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VIII FÓRUM DISCENTE E

IV FÓRUM DE EGRESSOS ISSN: 2358-646X

PPGH-UNIVERSO Pesquisa & Educação a Distância

O GENERAL DA BANDA NOS ANOS DE CHUMBO: ENTRE A


POLÍTICA, O SAMBA E O AXÉ (1964-1979)

Diego Uchoa de Amorim1


uchoa.amorim@gmail.com

Resumo: No presente artigo O General da Banda nos Anos de Chumbo: Entre a Política, o
Samba e o Axé (1964-1979) apresentamos as primeiras impressões das pesquisas destes meses
iniciais de doutoramento ligado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Salgado de Oliveira (UNIVERSO-Niterói, RJ). Nosso objetivo é analisar a trajetória de
Tancredo da Silva Pinto, umbandista, escritor, compositor de música popular, sambista e um
dos grandes nomes da luta pela liberdade religiosa no Brasil entre os anos de 1964 e 1979,
período da sua vida marcado pela experiência da Ditadura Civil-militar (1964-1985) no Brasil,
a partir do prisma dos estudos do Pós-abolição nas Américas buscando nos afastar das teses que
se capilarizaram nas ciências humanas e sociais no país durante o século XX na qual a população
liberta e seus descendentes aparecem como “largados à própria sorte” e silenciados enquanto
sujeitos importantes na formação da sociedade brasileira. Quando, ao contrário, mesmo sob os
contextos mais duros, protagonizaram processos de criação, atuação e disputas de instituições
políticas, culturais e religiosas centrais nas grandes cidades do Sudeste, do Brasil e do Atlântico
Negro compreendidos através da diáspora africana nas Américas.

Palavra-Chave: Tancredo da Silva Pinto, Pós-Abolição, História Social do Samba, História da


Umbanda, Ditadura Civil-militar.

1
Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
Bacharelado e Licenciatura em História (Universidade Federal Fluminense, UFF-Niterói/RJ).
Especialista em Educação das Relações Étnico-Raciais no Ensino Básico (Ererebá-CPII, RJ).
Mestre em História Política, Movimentos Sociais e Memória (Universidade Salgado de Oliveira,
UNIVERSO, Niterói/RJ).
Doutorando em História Política, Movimentos Sociais e Memória (Universidade Salgado de Oliveira,
UNIVERSO, Niterói/RJ).
Integrante do Laboratório de Estudos de Política e Ideologia (LEPIDE-UNIVERSO)
Grupo de Pesquisas e Estudos Nacionais e Estratégicos – Moniz Bandeira (Rio de Janeiro/RJ).
Professor de História no Colégio São Vicente de Paulo (Cosme Velho, RJ)
Educador Popular no Pré-Vestibular São Cristóvão (São Cristóvão, RJ).
e-mail: uchoa.amorim@gmail.com
Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos da Licença Creative Commons BY 4.0, que permite
uso, distribuição e reprodução para fins não comercias, com a citação dos autores e da fonte original e sob a mesma licença.
“Hoje vamos falar de uma das figuras mais populares dos cultos afro-brasileiros, da Umbanda. Nome
internacional, pois seja na Inglaterra, na Finlândia, Suécia ou Estados Unidos o nome de Tancredo da Silva
Pinto é conhecido. Sua autenticidade é responsável por essa popularidade. É simples, é bom. É autêntico porque
é humano”.
(A Luta Democrática, RJ, 09 e 10 de agosto de 1970)

Na última década, observamos um crescimento substancial de pesquisas acadêmicas


dentro da área de História Cultural ou História Social da Cultura referente ao samba, às
trajetórias dos sambistas, às instituições das escolas de samba, ao seu caráter de afirmação da
identidade negra2 no Brasil além de alguns temas sobre as relações entre o Estado e o mundo
do samba3. Os sambistas em suas individualidades, movimentos sociais e políticos, além de
suas instituições, cada vez mais demandam o amadurecimento de reflexões das quais as
universidades e pesquisadores precisam dar respostas. Mesmo com o clima de aparente
conhecimento a respeito das histórias e memórias dos sambistas e das relações que compõe o
samba enquanto cultura, fomentado pela popularidade de determinados artistas, grupos e
agremiações na grande mídia corporativa brasileira, há muito trabalho pela frente para
construirmos um quadro no qual estes nomes apareçam em análises empíricas e proposições
teóricas como sujeitos da história do Rio de Janeiro, do Brasil e das Américas4.
Nas primeiras décadas do século XXI nas universidades brasileiras, em processo
paralelo ao citado acima, com a crescente especialização dos programas de pós-graduação,
consolidaram-se áreas e linhas de pesquisa diversas. A fundação de grupos como o GT
Nacional de História das Religiões da ANPUH e a Associação Brasileira de História das
Religiões (ABHR); a criação, em 2008, da Revista Brasileira de História das Religiões; a
organização, nos últimos anos, de uma série de encontros, congressos e simpósios; e,
principalmente, o fortalecimento da produção bibliográfica, nos leva ao crescimento
quantitativo e qualitativo desse campo historiográfico. Destaca-se entre os esforços destes

2
A escolha do termo negro está inserida nesta pesquisa por fazer parte do arcabouço teórico utilizado
durante a produção e escrita do trabalho a partir de diálogos com autores como: HALL, Stuart. Da
Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003; GILROY, Paul. O
Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, 2001;
ABREU, Martha. Histórias musicais da Primeira República. ArtCultura, Uberlândia, v. 13, n. 22, p. 71-
83, jan.-jun. 2011; MINTZ, Sidney W., PRICE. Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma
perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Pallas, Universidade Cândido Mendes, 2003; entre outros.
3
TROTTA, Felipe. O samba e suas fronteiras: pagode romântico e samba de raiz nos anos 1990. Rio de
Janeiro: Ed. UFRJ, 2011, p. 19.
4
NATAL, Vinícius. Quem São Nossos Sambistas Negros? Uma História – ainda – mal contada
(Apresentação). Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2022, p.12.
pesquisadores, a busca pelo afastamento dos perigos do cientificismo, do racionalismo e do
intelectualismo sobre o entendimento dos fenômenos religiosos. A proposta que ganha
diferentes intensidades dependendo da obra não pretende destruir a razão como elemento de
manuseamento dos historiadores, mas sim, contribuir para tornar o conhecimento histórico
mais propício às dimensões espirituais e imateriais5 que se mostram extremamente complexas.
É dentro deste cenário de novas influências temáticas, teóricas e metodológicas na
historiografia cultural e religiosa no Brasil nos últimos anos, que nos encontramos. Propomos
uma análise da trajetória do umbandista, escritor, compositor popular, sambista e um dos
grandes nomes da luta pela liberdade religiosa no Brasil, chamado Tancredo da Silva Pinto.
Vamos mergulhar no mar das suas experiências, narrativas, memórias e suas atuações nos
âmbitos da política, do samba e do axé entre 1964 e 1979 sob os anos agitados e difíceis da
ditadura civil-militar6 (1964-1985) no Brasil. Conhecido no mundo religioso afro-ameríndio
como Tata Ti Inkice, veio ao mundo na pacata cidade de Cantagalo7, localizada na Região
Serrana do Rio de Janeiro, porém, desde berço ligado intimamente às questões íntimas do
mundo moderno industrial que se consolidava no Ocidente e nas Américas em finais do século
XIX e início do século XX derivadas, entre outros fatores, da segunda escravidão8 que marcou
regiões como o Sul dos Estados Unidos da América (EUA), a ilha de Cuba9 e o Sudeste
brasileiro com as exportações de algodão, açúcar e café, respectivamente.
Nasceu em 1905, era filho do casal Belmiro da Silva Pinto e Edwirges de Miranda
Pinto10. Sua família era composta por sujeitos da cena cultural da cidade interiorana como o
avô materno que fundou alguns dos blocos carnavalescos pioneiros da cidade: Avança, Treme-
Terra e Cordão Místico. Seu pai também era reconhecido como um dos melhores tocadores de
violão da redondeza e sua tia Olga da Mata (Ginja Ti Inkice, ?-1967), mãe de santo que já
dirigiu terreiro11 em Duque de Caxias (Baixada Fluminense, RJ), era famosa por sair nos

