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Coleção Educação pós-crítica


Tomaz Tadeu da Silva (org.)
Coordenadores: Tomaz Tadeu da Si!v a e Pablo Gentili
Stuart Hall
- Gênero, sexualidade e educação- Guacira Lopes Louro Kathryn Woodward
- Liberdades reguladas -A pedagogia construtivista e outras
formas de governo do eu - Tomaz Tadeu da Silva (org.)
- Imagens do outro -Jorge Larrosa e Nuria Pérez de Lara
-A falsificação do consenso - Simulacro e imposição na reforma
educacional do neoliberalismo- Pablo Gentili
- Utopias provisórias -As pedagogias críticas num cenário pós-
colonial- Peter McLoren
- Identidade e diferença- A perspectiva dos Estudos Culturais
- Tomaz Tadeu da Silva (org.)
IDENTIDADE E
DIFERENÇA
A perspectiva dos Estudos Culturais
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Traduções: Tomaz Tadeu da Silva
Silva, Tomaz Tadeu da
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais /Toma.Z
Thdeu da Silva (org.), Stuart Hall, Kathryn Woodward.- Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000.

ISBN 85.326.2413-8

l. Diferenças individuais 2. Identidade I. Hall Stuart. li. Woodward,


Kathryn. III. Título.

00-3345 CDD-302

Índices para catálogo sistemático:


L Diferença e identidade : Sociologia 302
1/J EDITORA
Y VOZES
2. Identidade e diferença : Sociologia 302
Petrópolis
2000
LORDE, A. Sister Outsider. Trumansburg, Nova York: The Cros-
sing Press, 1984.
2.
MALCOLM, N. Bosnia: aslwrthistory. Londres: Macmillan, 1994.
MERCER, K. Welcome to the jungle, in: RUTHERFORD, J.
A produção social da identidade
(org.). Identity: community, culture, difference. Londres: Law- e da diferença
rence and Wishart, 1990.
- . "1968" periodising postmodern politics and identity, in: Tomaz Tadeu da Silva
GROSSBERG, L.; NELSON, C. & TREICHLER, P. (orgs.).
Cultural Studies. Londres: Routledge, 1992.
MOHANTY, S.P. Us and them: on the philosophical bases of As questões do multiculturalismo e da diferença toma-
politicai criticism, The Yale ]ournal of Criticism, vol. 21, p. ram-se, nos últimos anos, centrais na teoria educacional crí-
1-31, 1989. tica e até mesmo nas pedagogias oficiais. Mesmo que trata-
MOORE, H. "Divided we stand": sex, gender and sexual diffe- das de forma marginal, como "temas transversais", essas
rence, Feminist Review, n. 47, p. 78-95, 1994. questões são reconhecidas, inclusive pelo oficialismo, como
legítimas questões de conhecimento. O que causa estranhe-
NIXON, S. Exhibiting masculinity, in: Hall, S. (org.). Repre-
sentation: cultural representations and signifying practices. za nessas discussões é, entretanto, a ausência de uma teoria
Londres: Sageffhe Open University, 1997. da identidade e da diferença.
ROBINS, K. Tradition and translation: national cnlture in its Em geral, o chamado "multiculturalismo" apóia-se em
global context, in: CORNER, J. & HARVEY, S. (orgs.). Enter- um vago e benevolente apelo à tolerância e ao respeito para
prise and Heritage: crosscurrents ofnational culture. Londres: com a diversidade e a diferença. É particularmente proble-
Routledge, 1991. mática, nessas perspectivas, a idéia de diversidade. Parece
ROniNS, K. Global times: what in the world' s going on? ln: DU difícil que uma perspectiva que se limita a proclamar a
GAY, P. (org.). Production of Culture/Cultures of Production. existência da diversidade possa servir de base para uma
Lonch·es: Sage(fhe Open University, 1997. pedagogia que coloque no seu centro a crítica política da
RUTHERFORD, J. (org.). Identity: community, culture, differen- identidade e da diferença. Na perspectiva da diversidade, a
ce. Londres: Lawrence and Wishmt, 1990. diferença e a identidade tendem a ser naturalizadas, crista-
ROWBOTHAM, S. Hidden from History: 300 years of women's lizadas, essencializadas. São tomadas como dados ou fatos
oppression and the fight against it. Londres: Pinto, 1973. da vida social diante dos quais se deve tomar posição. Em
geral, a posição socialmente aceita e pedagogicamente re-
SAID, E. Orientalism. Londres: Random House.
comendada é de respeito e tolerância para com a diversida-
SAUSSURE, F de. Course in General Linguistics. Londres: Col- de e a diferença. Mas será que as questões da identidade e
lins, 1978. da diferença se esgotam nessa posição liberal? E, sobretudo:
vVEEKS, J. The Lesser Evil and the Greater Good: the theory and essa perspectiva é suficiente para servir de base pm·a uma
politics ofsocial diversity. Londres: Rivers Oram Press, 1994. pedagogia crítica e questionadora? Não deveríamos, antes

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de mais nada, ter uma teoria sobre a produção da identidade que estou fazendo referência a uma identidade que se es-
e da diferença? Quais as implicações políticas de concei- gota em si mesma. "Sou brasileiro"- ponto. Entretanto, eu
tos como diferença, identidade, diversidade, alteridade? só preciso fazer essa afirmação porque existem outros seres
O que está em jogo na identidade? Como se configuraria humanos que não são brasileiros. Em um mundo imaginário
uma pedagogia e um currículo que estivessem centrados totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas partilhas-
não na diversidade, mas na diferença, concebida como sem a mesma identidade, as afirmações de identidade não
processo, uma pedagogia e um currículo que não se limi- fariam sentido. De certa forma, é exatamente isto que ocorre
tassem a celebrar a identidade e a diferença, mas que com nossa identidade de "humanos". É apenas em circuns-
buscassem problematizá-las? É para questões como essas tâncias muito raras e especiais que precisamos afirmar que
que se volta o presente ensaio. "'somos hu1nanos".
A afirmação "sou brasileiro", na verdade, é parte de uma
Identidade e diferença: aquilo que é e aquilo que extensa cadeia de "negações", de expressões negativas de
não é identidade, de diferenças. Por trás da afirmação "sou brasi-
leiro" deve-ser ler: "não sou argentino", "não sou chinês",
Em uma primeira aproximação, parece ser fácil definir
"não sou japonês" e assim por diante, numa cadeia, neste
"identidade". A identidade é simplesmente aquilo que se é:
caso, quase interminável. Admitamos: ficaria muito compli-
"sou brasileiro", "sou negro", "sou heterossexual", "sou jo-
cado pronunciar todas essas fí·ases negativas cada vez que
vem', "sou homem". A identidade assim concebida parece
eu quisesse fazer uma declaração sobre minha identidade.
ser uma positividade ("aquilo que sou"), uma característica
A gramática nos permite a simplificação de simplesmente
independente, um "fato" autónomo. Nessa perspectiva, a
dizer "sou brasileiro". Como ocorre em outros casos, a gra-
identidade só tem como referência a si própria: ela é auto-
mática ajuda, mas também esconde.
contida e auto-suficiente.
Da mesma forma, as afirmações sobre diferença só fa-
Na mesma linha de raciocínio, também a diferença é
zem sentido se compreendidas em sua relação com as afir-
concebida como uma entidade independente. Apenas, nes-
mações sobre a identidade. Dizer que "ela é chinesa'' significa
te caso, em oposição à identidade, a diferença é aquilo que
dizer que "ela não é argentina'', "ela não é japonesa'' etc.,
o outro é: "ela é italiana'', "ela é branca", "ela é homosse-
incluindo a afirmação de que "ela não é brasileira'', isto é, que
xual" "ela é velha" "ela é mulher". Da mesma forma que a
ela não é o que eu sou. As afim1ações sobre diferença também
iden;idade, a dife;·ença é, nesta perspectiva, concebida
dependem de uma cadeia, em geral oculta, de declarações
como auto-referenciada, como algo que remete a si própria.
negativas sobre (ouh·as) identidades. Assim como a identidade
A diferença, tal como a identidade, simplesmente existe.
depende da diferença, a diferença depende da identidade.
É fácil compreende!; entretanto, que identidade e dife- Identidade e diferença são, pois, inseparáveis.
rença estão em uma relação de estreita dependência. A for-
Em geral, consideramos a diferença como um produto
ma afirmativa como expressamos a identidade tende a es-
derivado da identidade. Nesta perspectiva, a identidade é a
conder essa relação. Quando digo "sou brasileiro" parece
referência, é o ponto original relativamente ao qual se define

