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D O S S I Ê H i st Ó r i a E M E I O A M B I E N T E

TEORIAS RACIAIS NO BRASIL:


um pouco de história e historiografia

DIEGO UCHOA DE AMORIM*

RESUMO ABSTRACT

No presente trabalho será analisada TIn this present paper will be analysed
a história e algumas abordagens the history and some historigraphical
historiográficas acerca das teorias raciais no approaches about racial theories in Brazil,
Brasil, principalmente, na virada do século mainly, at the turn of the nineteenth to
XIX para o XX. A trajetória dos debates após the twentieth century. The path of these
a década de 1930, também, se fará presente, argumentation after 30s, also, will be
uma vez que muitos trabalhos importantes made present, since many relevant papers
dentro da temática foram produzidos about the topic were produced in the
nas décadas de 1950/60, a exemplo dos 50s and 60s such as the one published by
publicados pela Escola de Sociologia “Escola de Sociologia Paulista”. In the end,
Paulista. Ao fim, reflexões sobre o conceito reflections about the concept of race and
de “raça” e a conjuntura das décadas de the conjuncture of the 70s and 80s will be
1970/80 serão apresentadas de maneira presented following a intellectual tradition
a seguir uma tradição intelectual que não that does not move away from the main
fuja do papel de destaque do historiador role of the historian in the formulation of
na formulação da relação da sua sociedade the relationship between his society with his
com o passado. own past.

Palavras-chave: Teorias Raciais, Raça,


Keywords: Racial Theories, Race,
Historiografia.
Historiography.

* Graduando em História (Universidade Federal Fluminense - UFF)

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TEORIAS RACIAIS NO BRASIL

“O dom de despertar no passado as centelhas da esperan-


ça é privilégio exclusivo do historiador convencido de que
também os mortos não estarão em segurança se o inimigo
vencer.”

(Walter Benjamin)

Teorias Raciais, modernidade e invenção de tradições no Brasil:

a
maioria dos apontamentos que estará nas linhas seguintes já se faz presente em
muitos outros artigos. O que se pretende trazer aqui, logo, é uma breve apresentação
da história e da historiografia das teorias raciais, de maneira a fomentar novos
debates sobre estas teses que deixaram marcas profundas no imaginário social
brasileiro e que servem de base para muitos argumentos racistas1 até o dia de hoje.

Durante os anos finais do século XIX no Brasil, principalmente, com a Proclamação


da República (1889), muitos intelectuais se debruçaram sobre uma das maiores preocupações
políticas da elite nacional no momento: a “nação brasileira”. A ânsia por apresentar uma nova
forma de coesão social que substituísse as antigas, típicas do regime Monárquico, passou a
ser a ordem do dia. Aqui, podemos pensar este processo de construção da nação a partir do
conceito de Hobsbawm de invenção de tradições, segundo o historiador inglês:

Não nos devemos deixar enganar por um paradoxo curioso,


embora compreensível: as nações modernas, com toda a sua
parafernália, geralmente afirmam ser o oposto do novo, ou
seja estar enraizadas na mais remota antiguidade, e o oposto
do construído, ou seja, ser comunidades humanas, ‘naturais’
o bastante para não necessitarem de definições que não a
defesa dos próprios interesses (...) E é exatamente porque
grande parte dos constituintes subjetivos da ‘nação’ moderna
consiste em tais construções, estando associada a símbolos
adequados e, em geral, bastante recentes ou a um discurso
elaborado a propósito (tal como o da ‘história nacional’), que
o fenômeno nacional não pode ser adequadamente investi-
gado sem dar-se atenção devida à ‘invenção das tradições’.”2

Dessa forma, não é difícil perceber que, naquele momento, se pensava construir
uma comunidade a partir da seleção e repetição de determinados ritos e ideias acerca do ser
“brasileiro” buscando consolidar uma nova forma de se enxergar como parte dessa nação após
a mudança de sistema político e da abolição da escravidão em 1888.

Não se pode, entretanto, esquecer que todo esse projeto de nação estava ligado a

1 Ciente da necessidade de deixar claro o que se entente como racismo, aqui, quando utilizarmos o termo ele
seguirá a formulação de Lia Schucman: “Considero racismo qualquer fenômeno que justifique as diferenças,
preferências, privilégios, dominação, hierarquias e desigualdades materiais e simbólicas entre seres humanos,
baseado na ideia de raça. Pois, mesmo que essa ideia não tenha nenhuma realidade biológica, o ato de atri-
buir, legitimar e perpetuar as desigualdades sociais, culturais, psíquicas e políticas à ‘raça’ significa legitimar
diferenças sociais a partir da naturalização e essêncialização da ideia falaciosa de diferenças biológicas que,
dentro da lógica brasileira, se manifesta pelo fenótipo e aparência dos indivíduos de diferentes grupos sociais.”
SCHUCMAN, Lia Vainer. Racismo e Antirracismo: a categoria raça em questão. IN: Psicologia política, vol.10, nº19,
pp. 41-55, jan-jun, 2010. pg. 44.
2 RANGER, Terence, HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, pg. 28.

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um fator essencial. A modernidade, sensibilidade histórica que para alguns autores tem a sua
origem ligada às Grandes Navegações no século XV-XVI3, com o aumento do fluxo de transpor-
te e comunicação, trouxe inúmeras mudanças no cenário global. Além das mudanças objetivas
na sociedade como as descobertas nas ciências, a modernização que espalhou trilhos e navios
de grande porte pelo mundo, as novas formas de sociabilidade e a ideia de ruptura com o pas-
sado como condutor das trajetórias humanas, um novo conjunto de ideias passou a conduzir
o desenvolvimento dos centros europeus. Este conjunto, nas palavras do filósofo Habermas,
consistiu no projeto da modernidade4, no qual emergiram as inúmeras doutrinas de liberdade,
igualdade e fraternidade. Discutindo o assunto, o geógrafo David Harvey assinala que:

A ideia era usar o acúmulo de conhecimento gerado por mui-


tas pessoas trabalhando livre e criativamente em busca da
emancipação humana e do enriquecimento da vida diária.
O domínio científico da natureza prometida liberdade da es-
cassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades
naturais. O desenvolvimento de formas racionais de organi-
zação social e dos modos racionais de pensamento prometia
a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da su-
perstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como do
lado sombrio da nossa própria natureza humana. Somente
por meio de tal projeto poderiam as qualidades universais,
eternas e imutáveis de toda a humanidade ser reveladas.5

É justamente nesse contexto, de auge da crença nas benesses da modernidade,


que as elites brasileiras vão tentar colocar o Brasil na trilha da civilização. A representação
dessa “nova” nação brasileira, em oposição àquela do Império, teria que garantir a chegada
ao progresso. E as disputas que cercaram o debate político-intelectual não foram poucas. Mo-
narquistas e republicanos, após o golpe de 1889, esforçaram-se por fazer valer o conjunto de
representações relacionado ao seu imaginário e as suas intenções políticas no período.

Segundo Angela Alonso, enquanto os primeiros tentavam atribuir à forma


republicana de governo a ideia de desordem – devido à ausência do poder moderador – e
desqualificar a nova sociabilidade e modos de viver republicanos – lamentavam, entre outras
coisas, a perda de força da honra nas relações sociais; estes últimos criticavam o império que
tinha caído e louvavam o fim da hierarquia estamental e o crescimento do valor da moral do
trabalho, da família e do Estado6. Nesse contexto, os republicanos levaram a melhor no jogo
político7.