5
BENATTE, Antonio Paulo. A Nova História Religiosa. A Propósito de um Livro Recente. Projeto
História, São Paulo, n.37, p. 65-84, dez. 2008.
6
FICO, Carlos. Ditadura militar brasileira: aproximações teóricas e historiográficas. Revista Tempo e
Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20.
7
ERTHAL, Clélio. Cantagalo: da miragem do ouro ao esplendor do café. Niterói: Nitpress, 2008.
8
TOMICH, D. W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2011, p. 82-83.
9
SCOTT, Rebecca J. Emancipação Escrava em Cuba: a transição para o trabalho livre (1860-1899). Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
10
Certidão de Nascimento de Tancredo da Silva Pinto – Brasil, Cantagalo (Rio de Janeiro), Registro Civil,
1829-2012 (Registros Civis, Nascimentos 1901 a 1923), documento publicizado pelo site Family Search.
11
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no Mato: as ciências encantadas das macumbas. Rio de
Janeiro: Mórula Editorial, 2018, (Nota Introdutória), S/N.
cordões fantasiada de Rainha Ginja.12 Não podemos esquecer, antes de prosseguirmos, que um
dos nossos prismas de observação e reflexão durante o processo de pesquisa será a influência
dos migrantes e seus descendentes da região do Vale do Paraíba (RJ, SP, MG e ES) marcada
pela experiência cafeeira e seu repertório cultural formado pelos jongos, calangos, folias de
reis, congadas, culto às almas e outras religiosidades nos processos históricos de diferentes
naturezas no Rio de Janeiro e no Brasil durante o século XX no contexto do Pós-Abolição13.
As análises da caminhada de Tancredo Silva em nossas pesquisas, pelo menos desde
2017, o apresentam como indício qualitativo da influência cultural e religiosa destacada em
diálogo íntimo com a parte quantitativa que explicita através dos registros a presença dessa
população em migração e seus descendentes como protagonistas da formação e composição do
mundo do samba urbano14, do universo das religiões de matriz afro-ameríndia e das disputas
políticas institucionais em nível local e regional na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e
no restante do Brasil. Na historiografia, por sua vez, muito se insistiu na centralidade das Tias
Baianas15 e da influência dos patrimônios culturais da comunidade vinda da Bahia,
essencialmente na década de 1870 após a Lei do Ventre Livre (1871) e a Guerra do Paraguai
(1964-1870), com residência principal na Zona Portuária da cidade que ganharam do sambista,
compositor artista plástico Heitor dos Prazeres (1898-1966) o nome de Pequena África16.
A tendência separatista e hierarquizadora no trabalho sobre religiosidades e culturas de
ascendências africanas do ponto de vista das ciências sociais no Brasil, com origens nos estudos
de Nina Rodrigues (1862-1906) e presente nas obras de Artur Ramos (1903-1949), Edison
Carneiro (1912-1972), Roger Bastide (1898-1974)17 e Pierre Verger (1902-1996)18, dominou
os estudos africanistas até o início do século XXI e se caracterizou pela tentativa do

12
SIMAS, Luiz Antonio. As flechas invisíveis. Artigo publicado no jornal O Globo em 28 de dezembro de
2017. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/as-flechas-invisiveis-22234025.. Acesso em: 19
jan. 2021.
13
Para mais informações sobre o GT Nacional, disponível em:
http://www.anpuh.org/gt/view?ID_GT=45#.Uz1m_O5eSVU.facebook. Acesso em 15/06/2016. Acesso em
03: nov. 2022.
14
ABREU, Martha, PEREIRA, Anthony e CYPRIANO, Eline. O samba e o legado da última geração de
africanos escravizados do Sudeste. Samba em revista. Revista do Centro Cultural Cartola, agosto de 2014,
Ano 6, N. 5.
15
GOMES, Tiago de Melo. Para além da casa da Tia Ciata: outras experiências no universo cultural
carioca (1830-1930). Afro-Ásia, Salvador, 29/30 (2003).
16
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal
de cultura, Divisão de Editoração, 1995.
17
BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 29.
18
DRUCKER, Claudia Pellegrini. Fenomenologia e Ciências Sociais: Anotações Sobre os Estudos
Africanistas no Brasil... p. 209.
enquadramento de memória19 no qual as ideias de pureza e resistência da presença ancestral e
cultural africana se acoplaram ao panteão de ascendência nagô-iorubá marginalizando uma
série de outras manifestações religiosas e culturais de origem africana diferente dessa matriz
como a Umbanda Omolokô de Tata Tancredo20. Os historiadores Yvonne Maggie e Peter Fry
definem o baiano Nina Rodrigues como precursor do campo de estudos sobre as religiosidades
afro-brasileiras na distinção entre africanos “sudaneses” e “bantos” e suas hierarquizações de
pureza; na ideia de sincretismo religioso e suas consequências; e na disseminação das crenças
africanas por toda a sociedade baiana, incluindo as elites21.
Procurando remar contra essa maré que alguns historiadores chamam de
nagocentrismo22, adotaremos uma chave de análise das articulações e andanças de Tata
Tancredo durante anos da ditadura civil-militar do ponto de vista cultural e religioso afro-
brasileiro que lide com as diversidades e contradições existentes nos seios dessas referências
de origem africana na sociedade brasileira à época. As diversas influências e contatos religiosos
como aqueles advindos dos islamismos da África do Oeste, a cultura dos vooduns da Costa do
Benin, aos cultos aos antepassados dos povos do tronco cultural bantu, entre inúmeras outras
derivadas de suas confluências, terão espaços para estudo e referências sempre em diálogo
íntimo com o contexto em que foram acionadas enquanto categorias religiosas, culturais e
políticas. O mundo do samba, a Umbanda Omolokô e as redes políticas de Tata Tancredo nos
apresentam micro-áfricas23 com afro-brasilidades que extrapolam o ideal do essencialismo.
Sobre Tancredo da Silva, é ao Morro do São Carlos, localizado no bairro carioca do
Estácio de Sá, que seu nome vai ficar atrelado a sua memória no mundo do samba e das
religiosidades cariocas. Ao lado de bambas como Ismael Silva (1905-1978), Alcebíades
Barcelos (Bide, 1902-1975), Rubem Barcelos (Mano Rubem, 1904-1927), entre outros,

