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JÚLIO ASSIS SIMÕES
REGINA FACCHINI

Na trilha do arco-íris
D o m o v i m e n t o homossexual ao LGBT

BIBLIOTECA NGK PÜC/SP

100203151

EDITORA FUNDAÇÃO PEHSEU ABRAMO


Volumes já lançados:

Brasil — Mitojundador e sociedade autoritária As barricadas da saúde — Vacina e


Marilena Chaui protesto popular no Rio de Janeiro da
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Soldados da borracha — Trabalhadores entre Leonardo Pereira
o sertão e a Amazônia no governo Vargas
Maria Verônica Secreto Anarquismo e sindicalismo revolucionário —
Trabalhadores e militantes em São Paulo na
A luta armada contra a ditadura militar — Primeira República
a esquerda brasileira e a influência Edilene Toledo
da Revolução Cubana
Jean Rodrigues Sales Cinema brasileiro — Das origens à
Retomada
Do teatro militante à música engajada — Sidney Ferreira Leite
A experiência do CPC da UNE
(1958-1964) Afogados em leis — A CLT e a cultura
Miliandre Garcia política dos trabalhadores brasileiros
John French
0 império do Belo Monte — Vida e morte
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Joseli Nunes Mendonça
Relações internacionais do Brasil — de Vargas
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Paulo Fagundes Vizentini na música popular brasileira
Marcos Napolitano
Uma história dojeminismo no Brasil
Céli Pinto Dicionário do movimento operário: Rio de
Janeiro do século XIX aos anos 1920 —
Diretas já — 0 grito preso na garganta militantes e organizadores
Alberto Tosi Rodrigues Cláudio H. de M. Batalha

0 elo perdido — Classe e identidade de


Ao som do samba —
classe na Bahia
Uma leitura do carnaval carioca
Francisco de Oliveira
Walnice Nogueira Galvão
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Júlio Assis Simões (São Caetano do Sul - SP, 1957) é professor do Departamento
de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador-colaborador
d o Núcleo de Estudos de G ê n e r o (Pagu), da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Graduou-se em Ciências Sociais pela USP, e m 1980, e obteve o Mes-
trado em Antropologia Social e o Doutorado em Ciências Sociais na Unicamp. Foi
professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1990-2001). Publicou
0 dilema da participação popular (São Paulo: Marco Zero, 1992) e trabalhos sobre
movimentos sociais, participação política, uso de psicoativos, história das ciências
sociais, aposentadoria, envelhecimento e sexualidade.

Regina Facchini (São Paulo, 1969) é pesquisadora-colaboradora do Núcleo de


Estudos de Gênero (Pagu), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Graduou-se em Sociologia e Política pela Escola de Sociologia e Política de São
Paulo, em 1995, obteve o mestrado em Antropologia Social e o doutorado e m
Ciências Sociais na Unicamp. Publicou Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e
produção de identidades coletivas nos anos 90 (Rio de Janeiro, Garamond, 2005) e
trabalhos sobre movimentos sociais, participação política, saúde sexual e r e p r o -
dutiva, discriminação e violência, gênero e sexualidade.
D a d o s Internacionais d e Catalogação na Publicação (CIP)

Simões, Júlio Assis.


D o m o v i m e n t o h o m o s s e x u a l ao L G B T / Júlio Assis Simões, Regina
Facchini. - São Paulo : Editora F u n d a ç ã o Pcrscu A b r a m o , 2 0 0 9 .
196 p. - ( C o l e ç ã o História d o Povo Brasileiro)

ISBN 9 7 8 - 8 5 - 7 6 4 3 - 0 5 1 - 3

1. H o m o s s e x u a l i d a d e - Brasil. 2 . Identidade s e x u a l . 3. O r i e n t a ç ã o sexual.


4 . H o m o f o b i a . 5. M o v i m e n t o político. 6. M o v i m e n t o LGBT. 7 . História.
8. AIDS. I. Facchini, Regina. II.Título.

CDU 392(81)
CDD 301.2420981

(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal A r a ú j o - C R B 1 0 / 1 5 0 7 )


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Sumário

Introdução 11
Plano do livro 12
Sobre siglas, t e r m o s e n o m e s 14

Paradoxos da identidade 17
Visibilidade social e política 18
Brasil: paraíso ou inferno sexual? 24
A h o m o f o b i a e suas manifestações 25
Orientação sexual, g ê n e r o e identidades 28

Uma trajetória da política de identidades sexuais 37


A sexologia e o nascimento da identidade homossexual 37
O s p r i m ó r d i o s do ativismo e u r o p e u 40
O ativismo n o r t e - a m e r i c a n o e o gay power 43
Q u e s t õ e s de g ê n e r o 47
O i m p a c t o da Aids 51
A experiência brasileira 54

• 9 '
Fundação Perseu A b r a m o
Instituída pelo Diretório Nacional do
Partido dos Trabalhadores em maio de 1996.

Presidente: Nilmário Miranda


Vice-presidente: Elói Pietá

Diretores: Selma Rocha


Flávio Jorge
Iole Ilíada
Paulo Fiorilo

Editora Fundação Perseu Abramo


Coordenação Editorial
Rogério Chaves

Assistente Editorial
Raquel Maria da Costa

Participação especial na
edição do t e x t o
Sandra Brazil

Preparação de t e x t o
Claudemir D. de Andrade

Revisão de t e x t o
Flamarion Maués
Letícia Braun

Coordenador da Coleção
Fernando Teixeira da Silva

Equipe Editorial
Alexandre Fortes, Antonio Negro,
Fernando Teixeira (editor deste volume),
Hélio da Costa e Paulo Fontes

Capa e p r o j e t o gráfico
Eliana Kestenbaum

Editoração eletrônica
Enrique Pablo Grande

Imagem de capa
Paulo Pinto /Agência Estado
a
1 I Parada do Orgulho GLBT (São Paulo, 2007)

Este livro obedece às novas regras do


Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

© 2 0 0 8 b y Júlio Assis S i m õ e s e R e g i n a F a c c h i n n i
ISBN 9 7 8 - 8 5 - 7 6 4 3 - 0 5 1 O
I a edição: abril de 2009

Todos os direitos reservados à


Editora Fundação Perseu Abramo
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04117-091 • São Paulo • SP • Brasil
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www. efpa. com. br
A todos e todas que ajudaram a construir
a história que contamos nestas páginas.
Da "movimentação"ao movimento 63
Luzes e p e n u m b r a s da cidade 64
"Bonecas", "bichas", "bofes", "entendidos", "gays" 69
O s anos 1970 e a expansão dos espaços de sociabilidade 72
Repressão, desbunde e verbo 74

Libertários na "abertura" 81
Saindo do g u e t o 82
D e b o c h e e dissenso 88
O Somos se assume 96
E n t r e tapas e beijos 103
O Lampião se apaga 108
N o v o s desafios 111

Atentos efortes: a luta por direitos diante da Aids 117


"E legal ser homossexual" 118
As respostas à Aids 128
Epidemia de informação e aprendizado político 132

A bandeira do arco-íris: o movimento LGBT atual 137


Conexões c o m o Estado: expansão e segmentação 140
C o n e x õ e s com o m e r c a d o : negociações e tensões 148

Considerações finais: conquistas e desafios 153

Cronologia (1978-2007) 161

Bibliografia comentada 173

Notas 177

Bibliografia 185

Crédito das Imagens 191

• I O *
Introdução

C^ste livro procura apresentar em grandes traços a trajetória percorrida pelo


movimento político em torno da homossexualidade no Brasil, desde a sua emergência
no final dos anos 1970 até seus desdobramentos presentes, na forma do movimento
LGBT. Buscamos reunir dados de pesquisa já existentes e dispersos, com o objetivo de
oferecer uma reflexão introdutória sobre os significados do processo de politização
das identidades sexuais e de gênero ocorrido entre nós nas ultimas décadas.
O Brasil, como vários outros países, passa por um processo de importantes
redefinições que têm como foco a sexualidade. Discute-se o que deve ou não ser
tolerado ou criminalizado, o que deve ou não receber o amparo legal e a atenção
de políticas públicas. A primeira vista, tais discussões podem parecer afeitas à mo-
ralidade privada, ou dizer respeito apenas a minorias muito específicas. No entanto,
têm um alcance seguramente maior. Elas incidem sobre as bases da organização
social e da cultura. Elas correspondem aos lances de uma batalha em torno do sig-
nificado do casamento, da família, da parentalidade e da própria identidade pessoal.
Está em xeque o preceito segundo o qual a família só pode ser formada pela união
legal de indivíduos de sexos diferentes, assim como o que impõe como ideal para
uma criança viver numa família composta por um pai e uma mãe. Está em causa
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

a sensibilidade para com afetos e desejos que extrapolam a heterossexualidade


convencional, assim como para com as diversas (des)conexões entre sexo, gênero,
comportamento e desejo na definição da pessoa e seus direitos.
As controvérsias públicas e m t o r n o da homossexualidade, assim como sobre
outras categorias de identidade referidas ao c o r p o , ao gênero e à orientação do
desejo, fazem parte de uma luta mais ampla em t o r n o do que é tido como moral,
saudável, legítimo e legal em t e r m o s de sexo e de tudo aquilo que constitui o
senso primordial da identidade da pessoa e seus laços sociais fundamentais. São,
assim, uma evidência a mais — se ainda há q u e m precise ser convencido — de que
a sexualidade, longe de ser matéria confinada à intimidade e à privacidade de
cada qual, é u m terreno político p o r excelência.
Em torno da sexualidade e de suas múltiplas expressões, discursam múltiplas
vozes discordantes, tentando se sobrepor umas às outras, em embates que não
se restringem às ruas, aos parlamentos ou aos tribunais, mas envolvem todas as
áreas da vida social. A família, a escola, as igrejas, a mídia, a polícia, os esportes,
a medicina, o direito e a ciência e m geral constituem a sexualidade em alvo pri-
vilegiado de regulação de condutas e exercício de poder, não raro convertendo-a
em fonte de estigma, sofrimento e opressão. É desse m o d o que a sexualidade se
faz u m idioma onipresente e p o d e r o s o para exprimir hierarquias e desigualdades
de toda sorte e de amplo alcance.
O Movimento de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Trans-
gêneros, que hoje se faz designar pela sigla LGBT, é um protagonista importante
nesse campo de lutas que incidem sobre a sexualidade, como dimensão abrangente
e crucial, seja no plano da vida social ou da subjetividade, seja nos modos como nos
reconhecemos e somos reconhecidos. Ao mesmo tempo, o movimento LGBT, assim
como os sujeitos que pretende representar, carrega as ambivalências, os paradoxos
e as tensões que constituem a sociedade e a cultura em que estão mergulhados.

Plano do livro

Abrimos com algumas considerações sobre homossexualidade, identidade e


política, em que procuramos t a m b é m clarificar o p o n t o de vista geral que norteia
o m o d o como apresentamos e i n t e r p r e t a m o s a trajetória do movimento LGBT.

• 1 2 O -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

A noção de homossexualidade, c o m o foco privilegiado de identidade pessoal


e de mobilização coletiva, faz p a r t e de u m a configuração histórica recente, em
que aspectos comuns, d e alcance mais amplo, se combinam com peculiaridades
locais. Sendo assim, buscamos traçar a construção da noção m o d e r n a de "ho-
mossexual" e situar a centralidade da questão da identidade na construção dos
atuais movimentos políticos em defesa da homossexualidade, desde suas origens
e desenvolvimentos n o Ocidente contemporâneo. Em que pesem as especificida-
des da situação brasileira, acreditamos que tais referências são fundamentais para
c o m p r e e n d e r os processos de politização da homossexualidade que ocorreram
aqui e em vários outros lugares.
Adotaremos a convenção, seguida p o r vários estudiosos 1 , de que o desa-
brochar de u m m o v i m e n t o homossexual no Brasil se deu n o final da década de
1970, com o surgimento de grupos voltados explicitamente à militância política,
formados por pessoas que se identificavam c o m o homossexuais (usando diferentes
t e r m o s para tanto) e buscavam promover e difundir novas formas de representação
da homossexualidade, contrapostas às conotações de sem-vergonhice, pecado,
doença e degeneração. Considerando tais características — de aglutinar pessoas
dispostas a declarar sua homossexualidade e m público e que se apresentavam
como parte de uma minoria oprimida em busca de alianças políticas para reverter
essa situação de preconceito e discriminação —, p o d e m o s dizer que o movimento
político em defesa da homossexualidade n o Brasil já completou trinta anos. O
marco consagrado nessa historiografia particular é a formação do grupo Somos,
em São Paulo, e m 1978, na m e s m a época em que era lançado o Lampião, jornal
em f o r m a t o tablóide que se voltava para u m enfoque acentuadamente social e
político da homossexualidade, assim c o m o de outros temas políticos afins e até
então considerados "minoritários", c o m o o feminismo e o movimento negro.
Isso posto, devemos ter em conta q u e a história das associações de pessoas
que t ê m a homossexualidade c o m o u m aspecto compartilhado em suas vivências é,
contudo, muito mais antiga e diversificada n o Brasil. N e m sempre essas associações
assumiram caráter político; muitas vezes, n e m m e s m o tiveram a homossexuali-
dade c o m o foco aglutinador, e m b o r a tenham sido veículos importantes para sua
expressão social — c o m o é o caso, p o r exemplo, dos fas-clubes de famosas cantoras
da música popular, desde a Era do Rádio até hoje. Não dispomos de espaço para
retroceder muito no t e m p o , n e m é nosso objetivo inventariar as diversas expres-
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

sões da homossexualidade ao longo da história brasileira. R e m e t e m o s o leitor


interessado a algumas das pesquisas i m p o r t a n t e s que já trataram desse assunto.
Procuraremos, de toda f o r m a , abrir algum espaço para a "movimentação homos-
sexual" n o período que antecedeu imediatamente à emergência d o movimento
politizado e lhe serve de pano de f u n d o , nos anos 1960 e 1970.
Organizamos a exposição da trajetória d o m o v i m e n t o político em t o r n o da
homossexualidade n o Brasil segundo u m a periodização especial que visa circuns-
crever diferentes fases relacionadas às mudanças sociais e políticas que moldaram
suas formas de organização e atuação. Designaremos essas fases c o m o "ondas",
seguindo usos anteriores feitos, entre outros, pelo historiador James Green e
pela antropóloga Regina Facchini 2 , mas r e c o n h e c e n d o , c o m o fez esta última, três
"ondas". Assim, focalizamos u m a "primeira onda", no período que corresponde
ao final do regime militar, a chamada "abertura política", de 1978 em diante,
quando floresceram os primeiros g r u p o s articulando h o m e n s e mulheres homos-
sexuais, dos quais o Somos, de São Paulo, se t o r n o u u m a espécie de paradigma.
Em seguida, focalizamos uma "segunda onda", durante a redemocratização dos
anos 1980 e a mobilização em t o r n o da Assembleia Constituinte, que coincidem
com a eclosão da epidemia d o Hiv-Aids, quando se desenharam as condições de
institucionalização do movimento. Depois, tratamos de u m a "terceira onda", a
partir de meados dos anos 1990, e m q u e a parceria c o m o Estado, gestada n o
período anterior, se consolida e dá impulso à multiplicação de g r u p o s ativistas,
promovendo a diversificação dos vários sujeitos d o movimento na atual designação
LGBT, a formação das atuais grandes redes regionais e nacionais de organizações,
e a consagração das Paradas d o O r g u l h o LGBT, paralelamente ao crescimento do
mercado segmentado voltado à homossexualidade. Concluímos c o m uma visão
do cenário atual das lutas e reivindicações promovidas pelo movimento, incluindo
algumas reflexões em t o r n o d o processo mais amplo de constituição do cidadão
LGBT como sujeito de direitos.

Sobre siglas, termos e n o m e s

Algumas advertências precisam ser feitas desde já. A denominação LGBT aqui
usada segue a fórmula recentemente aprovada pela I Conferência Nacional GLBT,
N A TRILHA DO ARCO-ÍRIS

referindo-se a lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Antes disso, o XII


Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas eTransgêneros, de 2005, incluiu oficialmente
o V d e bissexuais e convencionou que o "T" referia-se a travestis, transexuais e trans-
gêneros. Embora, c o m a deliberação da I Conferência Nacional, a sigla LGBT venha
predominando nos meios ativistas, ela eventualmente assume outras variantes, que
invertem a o r d e m das letras (colocando o "T" à frente do "B"), duplicam o "T" (para
distinguir entre travestis e transexuais, p o r exemplo) ou acrescentam novas letras
que r e m e t e m a outras identidades ( c o m o "i" de "intersexual" ou "Q" de "queer"). O
significado desses t e r m o s será comentado adiante. Trata-se de ressaltar, por ora,
que a presente denominação, c o m o mostra sua trajetória recente, é aberta e sujeita
a contestações, variações e mudanças.
A denominação p o r meio da sigla, de todo m o d o , é bastante recente. Até 1992,
o t e r m o usado era"movimento homossexual brasileiro", às vezes designado pela sigla
MHB, e os congressos de militância eram chamados de "encontros de homossexuais".
O t e r m o "lésbicas" passou a ser usado no Encontro de 1993, enquanto a denominação
"gays e lésbicas" foi empregada n o Encontro de 1995. Nesse ano foi criada a ABGLT,

com o n o m e de Associação Brasileira de Gays, Lésbicas eTravestis, que, muito recen-


temente, passou a se denominar Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais,
Travestis eTransexuais, m a n t e n d o , p o r é m , a sigla original. O t e r m o "travestis" foi
acrescentado a "gays e lésbicas" no Encontro de 1997, e os termos "bissexuais" e
"transexuais" foram incluídos n o Encontro de 2005, quando se formaram t a m b é m
as respectivas redes de associações nacionais desses segmentos.
Sendo ainda m u i t o fresco o uso d e todas essas denominações, os t e r m o s
"homossexual" e "homossexualidade" s e m p r e estão m u i t o presentes no p r ó p r i o
discurso do m o v i m e n t o e p r e d o m i n a m na produção bibliográfica a respeito do
assunto, pelo m e n o s até m e a d o s da presente década. Por esse motivo, os t e r m o s
são empregados aqui t a m b é m c o m o designações amplas das questões identitárias e
políticas afeitas ao atual m o v i m e n t o LGBT, m e s m o que se questione sua adequação
para dar conta do que atualmente se reconhece c o m o relativo à problemática da
politização das "identidades de gênero", no caso de travestis e transexuais.
H o m e n s p r e d o m i n a r a m nas organizações d o m o v i m e n t o brasileiro, desde
suas primeiras fases. O m o v i m e n t o de lésbicas vai se fortalecer e ganhar auto-
nomia somente na segunda m e t a d e dos anos 1990. Organizações independentes
de travestis c o m e ç a r a m a surgir, t a m b é m , apenas nos anos 1990. Isso se reflete
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

na bibliografia e n o material de pesquisa disponível, mais numeroso e detalhado


n o que diz respeito aos que hoje se identificam c o m o gays. A homossexualidade
masculina é um tema de pesquisa significativo nas ciências sociais brasileiras desde
o final dos anos 1970, ao passo que estudos sobre lésbicas, travestis e transexuais
são mais recentes e, do p o n t o de vista das formas de associação política, ainda
e m n ú m e r o bastante reduzido. Por conta disso, as referências aos gays acabam
p o r ocupar maior espaço também neste livro.
D e m o d o semelhante, é maior o material r e f e r e n t e às grandes m e t r ó p o -
les. Repete-se, aqui t a m b é m , a concentração de i n f o r m a ç õ e s n o eixo Rio de
Janeiro—São Paulo, impedindo u m exame mais detalhado das especificidades
locais e regionais.
Devemos ressaltar, por fim, que a maior parte da documentação e do co-
nhecimento a respeito do tema, em que nos apoiamos, foi produzida por pessoas
q u e participaram dos fatos relatados (entre as quais, modestamente, os autores se
incluem). Muitos dos nomes e personagens citados não são apenas pesquisadores
e estudiosos, mas t a m b é m ativos militantes e / o u testemunhas dos acontecimen-
tos no calor da hora. Por isso, é impossível evitar que preferências, afinidades
e inclinações transpareçam em diversas passagens. Afinal, estamos lidando com
u m campo político aberto e, como tal, sujeito ao jogo da estratégia e da paixão,
da aliança e da disputa.
Gostaríamos de agradecer a todos e todas que colaboraram para a feitura
deste livro. A Fernando Teixeira da Silva, pelo convite e pelo estímulo em todas
as etapas do trabalho. A Geraldo Fernandes e Isadora Lins França, pela inestimá-
vel ajuda na organização das informações e pelas leituras críticas. A Alexandra
Martins, Anna Paula Vencato, Bruna Angrisani, Cláudio R o b e r t o da Silva, David
Harrad, Edward MacRae, Ennio Brauns, Fernando Pocahy, James Green, Júlio
Moreira, Luiz M o t t , Lurdinha Rodrigues, Marccelus Bragg, Maria Angélica
Lemos, Míriam Martinho, Sérgio Carrara, Toni Reis e W e l t o n Trindade; e à
ABGLT, APOGLBT-SP, G r u p o Arco-íris, G r u p o Dignidade, G r u p o Estruturação,
G r u p o Gay da Bahia, Liga Brasileira de Lésbicas, Nuances, Rede de Informação
U m O u t r o Olhar e Tête-à-Tête, pela colaboração na cessão de imagens e ma-
terial de pesquisa.
Os autores
Paradoxos da identidade

y nada seja mais novo, s u r p r e e n d e n t e e intrigante na cena política


brasileira c o n t e m p o r â n e a d o que as m u l t i d õ e s de pessoas reunidas nas mani-
festações organizadas em inúmeras cidades do país para celebrar o O r g u l h o
LGBT, sigla que se refere a lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis,
transexuais. O Brasil t o r n o u - s e , nos últimos anos, o país q u e mais realiza Pa-
radas do O r g u l h o LGBT, com eventos o c o r r e n d o e m mais de c e m localidades
p o r t o d o o t e r r i t ó r i o nacional. A Parada d o O r g u l h o LGBT de São Paulo, desde
sua p r i m e i r a edição em 1997, vem r e u n i n d o massas m a i o r e s a cada ano: esti-
mativas oficiais dão conta d e u m n ú m e r o s u p e r i o r a 3 milhões de pessoas e m
2 0 0 7 , o q u e a consolida c o m o a m a i o r do m u n d o , além de u m dos principais
eventos turísticos da cidade.
Até b e m pouco t e m p o , seria difícil imaginar q u e questões relacionadas à
homossexualidade pudessem motivar as maiores manifestações públicas de mas-
sa no país, às quais acorre t a m b é m u m n ú m e r o considerável de pessoas que se
identificam como heterossexuais. Mas as paradas não são uma novidade isolada.
Existiam, e m 2007, sete redes nacionais de organizações ativistas homossexuais
n o Brasil: Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais,Travestis eTranse-
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

xuais (ABGLT), fundada em 1995; Articulação Nacional de Travestis, Transexuais


eTransgêneros (ANTRA), criada em 2000; Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), criada
em 2003; Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL), criada e m 2004; Coletivo
Nacional de Transexuais (CNT); Coletivo Brasileiro de Bissexuais (CBB) e Rede
Afro-LGBT, criadas em 2005. A maior delas, a ABGLT, segundo informações de seu
portal no inicio de 2008, contava com 141 grupos LGBT afiliados e 62 organizações
colaboradoras, todos espalhados pelas cinco regiões do país.
As reivindicações do m o v i m e n t o LGBT t ê m ganhado maior visibilidade
atualmente, a p o n t o de suscitar projetos de lei em todos os níveis do Legislativo,
assim c o m o a formação de Frentes Parlamentares em âmbito nacional e estadual.
Suas estratégias se diversificaram de m o d o a incorporar a demanda p o r direitos
através do Judiciário, o esforço pelo controle social da formulação e implemen-
tação de políticas públicas, a produção de conhecimento em âmbito acadêmico,
a formação de igrejas para homossexuais, setoriais em partidos políticos e, não
menos importante, a construção de alternativas de política lúdica, c o m o as p r ó -
prias paradas e a organização de saraus, festivais e mostras de arte, assim c o m o
a apropriação de manifestações já b e m mais antigas na chamada "comunidade",
como concursos de Miss Gay ou MissTrans.

Visibilidade social e política

D e certa f o r m a , as paradas são expressões concentradas da arrebatadora vi-


sibilidade que o próprio m u n d o LGBT tem alcançado. Elas vêm coroar a formação
de uma fulgurante cena gay nas grandes cidades brasileiras, refletindo a crescente
importância do mercado na promoção e difusão de imagens, estilos corporais,
hábitos e atitudes associados às variadas expressões das homossexualidades.
Isso se nota na expansão e diversificação do chamado "gueto" homossexual.
Não foram apenas saunas, bares, discotecas e casas noturnas que se multiplicaram
em n ú m e r o e em variedade de formatos, estilos e serviços. A internet é hoje um
importantíssimo espaço para busca de parceiros, trocas, sociabilidade, discussões
políticas e comunicação, com suas salas de bate-papo, suas listas de discussão e
seus inúmeros e variados portais e páginas dirigidos às múltiplas manifestações
das homossexualidades. Apareceram também revistas, jornais, editoras, agências

• 18o ••6i•
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

de turismo e de namoro voltadas ao público homossexual, assim como eventos


culturais variados de celebração da diversidade 1 . Nas paradas, essa exibição exube-
rante e sedutora do universo LGBT assume a forma de uma visibilidade em massa,
potencializando-se, desse modo, como meio de angariar solidariedade social.

LAÇOS DE FAMÍLIA

Está e m curso uma mudança sem precedentes nos tribunais brasileiros. N u m a


decisão inédita, a Justiça carioca entregou a guarda provisória de Chicão, filho de
Cássia Eller, a Maria Eugênia, companheira durante catorze anos da cantora. N o
Rio Grande do Sul, uma sentença federal obrigou o INSS a pagar pensão a viúvos e
viúvas homossexuais. Eles passaram a ser considerados dependentes preferenciais
de seus companheiros segurados da Previdência. A decisão cria jurisprudência e,
portanto, deverá ser cumprida e m t o d o o país. [...]
U m a questão maior está por trás de toda essa discussão. E o próprio conceito
de família. Para a Justiça, esse conceito vem mudando nos últimos anos, de maneira a
abraçar situações diferentes das tradicionais. Antes, por exemplo, só tinham direito à
herança os filhos "legítimos", frutos do casamento. Agora, basta provar a paternidade,
com exame de DNA, que o direito da criança é garantido. A família, no passado, era in-
dissociável, até que a lei admitiu o divórcio. Há poucos anos, foi reconhecido o direito
das uniões civis estáveis, os chamados casamentos sem papel passado. A novidade está
em reconhecer as uniões gays como "unidades familiares", ou seja, grupos que muitas
pessoas t ê m dificuldade de reconhecer como famílias, embora possuam os mesmos
direitos. "As uniões homossexuais caracterizadas pela estabilidade, comunhão de vida,
constituem efetivas comunidades familiares, que merecem tanto a proteção do Estado
quanto aquelas integradas por casais heterossexuais", escreveu a juíza da 3a Vara Previ-
denciária Federal do Rio Grande do Sul, Simone Barbisan Fortes, em sua sentença que
deu direito de pensão do INSS para companheiros gays. "Há uma tendência de reconhecer
a família como uma instituição afetiva e não exclusivamente consanguínea", explicou o
juiz Roger Raupp Rios, da 10a Vara Federal de Porto Alegre, autor do livro A homossexu-
alidade no direito. Raupp criou jurisprudência em 1996 ao conceder a um homossexual
o direito de incluir o companheiro como dependente n u m plano de saúde.
MAGESTE, Paula; VIEIRA, João Luiz e SAINT-CLAIR, Clóvis. "Laços de família".
Época, a n o i v . n 0 191, 14jan. 2002, p. 30-32.
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

A singular combinação de festa e política que caracteriza as paradas vem sendo


acompanhada também por novidades no âmbito legal e governamental. Jurisprudên-
cias favoráveis ao reconhecimento de direitos de previdência e herança de pessoas
envolvidas em relacionamentos homossexuais tornaram-se relativamente freqüentes
no Brasil, a partir da sentença proferida pela Justiça Federal do Rio Grande do Sul,
em 1996, a favor da inscrição de companheiro homossexual como dependente em
plano de saúde. Em 2000, a partir de uma iniciativa do grupo Nuances, de Porto
Alegre, promotores públicos gaúchos moveram uma ação bem-sucedida contra o
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para estender benefícios previdenciários
às parcerias homossexuais estáveis. A vitória levou a mudanças na legislação pre-
videnciária nacional, que passou a reconhecer "o companheiro ou a companheira
homossexual de segurado inscrito no regime geral de previdência" como dependente
com direito a pleitear pensão por m o r t e e outros benefícios. Em 2007, a Superin-
tendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)

de Goiás, em decisão inédita, reconheceu um casal formado por duas trabalhadoras


rurais como unidade beneficiária do programa de reforma agrária, com todos os
direitos e deveres das demais famílias assentadas pelo INCRA.

O debate sobre vínculos decorrentes de uniões homossexuais foi estimula-


do pela repercussão alcançada pelo projeto de reconhecimento de parceria civil
entre homossexuais, que começou a tramitar no Parlamento em 1995. Questões
relativas à guarda, tutela e adoção de crianças por casais homossexuais também
ganharam atenção pública, sobretudo depois da m o r t e da cantora popular Cássia
Eller e da luta de sua companheira, Maria Eugênia, pela guarda do filho biológico
de Cássia, entre 2001 e 2002. Decisões favoráveis à guarda conjunta de crianças
p o r casais formados por gays e lésbicas já foram promulgadas pela Justiça dos
estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo, em 2006.
Algumas iniciativas começaram a ser tomadas para combater formas de
discriminação e violência que atingem especificamente gays, lésbicas, bissexuais
travestis e transexuais, contribuindo para popularizar o t e r m o "homofobia". Até
2007, dez estados da Federação e o Distrito Federal haviam promulgado leis
contra a discriminação por orientação sexual. Segundo informações obtidas no
portal da ABGLT, em 2007, mais de setenta municípios brasileiros já aprovaram leis
nas quais consta a proibição expressa à discriminação p o r orientação sexual. Em
2005, a Procuradoria Regional dos Direitos Humanos de São Paulo moveu ação
NA TRILHA DO ARCO-IRIS

civil pública p o r dano moral coletivo, subscrita por sete organizações de defesa
dos direitos LGBT contra a Rede TV! , p o r conta das "pegadinhas" apresentadas no
programa Tarde quente que ridicularizavam e humilhavam pessoas em razão de
sua orientação sexual. Sob ameaça de perda de concessão, a r e d e de televisão foi
obrigada a retratar-se publicamente, pagar pesada indenização e exibir, durante
o horário d o programa suspenso, programas de educação e m direitos humanos
produzidos pelas associações que tinham subscrito a ação.
Em 2004, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos do Governo Federal lançou
o "Brasil sem homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra
GLBT e de promoção à cidadania homossexual". Elaborado por meio de consultas en-
volvendo lideranças do movimento LGBT e uma comissão formada por representantes
do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, o pro-
grama se apresenta como uma agenda comum do governo e do movimento, prevendo
ações a serem executadas pelas diversas instâncias estatais gestoras de educação, saúde,
justiça e segurança, destinadas a apoiar projetos de fortalecimentos de organizações
não-governamentais de caráter público que atuam no combate à homofobia e na pro-
moção da cidadania LGBT; capacitar profissionais e representantes do movimento LGBT

que atuam na defesa dos direitos humanos; disseminar informações sobre direitos e
promoção de autoestima; e incentivar a denúncia de violação dos direitos humanos
contra LGBT. O programa preconiza a participação de ativistas LGBT nos conselhos
articulados junto aos diversos ministérios.
Em 2008 realizou-se, e m Brasília, u m a Conferência Nacional GLBT inédita,
c o m o objetivo de elaborar propostas para o Plano Nacional de Promoção da
Cidadania e Direitos Humanos de LGBT. Sob o tema"Direitos humanos e políticas
públicas: o caminho para garantir a cidadania de gays, lésbicas, bissexuais, travestis
e transexuais", a conferência foi resultado do reconhecimento da demanda do
m o v i m e n t o pelo Governo. Seu processo de construção, coordenado pela Secre-
tária Especial de Direitos H u m a n o s (SEDH), teve início a partir u m decreto de
convocação assinado pelo Presidente da República em 28 de novembro de 2007.
Esse processo contou, assim c o m o o c o r r e em relação a outros segmentos sociais,
com etapas municipais e estaduais, q u e envolveram e implicaram governos e
atores da sociedade civil em âmbito local c o m a temática LGBT. A etapa estadual,
realizada e n t r e março e maio de 2008, contou com cerca de 10 mil participan-
tes e resultou n u m conjunto consolidado de 510 propostas, que foram avaliadas

• 2 1 -
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

e complementadas na etapa nacional. Na noite de 5 de junho, o presidente da


República, Luiz Inácio Lula da Silva, ministros e representantes d o movimento
discursaram na solenidade de abertura da Conferência Nacional, causando grande
impacto na mídia e n o movimento. Nos dias que se seguiram, 5 8 9 delegados,
além de observadores e convidados, se reuniram e m t o r n o de dez eixos temáti-
cos: Direitos H u m a n o s ; Saúde; Educação; Justiça e Segurança Pública; Cultura;
Trabalho e Emprego; Previdência Social;Turismo; Cidades; Comunicação — e a
plenária final aprovou 559 propostas.
Essas ações são ainda passos iniciais na estrada longa e acidentada r u m o aos
direitos de cidadania LGBT. Evidenciam, de todo m o d o , que questões de política e
direitos relacionadas à sexualidade acham-se hoje f i r m e m e n t e inseridas na o r d e m
d o dia do debate público.
Paradas, visibilidade social, presença no debate público, iniciativas legais e
políticas não surgiram da noite para o dia. A crítica à visão depreciativa das ho-
mossexualidades começou a ganhar espaço no país desde o final dos anos 1970, n o
embalo do grande movimento de oposição à ditadura militar, e prosseguiu durante
o processo de redemocratização. Grupos de militância homossexual t r o u x e r a m à
cena pública o anseio de que toda forma de amor e desejo pudesse ser vivida c o m
dignidade e exaltada sem restrições. Essa disposição de luta sofreria o baque da
eclosão da epidemia d o Hiv-Aids. Ao invés de esmorecer sob condições adversas,
p o r é m , o ativismo se revitalizou e floresceu. A flama libertária e antiautoritária
da primeira militância deu lugar a múltiplas iniciativas, tanto de e n f r e n t a m e n t o
da epidemia quanto de ex-
tensão da agenda de direitos
civis, i m p u l s i o n a d a s p e l o
novo arcabouço legal m o n -
tado a partir da Constituição
de 1988 e pela construção
de novas p a r c e r i a s c o m o
p o d e r público, b e m c o m o
c o m r e d e s ativistas globais,
agências multilaterais e
pactos internacionais de
direitos h u m a n o s .

• 22 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

BUGRES E GUERREIRAS

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, "bugre" é "a denominação


dada a indígenas de diversos g r u p o s d o Brasil, p o r serem considerados sodomitas
pelos europeus". A palavra deriva do francês bougre,"herético" (1172), do latim bul-
garus (séc. vi), "búlgaro, herético, sodomita"—"porque os búlgaros, c o m o m e m b r o s
da Igreja g r e c o - o r t o d o x a , f o r a m considerados heréticos".
Abaixo, dois trechos ilustrativos da descrição de costumes e "luxúrias" dos
índios da t e r r a registrada p o r dois notáveis observadores do século xvi:
"São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que n ã o co-
m e t a m . [...] São m u i t o afeiçoados ao p e c a d o nefando, entre os quais não se t ê m por
afronta; e o que se serve de macho, se t e m p o r valente, e contam esta bestialidade
p o r proeza; e nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos
os q u e r e m p o r mulheres públicas."
SOUSA, Gabriel Soares de ( 1 5 4 0 ? - l 5 9 1 ) . Tratado descritivo do Brasil em 1587.

Belo H o r i z o n t e , Itatiaia, 2001, p. 235, 2 3 6 , 255.

"Algumas índias se acham nestas partes que juram e p r o m e t e m castidade, e assim


não se casam n e m conhecem h o m e m algum de nenhuma qualidade, nem o consenti-
rão, ainda que p o r isso as m a t e m . Estas deixam todo exercício de mulheres, e cortam
seus cabelos da m e s m a maneira que os machos trazem, e vão à guerra com seu arco
e flechas e à caça: enfim que andam sempre na companhia dos homens, e cada uma
t e m mulher que a serve e que lhe faz de comer como se fossem casados."
GANDAVO, Pero de Magalhães (séc. XVI). Tratado da Terra do Brasil.

Belo H o r i z o n t e , Itatiaia, 1980 [1570?], p. 57.

Assim, o m o v i m e n t o homossexual anterior se transformou no multifacetado


m o v i m e n t o atual de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, sob a emble-
mática bandeira d o arco-íris. Suas organizações t a m b é m se diversificaram, abar-
cando segmentos c o m o surdos gays, j u d e u s gays, advogados gays e universitários
pró-diversidade sexual. Algumas se especializaram não só na defesa e mobilização
mais específica de algum dos segmentos LGBT, mas também na modalidade e n o
foco privilegiado de ação, de m o d o que há organizações que se dedicam exclu-
sivamente à organização de eventos de visibilidade, outras, à defesa política e

• 23 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

jurídica, outras ainda, à atuação acadêmica, além das q u e p r i o r i z a m o trabalho n o


e n f r e n t a m e n t o à epidemia d o HIV-Aids. Apesar d e existirem g r u p o s que se identi-
ficam c o m o "mistos" e t ê m u m e s p e c t r o de atuação mais multifacetado, há ainda
as organizações mais específicas q u e se dedicam às famílias LGBT, aos pais e mães
de homossexuais, aos adolescentes LGBT, aos n e g r o s LGBT. A S lutas iniciais contra
o p r e c o n c e i t o e os e s t e r e ó t i p o s ampliaram-se para diversas frentes de c o m b a t e
às formas d e discriminação e e m favor d o r e c o n h e c i m e n t o de relacionamentos
conjugais e familiares para além da h e t e r o n o r m a t i v i d a d e .

Brasil: paraíso ou inferno sexual?

O s debates e m t o r n o da h o m o s s e x u a l i d a d e e as iniciativas legais e jurídicas


e m curso e m n o m e da "cidadania LGBT" são especialmente ilustrativos e emble-
máticos d o processo de t r a n s f o r m a ç õ e s q u e o Brasil, c o m o vários o u t r o s países,
vive n o â m b i t o dos c r u z a m e n t o s e n t r e sexualidade e política. Mas c o m o avaliar
o impacto desses q u e s t i o n a m e n t o s e dessas t r a n s f o r m a ç õ e s n o Brasil? A contro-
vérsia está f o r m a d a , pois, q u a n d o o assunto é sexualidade, o Brasil costuma ser
retratado ora c o m o paraíso, ora c o m o i n f e r n o .
U m a representação r e c o r r e n t e d o país associa-o i n t e n s a m e n t e ao e r o t i s m o
e à sensualidade. A b u n d a m imagens, narrativas, novelas, r e p o r t a g e n s , r o m a n c e s
e etnografias a realçar q u e c e r t a liberdade ou d e s r e g r a m e n t o sexual está n o cora-
ção da nossa nacionalidade. G r a n d e p a r t e desse material se dedica a d e m o n s t r a r
a farta disponibilidade e incidência de ambigüidades e excentricidades eróticas
e n t r e nós ao longo d o t e m p o e d o espaço, c o m especial ênfase p a r a as práticas
homossexuais masculinas. D o s "licenciosos" t u p i n a m b á s descritos pelos cronis-
tas nos p r i m ó r d i o s da colônia aos e x u b e r a n t e s travestis e foliões travestidos n o
carnaval; dos sodomitas q u e e s t a r r e c i a m os visitadores da Inquisição aos c o r p o s
jovens e b r o n z e a d o s q u e se e x i b e m s e d u t o r e s e descontraídos nas praias; dos
espasmos e m moitas rústicas d o s e r t ã o aos sussurros e m banheiros assépticos
de shopping centers, para n ã o falar d o q u e se passa nas saunas, boates e demais
espaços m o d e r n o s r e c o n h e c i d a m e n t e gays — t u d o p a r e c e fazer d o Brasil u m ce-
nário privilegiado de luxúria e permissividade sexual, e m que as manifestações
de h o m o e r o t i s m o são calorosamente acolhidas c o m o destaques na paisagem.

• 24o •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

Essa i m a g e m d e liberdade e tolerância, p o r é m , mal e n c o b r e as i n ú m e r a s


situações d e desrespeito, injustiça, desigualdade e violência que muitas pessoas
s o f r e m n o Brasil p o r causa de sua sexualidade. Em 1983, e m pleno clímax da
p r i m e i r a o n d a de ativismo político h o m o s s e x u a l n o Brasil, os antropólogos P e t e r
Fry e Edward MacRae escreviam q u e "a homossexualidade continua sendo tratada,
na prática, c o m o u m a indigesta m i s t u r a de p e c a d o , sem-vergonhice e doença" 2 .
Para se convencer de q u e esse juízo ainda se aplica nos dias atuais, bastaria prestar
atenção à p r o f u s ã o e tranqüilidade c o m que expressões de humilhação, ofensa e
x i n g a m e n t o referidas a supostas transgressões da heterossexualidade são ditas em
qualquer situação social, n o s estádios d e f u t e b o l , na sala de aula, nos p r o g r a m a s
h u m o r í s t i c o s de televisão, nas r e u n i õ e s de trabalho ou n o b o t e q u i m .
C o m efeito, muitas pessoas q u e desejam outras d o m e s m o sexo seguem
obrigadas a c o n t e r suas manifestações d e afeto e ocultar as relações amorosas q u e
vivem, sob o risco de perdas materiais e afetivas, desprezo, chantagem e agressão.
Muitas religiões s e g u e m c o n d e n a n d o e alimentando a perseguição a homossexuais.
O Brasil c o n t i n u a n e g a n d o às pessoas q u e m a n t ê m relações afetivas e sexuais
c o m outras d o m e s m o sexo o direito ao casamento, à família, à criação de filhos.
Bissexuais são alvo d e desconfiança, vistos muitas vezes c o m o pessoas imaturas
q u e r e p r e s e n t a r i a m u m a ameaça para as relações afetivas estáveis, h o m o ou h e t e -
r o , q u a n d o n ã o para a p r ó p r i a saúde coletiva. Travestis e transexuais são vítimas
f r e q ü e n t e s d e crimes violentos, e n f r e n t a m problemas c o m seus d o c u m e n t o s de
identidade, são discriminados e m locais públicos, excluídos d o m e r c a d o f o r m a l
de trabalho e do a m b i e n t e escolar.

A homofobia e suas manifestações

N ã o é p o r acaso que o ativismo t e m enfatizado a denúncia das violências


específicas c o n t r a a h o m o s s e x u a l i d a d e . D e m o d o semelhante à "misoginia" o u o
"machismo", para o caso d o m o v i m e n t o feminista, e ao "racismo", para o caso
d o m o v i m e n t o n e g r o , a h o m o f o b i a aparece para o m o v i m e n t o LGBT como uma
âncora a p a r t i r da qual se p r o c u r a e s t r u t u r a r as identidades coletivas associadas
ao m o v i m e n t o e legitimar a p e r s p e c t i v a de outras conquistas n o c a m p o dos di-
reitos e da política.

• 6i •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Desde os anos 1980, o G r u p o Gay da Bahia e seu principal m e n t o r , o an-


t r o p ó l o g o e ativista Luiz M o t t , v ê m p r o c e d e n d o à coleta, análise e divulgação
de crimes violentos p e r p e t r a d o s c o n t r a homossexuais n o Brasil, c o m base p r i n -
cipalmente e m material de i m p r e n s a . Desse esforço d e d o c u m e n t a ç ã o f o r a m
produzidos dossiês q u e causaram g r a n d e i m p a c t o , ao denunciar as dimensões
dramáticas de u m a violência q u e n ã o constituía alvo de preocupação dos po-
deres públicos 3 . Por força disso, os chamados "crimes de ódio", c o m e t i d o s p o r
a g r u p a m e n t o s não-identificados, t ê m alcançado m a i o r repercussão, c o m o foi o
caso d o assassinato de Edson N é r i s , e m 2 0 0 1 , atacado p o r uma t u r b a h o m ó f o b a
quando caminhava pela praça da República, n o c e n t r o de São Paulo, d e mãos dadas
c o m o n a m o r a d o . Aos que p o r v e n t u r a a c r e d i t a m ser este u m risco p r ó p r i o das
grandes m e t r ó p o l e s e ainda se c o m p r a z e m e m imaginar u m cenário bucólico e
permissivo nas p e q u e n a s cidades d o i n t e r i o r e seus matagais, bastaria r e c o r d a r o
violento assassinato de Renildo José dos Santos, v e r e a d o r de C o q u e i r o Seco, e m
Alagoas, e m 1993, c u j o c o r p o foi e s q u a r t e j a d o e q u e i m a d o poucos dias depois
de ele ter declarado, n u m a rádio local, q u e era bissexual 4 .
N a c o n t r a m ã o das expectativas d e crescente tolerância e liberdade sexual,
a h o m o f o b i a persiste e n t r e nós, s o b r e t u d o na f o r m a velada e m e n o s espetacular
da humilhação e da segregação cotidianas, que o c o r r e m e m c o n t e x t o s de p r o -
ximidade, na família, na escola, e n t r e vizinhos e conhecidos. Pode-se dizer, sem
m e d o de errar, q u e s o f r e r algum tipo d e insinuação, ofensa verbal ou de ameaça
de agressão física faz p a r t e da e x p e r i ê n c i a social de gays, lésbicas, bissexuais,
travestis e transexuais n o Brasil.
Para situar as diferentes manifestações da h o m o f o b i a , t e m sido proveitosa a
estratégia das pesquisas de vitimização e m p r e e n d i d a s p o r questionários aplicados
j u n t o aos participantes das Paradas d o O r g u l h o LGBT. Trata-se de u m a iniciativa
que c o m e ç o u n o Rio de Janeiro, e m 2 0 0 3 , envolvendo a colaboração e n t r e insti-
tuições de pesquisa ( n o caso, o citado CLAM e o C e n t r o de Estudos de Segurança
e Cidadania da Universidade C â n d i d o M e n d e s - CESec) e entidades d o p r ó p r i o
movimento LGBT (no caso, o G r u p o Arco-íris de Conscientização H o m o s s e x u a l ) .
Essa pesquisa se repetiu e m 2 0 0 4 n o R i o de Janeiro e e m P o r t o Alegre (nesta,
envolveu o N ú c l e o de Pesquisa e m Antropologia d o C o r p o e da Saúde, da UFRGS,

e o g r u p o Nuances). E m 2 0 0 5 , r e p e t i u - s e e m São Paulo (quando incluiu o D e -


p a r t a m e n t o de Antropologia da USP, o N ú c l e o d e Estudos de G ê n e r o Pagu, da

•26o••6i•
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

U n i c a m p , e a Associação da Parada d o O r g u l h o LGBT de São Paulo), e e m 2 0 0 6


n o Recife (da qual p a r t i c i p a r a m o N ú c l e o de Pesquisas e m G ê n e r o e Masculini-
dades da UFPE, O Fórum LGBT de P e r n a m b u c o , a ONG Instituto PAPAI e a Gerência
1
de Livre O r i e n t a ç ã o Sexual da P r e f e i t u r a d o Recife) .

PESQUISAS EM PARADAS DO ORGULHO LGBT

Essas pesquisas t ê m trazido dados i m p o r t a n t e s sobre discriminação e violência,


b e m c o m o conjugalidade, mobilização social e direitos. E m b o r a digam respeito e m
particular ao público p a r t i c i p a n t e das paradas — m a r c a d a m e n t e mais jovem e mais
escolarizado d o q u e a população e m geral —, t ê m sido u m a oportunidade i m p o r t a n t e
de r o m p e r n o ç õ e s p r e c o n c e i t u o s a s e estereotipadas sobre a população LGBT.

Dados obtidos nas pesquisas realizadas n o Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo
e Recife, e n t r e os anos de 2 0 0 3 e 2006, a p o n t a m para u m índice que varia de 5 6 % a
7 0 % de pessoas q u e relataram t e r sofrido discriminação e m razão de sua sexualida-
de. N o q u e diz respeito a experiências d e agressão, os dados são muito consistentes,
e ficaram e n t r e 5 8 % e 6 5 % nas quatro edições da pesquisa. O s n ú m e r o s m o s t r a m
t a m b é m dinâmicas d e homofobia diferenciadas a partir da identidade autoatribuída:
pessoas trans vivem percentuais bastante altos de vitimização, seguidos pelos homens
homossexuais e, a d e p e n d e r da modalidade, p o r h o m e n s bissexuais ou mulheres ho-
mossexuais. Essas pesquisas t ê m trazido t a m b é m u m dado i m p o r t a n t e sobre o caráter
da violência contra mulheres homossexuais: ela o c o r r e especialmente n o ambiente
doméstico ou na vizinhança, e n q u a n t o h o m e n s homossexuais ou bissexuais e traves-
tis e transexuais são mais agredidos e m locais públicos. U m a informação alarmante
é a de que u m percentual e m t o r n o de 3 0 % a 4 0 % das pessoas que afirmaram ter
sofrido agressão não a relataram a n i n g u é m , n e m m e s m o a u m amigo, ilustrando a
vulnerabilidade dessa população e a invisibilidade da homofobia.
D e 3 6 % a 4 7 % dos entrevistados a f i r m a r a m estar n a m o r a n d o ou casados, u m
Í n d i c e bastante expressivo, c o n s i d e r a n d o a concentração na faixa etária de até 29
anos. Nas pesquisas realizadas n o Rio d e Janeiro (2004), São Paulo e Recife, e n t r e
1 2 % e 17% dos entrevistados a f i r m a r a m ainda t e r filhos, biológicos ou adotados, da
relação atual ou de anterior. Tais n ú m e r o s e n f r a q u e c e m os estereótipos de promis-
cuidade relacionados aos LGBT, d e m o n s t r a n d o que boa p a r t e dessa população seria
beneficiada p o r garantias legais relacionadas à sua situação conjugai e parental.
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Essas pesquisas ajudam a mostrar a diversidade das situações reportadas


como discriminação e dos relatos de agressão. A maior parte deles se refere a
agressões entre pessoas que se conhecem, f r e q ü e n t e m e n t e ocorridas na esfera
da casa, da vizinhança, nas redes familiares e conjugais e, de f o r m a notável e
assustadora, nas escolas e faculdades. Essas agressões envolvem principalmente
agressões verbais, desde insinuações veladas, passando a xingamentos, intimida-
ções, ameaças e agressão física. Esse tipo de discriminação e violência mais velada
e menos publicizada, que ocorre em contextos de intimidade, é o que atinge a
todas as categorias listadas na pesquisa (homens e mulheres homossexuais, homens
e mulheres bissexuais, além de transexuais). Esse aspecto é muito importante,
p o r q u e revela que boa parte das vítimas dessas agressões m a n t é m relações com
os discriminadores e m contextos de acentuada proximidade, e não de distancia-
mento, c o m o muitas vezes se supõe 6 .
Lembrar que o preconceito, a discriminação e a violência continuam fusti-
gando a homossexualidade não eqüivale, p o r é m , a achar que nada m u d o u , além
das estações. A vida da maior parte dos que hoje se consideram gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e transexuais no Brasil é, sem dúvida, muito m e n o s compli-
cada e sofrida do que a dos que vieram antes. Faz uma e n o r m e diferença p o d e r
desfrutar de uma existência razoavelmente respeitável "fora do armário", e m que
as tensões impostas pela clandestinidade e a vergonha, embora ainda presentes,
estão bem mais atenuadas em comparação com outras épocas e situações. E se
essa é uma experiência real pára as atuais gerações, assim como u m p r o j e t o de
vida plausível para as gerações futuras, e não apenas de uns poucos privilegia-
dos, é devido, em grande parte, ao ativismo contra o preconceito e em defesa
da cidadania LGBT.

Orientação sexual, gênero e identidades

Tendo a identidade como uma de suas preocupações centrais, o m o d e r n o ati-


vismo LGBT é um dos grandes responsáveis pela difusão do conceito de "orientação
sexual", lutando para assegurar sua presença nos discursos políticos, acadêmicos
e governamentais. A noção de orientação sexual acabou p o r consolidar u m mo-
m e n t o da discussão sobre direitos individuais, d e n t r o do ativismo homossexual,

• 28 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

e criou um lugar simbólico para a expressão pública da homossexualidade, con-


traposta à sua medicalização e criminalização 7 .
Em princípio, a noção refere-se de f o r m a bastante genérica ao sexo (ou, para
alguns, ao gênero) que constitui o objeto de desejo de u m a pessoa. A expressão
não implica consciência n e m intenção, t a m p o u c o descreve necessariamente u m a
"condição". Por conta disso, ela se presta a vários usos e interpretações. Boa p a r t e
do ativismo GLBT acredita que a orientação sexual é u m a "condição da pessoa", u m a
propriedade da personalidade, algo que faz p a r t e irremediavelmente do que ela
"é"— e, assim, tende a vê-la c o m o fixa e imutável. Essa concepção é dotada de u m
sentido político e estratégico preciso, d e n t r o da lógica da política de identidades,
e encontra guarida no m o d o c o m o muitas pessoas relatam sua experiência. Mas
há muitas gradações e m relação a esse a r g u m e n t o , que d e p e n d e m t a m b é m das
conjunturas políticas.
Argumentos em favor do caráter inato e, p o r t a n t o , imutável da homossexua-
lidade foram usados como a r m a contra a persistente associação entre homosse-
xualidade e doença. Já apareciam n o p e n s a m e n t o de alguns sexólogos europeus,
na virada do século xix para o século XX, responsáveis pela elaboração de u m a
teoria m o d e r n a sobre a sexualidade. U m de seus mais notáveis defensores foi o
britânico Henry Havelock Ellis (1859-1939). N o p r i m e i r o volume de sua m o n u -
mental obra Studies in the Psjchologj of Sex, dedicado à "inversão sexual", publicado
e m 1897, Ellis argumentava que a homossexualidade era u m a disposição inata
que não poderia ser caracterizada n e m c o m o vício n e m c o m o doença, mas antes
c o m o uma variação bastante benigna (ou, pelo m e n o s , m u i t o pouco nociva)
nas inclinações sexuais, encontrada inclusive e m muitas espécies animais. Dessa
perspectiva, não haveria sentido falar e m "cura", e Ellis de fato punha a palavra
entre aspas n o que se referia à homossexualidade 8 .
Deixando m o m e n t a n e a m e n t e de lado a questão de se a homossexualida-
de é congênita ou não (algo sobre o qual o m o v i m e n t o não t e m uma resposta
definida), cabe apreciar as conotações políticas dos argumentos que reforçam a
idéia da orientação sexual c o m o "condição". M e s m o hoje — quando o Código
Internacional de Doenças (CID) não inclui mais a homossexualidade no rol das
patologias e, no Brasil, desde 1985, o Conselho Federal de Medicina retirou a
homossexualidade da condição de desvio sexual — o vínculo entre homossexuali-
dade, "desvio" e doença permanece u m fantasma não esconjurado por completo.