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a diferença. Isto reflete a tendência a tomar aquilo que so- a identidade e a diferença têm que ser nomeadas. É apenas
mos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avalia- por meio de atos de fala que instituímos a identidade e a
mos aquilo que não somos. Por sua vez, na perspectiva que diferença como tais. A definição da identidade brasileira,
venho tentando desenvolve1; identidade e diferença são por exemplo, é o resultado da criação de variados e comple-
vistas como mutuamente determinadas. Numa visão mais xos atos lingüísticos que a definem como sendo diferente de
radical, entretanto, seria possível dizer que, contrariamente outras identidades nacionais.
à primeira perspectiva, é a diferença que vem em primeiro Como ato lingüístico, a identidade e a diferença estão
lugar. Para isso seria preciso considerar a diferença não sujeitas a certas propriedades que caracterizam a linguagem
simplesmente como resultado de um processo, mas como o em geral. Por exemplo, segundo o lingüista suíço Ferdinand
processo mesmo pelo qual tanto a identidade quanto a de Saussure, a linguagem é, fundamentalmente, um sistema
diferença (compreendida, aqui, como resultado) são produ- de diferenças. Nós já havíamos encontrado esta idéia quan-
zidas. Na origem estaria a diferença- compreendida, agora, do falamos da identidade e da diferença como elementos
como ato ou processo de diferenciação. É precisamente essa que só têm sentido no interior de uma cadeia de diferencia-
noção que está no centro da conceituação lingüística de ção lingüística ("ser isto" significa "não ser isto" e "não ser
diferença, como veremos adiante. aquilo" e "não ser mais aquilo" e assim por diante).
De acordo com Saussure, os elementos- os signos- que
Identidade e diferença: criaturas da linguagem
constituem uma língua não têm qualquer valor absoluto, não
Além de serem interdependentes, identidade e diferen- fazem sentido se considerados isoladamente. Se considera-
ça partilham uma importante característica: elas são o resul- mos apenas o aspecto material de um signo, seu aspecto
tado de atos de criação lingüística. Dizer que são o resultado gráfico ou fonético (o sinal gráfico "vaca", por exemplo, ou
de atos de criação significa dizer que não são "elementos" seu equivalente fonético), não há nele nada intrínseco que
da natureza, que não são essências, que não são coisas que remeta àquela coisa que reconhecemos como sendo uma
estejam simplesmente aí, à espera de serem reveladas ou vaca- ele poderia, de fmma igualmente arbitrária, remeter
descobertas, respeitadas ou toleradas. A identidade e a a um outro objeto como, por exemplo, uma faca. Ele só
diferença têm que ser ativamente produzidas. Elas não são adquire valor- ou sentido- numa cadeia infinita de outras
criaturas do mundo natural ou de um mundo transcenden- marcas gráficas ou fonéticas que são diferentes dele. O
tal, mas do mundo cultural e social. Somos nós que as fa- mesmo ocorre se consideramos o significado que constitui
bricamos, no contexto de relações culturais e sociais. A um determinado signo, isto é, se consideramos seu aspecto
identidade e a diferença são criações sociais e culturais. conceituai. O conceito de "vaca'' só faz sentido numa cadeia
Dizer, por sua vez, que identidade e diferença são o infinita de conceitos que não são "vaca''. Tal como ocorre
resultado de atos de criação lingüística significa dizer que com o conceito "sou brasileiro", a palavra "vaca'' é apenas
elas são criadas por meio de atos de linguagem. Isto parece uma maneira conveniente e abreviada de dizer "isto não é
uma obviedade. Mas como tendemos a tomá-las como da- porco,, ~<não é árvore", "não é casa" e assin1 por diante. Em
das, como "fatos da vida'', com fi·eqüência esquecemos que outras palavras, a língua não passa de um sistema de dife-

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renças. Reencontramos, aqui, em contraste com a idéia de sença''. Essa "ilusão" é necessária para que o signo funcione
diferença como produto, a noção de diferença como a ope- como tal: afinal, o signo está no lugar de alguma outra coisa.
ração ou o processo básico de funcionamento da língua e, Embora nunca plenamente realizada, a promessa da pre-
por extensão, de instituições culturais e sociais como a iden- sença é parte integrante da idéia de signo. Em outras
tidade, por exemplo. palavras, podemos dize1; com Derrida, que a plena presença
(da "coisa'', do conceito) no signo é indefinidamente adiada.
Mas a linguagem vacila ... É também a impossibilidade dessa presença que obriga o
A identidade e a diferença não podem ser compreendi- signo a depender de um processo de diferenciação, de
das, pois, fora dos sistemas de significação nos quais adqui- diferença, como vimos anteriormente. Derrida acrescenta
rem sentido. Não são seres da nah1reza, mas da cultura e a isso, entretanto, a idéia de traço: o signo carrega sempre
dos sistemas simbólicos que a compõem. Dizer isso não não apenas o traço daquilo que ele substitui, mas também
significa, entretanto, dizer que elas são determinadas, de o traço daquilo que ele não é, ou seja, precisamente da
uma vez por todas, pelos sistemas discursivas e simbóli- diferença. Isso significa que nenhum signo pode ser sim-
cos que lhes dão definição. Ocorre que a linguagem, plesmente reduzido a si mesmo, ou seja, à identidade. Se
entendida aqui de forma mais geral como sistema de quisermos retomar o exemplo da identidade e da diferença
significação, é, ela própria, uma estrutura instável. É pre- cultural, a declaração de identidade "sou brasileiro", ou seja,
cisamente isso que teóricos pós-estruturalistas como Jac- a identidade brasileira, carrega, contém em si mesma, o
ques Derrida vêm tentando dizer nos últimos anos. A lin- traço do outro, da diferença- "não sou italiano", "não sou
guagem vacila. Ou, nas palavras do lingüista Edward Sapir chinês" etc. A mesmidade (ou a identidade) porta sempre o
(1921), "todas as gramáticas vazam". traço da ouh·idade (ou da diferença).

