RESUMO ABSTRACT
No presente trabalho será analisada TIn this present paper will be analysed
a história e algumas abordagens the history and some historigraphical
historiográficas acerca das teorias raciais no approaches about racial theories in Brazil,
Brasil, principalmente, na virada do século mainly, at the turn of the nineteenth to
XIX para o XX. A trajetória dos debates após the twentieth century. The path of these
a década de 1930, também, se fará presente, argumentation after 30s, also, will be
uma vez que muitos trabalhos importantes made present, since many relevant papers
dentro da temática foram produzidos about the topic were produced in the
nas décadas de 1950/60, a exemplo dos 50s and 60s such as the one published by
publicados pela Escola de Sociologia “Escola de Sociologia Paulista”. In the end,
Paulista. Ao fim, reflexões sobre o conceito reflections about the concept of race and
de “raça” e a conjuntura das décadas de the conjuncture of the 70s and 80s will be
1970/80 serão apresentadas de maneira presented following a intellectual tradition
a seguir uma tradição intelectual que não that does not move away from the main
fuja do papel de destaque do historiador role of the historian in the formulation of
na formulação da relação da sua sociedade the relationship between his society with his
com o passado. own past.
62
TEORIAS RACIAIS NO BRASIL
(Walter Benjamin)
a
maioria dos apontamentos que estará nas linhas seguintes já se faz presente em
muitos outros artigos. O que se pretende trazer aqui, logo, é uma breve apresentação
da história e da historiografia das teorias raciais, de maneira a fomentar novos
debates sobre estas teses que deixaram marcas profundas no imaginário social
brasileiro e que servem de base para muitos argumentos racistas1 até o dia de hoje.
Dessa forma, não é difícil perceber que, naquele momento, se pensava construir
uma comunidade a partir da seleção e repetição de determinados ritos e ideias acerca do ser
“brasileiro” buscando consolidar uma nova forma de se enxergar como parte dessa nação após
a mudança de sistema político e da abolição da escravidão em 1888.
Não se pode, entretanto, esquecer que todo esse projeto de nação estava ligado a
1 Ciente da necessidade de deixar claro o que se entente como racismo, aqui, quando utilizarmos o termo ele
seguirá a formulação de Lia Schucman: “Considero racismo qualquer fenômeno que justifique as diferenças,
preferências, privilégios, dominação, hierarquias e desigualdades materiais e simbólicas entre seres humanos,
baseado na ideia de raça. Pois, mesmo que essa ideia não tenha nenhuma realidade biológica, o ato de atri-
buir, legitimar e perpetuar as desigualdades sociais, culturais, psíquicas e políticas à ‘raça’ significa legitimar
diferenças sociais a partir da naturalização e essêncialização da ideia falaciosa de diferenças biológicas que,
dentro da lógica brasileira, se manifesta pelo fenótipo e aparência dos indivíduos de diferentes grupos sociais.”
SCHUCMAN, Lia Vainer. Racismo e Antirracismo: a categoria raça em questão. IN: Psicologia política, vol.10, nº19,
pp. 41-55, jan-jun, 2010. pg. 44.
2 RANGER, Terence, HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, pg. 28.
3 Um dos autores que utilizam esse referencial é Marshall Berman, ver: BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido
desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
4 Ver: HABERMAS, Jurgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
5 HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992, pg. 23.
6 ALONSO, Angela. Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual brasileiro nas primeiras décadas re-
publicana. IN: Novos Estudos, nº 85, Novembro 2009, pg. 138-143.
7 Uma questão importante apontada por Angela Alonso é o fato de que os monarquistas, mesmo tendo
perdido a luta política naquele contexto, conseguiram deixar fortes marcas da sua visão sobre a República
no imaginário nacional. A primeira experiência republicana, assim, perpetuou-se como desordem e, como
assinala, também, Cristina Buarque de Hollanda, na “ideia de ausência”. ALONSO, Angela, Op. cit., pg. 147-148;
HOLLANDA, Cristina Buarque de. A questão da representatividade na Primeira República. IN: Caderno CRH, Salva-
dor, vol. 21, nº 52, Jan-Abril 2008, pag. 25-26.
contudo, seria um problema que desde muito tempo deixava os “melhores da terra” preocupa-
dos e os inúmeros viajantes europeus abismados.