•23•
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Ressurgem periodicamente esforços de p r o m o v e r ou i m p o r uma "cura", seja


médica, psicológica, espiritual, ou uma mistura de tudo isso.
Tais assombrações se n u t r e m da força reiterada de valores e idéias de que
o certo, o normal e o saudável em t e r m o s de sexo é q u e cada pessoa tenha o

FREUD E A HOMOSSEXUALIDADE

As elaborações de Freud sobre o desenvolvimento psicossexual foram refinadas


a partir de seus importantes estudos sobre a sexualidade infantil, notadamente o caso
do "Pequeno Hans" (Análise de umaJobia em um menino de cinco anos). O desabrochar
da sexualidade passou então a ser caracterizado por ele como u m a variedade inicial
de impulsos eróticos (a "perversidade polimorfa") e uma abertura em relação ao
objeto do desejo (a "bissexualidade originária").
Vista dessa perspectiva, a homossexualidade seria uma característica normal do
curso do desenvolvimento psicossexual de qualquer pessoa. Já a "fixação" da orientação
homossexual na vida adulta seria um tema bem mais controverso na obra d o próprio
Freud. D e todo modo, ele enfatizava que a homossexualidade deveria ser compreendida
pelo ângulo dos conflitos psíquicos de identidade sob as pressões da cultura.
Freud adotava uma posição liberal em relação à homossexualidade. Em famosa
carta, dirigida à mãe de u m jovem homossexual, ele escreveu: "A homossexualidade,
seguramente, não é uma vantagem, mas não é nada de que tenhamos de ter vergonha.
Não é vício nem degradação e não pode ser classificada como uma doença. Nós a
consideramos uma variação da função sexual, produzida por u m a certa parada do
desenvolvimento sexual".
Alguns comentadores, como o historiador britânico Jeffrey Weeks 9 , observa-
ram que Freud oscilava entre dois pontos de vista. D e u m lado, ele considerava as
identidades sexuais e de gênero precárias, provisórias e suscetíveis de serem abaladas
pelo jogo do desejo. Por outro lado, ele as via também como garantias necessárias e
indispensáveis da saúde mental e social. Boa parte da psicanálise se valeu desse último
entendimento para funcionar como instituição reforçadora do heterossexismo e das
diferenças de gênero. Em contrapartida, a idéia de que uma identidade sexual e de
gênero estável é condição para a saúde mental também pode ser usada, como aliás tem
sido, para legitimar a aceitação seja da identidade homossexual, seja das identidades
de gênero que se acredita estarem "em conflito" com o sexo biológico.

• 3 O -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

seu senso d e identidade e de desejo d e v i d a m e n t e adequado à genitália que lhe


foi destinada. Em outras palavras, u m suposto cultural p o d e r o s o é q u e t e m de
existir uma conexão f u n d a m e n t a l e n t r e o sexo do c o r p o (macho ou f ê m e a ) , a
identidade d e gênero (a convicção de ser "masculino" ou "feminina", c o n f o r m e
os atributos, c o m p o r t a m e n t o s e papéis c o n v e n c i o n a l m e n t e estabelecidos para
os machos e as fêmeas) e a orientação do desejo para o sexo oposto (machos
desejam fêmeas, e vice-versa).
O que define a orientação sexual de uma pessoa? D o p o n t o de vista do conhe-
cimento científico disponível, há pouca coisa que se possa dizer com segurança.
Existem várias teorias biológicas, psicológicas e sociológicas acerca de qual seria
o fator determinante da orientação sexual, mas não há, até agora, n e n h u m estudo
conclusivo. N e m m e s m o se p o d e afirmar que a orientação sexual seja algo que
se consolide e se fixe definitivamente e m um d e t e r m i n a d o período da vida para
todas as pessoas, embora isso venha a ser relatado com grande freqüência.
Especulações sobre uma possível determinação biológica da homossexualidade
despertam bastante atenção hoj e, como no tempo de Havelock Ellis. Num desses estu-
dos atuais de maior repercussão sobre supostas bases genéticas da homossexualidade, o
biólogo norte-americano Simon Le Vay (que, aliás, se declara homossexual), em artigo
publicado em 1991, postulou uma correlação entre a orientação sexual e a estrutura
celular do hipotálamo com base na descoberta de que as células do hipotálamo de
homens homossexuais tinham tamanho menor do que as dos homens heterossexuais 10 .
Entretanto, pesquisas como essa envolvem procedimentos e resultados bastante
controversos. Podem até ser movidas pela louvável intenção de assegurar igualdade
estrita aos homossexuais, mas resvalam com freqüência para opiniões estereotipadas
sobre as diferenças de gênero e a natureza da atração sexual".
N o esforço de explicar as origens da diversidade de orientação sexual, as
tentativas de demonstrar c o m o a biologia produziria homossexuais voltaram a
roubar a cena até há pouco ocupada p o r certas teorias psicológicas. Grande parte
dessas teorias, p o r sua vez, r e m o n t a a versões mais ou m e n o s simplificadas das
idéias que Sigmund Freud (1856-1939), o fundador da psicanálise, expressou
a respeito. N u m a época em que boa parte dos cientistas insistia em afirmar as
bases congênitas da homossexualidade, Freud deu ênfase às experiências sociais,
sobretudo as vividas na infância, nas relações familiares, que poderiam afetar o
desenvolvimento na direção da homossexualidade, e n t r e as quais destacava a
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

presença de uma figura parental dominadora do sexo oposto (notadamente a


mãe, no caso dos rapazes) — hipótese, aliás, apropriada pelo senso c o m u m .
Não dispomos de bases sólidas para uma explicação causai simples — m u i t o
menos de natureza estritamente biológica — para a determinação do objeto de
nosso desejo sexual ou da identidade social de nossos parceiros sexuais. Desejo,
c o m p o r t a m e n t o e identidade são componentes da orientação sexual que não
caminham necessariamente da mesma maneira e na mesma direção. As possíveis
conexões entre o desejo que uma pessoa sente, o seu c o m p o r t a m e n t o sexual e o
m o d o c o m o ela percebe a si mesma são, em grande parte, fruto das convenções,
contingências e constrangimentos sociais que a cercam em sua trajetória. E possí-
vel sentir desejos homossexuais sem manter relações homossexuais, assim c o m o
praticar relações homossexuais sem se considerar homossexual ou bissexual. Cabe
lembrar que as pesquisas conduzidas pelo biólogo Alfred Kinsey (1894-1956) 1 2
nos Estados Unidos, desde os anos 1940, já questionavam o alcance das catego-
rias "heterossexual" e "homossexual" para dar conta da diversidade de atitudes e
c o m p o r t a m e n t o s encontrados. Para Kinsey, a sexualidade humana não consistia
num universo compartimentado de categorias nitidamente demarcadas, mas antes
n u m gradiente contínuo, com uma gama de matizes comportamentais.
Jeffrey Weeks observou que a idéia de identidade sexual é cercada de ambi-
güidades: pode ser uma declaração de pertencimento absolutamente fundamental,
tendo conotações importantes tanto de senso de unidade pessoal quanto de com-

KlNSEY E 0 CONT1NUUM SEXUAL

Os machos não se dividem em dois grupos distintos: os heterossexuais e os


homossexuais. O m u n d o não está dividido e m ovelhas e carneiros. N e m todas as
coisas são negras n e m todas as coisas são brancas. É um princípio fundamental
da taxonomia que raramente na natureza se encontram categorias nitidamente
separadas. Só a m e n t e humana inventa as categorias e tenta abrigar os fatos em
compartimentos separados. O m u n d o vivente representa uma continuidade em
todos os seus aspectos. Quanto mais depressa aprendermos esta noção, tanto mais
depressa c o m p r e e n d e r e m o s claramente o que é a realidade do sexo.
KINSEY, A l f r e d . O comportamento sexual do homem. Lisboa, M e r i d i a n a , 1 9 7 2 .
N A TRILHA DO ARCO-ÍRIS

p r o m e t i m e n t o político; por outro lado, identidades são histórica e culturalmente


específicas, selecionadas entre várias opções possíveis, e não partes essenciais e
necessárias da personalidade de cada um 1 3 . Nas ciências sociais contemporâneas, e
na antropologia social, em particular, a reflexão sobre identidade tende cada vez
mais a retirar qualquer ilusão de substrato duradouro que o conceito pode implicar:
identidades são pensadas em termos situacionais, relacionais e contrastivos; são
afirmações de resposta política a determinadas conjunturas, articuladas a outras
identidades e m jogo, compondo uma "estratégia de diferenças".
Falar e m "identidade sexual", sob essa perspectiva, implica referir-se a duas
coisas diferentes: o m o d o c o m o a pessoa se percebe em t e r m o s de seu desejo; e
o m o d o c o m o ela torna pública (ou não) essa percepção de si, em determinados
ambientes ou situações. É difícil afirmar que as pessoas sejam responsáveis pela
"escolha" do objeto de seu desejo. Nesse sentido, acreditar que a orientação
sexual seja u m a "opção" soa inadequado; e embora o t e r m o "opção" tenha se
popularizado entre nós para exprimir certo senso de tolerância para com a ho-
mossexualidade, t e m sido insistentemente rejeitado pelos ativistas e aliados do
movimento LGBT por sugerir, e n t r e outras coisas, que a orientação sexual seja
algo que se possa adquirir, descartar e trocar c o n f o r m e as circunstâncias, c o m o
a roupa que se veste em determinada ocasião.
Por o u t r o lado, as pessoas dispõem de alguma margem de manobra para deci-
dir se e como darão vazão aos desejos que sentem. Dessa forma, escolher e nomear
intencionalmente uma identidade sexual pode ser um ato político. Dizer "eu sou
gay", ou "eu sou lésbica", ou "eu sou bissexual" pode significar uma afirmação de
pertencimento e uma tomada de posição diante das normas sociais que condenam,
hostilizam ou reprimem a expressão da diversidade de orientação sexual. O sentido
político e estratégico dessas afirmações da identidade sexual como "condição" fica
evidente diante das inúmeras situações cotidianas de intolerância, injustiça, discrimi-
nação e violência vividas por gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, para
não falar das tentativas espúrias de promover sua "cura" ou sua "reabilitação". Essas
categorias de identidade podem ter o poder de organizar e descrever a experiência
de sexualidade vivida por muitas pessoas e serem instrumentais para que tal vivência
possa ser fruída e defendida c o m o legítima e digna de respeito.
Não é c o m u m ouvirmos pessoas afirmando: "eu sou heterossexual", pois
essa é a orientação sexual socialmente pressuposta e esperada como "normal".
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Ilustração de Lampião brinca com os conflitos com as normas de gênero.

Afirmações de heterossexualidade costumam ser proferidas pelo avesso, na forma


de acusações de homossexualidade. A escritora norte-americana Eve Sedgwick
observa que as barreiras entre heterossexuais e homossexuais são reforçadas com
insistência paranóica especialmente por homens que se declaram heterossexuais,
e considera estar aí a base das modernas estruturas patriarcais de poder 1 4 . O
curioso é que tamanho esforço em fixar fronteiras trai justamente o receio de
que talvez elas de fato não existam. Já faz parte do senso c o m u m , aliás, consi-
derar que aqueles que mais abertamente hostilizam homossexuais são homens
inseguros da própria masculinidade e que vivem e m conflito em relação aos seus
próprios desejos sexuais.
Isso tudo mostra que os paradoxos e m torno da definição da orientação sexual
e da identidade sexual podem tecer uma trama bem complexa. Podemos constatar
que há m e n o s intolerância e discriminação para com a homossexualidade do que
já houve em outros tempos, e que isso se deve em grande parte aos movimentos
políticos em sua defesa. Vemos t a m b é m que esse processo não é nada linear,
mas marcado p o r disputas, reviravoltas e contradições. As categorias sociais que

• 3 4 -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

distinguem h o m o e heterossexualidade, p r o d u t o e instrumento desse processo


de relativa liberalização, p o d e m ser t a m b é m as responsáveis pela introdução de
novas maneiras de reger e restringir a vida social e sexual das pessoas. Os movi-
mentos LGBT p o d e m ser parcialmente responsáveis pela construção da gaiola em
que acabaram aprisionados. Mas talvez a noção de homossexualidade expressa
pelas categorias de identidade sexual persista não tanto por causa daqueles que a
exaltam e, sim, por ser indispensável para os que se definem contra ela e insistem
em desqualificá-la c o m o pecado, sem-vergonhice e doença.
Se há constrangimentos institucionais específicos que fazem das identidades
coletivas u m a estratégia quase inevitável, a conquista de determinadas reivindi-
cações pode não levar necessariamente ao r e f o r ç o das identidades. As lutas pelo
r e c o n h e c i m e n t o das uniões civis entre pessoas do m e s m o sexo, assim como do
direito de criar filhos, podem ser u m exemplo do uso de uma estratégia identitária
para alcançar u m impacto institucional e cultural mais amplo. A primeira vista, a
reivindicação de casar e ter filhos parece u m a defesa e x t r e m a m e n t e conservadora
da integração da homossexualidade à "normalidade". Mas o reconhecimento de
uniões homossexuais e das famílias constituídas p o r m e i o dessas uniões questiona
os supostos culturais e legais para a formação do casamento e da família.
Cabe ressaltar, mais uma vez, que família não é uma instituição petrificada. No
Brasil, assim como em muitos outros países, inúmeras outras formas de família, para
além do modelo do casal heterossexual com seus filhos, têm se tornado mais presentes
e visíveis na sociedade. Assegurar proteção legal aos vínculos constituídos por uniões
torna-se, portanto, questão básica de justiça social, contribuindo para dissolver o
significado das próprias marcas de diferença entre homossexuais e heterossexuais em
um âmbito tão crucial para a organização da sociedade e da cultura' 5 .
Podemos compreender, assim, que a relevância do ativismo LGBT não reside
apenas em sua resistência às formas de degradação, intolerância, perseguição e
m e s m o criminalização da homossexualidade, ou em seu esforço de tornar pú-
blicas e visíveis experiências minoritárias, silenciadas ou marginalizadas (o que
não é pouco). Ela está, sobretudo, em sua potencialidade de desafiar os saberes
convencionais e as estruturas de poder inscritos na sexualidade que alicerçam a
vida institucional e cultural de nosso t e m p o .

* 3Í •
Uma trajetória da política de
identidades sexuais

A sexologia e o nascimento
da identidade homossexual

D e uma perspectiva bastante ampla, p o d e m o s considerar os m o d e r n o s


movimentos LGBT p r o d u t o s de u m processo complexo de reapropriação e reela-
boração da noção de "homossexual" estabelecida, primordialmente, n o campo das
teorias biomédicas do século xix. Essas teorias, que abriram caminho à m o d e r n a
disciplina da sexologia, articularam a variedade de expressões da sexualidade
humana a determinadas condições biológicas e constituições corporais, suposta-
m e n t e inatas e imutáveis. Elas se orientavam p o r u m conjunto de preocupações
políticas e morais voltadas a identificar toda sorte de anomalias, perversões ou
ameaças na esfera da sexualidade (incluindo a prostituição e as relações extracon-
jugais) que poderiam causar dano à saúde da família e, por extensão, à saúde da
nação. Pelo m a p e a m e n t o das supostas anomalias, tratava-se de circunscrever um
modelo ideal de sexualidade moral e saudável, na forma da heterossexualidade
praticada e n t r e adultos, dotados da identidade de gênero tida c o m o adequada
ao seu respectivo sexo biológico, unidos p o r u m vínculo conjugai, monogâmico
e destinado à r e p r o d u ç ã o .

' 3 7 *
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

A emergente sexologia do século xix devotou especial atenção ao desejo


orientado para pessoas do m e s m o sexo, contribuindo assim para definir o ho-
mossexual como u m tipo específico de pessoa, dotado de constituição corporal
e disposições psicológicas singulares. U m a formulação clássica dessa personagem
foi posta pelo jurista alemão Karl-Heinrich Ulrichs (1825-1895), que adotava
o t e r m o "uranista" para se referir às pessoas q u e sentiam atração por outras do
m e s m o sexo (sendo ele próprio uma dessas pessoas). Ulrichs acreditava que os
uranistas constituíssem um "terceiro sexo", o que expressou na famosa figura da
"alma de mulher aprisionada n u m corpo de h o m e m " , e vice-versa. Ele dedicou-
se a estabelecer u m a classificação completa de tipos uranistas, publicando doze
volumes sobre o assunto, e n t r e 1864 e 1879 1 . C o m o t e m p o , a palavra criada por
Ulrichs acabou sendo suplantada por "homossexual", t e r m o usado pela primeira
vez em 1869 pelo jornalista e memorialista húngaro Karl-Maria Benkert (que
depois mudaria seu n o m e para Károli Maria Kertbeny), em dois folhetos nos
quais argumentava contra a lei prussiana que punia a sodomia masculina.
Os escritos de Ulrichs influenciaram várias formulações médicas posteriores,
como as do psiquiatra alemão Karl Westphal (1833-1890) J , do psiquiatra austría-
co Richard Freiherr von Krafft-Ebing (1840-1902) e d o médico brasileiro José
Ricardo Pires de Almeida (1843-191 3) 3 , entre outros, que desenvolveram uma
concepção da homossexualidade c o m o "inversão sexual" decorrente sobretudo
de causas biológicas, tais c o m o degeneração hereditária, patologia congênita ou
defeitos hormonais. Essas teorias da inversão sexual congênita floresciam em
meio à difusão da noção darwinista da seleção sexual ("a disputa por parceiros
sexuais") e de sua propalada importância para assegurar a reprodução e a sobre-
vivência das espécies. Preocupado em oferecer subsídios científicos para orientar
as cortes que julgavam supostos criminosos sexuais, Krafft-Ebing estabeleceu
u m ponto de vista bastante influente acerca da homossexualidade, distinguindo
os invertidos "verdadeiros" (que não poderiam ser culpados por algo que estava
inscrito em sua própria natureza) daqueles que praticavam atos homossexuais
por "simples perversão".
Cabe notar que essas teorias da patologia sexual passam a se basear cres-
centemente na informação obtida em clínica, fornecida em interação direta ou
por meio de relatos escritos pelos próprios pacientes. Grande parte desses casos
chegou ao conhecimento dos médicos por m e i o de cartas. Especulações amplas

• 3 8 -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

sobre anomalias, aberrações e perversões sexuais baseadas em casos clínicos fo-


r a m reunidas no famoso tratado de Krafft-Ebing, Psychopathia sexualis, u m marco
na então e m e r g e n t e sexologia europeia, publicado pela primeira vez em 1886 e
sucessivamente reeditado de f o r m a ampliada, com a adição de dezenas de novos
casos clínicos, ilustrando u m a vasta lista de "transtornos sexuais", da necrofilia
ao travestismo 4 .
Seria talvez u m exagero afirmar q u e a sexologia do século xix tenha "cria-
d o " os homossexuais. Afinal, os médicos estavam t e n t a n d o c o m p r e e n d e r u m
f e n ô m e n o q u e se descortinava diante de seus olhos, não só nos consultórios
e tribunais, mas t a m b é m nas ruas, teatros e cafés, e cuja existência era b e m
a n t e r i o r aos seus esforços de classificação e intervenção. Mas parece razoável
considerar q u e aqueles m é d i c o s e seus p r e d e c e s s o r e s , ao p r o d u z i r e m sua
c o m p r e e n s ã o , lançaram as bases do q u e viria a se desenvolver c o m o uma nova
identidade sexual e social. Se suas definições da homossexualidade se inscreviam
n u m m a r c o de regulação e c o n t r o l e p r o d u z i d o sob a chancela da verdade cien-
tífica, é preciso levar em conta que tais definições f o r a m reapropriadas pelos
p r ó p r i o s n o m e a d o s e usadas p o r estes segundo seus interesses - a começar pelo
p r ó p r i o Ulrichs, a q u e m Sigmund Freud já se referia c o m o u m "porta-voz dos
invertidos masculinos" 5 e q u e h o j e é visto c o m o u m precursor dos m o d e r n o s
m o v i m e n t o s de defesa da homossexualidade.
De fato, afirmações sobre a naturalidade da homossexualidade, como argu-
m e n t o em favor de reformas que a livrassem da perseguição moral e legal, foram
usadas por alguns dos mais célebres e n t r e os pioneiros defensores dos direitos
dos homossexuais no século xix, na Europa, c o m o o filósofo britânico Edward
Carpenter ( 1 8 4 4 - 1 9 2 9 ) , notável militante socialista e um dos fundadores da
Sociedade Fabiana; e o médico alemão d e ascendência judaica Magnus Hirschfeld
(1868-1935), f u n d a d o r de u m Comitê Humanitário Científico, e m 1897, orga-
nização que proclamava os homossexuais c o m o u m "terceiro sexo", no esforço
de lhes assegurar os direitos básicos atribuídos a homens e mulheres.
Já nos referimos ao médico britânico Havelock Ellis, socialista como Car-
penter, casado com u m a lésbica, um h o m e m que poderia ser chamado hoje de
"simpatizante". Embora discordasse da idéia de "terceiro sexo", Ellis insistia n u m a
radical distinção entre a sexualidade masculina e feminina e enfatizava a noção de
inversão especialmente para a compreensão das lésbicas como mulheres dotadas

• 3 9 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

de uma "natureza masculina". Em seu livro Sexual Inversion, Ellis buscou afastar da
homossexualidade a pecha de "degeneração", aparentemente inaugurando a famosa
tática de enumerar as relevantes contribuições à civilização feitas por homossexuais
"de excepcional talento", numa lista que incluía Erasmo de Roterdam, Leonardo da
Vinci, Michelangelo, Alexander von Humboldt, Lord Byron, Oscar Wilde, Walt
Whitman, Paul Verlaine e Safo de Lesbos. Cabe notar, aliás, que as referências à
célebre poeta da Grécia Antiga estão entre as raras menções a relações sexuais entre
mulheres encontradas na literatura médica e legal da época.

Os primórdios do ativismo europeu

As primeiras lutas do emergente ativismo homossexual se voltaram contra


a criminalização da homossexualidade, c o m o a campanha liderada por Magnus
Hirschfeld na virada d o século xix para o século xx, para abolir o parágrafo 175
do Código Penal da Alemanha, que punia o c o m p o r t a m e n t o homossexual entre
homens. Entre as décadas de 1910 e 1920, o m o v i m e n t o por r e f o r m a sexual
alcançou o máximo de sua repercussão na Europa, com a abolição das leis anti-
homossexuais na Rússia pelo novo governo bolchevique, em fins de 1917, a
fundação do Instituto de Ciência Sexual em Berlim por Hirschfeld, em 1919, a
realização de congressos internacionais e a formação de u m a Liga Mundial para
Reforma Sexual, em 1928, t e n d o c o m o presidentes honorários Hirschfeld e
Havelock Ellis.
Nesse período, as lésbicas também se tornaram mais visíveis nas capitais
europeias. Surgiram espaços de sociabilidade lésbica e m Berlim e em Paris,
onde a escritora e poeta norte-americana G e r t r u d e Stein (1874-1946) e sua
companheira Alice Toklas mantiveram um célebre salão freqüentado por artis-
tas e intelectuais. Em Londres, Radclyffe Hall (1880-1943), outra importante
escritora, que causava escândalo ao circular em público com roupas masculinas,
lançaria em 1928 seu romance mais memorável, 0 poço da solidão, cuja heroína
era uma lésbica masculinizada ao feitio da autora e das "invertidas" descritas por
Havelock Ellis, autor do prefácio do livro 6 .
A visão teórica e estratégica de Hirschfeld baseava-se, como vimos, na idéia
de que os homossexuais constituíam uma população minoritária estável, u m

•40 •
NA TRILHA DO ARCO-FRIS

"terceiro sexo", e buscava p r o m o v e r igualdade e justiça para esse sexo minori-


tário. Nesse contexto, a defesa dos homossexuais dava-se n o bojo de uma luta
mais ampla p o r r e f o r m a sexual, incluindo mudanças na legislação e campanhas
educativas, que atraíram a aliança de m o v i m e n t o s trabalhistas e socialistas, além
de vários agrupamentos libertários. A campanha de Hirschfeld pela abolição do
parágrafo 175 angariou considerável apoio de personalidades ilustres, inclusive
do líder do Partido Social-Democrata alemão, August Bebei.
Hirschfeld enfrentava, p o r é m , u m a i m p o r t a n t e dissidência no incipiente
m o v i m e n t o alemão, agrupada n o C o m i t ê de Especiais, criado e m 1902, sob a
liderança do médico Benedict Friedlãnder ( 1 8 6 6 - 1 9 0 8 ) . As idéias de Friedlánder
sobre homossexualidade e política sexual contrapunham-se diretamente às de
Hirschfeld. Para Friedlãnder, o m o t e da campanha era c o n t r a p r o d u c e n t e p o r q u e
equiparava homossexuais a doentes mendigando piedade p o r não serem responsá-
veis por suas supostas falhas congênitas. Sua organização, formada exclusivamente
por homens, pautava-se p o r u m a radical separação de gêneros, p r o m o v e n d o a
noção de u m a bissexualidade hiperviril c o m o u m a f o r m a de existência superior
baseada na camaradagem masculina f o m e n t a d o r a de liderança e heroísmo 7 . Tais
idéias eram supostamente inspiradas e m representações da vida pública na An-

OS RESPEITÁVEIS MILITANTES

Em seu livro de memórias, o romancista inglês Christopher Isherwood (1904-


1986) descreve o contato que ele teve c o m Magnus Hirschfeld, provavelmente o
mais importante dos primeiros militantes homossexuais. Em 1929, visitando o
Instituto de Ciência Social, alojado e m u m belo palácio da antiga Berlim, ele se sur-
preendeu com o clima de seriedade e respeitabilidade do que era então uma espécie
de quartel-general do m o v i m e n t o homossexual. " O mobiliário era clássico, com
pilares e guirlandas, m á r m o r e s pesados, cortinas solenemente esculturais e gravuras
sóbrias. O almoço era uma refeição de d e c o r o e sorrisos graciosos, presidida por
u m a senhora grisalha de amável dignidade: u m a garantia viva de que o sexo naquele
santuário era tratado com seriedade. C o m o n ã o seria? Sobre a entrada do instituto
havia uma inscrição em latim com os dizeres: 'Sagrado ao A m o r e à Mágoa".
MACRAE, E d w a r d . "Os respeitáveis militantes e as bichas loucas". In: Alexandre Eulalio et alii.

Caminhos cruzados. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 102-103.


HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

tiguidade Clássica, da qual as mulheres, confinadas ao seu papel reprodutivo,


estariam excluídas.
Essa divergência é ilustrativa de algumas tendências que reaparecem com
freqüência e se cruzam em oposições e combinações variadas, na trajetória dos
movimentos de defesa dos homossexuais. O confronto, em última análise, está
entre considerar o par homo/heterossexualidade como uma oposição definidora
de tipos distintos, ou como uma potencialidade universal de todos os seres hu-
manos. Cada posição daria lugar a desdobramentos contingentes. De um lado, a
postura de Hirschfeld fomentava uma aliança entre homens e mulheres homosse-
xuais, que compartilhariam uma identidade pessoal e coletiva essencial, em nome
da qual demandariam igualdade de direitos. De outro, a crítica de Friedlãnder
questionava os fundamentos em que assentaria a suposta identidade homosse-
xual compartilhada, acentuando, em contrapartida, a diferença de gênero, de
m o d o a estimular a identificação dos homens chamados de homossexuais com
um modelo mais amplo de virilidade, assim c o m o das lésbicas com um modelo
mais geral de feminilidade.
Experimentações de mudança de sexo também se desenvolveram no Instituto
de Ciência Sexual em Berlim. Em obra publicada em 1910, Hirschfeld ampliava
sua classificação de tipos sexuais intermediários, designando c o m o "travestis" as
pessoas cujas identidades cruzavam as fronteiras de gênero, que usavam roupas
do sexo oposto e que desejavam mudar seu sexo. Hirschfeld perseverava na senda
aberta por Ulrichs, reconhecendo variações no "terceiro sexo" segundo critérios
que tinham que ver com a maior ou menor adequação entre o sexo biológico e os
comportamentos sociais esperados. Assim, Hirschfeld distinguiu entre "homos-
sexuais", "andróginos", "travestis" e "hermafroditas", c o m o variantes benignas,
provavelmente de base orgânica e inata. Adiante, como veremos, essas classifi-
cações seriam reelaboradas e serviriam de referência para a produção de novas
identidades sociais e sexuais, que buscariam espaço no movimento político.
Cirurgias de remoção de pênis e construção de vaginas foram realizadas
no Instituto, dos anos 1920 em diante. A historiadora norte-americana Joanne
Meyerowitz cita um relato dando conta de que uma dessas cirurgias, feita em
1932 — um ano antes da destruição do instituto pelos nazistas — teria sido paga
pelo governo alemão, a pedido do próprio Hirschfeld, que teria se jubilado disso
como o seu "maior triunfo", a aceitação pública "definitiva" de suas teorias 8 .

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NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

Seria u m triunfo brevíssimo, p o r é m . A década de 1930 se revelaria desas-


trosa para o movimento europeu. Na Alemanha, o crescendo da violência nazista
levou ao saque e à destruição do instituto de Hirschfeld, com a queima de sua
biblioteca e seus arquivos, em 1933. Obrigado a exilar-se, Hirschfeld jamais
retornou à Alemanha, vindo a m o r r e r em 1935. Concomitantemente, deu-se o
recrudescimento das condenações por homossexualidade e o envio de prisionei-
ros homossexuais para campos de concentração, onde eram obrigados a portar
uniforme costurado com a marca de u m triângulo rosa, submetidos a u m regime
de trabalhos forçados e passíveis de castração 9 . A Rússia soviética, sob Stalin,
também passaria a promover violentas campanhas contra a homossexualidade,
restabelecendo punições legais que justificavam a perseguição a homossexuais
como traidores, espiões e contrarrevolucionários.

O ativismo norte-americano e o gay power

Uma nova onda de lutas desenvolveu-se a partir do final dos anos 1940,
tendo agora como foco principal os Estados Unidos. Em 1948, Alfred Kinsey
publicava o primeiro de seus famosos "relatórios" sobre c o m p o r t a m e n t o se-
xual, no qual demonstrava que as experiências homossexuais tinham incidência
muito mais freqüente e não estavam restritas a um segmento bem definido da
população. Nesse mesmo ano, articulou-se um núcleo de ativistas que viria a
fundar em Los Angeles, em 1951, a Mattachine Society, um grupo de homens
e mulheres homossexuais com características de sociedade secreta, do qual
posteriormente surgiram dissidências, entre as quais u m grupo formado exclu-
sivamente por lésbicas, fundado em São Francisco, e m 1955, as Daughters of
Bilits — n o m e inspirado no livro de poemas eróticos de amor entre mulheres Les
Chansons de Bilits, do escritor francês Pierre Louys (1870-1925). Agrupamentos
similares foram organizados no período pós-guerra na Europa, como o Cultura
en Ontspanningscentrum (coc), na Holanda, fundado em 1946 (é o mais antigo
grupo em atividade no mundo); Forbundet, na Dinamarca, em 1948; Arcadie,
na França, em 1954.
Ainda voltados à luta pela descriminalização das relações homossexuais, esses
grupos tendiam a adotar uma linha de atuação moderada e cautelosa, com ênfase

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HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

na construção de uma imagem pública mais "respeitável" para os homossexuais e


na sua plena integração à sociedade. A reivindicação de u m espaço de respeitabi-
lidade pública para os homossexuais envolveu a promoção de uma versão positiva
do m o d e l o médico de classificação da sexualidade, que contestava o estigma
de anormalidade ou doença atribuído à homossexualidade e, ao contrário dos
argumentos de Kinsey, reforçava o dualismo h o m o / h e t e r o — embora t a m b é m ,
em alguns casos, atenuasse a ênfase na "sexualidade", preferindo adotar termos
alternativos c o m o "homófilo" e "homoerótico".
Nos anos seguintes, tomaria corpo nos Estados Unidos uma feição mais ra-
dical do movimento homossexual, em meio a um clima de politização crescente
da liberdade sexual que se expressava principalmente em algumas das atitudes,
valores e c o m p o r t a m e n t o s adotados p o r certos segmentos juvenis, c o m o o da
chamada "geração beat", do final dos anos 1950, e da contracultura hippie, dos
anos 1960. Em reação ao ambiente especialmente repressivo e intolerante da
sociedade norte-americana emersa dos tempos da Guerra Fria e do macarthismo,
essa juventude se interessava especialmente pelo que era outsidei e underground, o
que incluía a valorização da música negra e do rock, das experiências com subs-

FORMA-SE A IDENTIDADE GAY

O historiador norte-americano George Chauncey 10 observou que no período


posterior à Segunda Guerra Mundial assistiu-se a um progressivo desaparecimento dos
modelos classificatórios centrados na hierarquia de gênero, até então bastante presentes
nas vivências homossexuais masculinas urbanas dos Estados Unidos. Nessas, segundo
Chauncey, termos como "fairy" e "queer" serviam para designar gradações de afemi-
nação e discrição entre homens, cujo objeto de desejo era um "trade", u m "homem
de verdade", encarnado preferencialmente na figura de um soldado, marinheiro ou
operário. O "trade"podia relacionar-se com "fairies" e "queers" sem ser rotulado como
homossexual, desde que conservasse a imagem do parceiro masculino que exercia o
papel "ativo" no ato sexual. Dos anos 1950 em diante, o t e r m o "gay" passaria a ser cres-
centemente usado para se referir a qualquer h o m e m que tivesse experiências sexuais
com outros homens, independentemente da afeminação ou do papel desempenhado
n o ato sexual, levando à gradual eliminação da categoria "trade" e ao estabelecimento
de uma oposição entre "gays" e "straights", h o m o e heterossexuais.

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NA TRILHA DO ARCO-IRIS

tâncias psicoativas, c o m o a maconha e o LSD, a oposição À ação norte-americana


n o Vietnã e u m a atitude hedonista geral de r o m p i m e n t o com os valores puritanos
da classe média tradicional.
N a cena homossexual, u m evento explosivo passou a marcar essa virada. Na
noite de 28 de junho de 1969, u m a tentativa da polícia de Nova York de interditar
o bar Stonewall Inn, situado na Christopher Street, movimentada rua da região
boêmia freqüentada p o r homossexuais, deparou-se com a reação irritada dos
próprios freqüentadores da área, que travaram u m a batalha de pedras e garrafas
com os policiais. Os protestos de Stonewall passaram a assinalar simbolicamente
a emergência de um Poder Gay, e a data passou a ser p o s t e r i o r m e n t e consagrada
c o m o o "Dia do Orgulho Gay e Lésbico".
D e fato, não foi u m acontecimento espetacular isolado, mas sinalizava uma
mudança mais geral nas vivências de boa parte das populações de homens e m u -
lheres homossexuais, n o sentido de tornar visível e motivo de orgulho o que até
então tinha sido fonte de vergonha e perturbação e deveria ser mantido na clan-
destinidade. " O amor que não ousava dizer seu nome" tinha saído às ruas, criara
sua própria rede de trocas, encontros e solidariedade, desenvolvera u m senso mais
positivo de autoestima pessoal e coletiva corporificado nas novas identidades de
gays e lésbicas, referidas à singularidade de seus desejos sexuais. Palavras de ordem
c o m o "assumir-se" ou "sair do armário" foram postas em prática, com a intenção de
recriar um novo m o d o de existência em função da especificidade do desejo sexual
vilipendiado, c o m o abrigo, resistência e combate à hostilidade e à opressão.
U m deslocamento político importante teve lugar na seqüência dos episódios
do Stonewall Inn. O impulso radical que dele decorreu pretendia abalar a visão
de que a homossexualidade fosse uma condição peculiar de uma minoria. Seus
porta-vozes sinalizavam o fim da homossexualidade e das divisões estabelecidas
e n t r e sujeitos sexuais. Para estes, "ser gay" deveria ser completamente diferente
de "ser homossexual". N ã o dizia respeito a u m a preferência ou orientação sexual
determinada, mas eqüivalia, antes, a u m m o d o de vida eroticamente subversivo.
Organizações como o Gay Liberation Front, que começou nos Estados Unidos
e depois se espalhou p o r vários países da Europa, preconizavam essa postura de
ampla contestação cultural e política, que questionava a eficácia das mudanças
legais para a solução dos problemas enfrentados por homossexuais. Ativismo
semelhante desenvolveu-se t a m b é m na Argentina, cujo primeiro grupo político

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HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

homossexual, Nuestro Mundo, formado em 1969, adotou a partir de 1971 a


denominação Frente de Liberación Homossexual (FLH), até ser destroçado pela

A REVOLTA DE STONEWALL

Na sexta-feira, 27 de junho de 1969, pouco antes da meia-noite, dois deteti-


ves do Sexto Distrito de Manhattan, acompanhados de outros oficiais, invadiram o
Stonewall Inn, um bar gay na Christopher Street, no coração do GreenwichVillage.
Deveria ser uma batida policial de rotina. O Stonewall Inn era um alvo especial-
m e n t e convidativo. Sem licença para comercializar bebidas alcoólicas, suspeito
de ligações com o crime organizado e apresentando go-go bojs com pouca roupa
c o m o diversão, o bar atraíra elementos "desordeiros" para a Sheridan Square, u m
movimentado cruzamento no Village. Os freqüentadores do Stonewall tendiam a
ser jovens e não-brancos. Muitos eram drag queens, e muitos vinham do crescente
gueto de foragidos que viviam do outro lado da cidade.
Naquela noite, entretanto, os clientes do Stonewall reagiram de forma nada usual.
A medida que a polícia os retirava do bar, uma multidão se aglomerou na rua. Vaias e
assobios eclodiram quando u m camburão partiu com o balconista, o segurança e três
drag queens. Poucos minutos depois, u m policial tentou levar a última cliente, uma
lésbica, para uma viatura próxima, no meio dos espectadores. "Ela resistiu e lutou,
da porta até o carro", relatou o Village Voice. Nesse momento, "a cena tornou-se ex-
plosiva. .. Latas e garrafas de cerveja foram atiradas contra as janelas e uma chuva de
moedas desabou sobre os policiais... A multidão irrompeu a atirar pedras e garrafas...
Do.nada, apareceu um parquímetro arrancado e usado como u m porrete na porta
do Stonewall. Ouvi vários gritos de 'vamos pegar gasolina', mas o clarão de fogo que
surgiu em seguida na janela do Stonewall foi outro choque."
Reforços vieram resgatar os policiais acuados no bar e m chamas, mas seu
trabalho mal tinha começado. A rebelião prosseguiu noite adentro, com travestis
porto-riquenhos e garotos de rua liderando ataques contra fileiras de policiais uni-
formizados, depois batendo em retirada e se reagrupando nas vielas e travessas do
Village. Na noite seguinte, pichações com a frase 'gay power' apareceram nos muros
da Chistopher Street.
D'EMILIO, J o h n . Sexual Politics, Sexual Communities. 2' e d . Chicago,

T h e University of Chicago Press, 1998, p. 2 3 1 - 2 3 2 (tradução d o s autores).

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NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

ditadura militar em 1976. A FLH teve uma publicação de curta duração chamada
Somos, cujo n o m e inspiraria o primeiro grupo brasileiro, criado em 1978.
O que veio a prevalecer, p o r é m , foi a perspectiva de tendências menos radi-
cais, que reencamparam a concepção de uma minoria gay e lésbica e, em vez de
falarem de r u p t u r a de papéis e identidades, reivindicavam aos gays os direitos de
inclusão equivalentes ao de grupos culturais minoritários. São Francisco, epicentro
da boêmia hedonista beatnik e da contracultura bippie nos anos 1950 e 1960, foi a
cidade em que esses desenvolvimentos se deram com intensidade exemplar, com
a formação de territórios urbanos ocupados de m o d o regular e predominante p o r
gays e lésbicas, e a conversão desses grupos e m u m a força econômica e política
importante' 1 . "Comunidades" homossexuais similares logo emergiram em outras
grandes metrópoles ocidentais, de Nova York a Sidney, desfrutando as vantagens
de u m crescente e diversificado mercado segmentado.

Questões de gênero

D e meados dos anos 1970 em diante, o m o v i m e n t o gay norte-americano


deixou de flertar com a androginia e as transgressões de gênero. Estilos de
indumentária e apresentações
c o r p o r a i s passaram a c e l e b r a r Gay-Macho:umci nova
u m culto crescente ao "macho", tragédia americana?
na masculinidade estampada e m
bigodes, cabelos curtos, múscu-
los definidos, ao estilo dos per-
sonagens criados pelo desenhista
T o m of Finland (1920-1991). A
valorização de uma sexualidade
viril, agressiva, materialista e
juvenil levou à estigmatização dos
afeminados, maduros e velhos, e
t a m b é m tensionou as conexões
existenciais e políticas dos gays
com as lésbicas e transgêneros. Ensaio de Seynour Kleinberg, traduzido cm Lampião.

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HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

O sentimento de que as lésbicas deviam formar agrupamentos independentes,


que lhes possibilitassem escapar do predomínio masculino nos grupos homosse-
xuais, já se manifestara desde a formação das Daughters of Bilits, no começo dos
anos 1950. Na seqüência dos acontecimentos que culminaram com a irrupção do
gay power, novas e influentes formulações teóricas e políticas foram produzidas por
pensadoras e ativistas lésbicas. Nelas ressalta o esforço de construir a autonomia do
movimento de lésbicas perante as relações de aproximação e distanciamento que
elas mantinham com seus pares gays e feministas. U m a característica marcante é a
radicalização da ênfase nas diferenças e especificidades de gênero.
Em artigo publicado em 1980, a poeta Adrienne Rich (1929) 1 2 propôs a
perspectiva de u m "continuum lésbico", que visava reforçar os vínculos entre m u -
lheres com vistas à construção política de u m a "sororidade" (sisterhood) feminista,
fundamentada na experiência compartilhada da identidade de gênero, que ela
comparava à maternidade e m d e t r i m e n t o das questões de sexualidade. A pers-
pectiva representada por Rich é marcada p o r u m forte anseio anti-hierárquico
e solidário, que constrói a mulher c o m o u m celeiro de virtudes naturais e vê a
relação entre mulheres c o m o u m a experiência p r o f u n d a m e n t e amorosa e igua-
litária, em contraste c o m o materialismo, a violência e a pulsão de domínio que
caracterizariam a conduta e as relações homossexuais masculinas.
Outra autora de impacto foi Monique Wittig (1935-2003) 13 , francesa radicada
nos Estados Unidos, que retomava certos aspectos do materialismo histórico para
formular sua visão radical da oposição de gêneros como equivalente à luta de classes.

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NA TRILHA DO ARCO-IRIS

Suas idéias são extremamente provocativas. Partindo da célebre frase da filósofa


francesa Simone de Beauvoir — "ninguém nasce mulher: torna-se mulher" 14 —,
Wittig sustenta que a mulher só pode existir numa relação de oposição ao h o m e m ,
à heterossexualidade, u m sistema total do qual não há saída a não ser a recusa. A
lésbica, ao recusar a heterossexualidade, se afasta do aprisionamento identitário do
sexo e do gênero, movimento que, para Wittig, seria fundamental para qualquer
projeto emancipador. A influência dessa autora se manifestou e m algumas tendências
políticas separatistas e radicais no m o v i m e n t o lésbico, com sua crítica acerbada aos
modelos da "heterossexualidade compulsória".
U m contraponto notável a essas visões proveio da revalorização, nos anos
1990, dos padrões de relacionamento conforme as oposições convencionais de
gênero, no estilo butch (masculina) efemme (femininas), a partir de pesquisas que
argumentavam que essa configuração seria a própria condição do surgimento de
comunidades lésbicas de resistência à opressão sexual no contexto das classes tra-
balhadoras urbanas 15 . T e r m o s que designavam a mulher masculinizada, como butch
e dyke, e que eram considerados pejorativos, passaram a ser recuperados c o m o
expressões da diversidade lésbica dentro da sociedade americana. Butchs e dykes,
que, do ponto de vista de uma crítica radical à heterossexualidade compulsória,
seriam a encarnação da tirania machista (as oprimidas assumindo a identidade que
os opressores teriam criado para elas), passaram a ser saudadas como expressões
autênticas e corajosas de visibilidade, em flagrante contraste com as imagens suaves,
palatáveis e "femininas" das lésbicas de classe média associadas à política de identida-
des predominante 1 6 . Manifestações como a Dyke March, uma parada exclusiva de
lésbicas em comemoração ao 28 de Junho, que se realiza em São Francisco desde
1993, ilustram essa tendência, b e m como servem de exemplo para a crescente
segmentação do movimento LGBT norte-americano nos anos recentes.
A ênfase na solidariedade de gênero, que beirou a representação romântica
e naturalizada da m u l h e r , não bastou para dirimir tensões com as feministas e
acabou novamente confrontada pelas diversas vivências de gênero presentes entre
as próprias lésbicas. De outra parte, as fronteiras que permitiam qualificar u m a
pessoa c o m o h o m e m ou m u l h e r se tornaram b e m mais difusas e controvertidas
com o a u m e n t o da visibilidade social e política das pessoas trans.
Desde os anos 1950, passaram a funcionar nos Estados Unidos "clínicas
de identidade de gênero", ligadas a prestigiosas universidades, que produziram

• 4 9 '
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

novas concepções e tecnologias para o t r a t a m e n t o daqueles que, desde os t e m -


pos de Magnus Hirschfeld, eram chamados de "hermafroditas" (portadores de
sexo biológico ambíguo) e "travestis" (que desejavam m u d a r seu sexo), os quais,
nessa época, passaram a ser r e n o m e a d o s c o m o "intersexuais" e "transexuais",
respectivamente. Dois médicos, o pediatra John M o n e y (1921) e o psiquiatra e
psicanalista R o b e r t Stoller (1925-1991), destacaram-se n o trabalho de reelabo-
ração e difusão das noções de gênero, papel de g ê n e r o e identidade de gênero,
b e m c o m o das tecnologias de mudança de sexo.
O c h a m a d o " p r o t o c o l o Money", elaborado a partir da análise de inter-
venções cirúrgicas feitas e m crianças intersexuais, sustentava ser possível e
necessário redefinir o sexo biológico para q u e este se adequasse à identidade de
g ê n e r o adquirida, s o b r e t u d o , p o r m e i o da educação. M o n e y propôs e s t e n d e r
a "redesignação d e sexo" para adultos transexuais, popularizados na figura de
u m ex-soldado n o r t e - a m e r i c a n o G e o r g e J o r g e n s e n , que se s u b m e t e r a a u m a
cirurgia de m u d a n ç a de sexo na D i n a m a r c a , em 1952, passando a usar o n o m e
de Christine J o e r g e n s e n , e se t o r n a r a u m e n o r m e sucesso e m r e p o r t a g e n s e
e m espetáculos de televisão.
A primeira cirurgia realizada nos Estados Unidos, e m 1959, p o r é m , foi
resultado de u m equívoco. A paciente, Agnes, foi tomada c o m o u m a jovem
mulher de genitália masculina ambígua, quando na verdade era u m rapaz que,
desde os 12 anos, tomara h o r m ô n i o s prescritos à sua m ã e , e assim produzira suas
características corporais femininas. Ele foi tão convincente e m seu desempenho
que os médicos da clínica de R o b e r t Stoller aceitaram a sua versão de que ele se
transformara e m mulher "naturalmente" na adolescência, especulando que tivesse
sofrido alguma "lesão difusa" nos testículos. Sete anos depois da cirurgia, p o r é m ,
Agnes confessou a ingestão de h o r m ô n i o s , embaraçando Stoller e fazendo-o
admitir que "ela", na verdade, "era u m a transexual'" 7 .
As demandas por intervenção cirúrgica vieram a ocupar um papel central
na luta de transexuais para expressar livremente o que consideram ser sua iden-
tidade p r o f u n d a e genuína. Apesar disso, as relações entre ativistas transexuais e
médicos não f o r a m isentas de tensão, na medida e m que transexuais resistem a
ser tratados p r i m o r d i a l m e n t e c o m o "pacientes" que s o f r e m de "disforia de gêne-
ro". N o final dos anos 1960 e c o m e ç o dos anos 1970, formaram-se as primeiras
organizações de transexuais norte-americanas, t e n d o algumas delas, c o m o a

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NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

Transsexual Action Organization (TAO), se destacado por u m estilo libertário


e combativo. Paralelamente, médicos, terapeutas e pesquisadores que lidavam
com transexuais f o r m a r a m a Associação Harry Benjamin (1885-1986), em ho-
m e n a g e m ao autor dos p r i m e i r o s trabalhos científicos publicados nos Estados
Unidos sobre transexualismo e que p o r m u i t o t e m p o atuou como defensor da
causa transexual.
D o s anos 1990 e m diante, o m o v i m e n t o trans tornou-se bastante ativo
nos Estados Unidos, f o r m a n d o coalizões e n t r e transexuais, intersexuais, cross-
dressers, travestis e outras pessoas que cruzam fronteiras de sexo e gênero. Suas
organizações incluem grupos de p r o t e s t o radical, c o m o o Transexual Menace,
e associações profissionalizadas, c o m o o Serviço de Informação de Gênero Edu-
cacional Americano (AEGIS). T ê m representantes nas associações de profissionais
que lidam com transexualidade e t ê m conseguido incluir suas demandas junto às
grandes organizações de gays e lésbicas.