Essa indeterminação fatal da linguagem decorre de uma O exemplo da consulta ao dicionário talvez ajude a
característica fundamental do signo. O signo é um sinal, compreender melhor as questões da presença e da diferença
uma marca, um traço que está no lugar de uma outra coisa, em Derrida. Quando consultamos uma palavra no dicioná-
a qual pode ser um objeto concreto (o objeto "gato"), um lio, o dicionário nos fornece uma definição ou um sinônimo
daquela palavra. Em nenhum dos casos, o dicionário nos
conceito ligado a um objeto concreto (o conceito de "gato")
apresenta a "coisa'' mesma ou o "conceito" mesmo. A defi-
ou um conceito abstrato ("amor"). O signo não coincide com
nição do dicionário simplesmente nos remete para outras
a coisa ou o conceito. Na linguagem filosófica de Derrida,
palavras, ou seja, para outros signos. A presença da "coisa''
poderíamos dizer que o signo não é uma presença, ou seja,
mesma ou do conceito "mesmo" é indefinidamente adiada:
a coisa ou o conceito não estão presentes no signo.
ela só existe como traço de uma presença que nunca se
Mas a natureza da linguagem é tal que não podemos concretiza. Além disso, na impossibilidade da presença, um
deixar de ter a ilusão de ver o signo como uma presença, isto determinado signo só é o que é porque ele não é um outro,
é, de ver ':o signo a presença do referente (a "coisa") ou do nem aquele outro etc., ou seja, sua existência é marcada
conceito. E a isso que Derrida chama de "metafísica da pre- unicamente pela diferença que sobrevive em cada signo
como h·aço, como fantasma e assombração, se podemos assim

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dizer. Em suma, o signo é caracterizado pelo diferimento ou A identidade e a diferença: o poder de definir
adiamento (da presença) e pela diferença (relativamente a
Já sabemos que a identidade e a diferença são o resultado
outros signos), duas características que Derrida sintetiza no
de um processo de produção simbólica e discursiva. O pro-
conceito de différance.
cesso de adiamento e diferenciação lingüísticos por meio do
Toda essa conversa sobre presença, adiamento e dife- qual elas são produzidas está longe, entretanto, de ser
rença serve para mostrar que se é verdade que somos, de simétrico. A identidade, tal como a diferença, é uma relação
certa forma, governados pela estrutura da linguagem, não social. Isso significa que sua definição- discursiva e lingüís-
podemos dizer, por outro lado, que se trate exatamente tica - está sujeita a vetares de força, a relações de poder.
de uma estrutura muito segura. Somos dependentes, nes- Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas
te caso, de uma estrutura que balança. O adiamento in- não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo
definido do significado e sua dependência de uma ope- sem hierarquias; elas são disputadas.
ração de diferença significa que o processo de significa-
ção é fundamentalmente indeterminado, sempre incerto Não se trata, entretanto, apenas do fato de que a defini-
e vacilante. Ansiamos pela presença- do significado, do ção da identidade e da diferença seja objeto de disputa entre
referente (a coisa à qual a linguagem se refere). Mas na grupos sociais assimetricamente situados relativamente ao
medida em que não pode, nunca, nos fornecer essa desejada poder. Na disputa pela identidade está envolvida uma dis-
presença, a linguagem é caracterizada pela indeterminação puta mais ampla por outros recursos simbólicos e materiais
e pela instabilidade. da sociedade. A afirmação da identidade e a enunciação da
diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais,
Essa característica da linguagem tem conseqüências
assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado
importantes para a questão da diferença e da identidade
aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em
culturais. Na medida em que são definidas, em parte, por
estreita conexão com relações de poder. O poder de definir
meio da linguagem, a identidade e a diferença não podem
a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado
deixar de ser marcadas, também, pela indeterminação e pela
das relações mais amplas de poder. A identidade e a dife-
instabilidade. Voltemos, uma vez mais, ao nosso exemplo da
rença não são, nunca, inocentes.
identidade brasileira. A identidade "ser brasileiro" não
pode, como vimos, ser compreendida fora de um processo Podemos dizer que onde existe diferenciação- ou seja,
de produção simbólica e discursiva, em que o "ser brasilei- identidade e diferença- aí está presente o poder. A diferen-
ro" não tem nenhum referente natural ou fixo, não é um ciação é o processo central pelo qual a identidade e a di-
absoluto que exista anteriormente à linguagem e fora dela. ferença são produzidas. Há, entretanto, uma série de outros
Ela só tem sentido em relação com uma cadeia de significa- processos que traduzem essa diferenciação ou que com ela
ção formada por outras identidades nacionais que, por sua guardam uma estreita relação. São outras tantas marcas da
vez, tampouco são fixas, naturais ou predeterminadas. Em presença do poder: incluir/excluir ("estes pertencem, aque-
suma, a identidade e a diferença são tão indeterminadas e les não"); demarcar fi-onteiras ("nós" e "eles"); classificar
instáveis quanto a linguagem da qual dependem. ("bons e maus"; "puros e impuros"; "desenvolvidos e primi-

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tivos"; "racionais e inacionais"); normalizar ("nós somos rida analisou detalhadamente esse processo. Para ele, as
no1111ais; eles são anormais"). oposições binárias não expressam uma simples divisão
elo mundo em duas classes simétricas: em uma oposição
A afirmação da identidade e a marcação da diferença binária, um elos termos é sempre privilegiado, recebendo
implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir. um valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga
Como vimos, dizer "o que somos" significa também dizer negativa. "Nós" e "eles", por exemplo, constitui uma
"o que não somos". A identidade e a diferença se traduzem, típica oposição binária: não é preciso dizer qual te~mo é,
assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem aqui, privilegiado. As relações ele iclenticlacle e diferença
não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluí- ordenam-se, todas, em torno ele oposições binárias: mas-
do. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, sig- culino/feminino, branco/negro, heterossexual/homosse-
nifica fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica xual. Questionar a iclenticlacle e a diferença como relações
fora/A identidade está sempre ligada a uma forte separação ele poder significa problematizar os binarismos em torno elos
·- erfb·e "nós" e "eles". Essa demarcação de fi·onteiras, essa quais elas se organizam.
separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo, afirmam
Fixar uma determinada iclenticlacle como a norma é uma
e reafirmam relações de poder. "Nós" e "eles" não são, neste
elas formas privilegiadas ele hierarquização elas iclenticlaclcs
caso, simples distinções gramaticais. Os pronomes "nós" e
e elas diferenças. A nmmalização é um elos processos niais
"eles" não são, aqui, simples categorias gramaticais, mas
sutis pelos quais o poder se manifesta no campo ela iclenti-
evidentes indicadores de posições-de-sujeito fortemente clacle e ela diferença. Normalizar significa eleger- arbitra-
marcadas por relações de poder. riamente- uma iclenticlacle.específica como o parâmetro em
Dividir o mundo social entre "nós" e "eles" significa relação ao qual as outras iclenticlacles são avaliadas e hierar-
classificar. O processo de classificação é central na vida quizadas. Normalízar significa atribuir a essa iclenticlacle
social. Ele pode ser entendido como um ato de significação to-elas as características positivas possíveis, em relação às
pelo qual dividimos e ordenamos o mundo social em grupos, quais as outras iclenticlacles só podem ser avaliadas ele forma
em classes. A identidade e a diferença estão estreitamente negativa. A iclenticlacle normal é "natural"', desejável, única.
relacionadas às formas pelas quais a sociedade produz e A força ela iclenticlacle normal é tal que ela nem sequer é
utiliza classificações. As classificações são sempre feitas a vista como uma iclenticlacle, mas simplesmente como a iclen-
partir elo ponto ele vista da identidade. Isto é, as classes nas ticlacle. Paradoxalmente, são as outras iclenticlacles que são
quais o mundo social é dividido não são simples agrupamen- marcadas como tais. Numa sociedade em que impera a su-
tos simétricos. Dividir e classificar significa, neste caso, premacia branca, por exemplo, "ser branco" não é conside-
também hierarquizar. Deter o privilégio ele classificar sig- rado uma iclenticlacle étnica ou racial. Num mundo gover-
nifica também deter o privilégio ele atribuir diferentes va- nado pela hegemonia cultural estacluniclense, "étnica" é a
lores aos grupos assim classificados. música ou a comida elos outros países. É a sexualidade
homossexual que é "sexualizada", não a heterossexual. A
A mais importante fonna ele classificação é aquela que
força h omogeneizaclora ela iclenticlacle nonnalé.diretameílte·--
' se estrutura em torno ele oposições binárias, isto é, em torno
proporcional à sua invisibiliclacle.
ele duas classes polarizadas. O filósofo francês Jacques Der-

