ele possa, de um lado, ser reconhecido
pela seu justo valor e, de outro, ver esse valor ampliado pela
pr6pria experiência vivida nessa mediaçao. S6 assim ele
sera capaz de recriar 0 amor que lhes aportam em reconhe-
cimento de sua pr6pria capacidade. No caso, a capacidade
de revelar para esses produtores e suas famîlias suas pr6-
prias capacidades e de garantir as condiçoes para 0 exerdcio
e ampliaçao das mesmas.
Finalmente, uma certa idéia da democracia esta pre-
sente no nosso trabalho e nao nos parece inutil retoma-la no
momento de conclut-Io. Se ele tem por alvo a democracia
coletivista ou comuniciria, popular se se quer, em nome da
defesa da autonomia e dos direitos da pessoa, ele nao en-
tende, de nenhuma maneira, estar dirigindo-se à democra-
cia liberal, que concebe os indivtduos fora de suas condiçaes
reais de existência. Esses homens e essas famflias, que es-
tao no centro de nossa atençao, nao SaD livres para nao ser
isso que eles SaD: pequenos produtores presos nas multiplas
realidades coletivas que determinam sua condiçao de de-
pendência. Nao mais que os milhoes de familias que estao

266
no mercado de trabalho. Para retomar a linguagem sartriana,
eles sâo uma "situaçâo". E, "para que essa situaçâo seja um
homem, é necessario que ela seja vivida e ultrapassada em
direçâo a um objetivo panicular" (Sartre, J.P., 1948, pp 9 a
30). Este objetivo pode ser a escolha de se encolher sobre si
mesmo, de se resignar, mas também pode ser a escolha de
se unir aos outros para transformar sua pr6pria condiçâo e a
de todos. Esperamos que esse trabalho possa ajudar os for-
madores a encontrar 0 caminho para ajudar cada um desses
homens a conquistar sua autonomia e a se escolher livre-
mente unido aos outros para lutar conjuntamente contra
tudo que lhes pesa em comum. Isto é, a se tornarem os
intelectuais orgânicos da liberdade em luta. Para fazer avan-
çar uma democracia de progresso no Brasil.

267
Notas

1. Nos nos referimos aqui a certos conceitos sartrianos da Critiqlle de


10 RBison Dioleaique - 0 pratico-inerte, a serialidade, 0 grupo - e a
exposiçao do pensamento sartriano feita por Ronald Laing e David
Cooper, no seu livro Roison et Violence, assim coma ao uso que esses
autores fazem do trabalho de Sartre, nas suas numerosas publicaçêies
que abordam 0 campo psiquiatrico.
2. Esta aproximaçao deve muito à problematica introduzida por Gé-
rard Althabe, Directeur d'Etudes a l'Ecole Pratique des Hautes Etu-
des en Science Sociales (EPHESS) - Paris, no estudo das relaçêies
sociais no quotidiano dos grandes conjuntos habitacionais das perife-
rias urbanas francesas. Também ao primeiro trabalho de pesquisa ex-
ploratoria da riqueza dessa problematica, realizado em equipe, em 1973
e 1974, por Gérard Althabe e Gérarè Roy, na periferia de uma grande
cidade do oeste da França (Althabe, o., 1977 e Roy, G., 1982).
3. Christian Geffray, sociologo da ORSTOM (L'Institut Français de
Recherche Scientifique pour le Développement en Cooperation),
aborda de uma maneira criativa a relaçao entre 0 paterna/ismo e a
democracia no BrasiI. A leitura de MoÎtres Izors de 10 loi (1993), as
trocas corn seu autor, assim coma seus comentarios escritos sobre
nossa pesquisa nos ajudaram bastante a organizar nossas idéias sobre
a contribuiçao dos caminhos tomados por nossa pratica de pesquisa.
4. Pesquisa: "Projeto Camponês e Boias-Frias - vida quotidiana e
capacidade de negociaçao numa experiência de Reforma Agraria".
Convênio de Cooperaçao Internacional CNPq 1ORSTOM (L'Institut
Français de Recherche Scientifique pour le Développement en