O impacto da Aids

A partir dos anos 1980, o ativismo pela homossexualidade passaria a enfrentar


outro t r e m e n d o desafio: a eclosão da epidemia d o Hiv-Aids, t e r m o composto pela
justaposição das siglas em inglês referentes ao vírus causador da imunodeficiência
humana e à própria síndrome da imunodeficiência adquirida. Em 1981, oito jovens
homossexuais d e Nova York f o r a m diagnosticados com sarcoma de Kaposi, u m
câncer de pele que se considerava afetar apenas idosos, enquanto cinco outros
h o m e n s homossexuais na costa oeste, em São Francisco e Los Angeles, adoeciam
com u m a f o r m a rara de p n e u m o n i a . Esses casos d e r a m o alerta para a emergência
de u m a nova enfermidade, que aniquilava o sistema imunológico e expunha o
c o r p o a doenças oportunistas. A enfermidade foi associada à estranha sucessão
de m o r t e s que já se verificava algum t e m p o antes e n t r e homens homossexuais,
sobretudo na costa oeste dos Estados Unidos.
C o m a Aids, r e a c e n d e u - s e a ligação e n t r e homossexualidade e doença.
E x p r e s s õ e s c o m o "peste gay" e s p o c a r a m e p e r s i s t i r a m , m e s m o depois de
constatado que o vírus p o d e r i a ser t r a n s m i t i d o a q u a l q u e r pessoa, através de
sangue, e s p e r m a e outros fluidos corporais. Mas a epidemia contribuiu t a m b é m
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

para m u d a r dramaticamente as normas da discussão pública sobre a sexualida-


de. Sexo anal, sexo oral, doenças venéreas, uso de camisinha e outras práticas
e circunstâncias ligadas ao exercício e à expressão da sexualidade passaram a
ser comentados e debatidos com u m a franqueza sem precedentes. J u n t o com o
triste legado de intolerância, violência e m o r t e , a epidemia escancarou t a m b é m
a presença socialmente disseminada de práticas homossexuais masculinas para
além da população homossexual visível.
Hostilidades renovadas à p a r t e , as respostas à epidemia do Hiv-Aids resul-
taram t a m b é m em experiências inovadoras n o ativismo pela homossexualidade
em muitos lugares. Isso se deu t a m b é m n o Brasil, c o m o t r a t a r e m o s adiante.
Cabe l e m b r a r aqui a f o r m a ç ã o de g r u p o s c o m o o ACT U P / N Y , n o s Estados
U n i d o s , que inspiraram iniciativas semelhantes e m o u t r o s países, os quais
atuavam j u n t o à pesquisa científica e ao m e s m o t e m p o reivindicavam j u n t o aos
governos um plano global de c o m b a t e à epidemia, d e n u n c i a n d o a existência
de atos legais discriminatórios que i m p e d i a m a i m p l e m e n t a ç ã o de p r o g r a m a s
educativos eficazes.
Fundado e m 1987, o ACT U P / N Y ganhou notoriedade pelo seu discurso, que
realçava a ira c o m o recurso estratégico de combate às instituições e valores que
viam c o m o obstáculo ao t r a t a m e n t o mais consistente e eficaz da epidemia, assim
c o m o pelas suas táticas "perturbadoras" espetaculares, c o m invasões de prédios
e produção de u m tipo de "arte engajada" e de material de propaganda marcado
por imagens e símbolos crus e chocantes. O g r u p o buscou t a m b é m escancarar as
tensões internas da chamada "comunidade gay", mostrando-a atravessada pelas
mesmas hipocrisias, preconceitos e hierarquias de classe, gênero e "raça" que
marcavam a sociedade norte-americana 1 8 .
Daí derivou uma nova tendência n o ativismo homossexual, a qual se de-
finiu e m oposição ao que se chamava de ilusões e limites da política de direitos
e de inclusão de minorias perseguida pelos m o v i m e n t o s convencionais de gays
e lésbicas. Esse ativismo se denominou "queer", palavra que cobre u m amplo
arco de significados em inglês, incluindo a expressão chula e pejorativa dirigida
a homossexuais e desviantes em geral, e que, c o m o vimos, já fizera parte da
cena homossexual norte-americana anterior à Segunda Guerra. Articulada e m
agrupamentos c o m o o Q u e e r Nation, f u n d a d o e m 1990, essa tendência passou a
se afirmar pelo elogio a certa marginalidade heróica e pela recusa ao fechamento

- S 2 >
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

das identidades sexuais e de g ê n e r o , que estariam potencialmente presentes nas


vivências bissexuais, transexuais e intersexuais.
As controvérsias, ressaltadas na crise da epidemia Hiv-Aids, ampliaram a
ressonância de u m debate presente desde os p r i m ó r d i o s do ativismo pelos direitos
homossexuais, e m t o r n o d o significado das n o ç õ e s q u e atualmente designamos
c o m o orientação sexual e identidade sexual. E possível traçar u m a linha de
continuidade e n t r e as idéias postas e m circulação desde o final d o século xix,
que sob diferentes denominações apresentavam a homossexualidade c o m o u m a
qualidade inata, imutável e inseparável da pessoa, e as m o d e r n a s identidades
sociais de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, b e m
c o m o as estratégias da política d e identidades voltadas a assegurar direitos de
minorias b e m definidas.
Dessa perspectiva, o m o d e r n o ativismo LGBT representa a feição contemporâ-
nea de u m esforço que, partindo dos p a r â m e t r o s postos pela sexologia, p r o c u r o u
desvincular a homossexualidade da conotação de patologia e reconstituí-la c o m o
formas possíveis, legítimas e vitoriosas de ser e viver. A mobilização de gays e
lésbicas constituiu u m r e p e r t ó r i o de idéias e técnicas organizacionais adotadas
p o r outros segmentos que c o m p u s e r a m u m m o v i m e n t o amplo, marcado p o r
estilos, comunidades e trajetórias particulares, reivindicando seus respectivos
espaços e direitos 1 9 .
Podemos, n o entanto, l e m b r a r t a m b é m q u e esse r e c o n h e c i m e n t o da exis-
tência de u m a população diferenciada de "homossexuais de verdade" convive há
tempos com uma posição concorrente, que dá ênfase precisamente ao jogo instável
e cambiante do desejo, sua capacidade de abalar e dissolver os pressupostos de
uma divisão nítida e estável da h u m a n i d a d e e m t e r m o s de orientações sexuais
claramente distintas, b e m c o m o das identidades sociais a elas correspondentes.
Dessa outra perspectiva, gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, transgê-
neros, intersexuais p e r t u r b a m as convenções, n o r m a s e hierarquias estabelecidas
e m t o r n o d o sexo biológico, da identidade de g ê n e r o e da orientação sexual,
convidando-nos a reavaliar a sexualidade c o m o u m arco mais amplo e diversificado
de possibilidades. C o n t r i b u e m , assim, para r e p o r ambigüidades, ambivalências
e passagens, n o lugar de definições, fronteiras e gavetas r e f e r e n t e s a corpos,
desejos e c o m p o r t a m e n t o s , inclusive as que servem de orientação e referência
ao p r ó p r i o m o v i m e n t o LGBT.

" í3 '
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

A experiência brasileira

N o cenário brasileiro, povoado p o r personagens tão variados quanto mu-


tantes, guiar-se por noções muito rígidas de orientação sexual, identidade sexual
e m e s m o identidade de gênero pode ser uma tarefa t r e m e n d a m e n t e ingrata.
O u t r o importante aspecto distingue o Brasil em relação a países c o m o Estados
Unidos, Alemanha e Reino Unido. Enquanto nessas nações a homossexualidade
foi considerada durante muito t e m p o u m a prática criminosa, por aqui as referên-
cias à sodomia deixaram de fazer parte d o Código Penal desde 1830. N o Brasil,
o controle legal das práticas homossexuais se valeu das leis contra as relações
sexuais envolvendo menores de idade (independentemente do sexo), o atenta-
do ao p u d o r e a vadiagem. Até 1940, vigorou t a m b é m uma proibição legal ao
travestismo, então descrito c o m o o uso em público de "trajes impróprios" para
disfarçar o sexo com intenção de enganar 2 0 .
Seja c o m o for, no Brasil também se viabilizou uma política d e identidades
homossexuais. Considerar em grandes traços a experiência brasileira p e r m i t e ,
assim, refinar um pouco mais as idéias e ações relativas a homossexualidade e
política até aqui discutidas, para além d o contexto euroamericano em que elas
foram inicialmente elaboradas e postas em prática.
N o Brasil, c o m o a r g u m e n t o u o a n t r o p ó l o g o P e t e r Fry 21 , ainda encon-
tramos u m a modalidade bastante persistente e disseminada de classificação
de pessoas segundo a sexualidade c o m base n u m a hierarquia de gênero, que
distingue e n t r e "homens", s o c i a l m e n t e masculinos e que d e s e m p e n h a m o
papel de "ativos" no ato sexual, isto é , são os q u e s u p o s t a m e n t e "penetram"
mulheres; e outros homens, estes designados c o m o "bichas" ou "veados". Seria
possível conceber t a m b é m u m a versão desse m o d e l o hierárquico c o m respeito
às relações homossexuais femininas, c o m a figura de u m a m u l h e r que desem-
penha aspectos do papel masculino, designada c o m o "sapatão", "paraíba" ou
"mulher-macho" que se relaciona com mulheres. Assim, na lógica desse modelo,
a hierarquia de gênero, articulada a partir da oposição masculinidade/atividade
sexual versus feminilidade/passividade sexual, englobaria de f o r m a sistemática
todas as categorias e identidades sexuais. H o m e n s sexualmente "passivos" e
mulheres sexualmente ativas, "bichas" e "sapatões" seriam percebidos c o m o
uma espécie de híbridos.

•S 4*
N A TRILHA DO ARCO-ÍRIS

Isso evoca as famosas almas femininas e m corpos masculinos, e vice-versa,


de Ulrichs. Mas as origens desse m o d e l o hierárquico — q u e fala mais de q u e m
é masculino e de q u e m é f e m i n i n o , d o q u e de heterossexualidade e homosse-
xualidade — devem ser b e m mais antigas. Isso é sugerido, p o r e x e m p l o , por
pesquisas históricas c o m o as d o a n t r o p ó l o g o Luiz Mott 2 2 sobre as confissões
e denúncias de sodomia feitas d u r a n t e a visitação do Santo Ofício, na Bahia e

"SOMITIGOS, TIBIRA E JIMBANDA"

Esses são os termos encontrados nos processos da Inquisição para se referir aos
"sodomitas"brancos, índios e negros, respectivamente, quando os visitadores do San-
to Ofício instalaram seus tribunais na Bahia e e m Pernambuco entre os anos 1591 e
1620. De u m total de 283 culpas confessadas nestes tribunais, englobando blasfêmias,
superstição, judaísmo, luteranismo, bigamia, feitiçarias etc. — há 4 4 casos de sodomia,
sendo depois das blasfêmias o pecado m o r t a l mais freqüentemente praticado [...].
Os colonos brancos [eram] os maiores alvos da Inquisição. Observou-se que
os brancos m a n t ê m relações preferencialmente com mestiços. [...] Nestas ligações
homoeróticas heterocromáticas nem s e m p r e a iniciativa da relação parte d o branco
dominador. Assim foi o que o c o r r e u c o m Bastião de Moraes, pernambucano, filho
do juiz da vila de Igaraçu, 18 anos: dormia ele certa noite e m casa de seu tio, quando
u m mulato escravo da casa, D o m i n g o s , 22 anos, "veio à sua cama e o provocou a
pecarem de maneira que, com efeito, o dito D o m i n g o s virou a ele confessante com
a barriga para baixo e se lançou de b r u ç o s sobre suas costas, e com seu m e m b r o
viril desonesto penetrou no vaso traseiro dele, confessante, e dentro dele cumpriu,
fazendo com ele p o r detrás c o m o se fizera c o m mulher p o r diante, e isto m e s m o
fez t a m b é m ele confessante c o m o dito Domingos, d e maneira que ambos alterna-
damente consumaram na dita noite duas vezes o pecado nefando da sodomia, sendo
u m deles uma vez agente e outra paciente". [...]
Nas relações sodomíticas inter-raciais e n c o n t r a m o s t o d o um continiwm de
interações, ora os brancos e x e r c e n d o seu p o d e r e prepotência de casta superior,
ora os 'de cor' encontrando mil artifícios para serem eles os donos do poder, ao
menos neste microuniverso diádico ditado pelo h o m o e r o t i s m o .
MOTT, Luiz. "Relações raciais e n t r e homossexuais n o Brasil Colonial".

In: Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo, ícone, 1988, p. 2 2 , 2 8 - 3 0 .

• ss •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

em Pernambuco, n o final do século xvi e começo do século xvn. Nesses p r o -


cessos, t e r m o s c o m o "agente" e "paciente" designam o d e s e m p e n h o sexual de
"penetrador" e "penetrado", não apenas em referência às relações homosse-
xuais. Distinções similares de "ativo" e "passivo" já constavam em cancioneiros
medievais que mencionavam praticantes do coito anal. Recuando ainda mais
no t e m p o , p o d e m o s encontrá-las nas grandes civilizações da Antigüidade, nas

PASSIVOS E ATIVOS

Em 1938 e 1939, u m g r u p o de estudantes do Instituto de Criminologia de


São Paulo, sob a direção do médico legista Edmur de Aguiar Whitaker, pesquisou os
costumes, hábitos e gírias de homens homossexuais em São Paulo, identificando-os
p o r meio de seus apelidos (Flor de Abacate, Zazá, Alfredinho, entre outros) e tra-
çando seus perfis biográficos. Explorando o material dessa pesquisa, James Green
realçou que eles mostravam variações nas performances de gênero e nos papéis
sexuais no universo homossexual masculino dessa época:
Flor de Abacate viveu com um caminhoneiro durante dois anos, e depois com um
cabo da Polícia Especial. Presume-se que esses dois amantes eram homens "de verdade"
que o penetravam sexualmente. Contudo, quando entrevistado pelos estudantes de
criminologia, Flor de Abacate estava vivendo e supostamente tendo relações sexuais
com uma mulher prostituta. Zazá ficou chocado quando seu primeiro parceiro sexual
quis, mais tarde, alternar os papéis e ser penetrado em vez de exercer o papel de pe-
netrador. Alfredinho [que tinha um apelido masculino e trabalhava como impressor,
vestia-se com roupas masculinas e não usava nenhum tipo de maquiagem] surpreendeu
os estudantes que o entrevistaram porque, embora tivesse iniciado suas atividades ho-
moeróticas penetrando seus parceiros, logo passou a permitir que outros o penetrassem.
A situação de Alfredinho foi descrita nos seguintes termos: "Cumpre notar aqui que,
quando ingressou nesse meio, o fez na qualidade de pederasta ativo; chegou mesmo a
ter, por duas vezes, doenças venéreas, moléstias essas que contraiu mantendo relações
com pederastas passivos. Continuou a freqüentar tal meio e mais tarde, com o correr do
tempo, inverteu-se, passando a passivo. Todavia, a característica mais interessante deste
pederasta é a circunstância de ser passivo e ativo ao mesmo tempo. Mantém não poucas
vezes, como qualquer homem normal, relações sexuais com mulheres."
GREEN, James N. Além do carnaval. São Paulo, Unesp, 2 0 0 0 , p. 175 -176.

• 5 6 -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

cidades gregas e e m R o m a , o n d e o cidadão adulto q u e mantivesse relações


homossexuais na condição de passivo era vilipendiado p o r q u e demonstrava
falta de virilidade, u m grave defeito m o r a l e político.
T a m b é m se desenvolveram no Brasil versões da m o d e r n a identidade ho-
mossexual c o m o uma qualidade inerente à pessoa. Para Fry, sua gênese estaria
igualmente localizada n o pensamento médico da passagem do século xix para o
século xx, presente tanto na Europa c o m o aqui, por meio dos trabalhos do já
citado Pires de Almeida, assim c o m o de Francisco José Viveiros de Castro (1862-
1906) e Leonídio Ribeiro (1893-1976), Antonio Carlos Pacheco e Silva (1898-
1998), entre outros psiquiatras e especialistas e m medicina legal. Na lógica desse
m o d e l o médico-psicológico, orientação sexual e gênero são progressivamente
desarticuladas. Em u m primeiro m o m e n t o , esse modelo incorporaria em certa
medida os princípios hierarquizantes do gênero, dividindo os homossexuais em
"ativos" e "passivos", sendo os últimos os "homossexuais de verdade". Posterior-
m e n t e , o m o d e l o médico-psicológico caminharia para uma representação mais
homogênea dos diferentes tipos, baseada na suposta "condição" homossexual,
associada a doença ou anomalia. Assim, os h o m e n s que mantivessem relações
sexuais com outros homens seriam considerados "homossexuais", não importando
mais a posição "ativa" ou "passiva" que assumissem no coito.
Desse modelo médico-piscológico seria derivado um modelo igualitário, arti-
culado especialmente pelos modernos defensores dos direitos homossexuais. Esse
modelo reage aos estigmas de anomalia e doença imputados à homossexualidade,
mantendo a disjunção entre orientação sexual e gênero e apoiando-se no dualismo
h e t e r o / h o m o . Assim, em lugar de "bichas" e "homens" (ou 'bofes"), ou de "sapatões"
e "mulheres" (ou "ladies"), formam-se novas categorias de identidade sexual, tais
como "entendido", "entendida", "homossexual", "gay" e 'lésbica", de acordo com a
visão de que é a orientação do desejo que importa para nomear os parceiros de uma
relação homossexual, e não mais os papéis sociais relativos a masculino/feminino,
nem a atividade/passividade sexual. "Entendidos", "entendidas", "homossexuais",
"gays" e "lésbicas" passaram a designar pessoas que "transam" outras do mesmo sexo,
independentemente de serem afeminadas ou masculinizadas, "passivas" ou "ativas".
Fry argumentou que os dois modelos — o q u e enfatiza a hierarquia de gênero
e o que enfatiza a igualdade de orientação sexual — convivem e c o m p e t e m e m
variados contextos da sociedade brasileira c o n t e m p o r â n e a . Foi precisamente

'57 '
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

nesse t e r r e n o de convivência e disputa que ele e o u t r o s pesquisadores situaram


a emergência do m o v i m e n t o homossexual n o Brasil. O m o v i m e n t o político
homossexual tanto colaboraria de forma decisiva para a expansão do m o d e l o
igualitário, que se daria principalmente entre as classes médias urbanas, como
t a m b é m dependeria dessa expansão. Fry observou que o surgimento do m o d e l o
igualitário estaria relacionado à constituição das classes médias e altas das grandes
metrópoles do país, que também produziriam novas identidades para a "mu-
lher". As diferenças entre o modelo hierárquico e o modelo igualitário seriam,
pois, u m maneira privilegiada de expressar e constituir distinções de classe. O
e m e r g e n t e m o v i m e n t o homossexual, p o r sua vez, tenderia a incorporar a crítica
aos papéis de gênero convencionais, inicialmente formulada pelos movimentos
feministas, e entraria em tensão crescente com os valores e c o m p o r t a m e n t o s
que prevaleceriam no universo "tradicional" e supostamente "retrógrado" das
"bichas", "sapatões" e travestis.
Duas qualificações precisam ser feitas e m relação a essa influente leitura
da estruturação da homossexualidade n o Brasil. Em primeiro lugar, ela sugere
uma tendência geral de transição do m o d e l o hierárquico para o igualitário, pela
mediação do m o d e l o médico-psicológico, cuja realização histórica não pode
n e m deve ser entendida de forma linear. O historiador norte-americano James
Green m o s t r o u haver evidências da existência de identidades homossexuais
masculinas que extrapolavam o binário ativo/passivo na cena urbana brasileira
desde a virada do século xix ao século xx, contemporâneas portanto da primeira
produção do m o d e l o médico-psicológico do "homossexual", e b e m anteriores
ao surgimento das categorias de "entendidos" e "entendidas", nos anos 1940, ou
de gays e lésbicas, nos anos 1970. Não foi, portanto, o movimento político de
defesa dos direitos homossexuais que desencadeou a mudança da antiga visão dos
homossexuais c o m o pessoas que necessariamente desejariam ser do sexo oposto
e / o u que se comportariam como se fossem do sexo oposto.
Em segundo lugar, a insistência no termo "modelo" é crucial para situar com
mais clareza o plano em que essa leitura se situa: isto é, o plano das idéias, valores,
representações e categorias sociais por meio dos quais procuramos tornar inteligíveis
comportamentos e identidades. Entre esse plano - que busca estabelecer frontei-
ras nítidas entre as categorias e definir quais são as regras e as contravenções — e o
plano das condutas e das identidades sexuais de gênero efetivamente acionadas, há

• Í 8 -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

inconsistências, conflitos e margem de manobra


para os atores sociais.
N e m s e m p r e o que se faz na cama, na sala
e na cozinha está de acordo com os modelos
prescritos de coerência e conformidade, sejam
eles hierárquicos ou igualitários. Uma pesquisa
que explorou isso de forma brilhante e exem-
plar foi a d o antropólogo e poeta argentino
N é s t o r Perlongher (1949-1992) 2 3 , ao tratar
da prostituição masculina em São Paulo na pri-
meira m e t a d e dos anos 1980. Assim, p o d e m o s
encontrar rapazes q u e fazem sexo com outros
homens, p o r dinheiro ou alguma outra forma
de recompensa, e que p o d e m até desempenhar
Reedição de Perlongher, Editora Fundação
Perseu Abramo 2008. o papel "passivo" no ato sexual, mas que não
deixam de se considerar e de serem conside-
rados "homens". Perlongher mostrava, além disso, u m a profusão de categorias
de atribuição identitária em operação nos circuitos percorridos e freqüentados
pelos garotos de programa, e dava ênfase aos m o d o s maleáveis e cambiantes c o m
q u e os sujeitos sexuais se definiam m u t u a m e n t e a partir de posições e trajetórias
variáveis q u e ocupavam por meio da participação em diferentes redes sociais.
Seguindo essa linha de pensamento, p o d e m o s mencionar outros exemplos.
P o d e m o s encontrar casais de mulheres que encarnam distinções elaboradas das
convenções de gênero, sem que isso corresponda à hierarquia esperada no plano
erótico-sexual ou n o cotidiano doméstico. P o d e m o s encontrar garotos e garotas
que se consideram abertos à experimentação erótica com pessoas do m e s m o
sexo ou d o sexo oposto sem r e c o r r e r às classificações de h e t e r o , h o m o ou bis-
sexualidade. M e s m o entre h o m e n s e mulheres que vivem a homossexualidade
c o m o u m aspecto crucial e distintivo de suas vidas, p o d e m o s encontrar grande
diversidade de nomeações e representações identitárias articuladas em suas p r ó -
prias experiências sociais.
Essa dinâmica de instabilidades e convergências, inovações e reencontro de
antigas tensões não deixa de repercutir na própria trajetória do m o v i m e n t o em
defesa da homossexualidade n o Brasil. A fundação do primeiro grupo brasileiro a

' S9 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

afirmar u m a proposta de politização da questão da homossexualidade, o Somos


de São Paulo, ocorreu em 1978, n u m contexto marcado pela contracultura
pela ditadura militar, por intensa atividade de grupos de esquerda e pelo sur
gimento e visibilidade das versões modernas d o movimento feminista e negro.

IDENTIDADES DE MULHERES COM PRÁTICAS HOMOERÓTICAS

Nos discursos em que as entrevistadas p r o d u z e m formulações identitárias,


várias categorias classificatórias são acionadas, muitas vezes dentro de uma mesma
entrevista, a fim de referir-se a si mesmas e ao p r ó p r i o c o m p o r t a m e n t o h o m o e -
rótico. Entre as que fazem sexo exclusivamente c o m mulheres e tiveram nenhuma
ou poucas experiências sexuais com h o m e n s na vida, os t e r m o s mais usados são
entendida, homossexual e lésbica. Entre as que tiveram relacionamentos heterossexuais
duradouros no passado ou têm atualmente c o m p o r t a m e n t o bissexual, as categorias
entendida e homossexual apareceram menos, ao passo q u e a expressão mulher que ama
ou gosta de outras mulheres e a categoria bissexual se fazem presentes, e a categoria
lésbica desaparece. As mulheres que se dizem entendidas estão geralmente situadas nas
classes populares e t e n d e m a ter mais de 30 anos. O t e r m o homossexual foi preferido
p o r mulheres mais jovens, com maior escolaridade e nível socioeconômico mais
alto em relação às que se identificaram c o m o entendidas. As que se disseram lésbicas,
independentemente da idade, tinham alguma relação com o movimento lésbico ou
acesso ao seu discurso. O u t r a f o r m a de autoclassificação relativa à sexualidade foi a
referência direta ao c o m p o r t a m e n t o h o m o e r ó t i c o : "gosto de mulheres", "saio com
garotas", principalmente entre mulheres jovens, c o m pouca freqüência a estabe-
lecimentos e locais de sociabilidade voltados para gays e / o u lésbicas. A apropriação
do t e r m o gay t a m b é m apareceu e n t r e mulheres de diferentes segmentos socioeco-
nômicos e idades, sob a justificativa de ser um t e r m o curto, compreendido fora
do "meio" e não tão carregado de significações negativas. A estratégia de usar um
t e r m o curto funciona também e m relação a sapa, uma abreviação de sapata, bastante
c o m u m entre mulheres jovens de segmentos médios, que assim se apropriam de
uma palavra de sentido depreciativo de maneira bem-humorada.
FACCHINI, Regina. "Identidade, gênero, sexualidade e c o r p o

entre mulheres c o m práticas homoeróticas na Grande São Paulo".

C a x a m b u , xxvm Encontro Anual d a A n p o c s , 2004.

• 6o •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

N u m primeiro m o m e n t o , o Somos era composto exclusivamente por homens,


passando p o s t e r i o r m e n t e a ser freqüentado p o r mulheres, que se organizavam
e m grupo separado — o G r u p o de Ação Lésbica-Feminista (GALF) —, a partir de
1981. Segundo Edward MacRae, autor de importante e pioneiro estudo sobre o
Somos, o ideário do grupo carregava m u i t o da contracultura e do espírito con-
testatório e antiautoritário da época, p r o d u z i n d o u m discurso voltado para uma
transformação mais ampla, compreendendo a homossexualidade como estratégica
para a transformação cultural, capaz de corroer uma estrutura social a partir das
margens. Convivia c o m essa preocupação, p o r outro lado, uma estratégia de
valorização cotidiana de t e r m o s socialmente vistos c o m o negativos, utilizando
as categorias "bicha" e "lésbica" de f o r m a positiva.
Esse primeiro m o m e n t o do movimento brasileiro se encerra antes de meados
dos anos 1980 com u m a drástica redução na quantidade de entidades e mudanças
na distribuição geográfica dos grupos mais influentes e na postura política dos
mesmos. Entre os fatores implicados nessa redução quantitativa, podemos lem-
b r a r a eclosão da epidemia d o Hiv-Aids, levando muitas lideranças a se voltarem
para o seu combate, e o novo contexto da democratização, que não oferecia mais
o "inimigo" externo que unificava todas(os) contra "o poder" e acenava com a
abertura de canais de comunicação c o m o Estado. A partir de meados dos sinos
1980, é possível observar o desenvolvimento de u m estilo de militância de ação
mais pragmática, mais preocupada c o m aspectos formais de organização insti-
tucional e voltada para a garantia dos direitos civis e contra a discriminação e a
violência dirigidas aos homossexuais. São exemplos desse ativismo o Triângulo
Rosa e o G r u p o Gay da Bahia (GGB), este o mais antigo grupo de militância em
atividade n o país. Nesse p e r í o d o , muitas vezes visto como de desmobilização
do m o v i m e n t o , foram obtidas conquistas c o m o a retirada da homossexualidade
do Código de Doenças do Instituto Nacional de Previdência Social, adotou-se
e se fez disseminar a idéia de "orientação sexual" e houve u m intenso debate
acerca da inclusão da garantia de não-discriminação por "orientação sexual" na
Constituição brasileira.
A partir do início dos anos 1990, p o d e m o s identificar a crescente aproxima-
ção dos grupos e associações homossexuais com o modelo ideal das organizações
não-governamentais (ONGS), c o m a criação de estruturas formais de organização
interna e preocupações com a elaboração de projetos de trabalho em busca de

• 6i •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

financiamentos, b e m c o m o c o m a formação de quadros preparados para estabe-


lecer relações com a mídia, parlamentares, técnicos de agências governamentais
e associações internacionais. Esse novo f o r m a t o sedimentou-se, e m boa parte,
por m e i o da experiência das ONGs-Aids, nas quais atuaram muitos militantes vin-
dos d o período anterior, b e m c o m o outros recrutados nesse m o m e n t o . Grupos
e associações ganham acesso a recursos e infraestrutura, mas a demanda pelos
financiamentos governamentais e internacionais passou a produzir t a m b é m u m
ambiente bastante competitivo, e m que as disputas se exercitam não apenas nos
fóruns da militância, mas nos grupos e listas de discussão da internet, cada vez
mais n u m e r o s o s . A partir da década de 1990, o m o v i m e n t o multiplica as cate-
gorias de referência ao seu sujeito político. Organizam-se t a m b é m as Paradas do
Orgulho LGBT, n o m o l d e de u m a política de visibilidade de massa mais agregadora
do que suas congêneres norte-americanas.
Passemos, então, a contar essa história com mais vagar.
Da "movimentação"ao movimento

(Ls m o v i m e n t o político que surgiu n o final dos anos 1970 não foi o primeiro
esforço de articulação de pessoas e m t o r n o do interesse c o m u m na homosse-
xualidade n o Brasil. Desde os anos 1950, ou até m e s m o antes, encontramos nas
grandes cidades f o r m a s de associação dedicadas à sociabilidade, à diversão e à
paródia, aglutinando principalmente h o m e n s , que promoviam eventos c o m o
concursos de miss, shows de travestis e desfiles de fantasias. T a m b é m eram
produzidos e distribuídos p e q u e n o s jornais feitos artesanalmente, como 0 Snob,
veiculado e n t r e 1963 e 1969 no Rio de Janeiro, assim c o m o várias publicações
semelhantes e m outras cidades.
O p r o j e t o de politização abraçado pelo m o v i m e n t o homossexual definiu-se
e m grande parte p o r contraposição a essas associações presentes no "gueto", cuja
atuação era qualificada pelos militantes emergentes c o m o despolitizada e até mes-
m o reforçadora da vergonha e do preconceito que atingiam a homossexualidade.
Mas cabe reconhecer que essas associações e suas iniciativas eram formas criativas
e relevantes de informação, expressão e ligação das pessoas que sofriam com o
estigma da homossexualidade n u m a época de maior clandestinidade e repressão.
Elas realçam a diversidade das vivências individuais e grupais do h o m o e r o t i s m o

• 6 3 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

masculino anteriores à formação d o m o v i m e n t o , e se r e v e s t e m de certa dinâmica


de camaradagem e rivalidade combinadas, q u e não deixariam de m a r c a r t a m b é m
a f u t u r a trajetória d o p r ó p r i o m o v i m e n t o , c o m o v e r e m o s .

Luzes e penumbras da cidade

A " m o v i m e n t a ç ã o " q u e s e r v e , e m p a r t e , de p a n o de f u n d o para a e m e r -


gência t a n t o das associações de diversão c o m o de politização abarca i n ú m e r a s
facetas, q u e p o d e m ser apreciadas e m pesquisas m i n u c i o s a s c o m as d o his-
t o r i a d o r n o r t e - a m e r i c a n o James G r e e n , d o e s c r i t o r brasileiro J o ã o Silvério
T r e v i s a n e d o cientista político a r g e n t i n o Carlos Figari. G r e e n faz u m r e l a t o
p o r m e n o r i z a d o d o d e s e n v o l v i m e n t o da sociabilidade h o m o e r ó t i c a masculina,
n o Rio de Janeiro e e m São Paulo ao l o n g o d o s é c u l o xx, r e g i s t r a n d o m u d a n -
ças significativas, a p a r t i r dos anos 1 9 5 0 , c o m a diversificação dos locais de
p a q u e r a e "pegação" e dos p o n t o s d e e n c o n t r o s e m praias, c o m d e s t a q u e para a
famosa "Bolsa de Copacabana", t r e c h o situado e m f r e n t e ao H o t e l Copacabana
Palace, n o Rio. D i f e r e n t e s r e p r e s e n t a ç õ e s da h o m o s s e x u a l i d a d e se p r o d u z e m

. * GIRLS
*
A volta da revista a Copacabana
ELOINA e MARIA LEOPOLDINA em *
(um musical de travestis)
Com Theo Montenegro- Stella Stevens - Fugika
Marisa Jones e Verushka
Atriz convidada :Nèlia Paula
Participação dos bailarinos Édson Farr>' *
e Eduardo A llende1
] 3?, 4f, 5.* feiras e domingos às 21h30min.
S ex ta e sàbad os às 22h f
Teatro Alaska — Posto Seis
Anúncio de show em Copacabana, em Lampião.

• 64 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

na l i t e r a t u r a , nas revistas d e d i c a d a s ao c u l t o d e c o r p o s m u s c u l o s o s e t a m b é m
p o r m e i o da p r e s e n ç a e m e v e n t o s c o m o os c o n c u r s o s de beleza e Miss Brasil,
n o s bailes d e carnaval e n o s fas-clubes das f a m o s a s c a n t o r a s da Era d o Rádio.
D e s e n h a - s e , assim, a c o n c e n t r a ç ã o e m locais q u e se t o r n a r i a m os p r i m e i r o s
t e r r i t ó r i o s , bares e b o a t e s de f r e q ü ê n c i a m a j o r i t a r i a m e n t e h o m o s s e x u a l nas
duas m a i o r e s cidades d o país.
U m aspecto ressalta n o d e s d o b r a r de t o d a essa m o v i m e n t a ç ã o h o m o s s e x u a l
masculina: a atração r e p r e s e n t a d a p e l o " c e n t r o " e pelas g r a n d e s cidades. N o
r a s t r o de investigações s e m e l h a n t e s feitas e m o u t r o s países, as m e n c i o n a d a s
pesquisas n o Brasil r e s s a l t a m a i m p o r t â n c i a da m i g r a ç ã o aos g r a n d e s c e n t r o s
u r b a n o s , e m especial São P a u l o e R i o d e J a n e i r o , na t r a j e t ó r i a d e vida d e j o v e n s
h o m o s s e x u a i s ao l o n g o d o p e r í o d o q u e a c o m p a n h a a e x p a n s ã o u r b a n a e indus-
trial n o país d e p o i s da Segunda G u e r r a M u n d i a l . Esse d e s l o c a m e n t o p e r m i t i a
q u e os j o v e n s se afastassem d o c o n t r o l e f a m i l i a r , ao m e s m o t e m p o q u e lhes
abria c a m i n h o p a r a ingressar e m u m a sociabilidade h o m o s s e x u a l m a s c u l i n a
já v i b r a n t e , p r e s e n t e t a n t o nas r e u n i õ e s e m a m b i e n t e s d o m é s t i c o s c o m o n o s
e n c o n t r o s e m espaços p ú b l i c o s .
Se as grandes cidades p r o p o r c i o n a v a m possibilidades c o n s i d e r a v e l m e n t e
ampliadas de vivências homossexuais, t o r n a v a m t a m b é m os jovens m i g r a n t e s
mais expostos à ação médica e policial. E m b o r a a h o m o s s e x u a l i d a d e não fosse
p u n i d a n o Código Penal brasileiro, as leis c o n t r a v a d i a g e m , p e r t u r b a ç ã o da
o r d e m pública e prática de atos obscenos e m p ú b l i c o davam espaço à r e p r e s s ã o
policial q u e atingia s o b r e t u d o os mais p o b r e s e os de p e l e mais escura. N o Rio
d e Janeiro dos anos 1950 e 1960, a p e r s e g u i ç ã o policial aos homossexuais era
u m a ameaça constante, encarnada na figura d o d e l e g a d o R a i m u n d o Padilha, q u e
encabeçou campanhas de prisão d e h o m o s s e x u a i s destinadas a "limpar" o C e n t r o
da cidade e a Z o n a Sul.
Muitos desses considerados "delinqüentes homossexuais" passavam das m ã o s
da polícia para a dos m é d i c o s e legistas de instituições, tais c o m o o Laboratório
d e Antropologia Criminal d o Instituto d e Identificações d e São Paulo. O s escritos
desses m é d i c o s e legistas, e m ação d e s d e as p r i m e i r a s décadas d o século xx, t ê m
o f e r e c i d o vasto material para a r e c o n s t r u ç ã o crítica das teorias p r e t e n s a m e n t e
científicas q u e descreviam a h o m o s s e x u a l i d a d e c o m o anomalia associada a p e r -
turbações congênitas de o r d e m física e m e n t a l , f r e q ü e n t e m e n t e atribuídas aos

• 6 5 -
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

descendentes de africanos. U m dos casos mais célebres relacionando homosse-


xualidade, mestiçagem, degeneração e crime, e que se t o r n o u uma espécie de
paradigma da atuação de médicos e legistas, foi o de Febrônio Índio do Brasil,
acusado de tortura, violação e assassinato de inúmeros rapazes, conduzido pelo
médico carioca Leonídio Ribeiro, em processo que se desenrolou nos anos 1920 e
1930 1 . Na ausência de leis explícitas de condenação à homossexualidade, médicos
e legistas agiam em estreita colaboração com a polícia nos esforços de prescrever
ações correcionais que, acrescidas à punição pelos crimes previstos na lei, podiam
ampliar indefinidamente o t e m p o de privação da liberdade daqueles que vinham
a ser diagnosticados c o m o homossexuais.
Por isso era especialmente importante, além da circulação pelos espaços
públicos, a sociabilidade que se dava em ambientes domésticos, em reuniões e
festas, possibilitando a integração a grupos e turmas de amigos que constituíam
redes de socialização e de apoio formadas ao redor de interesses compartilhados
de diversas ordens — o gosto p o r moda ou desenho, a preferência c o m u m p o r
determinada artista —, assim c o m o por afinidades regionais ou de classe.
U m a pioneira pesquisa brasileira sobre homossexualidade masculina, feita
pelo sociólogo José Fábio Barbosa da Silva n o final da década de 1950, mostrou
alguns aspectos da vivência dessas turmas em São Paulo na virada dos anos 1950
aos anos 1960, com ênfase nas dinâmicas de amizade, preferências eróticas, aven-
turas sexuais e relacionamentos 2 . Peter Fry deu notícias de turmas semelhantes
formadas em Salvador, n o começo dos anos 1960, que se batizavam com nomes
c o m o VID (Very Important Dolls), Carimbos e O s Intocáveis 3 . James Green
contou sobre as turmas que se reuniam no Rio de Janeiro na casa de u m de seus
membros em festas, nas quais se organizavam brincadeiras que parodiavam desfiles
de modas e concursos de beleza. Entre os grupos formados no Rio de Janeiro
nessa época, estava a T u r m a OK, que existe até hoje.
As mulheres aparecem pouco nas fontes disponíveis do período, inclusive
nos relatos médicos e legais, talvez p o r q u e os especialistas então considerassem
que práticas homossexuais fossem um f e n ô m e n o altamente predominante, senão
exclusivo, dos homens 4 . U m dos raros casos de homossexualidade feminina regis-
trado pelos médicos brasileiros foi o estudo do psiquiatra paulista Antonio Carlos
Pacheco e Silva, sobre E. R., descrita c o m o uma mulher negra que assumia uma
identidade masculina agressiva e buscava parceiras femininas, t e n d o preferência

• 6 6 -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

por mulheres brancas. Embora não fosse acusada de n e n h u m crime, E. R. era


tratada como "doente", segundo a associação convencional entre características
raciais e propensão à perversão sexual.
Informações sobre espaços de convivência e sociabilidade de mulheres homos-
sexuais são bem mais escassas. Pode-se supor que as luzes da cidade e suas penumbras
marginais, que tanto atraem os homens, representem, e m contraste, uma ameaça
às mulheres s . Alguns poucos bares, boates e restaurantes em Copacabana, no Rio
de Janeiro, pontos de encontro de intelectuais, artistas e boêmios, passaram a ser
ocupados no final dos anos 1950 t a m b é m por mulheres, num ambiente em que,

FÃS-CLUBES

N o início dos anos 1950, os estúdios da Rádio Nacional, a estação de rádio


que pertencia ao Governo e transmitia seus programas d o Rio para o restante do
país, tornaram-se, assim c o m o os concursos de Miss Brasil, território ocupado.
Homossexuais afluíam às gravações para ouvir suas cantoras favoritas — a elegante,
sofisticada e sensual Marlene, a pura e virtuosa Emilinha Borba, a trágica Nora
Ney e a sofredora Dalva de Oliveira, apenas para mencionar algumas delas. Eles
compravam seus discos e filiavam-se a seus fas-clubes. [...]
O hábito de comparecer às apresentações na estação de rádio ou aos eventos
organizados pelo fa-clube colocava os homossexuais e m contato próximo com outros
que compartilhavam as mesmas paixões e interesses. Amizades eram estabelecidas,
e aqueles que desconheciam a topografia homossexual do Rio de Janeiro ou de
São Paulo eram iniciados n u m a subcultura por meio desses contatos. Ricardo, por
exemplo, um jovem proveniente de u m a família pobre, começou a freqüentar as
gravações em São Paulo. Pouco a pouco ele percebeu que havia outros homens como
ele na platéia, e acabou fazendo vários amigos que o levavam às áreas de interação
homossexual n o centro da cidade. Da mesma f o r m a , Luiz aderiu a um fa-clube em
São Paulo que se correspondia c o m sócios n o Rio de Janeiro. Seus novos amigos
apresentaram-lhe os lugares onde os homossexuais se reuniam no Rio e e m São
Paulo, e u m novo m u n d o se abriu para ele. Em suma, para muitos homossexuais, os
fas-clubes e as apresentações ao vivo nas rádios e, mais tarde, os programas de au-
ditório na TV f o r n e c e r a m um sentimento de família e o de p e r t e n c e r a u m grupo.
GREEN, James N. Além do carnaval, op. cit., p. 270-272.

• 6 7 -
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

segundo depoimentos obtidos pela historiadora Nadia Nogueira, "tudo era muito
velado" e "praticado com extrema discrição". Uma entrevistada lembrou que u m
sinal distintivo entre elas era o uso de sapato mocassim: "pelos pés, uma reconhecia
a outra" 6 . Em São Paulo, nos anos 1960, o restaurante Ferro's Bar, situado próximo
à praça Roosevelt, na direção do bairro do Bixiga, tomou-se u m ponto conhecido
de freqüência de mulheres masculinizadas, tendo sua ambientação e suas persona-
gens evocadas nas histórias de amor proibido e paixão entre mulheres escritas p o r
Cassandra Rios, uma das campeãs de vendagem de livros nas décadas de 1960 e
1970, lida e admirada por muitas mulheres dessa geração.

UMA FESTA DE TURMA EM SÃO PAULO NOS ANOS 1950

Estava passando na cidade quando encontrei com A., que é m e u amigo. Nesse
dia ele m e disse que tinha conhecido u m rapaz que tinha um apartamento no largo do
Arouche e que ia dar uma festinha. A. m e convidou dizendo que estava c o m a idéia
d e pedir a todos os homossexuais que pusessem travesti... Fui para casa e telefonei
para o N. para irmos juntos. Mais tarde, peguei u m vestido de baile m e u e outro
d e minha mãe, e vários acessórios, chapéus, penas, luvas, jóias, seios de plástico e
m e u par de sapatos de salto alto. Passara o dia todo m e arrumando, fazendo mas-
sagem, máscara de beleza etc., de m o d o que m e sentia muito b e m . . . Chegamos
ao apartamento, arrumamos os comes e bebes e começamos a nos arrumar. Havia
u m a tia que não tinha roupa, então emprestei m e u vestido para ele usar. N. usava
u m vestido de baile, branco, estreito e longo, com detalhes em vermelho, e colocou
na cabeça u m topete de penas brancas e amarelas para disfarçar o cabelo. R. e A.
usavam vestidos curtos, de saias bem amplas. Os meus vestidos t a m b é m eram de
baile, muito bonitos e amplos. Os rapazes começaram a chegar e saímos do q u a r t o
depois de t e r m o s nos preparado. Foi u m espetáculo! Eles ficaram completamente
surpreendidos e começaram a nos cortejar. R. e N. deram um show, cantaram muito
b e m , foram aplaudidíssimos. Pena que R. não tenha dançado a r u m b a , que é a es-
pecialidade dele. As garotas desfilaram. A. fez u m pouco de pose de dança clássica,
e então cada um voltou ao seu pretendente. Foi uma noite encantadora!
SILVA, José Fábio Barbosa da. " H o m o s s e x u a l i s m o e m

São Paulo" [1958], In: GREEN, James et al. Homossexualismo em

São Paulo e outros escritos. São Paulo, Unesp, 2 0 0 5 , p. 1 1 4 - 1 1 5 .

•68 •
NA TRILHA DO ARCO-LRIS

Alternativa importante para as mulheres nesse m o m e n t o parecem ter sido


t a m b é m os encontros e m residências particulares, que se transformavam oca-
sionalmente em "bares" ou "clubes". Mulheres cariocas entrevistadas p o r Nadia
Nogueira l e m b r a m de casas desse feitio, no bairro da Tijuca e em Jacarepaguá,
c o m o lugares preservados de convívio, e n c o n t r o e festas. Em ambientes reser-
vados desse tipo e b e m mais restritos às classes altas, poderia circular o casal
formado pela paisagista brasileira Lota Macedo Soares (1910-1967), que concebeu
o p a r q u e do Aterro do Flamengo, e a poeta norte-americana Elizabeth Bishop
(1911-1979), que viveram juntas d e 1951 a 1967.

"Bonecas", "bichas", "bofes", "entendidos", "gays"

Foi por ocasião de uma das festas de turmas homossexuais masculinas n o


Rio de Janeiro, e m 1963, com a realização de u m concurso de Miss Traje Típico,
que Agildo Guimarães, u m jovem que emigrara do Recife dez anos antes, teve
a idéia d e lançar u m jornal de duas páginas datilografadas, para protestar contra
o resultado do concurso. Surgia aí 0 Snob, talvez o mais emblemático jornal de
p r o d u ç ã o caseira desse período, que inspiraria a criação de outros similares n o
Rio, c o m o o Le Femme, de Anuar Farah, Os Felinos, de Gato P r e t o , Okzinho, da
T u r m a OK, e os vários produzidos p o r W a l d e y t o n di Paula, e m Salvador 7 .
O Snob se apresentava c o m o "um jornal para gente b e m " e "que é de b o m
gosto". James Green mostra que as pessoas que giravam em t o r n o da produção
de jornal organizavam sua visão da homossexualidade a partir da oposição entre
"bonecas" e "bofes", o já referido m o d e l o da hierarquia de gênero, sendo a "bone-
ca" representada idealmente como mnajemmejatale ou u m a vamp de Hollywood,
c o m vários amantes e n e n h u m compromisso. As "bonecas" teriam estilo, graça,
personalidade, consciência da m o d a e um b o m gosto que as situariam acima
do resto da sociedade. A "boneca" idealizada aqui não era a que se submetia ao
"bofe", mas a que usava os atributos da feminilidade em seu favor, como se p o d e
ver nessa b e m humorada lista com "Os Dez Mandamentos da Bicha":
1. Amar a todos os homens
2. Nunca ficar com um só
3. Beijar a todos os bofes

• 69 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

4. Evitar falar no futuro


5. Quanto mais intimidade na cama melhor
6. Fingir que sempre ama um só
7. Nunca esquecer os bofes casados
8. Evitar falar em dinheiro
9. Não querer as mariconas
10. Casar só por uma hora

Chamamos a atenção para o "nono mandamento", que expressa a aversão


à idéia de duas "bichas" - e por extensão, dois "bofes" - se relacionarem sexual-
m e n t e . "Não querer as mariconas" significava não só repudiá-las c o m o objeto de
interesse erótico, mas também despejar malícia e maledicência na competição
pela glória pessoal e pelo privilégio de se manter n o centro das atenções. Os
jornais caseiros dedicavam grande espaço para comentários e fofocas sobre as
façanhas e desventuras de seus editores e de seus rivais. Daí resultavam inúmeras
intrigas e dissidências, que davam margem à criação de u m novo jornal. Formado
a partir de uma rivalidade acionada por um resultado frustrado, O Snob sofreu
uma famosa cisão, quando Anuar Farah se afastou do grupo para criar o seu Le
Femme, em 1967.

SNOB MOVA PASE - AKO 7 - RIO DE JANEIRO. 31 <U m*lo M IttC» - Nf II - NOVA FASE - 5NOB

Detalhe de capa do último número do jornal "O Snob".


NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

Esse universo de "bonecas" e "bofes" e os padrões de sociabilidade p o r ele


preconizados defrontavam-se com posturas divergentes em relação à homossexua-
lidade masculina que podiam ser encontradas e m outras redes na mesma época,
n o Rio de Janeiro, e m São Paulo e provavelmente e m outras grandes cidades. O
t e r m o "entendido" já circulava desde pelo menos a segunda metade dos anos 1940
para designar amplamente homossexuais e lugares freqüentados por homossexuais
de forma mais genérica e polida, sem a carga depreciativa de "veado" ou "bicha".
O t e r m o parece se popularizar ao longo dos sinos 1960. U m dos slogans de 0 Snob
era "um jornal para gente entendida", e o jornal t a m b é m o utiliza ao divulgar sua
proposta d e realizar u m Congresso d e Jornalistas Entendidos, reunindo repre-
sentantes de todas as publicações caseiras, em 1967. N o final da década, passa
a circular também com acepção semelhante ao t e r m o "gay". Ele já figurava nas
matérias da grande imprensa que tratavam da homossexualidade nesse período,
com referência à sua ampla utilização nos Estados Unidos. Apareceu também
na tentativa de Agildo Guimarães e Anuar Farah para organizar uma Associação
Brasileira de Imprensa Gay (ABIG), e m 1969.
Progressivamente, esse uso codificado dos t e r m o s "entendido" e "gay" passa a
exprimir também uma nova categoria de identidade em que se diluíam as diferenças
marcadas entre o bofe-ativo-masculino e a bicha-passiva-feminina. Um entrevistado
paulista de Néstor Perlongher associou o uso do t e r m o "entendido" nessa acepção
à "vanguarda teatral" do começo dos anos 1960 8 . Isso também se manifesta na fase
final de O Snob, quando o jornal passou a anunciar u m a série de inovações, com
"crônicas, poesias, artigos de real interesse, contos e colunas sociais sadias, sem
fofoquinhas". A capa do último número, em maio de 1969, ousava ao estampar,
em lugar das convencionais "bonecas" estilizadas, u m desenho com dois rapazes
nus fazendo amor, deitados e entrelaçados face a face.
A pesquisa da socióloga Carmen Dora Guimarães sobre a formação de uma turma
de homens homossexuais no Rio de Janeiro na virada dos anos 1960 aos 1970, em tor-
no de experiências compartilhadas de migração, afinidades de classe, gosto e formação
intelectual, é também uma etnografia pioneira a mostrar a vivência de pessoas que
negavam a diferenciação ativo/passivo na definição da identidade homossexual.
G u i m a r ã e s m o s t r a q u e os participantes dessa r e d e consideravam que
" t u d o é transa" e definiam "a relação c o m o homossexual, assim c o m o ambos os
parceiros" 9 . O discurso dessa t u r m a , de um lado, parecia diluir o que haveria
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

de singular e específico na homossexualidade, ao descrevê-la c o m o uma prática


sexual "que t o d o m u n d o faz". M e s m o a categoria "entendido" chegava a ser
considerada p o r eles "uma palavra besta pra dizer homossexual", preferindo
usar a expressão "aquele que transa c o m h o m e m " c o m o categoria de autoi-
dentificação. D e o u t r o lado, p o r é m , não deixavam de associar o "homossexual"
às qualidades distintivas de "requinte", "bom-gosto" e "nada excessivo", depre-
ciando por contraste as "bichas", que s u p o s t a m e n t e representariam o oposto
dessas mesmas qualidades.

Os anos 1970 e a expansão dos espaços de sociabilidade

Proclamações de r e q u i n t e à p a r t e , a t u r m a descrita por C a r m e n Dora


Guimarães aproveitava-se a m p l a m e n t e das novas oportunidades de serviços
e c o n s u m o a partir da paulatina expansão dos espaços públicos voltados para
a sociabilidade e paquera homossexual nas grandes cidades, que se dá já nos
primeiros anos da década de 1970. N o Rio de Janeiro, bares, restaurantes e,
sobretudo, boates direcionadas para u m a clientela homossexual masculina de
classe média f l o r e s c e r a m em Copabacana, com destaque para a famosa Galeria
Alaska — que foi até t e m a de u m a canção de sucesso, "A galeria do amor" (com
seu r e f r ã o "onde a gente que é gente se entende"), composta e lançada em 1975
pelo cantor popular Agnaldo T i m ó t e o . Alargava-se assim u m circuito que já
incluía estabelecimentos e vias públicas de freqüência homossexual no centro,
c o m o a Cinelândia e a Lapa, c o m sua área de travestis, e a região chamada de
"Via Apia", p o n t o de circulação de garotos de p r o g r a m a situado nas proximi-
dades da praça xv de N o v e m b r o .
Os emergentes "entendidos" ou "gays" que percorriam esse mapa sociosse-
xual ampliado orientavam suas relações segundo sua versão do modelo igualitá-
rio, inclusive nas áreas de "pegação arretada" envolvendo garotos de programa.
Sua valorização da "transa" na definição dos parceiros da relação sexual, em
detrimento da posição ou do papel nela desempenhado, levava-os a representar
a relação com os garotos de programa c o m o uma troca mútua e simétrica que
ocorre "entre homens", n u m terreno marcado p o r riscos e perigos, "um jogo
para os fortes", onde "a bicha não entra mesmo". Em casos de não cumprimento

• 102 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

do trato, a atitude era de enfrentamento,


c o m o exprimia um dos entrevistados de
Carmen Dora Guimarães:
CINELÂNDIA, A L A S K A . S Ã O J O Ã O

AS RELAÇÕES PERIGOSAS Se depois o outro ameaça escândalo, eu


ameaço um escândalo ainda maior. Não
me intimido. Não tenho nada a perder.
Aí fico bem. Fico macho mesmo. É ho-
mem contra homem.

A Igreja M A peça
e os [ c j ú e Darcy Em São Paulo, a m o v i m e n t a ç ã o
homossexuais Penteado

A verdade
ainda se concentrava na região central.

I sobre o
carnaval
baiano
A b o ê m i a de classe média desloca-se
da Galeria Metrópole para a rua Nes-
COMO E N F R E N T A R A NOITE C A R I O C A
tor Pestana e a praça Roosevelt e, e m
Espaços públicos homossexuais são manchete de Lampião.
seguida, para o largo do Arouche e a
rua Vieira de Carvalho. O F e r r o ' s Bar conservava-se então c o m o importante
referência desse circuito, aparecendo t a m b é m em suas vizinhanças outros esta-
belecimentos freqüentados p o r mulheres. T o d o esse território seguia contíguo
às áreas de convivência masculina popular e de garotos de programa, na avenida
São João e na praça da República.
E m depoimento a Néstor Perlongher, u m freqüentador da cena homossexual
paulistana apresentou u m a descrição retrospectiva do ambiente do começo dos
anos 1970, ressaltando a mudança dos padrões de sociabilidade e das categorias
classificatórias e m operação no universo homossexual masculino:

Nos anos 1 970 houve o movimento hippie, underground, que foi absorvido
pelos gays. A Nestor Pestana era um local absorvido pelos gays sem ser de
características exclusivamente gays. Era um local assediado pelo pessoal que
fumava [maconha], transava LSD, ia maquiado com batom verde, purpurina
no cabelo, penas na cabeça. [...]. Aí já aparece claramente o gay como per-
sonagem. Foi um questionamento dos valores burgueses, um cansaço do
convencional. O pessoal procurou atividades alternativas: artesanato, artes.
Isso foi antes que aparecesse o movimento gay propriamente dito. Na ver-

• 7 3 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

dade, estava tudo misturado, o movimento era contestatório, o gay pegava


carona. [...]. O importante era que nessa época quem dava as diretivas do
mundo gay da classe média era uma vanguarda teatral, mas intelectualizada.
Eles acabariam impondo o padrão gay/gay.

O final da década de 1970 em São Paulo assistiu a uma ruidosa saída do


armário, t e n d o c o m o epicentro o largo d o Arouche. Impressionado com a movi-
mentação paulistana, o sociólogo norte-americano Frederick Whitam 1 0 escreveu,
em 1979, que o burburinho da população gay dos fins de semana do largo do
Arouche nada ficava a dever ao das famosas Castro Street, de São Francisco, e
Christopher Street, de Nova York.