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Na medida em que é uma operação de diferenciação, de de gênero (quando se justifica a dominação masculina por
produção de diferença, o anormal é inteiramente constihl- meio de argumentos biológicos, por exemplo), ele é menos
tivo do normal. Assim como a definição da identidade de- utilizado nas tentativas de estabelecimento das identidades
pende da diferença, a definição do normal depende da de- nacionais, onde são mais comuns essencialismos culturais.
finição do anormal. Aquilo que é deixado de fora é sempre . No caso das identidades nacionais, é extremamente co-
parte da definição e da constituição do "dentro". A definição mum, por exemplo, o apelo a mitos fundadores. Aside~Ú­
daquilo que é considerado aceitável, desejável, natural é dades nacionais nmcionam, em grande parte, j)óí' meio
inteiramente dependente da definição daquilo que é consi- daquilo que Benedith Anderson chamou de ··comunidades
derado abjeto, rejeitável, antinatural. A identidade hegemó- imaginadas". Na medida em que não existe nenhuma ··co-
nica é permanentemente assombrada pelo seu Outro, sem lllll_nid:.Jde natural" em tomo da qualse possam reunir as
cuja existência ela não faria sentido. Como sabemos desde pessoas que constituem um determinado agrupamento na-
o início, a diferença é parte ativa da formação da identidade. cional, ela precisa ser inventada, imaginada. É necessário
criar laços imaginários que permitam "ligar" pessoas que,
Fixando a identidade sem eles, seriam simplesmente indivíduos isolados, sem
nenhum ··sentimento" de terem qualque~ ~üiia em comum:
O processo de produção da identidade oscila entre dois
movimentos: de um lado, estão aqueles processos que ten- A língua tem sido um dos elementos centrais desse
dem a fixar e a estabilizar a identidade; de outro, os procesc __ processo - a história da imposição das nações modernas
·sos que tendem a subvertê-la e a desestabilizá-I~. É um coincide, em grande parte, com a história da imposição de
processo semelhante ao que ocone com os mecanismos uma língua nacional única e comum. Juntamente com a
discursivos e lingüísticos nos quais se sustenta a produção língua, é central a consh·ução de símbolos nacionais: hinos,
da identidade. Tal como a linguagem, a tendência da iden- bandeiras, brasões. Entre esses símbolos, destacam-se os
tidade é para a fixação. Entretanto, tal como ocone com a chamados "mitos fundadores". Fundamentalmente, um mi-
linguagem, a identidade está sempre escapando. A fixação to fundador remete a um momento crucial do passado em
é uma tendência e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade. que algum gesto, algum acontecimento, em geral herói-
co, épico, monumental, em geral iniciado ou executado
A teoria cultural e social pós-estruturalista tem percor-
por alguma figura "providencial", inaugurou as bases de
rido os diversos territórios da identidade para tentar descre-
urna suposta identidade nacional. Pouco importa se os
ver tanto os processos que tentam fixá-la quanto aqueles que
fatos assim narrados são "verdadeiros" ou não; o que im-
impedem sua fixação. Tem sido analisadas, assim, as identi-
porta é que a narrativa fundadora funciona para dar à
dades nacionais, as identidades de gênero, as identidades
identidade nacional a liga sentimental e afetiva que lhe
sexuais, as identidades raciais e étnicas. Embora estejam em
garante uma certa estabilidade e fixação, sem as quais ela
fimcionamento, nessas diversas dimensões da identidade
não teria a mesma e necessária eficácia.
cultural e social, ambos os tipos de processos, eles obede-
cem a dinâmicas diferentes. Assim, por exemplo, enquanto Os mitos fundadores que tendem a fixar as identidades
o recurso à biologia é evidente na dinâmica da identidade nacionais são, assim, um exemplo importante de essencia-