19
POLLACK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
2, n. 3, 1989.
20
“Naquele momento, todo mundo se interessava pelo candomblé e desprezava a umbanda por ter se
misturado com outras religiões. O puro é que era considerado bom e autêntico”. Entrevista Diana Brown.
Folha de São Paulo. 2008. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3003200805.htm.
Acesso em: 17 mai. 2023.
21
MAGGIE, Yvonne; FRY, Peter. Introdução. In: RODRIGUES, Nina. O fetichismo animista dos negros
baianos. Rio de Janeiro: Biblioteca nacional, 2006.
22
DRUCKER, Claudia Pellegrini. Fenomenologia e Ciências Sociais: Anotações Sobre os Estudos
Africanistas no Brasil. FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 31, n. 1, p. 206-218, jan./mar. 2021, p.
209.
23
“Utilizo o termo micro-áfricas para mostrar que um olhar voltado para os micro-processos sociais pode
iluminar contextos e estruturas maiores que se fizeram com as formas de viver e de resistir dos grupos
negros na redefinição de seus valores culturais no espaço urbano”. AZEVEDO, Adailton Magno. A
Memória Musical de Geraldo Filme: os sambas e as micro-áfricas em São Paulo. Departamento de História
da PUC-SP, São Paulo, 2006, p. 23-24.
Tancredo da Silva integrou a selecionada turma fundadora da primeira escola de samba do
Brasil: o Deixa Falar (Estácio, 1928-1932)24. Escreveria seu nome no hall dos maiores após
compor Jogo Proibido (1936)25, em parceria com Davi Silva e Ribeiro Cunha, considerado por
muitos como o primeiro samba-de-breque26; e General da Banda (1949), em parceria com
Sátiro de Melo e José Alcides (1918-1978)27, música que alcançou um sucesso enorme na voz
de Otávio Henrique de Oliveira (Blecaute, 1918-1983) no carnaval de 1950 no Rio de Janeiro.28
Tancredo da Silva, mesmo sendo um dos nomes importantes do mundo do samba já na
década de 1930, era muito conhecido também pela sua atuação nos debates e articulações
dentro da Umbanda Omolokô. Por toda vida dedicou esforços na luta pela liberdade religiosa
no Brasil e valorização dos cultos afro-brasileiros. Travou debates com os teóricos e líderes da
“umbanda branca” e da “umbanda esotérica” que viam apenas “influências” e não uma
centralidade africana nas narrativas de origem da religião. Tancredo Silva defendia que, ao
contrário, a sua matriz seria de origem africana e combatia a desafricanização29 das práticas
religiosas empreendidas entre as décadas de 1930 a 1970. Seu berço de origem, mais
precisamente, seria o Sul de Angola, onde era praticada há tempos ancestrais por uma
comunidade pequena pertencente ao grupo Lunda-Quiocô, às margens do rio Zembeze30.
A história divulgada pelo próprio Tancredo Silva e outros pesquisadores da composição
General da Banda e suas relações com a criação da instituição Confederação Umbandista do
Brasil (1950), por exemplo, guardam raízes íntimas nas correlações entre sagrados e profanos

24
Interessante pontuar que em seu desfile no Carnaval 2023 realizado recentemente, a G.R.E.S. Portela
reivindicou seu centenário com uma série de iniciativas divulgadas pelo Departamento Cultural em relação
ao evento histórica para o mundo do samba. Segundo a narrativa do enredo, a comemoração está assentada
na fundação em 1923 do Conjunto Carnavalesco Oswaldo Cruz “primeiro nome de nossa criação. O
primeiro nome da Portela!” sob as égides de Paulo Benjamin de Oliveira (Paulo da Portela), Caetano e
Rufino e bençãos de Nossa Senhora da Conceição e São Sebastião, Oxum e Oxóssi. Na seção do site
História, “o Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela foi fundado em 11 de abril de 1923 no bairro de
Oswaldo Cruz, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Sendo a mais antiga escola de samba em atividade
permanente, é a única escola que participou de todos os desfiles de escolas de samba da cidade”. Para
conferir o enredo da G.R.E.S. Portela de 2023 de autoria dos carnavalescos Renato Lage e Márcia Lage:
http://www.gresportela.org.br/Enredo . Acesso em: 28 fev. 2023.
25
TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular: da modinha à canção de protesto.
Petrópolis: Vozes, 1974, p. 166.
26
LOPES, Nei. Partido-alto: Samba de bamba... p. 256.
27
NOGUEIRA, Farlen de Jesus. “O Papa da Umbanda Omolocô”: Tancredo da Silva Pinto, Clivagens e
Disputas no Campo Religioso do Rio de Janeiro (1950-1979)... p. 72.
28
FRANCESCHI, Humberto M. Samba de sambar do Estácio: de 1928 a 1931. São Paulo: Instituto
Moreira Salles, 2010, p. 51-54.
29
BAHIA, Joana; NOGUEIRA, Farlen. Tem Angola na Umbanda? Os Usos da África pela Umbanda
Omolocô. Revista Transversos. Rio de Janeiro. nº 13, MAI-AGO, 2018, p. 67-68.
30
BROWN, Diana. Uma história da Umbanda no Rio. Umbanda e Política. Cadernos do ISER, n. 18, RJ,
Marco-Zero – ISER, 1985, p. 23.
do mundo do samba31 e envolveram a inspiração do sucesso nas rádios e LPs na voz de
Blecaute. O causo passado no terreiro São Manuel da Luz, localizado no município de Duque
de Caxias (RJ) e dirigido por sua tia Olga da Mata, explicita exatamente as ligações entre a
atuação de Tata Tancredo no mundo do samba e nas esferas religiosas e políticas: Xangô teria
lhe orientado, “você deve fundar uma sociedade para proteger os umbandistas, a exemplo da
que você fundou para os sambistas, pois eu irei auxiliá-lo nesta tarefa” 32 – versão sempre
confirmada por Tancredo da Silva em outras oportunidades33.
Durante os anos 1960 e 1970, ainda colhendo flores em vida em relação a composição
General da Banda, vamos nos deparar com a continuação do sucesso da canção, claro que em
moldes diferente daqueles do lançamento e dos primeiros anos. Após o bom retorno do ponto
de vista da indústria fonográfica nos anos 1950, entre o povo do axé e o povo do samba os
versos “chegou o General da Banda, êê”34 viraram verdadeiros hinos em seus encontros
recreativos, saudações religiosas e festas. Nossa pesquisa continua trabalhando na investigação
do alcance desta música carregada de narrativas, memórias e símbolos da cultura da diáspora
africana35 nas Américas, durante os anos de cerceamento político, em diversos espaços da
sociedade brasileira e, até mesmo no exterior. Uma vez que encontraremos gravações por selos
internacionais de artistas como Astrud Gilberto (1940-2023)36 pela Perception Records (EUA)
em 1972 e Osvaldo Sargentelli (1923-2002) pela Continental em 197737, ambos com públicos
estrangeiros interessados em suas produções como Estados Unidos da América (EUA) e em
países da Europa Ocidental.

31
“A separação, afinal, entre sagrado e profano simplesmente não é pertinente para as concepções de mundo
e saberes afro-brasileiros”. SIMAS, Luis Antonio. A Gramática dos Tambores. Disponível em:
http://www.pedromigao.com.br/ourodetolo/2015/07/a-gramatica-dos-tambores/.. Acesso em: 01/04/2016.
32
LOPES, Nei. A presença da música africana na Música Popular Brasileira. Revista Espaço Acadêmico,
Nº 50, Jul/2005, Ano V, S/N.
33
“(...) Por inspiração do orixá, nasceu a Confederação Espírita Umbandista que não tem pressa em sua
missão e vai fundado Federações Estaduais filiadas e esclarecendo aos umbandistas sinceros que estavam
iludidos pelos mistificadores”. O Dia (RJ), setembro de 1954.
34
TodaAmérica Música LTDA. Certificado – C.E.N.S., n. 1078. LARÊDO, Salomão. Os Sátiro de Melo:
história de família musical. Belém: Salomão Larêdo Editora, 2003, p. 105.
35
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Universidade
Cândido Mendes, 2001; HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2003.
36
General da Banda, composição de Tancredo Silva, José Alcides e Sátiro de Melo, interpretada por Astrud
Gilberto e lançada pela Perception Records (EUA) em 1972.
37
General da Banda, composição de Tancredo Silva, José Alcides e Sátiro de Melo, interpretada por Coro
e lançada pela Continental em 1977.
Além de tudo, manteve durante mais de vinte anos uma coluna no jornal O Dia (RJ)
apadrinhada pelo jornalista e cacique político Chagas Freitas (1914-1991)38; teve amplo espaço
no A Luta Democrática (RJ) de Tenório Cavalcanti (O homem da capa preta, 1906-1987)39,
publicou mais de trinta livros religiosos na época do boom das editoras espíritas e do axé,
organizava eventos públicos para instrução e homenagens aos cultos afro-ameríndios no Rio
de Janeiro que influenciaram iniciativas pelo Brasil inteiro, enfim, era um exímio relações
públicas. Além de trajetória metonímia da influência dos migrantes do Vale do Paraíba e seus
descendentes na história do Brasil do século XX, enxergamos nas suas movimentações um
sujeito histórico pleno em suas criações, reflexões e interpretações da realidade no contexto da
modernização40 excludente das metrópoles brasileiras entre as décadas de 1930 a 1970.
Em nossa dissertação de mestrado defendida em junho de 2023, em diálogo com
historiadores como Farlen Nogueira, Artur Isaia, Luiz Antonio Simas, Ivanir dos Santos e Joana
Bahia nos debruçamos sobre a atuação desses intelectuais das umbandas durante os anos 1940
a 1970 num conflito mágico-religioso41, que não pode ser negligenciada, principalmente,
devido ao alto grau de circulação das suas produções entre os grupos da sociedade carioca e
brasileira seja em veículos da imprensa ou do mercado editorial. Nosso prisma de observação
e crítica, contudo, vai observar a construção de Tata Tancredo ao lado desses intelectuais como
figuras públicas representantes de interesses e valores de grupos umbandistas que se dividiam
em “Umbanda Branca e Demanda”, “Umbanda Omolokô”, “Quimbanda”, “Espiritismo de
Umbanda”, “Umbanda Espírita”, entre muitas outras, buscando legitimar seus movimentos no
campo da opinião pública, angariar proteção contra as posturas repressivas do Estado existente
à época e discursos discriminatórios de outras religiões.
Momentos importantes da história política e cultural do Rio de Janeiro e Brasil no
século XX foram protagonizados por Tancredo da Silva. Afora a criação da reconhecida como
a primeira escola de samba do Brasil, o Deixa Falar em 1928, estava entre os fundadores da