Repressão, desbunde e verbo

Cabe refletir u m pouco sobre a atmosfera cultural e política do Brasil na


década de 1970, que se inicia sob o signo da ditadura escancarada, imposta no
final de 1968 com a promulgação do Ato Institucional n 2 5. A primeira metade
da década corresponde aos nossos Anos de C h u m b o , o período mais violento de
perseguições, torturas e assassinatos cometidos pelos órgãos da repressão política.
U m braço dessa repressão fazia sentir seu peso sobre os costumes, nutrindo as
atividades paralelas de intimidação, venda de proteção e extermínio sumário,
atuantes em todas as cidades, então conhecidas como "esquadrões da morte".
Os territórios ampliados de sociabilidade homossexual eram alvo regular de
incursões policiais e parapoliciais desse tipo, a p r e t e x t o de combate à vadiagem
e ao tráfico de drogas.
Esse é t a m b é m , paradoxalmente, u m t e m p o de grande efervescência artística
e de contestação cultural no país. C o m a grande imprensa manietada pela censura,
surgem jornais alternativos, fora das grandes empresas de mídia, em formato
tabloide, q u e funcionam c o m o veículo de crítica política e cultural. U m desses
jornais independentes de maior impacto foi O Pasquim, criado e m 1969 por u m
grupo de jornalistas cariocas que usavam de u m estilo m u i t o particular, marcado
pelo h u m o r anárquico e irreverente, para tratar de temas ligados a costumes e
c o m p o r t a m e n t o . Severamente perseguido pela censura, o jornal era obrigado

• 7 4 '
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

a submeter suas matérias diretamente a Brasília — c o m o ocorreu depois com o


semanário Opinião, de perfil mais sóbrio e voltado para a crítica política — e seus
realizadores passaram p o r várias prisões coletivas. Ao tratar da homossexualidade,
0 Pasquim produziu algumas matérias célebres, como a entrevista com Madame
Satã, famoso malandro homossexual da Lapa carioca, ao lado de inúmeras p r o -
vocações c o m farta utilização da palavra "bicha", que valeram ao jornal e a seus
integrantes a qualificação de "machista".
O Pasquim foi o p r i m e i r o veículo d e grande circulação a tratar, ainda q u e
c o m sua idiossincrasia, da c o n t r a c u l t u r a , do underground e do "desbunde",
t e r m o s que ajudou a difundir e a popularizar, c o m o expressão de estar "fora
do sistema" e de negar a "caretice". C o m o f e n ô m e n o sociocultural de alcance
mais amplo, a contracultura no Brasil frutificou nos anos 1970. Suas expressões
m e n o s espetaculares, mas de impacto mais p r o f u n d o , p o d e m ser apreciadas e m
certos estilos, hoje b e m mais corriqueiros, mas que antes causavam espécie.
Antes dos anos 1970, não e r a m fabricados n o Brasil jeans macios que desbo-
tavam. Roupas justas e cores c o m o o v e r m e l h o e o rosa, assim como bolsas
e adornos, e r a m tabus na i n d u m e n t á r i a masculina. Usá-los no começos dos
anos 1970 era u m a espécie de a f r o n t a às convenções de g ê n e r o . C o m o conta
a pesquisadora Ana Maria Bahiana:

O gesto definitivo do desafio desbum era um homem se vestir de rosa — uma


peça que fosse já causava rebuliço, e essa peça em geral era uma camiseta bem
justa. José Wilker, estrela desbundada do teatro carioca, parava o trânsito em
Ipanema, no Rio, vestido de rosa da cabeça aos pés, com uma microcamiseta,
calças de pijama bem baixas e uma enorme bolsa a tiracolo."

A androginia e a m o d a unissex tornavam-se novos valores da época, cele-


bradas p o r cantores e c o m p o s i t o r e s p o p u l a r e s estrangeiros de sucesso, c o m o
David Bowie e Alice C o o p e r , q u e embaralhavam as performances convencionais
de g ê n e r o . A sua maneira, artistas brasileiros — c o m o Caetano Veloso, o g r u p o
musical Secos&Molhados, com seu vocalista Ney Matogrosso, e o grupo teatral
Dzi C r o q u e t t e s , liderado pelo c o r e ó g r a f o Lennie Dale —, e m sua composição
visual e postura cênica, expressaram esse estilo batizado nos Estados Unidos
de genderfucker.

• 75 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Em 1972, em seu primei-


r o espetáculo depois da volta
d o exílio, Caetano Veloso
usava b a t o m e adotava m a -
neirismos à m o d a de Carmen
Miranda. O s Secos&Molhados
estreavam seu espetáculo em
São Paulo, usando maquiagem
carregada e máscaras que en-
fatizavam androginia e sensu-
alidade, que logo vieram a ter
u m s u r p r e e n d e n t e sucesso.
O s Dzi Croquettes passavam
a p e r c o r r e r o país com espe-
táculos de dança e h u m o r (o
primeiro, com estreia em São
Paulo, chamava-se "Gente
computada igual a você") que
radicalizavam as confusões de
gênero, misturando barbas e
cílios postiços, sutiãs e peitos
peludos, meiões de futebol e
saltos altos. Mais radicais, bus-
cavam vivenciar no cotidiano o que expressavam no palco, mobilizando um grupo
fiel de seguidores (que eles chamaram de "tietes") que formavam uma comunidade
de relações afetivas e eróticas, contemplando múltiplas possibilidades' 2 .
Mesmo espetáculos de caráter mais festivo e comercial, com artistas da
música popular, poderiam ser ocasiões privilegiadas para a expressão de posturas
anticonvencionais. Durante u m show promovido e m São Paulo, em 1973, por
uma grande gravadora que reunia o maior n ú m e r o de estrelas na época, causou
espécie o beijo na boca que se deram as cantoras Gal Costa e Maria Bethânia,
depois da apresentação em que interpretavam juntas uma canção em homenagem
à Mãe Menininha do Gantois. N o carnaval, por seu lado, ampliavam-se os espaços
de participação e sociabilidade homossexual masculina.

• 8 8 -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

Para além da androginia, a década de 1970 assistiu ao aumento da visibilidade


de outras vivências individuais e grupais do h o m o e r o t i s m o . N o universo mas-
culino, performances de g ê n e r o mais viris, músculos, bigodes e barbas ganharam
t e r r e n o . C o m o assinalou o entrevistado de Perlongher, já citado, e m vez de agir
c o m o as antigas "bichas", que procuravam ser mais femininas para atrair os ma-
chos, os garotos passaram a ser mais másculos para atrair pessoas mais másculas.
Antonio Bivar realçou com ironia as manifestações do estilo "gay macho" na cena
paulistana do final da década:

O çay macho rejeita hoje a velha e neurótica superidentificação com as mu-


lheres... Hoje, os modelos de identificação são os macho-men. Em poucos anos
passaram da escravidão à feminilidade, que nunca alcançaram, a uma masculi-
nidade que, eles sabem, jamais alcançarão.

Para, e m seguida, assinalar o desfile da diversidade:

Os machos e os travestis são os dois extremos que iluminam o vasto centro gay.
Tem: as tias, os garotos e as meninas que vêm dos bairros e subúrbios em busca de
alguma grana ou de um pouco dos reflexos das luzes da cidade; as bichas loucas de

GAYS NAS ESCOLAS DE SAMBA

A mercantilização dos desfiles de escolas de samba no fim dos anos 1960


e n o começo dos 1970, fomentada pela c o b e r t u r a da TV e m cores e do m e r c a d o
turístico internacional, estimulou as produções cada vez mais aparatosas. Os homos-
sexuais participavam ativamente de todos os aspectos do desfile, desde a criação dos
espetaculares efeitos visuais destinados a hipnotizar o público até a participação e m
alguma ala vestidos com luxuosas fantasias. Ramalhete apontou a divisão de trabalho
dentro de uma escola de samba: " O presidente da escola d e samba é macho. Q u e m
faz o enredo, a maioria é gay. Ele faz o visual, o e n r e d o , o cenário, as fantasias. O
macho é quem faz o carro alegórico, q u e m bate o m a r t e l o é macho. O gay chega lá
para dar as idéias, m o n t a r tudo, fazer as coisas n o m í n i m o detalhe. Muitos homens
trabalham de carpinteiro, mas a orientação é gay".
GREEN, J a m e s N. Além do carnaval, op. cit., p. 3 8 0 .

• 76 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

todas as idades que fazem o gênero jeunejille; os que estão à caça do verdadeiro amor;
os que só acreditam no dinheiro etc.; e os mutantes, como a deliciosa Sharon Tate,
que nasceu "Aderbal" e já passou por várias encarnações até chegar a "Sharon".13

Na segunda metade nos anos 1970, parte da ebulição criativa anterior foi
sanitizada e convertida e m f e n ô m e n o de massa. A principal expressão cultural
disso talvez tenha sido a disco-music norte-americana — uma combinação de estilos
musicais negros e latinos n u m padrão rítmico de f o r t e apelo dançante, gestada
nas boates e clubes gays ou freqüentados p o r homossexuais, que passava a atin-
gir o grande mercado da música e do espetáculo. Herdeiro do sucesso e f ê m e r o
dos Secos&Molhados, o cantor Ney Matogrosso retornava ao posto de estrela
popular, interpretando uma versão disco de uma canção do cultuado ícone da
música popular brasileira, Chico Buarque de Holanda, "Não existe pecado ao
sul do Equador". Composta para o censurado disco da peça Calabar, e m 1973, a
canção ressurgia seis anos depois c o m o o carro-chefe do espetáculo e m que Ney
Matogrosso a interpretava jogando bananas à platéia, em plena Galeria Alaska,
então a mais famosa área de "pegação" gay do Rio de Janeiro.
Já se disse que a segunda metade dos anos 1970 assistiu a uma "verdadeira
explosão discursiva" em torno da homossexualidade. Jornais caseiros continua-
ram circulando, ainda centrados especialmente nas fofocas do meio, mas c o m
algumas novidades: ao lado dos mimeografados cariocas Tiraninho e Conde Gay
e do artesanal Little Darling (que depois m u d o u seu n o m e para Ello), do baiano
Waldeyton di Paula, apareceram os folhetos paulistas Entender e Jornal do Gay,
assim como o carioca Gente Gay, dos pioneiros Agildo Guimarães e Anuar Farah.
Todos tiveram vida curta, mas o tema começava aos poucos a encontrar mais
espaço também na grande imprensa.
U m marco nesse sentido foi a "Coluna do Meio", assinada pelo jornalista
Celso Curi, no jornal popular Ultima Hora, de São Paulo, que então pertencia
ao G r u p o Folha. Era a primeira coluna explicitamente voltada para u m público
homossexual divulgada num veículo da grande imprensa, que noticiava tanto a
abertura de novas boates gays quanto informações ligadas ao m o v i m e n t o gay e
lésbico dos Estados Unidos e de outros países. Ao longo de seus três anos de
existência, de 1976 a 1979, a coluna sofreu processo movido pela União com base
na Lei de Imprensa, por suposta ofensa à m o r a l e aos bons costumes. O sucesso

• 7 8 -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

da "Coluna do Meio" provocou então u m interesse crescente da grande imprensa


pelo f e n ô m e n o da homossexualidade, c o m o exemplifica a longa matéria do se-
manário IstoE, " O p o d e r homossexual", publicada na edição de 28 de dezembro
de 1977, cuja capa era ilustrada p o r duas mãos masculinas entrelaçadas.
O flerte de u m público mais amplo com manifestações associadas ao estilo de
vida de segmentos estigmatizados ocorria j u n t o com o crescimento da oposição
à ditadura militar e parecia oferecer t a m b é m a promessa de u m conjunto reno-
vado de expressões políticas e culturais. Isso se refletia na imprensa alternativa,
ou "nanica", da segunda m e t a d e dos anos 1970. Ao lado de u m a militância mais
acentuada, presente em jornais c o m o Movimento (uma dissidência do Opinião) e
Em Tempo, que funcionavam como porta-vozes de agrupamentos políticos espe-
cíficos da esquerda, surgiam t a m b é m periódicos feministas, c o m o o Brasil Mulher
e o Nós Mulheres, b e m c o m o publicações de cunho mais literário e poético, c o m o
Escrita e Versus, entre outros (Versus seria p o s t e r i o r m e n t e convertido também em
jornal político-partidário).
O período de "movimentação" homossexual e n t r e as décadas de 1950 e
1970, que aqui tratamos b r e v e m e n t e , desenhou os contornos gerais do p r o -
cesso que fez que as homossexualidades saíssem do armário e se dirigissem não
só para as festas, mas t a m b é m para as assembleias e reuniões de pauta. Essas
mudanças ajudaram a aliviar as condições que mantinham a vida homossexual na
clandestinidade. Mas t a m b é m levariam de roldão muitas de suas expressões mais
tradicionalmente underground, c o m o a imprensa caseira. Em depoimento dado a
Peter Fry, em 1979, Waldeyton di Paula, o criador de vários jornais artesanais
de Salvador, fazia uma sensível avaliação da "nova mentalidade" que afetara o
universo de referências dos jornais caseiros:

Na mentalidade dessa época [1963], só se viaguei como travesti... Hoje [1979]


a mentalidade é outra. E tem a liberdade enorme que nós não tínhamos anti-
gamente, né? Nos carnavais éramos todos mascarados, não tínhamos coragem
de mostrar a cara. Hoje, na praça Castro Alves, todo mundo faz o que quer,
abertamente e com apoio de todo mundo, com cobertura da polícia. Foi a dé-
cada de 1970 que trouxe essa renovação. Está relacionada com o movimento
tropicalista de Caetano Veloso. Acho que esse pessoal todo é que criou uma
abertura maior... Eu, na minha adolescência, pensava em sociedade, em fofoca,

• 7 9 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

aquela coisa mais social. Hoje, mais maduro, vejo que tem muita coisa mais
importante para se pensar, para pesquisar, saber as origens, buscar as raízes.
Assim que a gente muda. Naquele tempo, eu achava lindo fazer um desfile de
miss. Hoje, se eu fizer um desfile, como faço, é uma sátira.14

O arco de expressões e identificações de homossexualidades havia se expan-


dido e se diversificado em meio a u m período fervilhante de mudanças sociais e
inovações culturais, que culminariam n o grande m o v i m e n t o de contestação do
regime militar e abririam caminho, t a m b é m , para a expressão de u m movimento
político homossexual, que entrava em cena, em 1978, com a publicação do jornal
Lampião e a fundação do grupo Somos, c o m o veremos a seguir.
Libertários na "abertura"

C ^ ^ r a s i l , março de 1978. Ventos favoráveis sopram no rumo de uma certa


liberalização do quadro nacional: em ano eleitoral, a imprensa noticia promessas
de um Executivo menos rígido, fala-se na criação de novos partidos, de anistia;
uma investigação das alternativas propostas faz até com que se fareje uma "aber-
tura" no discurso brasileiro. Mas um jornal homossexual, para quê?1

Este primeiro parágrafo do editorial do n ú m e r o zero do Lampião resume o


cenário político e cultural em que se desenhava a construção de u m movimento
político homossexual n o país. Abafadas as dissidências à direita d e n t r o do próprio
regime, o governo do general Ernesto Geisel, e m seu período final, acenava com
uma distensão lenta, gradual e segura. O m o v i m e n t o estudantil voltara às ruas,
e os operários dos setores de ponta da indústria não tardariam a usar novamente
o direito de greve. O u t r a s vozes políticas começavam a se fazer ouvir. Homos-
sexuais que se apresentavam c o m o u m a "minoria oprimida" juntavam-se, à sua
maneira, ao coro de oposição à ditadura.
O jornal Lampião e o g r u p o Somos, de São Paulo, são consagrados hoje
c o m o referências da primeira onda de mobilização política em defesa da homos-

• 8 1 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

sexualidade n o Brasil. Não cabe dúvida sobre a importância de ambos. Mas vale
ressaltar que o reconhecimento que a eles se presta, hoje, se deve não tanto por
terem sido, respectivamente, o primeiro jornal e o primeiro grupo a tratar da
homossexualidade c o m o questão social e política, n e m p o r terem representado
(como efetivamente foram) uma experiência marcante na vida de seus partici-
pantes diretos e de todos aqueles que de alguma maneira estiveram à sua volta.
O fato de t e r e m sido alvo d e estudos e publicações bastante detalhadas, que,
sobretudo e m relação ao Somos 2 , documentaram suas atividades e examinaram
seu ideário e suas divergências internas, pesou decisivamente para transformar
o seu estilo de militância em m o d e l o — de época, pelo menos.

"Saindo do gueto"

Os relatos sobre o aparecimento do Lampião são recorrentes e m associá-lo à


visita que o ativista gay norte-americano Winston Leyland fez ao Brasil, em 1977.
Leyland era editor do Gay Sunshine, u m a das várias publicações direcionadas para
o público homossexual que então circulavam nos Estados Unidos, que se desta-
cava pela periodicidade regular e pela cobertura de temas literários e culturais.
Leyland viera ao Brasil em busca de material para seu projeto de organizar uma
antologia de literatura gay latino-americana. Seu principal contato no país era João
Antonio Mascarenhas, advogado e jornalista gaúcho radicado no Rio de Janeiro,
que assinava o Gay Sunshine e mantinha correspondência regular com o editor.
Mascarenhas promoveu o encontro de Leyland com vários escritores brasi-
leiros que iniciavam promissoras carreiras, como Aguinaldo Silva, Caio Fernando
Abreu, João Carlos Rodrigues e João Silvério Trevisan, além de veteranos c o m o
Gasparino Damata e o pintor Darcy Penteado. Conseguiu também atrair a atenção
da imprensa para a visita de Leyland, que concedeu entrevistas para Veja, IstoÉ, 0
Globo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo e t a m b é m u m a mais longa, para 0 Pasquim,
intitulada " O s gays estão se conscientizando".
Por meio dessas atividades mobilizou-se u m a rede de escritores e jornalistas
que se entusiasmaram com a idéia de criar u m jornal brasileiro voltado ao pú-
blico homossexual. Em entrevista incluída na já mencionada matéria "O poder
homossexual", de IstoE, em fins de 1977, Aguinaldo Silva, jornalista e escritor

• 102 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

p e r n a m b u c a n o estabelecido no Rio de Janeiro, que viria a ser a figura central do


f u t u r o jornal e seu principal editor, anunciava sua criação e antecipava o título:

O nome do jornal? Há uma lista imensa, mas o que me agrada é Lampião. Pri-
meiro, porque subverte de saída a coisa machista: um jornal de bicha com nome
de cangaceiro? Segundo, pela idéia de luz, caminho, etc. E terceiro, pelo fato
de ter sido Lampião um personagem até hoje não suficientemente explicado:
olha aí outro que não saiu das sombras.

N o f o r m a t o tabloide característico da imprensa alternativa da época, com


dezesseis páginas e periodicidade mensal, Lampião3 teve a sua primeira edição
experimental, de circulação restrita, e m abril de 1978. Nela destacavam-se o
citado editorial "Saindo do Gueto", a apresentação dos onze membros do conselho
editorial, u m ensaio memorialístico de Darcy Penteado sobre uma possível arte
erótico-homossexual brasileira e uma reportagem de João Silvério Trevisan sobre
o processo judicial enfrentado por Celso Curi por causa da "Coluna do Meio".
O n ú m e r o 1 chegou às bancas em fins d e maio de 1978, com uma tiragem de 10
mil exemplares. Além de reportagens, ensaios e entrevistas especiais, o jornal

Leitores em uma livraria de São Paulo, durante o lançamento do Lampião (abril, 1978).

•82•
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

trazia páginas regulares de opinião, noticiário geral, cobertura de artes e espe-


táculos, seção de cartas e espaço reservado à publicação de poemas e contos. A
receptividade inicial ao jornal foi boa e, em pouco t e m p o , a tiragem passaria a
15 mil exemplares, com distribuição ampliada em algumas grandes cidades do
país, para além de São Paulo e Rio de Janeiro. Sua derradeira edição, de n ú m e r o
37, saiu em junho de 1981, perfazendo três anos de existência.
Lampião era, em vários aspectos, muito diferente de tudo o que lhe havia
precedido em termos de imprensa homossexual. Para começar, reunia e m seu
conselho editorial u m conjunto de jornalistas, escritores e intelectuais de conside-
rável peso na vida cultural brasileira, que emprestavam uma inédita legitimidade à
empreitada. Aguinaldo Silva, então repórter policial de 0 Globo, já era reconhecido
como importante escritor, por livros como Primeira carta aos andróginos e República
dos assassinos. Antonio Chrysóstomo era um polêmico crítico de música popular
estabelecido no Rio de Janeiro, que trabalhara em Veja e 0 Globo. Darcy Penteado
já era um respeitado e estabelecido artista plástico em São Paulo, que passara a se
dedicar também à literatura. Gasparino Damata, jornalista, escritor e ex-diplomata,
de origem pernambucana e radicado no Rio de Janeiro, fora organizador de duas
antologias pioneiras de contos homoeróticos. Jean-Claude Bernardet já era u m dos
mais importantes críticos e pesquisadores de cinema do país, autor de u m renomado
estudo sobre o Cinema Novo. João Antonio Mascarenhas tinha u m a longa carreira
como alto funcionário do Ministério da Educação. João Silvério Trevisan era um
emergente escritor paulista, tendo publicado um elogiado livro de contos, Testamento
de Jônatas deixado a Davi. Peter Fry já era uma das principais referências no ensino
e na pesquisa em antropologia social no meio acadêmico brasileiro. Completavam
o grupo de notáveis no conselho editorial os jornalistas Adão Acosta, Clóvis Mar-
ques e Francisco Bittencourt. A lista de colaboradores reunia nomes igualmente
expressivos no âmbito do jornalismo, das letras e da universidade.
Alguns dos editores do Lampião tinham t a m b é m u m histórico diversificado
de engajamento político. Em Pernambuco, antes do golpe militar de 1964,
Aguinaldo Silva fora próximo de ativistas do Partido Comunista Braileiro (PCB),

embora não mantivesse vínculo formal com a organização. Em 1969, permaneceu


numa cela incomunicável por 45 dias n o presídio da Ilha das Flores, no Rio de
Janeiro, por ter escrito um prefácio a uma edição dos Diários de Che Guevara.
Mais tarde, foi colaborador do Opinião e um dos fundadores do Movimento, assim

• 84*
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

c o m o Jean-Claude Bernardet. João Silvério Trevisan, nos anos 1960, militara nas
organizações estudantis da esquerda católica e n o g r u p o Ação Popular (AP).
Nos anos 1970, Trevisan e João Antonio Mascarenhas travaram contato mais
intenso com os movimentos políticos homossexuais fora do país.Trevisan m o r o u um
ano nos Estados Unidos, em 1975, onde conheceu ativistas do Gay Liberation Front
e também vários estudantes de esquerda, inclusive um jovem formado em ciências
políticas, James Green, militante de uma organização trotskista, que, estimulado por
Trevisan, viria em seguida ao Brasil tornar-se participante ativo do Somos e colaborador
do Lampião. Mascarenhas teve acesso às informações sobre o movimento homossexual
internacional por meio da emergente imprensa gay britânica e norte-americana.
Em depoimentos ao historiador Cláudio R o b e r t o da Silva 4 , mais de vinte
anos depois, ambos recordaram alguns aspectos dessas experiências:

Trevisan: Em Berkeley, descobri o movimento homossexual, descobri os anar-


quistas, o movimento feminista, o movimento negro, descobri ecologia, tudo
isso em 1973... Berkeley naquela época era uma ponta de lança ideológica contra
o sistema americano. Uma espécie de caldeirão onde experiências novas, bem
no bojo da década de 1970, estavam sendo trabalhadas... Foi um momento
muito revelador e particularmente privilegiado do movimento homossexual
americano. Ainda era um desabrochar de algo muito juvenil, muito encantado,
muito cheio de brilho.
Mascarenhas: Quando comecei a ler o jornal Gay Sunshine e conheci os principais
jornais gays ingleses, passei a encomendar livros dos Estados Unidos e a ler tudo
o que podia sobre o tema. Assim, tomei conhecimento do movimento existente
nesses países, do Gay Liberation, de Stonewall. Li um livro muito importante
que se chamava Homosexual: Opression and Liberation, era a tese de Dennis Altman,
professor da Universidade de Sydney, na Austrália. A partir de então, fiquei
interessado no movimento homossexual, nos fundamentos que nunca tinha racio-
nalizado antes, e fiquei a sonhar com o aparecimento do movimento no Brasil.

Lampião se diferenciava t a m b é m n o m o d o c o m o abordava a homossexua-


lidade. O jornal procurava oferecer u m t r a t a m e n t o que combatesse a imagem
dos homossexuais c o m o criaturas destroçadas por causa de seu desejo, incapazes
de realização pessoal e com tendências a rejeitar a própria sexualidade. Mas não

• 85 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

fazia isso de m o d o a c o n c e n t r a r - s e e x c l u s i v a m e n t e nos homossexuais e, sim,


apresentando-os c o m o u m a e n t r e as várias minorias oprimidas que tinham direito
a voz. O jornal se p r o p u n h a a "sair d o g u e t o " e ser u m veículo pluralista a b e r t o a
diferentes p o n t o s de vista sobre d i f e r e n t e s questões minoritárias. Isso foi p o s t o
e m prática c o m a publicação de matérias sobre m o v i m e n t o feminista, m o v i m e n t o
n e g r o , transexualidade, sadomasoquismo, populações indígenas, prisioneiros,
ecologia e até m e s m o uso de m a c o n h a . T a m b é m se preocupava c o m as condi-
ções dos que se dedicavam à prostituição masculina e feminina, t e n d o realizado
matérias e entrevistas c o m travestis, garotas e garotos de p r o g r a m a .
U m a edição especial, "Ensaios Selvagens", publicada c o m o s u p l e m e n t o d o
n ú m e r o 24 (maio de 1980), m a r c a n d o o segundo aniversário d o Lampião, oferece
u m a amostra da quantidade e qualidade de t e m a s e provocações veiculadas e m
suas edições. R e u n i a m - s e ali traduções de artigos d o f a m o s o cineasta italiano Pier
Paolo Pasolini, criticando a cartilha sobre h o m o s s e x u a l i d a d e lançada na época
p o r Marc Daniel e A n d r é Baudry, o f u n d a d o r da revista e d o g r u p o Arcadie 5 ;
da feminista socialista A n n e K o e d t sobre o m i t o d o o r g a s m o vaginal; d o coleti-
vo italiano CIDAMS ( C e n t r o Italiano p e r la D o c u m e n t a z i o n e delle Attività delle
Minoranze Sociali) s o b r e a m a t a n ç a de h o m o s s e x u a i s na Alemanha nazista; e d o
psiquiatra britânico J a m e s Lindesay, "Heterossexualidade: p e r v e r s ã o ou d o e n -
ça", que ironizava os clichês m é d i c o s e psicológicos sobre homossexualidade,
i n v e r t e n d o sua destinação. C o m p l e t a v a m a edição u m artigo de Aguinaldo Silva
sobre estupro, o u t r o d e R u b e m C o n f e t e s o b r e o m o v i m e n t o n e g r o n o Brasil e a
tradução do d e p o i m e n t o de u m presidiário gay nos Estados Unidos, acompanhada
de u m a entrevista c o m u m especialista brasileiro d e direito penal, q u e realçava a
ausência de definição legal da homossexualidade c o m o c r i m e n o Brasil.
A visão política d o Lampião orientava-se para u m a alternativa libertária, q u e
desafiava convenções e convicções políticas expressas na época t a n t o n o c a m p o
conservador q u a n t o na esquerda. Para isso, c o n t r i b u í r a m t a m b é m a p o s t u r a
adotada por alguns dos exilados políticos q u e r e t o r n a v a m ao país e os livros de
m e m ó r i a s que passaram a ser publicados a partir de 1979, c o m destaque para Fer-
n a n d o Gabeira e seu O que é isso, companheiro?. Gabeira foi entrevistado na edição
de n ú m e r o 18 ( n o v e m b r o de 1979) e u m t r e c h o d e seu livro foi r e p r o d u z i d o na
seção de literatura. E m d e z e m b r o de 1979, o j o r n a l lançou u m a edição especial
batizada de "libertários", cuja chamada de capa anunciava "as mais explosivas

•86-
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

entrevistas já feitas n o Brasil s o b r e política sexual", r e u n i n d o p a r t e das entrevis-


tas publicadas n o s dois p r i m e i r o s anos d e existência d o j o r n a l , c o m u m elenco
eclético, incluindo F e r n a n d o Gabeira, Abdias N a s c i m e n t o , N e y Matogrosso,
Lecy Brandão e Clodovil, e n t r e o u t r o s .
O j o r n a l s e m p r e d e u g r a n d e ênfase às q u e s t õ e s de discriminação, violência
e a r b i t r a r i e d a d e policial q u e atingiam h o m o s s e x u a i s , p o r m e i o d e chamadas de
i m p a c t o ( p o r e x e m p l o : " C r i m e s sexuais", n a 6 , n o v e m b r o de 1 9 7 8 ; "Geni é a
mãe" 6 , n 2 2 2 , m a r ç o d e 1980; " Q u e r e m m a t a r os travestis", n° 24, maio de 1980;
"A volta d o e s q u a d r ã o m a t a - b i c h a " , n- j u n h o d e 1 9 8 0 ) . P o r ocasião da p r i m e i r a
visita d o papa J o ã o P a u l o II ao Brasil, a e d i ç ã o de n a 26 d o j o r n a l (julho de
1980) t r o u x e m a t é r i a s s o b r e os "vinte s é c u l o s d e r e p r e s s ã o " da Igreja Católica,
n u m a capa agressiva e m q u e u m a c a r i c a t u r a d e C r i s t o na c r u z , encimada p o r
u m a placa e m q u e se lia " h o m o s s e x u a l " e m l u g a r d o "I.N.R.I", era r o d e a d a p o r
figuras de a s p e c t o f u n e s t o c o m p a r a m e n t o s d e b i s p o . O j o r n a l c o m b a t e u t a m -
b é m a p r o p o s t a , e m voga
e m 1 9 8 0 , d e oficialização
da prisão c a u t e l a r ( i n s t r u -
m e n t o ditatorial), ao m e s -
LAMPIAO
m o t e m p o que denunciava
os limites da c a m p a n h a e m A NOVA _
favor da anistia política, p o r tíoiÉNGa-rrKp
desconsiderar a situação
dos p r e s o s c o m u n s .
OivtSVIO
Lampião sentiu na p e l e FEMINISTAS
a ameaça representada pelos Ot/ERE:M; MATAR G3
p o d e r e s jurídicos e policiais Tcanegrátis, •
q u e criticava. O j o m a l pas-
sou a sofrer i n q u é r i t o poli-
cial e m n o v e m b r o de 1978
p o r supostas ofensas à m o r a l
e aos bons c o s t u m e s , acusa-
ção q u e já se abatera s o b r e
Celso Curi e os jornalistas
responsáveis pela matéria

•87 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

" O poder homossexual", publicada e m IstoÉ. N o caso de Lampião, o p r e t e x t o


era a matéria publicada no n ú m e r o zero, justamente em defesa de Celso Curi.
Em um segundo m o m e n t o , o inquérito passou a p r o m o v e r uma devassa na con-
tabilidade do jornal, na tentativa de demonstrar sua incapacidade de sobreviver
como empresa e forçar o encerramento de suas atividades. Aparentemente, essas
pressões se relacionavam à estratégia contida n u m documento do C e n t r o de
Informações do Exército, que havia sido vazada para a grande imprensa, e m que
se recomendavam medidas de pressão econômica para atingir a imprensa nanica.
Esse documento fazia menção à existência de u m a "imprensa gay que se dispõe a
defender as atitudes homossexuais c o m o atos normais da vida humana".
Durante o inquérito, os editores do Lampião foram submetidos a constran-
gimentos e vexames por parte de autoridades policiais. C o m o contou Peter Fry
ao historiador Cláudio R o b e r t o da Silva:

Estava sozinho quando fui chamado à Polícia Federal, os outros já haviam deposto...
Depois daquele depoimento, eles me mandaram tocar piano numa outra depen-
dência. Foi muito desagradável! Não vou esquecer dos policiais me chamando de
gringo, acusando-me de corromper o Brasil, de estar poluindo a pureza brasileira.

O inquérito foi arquivado em dezembro de 1979, mas as ameaças conti-


nuaram com a proposta da prisão cautelar e, e m 1980, com as bombas jogadas
contra bancas em atentados promovidos por grupos paramilitares, acompanhados
de panfletos contra "jornais alternativos e revistas e jornais pornográficos".

Deboche e dissenso

No Lampião, o enfoque informativo, opinativo e politizado da homossexuali-


dade e de todas as outras questões então tidas como minoritárias se fazia predomi-
nantemente por meio da incorporação da linguagem popular do meio homossexual,
com farto uso de palavras como "bicha", "boneca", "veado" e equivalentes. Marcante
nesse aspecto era a apimentada "coluna social" denominada "Bixórdia", que o jornal
passou a publicar regularmente a partir do seu n 2 5 (outubro de 1978), na qual a
personagem Rafaela Mambaba exercitava o linguajar ferino e malicioso atribuído

• 8 8 -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

às travestis e às "bichas loucas". Isso distanciava o jornal da sobriedade de Opinião


ou Movimento e o aproximava mais do estilo irreverente e anárquico de 0 Pasquim,
embora Lampião procurasse também enfrentar o "machismo" característico deste.
Matérias sobre feminismo e homossexualidade f o r a m publicadas regular-
m e n t e no Lampião. Embora o jornal não tivesse encontrado mulheres dispostas a
atuar em seu conselho editorial, várias estiveram presentes c o m o entrevistadas,
entrevistadoras, autoras e focos de ensaios e reportagens. Houve uma impactante
entrevista com a cantora Lecy Brandão, em que ela falava abertamente de sua
homossexualidade (n 2 6, n o v e m b r o de 1978). O jornal deu cobertura a vários
eventos feministas. O primeiro Encontro Nacional de Mulheres, realizado e m
março de 1979, no Rio de Janeiro, recebeu grande destaque no n 2 11 (abril de
1979), ocupando cinco páginas. Cabe destacar t a m b é m duas matérias produ-
zidas e m colaboração com mulheres participantes do grupo Somos, uma com
vivências lésbicas, publicada no n 2 12 (maio de 1979), e outra com u m roteiro
comentado os espaços de sociabilidade lésbica então existentes e m São Paulo,
n o n ° 13 (junho de 1979).
Havia desacordos e divergências entre editores e colaboradores do Lampião a
respeito de quase tudo. Uma querela e m t o r n o dos termos que seriam apropria-
dos para sç referir à homossexualidade marcou os primeiros n ú m e r o s do jornal.
Havia q u e m fosse contrário ao uso de "gay" p o r considerá-lo imperialista e alheio
à realidade brasileira. Na entrevista com W i n s t o n Leyland feita por João Silvério
Trevisan e James Green, publicada no n a 2 ( j u n h o / j u l h o de 1978), o t e r m o "gay",
abundantemente empregado pelo entrevistado, foi traduzido c o m o "entendido".
O u t r o mal-estar era causado pelo uso das palavras consideradas pejorativas.
U m a curta matéria de Aguinaldo Silva, n o n 2 3 (agosto de 1978), defendia esse
p r o c e d i m e n t o como estratégia para esvaziar seu potencial ofensivo:

O uso de tais palavras em Lampião, na verdade, tem um propósito. O que nós


pretendemos é resgatá-las do vocabulário machista para, em seguida, desmisti-
ficá-las. Vejam bem, até agora elas foram usadas como ofensa, serviam como o
meio mais simples para mostrar a "separação" que existe entre o nosso mundo e
o dos outros. Isso faz com que, temendo o peso de tais palavras, criemos outras
igualmente mistificadoras, embora, para quem as adota, sem qualquer tom
pejorativo: entendido, por exemplo; e até mesmo que empreguemos sutilmente

• 89 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

termos de um outro idioma, como é o caso de gay (Lampião bagunçou logo o


coreto, traduzindo-a para guei, que significa absolutamente nada).
A primeira coisa a fazer, portanto, é perder o medo das palavras. O caminho
para isso é usá-las.

O u t r o s debates e desentendimentos correlatos se davam e m t o r n o do


"machismo", descortinando as tensões entre o universo das "bichas loucas" e os
propósitos da militância respeitável encarnada, ainda que com variações, p o r
parte considerável dos editores, colaboradores e leitores do Lampião. N o n" 2,
foi publicada uma crítica sobre o disco do popular grupo norte-americano Village
People, em cuja notória capa os componentes encarnavam tipos combinando este-
reótipos de masculinidade, "raça" e "etnia", bastante característicos do repertório
de fantasias homoeróticas masculinas que projetam na figura do trabalhador braçal
negro, indígena ou mestiço, o "macho" ao m e s m o t e m p o desejado e t e m i d o .
Embora reconhecendo que tais figuras, no caso, se prestavam apenas à diversão
d e s c o m p r o m e t i d a , o críti-
co Antonio Chrysóstomo
Bixórdia deplorava não só a p o b r e -

No vocabulário guei za musical do disco, mas


Gtossfcrio de termo» I
lésbicas InicreuxUi tm partldpar do*
brancos masculinos — sfto criaturas simples-
mente desprezíveis.)
sobretudo o machismo
próximo* coagnmo* 4* botnosacxaals mi- MANOBR1SMO — Palavra extremamen-
litante», oooforua pnquba idf£ pejo l»ra-
pfòrdco Ptm Fry durante o IP EBHO, em
te difícil de se definir. Parece se referir a uma
tentativa de manobrar as reuniões por interes-
subliminar e a "virilidade
S lo Paulo. se partidária Como "autoritarismo" e
MACHISMO — Qualquer tentativa de K
impar «obre c vontade de uma outra pessoa,
"machismo",, é uma palavra extremamente
útil para calar a boca de alguém cuja palavra
usada p a r a o l u c r o safa-
seja de que seso lar. Palavra extremamente nos pareça incômoda.
'útil como acusaçio dirigida à penca cuja
palavra você quer caisar. ESPAÇO CONQUISTADO - Bares,
saunat, boates, esquinas etc., que foram
do". N o n 2 4 (setembro de
AUTORITARISMO —Idemroacbisma
LIDERANÇA — Idem auteritarismo. Al- tomados pelas bichas cora grande sacrifício.
go a ser evitado a qualquer custo, para garan- Dois exemplos concreto»: o Buraco da Maysa.
no Rio, e o banheiro da Praça da República,
1978), e m c o n t r a s t e , foi
tir a continuidade da balbúrdía reinante
numa reunilo. em SioPaulo.
CONSENSO — Estado de sonottaáa e BICHA — Termo para designar o homos-
sexual masculino militante (nfto pode ser con-
p u b l i c a d o u m t e x t o em
aborrecimento que leva as pessoas à inca-
pacidade de «dar a favor ou coatra qualquer fundido com a mesma palavra fora do meio
proposta concreta. militante; neste último caso, trata-se de uma
ofensa grave). Ê também usado por alguns
q u e P e t e r Fry saía e m de-
, PROPOSTA CONCRETA - Este con-
ceito se define em oposição a "proposta abs- para se referir a homossexuais de ambos os
trata".
PROPOSTA ABSTRATA — Este con-
sexos; neste casa para as lésbicas, trata-se de
uma manifestação de machismo de quem o fesa da i m p r e n s a caseira
utiliza.
ceito se define em contraposição a "proposta

REPRESSÃO — Regras que sfto inven-


HETEROSSEXUAL — Quem olo é bicha
ou lésbica. Pessoas extremamente perigosas,
homossexual, contra o ata-
tadas pela classe dominante, e cuja intenção é cujo maior prazer parece ser o de criar novas
nas proibir daquilo que oót queremos.
DUPLA REPRESSÃO — Quando uma
formas requintadas e sutis de repreaslo.
BISSEXUAL — Algo que nio existe;
q u e violento de u m leitor
pessoa é sujeita a duas repressões. Especi- quem se diz bissexual é apenas uma bicha nlo
ficam oote bichas negras e mulheres homos- assumida, com tendtndas ao machismo, ao
autoritarisma Hk quem diga, também, que o do jornal que a tachara de
TRIPLA REPRESSÃO — Quando a pes- bissexualisino é apenas uma manifestação es-
soa é sujeita a trts repressftes. Exempla
mulher negra homossexual.
quizofrênica.
FACISMO — A palavra ideal para subs- "produção de u m a cama-
QUÀDRUPA REPRESSÃO — Estado de tituir "autoritarismo" e "machismo" quando
graça no qual a pessoa eati sujeita a quatro
repressbe». Exemplificando: bicha negra
se quer dar a estes insultos um peso histórico.
£ como se um heterossexual, em vez de rilha machista que só con-
homossexual gorda. (N.B. — Aí pessoas que chamar ura homossexual de "bicha", pre-
ferisse diser "sodomita".
sanam o maior número de repressões gcaam
de altíssimo m m e a o a inveja doa quetbn GRUPO ORGANIZADO - Eufemiamo segue se i m p o r através do
menos: squdes que nâo sofrem qualquer Hpo para se referir a certas hordas desorganizadas
que vbn se alastrando pelo pais.
de repressào — é o caso dos heterossexuais
ridículo, da vulgaridade".

• 90 •
NA TRILHA DO ARCO-IRIS

Nesse m e s m o n 2 4, u m texto de João Antonio Mascarenhas apontava o


"machismo" das bichas pintosas e travestis e m t e r m o s que ecoavam as críticas
feministas aos estereótipos de gênero:

Quando o homossexual fala com voz de falsete, faz ademanes alambicados, dá


gritinhos e requebra os quadris, ele, sem se dar conta, está, de um lado, imitando
a mulher objeto sexual, a mulher cidadã de segunda classe, a mulher idealizada
pelos machistas e, por outro lado, por deixar de aceitar sua orientação sexual
com naturalidade (pois a efeminação é evidentemente artificial), acha-se a forne-
cer argumentos aos machistas que se negam a admiti-lo como homem comum,
que usa sua sexualidade de forma pouco convencional... O travesti, então,
leva essa atitude ao paroxismo, chegando a submeter-se a operações cirúrgicas
para ocultar a identidade. Sua ambição máxima consiste em transfigurar-se na
mulher vamp, no sofisticado objeto sexual tão comercializado por Hollywood
nas décadas de 1930 a 1950.

Esse t e x t o de Mascarenhas era u m contraponto à primeira de uma série


de matérias e imagens publicadas n o Lampião que retratavam "os" travestis (na
época, o t e r m o era usado sempre no masculino) de um p o n t o de vista altamente
positivo e até m e s m o apologético. Essa primeira matéria, sobre a travesti Geór-
gia Bengston, era acompanhada de u m ensaio fotográfico intitulado "Travestis!
Q u e m atira a primeira pedra?". Vários outros ensaios fotográficos com o tema
voltaram a aparecer no jornal. N o que foi publicado no n a 11 (abril de 1979) sob
o título "Sugestões para o pesadelo da madrugada", o t e x t o realçava a capacidade
das travestis de desencadear

[... ] o medo irracional que acomete muitas pessoas hetero nas quais o homosse-
xualismo provoca um pavor, a sensação de já ter visto aquilo em algum lugar,
provavelmente no mais íntimo de todos os seus pensamentos.

O u t r a visão do fascínio por travestis e pela alteridade neles projetada pode


ser encontrada no preâmbulo de João Silvério Trevisan a u m a longa entrevista,
publicada no n 2 19 (dezembro de 1979), realizada na casa de Darcy Penteado,
com duas travestis recrutadas na "batalha" n o centro de São Paulo, junto com a
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

advogada paulista Alice Soares, que então orientava u m serviço de atendimento


jurídico à clientela carente, c o m atenção especial a prostitutas e travestis:

Darcy abre a porta de sua casa para os dois travestis entrarem. Eles olham sem
conseguir disfarçar o deslumbramento diante dos quadros e luzes. Eu, Alice
Soares, Glauco Mattoso e Jorge Schwartz olhamos para eles não menos deslum-
brados. Nossos mundos parecem estar a quilômetros de distância.

Lampião publicou pelo menos duas matérias relevantes sobre transexualidade.


N u m a delas, no n 2 5 (outubro de 1978), u m a matéria reverberava o protesto
diante da condenação do cirurgião plástico Roberto Farina pela justiça de São
Paulo, em julho de 1978, p o r ter realizado sete anos antes uma operação de "re-
versão sexual" configurada c o m o crime de lesões corporais dolosas de natureza
gravíssima, eqüivalendo à mutilação do paciente. A ação contra o cirurgião não
fora impetrada pelo paciente, Valdir Nogueira — que, ao contrário, saíra em defesa
do médico, argumentando q u e ele lhe dera "uma nova vida" —, mas, sim, por
u m p r o m o t o r público. A matéria trazia uma reportagem sobre u m programa de
televisão dedicado ao assunto, apresentado pelo então popular animador Flávio
Cavalcanti, no qual Darcy Penteado, convidado para o debate, tinha declarado,
sob forte emoção, que a condenação era ridícula porque se tratava de u m caso
de direitos humanos. Aguinaldo Silva abria a matéria com um artigo em que
salientava tratar-se de u m caso de "julgamento moral", motivado pela ameaça
que as cirurgias de reversão sexual podiam representar para as instituições do
casamento e a família, e concluía c o m reflexões provocativas sobre o papel da
medicina e m relação à transexualidade (referida, na época, como "transexualis-
mo"). Vale citar u m trecho:

O que se julgou — e a condenação, me permitam dizer, já existia antes mesmo


da sentença do juiz — portanto, foi a ousadia de Valdir, que tentou mudar seu
próprio destino, transformando-se em Valdirene. Tanto que não se utilizou do
processo para levantar a única discussão realmente válida sobre o tema, que é a
seguinte: o transexualismo... é um fato científico ou apenas uma figura criada
pela medicina para justificar esse tipo de operação? Afinal, só se começou a falar
em transexuais depois que os médicos descobriram que podiam operá-los. Não
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

teria essa operação o objetivo de conseguir lucros à custa de homossexuais que,


tendo aprendido desde cedo que em matéria de sexo só existem duas opções, e
rejeitando aquela que a natureza supostamente lhes destinou, procurariam na
outra uma saída para sua insatisfação?.

Esse questionamento se repetiria na reportagem maior publicada no n 2 35


(abril de 1981), cuja chamada de capa era "A bicha que virou mulher", e incluía
d e p o i m e n t o s curtos de várias travestis com opiniões sobre a cirurgia e uma
entrevista maior c o m Claudie, transexual bem-sucedida que fizera operação n o
Marrocos, m o r a r a na Europa e, na época, circulava pelo Rio de Janeiro com u m
n a m o r a d o argelino, a q u e m sustentava.
Referências sobre a bissexualidade eram esparsas no jornal. A discussão
maior a esse respeito foi provocada pelas declarações de Darcy Penteado, n u m
debate sobre o tema publicado na revista Status, publicação erótica de certo su-
cesso na época. Darcy afirmara que o "bissexualismo" (como se dizia então) era
apenas "uma fachada para homossexuais enrustidos e mal-resolvidos". O cineasta
Antonio Calmon reagiu n u m a carta publicada n o n 2 35 (abril de 1981), ao lado
de uma tréplica de Darcy. Seguem trechos do bate-boca, que ilustram tensões
presentes até hoje:

Calmon: Nem todo bissexual, como afirma o senhor Penteado, usa a relação he-
terossexual como defesa diante da sociedade. Existem pessoas que simplesmente
gostam das duas coisas. Sempre afirmei publicamente meu homossexualismo
com orgulho, e sou bastante discreto com relação a meu lado heterossexual.
Faço isso por uma visão política antissistema, visão sofisticada demais para o
senhor Penteado e outras pessoas conservadoras... Alguém andou escrevendo
no Lampião que bissexualismo é coisa de esquizofrênico. O que é que ele (ela)
propõe: tratamento psiquiátrico, choques elétricos, campo de concentração?
E uma posição idêntica a de certas esquerdas que combatem a ditadura para
instalar um governo tão repressivo ou mais.
Darcy: Meu ataque (que você não quis entender) é ao bissexualismo que vem
sendo usado como escudo por conhecidos homossexuais de nome ou imagens
públicas, imaginando que este pega melhor que o homossexualismo declarado,
perante o seu público consumidor. Ora, isso não deixa de ser enrustimento!

•88-•9 3 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Essa é a tal bandeira careta que citei, apesar de que, para mim, o bi é e será antes
de tudo um homossexual, até que as denominações desapareçam, substituídas
por um conceito genérico de sexualidade múltipla.

Uma questão deixada e m aberto era a da origem da própria homossexuali-


dade (referida, na época, c o m o "homossexualismo"). Ilustrativo a esse respeito
é u m artigo de Darcy Penteado, "Homossexualismo, que coisa é esta", publicado
no n fl 2 ( j u n h o / j u l h o de 1978). Nele, o autor defendia a idéia de que "mais do
que um fato, o homossexualismo é u m a condição humana". Ao mesmo t e m p o ,
p o r é m , constatava a dificuldade de lhe determinar uma base biológica ou natural,
admitindo ser impossível "ajustar o homossexualismo a u m a exata classificação
genética, endócrina ou psíquica". A questão das origens d o desejo homossexual
parecia ser relegada a algo que só dizia respeito aos próprios interessados.
Lampião tendia a conceber os homossexuais como u m a minoria oprimida e,
portanto, c o m o interesse c o m u m de reivindicar o direito "a uma existência não
mistificada, limpa, confiante, de cabeça levantada", para usar os termos de Darcy
Penteado, n o artigo acima referido. U m a posição em favor de uma estratégia
efetiva de obtenção de direitos homossexuais, no entanto, não era consensual
entre os editores e colaboradores do jornal. A perspectiva de construção de u m
m o v i m e n t o por direitos civis mais aos moldes dominantes no contexto norte-
americano era uma posição defendida, de forma u m tanto isolada, por João
Antonio Mascarenhas, que preferia t a m b é m que o jornal adotasse uma linha
editorial voltada para a informação e prestação de serviços aos homossexuais, e
focalizasse sobretudo os que viviam mais distantes dos grandes centros urbanos.
Por conta dessa e de outras desavenças, Mascarenhas deixou de fazer parte do
conselho editorial do Lampião já no final de 1978.
A incerta situação política da "abertura", atravessada por ações localizadas
de repressão policial e t e r r o r paramilitar, continha as expectativas em relação
aos avanços liberalizantes, o que talvez ajude a c o m p r e e n d e r por que iniciativas
em favor de direitos civis pareciam distantes nos horizontes da época. É certo
que Lampião e os emergentes grupos se esforçaram por construir uma pauta de
reivindicações que visavam combater discriminações sofridas pelos homossexuais
na vida civil em geral. Essa pauta seria desenhada por ocasião dos encontros de
grupos organizados que ocorreram em 1980, c o m o veremos adiante. Mas havia

• 9 4 '
NA TRILHA DO ARCO-TRIS

também uma divergência mais profunda, que se traduzia numa grande desconfian-
ça não só quanto aos r u m o s da institucionalização, mas e m relação ao significado
da própria atuação política e m moldes institucionais.
João Silvério Trevisan, p o r exemplo, nos vários ensaios, críticas e repor-
tagens que publicou n o Lampião, defendia a postura de que era preciso resistir a
todas as formas institucionalizadas de organização e reivindicação, porque elas
conduziam inexoravelmente à absorção das individualidades e à redução de seu
potencial subversivo aos desígnios de u m a sociedade consumista e autoritária. Na
visão de Trevisan, os homossexuais compunham uma espécie de parte maldita
da sociedade, enraizada no caráter irremovível e transgressor de seu desejo,
cuja força residia justamente e m sua capacidade de revigorar constantemente a
própria maldição e assim manter um combate p e r m a n e n t e e insolúvel contra a
"normalidade instituída" e contra as "promessas de paraíso".
U m a ilustração de suas idéias, sempre expressas numa retórica apaixonante,
aparece no t r e c h o abaixo, retirado de seu artigo "Por uma política m e n o r : bichas
e lésbicas inauguram a utopia", publicado no n 2 25 (junho de 1980):

Direitas e esquerdas do sistema estão querendo tornar-nos consumidores do


homossexualismo e, com isso, recuperar-nos. Trata-se de uma forma de nos
iludir com o poder e neutralizar o potencial subversor. A única maneira de
garantir nossa subversão e impossibilitar nossa recuperação é ser cada vez mais
viado (sic) e sapatona, portanto mais malditos e menos cobiçáveis por todas as
formas de poder (ordem), do tipo partidos, publicidade, família, mídia. Quanto
mais aprofundarmos nossas diferenças com a normalidade instituída (a sociedade
heterossexual compulsória), tanto mais difícil será nos digerir. E tanto maior
será nossa capacidade de virar a mesa.

O s debates da época estimulavam o questionamento das posições políticas


focadas na centralidade da luta de classes, reivindicando legitimidade a lutas
mais específicas. Por conta disso, a e m e r g e n t e política de identidade posta e m
prática pelos m o v i m e n t o s de feministas, negros e homossexuais gerava u m a
tensão j u n t o a certos militantes da esquerda (vários dos quais estavam aliados
às tendências progressistas da Igreja Católica). Para estes, tais esforços mino-
ritários pulverizavam o privilégio que deveria caber à "luta maior" em prol de

•95 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

mudanças sociais e econômicas mais amplas, e m direção ao socialismo. Lampião


tendia a estar mais p r ó x i m o dos m o v i m e n t o s d e minorias, m a s , e n t r e seus edi-
t o r e s e c o l a b o r a d o r e s , havia vários q u e t e n t a v a m r e c o n s t i t u i r vínculos e n t r e as
duas posições. D u r a n t e a existência d o j o r n a l , as divergências se a c e n t u a r a m
a p o n t o d e constituir u m a polarização e x t r e m a d a , c o m o a expressa n o citado
artigo de Trevisan. Isso foi a f e t a n d o de f o r m a irremediável as relações e n t r e o
jornal e os grupos que f o r m a v a m o incipiente m o v i m e n t o político homossexual,
c o m o v e r e m o s adiante.