O problema no caso brasileiro era como lidar com essas teorias, pois, segundo elas,
o Brasil se tornava um país inviável. Recheado de mestiços, considerados “degenerados” pela
maioria das teorias à época, e negros, tidos como os mais atrasados na corrida evolucionista,
o país tinha comprometida a sua chegada às utopias da modernidade. Isso não poderia ficar
assim.
Restava aos intelectuais comprometidos com o projeto das elites de alcançar es-
sas utopias assegurarem um lugar para o Brasil entre as grandes nações mundiais. A saída
encontrada por uma parcela destes pensadores, como veremos, consistirá na invenção de
uma nação homogênea a partir da relativização da degeneração da mestiçagem garantindo, ao
mesmo tempo, um futuro branco para o país. Antes, é preciso compreender melhor o contexto
de auge desse debate.
8 Para os debates e as saídas estipuladas pelas elites e dirigentes na durante o período colonial acerca do “perigo
interno”, ver: MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil. Resistência, tráfico negreiro e alfor-
rias, séculos XVII a XIX. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002006000100007&script=-
sci_arttext (Último acesso em 27/04/2014), LARA, Silvia. Fragmentos Setecentistas: Escravidão, cultura e poder
na América Portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
9 Trabalhando detalhadamente as premissas desse “falso evolucionismo” que caracterizou do auge da moder-
nidade europeia, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, em seu ensaio seminal lançado no pós-Segunda Guerra
Raça História, aponta: “Mas, por mais diferentes e por vezes bizarras que possam ser, todas estas especulações
se reduzem a uma única e mesma receita, que o termo de falso evolucionismo é, sem dúvida, mais adequado
para caracterizar. Em que consiste ela? Muito exatamente, trata-se de uma tentativa para suprimir adversidade
das culturas, fingindo conhecê-la completamente. Porque, se tratarmos os diferentes estados em que se en-
contram as sociedades humanas, tanto antigas como longínquas, como estádios ou etapas de uma desenvolvi-
mento único que, partindo do mesmo ponto, deve convergir para o mesmo fim, vemos bem que a diversidade
é apenas aparente. A humanidade torna-se única e idêntica a si mesma, só que esta unidade e esta identidade
não se podem realizar senão progressivamente e a variedade das culturas ilustra os momentos de uma pro-
cesso que dissimula uma realidade mais profunda ou retarda a sua manifestação.” LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça
e história. IN: Antropologia Estrutural II, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, cap. XVIII, pg. 338-339.
10 Ver: ARENDT, Hannah. Da Revolução. São Paulo: Ática, 1988, pg.44.
Esta política, no estado de São Paulo, encontrou números altíssimos. Paula Beiguel-
man aponta que nos anos de 1891 e 1895 entraram no estado cerca de 108.688 e 139.998
imigrantes – maioria italianos –, respectivamente13. Esses dados ajudam em algumas reflexões.
Somados a outros fatores como o a crença no evolucionismo social e no conceito de “raça”,
demonstram que essa política de Estado estava pautada na crença de superioridade racial
dos europeus e no comprometimento em assegurar um futuro branco para o Brasil. Isso fica
mais claro se atentarmos para o caráter discriminatório de algumas leis e decretos dos primei-
ros anos da República. A mais explícita, como aponta Amilcar Pereira, é o Decreto nº 528, de
28/06/1890, que proibia a imigração de “indígenas da Ásia ou da África”14, autorizando, apenas,
os europeus.
Uma polêmica que propiciou bons debates na esfera pública e que também explicita o
caráter racializado das políticas de Estado no período foi a possibilidade de trazer imigrantes
asiáticos, os coolies, para trabalhar nas lavouras paulistas. Em 1879 foi criada, entre os apoia-
dores da ideia de trazer estes imigrantes, a Sociedade Importadora de Trabalhadores Asiáticos.
Essa postura teve dois grandes opositores em nível internacional, os governos da Inglaterra e
da China, contudo, o que nos interessa é o conteúdo de alguns discursos. Destaca-se o proferi-
do por Joaquim Nabuco, notável abolicionista. Nas palavras de José Petruccelli:
Assim, Lilia Schwarcz aponta que as teorias raciais tiveram um papel importantís-
simo para legitimar as hierarquias sociais num contexto em que o liberalismo se tornava pa-
radigma político no país e a abolição saíra de pesadelo dos grandes proprietários para uma
realidade histórica. Elas vinham “naturalizar” as hierarquias, tornar natural a organização social
extremamente desigual no qual se encontrava a sociedade brasileira19, onde indivíduos e gru-
pos sociais da população negra lutavam com todas as suas forças para se fazer perceber20.