269
Cooperation), acolhido pelo CEDEC (Centro de Estudos de Cultura
Contemporânea) 1988 a 1989 e pela UNICAMP (Universidade Esta-
dual de Campinas) 1990 a 1992.
5. Assentamento é a implantaçao, pela Governo do Estado, de gru-
pos de famflias de origem rural ou urbana que demandam terra para
viver da agricultura sobre areas desapropriadas com esse objetivo es-
pecffico. Os assentamentos de trabalhadores rurais sem-terra refe-
rem-se à implantaçao de famflias ligadas ao Movimento dos Sem-
Terra - MST. 0 MST começou a se organizar no final dos anos 70 e
infcio dos anos 80, em pleno processo de abenura poiftica, no sul do
pais. Ele reunia famflias de trabalhadores rurais recém-expropriadas
da terra, para a reivindicaçao organizada de terra para seus proprios
cultivos. Rapidamente esse movimento foi incorporando famflias ur-
banas de segunda ou terceira geraçao que, naD encontrando trabalho
regular na cidade, se dispunham a "voltar para a terra". Por ocasiao
do infcio dos debates do Piano Nacional de Reforma Agraria -PNRA,
no Governo de Transiçao 1985, esse movimento ja estava organizado a
nive! nacional. 0 PNRA naD teve condiç5es poifticas de ser implantado,
e 0 MST continuou crescendo e se radicalizando politicamente. Na pre-
sente campanha eleitoral para Governo Federal 1994, ele demanda 0
assentamento de dois milh5es de famflias de sem-terras.
6. Dado estimado pela CONTAG - Confederaçao Nacional dos Tra-
balhadores na Agricultura, por ocasiao dos debates polfticos do
PNRA 1985/1986.
7. 0 governador Franco Montoro, eleito em 1983, é empossado em
1984 no Estado de Sao Paulo, era do PMDB - Partido do Movimen-
ta Democratico Brasileiro, principal panido polftico da Frente de
Oposiçao ao Regime Militar. Assim sendo, compôs uma pauta de
governo orientada pelas demandas da referida frente partidaria, den-
tre as quais, a Reforma Agraria. Como a competência para a desapro-
priaçao de terras para fins de Reforma Agraria era da instância fede-
rai, implementou uma "Polftica de Assentamentos" em terras
publicas estatais. De acordo com essa polftica, as famflias dos traba-
Ihadores assentados recebiam, do Estado, 0 direito do uso da terra. E
esperava-se que, com a aprovaçao do PNRA pelo govemo civil em-
possado a nive! federal em 1985, essa situaçao fosse regularizada,
transformando 0 direito de uso da terra em propriedade privada des-
sas famflias. Além dessa "Polftica de Assentamentos", 0 Governo
Montoro - Governo Democratico do Estado de Sao Paulo - imple-
mentou uma "Polftica de Regularizaçao Fundiaria", orientada para a
regularizaçao da posse da terra em areas devolutas de conflito da

270
terra. Para a gestao dessas duas polfticas, criou uma Secretaria de
Assuntos Fundhirios, que acabou sendo transformada, pelo seu su-
cessor, em Departamento de Assuntos Fundiarios - DAF, Iigado
inicialmente à Secretaria da Agricultura e, mais recentemente, à Se-
cretaria da Justiça, num 6rgao especial: Instituto de Terras do Estado de
Sao Paulo. Os técnicos estatais - engenheiros agrônomos ou técnÎcos
agrfcolas - mencÎonados neste texto sao funciomirios do DAR
8. Durante 0 Governo Montoro, um "Programa de Geraçao de Tra-
balho para a Entressafra dos B6ias-Frias" - trabalhadores temponi-
rios da agricultura, foi implementado pelo Centro de Estudos e Pes-
quisas em Administraçao Municipal - CEPAM, ligado à Secretaria
do Interior. Participando, enquanto assessora, da e1aboraçao e execu-
çao deste programa, a pesquisadora brasileira - autora desta obra -
teve a oportunidade de acompanhar 0 surgimento de um assenta-
mento no bojo dessa polftica. Dm projeto de pesquisa visando anali-
sar a relaçao poder local x trabalhadores em algumas experiências
desse programa, entre os quais 0 referido assentamento, foi aprovado
num convênio CNPq 1 CNRS (Centre National de la Recherche
Scientifique - França) IORSTOM (L'Institute Français de Recher-
che Scientifique pour le Développement en Cooperation) acolhido
pelo pr6prio CEPAM e de cuja coordenaçao fizemos parte. 0 pesqui-
sador francês - autor desta obra - participou deste trabalho de
pesquisa pelo lado da ORSTOM.
9. Os primeiros engenheiros agrônomos contratados pela Secretaria
de Assuntos Fundiarios do Estado de Sao Paulo vinham, na sua
maioria, da militância estudantil de oposiçao ao Regime Militar.
Com a diferenciaçao do sistema partidario, conquistada pelo proces-
so de abertura polftica a partir de 1980, esses militantes se vincula-
ram a partidos polfticos de esquerda. Em especial, ao Partido dos
Trabalhadores - PT.
10.0 debate polftico da questao da Reforma Agraria desenvolveu-se
no Brasil no final dos anos 50 e infcio dos anos 60, perfodo no quaI se
redefiniam os rumos do desenvolvimento econômico do pafs, tendo
em vista a intensificaçao do processo de industrializaçao. Nesse con-
texto, a Reforma Agraria era pensada como pré-condiçao do desen-
volvimento econômico. De um lado, pela burguesia industrial nas-
cente, preocupada com a superaçao do "atraso" da agricultura, para
assegurar mao-de-obra, matéria-prima e mercado consumidor para 0
setor industriaI. De outro lado, pela esquerda brasileira, que via na
Reforma Agraria um caminho para acelerar 0 processo de proletariza-
çao que deveria viabilizar a esperada revoluçao socialista. Nestes ter-