38
FREITAS, Chagas. Carta a Tancredo da Silva Pinto. Correspondência Oficial, Câmara dos Deputados
(RJ), (Ass. Chagas Freitas). 9 ago. 1968, Acervo Tancredo da Silva Pinto, CEUB.
39
A biografia singular de Tenório Cavalcanti foi explorada no filme O Homem da Capa Preta (Sérgio
Rezende, 1986). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gOy2zOcWwvY. Acesso em: 21 jan.
2021.
40
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia
das Letras, 2007, p. 25.
41
ISAIA, Artur Cesar. Conflito mágico-religioso no universo ficcional de um intelectual umbandista da
primeira metade do século XX. Topoi, Rio de Janeiro, v. 23, n. 50, maio./ ago. 2022, p. 452.
União das Escolas de Samba (1934)42 e da Federação Brasileira das Escolas de Samba (FBES,
1947)43, consultando a imprensa carioca nós encontraremos convites para feijoadas em
agremiações como a G.R.E.S. União de Vaz Lobo44, notícias suas em reuniões para
organização dos antigos desfiles carnavalescos na Avenida Rio Branco45 e anúncios de viagens
de Tancredo da Silva como dirigente e convidado de honra de desfiles de escolas de samba do
interior do estado do Rio de Janeiro como Campos dos Goytacazes46. Além disso, esteve
presente na criação, organização e articulação de instituições centrais da luta pela liberdade
religiosa no país como a Confederação Espírita Umbandista (CEU, 1950)47, na organização das
Flores de Iemanjá nos anos 1950 na Praia de Copacabana (Zona Sul, RJ)48, a idealização da
Festa de Preto Velho (1958) em Inhoaíba em Campo Grande (RJ), entre outros.
As redes de articulação de Tancredo da Silva Pinto foram construídas e expandidas não
apenas com suas andanças pela cidade do Rio de Janeiro. Viagens faziam parte da sua vida.
Seja entrando em contato com diferentes áreas da Zona Sul49 à Baixada Fluminense50 ou
percorrendo estados da federação na região Sudeste e do restante do Brasil. Consultando
edições do jornal A Luta Democrática (RJ)51, principalmente a coluna Nos Domínios da Fé,
observamos menções frequentes às “caravanas”, “viagens”, “encontros”52 ou, como
escreveram Tata Tancredo e Byron Tôrres, “visitas de esclarecimento” do líder religioso pelos
cantos do Rio de Janeiro e do restante do país. A relevância da recepção de lideranças religiosas

42
MUSSA, Alberto; SIMAS, Luiz Antonio. Samba de Enredo, História e Arte. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 2010, p. 17.
43
A Manhã (RJ) publicado em 10 de dezembro de 1950; A Manhã (RJ) publicado em 11 de agosto de 1951;
A Manhã (RJ) publicado em 22 de agosto de 1951.
44
A Manhã (RJ), 13 de outubro de 1951.
45
A Manhã (RJ), 15 de abril de 1949.
46
A Manhã (RJ), 21 de setembro de 1949.
47
BROWN, Diana. Uma história da Umbanda no Rio. Umbanda e Política... p. 23.
48
“Na volta os terreiros puxarão suas “curimbas” em homenagem à Iemanjá e autoridades presentes:
prefeito, parlamentares, embaixadores, chefe de polícia, finda essa parte cada terreiro poderá retirar-se para
sua “mazomba.” A Luta Democrática (RJ), 30 de novembro de 1959.
49
A Luta Democrática (RJ), 16 e 17 de agosto de 1964; A Luta Democrática (RJ), 23 e 24 de abril de 1961;
A Luta Democrática (RJ), 06 de agosto de 1965.
50
A Luta Democrática (RJ), 24 de novembro de 1965; A Luta Democrática (RJ), 09 de dezembro de 1965.
51
“Última Hora, O Dia e Luta Democrática abriram espaço aos temas, preocupações e aspirações populares
fazendo valer a imagem de “defensores do povo”. SIQUEIRA, Carla. A novidade que faltava:
sensacionalismo e retórica política nos jornais Última Hora, O Dia e Luta Democrática no Segundo
Governo Vargas (1951-1954). ECO-PÓS- v.8, n.2, agosto-dezembro 2005, p.47.
52
Ver: A Luta Democrática (02 e 03 de agosto de 1964); A Luta Democrática (04 e 05 de junho de 1961);
A Luta Democrática (09 de dezembro de 1965); A Luta Democrática (12 e 13 de maio de 1968); A Luta
Democrática (16 e 17 de agosto de 1964); A Luta Democrática (18 e 19 de agosto de 1963); A Luta
Democrática (24 e 25 de janeiro de 1968); A Luta Democrática (27 e 28 de fevereiro de 1966); entre muitas
outros eventos, caravanas e encontros de umbandistas e líderes religiosos mediúnicos no Rio de Janeiro,
Brasil e, inclusive, recepção de visitantes da América Latina e Caribe e África.
em sua casa53 conjugada a sua presença física nos eventos importantes organizados pelos
umbandistas e sambistas nas décadas de 1950 a 1970 reforçam a questão do seu
reconhecimento pelos pares religiosos e do mundo da cultura como verdadeiro Tata54.
Como podemos constatar até então, a trajetória de Tancredo da Silva Pinto analisada a
partir do prisma do Pós-abolição nos apresenta um cenário diferente daquele assinalado por
correntes historiográficas importantes nas décadas de 1950 a 1980 no país, principalmente, a
Escola de Sociologia Paulista55. Marcadas pela tese da população liberta e descendente das
últimas gerações do cativeiro como largadas à sua própria sorte e condenadas teleologicamente
à marginalização devido as consequências violentas da escravização e ausência de políticas no
Pós-Abolição, distante dessa assertiva condenatória, a atuação de Tata Tancredo nos leva a um
sujeito histórico com impacto e alcance importante durante o século passado nos universos do
mundo do samba, do campo da política institucional e das religiosidades afro-ameríndias no
Rio de Janeiro e no Brasil mesmo enfrentando às realidades violentas do racismo56.
A periodização destacada nesta pesquisa de doutoramento, entretanto, nos coloca
diretamente em contato com um dos momentos da história recente nacional mais conturbados
do ponto de vista historiográfico. Lembremos que o Brasil estava passando por uma ditadura
que começou a partir do golpe civil–militar de 1964, no qual o presidente João Goulart (1919-
1976) seria deposto na madrugada de 31 de março e 01 de abril depois das movimentações dos
altos comandos militares com apoio de políticos, grupos da sociedade civil e potências
estrangeiras57. Mesmo com o acúmulo de fontes e referências que as nossas pesquisas de
monografia e dissertação de mestrado sobre a trajetória de Tancredo da Silva Pinto nos legaram,
realizadas entre 2017 e 2023, analisar as redes, os projetos58, as táticas e articulações da