15 PETRUCCELLI, José Luis. Doutrinas francesas e o pensamento racial brasileiro, 1870-1930. IN: Estudos Socie-
dade e Agricultura, 7 Dezembro, 1996, pg. 141-142.
16 “Afinal, o fim da escravidão não representou apenas a perda de propriedade, mas de referências funda-
mentais na constituição da identidade dos proprietários de terras e escravos. A certeza de que o mundo social
não podia mais ser definido pela oposição entre senhores e escravos comprometia vínculos pessoais e refe-
rências de autoridade – não só relações de trabalho. Não eram apenas os trabalhadores que os proprietários
perdiam, mas a sua própria posição hierárquica estava em jogo. Um certo desespero deve mesmo ter sido
partilhado por proprietários já empobrecidos, mas ainda dispostos a resguardar a posição senhorial. Ver-se
destituído desse lugar subvertia toda a lógica que balizava a arquitetura social desde os tempos coloniais. Des-
se modo, enquanto comemorava-se a abolição estiveram em suspensão regras importantes no jogo de poder
entre brancos senhores/negros subalternos.” ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição
e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2009, pg. 125-126.
17 VIOTTI, Emília, Op. cit., pg. 128.
18 Hobsbawm, também no texto em que trata da invenção das tradições, assinala para esse caráter da ideo-
logia liberal, segundo o autor: “Assim, ao colocar-se conscientemente contra as tradições a favor das inovações
radicais, a ideologia liberal da transformação social, no século passado, deixou de fornecer os vínculos sociais
e hierárquicos aceitos nas sociedades precedentes, gerando vácuos que puderam ser preenchidos com tradi-
ções inventadas.” RANGER, Terence, HOBSBAWM, Eric, Op. cit., pg. 20.
19 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Espetáculo da miscigenação. IN: Estud. av. vol.8 nº20 São Paulo Jan./Apr. 1994, pg.
146-147
20 Nos últimos anos, uma série de pesquisas buscaram resgatar aspectos da organização, modos de agir e
trajetórias individuais das populações negras no contexto do Pós-abolição. Desde a década de 1980, quando as
demandas dos movimentos negros e a preocupação com a ação social dos sujeitos pela academia fomentaram
uma mudança na historiografia da escravidão, chaves explicativas importantes das relações raciais no país têm
sido revistas devido à emergência de estudos que buscam historicizar as diversas experiências da população
de ascendência africana, resgatando, assim, o negro como sujeito da sua própria história. De maneira bem
similar aos anos 1980 para a historiografia da escravidão, os anos 2000 significaram importantes mudanças na
Uma boa parcela da influência dessas teorias está intimamente ligada à estadia no
Brasil do francês Conde de Gobineau (1816-1882), conhecido como pai das teses racialistas,
durante cerca de quinze meses. Desde o momento em que chegou, em 1868, o aristocrata ti-
nha relações estritamente profissionais com seus colegas de trabalho na embaixada francesa,
se relacionando de forma mais direta apenas com o imperador, e seu amigo, D. Pedro II. Isso
se devia ao seu próprio pensamento acerca das relações raciais, extremamente hierárquico do
ponto de vista da diversidade racial e enfático na superioridade da raça ariana. Lidava de forma
extremamente discriminatória em relação aos brasileiros, em sua visão, mestiços e impregna-
dos de sangue negro, carentes de civilização e impossibilitados de alcançá-la. Sendo um dos
mais enfáticos da degeneração do mestiço, Gobineau dizia:
consolidação de um campo de estudos específicos sobre o pós-abolição. A influência e o diálogo com pesqui-
sadores do tema de outros países, a realização de eventos acadêmicos, a demanda por parte de movimentos
sociais, e o incentivo à pesquisa acabaram por dar uma energia ainda maior para o campo. Reflexo disso são
os inúmeros grupos de pesquisa que surgem nos programas de pós-graduação pelo país que se debruçam
sobre as questões do pós-abolição e a formação, finalmente, do GT Nacional de Emancipações e Pós-Abolição
durante o XXVII Simpósio Nacional da ANPUH, realizado em 2013 na cidade de Natal, coordenado por Giovana
Xavier e Wlamyra de Albuquerque além de reunir nomes de peso como Hebe Mattos, Martha Abreu, Flávio
Gomes, Maria Helena Machado entre outros. Para mais informações sobre o GT Nacional, ver: http://www.
anpuh.org/gt/view?ID_GT=45#.Uz1m_O5eSVU.facebook.