271
mos, para a esquerda, a Reforma Agniria era um recurso tatico e 0
campesinato, um meio sobre 0 quai pesava todo 0 estigma marxista
dos perigos da propriedade da terra. Ou do caniter conservador dos
proprietlirios, mesmo que pequenos ou de economia familiar. 0 de-
senvolvimento econômico do pafs se fez sem que se recorresse a
uma polftica de Reforma Agraria. Mais ainda, concentrando a pro-
priedade da terra e excluindo dela cerca de 50% da populaçao brasi-
lei ra, entre 1950 e 1980. Populaçao que os setores da economia urba-
na naD têm tido condiçoes de absorver. 0 que explica 0 crescimento
da luta pela terra e a persistência de um projeto de Reforma Agraria
na atualidade brasileira. Dentre os setores polfticos defensores desse
projeto, alguns ai nda pensam a Reforma Agraria como meio de se
chegar ao socialismo e atribuem ao campesinato 0 papel conservador
do referido estigma marxista. Os projetos de agricultura coletivistas
analisados nesse texto SaD inspirados nessas tendências polfticas.
11. Durante todo nosso trabalho de pesquisa, sentimos falta, ao nos-
so lado, de agrônomos especializados na analise de sistemas agrarios.
A maior parte dos agrônomos brasileiros é formada por escolas que
trabalham com a referência da agricultura empresarial e orienta seus
estudantes para a analise de produtos e naD da 16gica de combinaçao
dos fatores de produçao. Em 1993, por intermédio do PROTER (Pro-
grama de Terra - Sao Paulo), chegaram a Sao Paulo dois jovens
engenheiros do CNEARC (Centre National d'Etudes Agronomiques
de Regions Chaudes - Montpellier, France), em trabalho de forma-
çao nesse domfnio e interessados em realizar uma pesquisa, tendo
em vista uma dissertaçao de final de curso. N6s nos oferecemos para
auxilia-\os com nossos conhecimentos sobre 0 assentamento - obje-
to deste texto - e com nossa familiaridade com seus habitantes. Em
troca da rica contribuiçao que eles poderiam nos oferecer para sanar
a falta de analises especializadas que vfnhamos sentindo. A colabora-
çao entre nos foi bastante produtiva, e temos 0 projeto de um artigo
que devera confrontar nossos métodos de trabalho e os deies, que
evidenciam grandes afinidades e complementaridades (Hann, J. M.,
1993 e Delaunay Bellevide, E., 1993).
12. A analise do jogo paternalista de Almir e 0 olhar crftico que ela
projeta aqui sobre 0 personagem nao dao conta senao de maneira
redutora de sua complexidade. Com 0 risco de obscurecer a riqueza
de relaçoes que pudemos ter com e1e, ao longo de nosso trabalho de
campo. Ha nesse trabalhador um aventureiro no sentido nobre do
termo, cujas qualidades se manifestaram nos primeiros tempos da
unificaçao dos trabalhadores para a conquista da terra e da mobiliza-