Agora, restava-os construir a representação do brasileiro e da nação que se pre-


tendia. O que se colocaria como um obstáculo no caminho desse projeto das elites brasileiras,

3 Um dos autores que utilizam esse referencial é Marshall Berman, ver: BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido
desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
4 Ver: HABERMAS, Jurgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
5 HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992, pg. 23.
6 ALONSO, Angela. Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual brasileiro nas primeiras décadas re-
publicana. IN: Novos Estudos, nº 85, Novembro 2009, pg. 138-143.
7 Uma questão importante apontada por Angela Alonso é o fato de que os monarquistas, mesmo tendo
perdido a luta política naquele contexto, conseguiram deixar fortes marcas da sua visão sobre a República
no imaginário nacional. A primeira experiência republicana, assim, perpetuou-se como desordem e, como
assinala, também, Cristina Buarque de Hollanda, na “ideia de ausência”. ALONSO, Angela, Op. cit., pg. 147-148;
HOLLANDA, Cristina Buarque de. A questão da representatividade na Primeira República. IN: Caderno CRH, Salva-
dor, vol. 21, nº 52, Jan-Abril 2008, pag. 25-26.

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TEORIAS RACIAIS NO BRASIL

contudo, seria um problema que desde muito tempo deixava os “melhores da terra” preocupa-
dos e os inúmeros viajantes europeus abismados.

A grande quantidade de negros e mestiços no Brasil, que durante o período escra-


vista deixava os senhores extremamente temerosos de revoltas – principalmente após a revol-
ta dos escravos no Haiti – e deixava viajantes espantados com os modos de vida tidos como
extravagante e quase animalesco dessa população, sempre foi uma pauta de discussão das
camadas dirigentes do Estado8. A partir da segunda metade do século XIX, porém, uma nova
perspectiva de encarar esse “problema” ganharia força. As teorias raciais, populares entre os
intelectuais na Europa, entrariam de maneira fulminante no país.

Junto com as ideias de um “falso evolucionismo”9 que, somado ao conceito moder-


no de História entendido como processo10, colocaram as diversas sociedades numa escalada
ao progresso, as teorias raciais informavam que as nações que estavam na frente nessa cami-
nhada – entenda-se França e Inglaterra, essencialmente – ali se encontravam porque eram de
uma raça humana específica: a branca, ariana ou caucasoide. Construía-se, assim, um deter-
minismo biológico que já colocava como ponto de partida a questão racial para o alcance da
civilização. Ou seja, apresentava como natural a posição central desses países no capitalismo
internacional.

O problema no caso brasileiro era como lidar com essas teorias, pois, segundo elas,
o Brasil se tornava um país inviável. Recheado de mestiços, considerados “degenerados” pela
maioria das teorias à época, e negros, tidos como os mais atrasados na corrida evolucionista,
o país tinha comprometida a sua chegada às utopias da modernidade. Isso não poderia ficar
assim.

Restava aos intelectuais comprometidos com o projeto das elites de alcançar es-
sas utopias assegurarem um lugar para o Brasil entre as grandes nações mundiais. A saída
encontrada por uma parcela destes pensadores, como veremos, consistirá na invenção de
uma nação homogênea a partir da relativização da degeneração da mestiçagem garantindo, ao
mesmo tempo, um futuro branco para o país. Antes, é preciso compreender melhor o contexto
de auge desse debate.

8 Para os debates e as saídas estipuladas pelas elites e dirigentes na durante o período colonial acerca do “perigo
interno”, ver: MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil. Resistência, tráfico negreiro e alfor-
rias, séculos XVII a XIX. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002006000100007&script=-
sci_arttext (Último acesso em 27/04/2014), LARA, Silvia. Fragmentos Setecentistas: Escravidão, cultura e poder
na América Portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
9 Trabalhando detalhadamente as premissas desse “falso evolucionismo” que caracterizou do auge da moder-
nidade europeia, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, em seu ensaio seminal lançado no pós-Segunda Guerra
Raça História, aponta: “Mas, por mais diferentes e por vezes bizarras que possam ser, todas estas especulações
se reduzem a uma única e mesma receita, que o termo de falso evolucionismo é, sem dúvida, mais adequado
para caracterizar. Em que consiste ela? Muito exatamente, trata-se de uma tentativa para suprimir adversidade
das culturas, fingindo conhecê-la completamente. Porque, se tratarmos os diferentes estados em que se en-
contram as sociedades humanas, tanto antigas como longínquas, como estádios ou etapas de uma desenvolvi-
mento único que, partindo do mesmo ponto, deve convergir para o mesmo fim, vemos bem que a diversidade
é apenas aparente. A humanidade torna-se única e idêntica a si mesma, só que esta unidade e esta identidade
não se podem realizar senão progressivamente e a variedade das culturas ilustra os momentos de uma pro-
cesso que dissimula uma realidade mais profunda ou retarda a sua manifestação.” LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça
e história. IN: Antropologia Estrutural II, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, cap. XVIII, pg. 338-339.
10 Ver: ARENDT, Hannah. Da Revolução. São Paulo: Ática, 1988, pg.44.

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O Pós-Abolição e as Teorias Raciais: abolição, imigração e legitima-
ção das hierarquias
Como vários autores chamam atenção, entender o contexto pós-Proclamação da
República e sua necessidade de criar novas formas de coesão social no Brasil devido à mu-
dança de regime político são essenciais para compreender os inúmeros debates que as teses
raciais fomentaram no país. Outro marco político-social, entretanto, também se mostra indis-
pensável: a abolição da escravidão em 13 de maio de 1888. Com o fim do sistema escravista
no país, duas grandes questões surgiram e ambas vão ser permeadas pelas teorias raciais.

A primeira é a questão da mão-de-obra. Com o fim da escravidão, relação de pro-


dução hegemônica na sociedade imperial, havia a necessidade por parte dos produtores de
gêneros agrícolas de substituição de mão-de-obra. Segundo a historiadora Emília Viotti, essa
transição foi do ponto de vista dos grandes proprietários exitosa, apenas alguns membros
dessa classe que já estavam em situações precárias anteriormente sofreram de forma mais
aguda11. Alguns proprietários teceram novas relações de trabalhos com os ex-escravos12 e ou-
tros investiram pesado na substituição dos trabalhadores. Mas, o que interessa para o este
trabalho, foi uma das saídas que as classes produtoras encontraram para sair desse dilema no
momento do 13 de maio: a imigração de europeus.

Esta política, no estado de São Paulo, encontrou números altíssimos. Paula Beiguel-
man aponta que nos anos de 1891 e 1895 entraram no estado cerca de 108.688 e 139.998
imigrantes – maioria italianos –, respectivamente13. Esses dados ajudam em algumas reflexões.
Somados a outros fatores como o a crença no evolucionismo social e no conceito de “raça”,
demonstram que essa política de Estado estava pautada na crença de superioridade racial
dos europeus e no comprometimento em assegurar um futuro branco para o Brasil. Isso fica
mais claro se atentarmos para o caráter discriminatório de algumas leis e decretos dos primei-
ros anos da República. A mais explícita, como aponta Amilcar Pereira, é o Decreto nº 528, de
28/06/1890, que proibia a imigração de “indígenas da Ásia ou da África”14, autorizando, apenas,
os europeus.