21 Apud PETRUCCELLI, José Luis. Op. cit., pg. 135-136.
22 Idem, pg. 137.
dos e durante um longo processo, até excluídos. Nesse intuito, L’Emigration au Brésil (1874) foi
publicado em Estocolmo, três anos após a partida de Gobineau do país, e escrito em favor de
um pedido de D. Pedro II com a finalidade de incentivar a imigração de europeus para o país.
Não foi apenas esse francês, contudo, que teve uma importância destacada na
reprodução das ideias raciais em território nacional. Louis Couty (1854-1884), outro francês,
chegou ao Brasil em 1878, sob indicação de Alfred Vulpian para assumir o cargo de professor
de Biologia Aplicada na Escola Politécnica, no Rio de Janeiro, a pedido do imperador D. Pedro
II. Além disso, foi professor no Museu Nacional onde faria com que suas ideias ganhassem
adeptos.
Assim como Gobineau, via no Brasil uma espécie de lugar onde não existiriam pre-
conceitos raciais, onde a miscigenação e a grande quantidade de negros alforriados tinham
contribuído para uma organização social diferenciada de outros países. Abolicionista gradual,
também via na miscigenação com a raça branca uma saída para o Brasil deixar o seu “atraso”
e chegar aos patamares da civilização23. Não adiantaria investir na população negra, segundo
o professor, eles carregariam uma essência preguiçosa, sendo os responsáveis pela situação
atual do Brasil. A escravidão, aos seus olhos, serviria como uma proteção aos negros...
Esse par de intelectuais franceses, assim como outros racialistas como Spencer
Spencer e Tylor com a teoria do “evolucionismo social”24, deixaram marcas no pensamento
social brasileiro da época. Não há maneiras de esconder que as suas ideias tiveram eco. Sus-
tentar essa afirmação, porém, é diferente dos argumentos que informam que os intelectuais
brasileiros apenas “importaram” essas teses, ou reproduziram as que estavam contidas nos
ensaios de Gobineau e Couty enquanto estiveram aqui. Os pensadores que tentaram colocar
o Brasil nessa trilha ao progresso, como aponta Schwarcz, procuraram uma saída para o pa-
radoxo legitimar as hierarquias/assumir a “degeneração”. E encontraram. Segundo a autora:
Mas, teria sido Gilberto Freyre o primeiro a fazer esse movimento em relação à
mestiçagem? O que os estudos de Lilia Schwarcz e Carolina Vianna Dantas nos mostram que
outros pensadores já tinham encontrado formulações que iam ao encontro dessa ideia. Para
Dantas, a preocupação com a incorporação dos ex-escravos à sociedade e a formação da iden-
tidade nacional foram os pontos que acabaram fazendo com que estes intelectuais chegassem
a essa saída28.
Argumentando, também, com uma historiografia que aponta que a inclinação des-
ses intelectuais às manifestações negras e populares na época para a formação das chamadas
“singularidades brasileiras” aconteceu devido à onda de exotismo e a volta de um regionalis-
mo, Dantas afirma que isso, apenas, não é o bastante para entender a complexidades desses
debates. Continuar com essa chave explicativa, segunda a autora, esvazia de sentido as redes
de sociabilidade, a “república das letras”, em suas palavras, que se formava entre essas perso-
nagens e que eram essenciais na consolidação dessas teses e argumentos29.
Um dos intelectuais mais influentes na virada do século XIX para o XX e que trazia
a relativização da degeneração da mestiçagem é o ainda pouco estudado João Batista Lacerda
(1846-1915). Diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro – instituição na qual trabalhou com
Louis Couty –, Lacerda foi convidado para participar do I Congresso Internacional das Raças,
em julho de 1911. Comunicador que carregava a marca de representante de um “típico país
miscigenado”, Lacerda em poucas palavras resumia as suas ideias acerca da formação racial
brasileira: “O Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva,
saída e solução”30.