272
çao para a cultura em comum sobre a terra conquistada. N6s obser-
vamos a situaçao de assentamento quatro anos ap6s sua implantaçao:
a gescao nao é 0 forte do aventureiro, ele gosta da açao pela açao.
Quando a tensao retrocede, ele se acha frente a si mesmo. Nesta
confrontaçao, a "gosto da morte" a invade novamente, e ele foge nao
importa em quai direçao, talvez aqui 0 ego(smo constatado... Ao mili-
tante resta sempre a causa, pela quaI, em oposiçao ao aventureiro,
ele abdicou de seu eu. Esta consciência que n6s tfnhamos da com-
plexidade de sua personalidade nos permitiu manter com ele uma
relaçao de simpatia recfproca e um dialogo produtivo, até a final de
nosso trabalho.

273
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Wcffort, F., "0 Que É a Democracia", Coleçiio Primeiros Possos, Ed.
Brasiliense, Slio Paulo, 1984. 126 p.

277
Sobre os autores

MARIACONCEIÇÀO D'INCAO é livre-docente em Socio-


logia pela UNICAMP e especialista em pesquisa social e so-
ciologia rural. É autora dos livros 0 Mio-frio: ocumuloçiio e
misério (Petr6polis, Vozes, 9a. ed., 1983) e Quoi éo questoo do
Mio-frio (Silo Paulo, Brasiliense, 1984). Vern publicando,
desde a transiçao democratica, varios artigos cientificos e de
divulgaçao cientifica sobre a conquista da cidadania entre os
trabalhadores rurais brasileiros.
GÉRARD ROY é pesquisador em Ciências Sociais na
ORSTOM (L'Institut Français de Recherche Scientifique
pour le Developpement en Cooperation). Trabalhou em
Madagascar, entre 1960 e 1971, investigando a comunidade
camponesa em situaçao neocolonial. Nos anos 70 e 80 reali-
zou, na França, trabalhos de antropologia da vida cotidiana
junto a familias de operarios nas grandes periferias urbanas.
Desde 1988 trabalha, no Brasil, a quesœo do novo campesi-
nato surgido do movimento de luta pelo acesso à terra.

279
trobalhadores - prática s que acabam por
reprodu.lr os relações de dorninoçõollC11
ql,lQiaollrobalhadoles focam socioJizodos.,
é das q\iKJi$ querem se tiblrtõr. O leJUO ,l~
cendUZido paro uma prepotio de
,ecle!i"lçiiQ cJo papel desteS qgel1 tes., no
sentido d. suo recriação em mediadores
de navm e demcxriífkca ~ões s&icii
no bojodesses progromOl de CllIle5$Oria Ó\J
inlEtrvençõo.. Isso constitue também pré-
condjçõo da troco de soberes necessária
para maior effc6cia dos mesmas e do
orgonizoçõo polílleg e soclol
freqüentemente bU$çod a por esses ogentes
Ou ossesseres , Nesteserúido, e!.te livro
extrapolo seus prõprios obieli\iO$
'~spec:jfico s, QiO trazer' ao debQie os
ccm inhes do co nsfruç õc do lecidosocia t
brasileiro - caminhos que irnpl!com O
scperoçõo do imobi lismo cCltt1t..terilticc dos
pr ôrlcos sociais dos domíncdos, Sem (I
qual, nõo se pode pensor o democratização
de nosso sociedade . Assim, o leifur a de
N6s, cidodão$ permite que se repense
tonlo o pr o jeto po litico especifico de
Reforma Agr6rio, dire tamenteobordodo,
como 05 demais projetos de polfticas
públicos ou sociols tão cnuncicdos pelos
nossos govemontes, mos tôo
freqüe ntemente encam inhados como
progromos o5siiJenciolisios, reprodu tores
muito mais do que tro rlS fo rmo do res do
dominoçôo perverso o que estão
submetidos os referidos setores socicis. A
abordogem do questõo tio demacroc:.io
pela ótico d o constituiç ôo do iecidb soci a l
bras ileiro exige que se pense esses
programas a rticu la ndo os objetivos d o
desenvolvimen to econômico oos do
desenvolvimento social. O que aindo e
ravalucionário em noI505 dias ...
. . . . . __~ ~7.FT. 0_=
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