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lismo cultural. Embora aparentemente baseadas em argu-
mentos biológicos, as tentativas de fixação da identidade que !'1ente teóricos; eles são parte integral da dinâmica da pro-
apelam para a natureza não são menos culturais. Basear a dução da identidade e da diferença. ·· - - --
inferiolização das mulheres ou de certos grupos "raciais" ou 0 hibridismo, por exemplo, tem sido analisado, sobre-
étnicos nalguma suposta característica natural ou biológica não tudo, em relação com o processo de produção das identida-
é simplesmente um eno "científico", mas a demonstração da des nacionais, raciais e éhlicas. Na perspectiva da temia cul-
imposição de uma eloqüente grade cultural sobre uma nature- hrral contemporânea, o hibridismo- a mistura, a conjunção, o
za que, em si mesma, é - culturalmente f:'llando - silenciosa. intercurso enh·e diferentes nacionalidades, entre diferentes
As chamadas interpretações biológicas são, antes de serem ehlias, enh·e diferentes raças - coloca em xeque aqueles pro-
biológicas, interpretações, isto é, elas não são mais do que a cessos que tendem a conceber as identidades como fundan1en-
imposição de uma mah'iz de significação sobre uma matélia talmente separadas, divididas, segregadas. O processo de hi-
que, sem elas, não tem qualquer significado. Todos os essen- blidização confunde a suposta pureza e insolubilidade dos
cialismos são, assim, culturais. 1bdos os essencialismos nas- grupos que se reúnem sob as diferentes identidades nacionais
cem do movimento de fixação que caracteriza o processo de raciais ou éhlicas. A identidade que se fom1a por meio d~
produção da identidade e da diferença. hibridismo não é mais integralmente nenhuma das identi-
dades originais, embora guarde traços delas.
Subvertendo e complicando a identidade Não se pode esquecer, entretanto, que a hibridização se\
Mais interessantes, entretan_tQ,_,<;ãD..JlS_movimentos_que~.­ dá entre identidades situadas assimeh·icamente em relação '
çonsj'üram pal·a complicar~ s;b~erteraidentid:.tcle. i\. teoria ao poder. Os processos de hibridização analisados pela teo-
cilftui:alcorí.tempoi=ãnea tem destacado alguns-desses movi- ria cultural contemporânea nascem de relações conflituosas
mentos. Aliás, as metáforas utilizadas para descrevê-los entre diferentes grupos nacionais, raciais ou étnicos. Eles
recorrem, quase todas, à própria idéia de movimento, de estão ligados a histórias de ocupação, colonização e destnli-
viagem, de deslocamento: diáspora, cruzamento de fi·ontei- ção. Trata-se, na maioria dos casos, de uma hibridização
ras, nomadismo. A figura do flaneur, descrita por Baudelaire forçada. O que a teoria culttrral ressalta é que, ao confundir
e retomada por Benjamin, é constantemente citada como a estabilidade e a fixação da identidade, a hibridização, de
exemplar de identidade móvel. Embora de forma indireta, alguma forma, também afeta o poder. O "terceiro espaço"
as metáforas da hibridização, da miscigenação, do sincretis- (Bhabha, 1996) que resulta da hibridização não é determi-
mo-e datfavesfisrno tan1bém aludem a alguma espécie de nado, nunca, unilateralmente, pela identidade hegemónica:
mobilidade entre os diferentes territórios da identidade. As ele introduz uma diferença que constitui a possibilidade de
metáforas que buscam enfatizar os processos que compli- seu questionamento.
cam e subvertem a identidade Cjllerem enfatizar:- em con- O hibridismo está ligado aos movimentos demográficos
traste com o processo que tenta fixi.:-l;:s~ aqtlilo que trabalha . que permitem o contato entre diferentes identidades: as
j)ara co-rili·àricn'=-seatendência a essencializá-las, De acordo diásporas, os deslocamentos nômades, as viagens, os cruza-
com essas perspectivas, esses processos não são simple.sc mentos de fi·onteiras. Na perspectiva da teoria cultural con-
temporânea, esses movimentos podem ser literais, como na
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diáspora forçada dos povos africanos por meio da escraviza- Se o movimento entre fronteiras coloca em evidência a
r- - - ' - - - -- ----"·---
ção, por exemplo, ou podem ser simplesmente metafóricos. instabif~i§I~daiC!~n_tidacfe~~é Da§ p~·ó.P-~ias1TilhasJ~&~,;=:-.--
"Cruzar fronteiras'', por exemplo, pode significar simples- teira, nos limiares, nosinterstícios, que sua prec~~Úxl~de-se ---
mente mover-se livremente entre os territórios simbólicos toma mais visível. Aqui, mais do que a partida ou a chegada,
de diferentes identidades. "Cruzar fronteiras" significa não é cruzm· a fronteira, é estar ou permanecer na fronteira, que
respeitar os sinais que demarcam - "mtificialmente" - os é oacontecimento crítico. Neste caso, é a teorização cultural
limites entre os tenitó1ios das diferentes identidades. contemporânea sobre gênero e sexualidade que ganha cen-
Mas é no movimento literal, concreto, de grupos em tralidade. Ao chamar a atenção para o caráter cultural e
movimento, por obrigação ou por opção, ocasionalmente ou construído do gênero e da sexualidade, a teoria feminista e
constantemente, que a teoria cultural contemporânea vai a. teoria queer contribuem, de forma decisiva, pat·a o ques, _
buscar inspiração para teorizar sobre os processos que ten- twnatnento das oposições binárias - masculino/feminino,
dem a desestabilizar e a subverter a tendência da identidade heterossexual/homossexual- nas quais se baseia o processo
à fixação. Diásporas, como a dos negros ali-icanos escraviza- de fixação das identidades de gênero e das identidades sexuais.
dos, por exemplo, ao colocar em contato diferentes culturas A possibilidade de "cruzar fronteiras" e de "estar na fi·onteirá'
e ao favorecer processos de miscigenação, colocam em mo- de ter uma identidade atnbígua, indefinida, é uma demonsh·a~
vimento processos de hibridização, sincretismo e criouliza- çãQ do caráter "attificialmente" imposto das identidades fixas.
ção cultural que, forçosamente, transformam, desestabili- o "cmzatnento de fronteiras" e ocnlti~opropo~Ít~do de ide~-­
zam e deslocam as identidades originais. Da mesma forma, tidades ambíguas é, enh·etanto, ao mesmo tempo uma podero-
movimentos migratórios emgeral,_com~_cJs que, nas últimas sa estratégia política de questionatnento das operações de
âecadas, por exemplo,-desl~caram granles-cÓntillgenfes fixação da identidade. A evidente artificialidade da identi-
populacionais 'das antigas colônlas p;'liaas-antlgas nÍetrópÜ-- c!ade das_p~sso_fls_tr_ayf)stidas_f)_das que se apresentatn como
les, favorecem processos que afetam tanto as identidades drag-queens, por exemplo, denunci~menCl's-evidente _
subordinadas quanto as hegemónicas. Fímilmente, é a viagem artifiCi'alidade de
todas as identidades. . - -- - -
em geral que é tomada como metáfora do caráter necessatia-
mente móvel da identidade. Embora menos h·aumática que a Identidade e diferença: elas têm que ser
diáspora ou a migração forçada; ã viagem obí1ga quem viaja a , representadas
sentir-se "esh·angeiro", posicionando-o, ainda que temporatia-
Já sabemos que a identidade e a diferença estão estrei-
mente, como o "ouh·o". A viagem proporciona a experiência do _
tamente ligadas a siBtemas de significação. A identidade é
"não sentir-se em casá' que, na perspectiva da teoria cultural
um significado ..:. cultural e socialmente atribuído. A teoria
contemporânea, cm·acteiiza, na verdade, toda identidade cu!-·
:_u~llr~_ rec~~essa mesma idéia por meio do
tural. Na viagem, podemos experimentar, ainda que de
--~to de representaçf(Q,_'f1!ra a teoria cultural contempo-
forma limitada, as delícias - e as inseguranças - da instabic
ranea, a identidade e a diferença estão estreitamente asso-
e
!idade da precariedade da identidade.
ciadas a sisten1a_sde repre_se_ntf(Ção.
~--~ ·-------- ----=----