O Somos se assume

Em abril de 1978, no m o m e n t o e m que vinha à luz o n ú m e r o zero do Lampião,


o jornal Versus, já então ligado à organização trotskista Convergência Socialista (atual
PSTu), promoveu u m a semana de debates políticos que incluiu u m dia de discussão
sobre a imprensa alternativa. U m a tentativa d e impedir a participação do repre-
sentante do Lampião nesse debate, rebatida pela leitura de u m a moção de protesto,
desencadeou uma acalorada discussão sobre homossexualidade e política. O núcleo
original do que viria a ser o Somos-sp f o r m o u - s e dos participantes desse debate
que se identificavam como homossexuais interessados e m discutir sua sexualidade
"a partir de suas próprias vivências". O g r u p o , naquele m o m e n t o , era composto
p o r cerca de quinze homens, que passaram a realizar reuniões semanais dedicadas
a relatos confessionais, seguindo u m a prática já consagrada nos grupos feministas, e
t a m b é m a discussões sobre a possibilidade de formação de u m m o v i m e n t o político
mais amplo em aliança com feministas e outras minorias.
A primeira aparição pública do g r u p o o c o r r e u c o m u m a carta endereçada ao
Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, p r o t e s t a n d o contra o t r a t a m e n t o precon-
ceituoso dado à homossexualidade pela grande imprensa, notadamente nos jornais
destinados ao consumo popular. Na carta, o g r u p o adotava o n o m e de Núcleo
d e Ação pelos Direitos dos Homossexuais. E m fevereiro de 1979, p o r ocasião
da participação n u m a semana de debates sobre m o v i m e n t o s de emancipação de
grupos discriminados, promovida pelos estudantes d o C e n t r o Acadêmico do
curso de Ciências Sociais da Universidade d e São Paulo (USP), o g r u p o foi reba-
tizado c o m o Somos. O n o m e evocava o jornal publicado pela extinta Frente de

• 102 •
N A TRILHA DO ARCO-ÍRIS

Libertação H o m o s s e x u a l da Argentina e fora u m a p r o p o s t a d o escritor e poeta


Glauco Mattoso. C o m o relatou E d w a r d M a c R a e :

Esse nome foi julgado atrativo por ser curto, afirmativo, forte e palindrômico.
Essa última qualidade do nome, que pode ser lido da esquerda para a direita e da
direita para a esquerda, foi provavelmente o que captou a imaginação de Glauco,
um entusiasta da poesia concreta, e dava uma interessante brincadeira com o
fato de ser o nome de um grupo de "invertidos"... O nome refletia também o
desejo de "assumir a homossexualidade", o que depois ficou reforçado com o
complemento "Grupo de Afirmação Homossexual". 7

O debate na USP, q u e teve c o b e r t u r a na g r a n d e i m p r e n s a , m a r c o u efetiva-


m e n t e o a p a r e c i m e n t o e a abertura d o Somos p a r a o m u n d o . O debate t a m b é m
propiciou a f o r m a ç ã o d e o u t r o s dois g r u p o s , o Eros, de estudantes de filosofia
da m e s m a universidade, e o Libertos, baseado na cidade de Guarulhos. Havia
t a m b é m u m informal G r u p o do Chá, f o r m a d o p o r rapazes q u e haviam se co-
nhecido p o r m e i o da f r e q ü ê n c i a a espaços d e sociabilidade e "pegação" e que se
reuniam p e r i o d i c a m e n t e para b a t e r p a p o . As relações do Somos com esses outros
grupos s e m p r e foi tensa: e n q u a n t o o Eros era c o n s i d e r a d o demasiado acadêmico
e elitista, o G r u p o d o Chá era tido c o m o superficial e frívolo. As tensões com o
G r u p o do Chá eram e x e m p l a r e s da relação ambígua de d e s p r e z o e fascínio q u e
o núcleo mais militante d o Somos m a n t i n h a c o m os f r e q ü e n t a d o r e s d o chamado
g u e t o homossexual.

Encontro do Grupo Somos, em 1979, na usr.

• 9 7 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Ao longo d o ano d e 1979, o Somos vive uma fase de veloz e progressivo


crescimento, incorporando dezenas de novos integrantes, inclusive mulheres.
As reuniões gerais mensais passam a ser realizadas em espaços maiores, em sa-
lões de festa de prédios e m que residiam alguns participantes ou em teatros, e
chegaram a reunir centenas de pessoas. O grupo passou a se dividir e m vários
subgrupos menores, chamados primeiramente "de identificação" e depois "de
reconhecimento", que se reuniam semanalmente segundo o estilo confessional,
com relatos autobiográficos em que eram reveladas as idéias sobre a sexualidade
em geral e a homossexualidade e m particular. Nessas reuniões, como observou
MacRae, "aprendia-se a ser 'homossexual', ou melhor, 'militante homossexual'".
Constituiu-se t a m b é m u m subgrupo de "atuação", composto p o r representantes
dos vários grupos de identificação, que tinha o papel de coordenar as atividades
políticas mais amplas do grupo.
Os processos de tomada de decisão no Somos tinham por norma o consenso,
de acordo com os princípios de preservação do grupo. Uma motivação forte em
boa parte de seus integrantes era evitar a cristalização de lideranças e incentivar
um estilo de ação autogestionário. As coordenações das reuniões gerais, assim
como dos subgrupos de identificação e de atuação, deveriam ser rotativas. Na prá-
tica, isso implicava reuniões longas, com u m a profusão de debates e dificuldades
operacionais de toda sorte que, paradoxalmente, contribuíam para concentrar
as posições de direção em u m p e q u e n o conjunto de pessoas com interesse e dis-
ponibilidade, que se distinguiam pelo carisma pessoal e pela habilidade retórica.
Com a expansão e a diversificação do grupo e o decorrente acirramento de di-
vergências, a exigência de consenso passou a ser t a m b é m u m trunfo manipulado
por quem se opunha a determinadas propostas ou buscava evitar mudanças de
orientação para o grupo. Nessas ocasiões, acusações de "machista", "fascista" e
"autoritário", t e r m o s usados de forma intercambiável e indiscriminada, costuma-
vam ser recursos poderosos para conter e calar u m oponente, sob o lema de que
o autoritarismo devia ser combatido e m todas as suas manifestações. T a m b é m se
dizia, com h u m o r , que as decisões no Somos não eram realmente tomadas por
"consenso" e, sim, por "cansaço" 8 .
Um dos raros consensos entre os participantes do Somos era o princípio
de que o grupo deveria ser exclusivamente f o r m a d o por homossexuais. Esta-
belecida uma relação de oposição entre h e t e r o e homossexuais, que envolveria

• 98 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

uma situação de opressão dos segundos pelos primeiros, considerava-se que os


homossexuais, c o m o oprimidos, s o m e n t e p o d e r i a m encontrar a si mesmos,
aceitar-se e recuperar sua autonomia estando entre iguais. O suposto, certamente
muito discutível, era o de q u e u m ambiente f o r m a d o por homossexuais seria mais
igualitário, assim c o m o as relações homossexuais, por se darem entre "iguais",
seriam menos assimétricas que as heterossexuais.
Essa exclusividade h o m o s s e x u a l costumava t e r u m efeito positivo nos
subgrupos de identificação e de r e c o n h e c i m e n t o , contribuindo para que os
recém-chegados se sentissem m e n o s constrangidos e lidassem melhor com seus
próprios sentimentos de culpa e autodepreciação. Essa experiência adquiriu
grande importância para muitos participantes, que encontraram no grupo uma
fonte crucial de relações d e afeto, amizade e apoio emocional, que não raro
perduraram fora dele. Era bastante disseminado o sentimento de ter encontrado
a própria turma, de se considerar "casado c o m o grupo". Correlato a isso, eram
questionadas a monogamia e a possessividade nos relacionamentos mais estáveis,
chamados de "casos".
Na apresentação pessoal, indumentária, postura corporal, gestos e t o m de
voz, a maioria das moças e rapazes que integravam o Somos não se distinguia do
padrão vigente e n t r e as moças e rapazes de sua geração. Trejeitos acentuados ou
roupas espalhafatosas não e r a m a tônica. Ao contrário, predominavam roupas
sóbrias, estilo camiseta e jeans, e a conduta geral não era nada muito diferente do
que se via numa assembleia estudantil. As assimetrias entre homens e mulheres
deveriam ser combatidas, b e m c o m o a polarização ativo/passivo e os estereó-
tipos efeminado/masculinizada, ainda que admitindo-se que isso poderia ser
importante no plano das fantasia eróticas. Em contrapartida, as palavras "bicha"
e "lésbica" deviam ser usadas, c o m o u m a espécie de senha de pertencimento, a
fim de "esvaziar" seu conteúdo pejorativo.
O grupo não tinha opinião fechada quanto às origens da homossexualidade.
Discussões desse tipo costumavam ser desqualificadas c o m o perda de tempo, já
que predominava a visão de que t u d o o que fora produzido pela ciência e pela
academia a esse respeito seria apenas uma expressão mais asséptica do mesmo
preconceito que contaminava toda a sociedade. U m a atitude geral era conside-
rar que a homossexualidade de cada u m era u m a questão de foro íntimo e que
ninguém — família, escola, Igreja ou Estado — tinha o direito de se intrometer

.99 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

nisso. É bastante provável que muitos se sentissem homossexuais desde sempre


visto que a idéia de "opção" despertava considerável rejeição.
O princípio de que era preciso reconhecer, aceitar e assumir a própria ho-
mossexualidade, dominante nos subgrupos de identificação, reforçava a visão de
algo que de alguma maneira era parte essencial da pessoa, uma marca inescapáve

O "CASAMENTO COM O GRUPO"


D u r a n t e o ano de 1979 e no início do seguinte, o aspecto do Somos q u e
atraía o interesse da maior parte de seus integrantes e r a m as reuniões dos sub-
g r u p o s de identificação. Sem seguir n e n h u m p a r â m e t r o rígido, essas reuniões
consistiam basicamente de relatos autobiográficos e m que todos os participantes
t i n h a m a oportunidade de revelar suas concepções a respeito da sexualidade e da
homossexualidade em particular. Para embasar suas idéias, costumavam relatar
episódios de suas vidas, dando ênfase especial à maneira c o m o tinham sido afe-
tados pela homossexualidade.
Esses relatos f r e q ü e n t e m e n t e possuíam uma f o r t e carga emotiva que levavam
à rápida criação de vínculos afetivos entre os m e m b r o s de cada subgrupo. Ao lado
da motivação política, uma das razões mais comuns que motivavam indivíduos a
fazer parte do Somos era a necessidade de estabelecer contato com outros e m
igual situação de marginalização sexual e social. Freqüentemente, encontravam
aí, pela primeira vez, a possibilidade de discutirem de maneira não culposa a sua
homossexualidade, que poderia tornar-se até motivo de orgulho. Em sua grande
maioria, os participantes dessas reuniões sentiam que e m pouco t e m p o suas vidas
mudavam, sendo c o m u m o c o r r e r e m alterações radicais em seus círculos de amigos
e até em suas vivências profissionais ou educacionais. Velhos amigos e r a m relega-
dos, surgindo uma preferência marcada pela companhia de outros participantes do
g r u p o . Igualmente abandonados eram os antigos interesses, em favor da freqüência
assídua às reuniões quase diárias dos vários subgrupos do Somos. Tão grande era
a dedicação às atividades do grupo que durante o seu auge (1979 e 1980) vários
indivíduos deixaram cursos e empregos para p o d e r e m lhes devotar u m a atenção
integral. Era o "casamento com o grupo".
MACRAE, E d w a r d . A construção da igualdade.

Campinas: U n i c a m p , 1990, p. 128-129.

• I oo •
N A TRILHA DO ARCO-ÍRIS

e certamente "incurável", sobre a qual não se tinha outro tipo de controle que
não fosse o seu reconhecimento. Acrescentava-se a isso o objetivo de combater
a desigualdade e a dominação nas próprias relações afetivas e homossexuais, que
costumavam ser associadas à predominância de estereótipos e caricaturas da
"bicha" e do "bofe", ou da "fancha" e da "lady". Esse combate deveria conduzir a
u m a mudança total do sistema social, para uma forma vagamente igualitária.
Esse conjunto de idéias e atitudes abrigava tensões e inconsistências, que às
vezes poderiam ser expressas pela mesma pessoa. Para ilustrar a diversidade de
pontos de vista presentes no Somos, consideremos algumas falas e m um debate
realizado c o m integrantes do g r u p o sobre homossexualidade e repressão. O
debate aconteceu em março de 1979, c o m a moderação do professor e crítico
literário Flávio Aguiar, e foi publicado n o m e s m o ano na coletânea Sexo êcpo-
der9, referência importante n u m a época em que crescia o interesse do m e r c a d o
editorial brasileiro p o r temas relacionados a g ê n e r o , sexualidade e política.
Questionado sobre a identidade e conceituação de homossexual, u m influente
m e m b r o do grupo disse:

Emanoel— [...] A homossexualidade está presente em qualquer indivíduo, como


parte da sexualidade dele. A nossa questão é como um indivíduo chega a se
descobrir como homossexual e é pressionado para assumir um estereótipo. [...]
Não existe "o homossexual", qualquer pessoa é homossexual na medida em que
qualquer pessoa tem tendência. A sexualidade do indivíduo é um leque aberto.
Não existe, portanto, o homossexual com determinadas características: existe o
homossexual como adjetivo, na relação que acontece na cama.

Perguntado sobre bissexualidade, o u t r o m e m b r o respondeu:

Jorge — Os bissexuais são aqueles que vivem num esquema mais ou menos esqui-
zofrênico: por um lado tratam de preservar a imagem da família bem estabele-
cida. Por outro, têm lateralmente as suas atividades homossexuais. Há também
aqueles homossexuais com mentalidade machista; ao desempenhar um papel
"ativo", acreditam não ser contaminados pela homossexualidade. Para eles, os
homossexuais são os outros. São preconceitos machistas dentro de uma sociedade
que forjou esses mitos dentro do próprio pensamento homossexual.

• ioi •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Em relação à questão, lançada pelo moderador, sobre se a homossexualidade


seria "uma conquista em relação à heterossexualidade" ou u m "estádio de desen-
volvimento", outro influente m e m b r o do grupo adicionou novas considerações,
retomadas pelo que citamos e m primeiro lugar:

Glauco — [...] O próprio homossexual está muito pouco esclarecido a respeito


de sua homossexualidade, tanto assim que reproduz, na prática, os padrões he-
terossexuais, caricaturando as funções de atividade e passividade, por exemplo.
Existe sempre aquela bicha "pintosa", desmunhecada, à procura do seu "bofe",
isto é, aquele que vai exercer o papel masculino. Isso é muito falso, pois não
tem nada a ver com a homossexualidade em si.
Emanoel — O que se pretende não é que essa caricatura heterossexual possa
ser mostrada livremente dentro da sociedade, mas sim acabar com essa re-
produção heterossexual e colocar um modelo de relação onde não exista a
divisão de papéis, um dominador e um dominado; acho que os homossexuais
mais conscientes pretendem que se estabeleça uma revolução dentro dos
papéis sexuais, tanto do lado heterossexual quanto do lado homossexual,
que não exista um dominador e um dominado na relação heterossexual
e que não exista caricatura disso na relação homossexual; uma mudança
radical no plano do prazer.

Se o Somos, c o m o observou MacRae, "partia do princípio de que a humani-


dade estaria dividida entre heterossexuais e homossexuais (e talvez alguns bisse-
xuais)", havia também no grupo certa resistência a cristalizar identidades, a qual
foi ganhando força ao longo do tempo. Afinal, c o m o t a m b é m ressalta MacRae,
tratava-se de u m "inusitado e dinâmico espaço para discussões de sexualidade"
que arregimentava u m conjunto consideravelmente heterogêneo de pessoas, em
que eram freqüentes as divergências e conflitos. Nesse espaço, atuavam vários
que, como o próprio MacRae, adotavam uma noção mais fluida e situacional da
identidade sexual, e lembravam que a população homossexual não era homogênea,
n e m do ponto de vista da sua sexualidade n e m de sua vivência mais ampla.
Pode-se compreender, assim, que o grupo tivesse concepções divergentes
em relação a uma série de temas: a natureza da homossexualidade, o significado
da bissexualidade, a conduta das travestis, das "bichas pintosas" e das lésbicas mas-

• 102 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

culinizadas. Se, de um lado, o "bissexualismo" era deplorado como identidade ou


subterfúgio para não assumir a homossexualidade, em outros momentos a prática
bissexual era elevada ao patamar da subversão suprema de todas as regras. Se tra-
vestis, "pintosas", "fanchas" e "sapatões" eram desvalorizadas como foco de interesse
erótico e criticadas por reproduzirem padrões de dominação m a c h o / f ê m e a , eram
também prezadas por sua ousadia e autenticidade. Consideremos, por exemplo, o
trecho final de um texto que circulou n u m boletim interno do grupo, em maio de
1980, reproduzido no livro de MacRae, sobre o "problema de desmunhecar":

Acho que as bichas pintosas, ou os travestis, ou as lésbicas tipo macho são pessoas
corajosas que subvertem o padrão hetero que nos é cobrado a cada instante. Não
importa o motivo que leva a isso — a busca de aceitação, ou a agressão, a identificação
com o outro sexo ou com um estereótipo. O que importa realmente é que são pes-
soas que estão procurando uma expressão mais verdadeira de si próprias, e assumir
publicamente essa postura é um ato revolucionário de grande importância.

Entre tapas e beijos

Por intermédio de João Silvério Trevisan, que integrava o Somos e ao mesmo


t e m p o o conselho editorial de Lampião, gerou-se u m a aproximação entre os parti-
cipantes do g r u p o e o jornal, que se reforçou nas primeiras reuniões de pauta do
Lampião que chegaram a ser realizadas em São Paulo. Uma avaliação geral das duas
primeiras edições do jornal p o r parte do grupo foi publicada na seção de cartas
do n° 3 (julho/agosto de 1978). Nessa avaliação, muitas das críticas se dirigiam
ao aspecto "sério" e "frio" do jornal, equiparando-o ao alternativo Movimento.
Havia queixas t a m b é m contra o símbolo do jornal, u m a representação estilizada
do rebelde cangaceiro combinada com u m falo, vista como "uma atitude agressiva
e machista" e "uma posição desrespeitosa em relação às mulheres".
As relações entre o Somos e o Lampião se estreitaram ao longo de 1979.
e
O n 10 do jornal (março de 1979) d e u cobertura aos debates dedicados ao
"Caráter dos Movimentos de Emancipação", nas Ciências Sociais da USP. U m
texto relatando a experiência de um ano de existência do Somos foi publicado
com destaque nas duas primeiras páginas da edição de n° 12 (maio de 1979), na

• 103 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

qual a r e p o r t a g e m principal, " A m o r e n t r e mulheres", trazia entrevistas, textos


e d e p o i m e n t o s produzidos e m grande p a r t e p o r lésbicas ativistas d o Somos. Na
edição d e n e 16 ( s e t e m b r o de 1979), a r e p o r t a g e m de capa, "Homossexuais se
organizam", trazia u m a entrevista c o m integrantes do Somos e dois textos e m
que o Somos e o Libertos e x p u n h a m suas metas, organização e m é t o d o s .
E m d e z e m b r o de 1979, o Lampião p r o m o v e u no Rio d e Janeiro, na sede
da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), u m E n c o n t r o de Homossexuais Mi-
litantes, r e u n i n d o r e p r e s e n t a n t e s dos seguintes grupos organizados: Somos-SP,
Eros-SP, S o m o s / S o r o c a b a - S P , L i b e r t o s / G u a r u l h o s - S P , Somos-RJ, Auê-RJ,
Beijo Livre/Brasília-DF, G r u p o de Afirmação Gay/Caxias-RJ, G r u p o 3C A t o /
Belo H o r i z o n t e - M G . O e n c o n t r o t o m o u a resolução de reivindicar a inclusão na
Constituição Federal do respeito à "opção sexual" e lutar para retirar a homosse-
xualidade da lista das doenças mentais. Decidiu-se ali t a m b é m a convocação d e
u m congresso nacional mais a m p l o , de homossexuais e de grupos organizados,
na Semana Santa de 1980, em São Paulo.
Ao m e s m o t e m p o , integrantes d o Somos colaboravam na comercialização
do Lampião nos espaços de freqüência gay e lésbica de São Paulo, e t a m b é m dis-
tribuindo cópias das edições q u e continham matérias sobre o g r u p o , marcadas
p o r u m c a r i m b o de cortesia c o m o n ú m e r o de sua caixa postal. E m seguida, o
g r u p o f o r m o u u m a Comissão de Defesa d o Lampião, colhendo assinaturas a u m
manifesto e m apoio ao jornal e m razão do inquérito contra o seu conselho edito-
rial. O abaixo-assinado e m defesa do Lampião e a participação formal do Somos
n o ato público de c o m e m o r a ç ã o ao Dia de Z u m b i , p r o m o v i d o em n o v e m b r o de
1979 p e l o M o v i m e n t o N e g r o Unificado, f o r a m as primeiras tomadas de posição
política que o g r u p o fazia em público.
Nesse p e r í o d o d e c r e s c i m e n t o e publicização, as tensões internas existentes
n o Somos passaram a adquirir caráter de cisões e disputas. As m u l h e r e s do g r u p o
criaram em junho de 1979 u m subgrupo específico denominado Lésbico-Feminista
(LF), a partir da articulação desenvolvida c o m outras não participantes no esforço
de p r o d u z i r as mencionadas matérias sobre homossexualidade feminina e espa-
ços de sociabilidade lésbica e m São Paulo publicadas n o Lampião. M e s m o c o m
dificuldade de m a n t e r participantes, reduzidos ao longo de 1979 a apenas quatro
m u l h e r e s , o LF se esforçou p o r trilhar caminho p r ó p r i o e tornar-se progressiva-
m e n t e i n d e p e n d e n t e d o Somos. A separação se formalizaria n o ano seguinte.

• 104 •
NA TRILHA DO ARCO-IRIS

Ainda sob o n o m e Somos, as m u l h e r e s d o LF participaram da organização


e dos debates d o 11 C o n g r e s s o da M u l h e r Paulista, realizado e m m a r ç o d e 1980.
Foi u m evento bastante t u m u l t u a d o , n o t a d a m e n t e p o r conta da ação de ativistas
ligadas ao M o v i m e n t o Revolucionário 8 de O u t u b r o (MR-8), u m antigo agrupa-
m e n t o político da guerrilha que se c o n v e r t e r a n u m a facção organizada d e n t r o
d o Partido d o M o v i m e n t o D e m o c r á t i c o Brasileiro (PMDB), q u e ainda era o m a i o r
p a r t i d o de oposição ao r e g i m e militar. Essas ativistas, e m aliança c o m alguns sin-
dicatos, buscaram coibir toda discussão que dissesse respeito à violência contra
a m u l h e r , f e m i n i s m o e sexualidade, chegando m e s m o a apelar à violência física.
H o m e n s participaram t a m b é m desse congresso, incluindo ativistas d o Somos,
e p r o d u z i r a m d o c u m e n t o s d e apoio a reivindicações feministas que incluíam a
luta contra a discriminação sexual e a dupla jornada no trabalho, defesa da equi-
paração salarial e n t r e h o m e n s e m u l h e r e s e descriminação do a b o r t o . Lampião
r e p e r c u t i u o evento p o r m e i o da matéria "Congresso das Genis: esquerda joga
bosta nas feministas", assinada p o r João Silvério Trevisan, t e n d o em epígrafe u m a
frase atribuída à professora de filosofia Marilena Chaui: "A vanguarda brasileira
é moralista m e s m o : t r o c o u o c o n v e n t o pela célula política".
C o m o deixaram patentes os episódios do Congresso da M u l h e r Paulista,
o u t r o grande f o c o de tensão n o Somos e nos demais m o v i m e n t o s de minorias
da época era a questão das alianças políticas e da relação c o m os partidos d e
esquerda, q u e evoluía para u m a polarização e n t r e a prioridade das lutas especí-
ficas d e m u l h e r e s , n e g r o s e homossexuais e a prioridade da chamada luta maior
contra a ditadura e pela t r a n s f o r m a ç ã o social. As pessoas que, d e n t r o d o Somos,
p r o c u r a v a m m a n t e r u m a p o n t e e n t r e ambas as posições passavam a ser vistas
c o m crescente desconfiança, sob a acusação de p r e t e n d e r manipular o g r u p o .
James G r e e n , que tinha sido u m dos principais idealizadores e e x e c u t o r e s da
comissão de defesa do Lampião e da participação d o Somos n o ato público j u n t o
ao M o v i m e n t o N e g r o Unificado, era o pivô dessas desconfianças e acusações,
e m virtude d e sua assumida dupla militância n o Somos e na Convergência So-
cialista. Na peculiar p r o d u ç ã o categorial d o g r u p o , a polarização se dava e n t r e
as "chicórias", que d e f e n d i a m a a u t o n o m i a e proclamavam u m vago anarquismo,
muitas vezes assimilado à desconfiança e m relação à política e aos políticos e m
geral; e as "beterrabas", que defendiam alianças políticas mais amplas, inclusive
c o m a esquerda.

• 105 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

E m abril d e 1980, o c o r r e u o I E n c o n t r o de G r u p o s Homossexuais O r g a n i -


zados (EGHO), r e s t r i t o a g r u p o s homossexuais e seus convidados, e o I E n c o n t r o
Brasileiro de H o m o s s e x u a i s (EBHO). Cerca de duzentas pessoas c o m p a r e c e r a m
à p a r t e fechada d o e n c o n t r o , o I Egho, integrantes e convidados dos g r u p o s
Somos-sp, Eros-sp, L i b e r t o s / G u a r u l h o s - s p , Somos/Sorocaba-SP, Somos-RJ, Auê-
RJ, Beijo Livre/Brasília-DF; além de r e p r e s e n t a n t e s de Belo H o r i z o n t e , Vitória,
Goiânia, Curitiba e u m a comissão de r e p r e s e n t a n t e s d o jornal Lampião. Como
conta E d w a r d M a c R a e , na p o r t a , os n o m e s dos participantes e r a m conferidos
n u m a lista, e u m a comissão de segurança c o m p o s t a de h o m e n s e m u l h e r e s i m -
pedia o acesso d e pessoas c o m máquinas fotográficas, visto que apenas Lampião
estava c r e d e n c i a d o p a r a cobrir a p a r t e fechada d o e n c o n t r o . Recheado de dis-
cussões longas e acirradas, o e n c o n t r o evidenciou q u e e n t r e os integrantes dos
diversos g r u p o s r e p r e s e n t a d o s havia vários simpatizantes de partidos políticos
d e esquerda, legais, c o m o o r e c é m - c r i a d o P a r t i d o dos Trabalhadores (PT), OU
clandestinos e m via de legalização, c o m o o PCB e o Partido Comunista d o Brasil
(PC d o B), além da Convergência Socialista, q u e n a q u e l e m o m e n t o aderira ao PT.
As decisões t o m a d a s n o final, p o r consenso, r e i t e r a r a m as resoluções indicativas
pela alteração d o C ó d i g o de D o e n ç a s r e f e r e n t e a "transtornos sexuais" e pela
i n t r o d u ç ã o da p r o t e ç ã o d e direitos relacionados à "opção sexual" na Constituição
brasileira. A l é m disso, decidiu-se p r o m o v e r a legalização jurídica dos g r u p o s , a
dinamização dos contatos intergrupais p o r m e i o de jornais e boletins, a p r o m o ç ã o
-

ATIVISMO

Isso t a m b é m é Brasil!

Lampião faz a
cobertura do Ia EBHO

(tf 24, maio de 1980).

• 104 •
NA TRILHA DO ARCO-IRIS

de debates s o b r e a h o m o s s e x u a l i d a d e d u r a n t e o congresso anual da Sociedade


Brasileira para o P r o g r e s s o da Ciência (SBPC), a denúncia da discriminação c o n t r a
h o m o s s e x u a i s exercida p o r e m p r e g a d o r e s e o a c o m p a n h a m e n t o de investigações
sobre arbitrariedades policiais c o m e t i d a s c o n t r a homossexuais.
A c o b e r t u r a dos p r i m e i r o s EGHO e EBHO o c u p o u seis páginas da edição nfi 2 4 d o
Lampião (maio de 1980), cuja capa estampou a foto d e uma liderança do LF que atuara
na coordenação dos trabalhos d o Egho. Desse n ú m e r o em diante, o jornal passou a
publicar u m quadro, atualizado m e n s a l m e n t e , c o m a lista dos grupos homossexuais
organizados existentes e seus respectivos e n d e r e ç o s e caixas postais.
N a seqüência, o c o r r e r a m duas cisões n o Somos. U m a , já esperada, era a se-
paração definitiva das lésbicas, c o m a criação d o G r u p o de Ação Lésbica-Feminista
(Galf). Em c o m u n i c a d o publicado n o Lampião n 8 15 (agosto de 1980), o GALF

justificava a necessidade de sua organização i n d e p e n d e n t e e m vista da especifici-


dade da sua questão feminista, t e n t a n d o equilibrá-la c o m a homossexualidade e,
ao m e s m o t e m p o , r e c o n h e c e n d o divergências e n t r e elas próprias:

Não cabíamos no Somos enquanto mulheres... Temos que nos organizar sepa-
radamente para atender às nossas especificidades, o que não era absolutamente
o caso das bichas... Isso não significa, porém, que estamos fora do movimento
ou que sejamos apenas um grupo feminista... Trouxemos para o movimento
homossexual o cunho revolucionário do movimento feminista... Queremos
frisar que continuamos a ser um grupo lésbico e que o feminismo apenas nos
acrescentou novas frentes de luta... Enquanto estivemos ilhadas em um grupo
masculino, nossas atenções foram repartidas em função do inimigo comum: o
machismo. Com nossa autonomia, concomitante ao crescimento do grupo, as
diferenças entre nós se acirraram, já que passamos a nos preocupar com uma
série de diferenças que antes não tínhamos nem condições de aprofundar. Então,
se por um lado a autonomia nos deu maior liberdade de atuação e profundida-
de, por outro, também, aumentou a responsabilidade de nos reconhecermos
e de convivermos com uma série de divergências nunca afloradas, por falta,
inclusive, de um espaço específico.

A o u t r a cisão d e u - s e e m t o r n o da p r o p o s t a de participação do Somos na


manifestação de apoio aos trabalhadores e m g r e v e do ABC paulista, p o r ocasião

• 106 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

do 1E de maio de 1980. Incapaz de chegar a u m consenso, o grupo se dividira:


uma parte compareceu ao estádio da Vila Euclides, e m São Bernardo do Campo,
enquanto outra parte promoveu u m piquenique no parque do Ibirapuera. Na reu-
nião geral de 1980, a divergência se t o r n o u separação formal. Sob a alegação de
que o Somos estava com sua autonomia c o m p r o m e t i d a em virtude da atuação de
m e m b r o s ligados a organizações político-partidárias, nove m e m b r o s anunciaram
seu desligamento e a formação de u m novo G r u p o de Ação Homossexualista,
posteriormente rebatizado de O u t r a Coisa. O "racha" do Somos repercutiu na
edição n 2 25 do Lampião (junho de 1980).

O Lampião se apaga

Completado seu segundo ano de existência, o Lampião vivia em meio a


vários problemas. Para financiar o jornal, nove dos onze m e m b r o s iniciais do
conselho editorial haviam se cotizado para criar uma editora de capital fixo. O
jornal sustentava-se apenas com as vendas em bancas e as assinaturas, e assim vivia
enfrentando dificuldades financeiras sempre que a comercialização oscilava. Com
o abrandamento da censura, Lampião tinha passado a enfrentar a concorrência de
pequenas revistas ou jornais com fotos de nus masculinos, e as vendas tenderam
a baixar. O editorial do n 2 28 (setembro de 1980) escancara a crise financeira
por que passava o jornal, diante do fracasso da tentativa de atrair anunciantes e
das dificuldades de distribuição, que aumentaram depois dos atentados a bancas
de jornal.
Persistiam t a m b é m dificuldades operacionais básicas. De inicio, o jornal se
propunha a realizar suas reuniões de pauta alternadamente no Rio de Janeiro e
em São Paulo, o que logo se revelou inviável. Assim, as atividades se concen-
traram no Rio. O s editores que mais se engajavam na produção do jornal eram
Aguinaldo Silva e Francisco Bittencourt, no Rio de Janeiro, e João Silvério Tre-
visan e Darcy Penteado, e m São Paulo, além de u m conjunto de colaboradores e
redatores estabelecidos no Rio, c o m o Antonio Carlos Moreira, Alceste Pinheiro,
José Fernando Bastos e outros, além de Alexandre Ribondi, de Brasília. Mas,
conforme atestam os depoimentos a seguir, colhidos p o r Cláudio Roberto da
Silva, Aguinaldo Silva era a figura central:

• 108 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

Peter Fry— Aquilo não teria acontecido se não fosse o Aguinaldo. O Aguinaldo jun-
tava tudo e levava até à gráfica. Naquela época não havia computador. Era tudo na
base de fazer o texto caber na página. Isso sempre dava brigas porque havia cortes
nos textos. Acusação de censura prévia. Coitado! O Aguinaldo sofreu muito. Foi
ele que juntou os trapos, levou-os à gráfica e fez aquilo acontecer.
João Antônio Mascarenhas — O Aguinaldo tomou o jornal. Não há dúvida nenhuma
que o Aguinaldo é um homem muito trabalhador, mas o que tinha sido proposto
deixou de ser. Ele ficou com a direção do jornal, com as assinaturas, com a
distribuição, com a pauta.
Antônio Carlos Moreira — O Aguinaldo editava o jornal, ele levava o Lampião nos
braços até o Jornal do Comércio para ser impresso, no carro dele! O jornal não
tinha como sustentar o aluguel, apesar do Lampião ser uma empresa. O Agui-
naldo alugava uma sede para o Lampião no Rio. Com esta estrutura, ele dava o
tom que queria ao jornal.

A partir das cisões n o Somos, as chamadas de matérias relacionadas ao


ativismo no Lampião tornam-se mais irônicas. N o n 2 27 (agosto de 1980), sob o
título "Uma cachoeira de grupos gueis", Aguinaldo Silva se queixava de que o
jornal recebia uma quantidade excessiva de textos produzidos pelos vários grupos
de ativismo que só diziam respeito aos próprios grupos e declarava que não seria
possível "transformar Lampião n u m a espécie de diário oficial do ativismo guei".
Editores e colaboradores do jornal passaram desde então a trocar farpas com os
mais diversos grupos (Fração Gay da Convergência, Somos-SP, Outra Coisa-sp,
Somos-Rj, Gatho-Recife).
As divergências entre os editores do jornal t a m b é m se acentuaram. A partir
do n 2 32 (janeiro de 1981), o conselho editorial do Lampião deixou de existir,
p e r m a n e c e n d o na ficha técnica os n o m e s de Aguinaldo Silva, como coordena-
dor da edição, Francisco Bittencourt, Darcy Penteado e João Silvério Trevisan,
como redatores, j u n t o com Alceste Pinheiro, Antônio Carlos Moreira e Aristides
Nunes. Para tentar aumentar os recursos e m e l h o r a r a circulação, Lampião havia
investido mais em fotos de rapazes nus e e m assuntos que o seu editor principal
julgava t e r e m maior apelo j u n t o ao público q u e freqüentava os guetos homosse-
xuais das grandes cidades. Os resultados, p o r é m , não foram satisfatórios. C o m o
comentou MacRae:

09 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Os últimos números do jornal começaram a refletir cada vez mais a convicção


de Aguinaldo Silva de que não se estava oferecendo o produto que o mercado
queria, e que o ativismo só apelava à minoria de uma minoria. Mas, apesar
de começar a dar mais ênfase a reportagens sobre temas como masturbação,
prostituição, travestis etc., o jornal não conseguiu aumentar suas vendas. Em
junho de 1981 saiu seu último número, o 37.

O e n c e r r a m e n t o das atividades do Lampião antecipou o final de u m ciclo


que, como a redemocratização, liquidou com a imprensa alternativa e permitiu
que seus temas fossem reabsorvidos pela grande imprensa. O jornal tinha sido
importante para a mobilização homossexual do p e r í o d o , assim c o m o para o
debate de muitos temas relacionados à politização da sexualidade e ao reco-
nhecimento social das chamadas "minorias". N o m o m e n t o em que encerrou
suas atividades, o jornal parecia m e r g u l h a d o n u m vácuo: tinha abandonado o
teor contestatório sem conseguir assumir as características de uma publicação
voltada ao c o n s u m o .
O fim do Lampião deixou os grupos homossexuais órfãos do principal meio
de comunicação pelo qual faziam circular suas idéias e divulgar suas atividades
por todo o país, dentro e fora do m o v i m e n t o . O importante papel cumprido pelo
Lampião na mobilização ocorrida na virada nos anos 1970 para os anos 1980, b e m
como o vazio deixado pelo seu fim, e m m e i o ao processo de redemocratização,
são ressaltados p o r vários dos participantes diretos desses acontecimentos.
O depoimento de James Green, dado a Cláudio Roberto da Silva, talvez re-
suma u m sentimento mais geral experimentado pelos ativistas nesse m o m e n t o :

Ao meu modo de ver, a "abertura" alimenta o movimento homossexual. O


próprio Lampião é reflexo deste período. É um jornal da imprensa "nanica",
publicado para lutar contra a censura. O Lampião realmente abre caminho
para os grupos. [...] Particularmente acho que o Lampião cometeu um erro, no
sentido dele se tornar antiativista, isso desmoralizou totalmente os grupos que
queriam trabalhar. No final o jornal se tornou muito agressivo ao ativismo. Ele
não buscou outra maneira de conseguir apoio, ou seja, tinha uma visão duvidosa:
não era pró-ativismo, nem pró-consumismo. Ficava entre os dois e não tinha
grande espaço para isso.

• i io •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

O u t r o d e p o i m e n t o , de Alexandre Ribondi, na época militante do grupo


Beijo Livre de Brasília e t a m b é m colaborador ativo do Lampião, é especialmente
ilustrativo do impacto causado pelo fim do jornal sobre os grupos afastados do
eixo Rio—São Paulo:

Quando o Lampião acabou, o Beijo Livre ainda conseguiu se reunir. O grupo


acabou naturalmente. As pessoas foram se dispersando, continuaram amigas. [...]
Quando o Lampião deixa de existir, ele deixa muita gente órfa. Todo mundo
ficou órfão porque acabou tudo! Todo mundo se recolheu, os grupos deixaram
de existir. Não se passou mais a discutir homossexualidade. [...] Quando o
Lampião deixa de existir, os grupos deixaram de existir e os que existiam, nós
não tínhamos como saber deles! Desta forma, era como se não existissem. Eles
não tinham efeito, não tinham importância .

Ressalta aqui o quanto era central, para a m a n u t e n ç ã o dos emergentes


grupos organizados, o a c o m p a n h a m e n t o das atividades de seus pares. Isso era
importante para que se sentissem inseridos n u m m o v i m e n t o maior e pudessem
obter referências positivas para sua atuação. Mas a impossibilidade de se dife-
renciar dos pares t a m b é m tinha u m efeito desmobilizador n u m movimento cuja
dinâmica era marcada pela multiplicação dos grupos, por fissão ou por intermédio
de atividades promovidas p o r grupos mais consolidados. Era patente para todos
eles a necessidade de debater e, até m e s m o , brigar entre si para definir o m o d o
específico de militância de cada u m .

N o v o s desafios

Paradoxalmente, logo após o "racha" no Somos, aconteceria a principal ação


pública dos militantes homossexuais da época: a campanha contra a "Operação
Limpeza" promovida pela polícia civil de São Paulo, capitaneada pelo delegado
José Wilson Richetti contra os f r e q ü e n t a d o r e s noturnos do centro da cidade,
atingindo especialmente a rua Vieira de Carvalho e o largo do Arouche, pontos de
efervescente sociabilidade homossexual. U m ato público realizado em frente ao
Teatro Municipal de São Paulo, n o final da tarde de 13 de junho de 1980, reuniu

• I I I *
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

os f r a g m e n t o s d o Somos e representantes dos m o v i m e n t o s feminista e n e g r o . O s


cerca de mil manifestantes seguiram e m passeata pelas ruas d o C e n t r o , naquela que
p o d e ser considerada a primeira manifestação d e rua d o m o v i m e n t o homossexual
n o Brasil, c o m o se observa na descrição vivida de João Silvério Trevisan:

Formada a passeata, logo depois as frases foram pipocando, quase sempre


impagáveis: "Richetti enrustida, deixa em paz a nossa vida!", "Um, dois, três,
Richetti no xadrez!", "Abaixo o subemprego, mas trabalho para os negros!".
E muitas manifestantes se espantaram quando algumas feministas puxaram um
refrão longamente repetido por todos: "Somos todas putas!"...
Aproximando-se do largo do Arouche, ecoam os gritos uníssonos de "Lutar,
vencer, mais amor e mais prazer!". Ou também: "Amor, tesão, abaixo a repres-
são!" A essa altura, algumas bichinhas mais afoitas pulam numa desmunhecação
feroz e ensaiam seus próprios slogans do tipo: "Ricchetti é louca, ela dorme de
touca!". Entrando no largo proibido desde há duas semanas, os manifestantes
gritam "O Arouche é nosso!". 10

O s grupos organizados sofreram t a m b é m o i m p a c t o da r e d e m o c r a t i z a ç ã o


e da expansão das alternativas de c o n s u m o voltada ao público h o m o s s e x u a l . Em
d e z e m b r o de 1980, realizou-se no Rio de Janeiro u m a reunião preparativa d o
q u e deveria ser o II Egho. Vários grupos estavam r e p r e s e n t a d o s . D o Rio, esta-
vam presentes: Somos, Auê, Bando de Cá de N i t e r ó i ; de São Paulo, c o m p a r e -
c e r a m : Somos, O u t r a Coisa, Eros, Convergência Socialista, Galf, T e r r a Maria,
Alegria-Alegria, G r u p o O p -

ANOS NT»
IJUVCPIÃO
Klodt J W t r „ . )q|*
ção, L i b e r d a d e S e x u a l de
Santo A n d r é ; d o N o r d e s t e :

A IGREJA EO os r e c é m - f o r m a d o s G r u p o
Gay da Bahia Grupo
HOMOSSEXUALISMO
(GGB), O

de A t u a ç ã o Homossexual
(20 anos de repressão) de R e c i f e / O l i n d a ( G a t h o ) ;
RICHETTI AGE EM S.PAULO.,
E FADILHA VOLTA A O RIO além do Beijo Livre, de
Brasília, e o T e r c e i r o A t o ,
de Belo H o r i z o n t e , per-
fazendo u m total de de-

• I I 2 •
N A TRILHA DO ARCO-IRIS

Manifestação contra a repressão policial (junho de 1980), no centro de São Paulo.

zesseis g r u p o s . As discussões f o r a m bastante acirradas e m t o r n o da aceitação


ou não da presença de um representante do Lampião. Como encontro preparatório
para u m congresso maior, seus resultados foram altamente frustrantes. As princi-
pais decisões tomadas foram contra atribuir caráter deliberativo ao próximo Egho
e c o n t r a a f o r m a ç ã o de u m a c o o r d e n a ç ã o n a c i o n a l d o m o v i m e n t o . O n
Egho, previsto para acontecer n o Rio d e Janeiro e m abril de 1981, foi suspenso,
t e n d o o c o r r i d o apenas e n c o n t r o s regionais e m São Paulo e n o N o r d e s t e .
Na p r i m e i r a m e t a d e da década de 1980, verifica-se u m a drástica r e d u ç ã o d o
n ú m e r o de g r u p o s . Dos dezesseis p r e s e n t e s ao e n c o n t r o p r e p a r a t ó r i o d o li Egho,
m e n c i o n a d o s , apenas sete sobreviviam q u a n d o o II Egho foi finalmente realizado,
e m Salvador. C o m p a r e c e r a m a esse e n c o n t r o apenas cinco g r u p o s : o GGB, o pri-
m e i r o já f o r m a l m e n t e r e c o n h e c i d o c o m o agremiação homossexual; o G a t h o , de
P e r n a m b u c o , o Dialogay de Sergipe, o G r u p o Libertário Homossexual e o Adé
D u d u , da Bahia. São Paulo, q u e até 1981 c o n c e n t r a v a a maioria dos g r u p o s , ia
d e s a p a r e c e n d o n o m a p a do ativismo h o m o s s e x u a l .
Passada a efervescência produzida pelo ato contra a "Operação Limpeza", a
relação entre os fragmentos d o Somos voltou a se deteriorar. Em 1982, o Somos

• 1 1 3 -
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

conseguiu estabelecer uma sede, no bairro da Bela Vista, região central de São
Paulo. O grupo procurou manter-se ativo, participando dos debates da campanha
eleitoral, promovendo festas, tentando produzir u m jornal alternativo, 0 Corpo, que
chegou a ter meia dúzia de edições, e organizar u m cineclube. Mas seus militantes
remanescentes dispunham de poucos recursos para tocar seus projetos e t o r n a r a
sede u m espaço atraente de sociabilidade, e m comparação c o m o desenvolvimento
cada vez mais acentuado do mercado de consumo e serviços voltados aos homosse-
xuais. A saída de mais militantes do Somos levou à formação de grupos de estudos,
que acabaram se dissolvendo e, a partir de alguns desses militantes, f o r m o u - s e o
Coletivo Alegria-Alegria, que se constituiu como "grupo de vivência" e teve curta
duração. Em 1983, problemas financeiros e dificuldades em conseguir novos m e m -
bros levaram o grupo Somos a abandonar sua sede e se dissolver.
O g r u p o O u t r a Coisa colaborou na discussão de t e m a s ligados à h o m o s -
sexualidade na campanha eleitoral de 1982 e foi o p r i m e i r o g r u p o paulistano a
divulgar, em julho de 1983, informações a respeito da Aids. Segundo E d w a r d
MacRae, em 1984, p o r dificuldades para pagar o aluguel da sede q u e dividia c o m
o GALF, O O u t r a Coisa e n c e r r o u suas atividades.
O GALF, após a separação definitiva do Somos, atuou em duas frentes: n o
m o v i m e n t o feminista, n o qual procurava incentivar que se desse mais atenção às
questões ligadas à sexualidade; e no gueto lésbico. N o c a m p o feminista, o GALF

participou do célebre Encontro Feminista de Valinhos (SP), e m j u n h o de 1980,


a partir do qual f o r a m criados centros de defesa voltados a coibir a violência
contra a m u l h e r , c o m o o SOS-Mulher, e m que as militantes do GALF tiveram
participação destacada. Junto ao gueto lésbico, o g r u p o procurava divulgar seu
boletim Chanacomchana, criado em 1981. C o m periodicidade instável, e n t r e
trimestral e quadrimestral, o Chanacomchana circulou ao longo década de 1980.
As próprias participantes do GALF encarregavam-se de difundir o periódico e m
outras capitais, durante congressos, e faziam a sua distribuição e m bares e boa-
tes. Foram expulsas do F e r r o ' s Bar, tradicional p o n t o de freqüência lésbica d e
São Paulo, quando tentavam distribuir exemplares d o boletim em 19 de agosto
de 1983, data que alguns setores do m o v i m e n t o atual p r o p õ e m para celebrar o
"Dia do O r g u l h o Lésbico".
O GALF passou p o r várias crises, q u e envolviam tanto as dificuldades m a -
teriais para tocar projetos quanto o r o m p i m e n t o de relações amorosas e n t r e

• 114 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

suas integrantes. Rupturas pessoais e divergências políticas influenciavam-se


m u t u a m e n t e nesses episódios. Analisando a relação e n t r e lésbicas e feministas
d e n t r o do SOS-Mulher de São Paulo, a antropóloga Heloísa Pontes descreveu a
dissidência ocorrida n o Galf p o r ocasião do fim d o relacionamento e n t r e duas
integrantes, que passaram a seguir caminhos distintos, atraindo cada qual u m
c o n j u n t o d e aliadas. Essa separação m a r c o u diferentes posicionamentos seguidos
pelo g r u p o n o c o m e ç o dos anos 1980. U m a ala se r e t i r o u do Galf, privilegiando
a atuação j u n t o ao m o v i m e n t o feminista, a r g u m e n t a n d o q u e sua prática lésbica
seria u m a particularidade a mais e não a marca definidora d e suas identidades
pessoais. O u t r o ala o p t o u p o r m a n t e r o Galf e se retirar do SOS-Mulher, sob a
justificativa d e que as lésbicas d e v e r i a m assumir sua identidade social e política,
para não submergir na luta f e m i n i s t a " .
A respeito dessas e de outras dissidências semelhantes, a pesquisadora Gláucia
de Almeida observou que u m a característica m a r c a n t e d e m u i t o s grupos lésbicos
brasileiros, especialmente até m e a d o s dos anos 1990, era a origem a partir de u m
"casal f u n d a d o r " que agregava o u t r o s casais ou amigas para o e m p r e e n d i m e n t o
político. Desse m o d o , divergências políticas associavam-se estreitamente a r u p -
turas amorosas, que t r o u x e r a m conseqüências para a capacidade organizativa d o
m o v i m e n t o , visto que os g r u p o s t e n d i a m a desaparecer j u n t o c o m a separação
d e suas protagonistas. C o m o ela c o m e n t a :

Uma vez que a relação afetiva/sexual se esgotava (o que ocorria algumas vezes
com rupturas violentas), o grupo se dissolvia ou se fragilizava pela permanência
de apenas uma das integrantes do casal, que nem sempre estava preparada ou
encontrava condições para manter o grupo "ativo". [...] Uma das integrantes do
casal fundador de um grupo extinto contou que, com a saída de sua ex-compa-
nheira e a sua, outras pessoas assumiram a liderança provisoriamente, mas não
conseguiram manter o grupo ativo. Ela, a partir daí, perdeu o controle sobre
o destino do grupo e sobre o que foi feito do precioso acervo documental de
que o grupo dispunha, inclusive um rico conjunto de cartas (algumas centenas)
enviadas por lésbicas de todo o Brasil.12

O Galf não fugiu a esse p a d r ã o organizativo, mas conseguiu evitar seu desa-
p a r e c i m e n t o . Foi o único dos g r u p o s paulistas da primeira onda que continuou

• 1 ií •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Desenho de Ricardo Coelho, publicado em Lampião.

ativo ao longo dos anos 1980 e chegou aos anos 1990 c o m o Rede de Informação
U m O u t r o Olhar, n o m e que passou a usar a partir do m o m e n t o e m que adotou
o f o r m a t o institucional de organização não-governamental - outra das novidades
das décadas seguintes, c o m o veremos a seguir.
Mas, além disso, a década de 1980 traria outro tremendo desafio: o trágico sur-
to da Aids, que ressuscitaria a velha associação entre homossexualidade e doença.
Atentos ejortes: a luta por
direitos diante da Aids

consideram a década d e 1980 u m período de declínio do m o -


v i m e n t o homossexual, em relação à efervescência mobilizadora que m a r c o u o
período imediatamente anterior. Houve efetivamente u m a acentuada diminuição
n o n ú m e r o de grupos organizados, de 1981 a 1991. Ao lado disso, p o r é m , c o m o
argumenta Regina Facchini, assistiu-se à intensificação da atividade de u m a nova
geração de militantes, segundo outros moldes de atuação, proporcionados, em
grande parte, pelo n o v o c o n t e x t o social político da redemocratização e, e m
grande parte, pela eclosão da epidemia Hiv-Aids'.
Essa nova geração de ativistas tinha pouco ou n e n h u m envolvimento e m
posições ideológicas de esquerda ou anarquistas e se mostrava m u i t o m e n o s
refratária à ação n o campo institucional. Essas características, já presentes no
p e r í o d o anterior, e m b o r a m e n o s influentes, tornam-se predominantes na nova
configuração d o m o v i m e n t o , mais voltada a estabelecer organizações de caráter
mais formal e mais focada e m assegurar o direito à diferença.
João Antônio Mascarenhas, articulador inicial do g r u p o de intelectuais que
f o r m o u o Lampião e fundador d o extinto grupo Triângulo Rosa, que d u r o u de
1985 a 1988, e Luiz M o t t , f u n d a d o r do G r u p o Gay da Bahia, f o r m a d o e m 1980 e

• 1 1 7 -
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

ativo até o presente, tornaram-se personagens fundamentais dessa segunda onda


de ativismo homossexual. Cabe t a m b é m ressaltar o grupo Atobá, formado no
Rio de Janeiro, em 1986. Esses três grupos obtiveram reconhecimento formal
do Estado c o m o sociedades civis declaradamente homossexuais, e sua atuação
esteve estreitamente relacionada. Personagens centrais desse m o m e n t o t a m b é m
foram os vários militantes ativos no período anterior (como Paulo Bonfim, Jorge
Beloqui, Veriano T e r t o , José Stalin Pedrosa e inúmeros outros) que passaram a
se dedicar prioritariamente à luta contra a Aids e contribuíram de forma decisiva
para construir as primeiras respostas da sociedade civil à epidemia.