Uma polêmica que propiciou bons debates na esfera pública e que também explicita o
caráter racializado das políticas de Estado no período foi a possibilidade de trazer imigrantes
asiáticos, os coolies, para trabalhar nas lavouras paulistas. Em 1879 foi criada, entre os apoia-
dores da ideia de trazer estes imigrantes, a Sociedade Importadora de Trabalhadores Asiáticos.
Essa postura teve dois grandes opositores em nível internacional, os governos da Inglaterra e
da China, contudo, o que nos interessa é o conteúdo de alguns discursos. Destaca-se o proferi-
do por Joaquim Nabuco, notável abolicionista. Nas palavras de José Petruccelli:

Os oposicionistas multiplicavam as críticas contra esse pro-


jeto e particularmente os abolicionistas como J. Nabuco, que
dizia: “O principal efeito da escravidão sobre a nossa popula-
ção foi, assim, africanizá-la, saturá-la de sangue preto, como

11 VIOTTI, Emília. A abolição. São Paulo: UNESP, 2010, pg. 133.


12 Para maiores detalhes acerca das principais questões em relação aos ex-escravos no pós-abolição como
a questão das fontes e da diversidade de experiências que os pesquisadores vêm se debruçando, principal-
mente, relacionado à cidadania, ver: MATTOS, Hebe Maria, RIOS, Ana Maria. O pós-abolição como problema
histórico: balanços e perspectivas. IN: TOPOI, v. 5, n. 8, jan.-jun. 2004, pp. 170-198.
13 BEIGUELMAN, Paula. A crise do escravismo e a grande imigração. São Paulo: Brasiliense, 1981, pg. 39.
14 PEREIRA, Amilcar Araujo. O Mundo Negro: Relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo
no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2013, pg. 65.

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TEORIAS RACIAIS NO BRASIL

o principal efeito de qualquer grande empresa de imigração


da China seria mongolizá-la, saturá-la de sangue amarelo”.
Mais adiante, nas conclusões do que ele chamou sua obra de
propaganda, ele escreveu a pátria ideal para os abolicionistas:
“um país onde todos sejam livres; onde, atraída pela franque-
za das nossas instituições e pela liberdade do nosso regímen,
a imigração europeia traga, sem cessar, para os trópicos uma
corrente de sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que pos-
samos absorver sem perigo, em vez dessa onda chinesa, com
que a grande propriedade aspira a viciar e corromper ainda
mais a nossa raça”.15

Mas, não era só a questão da substituição da mão-de-obra que consistiu numa


preocupação após a abolição. Com o 13 de maio, as antigas hierarquias sociais construídas
e “naturalizadas” pela instituição escravista não poderiam ter a mesma forma. A oposição se-
nhor/escravo não poderia ser mais acionada para cristalizar a inferioridade da população ne-
gra no Brasil16. Como aponta Viotti, “nessa época, a escravidão passara a ser identificada com
ignorância e atraso e a emancipação, com progresso e civilização”17, o que deixava os senhores
numa posição extremamente paradoxal no momento de abraçarem as filosofias liberais de
igualdade, liberdade e fraternidade. Diziam elas que, agora, todos seriam iguais perante a lei,
sejam senhores, ou mesmo libertos... Adotar o liberalismo significava ao mesmo tempo esva-
ziar de legitimidade as ideologias que asseguravam a sua hierarquia social18.

Assim, Lilia Schwarcz aponta que as teorias raciais tiveram um papel importantís-
simo para legitimar as hierarquias sociais num contexto em que o liberalismo se tornava pa-
radigma político no país e a abolição saíra de pesadelo dos grandes proprietários para uma
realidade histórica. Elas vinham “naturalizar” as hierarquias, tornar natural a organização social
extremamente desigual no qual se encontrava a sociedade brasileira19, onde indivíduos e gru-
pos sociais da população negra lutavam com todas as suas forças para se fazer perceber20.

15 PETRUCCELLI, José Luis. Doutrinas francesas e o pensamento racial brasileiro, 1870-1930. IN: Estudos Socie-
dade e Agricultura, 7 Dezembro, 1996, pg. 141-142.
16 “Afinal, o fim da escravidão não representou apenas a perda de propriedade, mas de referências funda-
mentais na constituição da identidade dos proprietários de terras e escravos. A certeza de que o mundo social
não podia mais ser definido pela oposição entre senhores e escravos comprometia vínculos pessoais e refe-
rências de autoridade – não só relações de trabalho. Não eram apenas os trabalhadores que os proprietários
perdiam, mas a sua própria posição hierárquica estava em jogo. Um certo desespero deve mesmo ter sido
partilhado por proprietários já empobrecidos, mas ainda dispostos a resguardar a posição senhorial. Ver-se
destituído desse lugar subvertia toda a lógica que balizava a arquitetura social desde os tempos coloniais. Des-
se modo, enquanto comemorava-se a abolição estiveram em suspensão regras importantes no jogo de poder
entre brancos senhores/negros subalternos.” ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição
e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2009, pg. 125-126.
17 VIOTTI, Emília, Op. cit., pg. 128.
18 Hobsbawm, também no texto em que trata da invenção das tradições, assinala para esse caráter da ideo-
logia liberal, segundo o autor: “Assim, ao colocar-se conscientemente contra as tradições a favor das inovações
radicais, a ideologia liberal da transformação social, no século passado, deixou de fornecer os vínculos sociais
e hierárquicos aceitos nas sociedades precedentes, gerando vácuos que puderam ser preenchidos com tradi-
ções inventadas.” RANGER, Terence, HOBSBAWM, Eric, Op. cit., pg. 20.
19 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Espetáculo da miscigenação. IN: Estud. av. vol.8 nº20 São Paulo Jan./Apr. 1994, pg.
146-147
20 Nos últimos anos, uma série de pesquisas buscaram resgatar aspectos da organização, modos de agir e
trajetórias individuais das populações negras no contexto do Pós-abolição. Desde a década de 1980, quando as
demandas dos movimentos negros e a preocupação com a ação social dos sujeitos pela academia fomentaram
uma mudança na historiografia da escravidão, chaves explicativas importantes das relações raciais no país têm
sido revistas devido à emergência de estudos que buscam historicizar as diversas experiências da população
de ascendência africana, resgatando, assim, o negro como sujeito da sua própria história. De maneira bem
similar aos anos 1980 para a historiografia da escravidão, os anos 2000 significaram importantes mudanças na

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Mas, a mesma autora chama a atenção para outro paradoxo que esse projeto das
elites teria que enfrentar. Como simplesmente “importar” essas teorias se, em sua maioria,
elas condenavam o Brasil devido a sua mestiçagem e a preponderância do sangue negro, re-
sultando num conjunto de degenerados impossibilitados de alcançar o progresso? É nesse
processo de invenção de uma nação que garantia a entrada do país no curso da modernidade
que alguns intelectuais se destacaram com suas saídas teóricas.

Os intelectuais brasileiros e as Teorias Raciais:


As teorias raciais podem ter demorado um pouco para chegar à maioria dos ho-
mens que pensavam o Brasil, mas, quando chegaram, encontraram uma bela receptividade.
Os intelectuais da geração de 1870-1930, marcada pela Guerra do Paraguai, as leis abolicio-
nistas, o Republicanismo, o desenvolvimento dos institutos de pesquisa, entre outros fatores,
utilizavam a categoria moderna de raça para pensar uma série de questões que se mostravam
estruturais na virada do século.