53
A Luta Democrática (RJ), 24 e 25 de janeiro de 1968.
54
Quando nos referirmos a Tancredo da Silva Pinto como Tata estamos utilizando um nome pelo qual era
citado e conhecido e, além disso, nos apropriando de uma hierarquia dentro do culto Omolokô, detalhada
por ele mesmo em obra publicada: “Tatá- Sacerdote chefe do terreiro; Ganga- Sacerdote; Ginja- Sacerdotisa
(...)”. SILVA, Tancredo da. FREITAS, Byron Tôrres. Umbanda: guia e ritual para organização de
terreiros. Rio de Janeiro: Editora Eco, 1968, p. 32.
55
“Segundo a compreensão dos sociólogos daquela época, a “anomia social” e a “alienação” eram dois
processos prévios que os ex-escravizados e seus descendentes deveriam passar antes de serem integrados
na sociedade de classes (...) A “anomia social” era um recurso teórico para descrever, geralmente, os negros
empobrecidos e desorganizados socialmente que ficaram nas margens da sociedade capitalista”. SANTOS,
José Antônio dos. Uma Arqueologia dos Jornais Negros no Brasil. Historiæ, Rio Grande, 2 (3): 143-160,
2011, p. 153-154.
56
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro,
Nº 92/93 (jan./jun.), 1988, p. 73.
57
DREIFUSS, René. A internacional capitalista: estratégias e táticas do empresariado transnacional,
1918-1986. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987; BANDEIRA, Moniz. Presença dos Estados Unidos no
Brasil: dois séculos de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
58
VELHO, Gilberto. Trajetória Individual e Campo de Possibilidades... p. 48.
personagem nesta proposta de periodização após o golpe institucional até o seu falecimento em
1979 vai nos proporcionar novas inquietações, indagações e hipóteses a respeito desse Pós-
Abolição no Brasil e na América do Sul nas décadas de 1960 e 1970 marcado pelos governos
militares autoritários59.
Adotando um olhar atento aos movimentos de Tata Tancredo no início dos anos 1970,
por exemplo, observamos a Congregação Espírita Umbandista do Brasil (CEUB) na luta
por políticas públicas e/ou ações legislativas que garantissem a liberdade religiosa plena para
os povos de terreiros. No dia 02 de dezembro de 1972, o jornal O Dia (RJ) publicou uma notícia
cobrindo uma das primeiras reuniões no processo de criação de um novo projeto de lei federal
referente à Lei do Silêncio (Projeto de Lei nº 1053/1972) aprovado pela Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) em agosto de 1974, que buscasse o livre exercício dos cultos
umbandistas e candomblecistas no Rio de Janeiro, cujo idealizador foi o deputado Marcelo
Medeiros (MDB)60. Um momento de estabelecer e fortalecer alianças para a conquista de uma
demanda política central dos povos do axé no período, tática que vamos nos aprofundar
durante a pesquisa de doutoramento a partir do contato com mais fontes. Tancredo da Silva
estava na reunião, fortalecendo sua posição como dirigente e articulador, aparecendo no texto
como Presidente do Conselho Deliberativo da CEUB61.
Em relação às consequências e impactos da reconfiguração de forças envolvendo os
grupos organizados derivados do golpe civil-militar em 1964 nas conexões construídas pelo
Papa de Umbanda, segundo a historiadora Fabíola Amaral de Souza, no Rio de Janeiro e no
Sudeste como um todo nos anos 1960 e 1970, observa-se uma alta do número de militares nos
postos de comando das instituições representativas da umbanda e um processo de deslocamento
dos adeptos da umbanda considerados de esquerda dos postos de destaques e direções das
federações sendo acusados de práticas subversivas pelas forças policiais e militares acabando
perseguidos. Como solução estes umbandistas tiveram que se afastar do cenário para
protegerem suas vidas e dos seus familiares, o que teria proporcionado “de certa forma uma

59
PEREIRA, Anthony. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, Chile e
Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
60
A CEUB em carta para o deputado dizia: “Quando esta Lei entrar em vigor a grande beneficiada, temos
a certeza, será a Umbanda, pois terá o reconhecimento de nossas autoridades e se libertará para sempre do
controle policial ainda existente em alguns estados da federação.” CONGREGAÇÃO ESPÍRITA
UMBANDISTA DO BRASIL (CEUB). Carta para o Dep. Marcelo Medeiros, 25 de maio de 1973. Acervo
Tancredo da Silva Pinto, CEUB.
61
O Dia (RJ), 02 de dezembro de 1972.
homogeneidade e conservadorismo entre os mesmos”62. Estas táticas utilizadas à época
apresentadas pela historiografia sobre o tema, por exemplo, serão analisadas durante o processo
de pesquisa a partir da contextualização com fontes pessoais e oficiais de diversas naturezas a
respeito da trajetória de Tata Tancredo da Silva Pinto e suas instituições representativas.
As publicações no mercado editorial de autoria de Tata Tancredo serão fontes ricas
nessas questões, uma vez que sua obra tinha como caraterísticas reunir em publicações
documentos importantes das suas instituições religiosas, registros da imprensa ligados as suas
articulações políticas, conteúdos de fundamento doutrinário e sacerdotal, espaço de debate com
autoridades e intelectuais, fora outras nuances. Em Umbanda: Guia e Ritual para Organização
de Terreiros, publicado em parceria com Byron Tôrres no ano de 1968 pela editora Eco
dedicada à divulgação de obras espíritas, umbandistas e candomblecistas63, encontramos alguns
pontos interessantes. Percebe-se na fundação da Congregação Espírita Umbandista Brasileira
(CEUB) em 20 de janeiro de 1968, que algumas ações de Tata Tancredo não fogem muito
àquelas adotadas por outros umbandistas e federações naquele período:

Presidente: Martinho Mendes Ferreira


Vice-presidente: Paulo Vieira

1 Secretário: Elzítta Gomes Salles


1 Secretário: Paulo Jorge do Espírito Santo
1 Tesoureiro: Arthur da Silva Sá
1 Tesoureiro: Arnaldo dos Anjos Martins64

Martinho Mendes Ferreira, conhecido como “Irmão Martinho”, era militar e gozava de
influência e respeito dentro das redes e conexões das forças armadas no Rio de Janeiro e no
país. Chegou a ganhar o título de Cidadão do Estado do Rio de Janeiro a partir do projeto de
autoria de Átila Nunes em 198465 e concedeu uma das entrevistas para o acervo A Voz do Povo
do Santo do Museu da Imagem e do Som (MIS) em maio de 199366. Analisar as fontes ligadas
às publicações editorais, acervo pessoal disponível da CEUB e relatos orais já publicados além
daqueles a serem produzidos com auxílio do arsenal metodológico da História Oral será