"É legal ser homossexual"

João Antonio Mascarenhas nasceu em Pelotas em 1927, n u m a família tra-


dicional de pecuaristas e n u m ambiente social e m que, segundo suas palavras,
"o machismo era cultivado". Em 1956, mudou-se para o Rio de Janeiro a fim
de "ganhar a vida pelo próprio esforço, sem se valer das amizades do pai". Sua
trajetória até o m o v i m e n t o homossexual, relatada a Cláudio Roberto da Silva,
parte da tranqüilidade cotidiana de u m advogado e funcionário público, que
mantinha na privacidade seus relacionamentos c o m outros homens. Conta que,
n u m dado m o m e n t o , quando já vivia n o Rio, foi t o m a d o por u m sentimento
de revolta pessoal com a possibilidade de violência e chantagem decorrentes da
lógica que ele descreve c o m o "eu faço que m e escondo e você faz que não m e
vê". Nos anos 1970, obteve as primeiras notícias sobre o movimento homosse-
xual europeu e norte-americano, e e m 1977 foi o cicerone da visita de W i n s t o n
Leyland, o editor de Gay Sunshine, que levaria à criação do Lampião.
Em seu relato, Mascarenhas ressaltou a singularidade de sua preocupação
de contribuir com o surgimento de u m m o v i m e n t o homossexual no Brasil, por
ocasião das discussões em t o r n o da linha editorial do jornal.

No que se refere ao movimento homossexual, houve o seguinte: quem tinha


vontade daquele movimento era eu. O João Silvério Trevisan era o único que
tinha alguma noção além de mim. Ele havia morado nos Estados Unidos. O
Trevisan possuía a idéia do Gay Liberation Front, que é uma atitude filosófica

• I 18 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

de contestação plena, completa e radical. Algo um pouco diferente da minha


posição. Nunca fui do Gay Liberation. Nesse meio-tempo já conhecia bem o
Gay Liberation porque estava com uma bibliotecazinha sobre o assunto. Os
outros nunca tinham ouvido falar em movimento, nem o Aguinaldo. O Darcy
também não...
Desde o início já vi que o jornal nunca seria um órgão do movimento... Mesmo
assim, achei que devia prestigiar o Lampião, pois me parecia que era melhor
ter este jomal do que não ter nada. Como tive interesse na vinda do Winston
pra cá — justamente com essa esperança - , pelo menos algo tinha se realizado.
Imaginava que o Lampião podia agir como um catalisador. O que acabou aconte-
cendo! Os grupos começaram a surgir... Porém, sob orientação do Aguinaldo,
o jornal cada vez mais se afastava da minha idéia. Então achei melhor dar minha
cota ao Francisco Bittencourt. 2

Luiz M o t t nasceu em São Paulo, n u m a sólida família de classe média


católica. Seu avô tinha u m c a r t ó r i o n u m b a i r r o da zona n o r t e paulistana.
Adolescente, viveu e m Juiz d e Fora e Belo H o r i z o n t e . De volta a São Paulo,
i n t e r r o m p e u uma formação que o levaria à vida religiosa e ingressou na carreira
acadêmica nas Ciências Sociais, na USP. Foi professor na Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) e p o s t e r i o r m e n t e m u d o u - s e para Salvador, dividindo
seu t e m p o e n t r e as atividades acadêmicas na Universidade Federal da Bahia
(UFBA) e a coordenação e participação no G r u p o Gay da Bahia, f o r m a d o e m
1980. Em d e p o i m e n t o a Cláudio R o b e r t o da Silva, revelou ter tido envolvi-
m e n t o político ocasional e m partidos e tendências políticas durante o t e m p o
de e s t u d a n t e universitário, mas nada comparável ao que manteria mais tarde
c o m o m o v i m e n t o homossexual.

Em 1963, fui para o noviciado, passei um ano em Belo Horizonte: Noviciado


Dominicano. Larguei o convento em 1964, ano da "revolução". Apesar de
os dominicanos terem tido uma participação importante no movimento pré-
ditadura, politicamente eu era bastante alienado... Na área de Ciências Sociais
vi a possibilidade de continuar mais ou menos na mesma linha do sacerdócio.
Eu via as Ciências Sociais como uma espécie de serviço social, auxiliando a
sociedade. Era uma época de fermentação de idéias políticas, de reformas de
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

base. Poderia fazer da minha futura profissão não mais o sacerdócio religioso,
mas uma prestação de serviços ao bem comum. Participei ativamente dos
movimentos de protesto durante o curso universitário da USP. Fui a algumas
reuniões da Ação Popular (AP). Fui convidado para uma reunião da política
operária (Polop), mas nunca fui plenamente cooptado por algum grupo, fosse
político organizado, estudantil. Na universidade tive uma ação política não
organizada. Não participava ativamente de grupos, embora participasse ati-
vamente de passeatas. Terminada a faculdade, consegui uma bolsa na França,
para fazer o mestrado em antropologia. Gostei imensamente de viajar pela
Europa... tive liberdade! Tive oportunidade de ter uma vivência homossexual
bastante livre. Em 1970, encontrei a primeira revista homossexual, ainda
muito tímida, a Arcadie. A partir de 1972, se não me engano, existia a Frente
de Liberação Homossexual, mas não tive essas informações, assim como não
vi drogas na França. Esses fatos aconteceram logo depois de maio de 1968.
Havia uma grande agitação estudantil-política. Nessa fase, contudo, não tinha
consciência nem identidade homossexual.

Mott e Mascarenhas delineiam trajetórias individuais pré-participação no


movimento que p o d e m ser u m tanto diferentes entre si, mas se afastam bastante
do alto grau de envolvimento com grupos e concepções polítíco-revolucionárias,
ou mesmo com idéias da contracultura, que marcaram a trajetória de outras
lideranças influentes na primeira onda de ativismo homossexual no eixo Rio—
São Paulo. No Somos-sp, tanto as lideranças com uma posição "autonomista"
quanto as que tinham uma posição em favor de alianças com partidos políticos,
grupos de esquerda e outros movimentos não classificados c o m o "movimentos
de minorias", tinham projetos de transformação da sociedade c o m o um todo.
As atuações de M o t t e Mascarenhas, em contraste, demonstraram u m m e n o r
envolvimento com projetos de transformação social, n u m sentido mais amplo,
e uma ação mais pragmática, voltada para a garantia dos direitos civis e contra a
discriminação e a violência que atingem os homossexuais.
Mascarenhas e Mott aliaram-se para p r o m o v e r atividades de acordo com
entendimento c o m u m de que a "causa homossexual vinha em primeiro lugar".
Os relatos a seguir realçam o grau de proximidade, colaboração e apreço m ú t u o
que ambos cultivaram a partir dos anos 1980.

• i 2o •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

Mascarenhas — Certa vez fui a um congresso, acho que era na Casa do Estudante
Universitário e vi um sujeito do qual gostei. Ele me impressionou. Achei-o uma
pessoa séria: Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia. Entrei em contato e passei a
trabalhar com ele. Porém, eu atuava no Rio de Janeiro e ele em Salvador. Eu
fazendo pesquisas e escrevendo cartas para ele, dando palpites sobre orientação,
essas coisas todas. Quando foi em 198S, aproximava-se a questão da Consti-
tuinte, assim achei melhor me desligar do Grupo Gay da Bahia no sentido de
criar um grupo no Rio. Foi assim que nasceu o Triângulo Rosa.
Mott — Atualmente, sou o homossexual que durante mais tempo, ininterrupta-
mente, participa do movimento. Antes era o João Antônio Mascarenhas, que
considero uma personalidade importantíssima, apesar de sua personalidade
elitista, do seu perfeccionismo... Mas é muito generoso! Ele deu uma contri-
buição fundamental na organização do Grupo Gay da Bahia, assim como em
outras atividades do movimento homossexual.

As propostas encaminhadas pelo GGB e pelo Triângulo Rosa, na década de 1980,


já haviam sido discutidas e aprovadas n o i Egho e EBHO, assim como nas prévias do
li Egho, mas ambos os grupos destacaram-se exatamente por levá-las adiante.
O GGB foi o primeiro grupo a p ô r em prática, em 1981, a campanha pela
retirada da homossexualidade do Código de Classificação de Doenças do Instituto
Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS), assumindo a sua co-
ordenação e encaminhamento concreto. A mudança foi sancionada pelo Conselho
Federal de Medicina em 1985. Foi uma campanha marcante por ter mirado uma das
raras instâncias em que se discriminava oficialmente a homossexualidade no Brasil
e, dessa forma, ter questionado a associação entre homossexualidade e doença que
voltava com força devido à Aids. C o m o contou M o t t :

A partir de 1981, começamos a campanha nacional. Conseguimos 16 mil


assinaturas, assim como o apoio de políticos importantes: Franco Montoro,
Ulisses Guimarães, Darcy Ribeiro, entre outros; e o apoio de cinco associações
científicas — a favor da despatologização da homossexualidade —, que finalmente
redundou na principal vitória do movimento homossexual até agora. Em 198S,
o Conselho Federal de Medicina retirou a homossexualidade da Classificação
de Doenças. Internacionalmente, esta alteração pela Organização Mundial de

• i 2i •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Saúde só ocorreu em 1994. Nesse sentido, o Brasil se antecedeu em vários anos


a essa conquista internacional.

O GGB e o Triângulo Rosa encabeçaram outra importante campanha na


década, j u n t o à Assembleia Constituinte, pela inclusão da proibição de discrimi-
nação p o r "opção sexual", posteriormente renomeada de "orientação sexual", na
Constituição. Por ocasião dessa campanha, temas inéditos, referentes à homosse-
xualidade, foram debatidos no Congresso Nacional, e João Antonio Mascarenhas
falou aos parlamentares na condição de ativista gay.

Em 1987 o Triângulo Rosa conseguiu ir à Câmara Federal, ao Congresso


Nacional Constituinte. Lá, fiz exposição a duas subcomissões. O assunto foi
levado a plenário e fomos derrotados... A última votação na Assembleia Na-
cional Constituinte foi em fevereiro de 1988. Fui à Brasília. Nunca um ativista
gay tinha entrado no Congresso Nacional como tal. Muito menos para fazer
uma exposição e ser sabatinado pelos parlamentares. Isso foi um escândalo!
Houve a votação no início de 1988. Fomos derrotados. Nos fins de fevereiro
e princípios de março de 1988, saiu o primeiro projeto da Constituição Fede-
ral. Por essa época, eu me afastei do grupo Triângulo Rosa. Depois retomei
quando se aproximava a Revisão Constitucional. Porém, dizia que voltaria

Integrantes do Triângulo Rosa com a travesti Laura deVison.

' 122 '


NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

até terminar a revisão, qualquer que fosse o resultado. Na revisão, também


fomos derrotados. Desta vez não houve esse sucesso de escândalo. Com esse
nosso trabalho, não conseguimos ser contemplados na Constituição Federal,
mas conseguimos em duas Constituições estaduais: a de Sergipe e a de Mato
Grosso; e em 27 leis orgânicas municipais, inclusive do Rio de Janeiro, São
Paulo e Salvador.

Muitas das características organizacionais do GGB e do Triângulo Rosa são


consideravelmente distintivas em relação às organizações anteriores de maior
expressão. Em primeiro lugar, f o r a m grupos mais coesos, reunidos cada qual
e m t o r n o de u m a liderança reconhecida, carismática, inteligente, articulada e,
não menos i m p o r t a n t e , dotada dos recursos simbólicos e materiais efetivamente
capazes de fazer avançar metas e objetivos mais claramente definidos e circuns-
critos. Esse tipo d e organização nunca o p e r o u e n t r e o Somos-sp, por exemplo.
M e s m o no período final, quando o Somos m a n t e v e uma sede e tentou pôr em
prática várias atividades políticas e culturais, não havia entre os militantes novos
e remanescentes ninguém que pudesse se valer dos mesmos atributos de lide-
rança encontrados nos outros dois grupos e m tela. N o Somos-sp da última fase,
as iniciativas de aglutinar mais pessoas esbarraram severamente nas modestas
condições materiais dos seus participantes. O Galf também enfrentou dificuldades
para manter suas despesas com o aluguel de sua sede e com a edição do boletim
Chanacomchana. Vários expedientes f o r a m usados para arrecadar fundos, tais
c o m o festas, bingos e churrascos, mas o lucro proporcionado f r e q ü e n t e m e n t e
não bastava, de m o d o que algumas militantes e m melhores condições financeiras
acabavam pagando do próprio bolso.
O GGB, por sua vez, não apenas privilegiava a conquista de espaços físicos
mais adequados às atividades que desenvolvia, t e n d o e m vista seu crescimento e
fortalecimento, c o m o t a m b é m estava e m condições de implementar essas preocu-
pações . C e r t a m e n t e estava e m jogo aqui a importância de aumentar a visibilidade
do grupo. Mas o GGB antecipava t a m b é m u m a situação que posteriormente se
tornaria regra dos anos 1990 em diante: para executar projetos b e m delimita-
dos, qualquer grupo ou associação deveria contar com uma certa infraestrutura
própria, chamada de "capacidade instalada". C o m o relata Luiz Mott a respeito
da importância da sede para o grupo:

• I 2 3 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

O grupo inicialmente se reunia na minha casa. Depois conseguimos a sede do


grupo anarquista, no centro de Salvador, num lugar chamado Relógio de São
Pedro. Nós nos reunimos todos os domingos, dez, quinze, vinte pessoas ou até
mais. Depois de alguns anos funcionando na sede do grupo anarquista, tivemos
possibilidade de comprar uma quitinete no centro de Salvador, na praça Castro
Alves, a partir de então o grupo passou a funcionar nesse local. O nosso pequeno
arquivo foi transferido para lá. Nessa pequena sede o GGB funcionou talvez cinco
ou oito anos. Tivemos que enfrentar vários problemas com a discriminação da
vizinhança, mas nesse pequeno espaço conseguimos reunir vinte, trinta pessoas.
Em 1988 ou 1989, tivemos oportunidade de comprar um espaço maior. O
primeiro andar de um casarão histórico. É um espaço bem mais confortável,
com sessenta cadeiras, um arquivo, um sanitário. Montamos o Centro Cultural
Triângulo Rosa. O GGB passou a ter mais espaço, com um local para fazer expo-
sições. Já fizemos inúmeras exposições de gravuras, de fotografia. Realmente
já é um Centro Cultural conhecido em Salvador.

O GGB foi pioneiro também em obter registro c o m o sociedade civil sem fins
lucrativos como agremiação de homossexuais, em janeiro de 1983. O Triângulo
Rosa valeu-se desse precedente e foi t a m b é m oficializado, no Registro Civil de
Pessoa Jurídica, em fevereiro de 1985.
O u t r a distinção está na prioridade concedida ao estabelecimento de relações
com o movimento internacional. João Antônio Mascarenhas, ainda durante a
existência do Lampião, esteve na conferência da então International Gay Asso-
ciation (IGA), posteriormente renomeada c o m o International Lesbian and Gay
Association (ILGA), que ocorreu em abril de 1980 na Itália. Pouco depois de seu
registro civil oficial, o Triângulo Rosa filiou-se à ILGA.
A pesquisa de Cristina Luci Câmara da Silva sobre o Triângulo Rosa t r o u x e
relatos de participantes que passaram por experiências anteriores de ativismo e
assinalam as diferenças em relação ao que vivenciavam no novo grupo.

Pedro — O Somos-Rj discutia assuntos psicossociais. Por exemplo: o "homossexual"


e a família. Era como uma psicoterapia de grupo sem terapeuta, eram trocadas
vivências e experiências. Hoje está na moda se chamar este tipo de grupo de "grupo
de autoajuda". O Triângulo Rosa, por sua vez, não discutia de maneira central as

24-
NA TRILHA DO ARCO-LRIS

questões pessoais. Tratava das questões externas: políticas, leis, fatos acontecidos
com outras pessoas. Seu caráter político era, talvez, a grande diferença.
Rosa — Tinha uma discussão diferente, talvez pelo fato desse primeiro momento
histórico já ter acontecido, ou seja, o Lampião, os primeiros grupos e tal. O
Triângulo Rosa não discutia a discriminação interna de cada um, discutia a ques-
tão mais social, política. O enfoque era basicamente este, a atuação foi política,
visava diminuir a discriminação via a política — partidos políticos, instituições,
organizações da sociedade civil, era a OAB, era participar da alteração do Códi-
go de Ética do Jornalista, participar da elaboração da Constituição Federal. A
preocupação era muito diretamente política. 3

Nesses depoimentos, pode-se observar que ambos os entrevistados con-


t r a p õ e m a idéia d e "política" à de "autoajuda". A m b o s descaracterizam o caráter
político do m o d o de atuação dos primeiros grupos. O sentido dado à palavra
"política" é e x t r e m a m e n t e diferente nos dois m o m e n t o s .
Para muitos dos militantes da primeira onda, havia u m traço radicalmente
político nas "reuniões de reconhecimento", que f o r a m , por bastante t e m p o , a
principal atividade cotidiana no Somos-sp e e m outros grupos semelhantes. Essas
reuniões deveriam ser a base sobre a qual se poderia tomar contato com a expe-
riência concreta de homossexualidade e a própria experiência de discriminação
e violência pelos relatos pessoais dos participantes, seguindo a mesma lógica do
feminismo, que afirmava uma politização do cotidiano com o slogan "o pessoal é
político". Nessas reuniões, era criada e consolidada a identidade de homossexual
militante. Do ponto de vista dos militantes da época, a idéia de uma transformação
social ampla construída a partir da intimidade e do cotidiano era muito forte.
O s depoimentos citados não r e c o n h e c e m mais essa concepção de política.
A política para eles tem um sentido mais pragmático e menos ancorado nas ex-
periências e vivências pessoais dos próprios militantes. A política é referida prin-
cipalmente por meio da atuação institucional segundo objetivos b e m definidos.
Para diminuir a discriminação contra os homossexuais, o caminho privilegiado
passou a ser a ação junto ao Legislativo e ao Judiciário, perseguindo a mudança
dos códigos e das leis.
Além disso, os depoimentos citados parecem t a m b é m t o m a r a identidade
homossexual c o m o algo já dado, seja p o r se p e r c e b e r e m para além da necessidade

• I2S •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

de uma atividade de autoajuda ou por e n t e n d e r e m que tal identidade já tivesse


sido construída pelo trabalho dos grupos anteriores. Dava-se mais ênfase aos
aspectos positivos e legítimos da homossexualidade, c o m o ilustra u m dos lemas
preferidos do GGB: "É legal ser homossexual".
Nessa mudança de orientações políticas, é significativa a introdução do con-
ceito de "orientação sexual", que passa a ocupar o lugar de "opção" no discurso
da militância. Os "entendidos" cariocas estudados p o r C a r m e n Dora Guimarães,
no começo dos anos 1970, usavam o t e r m o "opção" para ressaltar que a homos-
sexualidade era "uma prática que todo m u n d o faz", uma experiência que poderia
ser assumida de forma mais ou menos aberta c o m o uma "transa sexual" legítima
por qualquer pessoa. "Opção" se opunha a "anormalidade" e se ligava à atitude
de rejeição das categorias classificatórias tidas c o m o estigmatizadoras ("bicha",
"veado" e até m e s m o "entendido"), no sentido de enfatizar que "a vida social,
não-sexual" de quem tinha práticas homossexuais "era igual à de t o d o mundo".
Seguindo Edward MacRae, observamos uma certa ambigüidade no m o v i m e n t o
homossexual da primeira onda e m relação à categorização da homossexualidade
que se expressava na sua definição ora c o m o "opção", ora c o m o "essência", assim
como na oscilação entre a defesa de seu caráter absolutamente normal, cotidiano
e corriqueiro e a apologia a seus aspectos contestatórios, a sua marginalidade.
Durante o processo de elaboração e de defesa da inclusão da não-discrimina-
ção da homossexualidade na Constituição, os militantes envolvidos, consultando
acadêmicos e profissionais de várias áreas, chegaram a u m consenso pela utiliza-
ção da expressão "orientação sexual". A partir dessa utilização, a polêmica entre
homossexualidade como "opção" ou c o m o "essência" deixa de estar tão presente
no cotidiano dos grupos. "Orientação sexual" era u m a solução de consenso que
permitia conferir concretude e legitimidade à experiência da homossexualidade,
sem necessariamente entrar em questão sobre suas causas mais profundas, ainda
que tenda muitas vezes a reanimar a ênfase em explicações a partir de uma "es-
sência", inata ou revelada em tenra idade.
D e outra parte, com a atuação mais pragmática por parte dos grupos ou
associações em favor dos direitos civis, a ambigüidade e n t r e a legitimidade da
homossexualidade e a valorização de sua face "marginal" tendeu a se desfazer.
Em seu lugar, verifica-se uma tendência de depurar a homossexualidade de seus
aspectos "marginais" de m o d o a dotá-la de uma imagem pública respeitável, o que

• 1 2 6 -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

excluía uma parte significativa das vivências a ela relacionadas. Isso se revelou,
por exemplo, n o discurso proferido por João Antonio Mascarenhas no plenário
da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, citado pela pesquisadora Cristina
Câmara da Silva. Nele, Mascarenhas criticava o preconceito da mídia, que não
fazia distinção entre o "homossexual" e o "travesti", e m t e r m o s que repetiam a
posição que expressara anos antes, no Lampião:

Os programas de rádio, especialmente os programas de televisão e os programas


do chamado teatro-revista, em geral, exibem o que eles resolveram construir,
elaborar como protótipo do homossexual brasileiro... O homossexual aparece
como um travesti ou quase isso. Enfim, aparece imitando uma mulher, e uma
mulher vista pelo ângulo machista.
Na imprensa, o preconceito também é freqüente e algumas vezes de forma
velada... Estabelece uma falsa sinonímia, por exemplo, entre "homossexual" e
"travesti-prostituto"... Frisa a homossexualidade de um delinqüente, quando
a orientação sexual desse não tem nada a ver com o delito. Induz, gratuita e
erroneamente, uma vinculação pretensamente automática entre a homossexua-
lidade e o submundo, especialmente com a prostituição e o tráfico de drogas,
quando, no corpo da notícia, nada existe que corrobore a afirmação.

O Triângulo Rosa optou por não trabalhar prioritariamente com a luta contra
a Aids. A forte associação de caráter negativo e n t r e a Aids e a homossexualidade,
que teve lugar logo no início da epidemia, parecia por demais conflitante c o m
a busca de legitimidade para a homossexualidade, tão presente na proposta de
atuação mais legislativa que predominou nesse grupo. N o entanto, o GGB e o Atobá
— o u t r o novo grupo, criado e m 1986, n o Rio de Janeiro — conseguiram conjugar
essa relação entre legitimidade da homossexualidade e atuação contra a epidemia.
Ambos aparecem, em d o c u m e n t o s e na bibliografia sobre a construção de u m a
resposta coletiva à Aids, como t e n d o u m a atuação destacada nesse sentido.
Q u a t r o encontros nacionais d e grupos homossexuais foram realizados entre
1984 e 1991. Neles toma parte u m n ú m e r o reduzido de grupos, entre cinco e
seis, a maioria proveniente do N o r d e s t e , entre eles o GGB e o Adé-Dudu, da
Bahia; Dialogay, de Sergipe; e o M o v i m e n t o Antônio Peixoto, de Pernambu-
co, este destinado à prevenção da Aids e ao auxílio a soropositivos. Do Rio,

• 1 2 7 *
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

comparecem o Atobá e o Triângulo Rosa, que praticamente deixa de funcionar


após a saída de Mascarenhas, em 1988. O único grupo paulista a freqüentar os
encontros nesse período foi o Galf, que posteriormente deu origem à Rede de
Informações U m O u t r o Olhar. A quantidade de grupos presentes aos encontros
não necessariamente reflete o n ú m e r o de grupos existentes no Brasil. Mas, cer-
tamente, a disponibilidade para a ida a um encontro e m outro estado, p o r vezes
distante, é um sinal de vitalidade de u m grupo. Percebe-se, assim, o destacado
papel desempenhado pelo GGB e pelo Atobá, presentes a todos os encontros
realizados no período.
Novas metas de luta apareceram nesses encontros, como o combate pela
legalização do "casamento gay", por um tratamento positivo da homossexualidade,
a denúncia da violência contra homossexuais e a preocupação com a discriminação
religiosa. Em todos eles, a luta contra a Aids recebeu destaque especial.

As respostas à Aids

Em 1982, os primeiros doentes de Aids foram identificados no Brasil: dois


rapazes c o m sarcoma de Kaposi que tinham estado r e c e n t e m e n t e nos Estados
Unidos. Em 1983, a m o r t e do estilista Marcus Vinícius Resende Gonçalves, o
Markito, aos 31 anos, deu ressonância à doença e ao m e d o por ela despertado.
Ainda nessa época, mesmo entre os ativistas homossexuais, a visão que predomina-
va era a de uma enfermidade confinada aos mais ricos e aos que tinham condições
de viajar ao exterior. As insistentes conexões entre homossexualidade e Aids,
propagadas pelos médicos, reforçavam uma atitude crítica bastante arraigada
da militância contra o discurso de moralização e controle da medicina. A Aids
aparecia então c o m o mais u m "complô dos médicos". C o m o recordou Edward
MacRae a Cláudio Roberto da Silva:

Em 1983, passei uma semana nos Estados Unidos. Quando cheguei a Nova York,
toda a defesa em nome do desbunde que li a respeito já não estava mais do mes-
mo jeito. As pessoas estavam preocupadas com obras assistenciais, acontecia o
oposto. Na imprensa gay americana se lia "A Festa Acabou". O movimento gay
estava todo voltado à questão da Aids. Então percebi que era uma coisa séria.

•128-
NA TRILHA DO ARCO-IRIS

Nesse período, uma das grandes posições defendidas pelo movimento homos-
sexual era questionar o discurso médico e a idéia do homossexual como doente
mental. Os médicos eram os propagadores de uma nova moral, não mais com
base teológica, mas com uma base médica que no final das contas percebía-
mos como totalmente preconceituosa. Havia um questionamento constante
da postura médica e não tínhamos a menor paciência para o seu discurso. No
Somos nunca se chamavam médicos para falar, no máximo as pessoas visitavam
o médico para curar uma gonorreia ou uma sífilis.
Quando voltei ao Brasil, a idéia era que se tratava de mais um complô médico.
A questão da Aids era vista como outra fórmula pseudocientífica para oprimir
os homossexuais, fazê-los retornar à margem. Muitos dos antigos militantes
defendiam esse parecer. Certamente, também teria tomado esta posição, mas
havia estado nos Estados Unidos e visto que o caso era sério. Os norte-ameri-
canos não estavam mais defendendo as antigas posições, então comecei a ver a
questão sob outro prisma. Assim, houve momentos em que ocorreram algumas
discordâncias entre eu e os militantes, mas eles eram pessoas inteligentes e logo
começaram a perceber os perigos que estavam correndo.

C o m o ressaltou Néstor Perlongher 4 , no calor da hora, a Aids surpreendeu o


universo do ativismo homossexual brasileiro n u m a situação paradoxal. Enquanto
grande parte dos grupos organizados existentes se desestruturava, acontecia u m a
expansão publicitária do espetáculo gay, fazendo aumentar inclusive a visibilidade
das travestis, não só nas ruas das cidades, mas t a m b é m na grande mídia, para
além do carnaval. A transexual Roberta Close, vedete do verão carioca de 1984,
o ano da campanha das Diretas Já, vivia o auge de sua consagração c o m o m o d e l o
de beleza feminina brasileira. Depois de estrelar o videoclipe da canção "Close",
sucesso do compositor popular Erasmo Carlos, seria a principal atração da edição
de maio da revista masculina Playboy. Em agudo contraste, n o verão de 1985,
quando a m o r t e do teatrólogo Luiz R o b e r t o Galizia abalou o m e i o intelectual
e artístico paulistano, a doença já estava instaurada c o m o realidade inexorável.
Na segunda metade dos anos 1980, verifica-se uma escalada de matérias sensa-
cionalistas na imprensa, que ecoam declarações abertamente preconceituosas
de algumas autoridades médicas e de políticos ligados a grupos religiosos, assim
c o m o aumenta de repercussão a crimes violentos contra gays e travestis 5 .

• 129 '
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

P e r l o n g h e r , vítima da Aids, q u e viria a falecer e m 1992, r e t r a t o u o peso da


chegada da doença e seu i m p a c t o s o b r e as propostas de liberação sexual, c o m o
u m anúncio d o " d e s a p a r e c i m e n t o da homossexualidade":

O que desaparece não é tanto a prática das uniões dos corpos do mesmo sexo
genital... mas a festa do apogeu, o interminável festejo da emergência à luz do
dia, no que foi considerado o maior acontecimento do século XX: a saída da
homossexualidade à luz resplandecente da cena pública, os clamores esplêndidos
do — diriam na época de Wilde — amor que não se atreve a dizer seu nome.
Não somente atreveu-se a dizê-lo, mas o tem gritado na vozearia do excesso.
Acaba, poder-se-ia dizer, a festa da orgia homossexual, e com ela termina-se
(não era, por sinal, sua expressão mais chocante e radical?) a revolução sexual
que sacudiu o Ocidente no decorrer deste acidentado século... Um declínio
tão manso que se a gente não olha bem não percebe: esse é o processo da ho-
mossexualidade contemporânea. Ela abandona a cena fazendo uma cena poética
e desgarrada: a da sua morte... Aos que agora sentimos esses acontecimentos
não pode escapar a sinistra coincidência entre um maximum (um esplendor) de
atividade sexual e a emergência de uma doença que utiliza os contatos entre
os corpos (e usou, no Ocidente, sobretudo dos contatos homossexuais) para
se expandir de forma terrificante, ocupando um lugar axial na constelação de
coordenadas do nosso tempo, em parte por se registrar aí a atraente (por ser
misteriosa e ambivalente) colusão de sexo e morte. 6

H o u v e , d e c e r t o , u m d e s l o c a m e n t o i m p o r t a n t e . A e p i d e m i a d e u ensejo
a u m a inusitada a p r o x i m a ç ã o e n t r e os ativistas h o m o s s e x u a i s e as a u t o r i d a d e s
m é d i c a s . C a b e ressaltar a i m p o r t a n t e participação d e pessoas q u e passaram
p e l o Somos e p e l o s o u t r o s g r u p o s d e São P a u l o , n o p r o c e s s o q u e fez surgir a
p r i m e i r a ONG-Aids brasileira, o G r u p o de A p o i o e P r e v e n ç ã o à Aids (GAPA),
na capital paulista, e m 1 9 8 5 , b e m c o m o a r e s p o s t a g o v e r n a m e n t a l configurada
n o p r o g r a m a estadual de São Paulo, o p r i m e i r o criado n o país. Sob a direção
d o m é d i c o P a u l o T e i x e i r a ( q u e tivera alguma p r o x i m i d a d e c o m o Somos-sp
n o s seus p r i m ó r d i o s ) , esse p r o g r a m a t o r n o u - s e u m r e f e r e n c i a l i m p o r t a n t e
d e o r i e n t a ç ã o n ã o d i s c r i m i n a t ó r i a e d e defesa dos direitos d o s afetados. D o
m e s m o m o d o , antigos m i l i t a n t e s d o Somos-RJ e d e o u t r o s g r u p o s cariocas ti-

• 1 3 0 -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

v e r a m p a p e l i m p o r t a n t e na f o r m a ç ã o da Associação Brasileira Interdisciplinar


d e Aids (ABIA) e d o G r u p o Pela VIDDA (Valorização, Integração e Dignidade
d o D o e n t e d e Aids), f o r m a d o m a j o r i t a r i a m e n t e p o r s o r o p o s i t i v o s . Em o u t r o s
estados da F e d e r a ç ã o f o r a m s e n d o c r i a d o s p r o g r a m a s similares, q u e c o n t a v a m
t a m b é m c o m a i m p o r t a n t e p r e s e n ç a d e g r u p o s organizados. P o r conta disso,
as iniciativas de p r e v e n ç ã o e c o n t r o l e da Aids n o s estados se a n t e c i p a r a m ao
G o v e r n o Federal. S o m e n t e e m 1988 c o n s o l i d o u - s e u m P r o g r a m a Nacional
de D o e n ç a s S e x u a l m e n t e Transmissíveis (DST)/Aids d e n t r o da e s t r u t u r a d o
M i n i s t é r i o da Saúde.
A pesquisadora Jane Galvão 7 c h a m o u o p e r í o d o q u e vai d e 1985 a 1989 de
"anos heroicos" da luta contra a Aids. Nesse p e r í o d o , as iniciativas da sociedade
civil contra a epidemia foram estruturadas em t o r n o de atuações mais pessoais q u e
institucionais, c o m o as d o Betinho ( H e r b e r t de Souza), o d o cartunista Henfll,
seu i r m ã o , e d o e x - g u e r r i l h e i r o H e r b e r t Daniel. O trabalho se dava e m bases
voluntárias, as entidades t i n h a m p o u c o acesso a recursos financeiros nacionais ou
internacionais, e a n o ç ã o de " p r o j e t o d e intervenção" n ã o estava desenvolvida.
N o final dos anos 1980, dois a c o n t e c i m e n t o s significativos apontaram u m a
articulação m a i o r das respostas da sociedade civil à epidemia e m â m b i t o nacio-
nal e internacional: o p r i m e i r o e n c o n t r o internacional de ONGs-Aids, realizado
e m M o n t r e a l , n o Canadá, e m 1989, c o m a criação do International Council of
Aids Services Organizations (ICASO) e os e n c o n t r o s para a criação de u m a r e d e
brasileira de ONGs-Aids, q u e passaram a se realizar a n u a l m e n t e a partir de 1989,
tornando-se eventos cada vez maiores e complexos. C o m o observou Jane Galvão,
depois d o vil E n c o n t r o , realizado e m Salvador, e m 1995:

De um primeiro encontro com menos de vinte entidades, onde todos os presentes


pagaram as suas próprias passagens, passa-se para um encontro com mais de cem
delegados com crachás, passagens e hospedagem pagos pelo encontro, pastas,
confecção de cartaz, programa etc. De encontros em que a pauta era de políticas
nacionais e de uma certa tentativa de definição do perfil das ONGs/Aids, passa-se
para encontros nos quais o que acontece são oficinas, mesas-redondas e painéis,
com os participantes enviando trabalhos que são selecionados para apresentação e
que, como comentou um participante do encontro de Salvador, têm a estrutura
de uma conferência de Aids e não de um encontro de ONGs/Aids.

• 131 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

N a virada dos anos 1990, verificou-se u m a u m e n t o expressivo nas notifica-


ções de casos de Aids. Nesse p e r í o d o , n o campo d o ativismo, intensificou-se a
participação d e o u t r o s m o v i m e n t o s sociais, c o m o os de m u l h e r e s e profissionais
d o s e x o , e d o setor privado, q u e iniciou atividades em parceria c o m ONGS. Sur-
giam t a m b é m organizações c o m o o G r u p o de Incentivo à Vida (GIV), f u n d a d o
e m São Paulo e m 1990, q u e enfatizava a sorologia positiva para o HIV c o m o u m
atributo relevante para a atuação política.
O c o n t e x t o político nacional nessa época era bastante c o n t u r b a d o . O presi-
d e n t e era F e r n a n d o C o l l o r de Mello, o país teve cinco Ministros da Saúde e n t r e
1990 e 1992, e a gestão n o P r o g r a m a Nacional foi m a r c a d a p o r c o n f r o n t o s c o m
as ONGS-Aids n o país, m o t i v a d o s p r i n c i p a l m e n t e pela veiculação d e campanhas
oficiais c o m slogans d o t i p o "Se você n ã o se c u i d a r , a Aids vai t e p e g a r " e "Eu
t e n h o Aids e v o u m o r r e r " . H o u v e t a m b é m i n c i d e n t e s internacionais, c o m o
c o n f r o n t o s c o m a O r g a n i z a ç ã o M u n d i a l da Saúde (OMS) a r e s p e i t o da partici-
pação d o Brasil n o p r o j e t o p a r a testes d e vacinas anti-Hiv. P o r o u t r o lado, e m
1990 foi posta e m prática a decisão de distribuição gratuita de m e d i c a m e n t o s
antirretrovirais na r e d e pública e, e m l 2 de d e z e m b r o (Dia M u n d i a l de Luta
c o n t r a a Aids) de 1991, pela p r i m e i r a vez u m P r e s i d e n t e da República fez u m
p r o n u n c i a m e n t o à nação s o b r e a e p i d e m i a .
Em 1992, f o r a m r e t o m a d o s os contatos d o Brasil c o m a OMS e c o m o P r o -
grama Global de Aids. N o ano seguinte, u m e m p r é s t i m o firmado e n t r e o Brasil e
o Banco Mundial para o P r o j e t o de C o n t r o l e da Aids e DST, q u e ficou conhecido
c o m o Aids 1, trazia c o m o novidade a inclusão da sociedade civil na i m p l e m e n t a ç ã o
de atividades. T e m início, assim, u m p e r í o d o m a r c a d o p o r diversas formas de
cooperação e n t r e ONGS e o P r o g r a m a Nacional de Aids, q u e alteraram substan-
cialmente não só o perfil d o p r o g r a m a , mas t a m b é m o c a m p o d e trabalho das
organizações da sociedade civil.

Epidemia de informação e aprendizado político

D o p o n t o de vista d o m o v i m e n t o homossexual, foi m u i t o i m p o r t a n t e e m


t o d o esse processo o fato de q u e a classificação de "grupos de risco" (que incluía
homossexuais, profissionais d o sexo e usuários de drogas injetáveis), questionada

• I 3 2 -
NA TRILHA DO ARCO-IRIS

p o r ser discriminatória, acabou se r e v e r t e n d o e m justificativa da importância de


traçar estratégias específicas para essas p o p u l a ç õ e s . A adoção d o princípio da
"educação p o r pares" possibilitou q u e os g r u p o s q u e tinham dificuldade de o b t e r
recursos passassem a ser financiados p o r agências de cooperação internacional e
p o r organismos g o v e r n a m e n t a i s .
M e s m o q u e esses f i n a n c i a m e n t o s n ã o t e n h a m criado u m a situação ideal
para o d e s e n v o l v i m e n t o de p r o j e t o s e atividades, f o r a m m u i t o i m p o r t a n t e s para
o f o r t a l e c i m e n t o d o m o v i m e n t o h o m o s s e x u a l , para a criação de associações
de profissionais d o s e x o e para o s u r g i m e n t o d e novas abordagens para antigas
questões, c o m o é o caso da r e d u ç ã o de danos sociais e à saúde associados ao uso
de drogas. O c o n c e i t o de "vulnerabilidade", articulando dimensões individuais,
sociais e p r o g r a m á t i c a s , foi u m a alavanca i m p o r t a n t e para angariar maior apoio
da sociedade civil à luta contra a Aids.
A importância dos r e c u r s o s vindos dos p r o j e t o s relacionados ao c o m b a t e ao
HIV-Aids foi m u i t o significativa para o r e f l o r e s c i m e n t o d o m o v i m e n t o homossexual
brasileiro. C o m o n o t o u James G r e e n :

Além de aumentar o n ú m e r o de pessoas que se envolveram no movimento,


buscando informação e apoio, o crescimento de ONGS voltadas à prevenção
do Hiv-Aids aumentou os recursos de infraestrutura do movimento. Grupos
aprenderam a pedir verbas tanto para os governos estadual e federal, quanto
para organizações internacionais. Esses recursos ofereceram a possibilidade
de alugar locais que também servem de ponto de reunião dos ativistas gays
e lésbicas. 8

Para além d o a p o i o o f e r e c i d o p e l o M i n i s t é r i o da Saúde, p o r m e i o d o


P r o g r a m a Nacional d e DST/Aids — seja na f o r m a de r e c u r s o s p a r a o desenvol-
v i m e n t o de p r o j e t o s f i n a n c i a d o s , seja na f o r m a de incentivos à organização
d o m o v i m e n t o e ao s e u e n g a j a m e n t o na l u t a c o n t r a a e p i d e m i a —, a eclosão
da Aids d e u e n s e j o a u m d e b a t e social s e m p r e c e d e n t e s acerca da sexualidade
e da h o m o s s e x u a l i d a d e , e m p a r t i c u l a r . E m q u e p e s e m o r a s t r o de m o r t e e
violência q u e a c o m p a n h o u seu a v a n ç o , a e p i d e m i a m u d o u d r a m a t i c a m e n t e
as n o r m a s da discussão pública s o b r e a s e x u a l i d a d e ao deixar t a m b é m , c o m o
legado, u m a a m p l i a ç ã o sem p r e c e d e n t e s da visibilidade e d o r e c o n h e c i m e n t o
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

da presença socialmente disseminada dos desejos e das práticas homossexuais.


Se a Aids propiciou u m a expansão d o p o d e r m é d i c o , apoiado na ressonância
da mídia, t a m b é m jogou luz s o b r e práticas e circunstâncias ligadas ao exercício

VULNERABILIDADE

O conceito de "vulnerabilidade" designa grupos ou indivíduos fragilizados, do


p o n t o de vista legal e político, na promoção, proteção ou garantia de seus direitos de
cidadania. Sua aplicação no campo da saúde pública visava ir além da abordagem da
prevenção focada na mudança do comportamento individual. Na trajetória dos esforços
d e combate à epidemia do Hiv-Aids, o conceito de"risco"foi central a princípio, levan-
d o à formulação das idéias de "grupo de risco" e "comportamento de risco". A partir
d o final da década de 1980, ganharam t e r r e n o estratégias de prevenção que levaram
e m conta a dimensão social e política mais ampla da epidemia, convertendo-a numa
questão capaz de afetar toda a coletividade. Assim, passou-se a pensar em termos de
maior ou menor vulnerabilidade de indivíduos e coletividades à infecção e adoecimento
pelo Hiv, distinguindo três níveis interdependentes: o c o m p o r t a m e n t o individual, o
contexto social e os programas ou políticas públicas de controle da epidemia.
A vulnerabilidade individual é afetada pelo grau de informação e consciência
d o problema e de acesso aos recursos necessários para adotar c o m p o r t a m e n t o s de
proteção. A vulnerabilidade social c o r r e s p o n d e a u m diagnóstico a partir de indi-
cadores internacionais de desenvolvimento social, que levam e m conta gastos com
serviços sociais e saúde, acesso a serviços de saúde, mortalidade infantil, situação
da mulher, situação das liberdades individuais e direitos de cidadania, a relação
e n t r e P r o d u t o Nacional Bruto e distribuição de renda, oferta de trabalho e outros
benefícios sociais. A vulnerabilidade programática é a interligação entre a dimensão
individual e social, t e n d o em vista o compromisso político com o controle da Aids,
a transformação d o compromisso e m ação, o incentivo a parcerias entre Estado e
sociedade civil e entre áreas de políticas públicas (saúde, educação, trabalho, direitos
humanos), b e m c o m o uma série de critérios de planejamento, gestão, avaliação e
sustentabilidade voltados a aperfeiçoar a execução dos trabalhos de prevenção.
Baseado e m : AYRES, José Ricardo et al. "Vulnerabilidade

e prevenção e m t e m p o s de Aids". In: BARBOSA, Regina e PARKER,

Richard (orgs.). Sexualidades pelo avesso. São Paulo, Ed.34, 1999.

• 1 3 4 -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

e à expressão da sexualidade, q u e d e i x a r a m a clandestinidade para adentrar o


d e b a t e público; que t a m b é m c o n t r i b u i u para reconsiderações p o r parte dos
antigos ativistas. C o m o e s c r e v e u João Silvério Trevisan:

A meu ver, o vírus da Aids realizou em alguns anos uma proeza que nem o mais
bem-intencionado movimento pelos direitos homossexuais teria conseguido,
em muitas décadas: deixar evidente à sociedade que homossexual existe e não
é o outro, no sentido de um continente à parte, mas está muito próximo de
qualquer cidadão comum, talvez ao meu lado e — isto é importante! — dentro
de cada um de nós, pelo menos enquanto virtualidade. [...] A sociedade passou
a debater amplamente argumentos a favor e contra sexo anal, sexo oral, per-
versões, quantidade de parceiros/as, uso da camisinha, sexo seguro e doenças
venéreas, métodos anticoncepcionais, casamento entre pessoas do mesmo
sexo, conveniência ou não da adoção de crianças em famílias não-padronizadas
etc. Deflagrou-se uma epidemia de informação, que não tem retorno porque
deixará marcas nas próximas gerações. 9

A epidemia Hrv-Aids teve u m t r e m e n d o efeito, afinal, não no desaparecimen-


to, mas na transfiguração da homossexualidade e n o a u m e n t o de sua visibilidade
multifacetada. Desenvolvimentos d e c o r r e n t e s da relação com as políticas estatais
de direitos h u m a n o s e c o n t r o l e de DST e Aids, b e m c o m o da vitalização do m e r -
cado segmentado, t e r ã o i m p a c t o na configuração do m o v i m e n t o homossexual
que se observa ao longo dos anos 1990, c o m o v e r e m o s a seguir.

• 1 3 s-
A bandeira do arco-íris:
o movimento LGBT atual

( ^ s m entrevista concedida em 1989, meses antes de falecer, vítima da


Aids, o cantor e c o m p o s i t o r Cazuza declarava q u e "hoje já se fala de h o m o s -
sexualismo d e uma maneira t o t a l m e n t e aberta". Em 1994, dois anos antes de
m o r r e r , t a m b é m vítima da Aids, o cantor e c o m p o s i t o r Renato Russo assumia
publicamente sua homossexualidade e lançava u m disco de canções em homena-
gem aos 25 anos da Revolta de Stonewall, destinando p a r t e do dinheiro da ven-
dagem para associações voltadas à luta pelos direitos homossexuais. Referências
da geração q u e passou a conviver com a Aids e m seus anos de plena juventude,
os dois artistas populares sublinhavam, com seus gestos, que a valorização da
atitude do "orgulho" e d e assumir-se p u b l i c a m e n t e estava de volta.
Em 1995, passava a circular a revista Sui Generis, a p r i m e i r a tentativa
em quase quinze anos — desde o final d o Lampião e da brevíssima Homo Plaj-
guei, de Aguinaldo Silva — d e p r o d u z i r u m a publicação voltada ao público
h o m o s s e x u a l , que n ã o se limitasse a r e p r o d u z i r fotos eróticas e tratasse d e
c u l t u r a e c o m p o r t a m e n t o . " P r i d e São Paulo", m a t é r i a publicada no n ú m e r o
de j u n h o de Sui Generis, pelo jornalista A n d r é Hidalgo, passava a m e n s a g e m
do m o m e n t o :

. ,37 .
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Se você ainda não relaxou, aprenda a se divertir. Saia de casa desencanado, nem
ligue se vai ouvir desaforos de algum aleijo. Não dá mais para ficar se sentindo
'inferior'. Essa postura ficou para trás, em algum lugar dos anos 1980. Você
está nos anos 1990, meu bem. É tempo de gozar (com camisinha!). E sentir
orgulho disso!.

Sinal desses novos t e m p o s , o ativismo pelos direitos dos homossexuais


voltou a florescer nos anos 1990, quando os e n c o n t r o s nacionais passaram a
o c o r r e r c o m periodicidade mais f r e q ü e n t e , c o m a u m e n t o significativo d o nú-
m e r o de grupos presentes. Na década de 1990, formaram-se redes de grupos e
associações. Encontros específicos de mulheres homossexuais passaram a ocorrer
r e g u l a r m e n t e , a partir do p r i m e i r o Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE),

e m 1996. Travestis e, p o s t e r i o r m e n t e , transexuais f o r a m incorporadas ao m o -


vimento p o r meio do Encontro Nacional de Travestis e Transexuais que Atuam
na Luta contra a Aids (Entlaids), que v e m se realizando desde 1993.
O revigorado m o v i m e n t o LGBT a p r e s e n t a traços distintivos em relação
aos p e r í o d o s a n t e r i o r e s . Alguns desses traços, identificados p o r Regina Fac-
chini na virada do século, c o n t i n u a m válidos para p e n s a r suas características
atuais: p r e s e n ç a m a r c a n t e na mídia; ampla p a r t i c i p a ç ã o e m m o v i m e n t o s
de direitos h u m a n o s e de resposta à e p i d e m i a da Aids; vinculação a r e d e s e
associações internacionais de defesa d e direitos h u m a n o s e direitos de gays e
lésbicas; ação j u n t o a p a r l a m e n t a r e s c o m p r o p o s i ç ã o d e p r o j e t o s de lei nos
níveis federal, estadual e municipal; atuação j u n t o a agências estatais ligadas
a p r e v e n ç ã o de DST e Aids e p r o m o ç ã o de direitos h u m a n o s ; f o r m u l a ç ã o
de diversas respostas diante da exclusão das organizações religiosas; criação de
redes de g r u p o s ou associações e m â m b i t o nacional e local; e organização
de eventos de rua, c o m o as grandes m a n i f e s t a ç õ e s realizadas p o r ocasião do
dia do O r g u l h o LGBT.

Do ponto de vista do formato organizacional, passa a preponderar quase


definitivamente o modelo das ONGS, que levou À contenção do n ú m e r o de m e m -
bros efetivos; criação de estruturas formais de organização interna; elaboração de
projetos de trabalho em busca de financiamentos; necessidade d e apresentação
de resultados; necessidade de expressar claramente objetivos e objetos de inter-
venção ou de reivindicação de direitos; profissionalização de militantes; maior

• 138 *
NA TRILHA DO ARCO-IRIS

capacidade e necessidade de comunicação e dependência de estruturas, c o m o


sede, telefone, endereço eletrônico, c o m p u t a d o r ; necessidade de integrar os
militantes n u m discurso pragmático; adoção de técnicas de dinâmica de grupo
em reuniões e atividades; preocupação em t e r quadros preparados para estabe-
lecer relações com a mídia, parlamentares, técnicos de agências governamentais
e associações internacionais.
O impacto da diversificação de f o r m a t o s institucionais e da ampliação
da rede do m o v i m e n t o p o d e ser apreciado nas relações e n t r e ativistas LGBT e
os partidos políticos. Essa relação deixou de ser m a r c a d a apenas por contatos
pontuais e eventualmente conflituosos, tal c o m o acontecia na virada da dé-
cada de 1970 para 1980. A partir da r e d e m o c r a t i z a ç ã o , os partidos t a m b é m
se converteram e m canais para t o r n a r visíveis as demandas do m o v i m e n t o e
articulá-las politicamente. N o s anos 1990, já havia setoriais LGBT no PT e no
PSTU; e, nos anos 2 0 0 0 , c o m e ç a r a m a se organizar setoriais e ações de políticas
públicas e de parlamentares, b e m c o m o candidaturas LGBT, em vários o u t r o s
partidos. E m b o r a as d e m o n s t r a ç õ e s mais expressivas de r e c o n h e c i m e n t o das
questões LGBT, nas políticas públicas e nos p r o g r a m a s de governo, apareçam
s o m e n t e nos anos 2 0 0 0 , verifica-se antes u m a progressiva construção da legi-
timidade das temáticas LGBT nos partidos, a qual se intensifica nos anos 1990.
A proposição do p r o j e t o d e lei sobre a união civil e n t r e pessoas do m e s m o
sexo, e m 199S, é u m m a r c o das primeiras conquistas dessa articulação LGBT

pela via partidária.


Papel central n o processo de m u d a n ç a mais amplo observado n o movi-
m e n t o foi d e s e m p e n h a d o pela intensificação das relações dos grupos e associa-
ções com o Estado, p o r m e i o dos financiamentos provenientes dos programas
governamentais d e c o m b a t e a DST e Aids, q u e n ã o só alimentam p r o j e t o s
específicos articulados e e x e c u t a d o s pelas organizações do m o v i m e n t o , c o m o
t a m b é m patrocinam a realização de seus e n c o n t r o s nacionais. De outra parte,
t ê m sido m u i t o i m p o r t a n t e s t a m b é m as c o n e x õ e s renovadas do m o v i m e n t o
c o m o crescente m e r c a d o s e g m e n t a d o dirigido ao público homossexual, de-
senhando u m a estratégia de ação que parece t o r n a r mais porosas as fronteiras
e n t r e a diversão, o c o m é r c i o e a militância. E x p l o r a r e m o s um pouco mais,
n e s t e capítulo, as conexões com o Estado e c o m o m e r c a d o na configuração
d o atual m o v i m e n t o LGBT.