Uma boa parcela da influência dessas teorias está intimamente ligada à estadia no
Brasil do francês Conde de Gobineau (1816-1882), conhecido como pai das teses racialistas,
durante cerca de quinze meses. Desde o momento em que chegou, em 1868, o aristocrata ti-
nha relações estritamente profissionais com seus colegas de trabalho na embaixada francesa,
se relacionando de forma mais direta apenas com o imperador, e seu amigo, D. Pedro II. Isso
se devia ao seu próprio pensamento acerca das relações raciais, extremamente hierárquico do
ponto de vista da diversidade racial e enfático na superioridade da raça ariana. Lidava de forma
extremamente discriminatória em relação aos brasileiros, em sua visão, mestiços e impregna-
dos de sangue negro, carentes de civilização e impossibilitados de alcançá-la. Sendo um dos
mais enfáticos da degeneração do mestiço, Gobineau dizia:

Se admitimos que um número muito importante de seres


humanos tem estado, e estará para sempre, impossibilitado
de realizar mesmo um primeiro passo na direção da civiliza-
ção’(...) ‘estamos induzidos a concluir que uma parte da hu-
manidade é, nela mesma, impotente para jamais se civilizar...
porque ela é incapaz de vencer as repugnâncias naturais que
o homem, como os animais, experimenta contra o cruzamen-
to.21

Essa postura de condenação do mestiço no pensamento do francês chegava ao


ponto de afirmar que em menos de 200 anos o Brasil seria um vazio demográfico, pois, a
sua população encontraria problemas para se reproduzir relacionados ao grau dessa mestiça-
gem22. Mesmo assim, Gobineau acreditava que se o governo brasileiro incentivasse a imigra-
ção de raças puras europeias, os males advindos com a miscigenação poderiam ser ameniza-

consolidação de um campo de estudos específicos sobre o pós-abolição. A influência e o diálogo com pesqui-
sadores do tema de outros países, a realização de eventos acadêmicos, a demanda por parte de movimentos
sociais, e o incentivo à pesquisa acabaram por dar uma energia ainda maior para o campo. Reflexo disso são
os inúmeros grupos de pesquisa que surgem nos programas de pós-graduação pelo país que se debruçam
sobre as questões do pós-abolição e a formação, finalmente, do GT Nacional de Emancipações e Pós-Abolição
durante o XXVII Simpósio Nacional da ANPUH, realizado em 2013 na cidade de Natal, coordenado por Giovana
Xavier e Wlamyra de Albuquerque além de reunir nomes de peso como Hebe Mattos, Martha Abreu, Flávio
Gomes, Maria Helena Machado entre outros. Para mais informações sobre o GT Nacional, ver: http://www.
anpuh.org/gt/view?ID_GT=45#.Uz1m_O5eSVU.facebook.
21 Apud PETRUCCELLI, José Luis. Op. cit., pg. 135-136.
22 Idem, pg. 137.

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TEORIAS RACIAIS NO BRASIL

dos e durante um longo processo, até excluídos. Nesse intuito, L’Emigration au Brésil (1874) foi
publicado em Estocolmo, três anos após a partida de Gobineau do país, e escrito em favor de
um pedido de D. Pedro II com a finalidade de incentivar a imigração de europeus para o país.

Não foi apenas esse francês, contudo, que teve uma importância destacada na
reprodução das ideias raciais em território nacional. Louis Couty (1854-1884), outro francês,
chegou ao Brasil em 1878, sob indicação de Alfred Vulpian para assumir o cargo de professor
de Biologia Aplicada na Escola Politécnica, no Rio de Janeiro, a pedido do imperador D. Pedro
II. Além disso, foi professor no Museu Nacional onde faria com que suas ideias ganhassem
adeptos.

Assim como Gobineau, via no Brasil uma espécie de lugar onde não existiriam pre-
conceitos raciais, onde a miscigenação e a grande quantidade de negros alforriados tinham
contribuído para uma organização social diferenciada de outros países. Abolicionista gradual,
também via na miscigenação com a raça branca uma saída para o Brasil deixar o seu “atraso”
e chegar aos patamares da civilização23. Não adiantaria investir na população negra, segundo
o professor, eles carregariam uma essência preguiçosa, sendo os responsáveis pela situação
atual do Brasil. A escravidão, aos seus olhos, serviria como uma proteção aos negros...

Esse par de intelectuais franceses, assim como outros racialistas como Spencer
Spencer e Tylor com a teoria do “evolucionismo social”24, deixaram marcas no pensamento
social brasileiro da época. Não há maneiras de esconder que as suas ideias tiveram eco. Sus-
tentar essa afirmação, porém, é diferente dos argumentos que informam que os intelectuais
brasileiros apenas “importaram” essas teses, ou reproduziram as que estavam contidas nos
ensaios de Gobineau e Couty enquanto estiveram aqui. Os pensadores que tentaram colocar
o Brasil nessa trilha ao progresso, como aponta Schwarcz, procuraram uma saída para o pa-
radoxo legitimar as hierarquias/assumir a “degeneração”. E encontraram. Segundo a autora:

A saída foi então preconizar a adoção do ideário científico,


porém, sem seu corolário teórico aceitar a ideia da diferença
ontológica entre as raças sem a condenação à hibridação à
medida em que o país, a essas alturas, encontrava-se irreme-
diavelmente miscigenado.25

Apresentar esse esforço de parte dos intelectuais brasileiros na Primeira República


não está servindo apenas para combater os argumentos que apontam para a “cópia” de ideias
europeias, mas, também, para desconstruir uma áurea que circunda ainda hoje na opinião
pública os estudos de Gilberto Freyre. As contribuições de Freyre para o estudo das relações
raciais são bastante conhecidas, e se tornaram populares na época e até os dias de hoje. O

23 Idem, pg. 138.


24 Não é difícil encontrar trabalhos que explicitam a semelhança nos discursos do evolucionismo social com o
biológico de Darwin publicado em Origem das espécies e referência nos estudos biológicos até os dias atuais.
O cuidado aqui, contudo, se torna urgente. Os dois nomes fundadores do evolucionismo social, Spencer e
Tylor, elaboraram e publicaram a sua obra antes mesmo da publicação do livro clássico de Darwin. Assim, a
“luta pela vida” muito utilizada por esse discurso racialista não se confunde com os argumentos do evolucio-
nismo biológico que se mostra como uma das hipóteses científicas com maiores índices de probabilidade con-
firmada. Nas palavras do antropólogo francês: “Os dois fundadores do evolucionismo social Spencer e Tylor,
elaboram e publicam a sua doutrina anteriormente à Origem das espécies ou sem ter lido esta obra. Anterior
ao evolucionismo biológico, teoria científica, o evolucionismo social não é, a maior parte das vezes, senão a
maquilagem falsamente científica de um velho problema filosófico para o qual não existe qualquer certeza
de que a observação e a indução possam um dia fornecer a chave.” LÉVI-STRAUSS, Claude, Op. cit., pg. 339.
25 SCHWARCZ, Lilia Moritz, Op. cit., pg. 138-139.

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pernambucano descartou a categoria raça e passou a trabalhar, com muita influência da an-
tropologia cultural de Franz Boas, com o conceito de cultura26.

No célebre Casa-grande & senzala, lançado em 1933, o autor apontava as contribui-


ções da população negra e dos índios – em menor medida – à cultura nacional, deixando de
empregar as teorias racialistas, típicas da segunda metade do XIX, e acabando com a taxação
negativa da mestiçagem. Ao contrário, Freyre agora via no mestiço um salto qualitativo, pois,
somente com a miscigenação os portugueses teriam conseguido aguentar o clima tropical e as
condições precárias as quais estavam expostos. De vilão a herói, essa foi a epopeia do mestiço
na obra freyreana27.

Mas, teria sido Gilberto Freyre o primeiro a fazer esse movimento em relação à
mestiçagem? O que os estudos de Lilia Schwarcz e Carolina Vianna Dantas nos mostram que
outros pensadores já tinham encontrado formulações que iam ao encontro dessa ideia. Para
Dantas, a preocupação com a incorporação dos ex-escravos à sociedade e a formação da iden-
tidade nacional foram os pontos que acabaram fazendo com que estes intelectuais chegassem
a essa saída28.

Argumentando, também, com uma historiografia que aponta que a inclinação des-
ses intelectuais às manifestações negras e populares na época para a formação das chamadas
“singularidades brasileiras” aconteceu devido à onda de exotismo e a volta de um regionalis-
mo, Dantas afirma que isso, apenas, não é o bastante para entender a complexidades desses
debates. Continuar com essa chave explicativa, segunda a autora, esvazia de sentido as redes
de sociabilidade, a “república das letras”, em suas palavras, que se formava entre essas perso-
nagens e que eram essenciais na consolidação dessas teses e argumentos29.