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Q conceito de representação tem uma longa história, o sentação mental ou interior. A representação é, aqui, sempre
que lhe confere uma--:;:;;.~ltipÜ~idade de significados. Na marca ou traço visível, exterior.
histó1ia da filosofia ocidental, a idéia de representação está
Em segundo lugm; na perspectiva pós-estruturalista, o
ligada à busca de formas apropriadas de tomar o "real" presen-
conceito de representação incorpora todas as características
te - de apreendê-lo o mais fielmente possível por meio de
de indeterminação, ambigüidade e instabilidade atribuídas
sistemas de significação. Nessa histó1ia, a representação tem-se
à linguagem. Isto significa questionar quaisquer das preten-
apresentado em suas duas dimensões- a representação exter-
sões miméticas, especulares ou reflexivas atribuídas à re-
na, por meio de sistemas de signos como a pintura, por exem-
presentação pela perspectiva clássica. Aqui, a representação
plo, ou a própria linguagem; e a representação interna ou
mental- a representação do "reaYna ~o;;:;;-~iful.~ia=~-- --- não aloja a presença do "real'' ou do significado. A repre-
sentação não é simplesmente um meio transparente de
Ó.pó;~~tl:.;t;;;:;J;~~~~~ch;;;;:~;d~-;;fil~~ofia da diferen- expressão de algum suposto referente. Em vez disso a
ça'' erguem-se, em parte, como uma reação à idéia clássica representação é, como qualquer sistema de significação,
de representação. É precisamente por conceber a lingua- uma f~rm~ de atribuição de sentido. Como tal, ii repre-
gem - e, por extensão, todo sistema de significação - sentaçao e um sistema lingüístico e cultural: arbifra!Cío-
corno uma estrutura instável e indeterminada que o pós-es- indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder.'
truturalismo questiona a noção clássica de representação.
É aqui que a representação se liga à identidade e à
Isso não impediu, entretanto, que teóricos e teóricas ligados
_diferença. A identidade e a diferença são estreitamente
sobretudo aos Estudos Culturais corno, por exemplo, Stuart
dependentes da representação. É por meio da repre-
Hall, "recuperassem' o conceito de representação, desen-
sentação, assim compreendida, que a identidade e a dife-
volvendo-o em conexão com uma teorização sobre a identi-
rença adquirem sentido. É por meio da representação que,
dade e a diferença.
por assim dizc1; a identidade e a diferença passam a existir.
Nesse contexto, a representação é concebida corno um Representar significa, neste caso, dizer: "essa é a identida-
sistema de significação, mas descartam-se os pressupostos de", "a identidade é isso".
realistas e miméticos associados com sua concepção filosó-
É também por meio da representação que a identidade
fica clássica. Trata-se de uma representação pós-estrutura-
e a diferença se ligam a sistemas de poder. Quem tem o
lista. Isto significa, primeiramente, que se rejeitam, so-
poder de rep1~esentm· tem o poder de definir e determinar
bretudo, quaisquer conotações mentalistas ou qualquer as-
a_identidade. E por isso que a representação ocupa um lugar
sociação com uma suposta interioridade psicológica. No
tao central na teorização contemporânea sobre identidade·
registro pós-estruturalista, a representação é concebida uni-
e nos movimentos sociais ligados à identidade. Questionar
camente cm sua dimensão de significante, isto é, como
a identidade e a diferença significa, nesse contexto, questio-
sistema de signos, como pura marca material. A repre-
nar os sistemas de representação que lhe dão suporte e (
sentação expressa-se por meio de uma piútura, de uma
sustentação. No centro da crítica da identidade e da dife-
fotografia, de um filme, de um texto, de uma expressão oral.
rença está uma crítica das suas formas de representação.
A representação não é, nessa concepção, nunca, repre-
Não é difícil perceber as implicações pedagógicas e curri-

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culares dessas conexões entre identidade e representação. posições fazem com que algo se efetive, se realize. Austin
A pedagogia e o cuniculo deveriam ser capazes de oferecer chama a essas proposições de "perfmmativas". São exem-
oportunidades para que as crianças e os/as jovens desen- plos típicos de proposições perfonnativas: "Eu vos declaro
volvessem capacidades de crítica e questionamento dos marido e mulher", "Prometo que te pagarei no fim do mês"
sistemas e das formas dominantes de representação da iden- "Declaro inaugurado este monumento". '
tidade e da diferença.
Em seu sentido estrito, só podem ser consideradas per-
formativas aquelas proposições cuja enunciação é absoluta-
Identidade e diferença como performatividade mente necessária pm·a a consecução do resultado que anun-
Remeter a identidade e a diferença aos processos dis- ciam. Entretanto, muitas sentenças descritivas acabam
cursivas e lingüísticos que as produzem pode significm; funcionando como performativas. Assim, por exemplo, uma
entretanto, outra vez, simplesmente fixá-las, se nos limitar- sentença como "João é pouco inteligente", embora pm·eça
mos a compreender a representação de uma fmma pura- ser simplesmente descritiva, pode funcionm·- em um sen-
mente descritiva. Será o conceito de perfmmatividade, tido mais amplo - como performativa, na medida em que
desenvolvido, neste contexto, sobretudo pela teórica Judith sua repetida enunciação pode acabar produzindo 0 "fato"
Butler (1999), que nos permitirá contornm· esse problema. que supostamente apenas deveria descrevê-lo. É precisa-
O conceito de performatividade desloca a ênfase na identi- mente a partir desse sentido ampliado de "performativida-
dade como descrição, como aquilo que é - uma ênfase que de" que a teórica Judith Butler analisa a produção da iden-
é, de certa forma, mantida pelo conceito de representação tidade como uma questão de performatividade.
-para a idéia de "tornar-se", pm·a uma concepção da iden- Em geral, ao dizer algo sobre certas características iden-
tidade como movimento e transfmmação. titárias de algum grupo cultural, achamos que estamos sim-
A formulação inicial do conceito de "performatividade" plesmente descrevendo uma situação existente, um "fato"
deve-se a J.A. Austin (1998). SegundoAustin, contrariamen- do mundo social. O que esquecemos é que aquilo que di-
te à visão que geralmente se tem, a linguagem não se limita zemos faz parte de uma rede mais ampla de atos lingüís-
a proposições que simplesmente descrevem uma ação, uma tiCos que, em seu conjunto, contribui para definir ou
situação ou um estado de coisas. Assim, se nos pedirem para reforçar a identidade que supostamente apenas estamos
dar um exemplo de uma proposição típica, provavelmente descrevendo. Assim, por exemplo, quando utilizamos
nos sairíamos com algo como "O livro está sobre a mesa''. uma palavra racista como "negrão" para nos referir a uma
Trata-se, tipicamente, de uma proposição que Austin chama pessoa negra do sexo masculino, não estamos simples-
de "constatativa'' ou "descritiva''. Ela simplesmente descre- mente fazendo uma descrição sobre a cor de uma pessoa.
ve uma situação. Mas a linguagem tem pelo menos uma Estamos, na verdade, inserindo-nos em um sistema lin-
outra categoria de proposições que não se ajustam a essa güístico mais amplo que contribui para reforçar a negativi-
definição: são aquelas proposições que não se limitam a dade atribuída à identidade "negra".
descrever um estado de coisas, mas que fazem com que Esse exemplo serve também para ressaltar outro ele-
alguma coisa aconteça. Ao serem pronunciadas, essas pro- mento importante do aspecto performativo da produção da