26 “Porém, muito influenciado por Franz Boas – com quem conviveu pessoalmente durante seus estudos na
Universidade de Columbia –, Gilberto Freyre teria deslocado o eixo da discussão, operando a passagem do
conceito de ‘raça’ ao conceito de cultura, que marcaria o distanciamento entre o biológico e o cultural, como
afirma em sua obra: ‘Nesse critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura, assenta todo o plano
deste ensaio’”. PEREIRA, Amilcar Araujo, Op. cit., pg.78.
27 Segundo o brasilianista Russel-Wood: “Era considerada tão básica para o bem-estar nacional que, caso
tivesse determinado que a miscigenação seria prejudicial, ficaria extremamente difícil superar esta barreira e
encontrar qualquer vislumbre de esperança para o futuro o país. Acadêmicos da linhagem de Alberto Tôrres,
Paulo Padro e Francisco José de Oliveira Vianna já tinham avaliado a miscigenação como força negativa. Freyre
adotou uma postura diametralmente oposta. Ao colocar a miscigenação no contexto mais amplo das forças
evolutivas sociais e econômicas, foi capaz de demostrar que, na verdade, a miscigenação fora o fator positivo.”
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
28 DANTAS, Carolina Vianna. O Brasil café com leite. Debates intelectuais sobre mestiçagem e preconceito de
cor na Primeira República. In: Revista Tempo, Niterói, ed.26, 2009, pg. 57-58.
29 Idem, pg. 58.
30 SCHWARCZ, Lilia Moritz, Op. cit., pg. 137-138.
ele admitia uma “degeneração” à maneira das teses europeias. Segundo Lacerda, mesmo a
raça brasileira não podendo ser considerado uma raça superior, como a branca ou ariana, os
mestiços do país seriam superiores às outras raças ditas inferiores, mesmo que estas fossem
“puras”. Nas suas palavras, presentes na sua fala no I Congresso Internacional das Raças, ele
afirma:
E não foi só na então capital, Rio de Janeiro, que esse debate estava presente. Nos
estados de São Paulo, Pernambuco e na Bahia, também, podemos ver inúmeras discussões
e interferências políticas racializadas. Segundo Schwarcz, o grupo de bacharéis do estado de
São Paulo, mesmo mantendo uma das bandeiras liberais mais fortes do Brasil, mantinha um
discurso que deixava passar as premissas racialistas em vários de seus posicionamentos. Ao
contrário de um grupo influente de intelectuais de Recife, por exemplo, que se mantinha cla-
ramente determinista e tinha em Sílvio Romero (1851-1914) um expoente singular das teses
do embranquecimento32.
O famoso crítico literário, assim como Lacerda, tinha recuperado o negro na compo-
sição da nação brasileira, porém, ao mesmo tempo, tinha dado um prazo para a sua extinção.
Isso porque a sua tese do embranquecimento guardava um destino certo para a população
negra: o fim. Com a ênfase na política de imigração europeia para a miscigenação “positiva”
com o brasileiro esperava-se que num futuro próximo o país seria branco, de fato. Conforme
assinala Dantas:
Não só de teses com pitadas de “otimismo” por parte dos intelectuais referente ao
futuro branco do país os debates eram permeados. Nina Rodrigues (1862-1906), médico da
Faculdade de Medicina da Bahia, estava mais ligado às teorias que apontavam para a impos-
sibilidade de qualquer tipo de ganho para a nação brasileira com a promoção da mestiçagem.
Muito influenciado pelas reflexões do italiano Cesare Lombroso, Rodrigues produziu uma série
de estudos e ensaios nos quais insistiam na inclinação do mestiço e do negro ao crime, inclusi-
ve, defendendo que raças diferentes mereciam códigos penais diferentes em seu livro As raças
Pode parecer estranho para muitos o fato de Nina Rodrigues se dedicar ao assunto.
Afinal, ele era um médico legal e atualmente esta categoria profissional não tem a mesma
proeminência e legitimidade nos debates sobre as relações raciais e a dinâmica social da socie-
dade brasileira. Essa postura do médico da universidade baiana, porém, fica melhor entendia
se tivermos claro que os médicos e higienistas, nesse período, gozavam do fato de serem,
ao lado dos bacharéis em direito, considerados os mais capacitados para lidar com questões
chaves no pensamento social brasileiro como a da natureza da nação brasileira que precisava
ser pensada.