Um dos intelectuais mais influentes na virada do século XIX para o XX e que trazia
a relativização da degeneração da mestiçagem é o ainda pouco estudado João Batista Lacerda
(1846-1915). Diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro – instituição na qual trabalhou com
Louis Couty –, Lacerda foi convidado para participar do I Congresso Internacional das Raças,
em julho de 1911. Comunicador que carregava a marca de representante de um “típico país
miscigenado”, Lacerda em poucas palavras resumia as suas ideias acerca da formação racial
brasileira: “O Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva,
saída e solução”30.

Exatamente. O cientista acreditava que em 2012, aproximadamente, o Brasil se-


ria um país branco. Mas, essa garantia de um futuro branco não significava que no presente

26 “Porém, muito influenciado por Franz Boas – com quem conviveu pessoalmente durante seus estudos na
Universidade de Columbia –, Gilberto Freyre teria deslocado o eixo da discussão, operando a passagem do
conceito de ‘raça’ ao conceito de cultura, que marcaria o distanciamento entre o biológico e o cultural, como
afirma em sua obra: ‘Nesse critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura, assenta todo o plano
deste ensaio’”. PEREIRA, Amilcar Araujo, Op. cit., pg.78.
27 Segundo o brasilianista Russel-Wood: “Era considerada tão básica para o bem-estar nacional que, caso
tivesse determinado que a miscigenação seria prejudicial, ficaria extremamente difícil superar esta barreira e
encontrar qualquer vislumbre de esperança para o futuro o país. Acadêmicos da linhagem de Alberto Tôrres,
Paulo Padro e Francisco José de Oliveira Vianna já tinham avaliado a miscigenação como força negativa. Freyre
adotou uma postura diametralmente oposta. Ao colocar a miscigenação no contexto mais amplo das forças
evolutivas sociais e econômicas, foi capaz de demostrar que, na verdade, a miscigenação fora o fator positivo.”
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
28 DANTAS, Carolina Vianna. O Brasil café com leite. Debates intelectuais sobre mestiçagem e preconceito de
cor na Primeira República. In: Revista Tempo, Niterói, ed.26, 2009, pg. 57-58.
29 Idem, pg. 58.
30 SCHWARCZ, Lilia Moritz, Op. cit., pg. 137-138.

DIEGO UCHOA DE AMORIM 70


TEORIAS RACIAIS NO BRASIL

ele admitia uma “degeneração” à maneira das teses europeias. Segundo Lacerda, mesmo a
raça brasileira não podendo ser considerado uma raça superior, como a branca ou ariana, os
mestiços do país seriam superiores às outras raças ditas inferiores, mesmo que estas fossem
“puras”. Nas suas palavras, presentes na sua fala no I Congresso Internacional das Raças, ele
afirma:

A partir do que acabamos de afirmar, percebe-se bem que,


contrariamente à opinião de diversos escritores, o cruzamen-
to da raça negra com a raça branca não dá, em geral, produtos
de uma intelectualidade inferior; e mesmo se estes produtos
não podem rivalizar por outras qualidades com as raças mais
fortes do tronco ariano, se, como estes últimos, elas não têm
um instinto de civilização tão realizado, não é menos certo
que não se pode classificar estes mestiços no nível das raças
realmente inferiores.31

E não foi só na então capital, Rio de Janeiro, que esse debate estava presente. Nos
estados de São Paulo, Pernambuco e na Bahia, também, podemos ver inúmeras discussões
e interferências políticas racializadas. Segundo Schwarcz, o grupo de bacharéis do estado de
São Paulo, mesmo mantendo uma das bandeiras liberais mais fortes do Brasil, mantinha um
discurso que deixava passar as premissas racialistas em vários de seus posicionamentos. Ao
contrário de um grupo influente de intelectuais de Recife, por exemplo, que se mantinha cla-
ramente determinista e tinha em Sílvio Romero (1851-1914) um expoente singular das teses
do embranquecimento32.

O famoso crítico literário, assim como Lacerda, tinha recuperado o negro na compo-
sição da nação brasileira, porém, ao mesmo tempo, tinha dado um prazo para a sua extinção.
Isso porque a sua tese do embranquecimento guardava um destino certo para a população
negra: o fim. Com a ênfase na política de imigração europeia para a miscigenação “positiva”
com o brasileiro esperava-se que num futuro próximo o país seria branco, de fato. Conforme
assinala Dantas:

A partir da mestiçagem, Silvio Romero resgatou o negro e ao


mesmo tempo o subsumiu, uma vez que o branqueamento
pressupunha o predomínio do elemento branco. O mestiço,
para Romero, seria uma espécie de “ganho evolutivo”, pois
teria ajudado o colonizador branco a se adaptar ao meio nos
trópicos e incorporado índios e africanos à civilização.33

Não só de teses com pitadas de “otimismo” por parte dos intelectuais referente ao
futuro branco do país os debates eram permeados. Nina Rodrigues (1862-1906), médico da
Faculdade de Medicina da Bahia, estava mais ligado às teorias que apontavam para a impos-
sibilidade de qualquer tipo de ganho para a nação brasileira com a promoção da mestiçagem.
Muito influenciado pelas reflexões do italiano Cesare Lombroso, Rodrigues produziu uma série
de estudos e ensaios nos quais insistiam na inclinação do mestiço e do negro ao crime, inclusi-
ve, defendendo que raças diferentes mereciam códigos penais diferentes em seu livro As raças

31 Apud PETRUCCELLI, José Luis. Op. cit., pg. 143.


32 SCHWARCZ, Lilia Moritz, Op. cit., pg. 140-141.
33 DANTAS, Carolina Vianna, Op. cit., pg. 62.

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humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1894). Em alguns momentos, Rodrigues chegou
a falar que ao contrário do que alguns esperavam e defendiam, a miscigenação progressiva, o
Brasil estava caminhando para uma segregação geográfica, de fato, entre as raças. No Norte,
ficariam os negros, e no Sul a população branca34.

Pode parecer estranho para muitos o fato de Nina Rodrigues se dedicar ao assunto.
Afinal, ele era um médico legal e atualmente esta categoria profissional não tem a mesma
proeminência e legitimidade nos debates sobre as relações raciais e a dinâmica social da socie-
dade brasileira. Essa postura do médico da universidade baiana, porém, fica melhor entendia
se tivermos claro que os médicos e higienistas, nesse período, gozavam do fato de serem,
ao lado dos bacharéis em direito, considerados os mais capacitados para lidar com questões
chaves no pensamento social brasileiro como a da natureza da nação brasileira que precisava
ser pensada.

Como o exemplo de Nina Rodrigues nos deixar perceber, na intenção de buscar a


“originalidade brasileira” alguns pensadores acabaram encontrando o “perigo negro”. Essen-
cializava-se, assim, a alienação, embriaguez, epilepsia, violência e a amoralidade nos negros e
mestiços. Estavam esses profissionais carregando uma responsabilidade quase divina de curar
a nacionalidade brasileira... Segundo Weyler:

Ao saber médico atribuiu-se, progressivamente, o papel de


tutorar e sanear a nacionalidade; para o cumprimento des-
ta “missão”, os médicos assumiram uma postura na maioria
das vezes marcadamente autoritária e violenta em suas in-
tervenções. Segundo um dos lemas do período – “Prevenir,
antes de curar” – os males deveriam ser erradicados antes
mesmo de sua manifestação. Era urgente, portanto, não só
curar as epidemias, mas, sobretudo, evitar o aparecimento de
novos surtos. Os projetos de saneamento e de higienização
começaram a tomar força, ultrapassando os limites estritos
da medicina, através de medidas diretas de intervenção na
realidade social.35

No Rio de Janeiro, com Oswaldo Cruz e a sua escola higienista, também vamos ter
uma série de políticas visando o combate a epidemias e doenças tropicais, assim como polí-
ticas de vacinação obrigatórias. Essas intervenções, entretanto, tinham, na maioria das vezes,
um caráter extremamente autoritário o que fomentava a revolta da população oriunda das
classes populares nos centros urbanos – que já tinha uma vida extremamente difícil. O caso da
Revolta da Vacina na então capital federal é um exemplo desses movimentos que acabaram
tendo ligações com as políticas higienistas36.