62
SOUZA, Fabíola Amaral Tomé de. Umbanda e Ditadura Civil-militar: relações, legitimação e
reconhecimento. Revista Angelus Novus, USP – Ano VII, n. 11, pp.13 - 32, 2016, p. 29.
63
Editoras famosas nos meios umbandistas, candomblecistas e espíritas neste período eram a Espiritualista,
Eco, Aurora, Brasil Palestra, Editora G. Holdman Ltda, entre outras.
64
SILVA, Tancredo da, TORRES, Byron. Umbanda: Guia e Ritual para Organização de Terreiros. Rio
de Janeiro: Editora Eco, 1968, p. S/N.
65
RESOLUÇÃO,Nº181 DE 1984, Cidadão do Estado do Rio de Janeiro, ALERJ, RJ, BRA, disponível em:
http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/f25571cac4a61011032564fe0052c89c/1230391ecca59fad0325674
a006af7e7?OpenDocument. Acesso em: 22 de nov. 2023
66
Entrevista Irmão Martinho (Martinho Mendes Ferreira). Acervo A Voz do Povo do Santo, N. 867.21.1/3,
Quantidade 4, 240min, Museu da Imagem e do Som (MIS).
essencial nesse processo de diálogo com os debates historiográficos. Em outro momento, na
mesma publicação citada acima, encontramos formulações de Tata Tancredo e suas instituições
em relação ao manuseamento do anticomunismo e do ideal da ordem social estabelecida pelo
status quo à época da ditadura para sua legitimação se apresentando como “utilidade pública”:

A Federação Espírita Umbandista do Estado do Rio de Janeiro,


registrada no Cartório Tobias Barreto, na Divisão de Ordem Política
e Social, na Delegacia de Costumes e no Conselho Estadual do
Serviço Social, é a única considerada de utilidade pública (Lei nº
2.867, 5 de Julho de 1956). Não faz campanha contra o governo,
considera o materialismo ateu e não permite a intromissão em suas
fileiras de agitadores.67

Durante os anos da ditadura civil-militar nas décadas de 1960 e 1970, inclusive,


segundo o geógrafo Marcelo Alonso Morais, os umbandistas aproveitaram o desgaste entre a
Igreja Católica e os governos militares acentuados em alguns momentos quando membros do
clero se manifestavam publicamente com críticas ao contexto político além da existência de
ligações de determinados indivíduos com movimentos que optaram pelo apoio à luta armada68.
Em outro trecho da mesma obra assinalada, a condenação do “materialismo ateu” e dos
“agitadores” apresenta-se como caminho para estabelecer um diálogo com os interesses dos
governantes do período de exceção baseados na Doutrina de Segurança Nacional (DSN)69 além
de se mostrar antenada com o clima de perseguição e repressão ao comunismo internacional
nas Américas e no Ocidente característico da Guerra Fria (1945-1991) e capitaneado pelos
Estados Unidos da América (EUA) com fortes capilaridades no Estado brasileiro à época:

É VEDADA a entrada de qualquer membro que confessasse credo


político partidário contrário à ordem política do país bem como
daqueles que neguem a existência de Deus.70

67
SILVA, Tancredo da, TORRES, Byron. Umbanda: Guia e Ritual para Organização de Terreiros... p.
S/N.
68
MORAIS, Marcelo Alonso. Liberdade Religiosa e Direito Cidadão: Desafios para Consolidação da
Umbanda entre os períodos 1964-1985 e pós 1990 no Brasil. In: FISHER, Ferrente, Domingo Lilón,
DEÁK, Máté. Iberoamericana Quinqueecclesiensis 17. Universidad de Pécs – Centro Iberoamericano,
2019.
69
“Os estudos no Brasil sobre segurança nacional têm como marco simbólico a criação da Escola Superior
de Guerra (ESG) em 1949. A exemplo do que aconteceu em outros países da América Latina, houve desde
então foi uma militarização do tema que nem mesmo a redemocratização dos anos 1980 conseguiu superar”.
D’ ARAUJO, Maria Celina. Justiça Militar, Segurança Nacional e Tribunais de Exceção. In: Anais 30
Encontro Anual da ANPOCS, outubro de 2006, Caxambu, MG.
70
SILVA, Tancredo da, TORRES, Byron. Umbanda: Guia e Ritual para Organização de Terreiros... p.
S/N.
O posicionamento político de Tancredo da Silva Pinto durante os anos dos governos
militares entre 1964 e 1979 não pode ser compreendido apenas lançando mão de conceitos da
literatura política da modernidade ocidental baseada nos binômios direita ou esquerda e
cooptado ou revolucionário. Nossos indícios nos levam até agora ao entendimento de que a
chave de entendimento das suas alianças e disputas, por vezes contraditórias da parte de Tata
Tancredo no mundo da política institucional carioca e brasileira à primeira vista, está ancorada
em duas frentes: o pragmatismo ligado às demandas das comunidades as quais representava
seja o mundo do samba ou no universo das religiosidades afro-ameríndias (conquistas legais,
orçamentos, espaços públicos, entre outros); e na leitura e interpretação da dinâmica social e
das relações humanas desse sujeito a partir da sua visão encantada de mundo, recheada de
referências religiosas e do campo dos mistérios e do fantástico (o Instituto Sanatório e o
Hospital e Maternidade nos levam nessa direção, por exemplo), se distanciando dos moldes
ocidentais assentados na primazia do pensamento cartesiano racional e científico e embebidos
em valores burgueses, ou seja, desencantado71. Os próximos passos serão centrais na pesquisa.
Durante nossas incursões sobre as atuações de Tancredo da Silva Pinto entre os anos
1930 e 1960, mesmo não tendo os anos dos governos militares como foco da análise, fomos
postos em contato com situações vivenciadas por Tata Tancredo que nos forneceram indícios
de que, mesmo sob a égide dessa forma de governo antidemocrático, ele continuou a ser uma
personagem importante no quadro político, religioso e cultural do Rio de Janeiro e Brasil. Entre
suas iniciativas no período: o evento Você sabe o que é Macumba? realizado no Maracanã em
196572; a cerimônia Rosas ao Mar Unificam a Umbanda em 197573, marcando a união dos
estados da Guanabara e Rio de Janeiro; seus esforços para a construção do Hospital de
Umbanda no Rio de Janeiro que vinham dos anos 196074; os debates da Lei do Silêncio
(Decreto-Lei nº 112, 12 de Agosto de 1969); a criação do Instituto Sanatório Espiritual do