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identidade. A eficácia produtiva dos enunciados performa- sempre retirada de um determinado contexto e inserida em
tivos ligados à identidade depende de sua incessante repe- um contexto diferente.
tição. Em termos da produção da identidade, a É exatamente essa "citacionalidade" da linguagem que
ocorrência de uma única sentença desse tipo não teria se combina com seu caráter performativo para fazê-la tra-
nenhum efeito importante. É de sua repetição e, sobre- balhar no processo de produção da identidade. Quando
tudo, da possibilidade de sua repetição, que vem a força utilizo a expressão "negrão" para me referir a um homem
que um ato lingüístico desse tipo tem no processo de negro, não estou simplesmente manifestando uma opinião
produção da identidade. É aqui que entra outra noção que tem origem plena e exclusiva em minha intenção, em
semiótica importante, uma noção que foi especialmente minha consciência ou minha mente. Ela não é a simples
ressaltada por Jacques Derrida. Uma característica es- expressão singular e única de minha soberana e livre opi-
sencial do signo é que ele seja repetível. Isto quer dizer nião. Em um certo sentido, estou efetuando uma operação
que quando encontro um signo como "vacà', eu devo ser de "recorte e colagem". Recorte: retiro a expressão do
capaz de reconhecê-lo como se referindo, de forma relati- contexto social mais amplo em que ela foi tantas vezes
vamente estável, sempre, à mesma coisa, apesar de vadações enunciada. Colagem: insiro-a no novo contexto, no contexto
"acidentais" - diferenças de caligrafia, por exemplo. Se as em que ela reaparece sob o disfm-ce de minha exclusiva
palavras ou os signos que utilizamos para nos referir às opinião, como o resultado de minha exclusiva operação
coisas ou aos conceitos tivessem que ser reinventados, a mental. Na verdade, estou apenas "citando". É essa citação
cada vez e por cada indivíduo - isto é, se não fossem re- que recoloca em ação o enunciado performativo que reforça
petíveis- já não seriam signos tais como os concebemos. o aspecto negativo atribuído à identidade negra de nosso
Derrida (1991) estende essa idéia para a escrita, em exemplo. Minha fi·ase é apenas mais uma oconência de uma
particulm~ e, mais geralmente, para a linguagem. Para Der- citação que tem sua migem em um sistema mais amplo de
rida, o que caracteriza a escrita é precisamente o fato ele operações de citação, de performatividade e, finalmente, de
que, para funcionm· como tal, uma mensagem escrita qual- definição, produção e reforço da identidade cultural.
quer precisa ser reconhecível e legível na ausência de quem Segundo Judith Butler (1999), a mesma repetibilidade
a escreveu e, na verdade, até mesmo na ausência de seu que garante a eficácia dos atos performativos que reforçam
suposto destinatário. Mais radicalmente, ela é inde- as identidades existentes pode significar também a possibi-
pendente até mesmo de quaisquer supostas intenções que lidade da intem.1pção das identidades hegemônicas. A repeti-
a pessoa que a escreveu pudesse ter tido no momento em ção pode ser interrompida. A repetição pode ser questionada
que o fez. Tudo isso é sintetizado na fórmula de que "a e contestada. É nessa interrupção que residem as possibilida-
escrita é repetível". Segundo Derrida, isso vale para a lin- des de instauração de identidades que não representem sim-
guagem em geral. Ele chama essa característica, essa repe- plesmente a reprodução das relações de poder existentes. É
tibilidade da escrita e da linguagem, de "citacionalidade". essa possibilidade de interromper o processo de "recorte e
Nesses termos, o que distingue a linguagem (como uma colagem", de efetum· uma parada no processo de "citacionali-
extensão da escrita) é sua citacionalidade: ela pode ser dade" que caracteriza os atos performativos que reforçam

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as diferenças instauradas, que torna possível pensar na pro- identidade é instável, contraditória, fi·agmentada, inconsis-
dução de novas e renovadas identidades. tente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas dis-
cursivas e nan-ativas. A identidade está ligada a sistemas de
Pedagogia como diferença representação. A identidade tem estreitas conexões com
relações de poder.
Se prestarmos, pois, atenção à teorização cultural con-
temporãnea sobre identidade e diferença, não poderemos Como tudo isso se traduziria em termos de currículo e
abordar o multiculturalismo em educação simplesmente pedagogia? O outro cultural é sempre um problema, pois
como uma questão de tolerância e respeito para com a coloca pe1manentemente em xeque nossa própria identida-
diversidade cultural. Por mais edificantes e desejáveis que de. A questão da identidade, da diferença e do outro é um
possam parecer, esses nobres sentimentos impedem que pro~lema social ao m~smo tempo que é um problema pe-
vejamos a identidade e a diferença como processos de dagogJco e curricular. E um problema social porque, em um
produção social, como processos que envolvem relações de mundo heterogêneo, o encontro com o outro, com o estra-
poder. Ver a identidade e a diferença como uma questão de nho, com o diferente, é inevitável. É um problema pedagó-
produção significa tratar as relações entre as diferentes giCo e curricular não apenas porque as crianças e os jovens,
culturas não como uma questão de consenso, de diálogo ou em uma sociedade atravessada pela diferença, forçosamente
comunicação, mas como uma questão que envolve, funda- interagem com o outro no próprio espaço da escola, mas
mentalmente, relações de poder. A identidade e a diferença também porque a questão do outro e da diferença não pode
não são entidades preexistentes, que estão aí desde sempre deixar de ser matéria de preocupação pedagógica e curricu-
ou que passaram a estar a ai a partir de algum momento lmc Mesmo quando explicitamente ignorado e reprimido, a
fundador, elas não são elementos passivos da cultura, mas volta do outro, do diferente, é inevitável, explodindo em
têm que ser constantemente criadas e recriadas. A identi- conflitos, confi·ontos, hostilidades e até mesmo violência. O
dade e a diferença têm a ver com a atribuição de sentido ao reprimido tende a voltar - reforçado e multiplicado. E 0
mundo social e com disputa e luta em torno dessa atribuição. problema é que esse "outro", numa sociedade em que a
Nessa perspectiva, podemos fazer uma síntese, descre- identidade torna-se, cada vez mais, difusa e descentrada,
expressa-se por meio de muitas dimensões. O outro é o ou-
vendo o que a identidade- tudo isso vale, igualmente, para
a diferença- não é e o que a identidade é. h·o gênero, o outro é a cor diferente, o outro é a outra
sexualidade, o outro é a outra raça, o outro é a outra nacio-
Primeiramente, a identidade não é uma essência; não é nalidade, o outro é o coqJo diferente.
um dado ou um fato - seja da natureza, seja da cultura. A
identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, perma- Uma primeira estratégia pedagógica possível, que po-
nente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva, deríamos classificar como "liberal", consistiria em estimular
acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos e cultivm· os bons sentimentos e a boa vontade para com a
dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um chamada "diversidade" cultural. Neste caso, o pressuposto
processo de produção, uma relação, um ato performativo. A básico é o de que a "naturezà' humana tem uma variedade
de formas legítimas de se expressar culturalmente e todas

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devem ser respeitadas ou toleradas - no exercício de uma grupo, exercícios corporais, dramatizações são estratégias
tolerância que pode variar desde um sentimento paternalis- comuns nesse tipo de abordagem.
ta e superior até uma atitude de sofisticação cos~opolita ~~ Em algum lugar intermediário entre essas duas aborda-
convivência para a qual nada que é humano lhe é estranho . gens, situa-se a estratégia talvez mais comumente adotada
Pedagogicamente, as crianças e os jovens, nas escolas, se- na rotina pedagógica e curricular das escolas, que consiste
riam estimulados a entrar em contato, sob as mais varia- em apresentar aos estudantes e às estndantes uma visão
das formas, com as mais diversas expressões culturais dos superficial e distante das diferentes culturas. Aqui, o outro
diferentes grupos culturais. Para essa perspectiva, a di- aparece sob a rubrica do curioso e.do exótico. Além de não
versidade cultural é boa e expressa, sob a superfície, nos- questionar as relações de poder envolvidas na produção da
sa natureza humana comum. O problema central, aqui, é identidade e da diferença culturais, essa estratégia as refor-
que esta abordagem simplesmente deixa de questionar ça, ao construir o outro por meio das categorias do exotismo
as relações de poder e os processos de diferenciação que, e da curiosidade. Em geral, a apresentação do outro, nessas
antes que tudo, produzem a identidade e a diferença. Em abordagens, é sempre o suficientemente distante, t;wto no
geral, o resultado é a produção de novas dicotomias, como espaço quanto no tempo, para não apresentar nenhum risco
a do dominante tolerante e do dominado tolerado ou a da de confronto e dissonância.
identidade hegemónica mas benevolente e da identidade Finalmente, gostaria de argumentar em favor de uma
subalterna mas "respeitadá'. estratégia pedagógica e curricular de abordagem da identi-
Uma segunda estratégia, que poderíamos chamar de dade e da diferença que levasse em conta precisamente as
"terapêuticá', também aceita, liberalmente, que a diversi- contribuições da teoria cultural recente, sobretudo aquela
dade é "natural" e boa, mas atribui a rejeição da diferença de inspiração pós-estruturalista. Nessa abordagem, a peda-
e do outro a distúrbios psicológicos. Para essa perspectiva, gogia e o currículo tratariam a identidade e a diferença como
a incapacidade de conviver com a diferença é fruto de questões de política. Em seu centro, estaria uma discussão
sentimentos de discriminação, de preconceitos, de crenças da identidade e da diferença como produção. A pergunta
distorcidas e de estereótipos, isto é, de imagens do outra crucial a guiar o planejamento de um currículo e de uma
que são fundamentalmente erróneas. A estratégia pedagó- pedagogia da diferença seria: como a identidade e a diferen-
gica correspondente consistiria em "tratar" psicologicamen- ça são produzidas? Quais são os mecanismos e as institnições
te essas atitudes inadequadas. Como o tratamento pre- que estão ativamente envolvidos na criação da identidade e
conceítnoso e discriminatório do outro é um desvio de de sua fixação?
conduta, a pedagogia e o currículo deveriam proporcionar Para isso é crucial a adoção de uma teoria que descreva
atividades, exercícios e processos de conscientização que e explique o processo de produção da identidade e da di-
permitissem que as estndantes e os estudantes mudassem ferença. Uma estratégia que simplesmente admita e reco-
suas atitudes. Para essa abordagem, a discriminação e o nheça o fato da diversidade toma-se incapaz de fornecer os
preconceito são atitudes psicológicas inapropriadas e de- instrumentos para questionar precisamente os mecanismos
vem receber um tratamento que as corrija. Dinâmica de e as instituições que fixam as pessoas em determinadas