Assim, depois de passar pelos exemplos de Silvio Romero, João Batista Lacerda e
Nina Rodrigues, destacando as aproximações e diferenças entre os pensadores, cabe deixar
claro que, de maneira alguma, esse movimento por parte desses intelectuais que tentaram

34 PETRUCCELLI, José Luis. Op. cit., pg. 139.


35 WEYLER, Audrey Rossi. A loucura e a República no Brasil: a influência das Teorias Raciais. IN: Psicologia USP,
2006, 17 (1), 17-34, pg. 20.
36 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002,
pg. 73-74.

DIEGO UCHOA DE AMORIM 72


TEORIAS RACIAIS NO BRASIL

encontrar saídas para o paradoxo que se apresentava às elites nacionais e ao seu projeto de
nação ocorreu de forma homogênea e sem disputas.

Ao contrário, o que se observa nos trabalhos que se debruçaram sobre estes inte-
lectuais e a conjuntura em que atuaram é que, mesmo eles tendo investido num tema comum,
os seus apontamentos e possíveis soluções eram diferentes e entravam num campo complexo
de disputas marcadas por diferentes relações de força. Adotando esse prisma de interpreta-
ção fica mais fácil para nós historiadores atentarmos para as várias alternativas que estavam
presentes nesses debates e que, de modo a ser mais bem investigado, acabaram tendo pouco
espaço – ou nenhum! –, seja nas publicações da época em questão, ou até mesmo da própria
produção historiográfica.

Com todas essas pesquisas que abordam o alto grau de influência das teorias ra-
ciais no Brasil na virada do século XIX e XX, alguns podem se perguntar se não havia nenhum
expoente que não utilizasse a categoria raça para pensar a realidade e a nação brasileira. Sem
dúvida, o pensamento racialista foi hegemônico no período, entretanto, temos exemplos de
pensadores que mesmo nesse campo tomado por entusiastas do embranquecimento apre-
sentaram ideias que traziam outros fatores como causas do “atraso” brasileiro na corrida ao
progresso.

Os antirracialistas: os casos de Manoel Bonfim e Juliano Moreira


Um desses expoentes foi Manoel Bonfim (1868-1932), médico e intelectual natural
de Aracaju, que durante a sua vida trouxe interpretações que fugiam das teses racialistas. Par-
ticipando de debates enquanto foi Deputado Federal por Sergipe e argumentando com a sua
escrita depois que foi se dedicar à carreira acadêmica, quando publicou livros como O Brasil
na América (1929), O Brasil na História (1930), Cultura e educação do povo brasileiro (1931),
Bonfim sempre insistiu que as causas da situação precária a qual o povo brasileiro estava sub-
metido tinham raízes no caráter predatório da colonização ibérica. Em seu livro mais famoso,
América Latina: males de origem (1905), encontra-se a denúncia do legado que anos de explo-
ração por parte de Portugal teriam deixado a nova nação. Nas palavras de Dantas:

Dentro da linguagem biológica do seu tempo, este autor re-


futou a aplicação, segundo ele inapropriada, das teorias bio-
lógicas à sociedade humana. A fim de compreender o atraso
em que se encontravam a América Latina e o Brasil, o autor
investiu na análise dos problemas herdados do período colo-
nial, chegando à conclusão de que o atraso tinha motivações
históricas derivadas da exploração predatória operada por
espanhóis e portugueses na América Latina – o que vinculou
à ideia do parasitismo.37

Dessa maneira, ele dialogava diretamente com as teses de autores famosos no


contexto europeu que viam os motivos da situação brasileira ligados ao caráter “preguiçoso”,
“indolente” e “bárbaro”, devido a sua mestiçagem e ao alto grau de sangue negro nas veias da
população. Afastava-se, assim, de chaves explicativas ligadas ao determinismo racial e apos-
tava em explicações histórico-sociais, recusando o essencialismo, marca desses argumentos.

37 DANTAS, Carolina Vianna, Op. cit., pg. 65.

73 REVISTA CANTAREIRA - EDIÇÃO 19 / JUL-DEZ, 2013


Mas, e a solução para o Brasil chegar ao almejado progresso e a um verdadeiro
espírito liberal? Além das funções que já foram citadas, Bonfim também foi subdiretor do Pe-
dagogium, cargo assumido em 25 de junho de 1896. Órgão que tinha a função de “coordenar
e controlar as atividades pedagógicas do país e de ser um centro impulsionador e estimulador
de reformas e melhorias para o ensino público”38. Durante o tempo que exerceu esse ofício
ele teve contato com a precaríssima situação do ensino público brasileiro. E a saída para uma
possível melhoria da realidade brasileira passava, na sua visão, justamente pela educação. Em
suas palavras:

Sofremos, neste momento, uma inferioridade, é verdade, re-


lativamente aos outros povos cultos. É a ignorância, é a falta
de preparo e de educação para o progresso - eis a inferiorida-
de efetiva; mas ela é curável, facilmente curável. O remédio
está indicado: a necessidade imprescindível de atender-se à
instrução popular.39

Conseguia fechar, finalmente, a sua tese do parasitismo social40 e ao mesmo tempo


apresentar uma solução para os males da predatória colonização ibérica aos países latino-
americanos, incluindo, o Brasil.

Outro intelectual importante que também não entrou em confluência com as te-
ses racialistas foi o médico negro Juliano Moreira (1873-1932). Baiano e de origem humilde,
Moreira foi um dos maiores representantes brasileiros em congressos internacionais em sua
época. Paris, Berlim, Lisboa, Milão e outras mais cidades ouviram os argumentos médicos an-
tirracialistas do negro que se tornaria professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Durante
a sua vida, combateu e refutou as ideias que procuravam encontrar a explicação das doenças
mentais no conceito de raça, apontando que estas se deviam a fatores de natureza física e si-
tuacionais. Como prova, ele trazia os inúmeros exemplos de negros e mestiços brasileiros que,
mesmo com uma realidade extremamente preconceituosa, tinham alcançado boas posições
como pedagogos, médicos e engenheiros. O que diferenciava os brancos, negros e mestiços
no Brasil, segundo ele, longe de ser o grau de sua pureza racial, era a boa educação e boas
condições sanitárias e mentais41.

Um episódio interessante e excepcional envolvendo Juliano Moreira foi a situação


enfrentada por ele quando prestou concurso para professor na Faculdade de Medicina. Além
de trazer um discurso contra hegemônico, uma vez que saía das teses racialistas, ele encon-
trou pela frente uma banca composta por homens lembrados pela sua marca escravocrata. O
resultado? Uma aprovação com nota máxima42.