' 139 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Conexões com o Estado: expansão e segmentaçao

C o m a entrada e m cena do Banco Mundial como financiador de projetos


na área da saúde, o Programa Nacional de DST e Aids entrou n u m novo ritmo
de desenvolvimento. Em 1994, o Brasil assinou um primeiro acordo com o
banco, o chamado Aids I, que vigorou até 1998, com incentivos à participação
das ONGS na formulação e implementação das políticas nacionais nesta área. Um
segundo acordo, Aids II: Desafios e Propostas, executado entre 1998 e 2002,
t o m o u c o m o eixos norteadores a descentralização e a sustentabilidade. A partir
de 2001, u m a nova expressão, a Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público (OSCIP), passou a aparecer em documentos do Ministério da Saúde e nas
discussões das ONGS, c o m o f r u t o de discussões sobre o marco legal para o "setor
sem fins lucrativos", materializando-se nos incentivos ao trabalho voluntário e na
liberação de obrigações trabalhistas e previdenciárias. Seguiu-se então o acordo
do Aids III, que vigorou até 2006.
Desde o estabelecimento desses acordos, o Programa Nacional de DST e Aids
passou a financiar projetos voltados a "homens que fazem sexo c o m homens",
ou HSH. Essa nova categoria era parte da estratégia epidemiológica que visava
garantir o acesso a atividades de prevenção aos que não se reconheciam por
m e i o das categorias de identidade sexual. Ao m e s m o tempo, buscava incentivar
a adesão a u m a identidade gay por meio da "educação por pares", a ser realizada
p o r militantes do m o v i m e n t o homossexual, procedimento que as experiências
internacionais indicavam ser capaz de reduzir a vulnerabilidade dos que man-
tinham práticas homossexuais. A categoria HSH foi incorporada pelos ativistas
homossexuais nas práticas de prevenção à Aids, mas não sem críticas. Luiz M o t t ,
p o r exemplo, deplorava o t e r m o :

Não sensibiliza nem os "homens" que transam com gays e travestis, que
não consideram seus parceiros "homens", mas "bichas", deixando de atingir
igualmente boa parcela das próprias bichas e travestis, que não se identificam
como "homens". 1

Críticas como essa expressavam, também, um t e m o r de que os gays saís-


sem do foco das ações de prevenção. Seja como for, os projetos financiados para

• 140 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

HSH representaram, talvez, a principal fonte de recursos para o m o v i m e n t o nos


período recente. U m a avaliação retrospectiva desses projetos pela Coordenação
Nacional de DST e Aids, em 2002, ressaltou o seguinte:

No período de 1994-1998 (Aids 1) o total de projetos de ONG direcionados aos


HSH, apoiados pela CN-DST/Aids, foi de apenas 5% (28 projetos de SS9 implanta-
dos no período), tendo sido executados por dezessete instituições. [...] A partir
da implementação do Aids 11 ( 1 9 9 9 - 2 0 0 2 ) , observa-se significativa alteração
desse quadro, com aumento expressivo do número de projetos encaminhados
para as concorrências públicas e pelo aprimoramento da qualidade técnica
das propostas recebidas. Um dos elementos que propiciou tal alteração foi a
implantação, em 1999/2000, do Projeto Somos, direcionado para a formação
e capacitação de lideranças e grupos homossexuais em três regiões brasileiras
(Sul, Sudeste e Nordeste). No período de 1999 a outubro de 2001, identifica-se
a execução de 91 projetos de ONGS, apoiados pela CN-DST/Aids e direcionados
aos HSH, podendo também ser registrado significativo aumento da participação
das ONGS no que se refere ao envio de propostas para ações junto aos HSH nas
concorrências públicas realizadas no período de março e novembro de 2000 e
agosto de 2001, com 31, 23 e 94 propostas, respectivamente. 2

O Projeto Somos, acima citado — cujo n o m e é uma homenagem declarada


ao grupo Somos-SP, da primeira onda —, foi proposto pela ABGLT. Sua meta inicial
era apoiar 2 4 novos grupos. Atualmente, segundo informações disponíveis na
página da ABGLT, O Projeto Somos expandiu-se bastante, envolvendo 270 grupos
e m todo o país.
Mesmo que n o período do Aids I tenha havido poucas propostas voltadas
para os HSH, O p r ó p r i o programa colaborou bastante para que o m o v i m e n t o
homossexual se organizasse e assim se tornasse possível u m a u m e n t o expressivo
n o n ú m e r o de projetos encaminhados às concorrências na vigência do Aids 11.
Embora no primeiro período essa colaboração ainda não tivesse sido ampliada p o r
m e i o da seleção e do financiamento de propostas vindas de grupos do movimento
homossexual — que, na maior parte, ainda não tinham condições de apresentar
projetos com a qualidade técnica exigida —, os financiamentos para encontros cum-
priram o importante papel de intensificar o contato entre as entidades existentes,

• 141 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

p r o m o v e r trocas de i n f o r m a ç õ e s e experiências e incentivar a f o r m a ç ã o de novas


entidades. Cabe n o t a r q u e esses e n c o n t r o s , assim c o m o aqueles organizados pelo
p r ó p r i o m o v i m e n t o , a n t e r i o r m e n t e citados, r e c e b e r a m n ã o só r e p r e s e n t a n t e s
de g r u p o s e associações, mas t a m b é m de outras pessoas interessadas, muitas das
quais se engajaram na f o r m a ç ã o d e novas entidades.
A incorporação das travestis foi t a m b é m alvo desse investimento dos progra-
mas estatais de DST e Aids. Em 1993 e 1994 haviam sido realizados dois e n c o n t r o s
de "Travestis e Liberados" relacionados inicialmente c o m as atividades desen-
volvidas pela Associação d e Travestis e Liberados (ASTRAL), d o Rio d e Janeiro.
C o m o s u r g i m e n t o de novas associações de travestis, esses congressos passaram a
o c o r r e r e m outras cidades d o país e foram d e n o m i n a d o s Encontros de Travestis e
Transexuais q u e Atuam na Luta e Prevenção à Aids, m a n t e n d o a sigla Entlaids. Já
f o r a m realizadas catorze edições d o Entlaids, nas quais representantes d e travestis
e transexuais t ê m reivindicado mudanças nas ações de segurança pública e acesso
à educação e ao m e r c a d o de trabalho, além de d e b a t e r e m questões relacionadas
aos serviços de saúde. Organizações de travestis estiveram representadas pela
p r i m e i r a vez n o m o v i m e n t o p o r ocasião d o vil E n c o n t r o Nacional de Gays e
Lésbicas de 1995, realizado e m Curitiba. A partir daí, o t e r m o "travestis" foi
i n c o r p o r a d o ao n o m e dos f u t u r o s e n c o n t r o s nacionais.
D e s d e 1 9 9 2 , vinha o c o r r e n d o u m a u m e n t o da participação de g r u p o s
e x c l u s i v a m e n t e lésbicos nos e n c o n t r o s nacionais d o m o v i m e n t o . O vi Encon-

XIV Entlaids, junho de 2007, São Paulo.

• 1 4 2 •
NA TRILHA DO ARCO-IRIS

t r o , r e a l i z a d o n a q u e l e a n o n o R i o de J a n e i r o , t e v e a p r e s e n ç a de dois g r u p o s
lésbicos. O vil E n c o n t r o , e m C a j a m a r (SP), passou a incluir o t e r m o "lésbicas"
n o seu n o m e , t e n d o c o n t a d o c o m a participação d e q u a t r o g r u p o s lésbicos,
t o d o s t a m b é m d e São P a u l o . E m 29 d e agosto d e 1996, foi realizado n o R i o
d e J a n e i r o o p r i m e i r o S e m i n á r i o Nacional de Lésbicas (SENALE), a p a r t i r d e
iniciativa d o C o l e t i v o d e Lésbicas d o Rio de J a n e i r o (COLERJ). D e s d e e n t ã o ,
f o r a m realizadas seis e d i ç õ e s d o Senale. A data d o p r i m e i r o Senale foi consa-
g r a d a c o m o D i a N a c i o n a l da Visibilidade Lésbica.
A articulação c o m a C o o r d e n a d o r i a Nacional de DST e Aids foi f u n d a m e n t a l
t a m b é m para a ampliação da visibilidade e da organização das lésbicas. O p r i m e i r o
Senale r e s u l t o u da a p r o x i m a ç ã o d e lideranças lésbicas - até então dispersas, e m
sua m a i o r i a , e m g r u p o s mistos ( f o r m a d o s p o r gays e lésbicas ou p o r feministas
e lésbicas) - da C o o r d e n a d o r i a Nacional, c o m vistas a o b t e r m a i o r visibilidade
política a p a r t i r d o r e c o n h e c i m e n t o da vulnerabilidade lésbica p e r a n t e a DST e
Aids. C o m o m o s t r o u a pesquisadora Gláucia Almeida, a d e m a n d a p o r saúde sexual
c o n t r i b u i u d e f o r m a decisiva para p r o d u z i r u m a identidade lésbica emancipada da
i d e n t i d a d e h o m o s s e x u a l , abrindo c a m i n h o para a e m e r g ê n c i a e o f o r t a l e c i m e n t o
d e lideranças e m â m b i t o nacional, o s u r g i m e n t o de novos g r u p o s e a progressi-
va a u t o n o m i z a ç ã o d o m o v i m e n t o d e lésbicas. A c o n e x ã o é enunciada de f o r m a
bastante clara p o r u m a ativista entrevistada p o r Gláucia Almeida, ao d i s c o r r e r
sobre os t e m a s q u e n o r t e a r a m o p r i m e i r o SENALE:

Saúde, visibilidade e organização, é a máxima do SENALE de 1996. Porque as três


coisas têm que andar juntas, porque se você não tem visibilidade, você não existe.
Eu estive conversando várias vezes com pessoas do Ministério da Saúde e eles
diziam: "não tem demanda, vocês não têm demanda", entendeu? Mas é porque
não tem visibilidade. Não tem demanda, não tem saúde. E não tem porque não
tem organização, porque você estava diluída dentro dos vários movimentos. 3

Fica e v i d e n t e , assim, u m i n v e s t i m e n t o especial d o P r o g r a m a Nacional de


DST e Aids j u n t o ao m o v i m e n t o h o m o s s e x u a l , ao longo dos anos 1990. E n t r e
1993 e 1998, e n t r e os 26 e n c o n t r o s que r e c e b e r a m recursos d o Ministério da
Saúde, o n z e destinaram-se a ONGs-Aids, pessoas vivendo c o m Aids e e n c o n t r o s
regionais destinados a u m público mais a m p l o ; nove (cerca de u m t e r ç o d o total

• > 4 3 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

de eventos apoiados) destinaram-se ao m o v i m e n t o homossexual; e os sete res-


tantes, a o u t r o s públicos específicos, c o m o m u l h e r e s , trabalhadores, prostitutas
e educadores. E m correlação, verificou-se nesse p e r í o d o u m salto n o n ú m e r o
de grupos p r e s e n t e s nos e n c o n t r o s nacionais do m o v i m e n t o , q u e passaram a
o c o r r e r p a r a l e l a m e n t e aos e n c o n t r o s nacionais de "gays, lésbicas e travestis que
trabalham c o m Aids", c o m o se p o d e ver na tabela a seguir 4 :

N° de
Ano Encontro Local
grupos
1980 i Encontro Brasileiro de Homossexuais São Paulo-sp 08
1984 n Encontro Brasileiro de Homossexuais Salvador-BA 05
1989 iii Encontro Brasileiro de Homossexuais Rio de Janeiro-Rj 06
1990 iv Encontro Brasileiro de Homossexuais Aracaju-SE 06
1991 v Encontro Brasileiro de Homossexuais Recife-PE 06
1992 vi Encontro Brasileiro de Homossexuais Rio de Janeiro-Rj 11
1993 vn Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais Cajamar-sp 21

i Encontro Brasileiro de G a y s e Lésbicas que Trabalham


1995 Curitiba-PR 84
com Aids e vm Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas

II Encontro Brasileiro de G a y s e Lésbicas que Trabalham


1997 com Aids e ix Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e São Paulo-sp 52
Travestis

O a n o de 1 9 9 5 foi m a r c a d o p o r dois e v e n t o s significativos: o vm E n c o n -


t r o Brasileiro de Gays e Lésbicas, e m C u r i t i b a , q u a n d o se d e u a f u n d a ç ã o da
ABGLT, e a realização da 17 a C o n f e r ê n c i a Internacional da I n t e r n a t i o n a l Lesbian
a n d Gay Association (ILGA), n o Rio d e J a n e i r o . O vm E n c o n t r o foi o p r i m e i r o
a ser f i n a n c i a d o c o m r e c u r s o s d o M i n i s t é r i o da Saúde, e q u e r e s e r v a v a u m a
p a r t e específica p a r a a discussão d e q u e s t õ e s ligadas ao Hiv-Aids, r e g i s t r a n d o
u m r e c o r d e de n ú m e r o de g r u p o s , c o m p r e s e n ç a de 8 4 e n t i d a d e s , e n t r e elas
3 4 g r u p o s gays o u m i s t o s , t r ê s g r u p o s e x c l u s i v a m e n t e lésbicos e t r ê s g r u p o s
d e t r a v e s t i s . R e a l i z a r a m - s e 2 6 oficinas e g r u p o s de t r a b a l h o s o b r e t e m a s
v a r i a d o s . O m a t e r i a l d e c o r r e n t e dessas atividades g e r o u u m r e l a t ó r i o d e
d u z e n t a s páginas, e m p o r t u g u ê s e inglês, o r g a n i z a d o p e l o g r u p o D i g n i d a d e ,
d e C u r i t i b a . A f u n d a ç ã o da ABGLT, durante o encontro, obteve considerável
apoio, mas não unanimidade5.
A Conferência da ILGA realizada n o Rio (a 17S de sua história) contou c o m cerca
d e 1.200 participantes. A lista de recursos obtidos por esse evento é ilustrativa da

• 144-
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

dimensão atingida pelas conexões d o m o v i m e n t o . Segundo os registros n o Guia


Oficial da Conferência, houve apoio d o Ministério da Saúde, p o r meio do Programa
Nacional d e DST e Aids; da Secretaria Estadual de Saúde d o Rio de Janeiro, por meio
da Divisão d e Controle de DST e Aids; dos sindicatos dos Bancários e Previdenciários,
ambos do Rio, e dos trabalhadores na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ;

d o C e n t r o d e Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ; de duas ONGS internacionais


ligadas à temática dos direitos h u m a n o s ; de q u a t r o empresas privadas e de quatro
associações brasileiras: a ABIA e o G r u p o Pela VIDDA (ONGs-Aids sediadas n o Rio); o
G r u p o Gay da Bahia (GGB) e o g r u p o Dignidade. D u r a n t e a conferência, aconteceu
a primeira Parada d o O r g u l h o LGBT celebrada n o Brasil.
Mais r e c e n t e m e n t e , o u t r o passo na direção d o f o r t a l e c i m e n t o das conexões
c o m o Estado foi dado c o m o l a n ç a m e n t o do P r o g r a m a Brasil Sem Homofobia, e m
2 0 0 4 . A p a r t i r d e 2 0 0 5 , algumas iniciativas d o p r o g r a m a c o m e ç a r a m a ser postas
e m prática, c o m os editais para a p r e s e n t a ç ã o de p r o j e t o s voltados ao c o m b a t e e
à p r e v e n ç ã o da h o m o f o b i a , incluindo a o f e r t a de aconselhamento psicológico e
assessoria jurídica; e à qualificação de profissionais de educação nas temáticas de
orientação sexual e i d e n t i d a d e d e g ê n e r o .

Corrida encerra a 17a Conferência Internacional de Gays e Lésbicas (Rio de Janeiro, 1995).

• J4Í *
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Nem tudo são flores e cores, p o r é m . Tensões decorrentes da disputa por


recursos e da hierarquização introduzida pelo acesso desigual aos meios fo-
mentadores da profissionalização de lideranças e da capacidade de articulação
política ficaram logo evidentes nos congressos realizados durante esse período,
irrompendo com marcada intensidade por ocasião do IX Encontro de Gays, Lés-
bicas e Travestis, ocorrido em São Paulo, em 1997. As acusações refletiam, em
parte, um m o m e n t o em que a execução de atividades financiadas no movimento
aparecia ainda como uma questão maldigerida, não só para as entidades que não
podiam (ou não queriam) receber financiamentos, como para boa parte das que
recebiam recursos, sobretudo os advindos dos trabalhos de prevenção à Aids.
Manifestaram-se também diversos focos de conflito entre as diversas identidades
que compunham o movimento. Pulularam acusações de "misoginia gay" e de "an-
drofobia lésbica". Gays foram acusados de promiscuidade e desrespeito ao espaço
e ao ambiente do evento, enquanto lésbicas foram acusadas de reprimir a liber-
dade de expressão. Algumas ativistas lésbicas se posicionaram como "mulheres"
e questionaram a legitimidade da reivindicação de atendimento de travestis em
enfermarias femininas, argumentando que travestis, em última instância, eram
"homens", o que provocou uma discussão bastante acalorada.
Episódios de agressividade verbal marcaram menos o x Encontro de Gays,
Lésbicas e Travestis, realizado em Maceió, em 2000, ano em que foi formada
a Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros (Antra). O
congresso foi precedido por reuniões separadas de grupos filiados à ABGLT, à
Antra e às associações lésbicas. Duas redes nacionais de associações lésbicas se
formaram em 2003 e 2004. Em 2005, realizou-se o XII Encontro de Gays, Lés-
bicas e Transgêneros, em Brasília, no qual foi lançado o coletivo de transexuais
e se deu a incorporação dos bissexuais ao m o v i m e n t o , adotando-se a sigla LGBT e
convencionando-se que o "T" deve contemplar travestis, transexuais e transgêne-
ros. Sinalizaram-se t a m b é m novas segmentações, com as propostas de realização
de um encontro exclusivo de gays e a formação de uma articulação brasileira de
grupos gays. Cabe observar que, em comparação com os encontros realizados
na segunda metade dos anos 1990, registrados minuciosamente, são bastante
escassas as informações disponíveis sobre os congressos da década de 2000. A
circulação de informações e desavenças tende a ficar cada vez mais circunscrita
aos grupos de discussão da internet 6 .

• 147 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

A incorporação dos bissexuais ainda é cercada de muita polêmica dentro


do m o v i m e n t o . Iniciativas de atividades voltadas à reflexão sobre bissexualida-
de e ao a u m e n t o da participação de ativistas bissexuais são bastante recentes e
localizadas, a maior parte delas concentrada e m São Paulo. O esforço tem sido
t o r n a r visível a presença de bissexuais e, ao m e s m o t e m p o , evitar que ela se dê
de forma separada dos outros segmentos. O u t r a estratégia tem sido questionar
as imagens depreciativas de "enrustimento", irresponsabilidade e falta de com-
promisso político, atribuídas a bissexuais p o r muitos ativistas gays e lésbicas.
Isso caminha para questionar a contraposição h e t e r o / h o m o e tornar fronteiras
mais fluidas, o que, p o r sua vez, esbarra em outras resistências decorrentes de
certa demanda de estabilização de identidades, própria do f o r m a t o institucional
que t e m presidido cada vez mais as ações do movimento, por meio de projetos
cujo suporte material exige o recorte d e públicos-alvos bem delimitados. C o m o
observou u m a pesquisa recente:

Mesmo a inserção de bissexuais na denominação do sujeito político do


movimento, onde esta se deu, não acompanhou o seu reconhecimento
efetivo como integrantes deste sujeito político, da mesma forma que não
houve muito empenho no sentido de transformar a imagem negativa mui-
tas vezes atribuída a bissexuais, dentro e fora do movimento. Por isso,
recentemente, vemos militantes bissexuais se depararem com uma situação
um tanto esquizofrênica: como se houvesse um espaço destinado a eles no
movimento, mas que tem de ser conquistado mediante a comprovação de
uma ação política organizada. 7

Travestis s e g u e m t a m b é m e m t e n s ã o potencial ou aberta com outras


identidades do m o v i m e n t o , não apenas p o r sua recusa f r e q ü e n t e da identifi-
cação de "homossexuais", mas t a m b é m , de f o r m a talvez mais aguda, no que
se r e f e r e às questões de violência e discriminação. Embora as representações
p r e d o m i n a n t e s da agressão e x t r e m a c o n t r a LGBT (para os gays, especialmente,
mas t a m b é m para as lésbicas) t o m e m a f o r m a do chamado "crime de ódio",
pesquisas r e c e n t e s indicam q u e as travestis estão situadas n o e x t r e m o das
escalas de vitimização. Travestis t ê m se m o s t r a d o b e m mais vulneráveis aos
crimes violentos de execução sumária, que t e n d e m a p e r m a n e c e r impunes.

• 141 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Vários aspectos parecem c o n c o r r e r para isso: a pobreza e a categorização de


c o r / r a ç a das vítimas; o m o d o c o m o sua identidade de g ê n e r o é percebida e
desqualificada; a maior proximidade à "vida de risco" da prostituição, do delito
e d o comércio de drogas ilícitas.

Conexões com o mercado: negociações e tensões

Dos anos 1990 para cá, a expansão dos espaços de sociabilidade homossexual
t o m o u as características de u m mercado segmentado que contribuiu significativa-
mentemente para produzir novas expressões, simultaneamente comerciais e asso-
ciativas, da homossexualidade. Uma das inovações mais importantes, nesse sentido,
foi a popularização da sigla GLS, para designar Gays, Lésbicas e Simpatizantes.
A origem da sigla GLS está associada à primeira m e t a d e dos anos 1990 e ao
jornalista André Fischer, carioca radicado em São Paulo, u m dos principais idea-
lizadores de eventos c o m o o Mercado Mundo Mix ("feira m o d e r n a " que r e ú n e
expositores e público GLS) e o Festival de Cinema Mix Brasil da Diversidade
Sexual, além do primeiro portal GLS brasileiro, o Mix Brasil, no ar desde 1994.
O GLS afirma identidades reconhecidas pelo m o v i m e n t o , ao m e s m o t e m p o que
procura preservar o espaço de uma certa ambigüidade classificatória. Mais do
que simplesmente introduzir n u m contexto brasileiro a idéia norte-americana
de gayfriendly — um lugar onde gays e lésbicas são bem-vindos —, a categoria GLS
pareceu dar um novo formato a uma prática mais antiga: a de abrir o "gueto" das
homossexualidades para todos os que dele queiram participar.
Na esteira do GLS, articularam-se e m várias cidades, ainda que não de for-
ma homogênea, novas identidades e expressões de estética, festa e consumo
que retomaram o flerte com os estilos de vida associados à homossexualidade.
Modernos, clubbers, ravers, cybermanos passam a misturar classes sociais, idades e
orientações sexuais em eventos ou casas GLS, c o m roupas, acessórios e cabelos
multicoloridos, marcas corporais como piercings e tatuagens, bebida energética,
alucinógenos, estimulantes e música eletrônica. Adolescentes de ambos os sexos
passam a se identificar como "mix", o que parece implicar uma disposição de
abertura à experimentação erótica com pessoas do m e s m o sexo, sem r e c o r r e r
a classificações hetero, h o m o ou bissexual. Ainda na esteira do GLS, drag queens,

• 148 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

personagens que cruzam as fronteiras de gênero e p o d e m ser identificadas pela


ênfase nas idéias de "performance" e "montagem" 8 , tornaram-se ingredientes
indispensáveis e m casas noturnas e eventos GLS.
Essas circunstâncias propiciaram o aparecimento de uma inovadora com-
binação e n t r e m e r c a d o e militância. As relações entre os grupos ou associações
homossexuais e o m e r c a d o passaram a envolver interesses que tendem a ser
convergentes, de m o d o que aqueles que apresentam determinados atributos
identificáveis por tal ou qual denominação passem a utilizá-la preferencialmente
para se identificar c o m o cidadãos e consumidores. Neste caso, é possível falar de
uma influência m ú t u a , que p o d e atingir graus variados em diferentes situações. É
bastante freqüente que jornalistas, escritores, artistas e promotores de eventos que
atuam no mercado segmentado voltado ao público homossexual identifiquem-se
c o m as modernas categorias de identidade homossexual e reconheçam suas ati-
vidades atuais c o m o formas d e colaborar para a emancipação dos homossexuais,
elevar sua autoestima e fortalecer sua "subcultura". Na visão de um empresário
gay paulista entrevistado pela antropóloga Isadora Lins França:

Tem uma coisa que é o seguinte: é um mercado que eu acho que se você não é
gay, você não vai adiante. Por uma questão muito simples: não é um mercado
tão interessante assim como se faz parecer. [...] O que acontece é que quem é
gay, você tem isso quase como uma missão.. .Tudo tem um peso social na hora
de você fazer, que um hetero, quando está entrando no mercado, não tem. Eu
acho que essa é a diferença. Acho que negócio gay tocado por hetero é fadado
ao fracasso, porque ele lida com outro tipo de realidade, você não tem muito
anunciante. No exterior é impensável um negócio gay que não seja gerido e
de propriedade de gays. Esse é o princípio lá fora. Aqui não tem muito isso,
mas mesmo assim, você pega o S..., ele vai gastar um dinheiro fazendo show de
drag que um empresário hetero jamais gastaria, porque ele é gay, porque é da
cultura dele, porque ele acha o máximo. E ele vai fazer com fogos de artifício,
vai gastar pra fazer um show de uma noite, que pra ele é importante. Um cara
hetero jamais vai entrar numa coisa dessas. E isso faz uma diferença. 9

Se o m e r c a d o GLS i n c o r p o r o u marcas do discurso ativista, c o m o a bandeira


d o arco-íris e as idéias gerais de "orgulho" e "visibilidade", o m o v i m e n t o LGBT,

• 141 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

por sua vez, t a m b é m i n c o r p o r o u vários e l e m e n t o s relacionados ao m e r c a d o ,


c o m o atesta a indispensável presença de trios elétricos de casas n o t u r n a s , drag
queens e go-go boys nas Paradas do O r g u l h o LGBT. As paradas, c o m o manifesta-
ções de visibilidade de massa, m a r c a m a expressão social e política do movi-
mento LGBT dos últimos anos e são, t a m b é m , u m t e r r e n o privilegiado para se
apreciar o cruzamento das diversas conexões do m o v i m e n t o com o m e r c a d o
e o Estado.
Acompanhemos, a título de ilustração, a evolução das paradas realizadas em
São Paulo. As duas primeiras edições, em 1997 e 1998, atraíram já alguns milhares
de pessoas, que caminharam ao som de gravação caseira de canções de MPB repro-
duzidas pelas caixas de som de u m a perua Kombi emprestada pelo Sindicato das
Costureiras de São Paulo. Já em 1999, quando foi criada a Associação da Parada
do Orgulho GLBT (APOGLBT), a terceira edição do evento reuniu 35 mil pessoas e
contou pela primeira vez com a presença de trios elétricos de casas noturnas GLS.
A quarta, em 2000, com 120 mil pessoas, teve o cantor popular Edson Cordeiro
interpretando o Hino Nacional em cima de u m trio elétrico e angariou apoios das
casas noturnas, de uma grande empresa de serviços de internet, da Prefeitura de
São Paulo e do Ministério da Saúde. A quinta, em 2001, com 250 mil pessoas, foi
acompanhada pela primeira vez de dois eventos paralelos, o Gay Day, que acon-
tecia n u m grande parque de diversões, e a Feira Cultural do Arouche, que reunia
tendas de comerciantes e de entidades ativistas, e m meio a apresentações de drag
queens e transformistas. A partir desse ano, a parada passou então a acompanhar
o feriado móvel de Corpus Christi, com vistas a facilitar o afluxo de visitantes e
turistas, entrando no ca-
lendário turístico oficial
da cidade. Paralelamente,
estimula-se a visibilidade
dos diferentes segmentos,
com lésbicas conduzindo
motocicletas e trios elé-
tricos exclusivos de tra-
vestis e transexuais 1 0 . As
edições seguintes atingem
Marcha pela Cidadania Homossexual (Rio de Janeiro, 1997). e ultrapassam o n ú m e r o

• iço-
NA TRILHA DO ARCO-IRIS

x Parada do Orgulho GLBT (Brasília, 2007).

de 1 milhão de participantes, q u e t o m a m c o m p l e t a m e n t e a avenida Paulista e


a rua da Consolação, sob uma e n o r m e bandeira d e arco-íris, n u m tipo de con-
centração popular jamais vista e m São Paulo, o n d e não há carnaval de rua nem
tradição de celebrações públicas semelhantes — afora, talvez, as manifestações
pelas eleições diretas n o começo dos anos 1980.
Nesse m o v i m e n t o de empresários d o m e r c a d o GLS para a afirmação de
u m a identidade positiva e da visibilidade h o m o s s e x u a l , o c o r r e m t a m b é m ou-
tros focos de tensão. A c o m p a n h a n d o a postura de que a garantia de direitos ao
c o n s u m o é caminho para a aquisição d e cidadania LGBT, O público consumidor
reage quando e n t e n d e que seus direitos estão sendo desrespeitados em virtude
de preconceitos contra sua orientação sexual 1 1 . Protestos contra restrições à
demonstração aberta d e afeto e n t r e pessoas do m e s m o sexo, c o m o os "beija-
ços" — manifestações coletivas d e beijos e n t r e homossexuais e m público em
locais e m q u e essa prática é coibida —, e x p r i m e m as demandas p o r respeito à
visibilidade e à igualdade de t r a t a m e n t o . E m b o r a alguns "beijaços" sejam ar-
ticulados pelo m o v i m e n t o LGBT, parcela considerável deriva da iniciativa dos
próprios freqüentadores.

• i S i -
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Nos últimos anos, foram promulgadas no Brasil leis antidiscriminatórias


e m âmbito municipal e estadual, prevendo punição a estabelecimentos públicos
que discriminem cidadãos p o r causa de sua orientação sexual. Essas leis, embora
tenham um raio de aplicação mais amplo, têm sido usadas principalmente contra
estabelecimentos comerciais. Grande parte do mercado GLS e d o seu circuito
n o t u r n o de lazer não considera travestis e transexuais integrantes da "comuni-
dade" para a qual oferecem seus serviços. Situações de conflito o c o r r e m quando
identidades abraçadas pelo m o v i m e n t o são repudiadas pelo mercado. Em 2004,
por exemplo, travestis organizadas politicamente por meio da APOGLBT de São
Paulo realizaram as Blitz Trans, ocasião em que percorreram espaços de consumo
do circuito GLS, apoiadas na lei antidiscriminação do estado, protestando contra
estabelecimentos que sobretaxavam ou proibiam a entrada de travestis 12 .
Episódios desse tipo apontam para uma tensão mais geral ligada ao fato de
que posturas, atitudes e estilizações ligadas ao orgulho e à afirmação, assimila-
das pela mídia e pelo m e r c a d o , desafiem cada vez mais o m o v i m e n t o LGBT, na
disputa pelas representações sociais e políticas das identidades c o m p o n e n t e s
do m o v i m e n t o . Se a organização das Paradas do Orgulho LGBT ainda dá lugar a
relações profícuas e n t r e empresários e ativistas, baseadas em negociações em
t o r n o de focos de interesse c o m u m , diferenças e divergências e n t r e ambos não
deixam de se manifestar.

• iç2 •
Consi dera çõesjinais:
conquistas e desafios

sua trajetória curta e intensa, o m o v i m e n t o político I GBT n o Brasil


amealhou algumas vitórias significativas e se debateu com resistências poderosas.
Concluiremos com u m breve balanço das conquistas e, t a m b é m , dos antigos e
novos desafios que lhe fazem f r e n t e .
O movimento LGBT t e m investido grande esforço na promulgação de leis
e na criação de políticas públicas governamentais. As leis estaduais e municipais
contra discriminação hoje existentes no Brasil apresentam raios de alcance dife-
r e n t e , especificando penalidades contra discriminação n o mercado de trabalho,
e m contratos de aluguel ou relativas a demonstrações públicas de afeto. Algumas
nomeiam as categorias sob proteção, c o m o cidadãos "homossexuais", "bissexuais"
e "transgêneros". Cabe destacar a formulação abrangente da lei aprovada no Rio
Grande do Sul, que "dispõe sobre a p r o m o ç ã o e o reconhecimento da liberdade
de orientação, prática, manifestação, identidade e preferência sexual", no âmbito
do "respeito à igual dignidade da pessoa humana de todos os seus cidadãos".
O u t r a s demandas legais i m p o r t a n t e s do m o v i m e n t o r e c e b e r a m grande
visibilidade, mas esbarraram e m obstáculos poderosos. O caso exemplar é o do
Projeto de Lei n 2 1.151 / 9 5 , de autoria de Marta Suplicy, então deputada federal

• if3-
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

p o r São Paulo, sobre a união civil entre pessoas do m e s m o sexo, apresentado na


Câmara dos Deputados em outubro de 1995, na seqüência da fundação da ABGLT

e da realização da Conferência Internacional da ILGA.

O projeto propunha a união civil como um direito de cidadania fundamen-


tado nas liberdades civis asseguradas pela Constituição, prevendo a extensão de
direitos de herança, previdência e imigração aos seus contratantes. Embora fizesse
menção a "vínculos afetivos", a concepção de "união civil" era cuidadosamente
distanciada do matrimônio ou das uniões estáveis. O foco do projeto estava na
compensação de injustiças relacionadas a histórias de construção de patrimônio
e m c o m u m entre parceiros do mesmo sexo. Mesmo c o m todos esses cuidados, o
projeto já sofreu alterações na formulação original ao ser submetido à Comissão
Especial instaurada para sua análise, substituindo "união" por "parceria", elimi-
nando-se as referências aos "vínculos afetivos" e adicionando o veto a qualquer
implicação relativa a adoção, tutela ou guarda de crianças e adolescentes, ainda
que fossem filhos dos contratantes. As mudanças evidenciavam a forte resistência
n o Parlamento, sobretudo de representantes ligados a diversos grupos religiosos
cristãos, a qualquer aproximação da parceria civil com família e casamento. O
substitutivo acabou não sendo levado à votação, pois seus apoiadores concluíram
que não haveria apoio suficiente para que fosse aprovado.
C o m o compensação, foi formada em 2003 uma Frente Parlamentar Mista
pela Livre Expressão Sexual, que atualmente se denomina Frente Parlamentar

jSM
ISIHRHI

r o í
V l - >

Deputada Marta Suplicy recebe flores de ativistas do GGB e do NGL-PT/SP, no Congresso, 1997.

' I Í 4 *
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

pela Cidadania LGBT. De caráter suprapartidário, chegou a reunir, na legislatura de


2003 a 2006, 96 parlamentares. Mais r e c e n t e m e n t e , a f r e n t e passou a colaborar
na garantia de recursos para a execução do Programa Brasil Sem Homofobia, no
qual se depositam as expectativas de construção de políticas públicas voltadas
para LGBT.

O u t r a f r e n t e de combate d o m o v i m e n t o LGBT t e m sido a criminalização


d e condutas repressivas e violentas contra LGBT. Está e m debate n o Legislativo
u m p r o j e t o que visa definir "crimes resultantes de discriminação ou p r e c o n -
ceito de g ê n e r o , sexo, orientação sexual e identidade de gênero", nos moldes
da Lei n 2 7 . 7 1 6 , que estabelece os crimes resultantes de preconceito de raça
o u de cor 1 . A resistência ao p r o j e t o , expressa s o b r e t u d o p o r autoridades reli-
giosas cristãs em aliança com psicólogos e médicos ligados a grupos religiosos
evangélicos, t e m se concentrado nas alegações de c e r c e a m e n t o da liberdade de
expressão (especialmente a liberdade de expressão religiosa) e e m reiterados
esforços de patologização e criminalização da homossexualidade, por m e i o de
sua associação à pedofilia.
Diante das consideráveis barreiras e dificuldades enfrentadas no âmbito
d o Legislativo e do Executivo, o Judiciário t e m se mostrado u m campo mais
favorável à p r o m o ç ã o de diretos LGBT. Marcos importantes foram alcançados no
reconhecimento legal de vínculos afetivos homossexuais, para efeitos de herança e
direitos previdenciários, assim como na punição à homofobia. Em contrapartida,
persistem dificuldades sempre que as questões se encaminham para o terreno
d o direito de família.
As reivindicações pelo direito à sexualidade não-procriativa, que marcaram
boa parte da trajetória do m o v i m e n t o homossexual, convivem hoje com lutas
pelo direito à adoção, à guarda e ao cuidado de filhos. N o que se refere à adoção,
a homossexualidade não é um impeditivo, em princípio. Entretanto, a "conju-
gação h o m e m / h o m o s s e x u a l " muitas vezes é vista c o m o incapaz de assegurar os
cuidados básicos da criança, por conta dos estereótipos de instabilidade emocional
e promiscuidade sexual colados à homossexualidade masculina. Nesse caso, os
requerentes costumam ser mais b e m avaliados desde que demonstrem capacidade
de "maternar", tida c o m o u m a virtude "feminina" por excelência 2 . A noção de
maternidade lésbica, por sua vez, pode ser vista c o m o inerentemente conflitiva,
p o r amalgamar os estereótipos excludentes da cuidadora zelosa e assexuada e

• I Í Í •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

mom PLENA PARA i


py»,tgssáas i mmsris

Manifestação em frente à Embaixada do Egito, contra a prisão de 52 homosexuais naquele país. (Brasília, 2001).

da mulher sexualizada, passional e violenta'. A orientação geral, do Estatuto


da Criança e do Adolescente, é nortear-se pelo "melhor interesse da criança",
o que abre caminho para diferentes interpretações. A visibilidade alcançada na
mídia por autorizações da guarda de crianças a casais de gays e lésbicas ainda não
redundou numa política definida a esse respeito, embora tenham sido abertos
precedentes importantes.
Resoluções de associações profissionais de psicologia e serviço social têm
estabelecido normas de atuação contrárias à discriminação por orientação sexual.
São alianças importantes no combate à persistente patologização da conduta de
LGBT, uma batalha ainda longe de ser resolvida. A resolução estabelecida pelo
Conselho Federal de Psicologia, em 1999, prescrevendo que os psicólogos não
devem colaborar com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das
homossexualidades, t e m sido questionada p o r profissionais ligados a grupos
religiosos evangélicos, sob a alegação de que "a homossexualidade não é uma
característica inata" e de que aqueles que "sofrem" devido à sua orientação sexual
"têm o direito de receber tratamento".

iS6>
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

A transexualidade, p o r sua vez, é um t e r r e n o em que os discursos médicos


ainda são p r e d o m i n a n t e s e n o r m a t i v o s . O acesso a cirurgias de "redesigna-
ção sexual", u m a reivindicação do m o v i m e n t o LGBT, está condicionado aos
critérios estabelecidos pelas r e s o l u ç õ e s d o C o n s e l h o Federal de Medicina
e m 1997, alteradas e m 2 0 0 2 , q u e d e f i n e m o "paciente transexual" de f o r m a
patologizante, c o m o " p o r t a d o r de desvio psicológico p e r m a n e n t e de iden-
tidade sexual, c o m rejeição do f e n ó t i p o e tendência à automutilação e / o u
a u t o e x t e r m í n i o " . Para se s u b m e t e r à cirurgia, além do diagnóstico exclusivo
d e "transexualismo", é preciso ser m a i o r de 21 anos e submeter-se a acompa-
n h a m e n t o psicológico ou psiquiátrico por pelo m e n o s dois anos 4 . A mudança
n o registro civil envolve o u t r a s dificuldades. Em princípio, somente é p e r -
mitida u m a vez, c o m p l e t a d o o p r o c e d i m e n t o cirúrgico. Entretanto, cirurgias
realizadas fora de p r o g r a m a s considerados habilitados t ê m sido excluídas das
solicitações de autorização legal para m u d a n ç a de n o m e . Nega-se assim um
direito f u n d a m e n t a l de identidade.
Essas f r e n t e s de luta r e t r a t a m n ã o apenas a variedade de questões e de-
mandas n o universo LGBT, c o m o t a m b é m a perseverança do m o v i m e n t o em
buscar r e c o n h e c i m e n t o para assegurar direitos e garantias civis fundamentais.
Nota-se que boa p a r t e desses esforços t e m - s e o r i e n t a d o não para a consignação
de direitos especiais, mas para ampliar o alcance do princípio de igualdade,
d e n u n c i a n d o injustiças baseadas nas diferenciações de orientação sexual e
identidade d e g ê n e r o 5 . Nota-se t a m b é m , p o r o u t r o lado, que é bastante po-
derosa a resistência conservadora, n ã o apenas plantada em concepções rígidas
de família, saúde e m o r a l i d a d e , mas t a m b é m r e c o r t a n d o e colando pedaços
de argumentações q u e marcavam u m discurso "progressista" (como a idéia de
q u e as identidades são "construídas", as alegações e m favor dos "direitos dos
q u e s o f r e m " , ou os p r o t e s t o s c o n t r a "a liberdade de expressão"), com o ob-
jetivo de m a n t e r t u d o c o m o está. As conquistas do m o v i m e n t o LGBT, que não
são poucas, veem-se assim c o n s t a n t e m e n t e ameaçadas na ausência de políticas
públicas e f e t i v a m e n t e capazes de fazer f r e n t e às disparidades decorrentes da
e x t r e m a desigualdade social brasileira 6 .
Grande parte dos progressos obtidos pelo m o v i m e n t o LGBT deveu-se ao seu
processo recente de institucionalização. É certo que não se trata de uma institu-
cionalização equiparável à que desfrutam organizações não-governamentais em

!
• Í 7 '
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

outros campos de atuação social e política, tais c o m o meio ambiente, crianças e


adolescentes, mulheres ou prevenção a DST e Aids. E como se houvesse uma escala
hierárquica de legitimidade e aceitação social de temas e sujeitos de direitos, a
qual pesa desfavoravelmente e m relação aos LGBT.

Ainda assim, a trajetória d o m o v i m e n t o LGBT mostra de forma eloqüente a


interpenetração e a porosidade entre Estado e sociedade civil no Brasil. Nesse
campo de relações há vantagens, mas t a m b é m riscos. Abrem-se novos canais
para pressões vindas "de baixo", que, e n t r e t a n t o , p o d e m t a m b é m favorecer
o desenvolvimento de novas redes de clientela e a m o r t e c e r o seu potencial
crítico. O acesso a recursos t e m potencializado e n o r m e m e n t e a capacidade de
ação política das associações de base e sua articulação produtiva e m diferentes
planos, mas a disputa p o r eles t a m b é m pode esgarçar solidariedades e r e p o r
hierarquias. O u t r a questão, ainda mais crucial, é a urgência de encontrar ca-
minhos produtivos na relação c o m o Estado e c o m as instituições políticas, que
p e r m i t a m avançar além da vitimização defensiva.
O m o v i m e n t o se d e f r o n t a ainda c o m o desafio de r e n o v a r as conexões
e n t r e os diversos m u n d o s n o interior do p r ó p r i o universo LGBT. As identidades
que c o m p õ e m o m o v i m e n t o t ê m caminhado p r o g r e s s i v a m e n t e para a cons-
t r u ç ã o de suas próprias d e m a n d a s e agendas. Em particular, t e m se m o s t r a d o
cada vez mais c o m p l e x a a articulação dos grandes focos de identificação e
mobilização r e p r e s e n t a d o s nas noções de orientação sexual e identidade de

Passeata do Orgulho LGBT.

Aparecendo Helena Xavier,


quejez questão de mostrar
apoio aojilho (Rio de
Janeiro, 2008).

i ç8 •
N A TRILHA DO ARCO-ÍRIS

g ê n e r o . T r a t a - s e d e u m d e s c o l a m e n t o que desestabiliza categorias de "ho-


m e n s " e " m u l h e r e s " e de "masculinos" e "femininos" q u e c o n v e n c i o n a l m e n t e
se e s t r i b a r a m na distinção binária e n t r e os sexos, m e s m o q u a n d o esses sexos
e r a m p e n s a d o s c o m o sendo da "alma" e não d o c o r p o . É u m f e n ô m e n o po-
lítico e cultural de alcance mais a m p l o , q u e t r a n s c e n d e o m o v i m e n t o LGBT,

mas n ã o d e i x a de incidir n e l e de f o r m a aguda, além de trazer uma série de


q u e s t i o n a m e n t o s t a m b é m p a r a o m o v i m e n t o feminista. Isso pode ser ilus-
t r a d o nos esforços d e a u t o n o m i z a ç ã o d o m o v i m e n t o trans, p o r m e i o de sua
c o n s t r u ç ã o c o m o voz dissidente, t a n t o n o c a m p o das lutas de g ê n e r o q u a n t o
n o da h o m o s s e x u a l i d a d e .
Diante de desafios tão formidáveis, as melhores esperanças provêm das
imagens das Paradas d o O r g u l h o LGBT, em que as diferenças se m o s t r a m e
convivem de forma estimulante e pacífica no m e s m o espaço público. Nelas se
refaz a expectativa de que o m o v i m e n t o LGBT possa atualizar permanentemente
a promessa de celebração de identidades vividas e porosas, com mais pontes do
que cercas e n t r e si, atraentes e abertas aos que a elas queiram se misturar, o que
só pode ser possível sobre o t e r r e n o compartilhado da igualdade. C o m o as cores
do arco-íris, belas e cambiantes refrações da mesma luz solar.

' l59 •
Cronologia (1978-2007)

1978 Abril: Publicado o n 2 zero do Lampião, de circulação restrita.


Maio: O n 2 1 do Lampião chega às bancas do Rio de Janeiro e São Paulo.
Acontecem as primeiras reuniões do g r u p o Somos, ainda com o n o m e de
Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais, em São Paulo.
N o v e m b r o : Os editores do Lampião passam a responder a inquérito na
Policia Federal por atentado à moral e aos bons costumes.
1979 Fevereiro: O Somos se batiza e vem a público, participando dos debates da
semana sobre os "movimentos de emancipação", na Universidade de São
Paulo — USP, ao lado de representantes dos movimentos negro, feminista
e indigenista.
Junho: Forma-se d e n t r o do Somos o subgrupo Lésbico-Feminista (LF).
Agosto: O Somos passa a p r o m o v e r u m a campanha de defesa do Lampião.
Novembro: O Somos participa de ato público promovido pelo Movimento
Negro Unificado em c o m e m o r a ç ã o ao Dia de Zumbi, nas escadarias do
Teatro Municipal de São Paulo.
Dezembro: O processo contra o Lampião é arquivado.
D e z e m b r o : O Lampião p r o m o v e u m e n c o n t r o de grupos organizados, no
Rio de Janeiro, ao qual c o m p a r e c e m representantes de nove grupos.

• 1 6 1 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

1980 Março: Realiza-se o 1" Encontro Brasileiro de Homossexuais (EBHO) e o 1°


Encontro de Grupos Homossexuais Organizados (EGHO), em São Paulo.
Maio: Integrantes do Somos participam do ato público de I a de Maio em apoio
aos trabalhadores do ABC em greve, em São Bernardo do Campo (SP).
Maio: Durante a reunião geral do Somos, as integrantes d o LF formalizam
sua separação e a criação do G r u p o de Ação Lésbica-Feminista (GALF);

o u t r o grupo de homens anuncia seu desligamento e a formação do Grupo


O u t r a Coisa de Ação Homossexualista.
Junho: O Somos e outros grupos paulistas se mobilizam contra a "Operação
Limpeza" promovida pelo delegado José Wilson Richetti nas áreas de freqüên-
cia homossexual no centro de São Paulo. N o dia 13 de junho, promovem um
ato público nas escadarias do Teatro Municipal contra a violência policial,
seguido de passeata pelas ruas do C e n t r o de São Paulo.
Junho: O GALF participa do E n c o n t r o de G r u p o s Feministas e m Va-
linhos (SP).
Agosto: O c o r r e m vários a t e n t a d o s a bancas de j o r n a l nas capitais
brasileiras, e m c a m p a n h a d e g r u p o s p a r a m i l i t a r e s d e direita c o n t r a
a i m p r e n s a alternativa.
Dezembro: Realiza-se no Rio de Janeiro a prévia do que deveria ser o 2 a
Encontro Brasileiro de Grupos Homossexuais Organizados, com a presença
de quinze grupos de diversas regiões d o país.
Forma-se e m Salvador o G r u p o Gay da Bahia (GGB).

1981 Abril: Realiza-se o I a Encontro de Grupos Homossexuais do Nordeste com


a presença de cinco grupos, em Olinda (PE). O GGB dá início à campanha
contra o Código 302.0 da Organização Mundial da Saúde, que rotulava o
homossexualismo c o m o desvio e transtorno sexual.
Junho: Sai o último n ú m e r o do Lampião.
O GALF passa a produzir o boletim Chanacomchana.

1982 Abril: Realiza-se em São Paulo o I a Encontro Paulista de Grupos Homos-


sexuais, com a participação de quatro entidades.
Setembro: O Somos p r o m o v e debate com candidatos às eleições de 1982,
estabelece uma sede e produz o boletim 0 Corpo.

• 162 •
NA TRILHA DO ARCO-IRIS

Dezembro: São diagnosticados os primeiros casos brasileiros de Aids, em


São Paulo.
1983 Janeiro: O GGB torna-se o p r i m e i r o g r u p o a obter registro como sociedade
civil sem fins lucrativos.
Junho: M o r r e o estilista Marcus Vinícius Resende Gonçalves, o Markito,
vítima da Aids.
Julho: O grupo O u t r a Coisa, e m combinação com a Secretaria da Saúde
paulista, distribui panfletos de advertência contra a Aids nas áreas de fre-
qüência homossexual em São Paulo.
Agosto: Lideranças d o GALF são expulsas do F e r r o ' s Bar, tradicional es-
paço de freqüência lésbica d e São Paulo, ao t e n t a r e m distribuir o jornal
Chanacomchana. A data, 19 d e agosto, passará mais tarde a ser o Dia do
O r g u l h o Lésbico.
N o v e m b r o : Organiza-se o Programa Estadual de DST e Aids de São Paulo,
o primeiro do país.
C o m dificuldades para m a n t e r sua sede, o Somos se dissolve e encerra
suas atividades.
1984 Janeiro: Realiza-se em Salvador, p o r iniciativa do GGB, o 2 a Encontro
Brasileiro de G r u p o s Homossexuais Organizados com a participação de
cinco grupos.
1985 Fevereiro: O grupo Triângulo Rosa, do Rio de Janeiro, obtém registro
c o m o sociedade civil. M o r r e em São Paulo o teatrólogo Luiz Roberto
Galizia, vítima da Aids.
Abril: Forma-se a primeira ONG/Aids do país, o G r u p o de Apoio e Pre-
venção à Aids (GAPA), em São Paulo.
Cria-se a Casa de Apoio Brenda Lee, instituição particular com atenção
focada em travestis vítimas da Aids, e m São Paulo.
O Conselho Federal de Medicina do Brasil passa a desconsiderar o artigo
302.0, da Classificação Internacional de Doenças, que definia a homosse-
xualidade c o m o doença.
1986 Junho: O g r u p o Atobá, d o Rio de J a n e i r o , o b t é m registro c o m o socie-
dade civil.
N o v e m b r o : Por iniciativa do Triângulo Rosa, o 2 I a Congresso Nacional
de Jornalistas, p o r m e i o de proposta apresentada pelo jornalista Antônio

• 1 6 3 *
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

C a r l o s T o s t a ( e x - i n t e g r a n t e d o g r u p o Somos), aprova m o d i f i c a ç ã o n o
C ó d i g o de Ética dos Jornalistas para a incluir a proibição de discriminação
p o r o r i e n t a ç ã o sexual.
F o r m a - s e a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), n o Rio
de J a n e i r o .
Organiza-se o P r o g r a m a Nacional de DST e Aids, n o Ministério da Saúde.
1987 Maio: João Antonio Mascarenhas realiza palestra na Assembleia Nacional
C o n s t i t u i n t e , reivindicando a proibição de discriminação p o r orientação
sexual na Constituição.
D e z e m b r o : E assassinado o diretor teatral Luiz Antonio Martinez C o r r ê a ,
n o Rio de Janeiro.
A i m p r e n s a de São Paulo r e p e r c u t e u m a "onda criminosa", r e l a t a n d o u m a
série de assassinatos de homossexuais.
O GALF passa a publicar o b o l e t i m Um Outro Olhar.
A rede GAPA expande-se para o u t r o s estados brasileiros: Rio de Janeiro,
Minas Gerais, Bahia, Santa Catarina e Rio G r a n d e do Sul.
1988 A nova Constituição é promulgada sem incluir a proibição de discriminação
p o r orientação sexual.
1989 Janeiro: Realiza-se o 3 a E n c o n t r o Brasileiro de G r u p o s H o m o s s e x u a i s
Organizados, c o m a participação de seis grupos, n o Rio de Janeiro.
Março: Forma-se o Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), e m Fortaleza.
J u n h o : Realiza-se o I a E n c o n t r o Nacional de ONGs/Aids, e m Belo Hori-
z o n t e . Em o u t u b r o , realiza-se o 2 a , e m P o r t o Alegre.
O escritor H e r b e r t Daniel funda o G r u p o Pela Vidda, n o Rio de Janeiro.
1990 Janeiro: Realiza-se o 4" E n c o n t r o Brasileiro d e G r u p o s H o m o s s e x u a i s
Organizados, c o m a participação de seis grupos, e m Aracaju (SE).
Fevereiro: È fundado o Grupo de Incentivo à Vida (GIV), O N G / A i d s formada
exclusivamente p o r soropositivos, e m São Paulo.
Abril: A R e d e de Informação U m O u t r o Olhar, sucessora d o GALF, passa
a funcionar c o m o sociedade civil.
Forma-se o Coletivo de Feministas Lésbicas, e m São Paulo.
1991 N o v e m b r o : Realiza-se o 5 a E n c o n t r o Brasileiro de G r u p o s Homossexuais
Organizados, c o m a participação de seis grupos, e m Recife.
Forma-se o g r u p o Nuances, e m P o r t o Alegre.

• 164 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

1992 M a r ç o : M o r r e n o Rio de J a n e i r o o escritor H e r b e r t Daniel, f u n d a d o r d o


G r u p o Pela Vidda.
Maio: Realiza-se o 6 a E n c o n t r o Brasileiro d e G r u p o s H o m o s s e x u a i s O r -
ganizados, c o m a participação de onze g r u p o s , n o Rio d e Janeiro.
Novembro: Morre o antropólogo e poeta Néstor Perlongher, vítima da Aids.
F o r m a - s e o g r u p o Dignidade, e m Curitiba.
Passa a circular o jornal Nós, Por Exemplo, sediado n o Rio de Janeiro.
1993 M a r ç o : É assassinado o v e r e a d o r Renildo José dos Santos, d o m u n i c í p i o
de C o q u e i r o Seco, Alagoas, q u e passou a s o f r e r ameaças de m o r t e após
confessar-se bissexual e m u m p r o g r a m a de rádio.
Maio: F o r m a - s e o g r u p o Arco-íris, n o Rio de Janeiro.
J u n h o : Realiza-se o I a E n c o n t r o Regional Sul Brasileiro de Homossexuais,
c o m a participação de q u a t r o g r u p o s , e m Florianópolis.
S e t e m b r o : Realiza-se e m C a j a m a r (SP) O 7 a E n c o n t r o d e Lésbicas e H o -
mossexuais, c o m a participação de 21 g r u p o s .
O u t u b r o : Realiza-se a p r i m e i r a edição d o Festival M i x Brasil da D i v e r -
sidade Sexual.
Realiza-se o Encontro Nacional de Travestis e Liberados, n o Rio de Janeiro,
q u e se t o r n a o p r i m e i r o de u m a série d e e n c o n t r o s de travestis (e, p o s t e -
r i o r m e n t e , transexuais) que trabalham na p r e v e n ç ã o da Aids (Entlaids).
1 9 9 4 Janeiro: Forma-se o g r u p o E s t r u t u r a ç ã o , e m Brasília.
Assinado a c o r d o de c o o p e r a ç ã o c o m o Banco Mundial, conhecido c o m o
Aids 1, c o m incentivos à participação das ONGS na f o r m u l a ç ã o e i m p l e m e n -
tação das políticas nacionais d e p r e v e n ç ã o de DST e Aids.
O Mix Brasil lança sua página na i n t e r n e t , voltada ao p ú b l i c o que chama
de GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes).
1995 Janeiro: Realiza-se o 8 a E n c o n t r o Brasileiro de Gays e Lésbicas, c o m finan-
c i a m e n t o d o P r o g r a m a Nacional de DST e Aids e a presença de 84 g r u p o s ,
incluindo, pela p r i m e i r a vez, g r u p o s d e travestis. D u r a n t e o E n c o n t r o é
f u n d a d a a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT).