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identidades culturais e que as separam por meio da diferen- cidade estende e multiplica, prolifera, dissemina. A diversi-
ça cultural. Antes de tolerar, respeitar e admitir a diferença, dade é um dado- da natureza ou da cultura. A multiplicidade
é preciso explicar como ela é ativamente produzida. A é um movimento. A diversidade reafirma o idêntico. A multi-
diversidade biológica pode ser um produto da natureza; o plicidade estimula a diferença que se recusa a se fundir com
mesmo não se pode dizer da diversidade cultural. A diver- o idêntico. Como diz José Luis Pardo:
sidade cultural não é, nunca, um ponto de origem: ela é, em Respeitar a diferença não pode significar "deixar que o
vez disso, o ponto final de um processo conduzido por outro seja como eu sou" ou «deixar que o outro seja diferente
operações de diferenciação. Uma política pedagógica e cur- de mim tal como eu sou diferente (do outro)", mas deixar que
ricular da identidade e da diferença tem a obrigação de ir o outro seja como eu não sou, deixar que ele seja esse outro
além das benevolentes declarações de boa vontade para com que não pode ser eu, que eu não posso ser, que não pode ser
um (outro) eu; significa deixar que o outro seja diferente,
a diferença. Ela tem que colocar no seu centro uma teoria
deixar ser uma diferençaquenão seja, em absoluto, diferença
que permita não simplesmente reconhecer e celebrar a di- enh·e duas identidades, mas diferença da identidade, deixar
ferença e a identidade, mas questioná-las. ser uma outridade que não é outra «relativamente a mim" ou
.. relativamente ao mesmo", mas que é absolutamente dife-
Por outro lado, os estudantes e as estudantes deveriam
rente, sem relação alguma com a identidade ou com a
ser estimulados, nessa perspectiva, a explorar as possibili- mesmidade (Pardo, 1996, p. 154).
dades de perturbação, transgressão e subversão das identi-
dades existentes. De que modo se pode desestabilizá-las, Essas poderiam ser as linhas gerais de um currículo e
denunciando seu caráter construído e sua artificialidade? uma pedagogia da diferença, de um currículo e de uma
Um currículo e uma pedagogia da diferença deveriam ser pedagogia que representassem algum questionamento não
capazes de abrir o campo da identidade para as estratégias apenas à identidade, mas também ao poder ao qual ela está
que tendem a colocar seu congelamento e sua estabilidade estreitamente associada, um currículo e uma pedagogia da
em xeque: hibridismo, nomadismo, travestismo, cnizamen- diferença e da multiplicidade. Em certo sentido, "pedago-
to de fronteiras. Estimulm; em matéria de identidade, o gia'' significa precisamente "diferença": educar significa
impensado e o arriscado, o inexplorado e o ambígug, em vez introduzir a cunha da diferença em um mundo que sem ela
do consensual e do assegurado, do conhecido e do assenta- se limitm·ia a reproduzir o mesmo e o idêntico, um mundo
do. Favorecei; enfim, toda experimentação que torne difícil parado, um mundo morto. É nessa possibilidade de abertura
o retorno do eu e do nós ao idêntico. para um outro mundo que podemos pensar na pedagogia
Aproximar - aprendendo, aqui, uma lição da chamada como diferença. Dessa forma, talvez possamos dizer sobre
"filosofia da diferença'' - a diferença do múltiplo e não do a pedagogia aquilo que Maurice Blanchot (1969, p. 115)
diverso. Tal como ocorre na aritmética, o múltiplo é sempre disse sobre a fala e a palavra: fazer pedagogia significa
um processo, uma operação, uma ação. A diversidade é "procurar acolher o outro como outro e o estrangeiro como
estática, é um estado, é estéril. A multiplicidade é ativa, é estrangeiro; acolher outrem, pois, em sua irredutível dife-
um fluxo, é produtiva. A multiplicidade é uma máquina de rença, em sua estrangeiridade infinita, uma estrangeiridade
produzir diferenças - diferenças que são irredutíveis à tal que apenas uma descontinuidade essencial pode conser-
identidade. A diversidade limita-se ao existente. A multipli- var a afirmação que lhe é própria''.

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DERRIDA, Jacques. Limited Inc. Campinas: Papiros, 1991. nos situamos relativamente ao conceito de "identidade"? Está-se
PARDO, José Luis. El sujeto inevitahle, in: CRUZ, Manuel (org.). efetuando uma completa desconstrução das perspectivas iden-
Tiempo de subjetividad. Barcelona: Paidós, 1996: 133-154. titárias em uma variedade de áreas disciplinares, todas as quais,
SAPIR, Edward. Language. Nova York: Harcourt Brace, 1921. de uma forma ou outra, criticam a idéia de uma identidade
integral, miginária e unificada. Na filosofia tem-se feito, por
exemplo, a crítica do sujeito auto-sustentável que está no
cenh·o da metafisica ocidental pós-cartesiana. No discurso da
crítica feminista e da crítica cultural influenciadas pela psica-
nálise têm-se destacado os processos inconscientes de fmma-
ção da subjetividade, colocando-se em questão, assim, as
concepções racionalistas de sujeito. As perspectivas que temi-
zam o pós-modernismo têm celebrado, por sua vez, a existência
de um "eu'' inevitavelmente perfoin1ativo. Thm-se delineado,
em suma, no contexto da crítica antiessencialista das concep-
ções étnicas, raciais e nacionais da identidade cultural e da
"política da localização", algumas das concepções teóricas
mais imaginativas e radicais sobre a questão da subjetivida-
de e da identidade. Onde está, pois, a necessidade de mais
uma discussão sobre a "identidade"? Quem precisa dela?
Existem duas formas de se responder a essa questão. A
primeira consiste em observar a existência de algo que
distingue a crítica desconstrutiva à qual muitos destes con-

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