Esses dois exemplos de pensadores brasileiros, sendo um deles negros, demons-

38 PRIORI, Ângelo, CANDELORO, Vanessa Domingos de Moraes. A utopia de Manoel Bonfim. IN: Revista Espaço
Acadêmico, nº 96, maio de 2009, pg. 1.
39 Apud PRIORI, Ângelo, CANDELORO, Vanessa Domingos de Moraes, Op. cit., pg. 3.
40 “A ideia formulada por Bomfim, em contraposição ao discurso que atribuía ao fator raça as causas do
subdesenvolvimento, é a tese do parasitismo social, onde ele enfatizava que a lógica da dominação externa
imposta pelo colonialismo combinada com a dominação interna imposta pelas elites dirigentes, causava pro-
fundos males aos povos latinoamericanos. Segundo o autor, o parasitismo impunha três efeitos malévolos e
predador: o enfraquecimento do parasitado; as violências que se exercem sobre eles; e a adaptação do para-
sitado às condições de vida que lhe são impostas.” Idem, pg. 3-4.
41 DANTAS, Carolina Vianna, Op. cit., pg. 75.
42 Idem, pg. 76.

DIEGO UCHOA DE AMORIM 74


TEORIAS RACIAIS NO BRASIL

tram que as teses racialistas eram sim hegemônicas até a década de 1930 no Brasil, porém,
existiram outros estudos que refutavam estas teses e que foram silenciados na época em
que vieram à tona e durante muito tempo pela própria historiografia. A grande pergunta é
o porquê isso aconteceu. Percebendo, a partir destes estudos, a centralidade das teorias do
embranquecimento e da utilização do evolucionismo social ao lado do racialismo para a manu-
tenção da dominação de classe e da construção de identidades extremamente hierárquicas no
contexto pós-Abolição e de inserção do liberalismo como modelo de doutrina política-filosófica
no país, creio que qualquer resposta não pode negligenciar o caráter de classe envolvido na
popularização destas teorias.

Desenvolver essa reflexão, infelizmente, não é a proposta deste artigo. Nas linhas
acima procuramos situar o cenário em que estas teorias chegaram ao Brasil e apresentamos,
a partir da historiografia sobre o tema, as saídas conceituais que alguns intelectuais brasileiros
tiveram quando lidaram com as questões. Identificamos, assim, que aquele louvor prestado a
Gilberto Freyre devido a sua “nova” postura em relação ao mestiço é muito mais fruto de cons-
truções posteriores e contemporâneas a sua obra do que de fato comprovável ao olharmos o
riquíssimo debate que se fazia nos centros de pesquisa, como estudado por Schwarcz, ou em
revistas e jornais, como analisado por Dantas.

Os debates sobre raça, racismo e antirracismo, de maneira alguma, tiveram fim no


momento da publicação de Casa-grande & senzala. Este ensaio trouxe, para muitos autores,
uma visão de Brasil que inauguraria a conhecida “democracia racial”43. Essa representação do
povo brasileiro a partir da mestiçagem cultural e biológica entre as três raças, além de apon-
tar para os ganhos do “brasileiro” daí resultante, acabou dificultando uma perspectiva crítica
em relação às desigualdades entre brancos e negros no Brasil. Apresentava-se um país isento
das grandes complicações raciais facilmente denunciadas na realidade estadunidense, o nosso
“outro”, que sempre esteve presente no discurso legitimador desse tipo de ideologia no Brasil.

Tal representação de “paraíso racial” foi exportada, durante as décadas de


1930/1940, construindo um imaginário onde o Brasil aparecia quase como uma vanguarda em
comparação aos países europeus e os EUA44. Esse contexto, contudo, mudaria a partir da dé-
cada de 1950, principalmente, devido o fim da ditadura do Estado Novo (1945) e com o fim da
Segunda Grande Guerra (1945). Após o término de uma guerra que tinha sido muito marcada
pelo prisma racial, devido às políticas eugenista da Alemanha Nazista, o mundo capitalista mo-
derno realizou um esforço significativo no intuito de se afastar das teses que argumentavam a
partir das teorias racialistas. E os olhos acabaram se voltando para o Brasil. O então conside-
rado “paraíso racial” tinha a chance de mostrar as suas harmônicas relações entre brancos e

43 “Essa democracia social seria basicamente um modo diferente de colonizar que significou miscigenar- se,
igualar-se, integrar os culturalmente inferiores, absorver sua cultura, dar-lhes chances reais de mobilidade
social no mundo branco. Freyre fala depois em “democracia étnica” para dizer que, no Brasil, apesar de uma
estrutura política muito aristocrática, desenvolve-se, no plano das relações raciais, relações democráticas.”
GUIMARÃES, Antonio Sérgio A. Como trabalhar com “raça” em sociologia. IN: Educação e Pesquisa, São Paulo,
v.29, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2003, pg. 102.
44 Cabe destacar, aqui, que a comparação entre os pormenores das relações raciais no Brasil e nos EUA não
foi apenas fruto dessas décadas. Mesmo que a obra de Freyre tenha influenciado outros a tecer esse tipo
de comparação na época em que foi publicada, principalmente, devido a Política da Boa Vizinhança, como
Frank Tannenbaum, podemos observar comparações desse tipo ainda no século XIX nos relatos de viajantes
estrangeiros e até entre os debates abolicionistas no Império. O tom comum que permeava essas aproxima-
ções e afastamentos era a constatação de uma relação mais harmônica entre brancos e negros no território
brasileiro em relação aos americanos do Norte. Inclusive, a preocupação dos homens dirigentes do Império de
não “racializar” explicitamente as leis e medidas que descriminavam os afrodescendentes e africanos foi muita
marcada pelo medo de não transformar o Brasil num novo EUA. Para aprofundar o debate, ver: ALBUQUER-
QUE, Wlamyra R. de, Op. cit., cap. 1; RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit., cap. 1.

75 REVISTA CANTAREIRA - EDIÇÃO 19 / JUL-DEZ, 2013


outras raças servindo de exemplo para o mundo.

Com o intuito de dar roupagem científica e arcabouços teóricos para explicar e


compreender esse cenário racial brasileiro a Unesco, órgão ligado à Organização das Nações
Unidas, a partir da década de 1950 patrocinou uma série de pesquisas acerca das relações
raciais no país. Tentava-se dar inteligibilidade aos fatores que poderiam contribuir e servir de
instrumentos de políticas públicas para a promoção de uma verdadeira democracia entre as
raças. Intelectuais como Artur Ramos, ligados a ONU, tinham esperança que o Brasil servisse
de exemplo45.

Não foi o que se viu com o resultado das pesquisas. O chamado “Projeto Unesco”46,
no Brasil encabeçado por Florestan Fernandes, acabou trazendo dados empíricos e conceituais
que denunciavam o rótulo brasileiro de um país sem discriminação racial. A Escola de Socio-
logia Paulista com nomes como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio
Ianni, trouxeram teses que frustraram os entusiastas da ideologia nacionalista de um país de
vanguarda. O Brasil era racista. Essa foi a denúncia da Escola de Sociologia Paulista.

Nas últimas décadas, principalmente, em 1980 com os trabalhos de Robert Slenes e


Silvia Lara na área de escravidão, muitas críticas foram feitas a alguns apontamentos e conclu-
sões alcançadas por Fernandes e outros membros dessa escola. Acusava-se que, na ânsia de
explicitar o racismo brasileiro, muitas vezes recorrendo ao passado escravista para mostrar as
continuidades históricas das experiências de opressão, aqueles intelectuais tinham exagerado
na “vitimização” dos negros e, pior, tinham esvaziado as suas capacidades de escolhas e ação,
em outras palavras, não os apresentavam como sujeitos históricos47.

Entendendo e valorizando os inúmeros ganhos interpretativos trazidos pela his-


toriografia da escravidão cujos maiores expoentes foram Slenes e Lara, torna-se oportuno e
necessário, contudo, fazer uma observação. Muitos historiadores e cientistas sociais, influen-
ciados por estes trabalhos, acabaram tecendo críticas tão duras a Escola de Sociologia Paulista
que, por vezes, acabam não historicizando as teses destes autores e negligenciando a impor-
tância destes para o combate ao racismo no Brasil.