Fevereiro: Forma-se o p r o g r a m a Coletivo d e Lésbicas d o Rio de Janeiro


(COLERJ).

J u n h o : Realiza-se a 17a C o n f e r ê n c i a Mundial da International Lesbian and


Gay Association (ILGA), n o Rio de Janeiro.

• 1 6 Ç •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Julho: Forma-se o grupo Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e


A m o r (CORSA), em São Paulo.
O u t u b r o : Apresentado na Câmara dos Deputados, em Brasília, o Projeto
de Lei n a 1.151, de autoria da deputada federal Marta Suplicy (PT-SP),

p r o p o n d o a legalização da união civil entre pessoas do m e s m o sexo.


Passa a circular a revista Sui Generis.
1996 Julho: O juiz federal Roger Raupp Rios, de Porto Alegre, profere sentença
favorável à inscrição de companheiro homossexual como dependente em
plano de saúde.
Agosto: Realiza-se o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE),

a partir de iniciativa do COLERJ com apoio do Programa Nacional de DST e


Aids, n o Rio de Janeiro. A data, 29 de agosto, torna-se o Dia Nacional da
Visibilidade Lésbica.
1997 Fevereiro: Realiza-se o 9" Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Travestis,
com a presença de 52 grupos, em São Paulo.
Junho: Realiza-se primeira Parada do Orgulho LGBT, em São Paulo, reu-
nindo 2 mil pessoas, e a primeira Parada Livre, em Porto Alegre, reunindo
150 pessoas.
Setembro: Resolução do Conselho Federal de Medicina autoriza, a título
experimental, a realização de cirurgia de transgenitalização.
1998 Assinado o segundo acordo com o Banco Mundial, conhecido como Aids II.
Realiza-se o I a Rainbow Fest, e m Juiz de Fora (MG), antecedendo a 22 a
edição do famoso concurso Miss Brasil Gay.
M o r r e João Antonio Mascarenhas, no Rio de Janeiro.
1999 Janeiro: Passa a funcionar no Rio de Janeiro o Disque Defesa Homossexual.
Março: Resolução do Conselho Federal de Psicologia determina que os
psicólogos não colaborem "com eventos e serviços que proponham trata-
m e n t o e cura das homossexualidades", nem se pronunciem publicamente
"de m o d o a reforçar os preconceitos sociais existentes e m relação aos
homossexuais c o m o portadores de qualquer desordem psíquica".
Julho: A 3a Parada do Orgulho GLBT de São Paulo, agora sob responsabili-
dade de Associação da Parada do Orgulho GLBT ( A P O G L B T ) , realiza-se pela
primeira vez com a presença de trios elétricos de casas noturnas GLS e reúne
cerca de 35 mil pessoas.

• i66-
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

Setembro: Realiza-se n o auditório da Câmara Federal, em Brasília, o se-


minário Direitos Humanos e Cidadania Homossexual.
D e z e m b r o : Iniciativa dos grupos Arco-íris e Atobá reivindica a revogação
da Portaria n a 1 . 3 7 6 / 9 3 , do Ministério da Saúde, que regulamenta a doa-
ção de sangue, a qual impede que pessoas dos chamados "grupos de risco"
d o e m sangue.
Passa a ser implantado o Projeto Somos, direcionado para a formação e
capacitação de lideranças e grupos homossexuais em três regiões brasileiras:
Sul, Sudeste e Nordeste.
2000 Janeiro: È lançado o livro Violação dos direitos humanos e assassinatos de ho-
mossexuais no Brasil, produzido pelo GGB, c o m o patrocínio da Unesco.
Fevereiro: É assassinado o adestrador Edson Neris da Silva, quando passeava
de mãos dadas c o m o namorado na praça da República, em São Paulo.
Junho: A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, com apoio do Ministério
da Saúde, da Prefeitura, e patrocínio de u m a grande empresa de serviços
de internet, r e ú n e 120 mil pessoas.
2001 Janeiro: Forma-se a Associação dos Empresários Gays de São Paulo (AEG).

Fevereiro: A Justiça de São Paulo condena dois acusados do assassinato de


Edson Neris por homicídio triplamente qualificado a penas de dezenove
anos de reclusão em regime fechado.
O u t u b r o : Realiza-se o 10 a Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Tra-
vestis, com a participação de mais de quarenta grupos, reunindo cerca de
250 pessoas, em Maceió (AL).
Novembro: Sancionada pelo governo de São Paulo a Lei Estadual n a 10.948,
que p u n e a discriminação contra orientação sexual no estado.
D e z e m b r o : Sancionada pelo governo do Rio de Janeiro a Lei Estadual n"
3.406, que estabelece penalidades aos estabelecimentos que discriminem
pessoas em virtude de sua orientação sexual no estado.
Dezembro: Forma-se a Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e
Transgêneros (Antra), em encontro realizado em P o r t o Alegre.
Começa a tramitar na Câmara dos Deputados projeto da deputada Iara
Bernardi (PT-SP) prevendo a alteração da Lei n a 7 . 7 1 6 , de m o d o a definir
como crime também a discriminação por orientação sexual e identidade
de gênero.

• 1 6 7 .
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

2002 Janeiro: Sentença da 3a Vara da Justiça Federal do Rio Grande do Sul,


emitida pela juíza Simone Barbisan Fortes, decide favoravelmente à Ação
Civil Pública impetrada pela Procuradoria da República daquele estado,
obrigando o INSS a considerar a companheira ou companheiro homossexual
dependente no caso de pagamento de auxílio-reclusão e pensão por morte.
A decisão é válida para t o d o o país.
Janeiro: a Justiça do Rio de Janeiro concede a guarda provisória do filho
da cantora Cássia Eller, falecida e m d e z e m b r o de 2001, a sua compa-
nheira Maria Eugênia. Sentença favorável à guarda definitiva é proferida
em outubro.
Janeiro: Sancionada pelo g o v e r n o de Minas Gerais a Lei Estadual n fl
1 4 . 1 7 0 , coibindo a discriminação c o n t r a pessoas em v i r t u d e de sua
orientação sexual.
Março: Mais u m acusado do assassinato de Edson Neris é condenado a
dezenove anos e seis meses de reclusão pela Justiça de São Paulo.
Dezembro: E aprovado na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul o
Projeto de Lei n 2 1 8 5 / 0 2 , que dispõe sobre a promoção e reconhecimento
da liberdade de orientação, prática, manifestação, identidade e preferência
sexual, no âmbito do "respeito à igual dignidade da pessoa humana de todos
os seus cidadãos".
Assinado o terceiro acordo com o Banco Mundial, conhecido como Aids m.
Criado o C e n t r o Latino-Americano e m Sexualidade e Direitos Humanos
(Ciam), n o Rio de Janeiro.
2003 Abril: O estado de Santa Catarina promulga lei que pune a discriminação
p o r orientação sexual.
Abril: O Brasil, com apoio de outros dezenove países m e m b r o s da ONU,
p r o p õ e p r o j e t o de resolução em que todos os m e m b r o s da organização
teriam que p r o m o v e r e proteger os direitos humanos de todas as pessoas,
não importando qual a sua orientação sexual. Os países muçulmanos intro-
duziram emendas ao projeto com intenção de eliminá-lo sem votação.
J u n h o : Segundo estimativas da Polícia Militar, a 7 1 Parada d o O r g u l h o
GLBT de São Paulo r e ú n e 1 milhão de pessoas, passando a estar e n t r e
as m a i o r e s do m u n d o , ao lado da d e São Francisco (Estados Unidos) e
T o r o n t o (Canadá).

• i 68 •
NA TRILHA DO ARCO-IRIS

Junho: O Ciam e o C e n t r o de Estudos de Segurança e Cidadania da Uni-


versidade Cândido Mendes, e m parceria c o m o grupo Arco-íris, realizam
a primeira pesquisa com participantes de Paradas do Orgulho GLBT, no Rio
de Janeiro.
Agosto: Realiza-se u m "beijaço" no Shopping Frei Caneca, em São Paulo,
protestando contra a repressão a demonstrações públicas de afeto no local.
Forma-se no Congresso Nacional a Frente Parlamentar Mista pela Livre
Expressão Sexual.
Realiza-se o 11 2 E n c o n t r o Brasileiro de Gays, Lésbicas e Transgêneros,
e m Manaus.
Após ato contra a homofobia nos fóruns do Movimento Estudantil realizado
e m abril, surge a idéia de u m e n c o n t r o nacional para lidar com o tema.
Em s e t e m b r o , o c o r r e e m São Paulo o l 2 P r é - E n c o n t r o GLBTT Universitá-
2
rio e, em n o v e m b r o , o c o r r e e m Belo Horizonte o l Encontro Nacional
Universitário de Diversidade Sexual (ENUDS).

Diversos grupos pelo país passam a criar livros de registro de união estável
e n t r e homossexuais.
Forma-se a Liga Brasileira d e Lésbicas (LBL).

Forma-se o Instituto Edson Neris, e m São Paulo.


2004 Fevereiro: M o r r e a advogada Janaína D u t r a , ativista travesti, uma das
fundadoras do G r u p o de Resistência Asa Branca (GRAB) e da Associação
de Travestis do Ceará (ATRAC).

Março: P r o v i m e n t o da Corregedoria-Geral de Justiça do Rio Grande do


Sul p e r m i t e que pessoas do m e s m o sexo q u e tenham uma relação estável
e duradoura possam registrar e m Cartórios de Notas documentos que
c o n f i r m e m sua "união e c o m u n h ã o afetiva".
Maio: Em solenidade n o Palácio da Justiça, e m Brasília, é lançado o Pro-
grama Nacional "Brasil sem h o m o f o b i a : programa de combate à violência
e à discriminação c o n t r a GLBT e d e p r o m o ç ã o à cidadania homossexual",
pela Secretaria Especial dos D i r e i t o s H u m a n o s do G o v e r n o Federal,
conhecido c o m o Brasil sem H o m o f o b i a .
O u t u b r o : A Justiça da Paraíba reconhece a relação homoafetiva entre duas
mulheres para fins relacionados a partilha de bens em caso de eventual
separação, herança e pensão.

• 169 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

O u t u b r o : O Tribunal Superior Eleitoral reconhece a possibilidade de


união estável entre duas pessoas do m e s m o sexo quando determinou a
inelegibilidade de candidata nas recentes eleições municipais de 2004,
equiparando para tanto a união estável heterossexual à homossexual.
D e z e m b r o : O Ciam organiza abaixo-assinado contra o P r o j e t o de Lei
de n 2 7 1 7 / 2 0 0 3 , que p r o p u n h a a criação, pelo governo do estado do
Rio de Janeiro, de u m p r o g r a m a de auxílio às pessoas para mudança da
orientação homossexual.
Dezembro: A 17a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
reconhece por unanimidade a união estável de um casal homossexual, con-
cedendo 50% dos bens adquiridos pelo casal a uma das partes após a morte
da companheira.
Travestis ligadas à APOGLBT realizam as Blitz Trans, protestando contra estabe-
lecimentos comerciais que sobretaxam ou proíbem a entrada de travestis.
Forma-se a Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL).

2005 Janeiro: Realiza-se o l 2 Congresso da ABGLT, em Curitiba.


Maio: A 9 a Parada do O r g u l h o GLBT de São Paulo r e ú n e mais de 2 milhões
de pessoas e se confirma c o m o a maior do m u n d o .
Setembro: O Colégio Notarial de São Paulo, e m resposta a ofício da
Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público
Federal (MPF), expede circular informando da possibilidade de registro
de documentos que digam respeito a união civil entre pessoas do m e s m o
sexo pelos Oficiais de Registros d e Títulos e Documentos.
Novembro: A Rede TV! é condenada em ação subscrita por organizações de
defesa dos direitos humanos, incluindo associações LGBT, movida pela Procura-
doria Regional dos Direitos Humanos de São Paulo, por estimular o preconceito
e a discriminação contra homossexuais em u m programa vespertino.
Novembro: Realiza-se em Brasília o 122 Encontro Brasileiro de Gays, Lésbi-
cas e Transgêneros, no qual os bissexuais são incorporados ao movimento,
e a categoria "T" é desdobrada e m travestis, transexuais e transgêneros.
São lançados os primeiros editais do Programa Brasil Sem Homofobia,
para apresentação de projetos de oferta de aconselhamento psicológico
e assessoria jurídica; e de qualificação de profissionais de educação nas
temáticas de orientação sexual e identidade de gênero.

•170-
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

Formam-se O Coletivo Nacional de Transexuais (CNT), O Coletivo Brasileiro


de Bissexuais (CBB) e a R e d e Afro-LGBT.
2006 Junho: Resolução do Conselho Federal de Serviço Social proíbe que o as-
sistente social use "instrumentos e técnicas para criar, manter ou reforçar
preconceitos, estigmas ou estereótipos de discriminação em relação à livre
orientação sexual".
N o v e m b r o : A Justiça de São Paulo autoriza emissão de certidão de nasci-
m e n t o em que u m casal homossexual masculino responde pela paternidade
de u m a criança adotada. Dois casais formados por mulheres já haviam
conquistado o m e s m o direito e m Bagé (RS) e no Rio de Janeiro.
Novembro: E aprovado na Câmara Federal o Projeto de Lei n 2 5 . 0 0 3 / 2 0 0 1 ,
que define os crimes resultantes de discriminação, inclusive por orienta-
ção sexual e identidade de g ê n e r o , de autoria da ex-deputada federal Iara
Bernardi (PT-SP). Transformando em Projeto de Lei da Câmara — PLC n 2
1 2 2 / 2 0 0 6 , é encaminhado para a Comissão de Direitos Humanos e Le-
gislação Participativa do Senado Federal.
A Secretaria Especial de Direitos H u m a n o s da Presidência da República
implanta C e n t r o s de Referência LGBT em vinte cidades de diferentes regi-
ões d o país, para acolher vítimas de violência e discriminação e fornecer
orientações a respeito de direitos humanos.
2007 Março: É retirada da pauta da Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa do Senado Federal a discussão do parecer favorável da relatora,
senadora Fátima Cleide (PT-RO), ao PLC n 2 122/2006, que define crimes de
discriminação p o r orientação sexual e identidade de gênero. O projeto é
remetido a um grupo de trabalho para estudos. A ABGLT passa a promover
campanha de apoio à aprovação do projeto. Nas reuniões do grupo de trabalho,
representantes de grupos religiosos mobilizam-se para combater o projeto.
Junho: A Superintendência Regional do INCRA de Goiás reconhece um
casal f o r m a d o p o r duas trabalhadoras rurais como unidade beneficiária do
programa de r e f o r m a agrária, c o m todos os direitos e deveres das demais
famílias assentadas pelo Instituto.
Agosto: O Ministério Público Federal conquista no Tribunal Regional Federal
da 4a Região (Sul) a garantia do direito de transexuais de todo o país à realização
de cirurgia de transgenitalização pelo Sistema Único de Saúde (sus).

• 1 7 1 *
Bibliografia comentada

FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio d e Janeiro, Zahar, 1 9 8 2 .
C o l e t â n e a que inclui dois ensaios clássicos d o a u t o r q u e balizaram o c a m p o d e pesquisas s o b r e
h o m o s s e x u a l i d a d e nas ciências sociais n o Brasil a p a r t i r da segunda m e t a d e d o s anos 1970. Suas
f o r m u l a ç õ e s a r e s p e i t o d o n e x o e n t r e hierarquias d e g ê n e r o , r a ç a / c o r e classe na p r o d u ç ã o das
categorias de classificação e i d e n t i d a d e h o m o s s e x u a l c o n t i n u a m inspiradoras e atuais.

WEEKS, Jeflrey. Sexualitj and its Discontents. Meanings, Myths and Modern Sexualitíes. Londres, Routledge, 1985.
Estudo a b r a n g e n t e das relações e n t r e t e o r i a s e políticas sexuais n o O c i d e n t e desde m e a d o s d o
século xix. Examina o n a s c i m e n t o da sexologia, os p r i m ó r d i o s da a b o r d a g e m antropológica da
sexualidade, a psicanálise e as políticas c o n t e m p o r â n e a s d e identidade sexual.

PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril. São Paulo, Brasiliense, 1987. U m a nova
edição foi lançada e m 2 0 0 8 , pela E d i t o r a F u n d a ç ã o P e r s e u A b r a m o .
Densa pesquisa sobre o universo das relações h o m o s s e x u a i s masculinas mediadas pelo dinheiro.
O f e r e c e notável discussão e t n o g r á f i c a e crítica da n o ç ã o d e identidade sexual, ao desvendar as
trajetórias e r e l a c i o n a m e n t o s possíveis, q u e vinculam t r a n s i t o r i a m e n t e pessoas s o c i a l m e n t e
distantes, a p a r t i r de u m sistema c o m p l e x o e fluido de categorias e hierarquias sexuais.

MACRAE, E d w a r d . A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da "abertura". C a m p i n a s ,


U n i c a m p , 1990.
Versão m o d i f i c a d a da tese d e d o u t o r a d o d o autor, d e f e n d i d a e m 1986. É a pesquisa mais deta-
lhada a r e s p e i t o d o g r u p o S o m o s , de São Paulo, t e c e n d o c o m p a r a ç õ e s c o m o u t r o s m o v i m e n t o s
sociais da época e analisando o ideal a n t i a u t o r i t á r i o q u e os caracterizava.

• 173 •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

SILVA, Cláudio R o b e r t o da. Reinventando o sonho: história oral de vida política e homossexualidade no Brasil
contemporâneo. Dissertação de m e s t r a d o . São Paulo, U n i v e r s i d a d e d e São Paulo, 1 9 9 8 .
Pesquisa d e história oral q u e r e ú n e r i c o material de entrevistas e d e p o i m e n t o s d e lideranças e
participantes d o m o v i m e n t o h o m o s s e x u a l da p r i m e i r a o n d a .

TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 3a e d .


Rio de Janeiro, R e c o r d , 2 0 0 0 .
Ambicioso esforço de r e c o n s t r u ç ã o da t r a j e t ó r i a da h o m o s s e x u a l i d a d e masculina n o Brasil,
apoiado e m vasta e diversificada d o c u m e n t a ç ã o , e x p o s t a e discutida e m t o m apaixonado e
provocativo. A terceira edição a m p l i o u c o n s i d e r a v e l m e n t e as passagens dedicadas ao movi-
m e n t o político, incluindo discussões sobre o i m p a c t o da Aids e d o m e r c a d o na configuração
das homossexualidades.

GREEN, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo, Unesp, 2000.
G r a n d e e s f o r ç o de r e c o n s t r u ç ã o h i s t ó r i c a c o n c e n t r a d o n o p e r í o d o q u e vai d o final d o s é c u l o
xix ao c o m e ç o d o s anos 1 9 8 0 . O f e r e c e r i c o m a t e r i a l s o b r e as m u d a n ç a s na sociabilidade
h o m o e r ó t i c a masculina, c o m análises e x t e n s a s da p r o d u ç ã o m é d i c a d a p r i m e i r a m e t a d e d o
século xx, d o t r a v e s t i s m o na " a p r o p r i a ç ã o " h o m o s s e x u a l d o carnaval carioca e d a i m p r e n s a
caseira h o m o s s e x u a l .

CÂMARA, Cristina. Cidadania e orientação sexual: a trajetória do grupo Triângulo Rosa. R i o de Janeiro,
Academia Avançada, 2 0 0 2 .
Analisa a t r a j e t ó r i a d o g r u p o Triângulo Rosa, d o Rio d e Janeiro, e sua atuação e m prol da
inserção d o m o v i m e n t o h o m o s s e x u a l n o c e n á r i o político brasileiro n o s anos 1 9 8 0 . Discute
o esforço d e s p e n d i d o para legitimar a n o ç ã o d e o r i e n t a ç ã o sexual c o m o m e i o d e afirmação e
r e c o n h e c i m e n t o dos direitos h o m o s s e x u a i s , na c o n j u n t u r a da r e d e m o c r a t i z a ç ã o .

FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90.
Rio de Janeiro: G a r a m o n d , 2 0 0 5 .
Versão modificada de dissertação de m e s t r a d o d e f e n d i d a e m 2 0 0 2 . R e c o n s t r ó i a t r a j e t ó r i a d o
m o v i m e n t o homossexual brasileiro e analisa, p o r m e i o d e etnografia realizada a p a r t i r d o g r u p o
CORSA, processos de c o n s t r u ç ã o de identidades coletivas n o m o v i m e n t o paulistano da segunda
m e t a d e dos 1990. O m o v i m e n t o é t o m a d o a p a r t i r de suas " c o n e x õ e s ativas" c o m atores d o
Estado e d o m e r c a d o .

ALMEIDA, Gláucia Elaine Silva d e . Da invisibilidade à vulnerabilidade: percursos do "corpo lésbico"na cena
brasileira face à possibilidade de infecção por DST e Aids. Tese d e d o u t o r a d o — IMS. R i o de janeiro,
Universidade Estadual d o Rio d e Janeiro, 2 0 0 5 .
Esforço pioneiro de pesquisa centrado na configuração d o m o v i m e n t o c o n t e m p o r â n e o de lésbicas
n o Brasil, d o c u m e n t a n d o e analisando o m o d e l o de organização dos p r i m e i r o s g r u p o s e o processo

7 4 -
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

de sua autonomização e m relação ao m o v i m e n t o gay, p o r m e i o da articulação de reinvindicações


d e saúde sexual e m c o n e x ã o c o m os p r o g r a m a s governamentais de DST e Aids.

FRANÇA, Isadora Lins. Cercas e pontes: movimento LGBT e mercado GLS na cidade de São Paulo. Dissertação de
m e s t r a d o . U n i v e r s i d a d e de São Paulo, São Paulo, 2 0 0 6 .
D o c u m e n t a e analisa o d e s e n v o l v i m e n t o das Paradas d o O r g u l h o LGBT d e São Paulo e a p r o f u n d a
a discussão s o b r e as c o n e x õ e s e t e n s õ e s e n t r e o m o v i m e n t o LGBT e o crescente m e r c a d o voltado
a o público GLS.

•17 S '
Notas

Introdução
1 A bibliografia converge ao considerar o final dos anos 1970 c o m o marco do surgimento de "movimento
homossexual"no Brasil. Ver, entre outros: FRY, Peter. "Da hierarquia à igualdade: a construção histórica
da homossexualidade no Brasil". In: . Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de
Janeiro, Zahar, 1982, p. 87-115; TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso. São Paulo, Max Limonad,
1986; . 3A ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro, Record, 2000; MACRAE, Edward. A construção
da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da"abertura". Campinas, Unicamp, 1990; SILVA, Cristina
Luci Câmara da. Triângulo Rosa: a busca pela cidadania dos "homossexuais". Dissertação de mestrado. Rio
de Janeiro, Universidade Federal d o Rio de Janeiro, 1993.; SILVA, Cláudio Roberto da. Reinventando o
sonho: história oral de vida política e homossexualidade no Brasil contemporâneo. Dissertação de mestrado. . São
Paulo, Universidade de São Paulo, 1 9 9 8 . ; GREEN, James. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no
Brasil do século XX. São Paulo, Unesp, 2000; GREEN, James. "Mais amor e mais tesão: a construção de u m
movimento brasileiro de gays, lésbicas e travestis". Campinas, Cadernos Pagu, n c 15, 2000, p. 271-295;
FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio
de Janeiro, Garamond, 2005; ALMEIDA, Gláucia Elaine Silva de. Da invisibilidade à vulnerabilidade:percursos
do"corpo lésbico"na cena brasileiraJace à possibilidade de infecção por DST e Aids. Tese de doutorado — Rio de
Janeiro, IMS, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2005; FIGARI, Carlos. @s outr@s cariocas. Belo
Horizonte, Rio de Janeiro, UFMG/IUPERJ, 2007.
2 GREEN, "Mais amor e mais tesão", op. cit; FACCHINI, Sopa de letrinhas?, op. cit.

Paradoxos da i d e n t i d a d e
1 Ver a respeito SIMÕES, Júlio Assis e FRANÇA, Isadora Lins. " D o g u e t o ao mercado". In: GREEN, James et
al. Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo, Unesp, 2005, p. 309-336. FRANÇA, Isadora

. I?7 .
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

Lins. "Identidades coletivas, c o n s u m o e política: a aproximação e n t r e m e r c a d o GLS e m o v i m e n t o GLBT


e m São Paulo". Horizontes Antropológicos, n fi 2 8 , 2 0 0 7 , p. 2 9 8 - 3 1 1 .
2 FRY, Peter e MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 117-118.
3 MOTT, L u i z . Violação dos direitos humanos e assassinato de homossexuais no Brasil. Salvador, G r u p o
Gay da Bahia, 2 0 0 0 ; MOTT, Luiz et ai. O crime anti-homossexual no Brasil. Salvador, G r u p o Gay da
Bahia, 2 0 0 2 .
4 O u t r o s g r u p o s e ativistas t ê m se d e d i c a d o a d o c u m e n t a r c r i m e s violentos contra h o m o s s e x u a i s n o
Brasil. C o m o m o s t r a J a m e s G r e e n , muitas dessas i n f o r m a ç õ e s f o r a m i n c o r p o r a d a s e m r e l a t ó r i o s
sobre violação dos direitos h u m a n o s n o Brasil elaborados p e l o D e p a r t a m e n t o d e Estado dos Estados
Unidos. Cf. "Mais a m o r e mais tesão", op. cit., p. 2 8 8 - 2 8 9 .
5 A l g u m a s d e s s a s p e s q u i s a s r e s u l t a r a m e m p u b l i c a ç õ e s : CARRARA, S é r g i o ; RAMOS, Sílvia e CAETANO,
M á r c i o . Política direitos, violência e homossexualidade. 8a Parada do Orgulho GLBT — Rio 2003. Rio
d e J a n e i r o , Pallas, 2 0 0 3 ; CARRARA, S é r g i o e RAMOS, Sílvia. Política, direitos, violência e homossexu-
alidade. Pesquisa 9a Parada do Orgulho GLBT - Rio 2004. Rio d e J a n e i r o , CEPESC/Clam, 2 0 0 5 ;
CARRARA, S é r g i o ; RAMOS, Sílvia; SIMÕES, J ú l i o Assis e FACCHLNL, R e g i n a . Política, direitos, violência
e homossexualidade. Pesquisa 9a Parada do Orgulho GLBT — São Paulo 2005. Rio d e J a n e i r o , C E P E S C /
C i a m , 2 0 0 6 ; CARRARA, S é r g i o ; RAMOS, Sílvia; LACERDA, P a u l a ; MEDRADO, B e n e d i t o e VIEIRA, N a r a .
Política, direitos, violência e homossexualidade. Pesquisa 5a Parada da Diversidade — Pernambuco 2006.
R i o d e J a n e i r o , CEPESC/Clam, 2 0 0 7 .

6 Além das referências citadas na n o t a anterior, ver: CARRARA, Sérgio e VIANNA, A d r i a n a . "As vítimas
d o desejo: os tribunais cariocas e a h o m o s s e x u a l i d a d e n o s anos 1980". In: PISCITELLI, A d r i a n a et al.
Sexualidade e saberes: convenções efrohteiras. Rio d e Janeiro, G a r a m o n d , 2 0 0 4 ; RAMOS, Sílvia. "Violência
e h o m o s s e x u a l i d a d e n o Brasil: as políticas públicas e o m o v i m e n t o h o m o s s e x u a l " . In: GROSSI, M i r i a m
Pillar et al. (org.). Movimentos sociais, educação e sexualidades. Rio d e Janeiro, G a r a m o n d , 2005; CARRARA,
Sérgio e VIANNA, A d r i a n a . "Tá lá o c o r p o e s t e n d i d o n o c h ã o : a violência letal c o n t r a travestis n o
m u n i c í p i o d o R i o d e Janeiro". Rio d e Janeiro, Physis, 16(2), 2 0 0 6 , p. 2 3 3 - 2 4 9 .
7 SILVA, Cristina. Triângulo Rosa, op. cit., p. 141.
8 ROBINSON, Paul. The Modernization of Sex. Ithaca, Cornell University Press, 1989, p. 1 - 4 1 .
9 WEEKS, Jeffrey. Sexuality and its Discontents: Meanings, Myths and Modem Sexualities. L o n d r e s , R o u t l e d g e ,
1 9 8 5 , p . 135, 1 4 8 , 1 4 9 - 1 5 6 .
10 LE VAY, S i m o n . "A D i f f e r e n c e in H y p o t h a l a m i c S t r u c t u r e Between H o m o s e x u a l and H e t e r o s e x u a l
M e n " . Science, n fi 2 5 3 , 1 9 9 1 , p. 1 0 3 4 - 1 0 3 7 ; LE VAY, Simon. Queer Science: the Use and Abuse of Research
into Homosexuality. C a m b r i d g e , MA,The MIT Press, 1996.
11 Para u m a crítica desses aspectos, ver: LÕWY, liana. "Universalidade da ciência e c o n h e c i m e n t o s 'situa-
d o s ' " . C a m p i n a s , Cadernos Pagu, n 2 15, 2 0 0 0 , p. 15-38.

12 KINSEY, A l f r e d et al. O comportamento sexual do homem. Lisboa, Meridiana, 1972; ROBINSON, Paul. The
Modernization of Sex, op. cit., p. 4 2 - 1 1 9 .

13 WEEKS, Jeffrey. " O c o r p o e a sexualidade". In: LOURO, Guacira ( o r g ) . O corpo educado: pedagogias da
sexualidade. Belo H o r i z o n t e , A u t ê n t i c a , 2 0 0 0 .
14 SEDGWICK, Eve Kosofsky. "A epistemologia do armário". Campinas, Cadernos Pagu, n c 28, 2007, p. 19-54.
15 Sobre arranjos familiares n o Brasil c o n t e m p o r â n e o , ver, e n t r e outros, SCOTT, Parry. "Família, moralidade
e novas leis" e FONSECA, Claudia. "Sexualidade, família e legalidade: questionando fronteiras". In: ÁVILA,

• 178 •
NA TRILHA DO ARCO-ÍRIS

Maria Betânia et al. ( o r g ) . Novas legalidades e democratização da vida social:família, sexualidade e aborto.
Rio d e Janeiro, G a r a m o n d , 2 0 0 5 . Sobre o d e b a t e jurídico e m t o r n o d e homossexualidade e direito d e
família, v e r RIOS, R o g e r Raupp. A homossexualidade no direito. P o r t o Alegre, Livraria d o Advogado, 2 0 0 1 ,
caps. 4 e 5 . Para pesquisas r e c e n t e s sobre homossexualidade, família e parentalidade n o Brasil, ver,
e n t r e o u t r o s : UZIEL, Ana Paula. Homossexualidade e adoção. Rio d e Janeiro, G a r a m o n d , 2007; TARNOVSKL,
Flavio. Pais assumidos. Florianópolis, C a d e r n o s NIGS, 2 0 0 3 ; MELLO, Luiz. Novasfamílias. Rio d e Janeiro,
G a r a m o n d , 2005; SOUZA, Erica Renata d e . Necessidade defilhos: maternidade,família e (homo)sexualidade.
Tese d e d o u t o r a d o . Campinas, Universidade Estadual d e Campinas, 2 0 0 5 .

U m a t r a j e t ó r i a da p o l í t i c a d e i d e n t i d a d e s h o m o s s e x u a i s
1 Há u m a edição e m inglês q u e r e ú n e os d o z e v o l u m e s escritos p o r ULRICHS. The Riddle of Man-Manly Love:
the Pionnering Work on Male Homosexuality. A m h e r s t , NY, P r o m e t h e u s , 1994. Ver t a m b é m KENNEDY, H u b e r t
C. " ' T h i r d S e x ' T h e o r y of Karl H e i n r i c h Ulrichs". In: LICATA, Salvatore e PETERSEN, R o b e r t ( o r g s . ) .
Historical Perspectives on Homosexuality. Nova York, T h e H a w o r t h P r e s s / S t e i n & Day, 1981 (versão e m
livro da e d i ç ã o d o Journal of Homosexuality, 6 (5), (1980-1981).
2 Karl W e s t p h a l é o a u t o r d e u m a r t i g o c é l e b r e sobre as "sensações sexuais contrárias", p u b l i c a d o e m
1870, q u e o filósofo e h i s t o r i a d o r francês M i c h e l Foucault diz m a r c a r "a data natalícia" da h o m o s -
sexualidade c o m o "categoria psicológica, psiquiátrica e m é d i c a " . (Ver FOUCAULT, M i c h e l . História da
sexualidade 1 — a vontade de saber. Rio d e J a n e i r o , Graal, 1 9 7 7 , p. 4 3 - 4 4 . )
3 ALMEIDA, J o s é R. Pires d e . Homossexualismo (a libertinagem no Rio de Janeiro). Rio d e Janeiro, L a e m m e r t ,
1906. S o b r e esse "incrível p o t - p o u r r i d e l i b e r t i n a g e n s d e t o d o s o s tipos imagináveis", c o m o d e l e
disse P e t e r Fry, ver, e n t r e o u t r o s : FRY, " D a h i e r a r q u i a à igualdade", op. cit-, GREEN, Além do carnaval,
op. cit., cap. 1.
4 KRAFFT-EBING, Richard v o n . Psychopathia sexualis. São Paulo, M a r t i n s Fontes, 2 0 0 1 .
5 FREUD, S i g m u n d . Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio d e Janeiro, I m a g o , 2 0 0 2 , p. 2 1 - 2 2 .
6 FALQUET, J u l e s . "Breve r e s e n a d e algunas t e o r i a s lesbianas". In: L A G O , M a r a et al. (org.). Interdiscipli-
naridade em diálogos de gênero. Florianópolis, M u l h e r e s , 2 0 0 4 , p. 3 9 .
7 Ver a r e s p e i t o , LAURISTEN, John e THORSTAD, David. The Early Homosexual Rights Movement (1864-1935).
Nova York, T i m e C h a n g e , 1974; FRY, P e t e r e MACRAE, E d w a r d . 0 que é homossexualidade, op. cit., p.
87.
8 MEYEROWITZ, J o a n n e . How Sex Changed: a History ofTranssexuality in the United States. C a m b r i d g e , M A ,
H a r v a r d U n i v e r s i t y Press, 2 0 0 2 , cap. 1.

9 Ver a r e s p e i t o o d o c u m e n t o e l a b o r a d o pela organização m i l i t a n t e italiana C e n t r o Italiano p e r la


D o c u m e n t a z i o n e delle Attività delle M i n o r a n z e Sociali (CIDAMS),"De S o d o m a a Auschwitz, a m a t a n ç a
d o s h o m o s s e x u a i s " , divulgado e m 1972 e publicado n o Brasil, ao q u e p a r e c e , pela p r i m e i r a vez, n o
j o r n a l Lampião, n a 13, j u n h o de 1 9 7 9 , p. 17.
10 CHAUNCEY, G e o r g e . Gay NewYork. Gender, Urban Culture and the Making of the Gay Male World. N o v a York,
Basic, 1 9 9 4 .
11 Ver, a r e s p e i t o , e n t r e o u t r o s : D'EMILIO, John. Sexual Politics, Sexual Communities: the Making of a Homosexual
Minority in the United States. Chicago, T h e University of Chicago Press; WEEKS, Jeffrey. Sexuality and
its Discontents, op. cit., cap. 8; CASTELLS, M a n u e l . 0 poder da identidade. São Paulo, Paz e T e r r a , 1 9 9 9 ,
p. 2 4 8 - 2 5 6 .

' 1 7 9 '
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

12 RICH, Adrienne. "Compulsory Heterosexuality and the Lesbian Existence". Signs, 5(4), 1980. Para
uma crítica a Rich, ver WEEKS, Sexuality and its Discontents, op. cit., p. 201-208.
13 WITTIG, Monique. "One is N o t Born aWoman". In: ABELOVE, Henry et al. (org.). The Lesbian and Gay
Studies Reader. Nova York, Routledge, 1993, p. 103-109.
14 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo 2: a experiência vivida. São Paulo, Difel, 1975, p. 9.
15 Um trabalho marcante a esse respeito nos Estados Unidos, estimulando a discussão sobre diferenças
de estilos de vida em relação à homossexualidade feminina como expressão de diferenças culturais
dentro da mesma sociedade, foi o das antropólogas KENNEDY, Elisabeth e DAVE, Madeline. Botts of
Leather — Slippes of Gold:The History of a Lesbian Community. Nova York, Penguim, 1993.
16 Para uma crítica a Wittig, enfatizando também o significado da reapropriação dessas categorias
estigmatizadas, ver BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003,
p. 162-184.
17 MEYEROWITZ, How sex Changed, op.cit., p. 159-161. Para uma análise das estratégias de manipulação de
identidade praticada por Agnes, ver GARF1NKEL, Harold. "'Passing' and the Managed Achievement of
Sex Status in an 'Intersexed' Person". In: . Studies in Ethnomethodology. Englwood Cliffs, Nova
Jersey, Prentice-Hall, 1967.
18 GAMSON, Josua. "Deben los movimientos identitários autodestruirse? Un extrano dilema". In:
JIMÉNEZ, Rafael (org.). Sexualidades trangresoras: una antologia de estúdios queer. Barcelona, Icaria,
2002, p. 141-172.
19 Ver a respeito RUBIN, Gayle. "Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality". In:
ABELOVE, Henry et al. (org). The Lesbian and Gay Studies Reader. Nova York, Routledge, 1993, p. 3-44.
20 GREEN, Além do carnaval, op. cit., p. 56-58, 172.
21 FRY, "Da hierarquia À igualdade", op. cit.
22 MOTT, Luiz. "Relações raciais entre homossexuais no Brasil colonial". In: . Escravidão, homossexu-
alidade e demonologia. São Paulo, ícone, 1988.
23 PERLONGHER, Néstor. 0 negócio do michê. São Paulo, Brasiliense, 1987. Uma nova edição foi lançada
em 2008, pela Editora Fundação Perseu Abramo.

Da m o v i m e n t a ç ã o ao m o v i m e n t o
1 Sobre esse caso, ver FRY. Peter. "Febrônio índio do Brasil: onde cruzam a psiquatria, a profecia, a
homossexualidade e alei". In: EULÁLIO, Alexandre et al. Caminhos cruzados, op. cit., p. 65-80. Para uma
visão geral das preocupações médico-legais com a homossexualidade na primeira metade do século
XX, ver, entre outros, FRY. "Da hierarquia à igualdade", op. cit.-, FRY e MACRAE, O que ê homossexualidade,
op. cit., p, 60-79; GREEN. Além do carnaval, op. cit. , cap. 3; FIGARI, @s outr@s cariocas, op. cit., cap. 4.
2 SILVA, José Fábio Barbosa da. "Homossexualismo em São Paulo: estudo de u m grupo minoritário".
In: GREEN, James et al. Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo, Unesp, 2005.
3 FRY, Peter. "História da imprensa baiana". Lampião, n c 4, ago./set. 1978, p. 4 .
4 Leonídio Ribeiro, o médico carioca que tratou do caso de Febrônio índio do Brasil, considerava a di-
ficuldade de comprovar a existência de comportamento homossexual entre mulheres. Aparentemente,
os médicos da época não acreditariam na existência de homossexualidade feminina, ou, quando muito,
a considerariam ser de incidência extremamente rara. Cf. GREEN, Além do carnaval, op. cit., p. 211 e 247.

• i8o-
NA TRILHA DO ARCO-LRIS

5 Esse é um p o n t o de vista defendido p o r pesquisadoras norte-americanas. Ver, por exemplo, ROT-


THENBERG, Tamar. "And sheTold two Friends: Lesbians Creating Urban Social Space". In: BELL, David
e VALENTINE, Gill. Mapping Desire. Londres/Nova York, Routledge, 1995, p. 165-181.
6 NOGUEIRA, Nadia. Invenções de si em histórias da amor: Lota ÍLBishop. Rio de Janeiro, Apicuri,
2008.
7 James Green, e m Além do carnaval, op.cit., listou cerca de quarenta publicações dessa imprensa caseira
homossexual que circularam entre 1963 e 1970, a maior parte concentrada no Rio de Janeiro.
8 PERLONGHER, Néstor. 0 negócio do michê, op. cit., p. 78 e p. 81-82.
9 GUIMARÃES, Carmen Dora. 0 homossexual visto por entendidos. Rio de Janeiro, Garamond, 2004, p. 89.
(Originalmente, dissertação de mestrado em antropologia social, defendida no Museu Nacional da
UFRJ e m 1 9 7 7 . )

10 WHITAM, Frederick. "Os entendidos: Gay Life in São Paulo in the Late 1970's". In: MURRAY, Stephen O.
(org.). Latin American Male Homosexualities. Albuquerque, University of New México Press, 1995, p. 231.
11 BAHIANA, Ana Maria. Almanaque anos 70. Rio de Janeiro, Ediouro, 2006, p. 36.
12 LOBERT, Rosemary. A palavra mágica dzi: uma resposta difícil de se perguntar. Dissertação de mestrado.
Campinas, Universidade de Campinas, 1979.
13 Antonio Bivar, apud PERLONGHER Néstor, 0 negócio do michê, op.cit., p. 8 8.
14 FRY, "História da imprensa baiana", op. cit.

Libertários na "abertura"
1 "Saindo do gueto". Lampião, n" 0, abr. 1978, p. 2.
2 Sobre o Somos, referimo-nos especialmente a MACRAE, A construção da igualdade, op. cit. O u t r a
i m p o r t a n t e referência é TREVISAN, Devassos no paraíso, op. cit. (ver os capítulos sobre "A manipu-
lação da homossexualidade liberada"). A versão de Trevisan sobre a trajetória do g r u p o talvez
tenha tido mais repercussão do que a de MacRae, pelo menos j u n t o aos jovens ativistas de hoje
(enquanto A construção da igualdade teve até agora u m a única edição, em 1990, esgotada, Devassos
no paraíso já está em sua sétima edição revista e ampliada). Estudos c o m o os de Pedro de Souza
(Confidencias da carne. Campinas, Unicamp, 1997) e de N é s t o r Perlongher, já citado, exploraram
outros aspectos d o Somos. As pesquisas de Cristina Câmara Silva, sobre o grupo Triângulo Rosa,
e de Cláudio R o b e r t o da Silva, sobre o Lampião, t o m a r a m os relatos sobre o Somos como p o n t o
de referência.
3 O n o m e completo do jornal era Lampião da Esquina, sendo o complemento "da Esquina" acrescentado
por questões de registro comercial, já que existia então uma editora com o nome "Lampião". Os
exemplares, p o r é m , estampavam a palavra "Lampião" em letras garrafais, e foi por esse nome que o
jornal ficou conhecido. Por isso, sempre nos referiremos a ele aqui apenas dessa forma abreviada.
4 SILVA, Reinventando o sonho, op. cit. Todos os d e p o i m e n t o s dados a este autor, aqui citados, inclusive
os de Mascarenhas e M o t t provêm dessa fonte, se e n c o n t r a m nesta mesma referência.
5 O livro em questão teve uma edição brasileira: DANIEL, Marc e BAUDRY, André. Os homossexuais. Rio
de Janeiro, Artenova, 1977.
6 A referência a"Geni"se deve ao sucesso atingido, entre 1 9 7 9 e 1980, pela canção "Genie o Zepelim",
de Chico Buarque, que fazia parte da Ópera do malandro, uma adaptação da Ópera dos três vinténs, de

• I8 I •
HISTÓRIA DO POVO BRASILEIRO

B e r t o l t Brecht e K u r t W e i l l . Chico Buarque t r a n s f o r m a r a a prostituta Jennny, da canção original,


na b i c h a / t r a v e s t i Geni, alvo de t o d o tipo de chacota e humilhação, q u e salva os m o r a d o r e s de sua
cidade do ataque de u m p o d e r o s o vilão, mas volta a ser vilipendiada p o r eles n o final. O refrão e r a
f o r t e : "Joga p e d r a na G e n i / Joga bosta na G e n i / Ela é feita p r a a p a n h a r / Ela é boa de c u s p i r / Ela dá
(' para qualquer u m / Maldita Geni".

7 MACRAE, A construção da igualdade, op. cit. Todas as citações de MacRae neste capítulo se e n c o n t r a m
nesta m e s m a referência.
8 Júlio Assis Simões baseia-se aqui e m suas m e m ó r i a s desse p e r í o d o , c o m o f r e q ü e n t a d o r das reuniões
gerais d o S o m o s , e de p a r t e das reuniões de seu G r u p o de Atuação, de maio a d e z e m b r o de 1979. O
leitor p o d e c o n f r o n t a r as versões opostas sobre essa dinâmica organizativa, apresentadas p o r Edward
MacRae (.A construção da igualdade, cap. 5) e p o r João SilvérioTrevisan (Devassos no paraíso, 3a ed. p a r t e
5, cap. 2).

9 MANTEGA, G u i d o (org.). Sexo S^poder. São Paulo, Brasiliense, 1979, p. 1 37-155.


10 TREVISAN, João Silvério. "A g u e r r a santa d o Dr. Richetti". Lampião, n fl 26, jul. 1980.
11 PONTES, Heloísa. Do palco aos bastidores: o SOS-Mulher (SP) e as práticasfeministas contemporâneas. Dissertação
de m e s t r a d o , Campinas, Universidade de Campinas, 1986.
12 ALMEIDA, Gláucia Elaine Silva de, Da invisibilidade à vulnerabilidade, op. cit., p. 103.

Atentos e fortes
1 Este capítulo revisita e amplia os a r g u m e n t o s e dados apresentados p o r Regina Facchini n o capítulo
" M o v i m e n t o homossexual: r e c o m p o n d o u m histórico" d o livro Sopa de Letrinhas?, op. cit.
2 SILVA, Reinventando o sonho, op. cit.
3 SILVA, Triângulo Rosa, op. cit., p. 55.
4 PERLONGHER, Néstor. 0 que éAids. São Paulo, Brasiliense, 1987.
5 Para u m r e t r a t o vivido desse p e r í o d o e m São Paulo, ver ARRUDA, Roldão. Dias e ira: uma história verídica
de assassinatos autorizados. São Paulo, G l o b o , 2 0 0 1 .
6 PERLONGHER, Néstor. " O desaparecimento da homossexualidade". In: DANIEL, H e r b e r t et al. SaúdeLoucura
3. São Paulo, H u c i t e c , 1993.
7 GALVÃO, Jane. Aids no Brasil: a agenda de construção de uma epidemia. Rio de J a n e i r o / S ã o Paulo, ABIA/
Ed.34,2000.
8 GREEN, "Mais a m o r e mais tesão", op. cit., p. 292.
9 TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso, 3a e d . , op cit., p. 4 6 2 - 4 6 3 .

A bandeira d o a r c o - í r i s
1 MOTT, L u i z . A cena gay em Salvador em tempos de Aids. S a l v a d o r , G r u p o Gay d a B a h i a , 2 0 0 0 ,
p. 14. C a b e o b s e r v a r q u e o m o v i m e n t o a t u a l m e n t e evita e m p r e g a r a categoria HSH i s o l a d a m e n t e ,
p r e f e r i n d o e m seu lugar a e x p r e s s ã o "gays e o u t r o s h o m e n s q u e f a z e m s e x o c o m h o m e n s " .
2 A avaliação citada está disponível na p á g i n a < w w w . a i d s . g o v . b r > . Ver FACCHINI, Sopa de letrinhas?,
op. cit., p. 1 6 6 .
3 ALMEIDA, Da invisibilidade à vulnerabilidade, op. cit., p. 208.

• 182 •
NA TRILHA DO ARCO-IRIS

4 Apud FACCHINI, Sopa de letrinhas?, op. cit., p. 1 35. As i n f o r m a ç õ e s dos parágrafos seguintes p r o v ê m da
mesma fonte.
5 Para u m a visão d i v e r g e n t e , n ã o só e m relação à ABGLT, m a s a várias das f o r m a s de organização e
reivindicações assumidas p e l o m o v i m e n t o , ver GOLIN, Célio. " O r i e n t a ç ã o sexual e novos sujeitos de
direitos". In: FONSECA, Claudia et al. Antropologia, diversidade e direitos humanos: diálogos interdisciplinares.
P o r t o Alegre, UFRGS, 2 0 0 4 .

6 Valemo-nos aqui de relatos de ativistas (Luiz M o t t para o x E n c o n t r o , e Toni Reis e Willian Aguiar,
para o XII E n c o n t r o ) , o b t i d o s p o r m e i o da consulta ao g r u p o d e discussão virtual Lista GLS.
7 FRANÇA, Isadora Lins. Cercas e pontes: movimento GLBT e mercado GLS na cidade de São Paulo. Dissertação de
m e s t r a d o . São Paulo, Universidade d e São Paulo, 2 0 0 6 .
8 Sobre drag queens, ver, e n t r e o u t r o s , VENCATO, Anna Paula. Fervendo com as drags: corporalidade e perform-
ances de drag queens na ilha de Santa Catarina. Dissertação de m e s t r a d o . Florianópolis, Universidade
Federal de Santa Catarina, 2 0 0 2 .

9 FRANÇA, "Identidades coletivas, c o n s u m o e política", op. cit., p. 3 0 1 - 3 0 2 .


10 S o b r e as Paradas d o O r g u l h o LGBT de São Paulo, ver FRANÇA, Cercas e pontes, op. cit.
11 Essa t e n d ê n c i a d e c o n e c t a r cidadania a p r á t i c a s d e c o n s u m o e n v o l v e t a m b é m ações e m o u t r o s
â m b i t o s . E m 2 0 0 6 , p o r e x e m p l o , a f u n d a ç ã o P r o c o n , S e r v i ç o d e P r o t e ç ã o ao C o n s u m i d o r , d o
e s t a d o de São P a u l o , o r g a n i z o u u m s e m i n á r i o i n t i t u l a d o "As r e l a ç õ e s d e c o n s u m o e a d i s c r i m i -
n a ç ã o h o m o f ó b i c a " , c o m o p a r t e das a t i v i d a d e s q u e m a r c a r a m s e u s t r i n t a anos d e existência.
12 FRANÇA, I s a d o r a Lins. " ' C a d a m a c a c o n o seu g a l h o ? ' : a r r a n j o s d e p o d e r , políticas i d e n t i t á r i a s e
s e g m e n t a ç ã o d e m e r c a d o n o m o v i m e n t o h o m o s s e x u a l " . São P a u l o , Revista Brasileira de Ciências
Sociais, 2 1 , ( 6 0 ) , p . 1 0 3 - 1 1 5 .

C o n s i d e r a ç õ e s finais: c o n q u i s t a s e d e s a f i o s
1 E n t r e os c r i m e s a r r o l a d o s c o n t r a a figura d o "cidadão h o m o s s e x u a l , bissexual ou t r a n s g ê n e r o s "
e s t ã o : atos d e dispensa d i r e t a o u i n d i r e t a , praticadas p e l o e m p r e g a d o r o u seu p r e p o s t o ( a r t . 4 o ) ;
impedir, r e c u s a r o u p r o i b i r o ingresso o u p e r m a n ê n c i a e m q u a l q u e r a m b i e n t e o u e s t a b e l e c i m e n t o
p ú b l i c o o u p r i v a d o , a b e r t o ao público ( a r t . 5 fl ); recusar, negar, impedir, preterir, prejudicar, r e t a r d a r
ou excluir e m q u a l q u e r sistema d e seleção educacional, r e c r u t a m e n t o o u p r o m o ç ã o funcional o u
profissional ( a r t . 6 C ); s o b r e t a x a r , recusar, p r e t e r i r o u i m p e d i r a h o s p e d a g e m e m hotéis, m o t é i s ,
p e n s õ e s ou similares ( a r t . 7 C ); p r o i b i r a livre e x p r e s s ã o e m a n i f e s t a ç ã o d e afetividade, sendo estas
e x p r e s s õ e s e m a n i f e s t a ç õ e s p e r m i t i d a s aos d e m a i s cidadãos o u cidadãs ( a r t . 8 Ü ).
2 UZIEL, Homossexualidade e adoção, op. cit., p. 200.
3 SOUZA, Necessidade dejilhos, op. cit.
4 Em agosto d e 2 0 0 7 , o Ministério da Saúde anunciou a inclusão das cirurgias de redesignação sexual
e n t r e os serviços p r e s t a d o s pelo Sistema ünico d e Saúde (sus), por d e t e r m i n a ç ã o da Justiça Federal
da 4 a Região (Sul). E n t r e t a n t o , o S u p r e m o Tribunal Federal cancelou o p r o c e d i m e n t o previsto e m
d e z e m b r o d e 2 0 0 7 , alegando falta de p l a n e j a m e n t o e e s t r u t u r a .

5 RIOS, A homossexualidade no direito, op. cit., p. 177-178.


6 VIANNA, Adriana e CARRARA, Sérgio. "Sexual Politics and Sexual Rights in Brazil: a Case Study". In:
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Na trilha do arco-íris Do movimento homossexual ao LGBT
foi impresso na cidade de São Paulo em abril de 2009
pela Bartira Gráfica para a Editora Fundação Perseu
Abramo com tiragem de 3.000 exemplares. O texto
foi composto e m Perpetua no c o r p o 1 2 , 5 / 1 S . A capa
foi impressa em Supremo 250g; o miolo foi impresso
em papel Pólen Soft 8Qg.

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