71
O historiador indiano Dipesh Chakrabarty desenvolve a noção de encantamento para trabalhar com visões
de mundo, tempo e experiências além dos quadros reducionistas do racionalismo e cientificismo ocidental,
ver: Tradução de Chakrabarty, Dipesh. 2008. “Translating life-worlds into labor and history”. In:
Provincializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference. Princeton: Princeton University
Press, p. 72-96.
72
“O antiquado e depreciativo uso do termo “macumba” e a orientação folclórica do programa, como um
todo, enraiveceram os líderes que defendiam a Umbanda Pura, e eles recusaram o convite para participar
do evento”. BROWN, Diana. Uma história da Umbanda no Rio... p.39.
73
“As Rosas no Mar Unificam a Umbanda”. No flagrante o Tata Sr. Tancredo da Silva Pinto, o escritor
Ser. Gerson Ignez de Souza, o Tata Zambe Orlando Ti Anonoxá e os jornalistas de ‘O Dia’ e ‘A Notícia’
na ocasião em que foi realizada em abril último a festa ‘Rosas no Mar Unificam a Umbanda’, festa em
homenagem a data comemorativa da fusão”. MELLO, Hamilton Vallente de, SILVA, Tancredo da. Yaô...
p. 150.
74
A Luta Democrática (RJ), 13 de maio de 1964.
Brasil (SANEBRAS) em 197075; a organização do III Congresso Brasileiro da Umbanda entre
os dias de 15 a 21 de julho de 197376; além da edição da Revista Mironga (RJ)77 e na realização
de eventos públicos como a Festa de Preto Velho em Inhoaíba (Zona Oeste, RJ), entre outros.
Na edição de 12 e 13 de maio de 1968, a seção Nos Domínios da Fé do periódico A
Luta Democrática (RJ) apresenta uma divulgação da saudação e comemoração da Festa de
Preto Velho de 1968 com a presença da Congada Chico Rei, diretamente de Belho Horizonte
(MG), explicitando a articulação entre as manifestações culturais afro-brasileiras no Sudeste
através do intermédio de Tata Tancredo78. Em outros estados do Brasil como São Paulo, nas
décadas de 1960 e 1970, segundo o historiador Benedicto Victoriano, as aproximações dos
umbandistas com as autoridades governamentais deram condições para festas oficiais como de
Ogum e Iemanjá em cidades como Praia Grande (SP) e Santos (SP) – assim como em outras
cidades pelo país79. Trazendo questões do Pós-abolição, mesmo com o aparente sucesso e
tranquilidade de realização de uma presença religiosa não cristã e não kardecista em espaço
público, as histórias de bastidores se mostraram mais espinhosas. Tata Tancredo, em artigo da
mesma seção do periódico de Tenório Cavalcanti, denunciou as investidas racistas dirigidas à
produção da Festa do Preto Velho em Inhoaíba.80
Durante a ditadura civil-militar as redes de sociabilidade com militares se tornaram
essenciais, segundo a brasilianista Diana Brown em trabalho dos anos 1980, sempre lembrando
que a umbanda também tinha muitos fiéis e sacerdotes nas Forças Armadas81. Abria-se, assim,
caminhos na busca pela legitimidade das práticas religiosas do axé ao mesmo tempo em que se
garantiam maneiras de manutenção e expansão dos projetos82 federativos e institucionais. Não
esqueçamos que logo em 1964 a Umbanda passa a integrar a lista das religiões brasileiras no
censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ao mesmo tempo, a
historiadora alerta para expectativa de controle social que orientava algumas aproximações por

75
ESTATUTO da Fundação Instituto Sanatório Espiritual do Brasil (SANEBRAS), 22 de maio de 1970,
RJ, Acervo Tancredo da Silva Pinto, CEUB.
76
CONGREGAÇÃO ESPÍRITA UMBANDISTA DO BRASIL (CEUB). Carta para o Dep. Marcelo
Medeiros, 25 de maio de 1973. Acervo Tancredo da Silva Pinto, CEUB.
77
SÉRIE DE RECIBOS, comprovantes de pagamentos e correspondências entre consumidores e
fornecedores de serviços e materiais para Revista Mironga (Déc. 1970), RJ, Acervo Tancredo da Silva
Pinto, CEUB.
78
A Luta Democrática (RJ), 12 e 13 de maio de 1968.
79
VICTORIANO, Benedicto Anselmo Domingos. O prestígio religioso na Umbanda: dramatização de
poder. São Paulo: Annablume, 2005, p. 5.
80
A Luta Democrática (RJ), 28 e 29 de abril de 1968.
81
BROWN, Diana. Umbanda & Política. Cadernos do ISER, 18. Rio de Janeiro. ISER e Marco Zero, 1987,
p. 10.
82
VELHO, Gilberto. Trajetória Individual e Campo de Possibilidades... p. 46.
parte dos governantes. Segundo a historiadora Fabíola Amaral, durante os anos do regime
autoritário, a “umbanda, assim como as religiões majoritárias cristãs, mantiveram relações com
a política, ampliaram seu campo de intervenção e diversificaram suas formas de ação”83. Não
podemos negligenciar que, nas décadas de 1960 a 1970, os umbandistas passaram a ocupar
mais espaços na esfera pública mostrando alcance na sociedade brasileira84, fenômeno que
acabou fazendo com que algumas lideranças passassem a positivar a “Revolução” de 1964:

Decretos, portarias, recortes de jornais e cópias de ofícios estão em


nosso poder; desafiam candidatos ditos de Umbanda a que nos
desmintam. Não nos venham falar numa liberdade de que abusaram
e abusam e tudo fazem por liquidá-la. A religião de umbanda nada
mereceu até hoje dos poderes públicos e nós umbandistas temos
sobrevivido por nossa fé em Zambi, em nossos guias e na Pátria. Já
fomos fichados na Polícia; já fomos obrigados a ter alvarás; já fomos
obrigados a praticar nossa crença no silêncio da noite e a liberdade
que hoje desfrutamos é produto de nossa fé e da garantia que nos deu
a Revolução. Fora corregebós!!!85

O discurso nacionalista cristalizado como síntese da política interna e externa brasileira


durante a ditadura civil-militar, principalmente, na década de 1970, recheada de conteúdos
ufanistas e harmonizadores do ponto de vista social e político, serviu como fator para aglutinar
ao redor dos governos associações e federações de umbanda e de outras religiões afro-
brasileiras86 que viam no investimento da identidade da religião como símbolo da religiosidade
popular brasileira uma tática de negociação para melhorias constitucionais, ampliação dos
espaços e combate ao preconceito. Esse nacionalismo, contudo, era diretamente ligado aos
cânones da narrativa da democracia racial87 e apresentava o Brasil aos olhos da sociedade e do
exterior como uma terra sem os males do racismo e da desigualdade de países como Estados
Unidos e África do Sul88. Políticos, intelectuais, a imprensa e o mercado dialogaram com o
contexto, principalmente, nos anos 1970: “UMBANDA É UMA RELIGIÂO DO BRASIL

83
SOUZA, Fabíola Amaral Tomé de. Umbanda e Ditadura Civil-militar: relações, legitimação e
reconhecimento... p. 16.
84
NOGUEIRA, Farlen de Jesus. “O Papa da Umbanda Omolocô”: Tancredo da Silva Pinto, Clivagens e
Disputas no Campo Religioso do Rio de Janeiro (1950-1979)... p. 66.
85
A Luta Democrática (RJ), 11 e 12 de outubro de 1970.
86
“Visando sustentar o discurso da harmonia racial e social do Brasil, a política exterior do regime militar
em relação à África explorava retoricamente que o Brasil era uma “democracia racial” e exaltava as origens
africanas da cultura brasileira”. KÖSSLING, Karin. As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob
vigilância do DEOPS/SP (1964-1983). Dissertação (Mestrado em História Social) — Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2007, p. 42.
87
“Não só a rubrica raça foi omitida no censo de 1970, mas sobretudo a censura governamental impediu
toda e qualquer crítica à imagem da democracia racial brasileira”. SKIDMORE, Thomas. O Brasil visto de
fora. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 163.
88
SOUZA, Fabíola Amaral Tomé de. Umbanda e Ditadura Civil-militar: relações, legitimação e
reconhecimento... p. 31.
PARA SERVIR O BRASIL”, proclamava o Movimento de Unificação Nacional Pró-Religião
de Umbanda89, com Tata Tancredo entre seus representantes, em outubro de 197090.
Nomes caros da época como o dono do jornal popular A Luta Democrática (RJ) Tenório
Cavalcanti (O homem da capa preta); o radialista e jornalista conhecido por sua luta em defesa
dos interesses umbandistas Átila Nunes Pereira e sua esposa vereadora pelo Rio de Janeiro por
dezesseis anos Bambina Bucci (1920-2009); um dos homens fortes dos governos da ditatura
civil-militar Golbery do Couto e Silva (1911-1987)91; os deputados federais pelo Movimento
Democrática Brasileiro (MDB) Marcelo Medeiros (1945-2009)92 e Valdemiro Abdalla
Teixeira (Miro Teixeira); o prefeito de Itaguaí dr. José Maria de Brito93, o candidato a vereador
José Ribeiro94, e os deputados estaduais pelo Rio de Janeiro Accyoli Lins95 e José Salim; entre
outros sujeitos influentes, compunham a rede de movimentações acionada por Tancredo Silva
de acordo com as demandas de cada situação:

Tancredo é velho conhecido e amigo do fundador-diretor deste jornal,


dr. Tenório Cavalcanti, pois foi o nosso diretor o primeiro homem
público ao se colocar ao lado dos umbandistas, ao lado do Tatá,
quando há mais de 40 anos, em Caxias, Tenório Cavalcanti,
procurado em sua residência pelo Tatá colocou-se ao lado dos
umbandistas, ao lado das baianas que vendiam seus quitutes em
Caxias e que a Polícia não queria permitir. Mas não ficou aí a
admiração de nosso diretor pelo homem simples mas autêntico que é
Tancredo o verdadeiro líder dos umbandistas e dos adeptos das seitas
afro-brasileiras sempre que a Polícia se volta contra a Umbanda.
Contra os umbandistas, ou ante um apelo do Tatá, Tenorio, por sua
palavra honesta ou através das colunas do seu jornal a LUTA
DEMOCRÁTICA, diz ao Tatá: presente!96

89
“O Movimento de Unificação Nacional Pró-Religião de Umbanda busca, dentro de seus objetivos, na luta
pelo reconhecimento, uma CONSCIENTIZAÇÃO religiosa de Umbanda para assim podermos nos livrar
dos APROVEITADORES, dos INTELIGENTES, que prejudicando a Umbanda prejudicam o Brasil, pois a
‘Umbanda é uma religião do Brasil para servir ao Brasil’”. A Luta Democrática (RJ), 15 de dezembro de
1970.
90
A Luta Democrática (RJ), 22 de outubro de 1970.
91
MINISTÉRIO DA CASA CIVIL. Golbery do Couto e Silva. Carta No. 280 em resposta ao Senhor
Tancredo da Silva Pinto. 22 de abril de 1976.
92
SANTOS, Ivanir dos. Marchar Não é Caminhar: interfaces políticas e sociais das religiões de matriz
africana no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2019, p. 115; VERSIANI, Maria Helena. Padrões e
práticas na política carioca: os deputados federais eleitos pela Guanabara em 1962 e 1970... p. 179.
93
SILVA, Tancredo. TORRES, Byron Torres. Mirongas de Umbanda. Rio de Janeiro: Editora Aurora,
1957, p. 113.
94
A Luta Democrática (RJ), 13 e 14 de novembro de 1966.
95
A Luta Democrática (RJ), 18 de setembro de 1960; A Luta Democrática (RJ), 23 de setembro de 1960.
96
A Luta Democrática (RJ), 09 e 10 de agosto de 1970.
Desta forma, pretende-se investigar e construir uma história do Pós-Abolição sem os
parâmetros e olhares da chamada democracia racial97 e do mito da mestiçagem das três
raças98, construído socialmente e enraizado até hoje no imaginário nacional brasileiro.
Explicitando, assim, a centralidade da população de origem africana na dinâmica do processo
de modernização da sociedade brasileira nas décadas de 1950 a 1970 no século passado que
ainda hoje a narrativa do Brasil Oficial insiste em calar. O lado social e político desta pesquisa
está estreitamente relacionado ao processo de silenciamento99 de trajetórias de indivíduos
negros singulares dentro da vida política, cultural e social do Brasil durante o século XX. Nos
aproximamos, assim, do historiador haitiano Michel Trouillot quando assinala que “qualquer
narrativa histórica é um conjunto específico de silêncios, o resultado de um processo singular,
e a operação necessária para desconstruir estes silêncios variará de acordo com eles”100.
A trajetória de Tancredo da Silva Pinto analisada a partir do prisma do Pós-abolição
nos apresenta um cenário diferente daquele assinalado por correntes historiográficas
importantes, principalmente, aquelas influenciadas pelos pressupostos conceituais da anomia
trabalhada pela Escola de Sociologia Paulista, entre as décadas de 1950 a 1970, do século XX
no país. Marcadas pela tese da população liberta e descendente das últimas gerações do
cativeiro como largadas à sua própria sorte e condenadas teleologicamente à marginalização,
ao invés disso, a atuação do Tata Tancredo nos leva a um sujeito histórico com impacto e
alcance importante durante o século passado nos universos do mundo do samba, do campo da
política institucional e das religiosidades afro-ameríndias no Rio de Janeiro e no Brasil
enfrentando as realidades violentas do racismo: “Não pretendemos fazer propaganda derrotista,
mas, a verdade é sempre a verdade. E a verdade é que a religião de Umbanda tem sido a mais
perseguida no Brasil”101.
Finalmente, buscaremos deixar contribuições para o cenário das pesquisas acerca do
Pós-Abolição sob os anos da ditadura civil-militar e seus principais debates. Desde os anos
2000, esse campo de estudo vem crescendo e mostrando a mobilização da população
descendente daqueles que experimentaram os terrores do cativeiro como protagonista na luta

97
AMORIM, Diego Uchoa de. Teorias Raciais: um pouco de história e historiografia. Revista Cantareira,
2014, p. 75.
98
HAAG, Carlos. Lilia Schwarcz: quase pretos, quase brancos. Artigo publicado no site da Revista
Pesquisa Fapesp em Abril de 2017. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/quase-pretos-quase-
brancos/. Acesso em: 09 nov. 2022.
99
TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciando o Passado: poder e a construção da História. Curitiba: Huya,
2016, p. 58-59.
100
Idem, p. 59.
101
SILVA, Tancredo. TORRES, Byron Torres. Mirongas de Umbanda... p. 35.
pela sua sobrevivência. A mobilização não surgiu aleatoriamente, mas veio da experiência e se
relacionava com as demandas no pós-abolição como aparecem nas pesquisas de Vinícius Natal,
Eric Brasil, Álvaro Nascimento, Wlamyra Alburquerque, entre outros. Os estudos apontaram
a variedade de caminhos que o associativismo negro102 percorreu sendo um dos mecanismos
de luta para obtenção de melhores condições de vida e acesso à cidadania103. Com o volume
de dados e referência que estamos construindo com o tempo e trabalho, fica mais difícil
encontrar argumentos para manutenção do silenciamento104 das histórias da população negra
no Brasil e suas personagens bastante influentes, conhecidas e reconhecidas às suas épocas,
como o próprio Tata Tancredo que veio a falecer em 1979, com conexões entre classes, raças,
gêneros e religiões diferentes além de serem destaques em articulações e projetos políticos do
século XX. Como o General da Banda, protagonista em meio à Política, o Samba e o Axé.

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102
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103
“A cidadania é um conceito congelado nos artigos e parágrafos da Constituição. Sua universalidade,
como sabemos, é uma utopia, por mais que prometa atender uma comunidade nacional. Ainda havia um
longo caminho para a ampliação legal de direitos políticos às mulheres, pessoas analfabetas, mendigos e
militares no século XX. Mais distante estavam os resultados reivindicados por movimentos sociais
organizados que, na atualidade, vêm obrigando o Estado brasileiro a reconhecer e a sanar as desigualdades
sociais provocadas por diferenças raciais, étnicas e de gênero”. NASCIMENTO, Álvaro Pereira.
Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à História Social do Trabalho no Brasil.
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104
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2) Capítulo de livro:

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3) Artigo de revista:
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5.
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4) Tese e dissertação:
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Departamento de História da PUC-SP, São Paulo, 2006.
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Dissertação (Mestrado em História Social) — Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, 2007.
NOGUEIRA, Farlen de Jesus. “O Papa da Umbanda Omolocô”: Tancredo da Silva Pinto, Clivagens e Disputas
no Campo Religioso do Rio de Janeiro (1950-1979). Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), São Gonçalo, 2020.
VERSIANI, Maria Helena. Padrões e práticas na política carioca: os deputados federais eleitos pela Guanabara
em 1962 e 1970. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007.

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