Trabalhos como o de Florestan Fernandes foram extremamente importantes na


desconstrução e denúncia do “mito da democracia racial” na década de 1950/1960. O alcance
que suas reflexões tiveram acabou desestruturando muitos pensadores e políticas públicas
que ainda se debruçavam sobre a realidade brasileira imersos nos pensamentos de uma har-
monia racial inexistente. É essencial que se diga isso, pois, como diz a letra Nego Drama canta-
da pelos Racionais MCs, “Não foi sempre dito/Que preto não tem vez”48.

45 PEREIRA, Amilcar, Op. cit., pg. 82.


46 “Esses estudos documentam pela primeira vez, de maneira racional e científica (ou seja, utilizando-se das
técnicas de observação desenvolvidas pela sociologia e pela antropologia social), a situação do negro no Su-
deste do Brasil. Seria a “raça” uma forma de classificação social no Brasil? Pensava-se comumente que “a cor
era apenas um acidente”, éramos todos brasileiros. Esse pensamento era atribuído ao povo, ou seja, não ape-
nas os ideólogos, mas as pessoas comuns, do povo, brancos e negros, pensariam assim. Os estudos de Bastide
e Florestan (1955) e Costa Pinto (1953) rompem radicalmente com essa forma de pensar. A grande discussão
que eles estabelecem é uma discussão já colocada pelo movimento negro nos anos 1930: a existência do pre-
conceito racial no Brasil, apesar do ideal de democracia racial.” GUIMARÃES, Antonio Sérgio A, Op. cit., pg. 101.
47 Para conhecer os debates, ver: SLENES, Robert. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na forma-
ção da família escrava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, cap. 1; GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada.
São Paulo: Editora Ática, 1991.
48 “Não foi sempre dito/Que preto não tem vez/Então olha o castelo e não/ Foi você quem fez cuzão”, Nego Dra-
ma, Racionais MCs. Disponível em: http://letras.mus.br/racionais-mcs/63398/ (Último acesso em 19/04/2014).

DIEGO UCHOA DE AMORIM 76


TEORIAS RACIAIS NO BRASIL

Conclusão: o conceito de raça e a contemporaneidade


Atualmente a “raça” como fator explicativo de aspectos da realidade social não tem
mais qualquer alcance explicativo. Os avanços na área de genética no século XX mostraram o
caráter ideológico das teses racialistas europeias e as suas derivações nas periferias do capita-
lismo. Mas, nem por isso, as ideias que a envolvem deixaram de existir e muito menos as suas
complicações cuja mais grave é o racismo.

Conforme os estudos da Escola de Sociologia Paulista mostraram nas décadas de


1950/1960, o Brasil é racista e há uma correspondência entre cor e pobreza no país. Além dis-
so, vários estudos posteriores trabalharam as complicações que as concepções extremamente
discriminatórias de manifestações culturais e estéticas têm para a experiência objetiva dos
negros numa sociedade onde os aspectos hegemônicos pertencem ao mundo branco.

Procurando combater esses preconceitos, não foram poucos os expoentes da po-


pulação negra que lutaram com armas que diferem a cada contexto histórico. Manuel Querino,
intelectual que lutou contra as teses racialistas na realidade brasileira valorizando a contribui-
ção dos negros para a “civilização brasileira”; Monteiro Lopes, primeiro deputado federal negro
eleito; Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN) em 1944 e Joel
Rufino dos Santos, historiador e escritor dedicado à valorização da cultura negra no país, são
penas alguns exemplos de resistência a uma realidade extremamente racializada.

A partir da década de 1970, o movimento negro brasileiro contemporâneo, aglu-


tinando experiências de outros movimentos como o dos EUA e da África do Sul, que viveram
regimes de segregação racial institucional, passa a se organizar buscando construir uma iden-
tidade negra positivada. Esta que foi extremamente prejudicada com a “democracia racial”, já
que num país de apologia a mestiçagem é muito complicado se construir ideias de respeito a
diferenças a tudo que não é o “mulato” ou o “moreno”, em suma, o “brasileiro”.

Dessa maneira, estruturam-se as duas principais pautas desse movimento durante


anos em que o regime ditatorial brasileiro continuava com a sua política nacionalista homoge-
neizadora: a valorização da identidade negra em seus mais diferentes aspectos, como manifes-
tações culturais e padrões estéticos, e a denúncia do mito da democracia racial49.

Nesse meio de luta, a categoria “raça” não será abandonada. Se ela serviu, duran-
te muitas décadas, para manter e legitimar a posição inferior da população negra no país,
agora, ela servirá como instrumento de mobilização e de ação de um movimento que busca
reconhecimento social. O seu traço essencializante, contudo, o maior responsável pela estru-
turação das famosas teses racialistas da virada do século será desconstruído. Deixando claro
que as identidades são consolidadas a partir de disputas políticas, selecionando tradições de
determinados grupos para dar coesão à reivindicação, se constituirá uma ideia de raça que
longe de manter os traços determinantes antigos cumprirá o seu papel na luta ao racismo. O
afastamento desse momento de essencialização, para Stuart Hall, é decisivo. Segundo ele:

O momento essencializante é fraco porque naturaliza e des


-historiciza a diferença, confunde o que é histórico e cultural
com o que é natural, biológico e genético. No momento em
que o significante “negro” é arrancado de seu encaixe históri-
49 Idem, pg. 83-84.

77 REVISTA CANTAREIRA - EDIÇÃO 19 / JUL-DEZ, 2013


co, cultural e político, e é alojado em uma categoria racial bio-
logicamente constituída, valorizamos, pela inversão, a própria
base do racismo que estamos tentando descontruir. Além dis-
so, como sempre acontece quando naturalizamos categorias
históricas (pensem em gênero e sexualidade), fixamos esse
significante fora da história, da mudança e da intervenção
políticas.50

Assim, nas décadas de 1970/80, e ainda nos dias de hoje, o quadro que se apresenta
é de continuação da luta contra a opressão e discriminação aos negros e aos afrodescenden-
tes que tem longa duração histórica, seja no Brasil ou se adotarmos uma visão transnacional.
Tecer perspectivas críticas a respeito de discursos que tentam apresentar como natural as
extremas desigualdades no campo das relações raciais no país é um dentre os muitos desafios
que os historiadores têm de lidar. Estando ciente que a todo o momento o historiador está
inserido nas lutas de representação e no processo de invenção de tradições, como lembra
Hobsbawm51, trabalhos como esse se mostram imprescindíveis nesta conjuntura. Como lem-
bra Benjamin52, o inimigo tem vencido sem cessar, e para os que têm a ânsia de mudar essa
espécie de rotina, a academia não pode ser um espaço apenas de trocas de figurinhas...

Recebido em 29 de janeiro de 2014, aprovado em 17 de abril de 2014.

50 HALL, Stuart. “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”. IN: HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações
culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, pg. 345.
51 “Todavia, todos os historiadores, sejam quais forem seus objetivos, estão envolvidos neste processo [in-
venção de tradições], uma vez que eles contribuem, conscientemente ou não, para a criação, demolição e
reestruturação de imagens do passado que pertencem não só ao mundo da investigação especializada, mas
também à esfera pública onde o homem atua como ser político. Eles devem estar a tentos a esta dimensão de
suas atividades.” HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. IN: RANGER, Terence, HOBSBAWM,
Eric. Op. cit., pg. 27.
52 “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador con-
vencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem
cessado de vencer.” BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. IN: Disponível em: http://rae.com.pt/wb2.
pdf (Último acesso em 19/04/2014).

DIEGO UCHOA DE AMORIM 78

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