No Rio de Janeiro, com Oswaldo Cruz e a sua escola higienista, também vamos ter
uma série de políticas visando o combate a epidemias e doenças tropicais, assim como polí-
ticas de vacinação obrigatórias. Essas intervenções, entretanto, tinham, na maioria das vezes,
um caráter extremamente autoritário o que fomentava a revolta da população oriunda das
classes populares nos centros urbanos – que já tinha uma vida extremamente difícil. O caso da
Revolta da Vacina na então capital federal é um exemplo desses movimentos que acabaram
tendo ligações com as políticas higienistas36.
Assim, depois de passar pelos exemplos de Silvio Romero, João Batista Lacerda e
Nina Rodrigues, destacando as aproximações e diferenças entre os pensadores, cabe deixar
claro que, de maneira alguma, esse movimento por parte desses intelectuais que tentaram
encontrar saídas para o paradoxo que se apresentava às elites nacionais e ao seu projeto de
nação ocorreu de forma homogênea e sem disputas.
Ao contrário, o que se observa nos trabalhos que se debruçaram sobre estes inte-
lectuais e a conjuntura em que atuaram é que, mesmo eles tendo investido num tema comum,
os seus apontamentos e possíveis soluções eram diferentes e entravam num campo complexo
de disputas marcadas por diferentes relações de força. Adotando esse prisma de interpreta-
ção fica mais fácil para nós historiadores atentarmos para as várias alternativas que estavam
presentes nesses debates e que, de modo a ser mais bem investigado, acabaram tendo pouco
espaço – ou nenhum! –, seja nas publicações da época em questão, ou até mesmo da própria
produção historiográfica.
Com todas essas pesquisas que abordam o alto grau de influência das teorias ra-
ciais no Brasil na virada do século XIX e XX, alguns podem se perguntar se não havia nenhum
expoente que não utilizasse a categoria raça para pensar a realidade e a nação brasileira. Sem
dúvida, o pensamento racialista foi hegemônico no período, entretanto, temos exemplos de
pensadores que mesmo nesse campo tomado por entusiastas do embranquecimento apre-
sentaram ideias que traziam outros fatores como causas do “atraso” brasileiro na corrida ao
progresso.
Outro intelectual importante que também não entrou em confluência com as te-
ses racialistas foi o médico negro Juliano Moreira (1873-1932). Baiano e de origem humilde,
Moreira foi um dos maiores representantes brasileiros em congressos internacionais em sua
época. Paris, Berlim, Lisboa, Milão e outras mais cidades ouviram os argumentos médicos an-
tirracialistas do negro que se tornaria professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Durante
a sua vida, combateu e refutou as ideias que procuravam encontrar a explicação das doenças
mentais no conceito de raça, apontando que estas se deviam a fatores de natureza física e si-
tuacionais. Como prova, ele trazia os inúmeros exemplos de negros e mestiços brasileiros que,
mesmo com uma realidade extremamente preconceituosa, tinham alcançado boas posições
como pedagogos, médicos e engenheiros. O que diferenciava os brancos, negros e mestiços
no Brasil, segundo ele, longe de ser o grau de sua pureza racial, era a boa educação e boas
condições sanitárias e mentais41.
38 PRIORI, Ângelo, CANDELORO, Vanessa Domingos de Moraes. A utopia de Manoel Bonfim. IN: Revista Espaço
Acadêmico, nº 96, maio de 2009, pg. 1.
39 Apud PRIORI, Ângelo, CANDELORO, Vanessa Domingos de Moraes, Op. cit., pg. 3.
40 “A ideia formulada por Bomfim, em contraposição ao discurso que atribuía ao fator raça as causas do
subdesenvolvimento, é a tese do parasitismo social, onde ele enfatizava que a lógica da dominação externa
imposta pelo colonialismo combinada com a dominação interna imposta pelas elites dirigentes, causava pro-
fundos males aos povos latinoamericanos. Segundo o autor, o parasitismo impunha três efeitos malévolos e
predador: o enfraquecimento do parasitado; as violências que se exercem sobre eles; e a adaptação do para-
sitado às condições de vida que lhe são impostas.” Idem, pg. 3-4.
41 DANTAS, Carolina Vianna, Op. cit., pg. 75.
42 Idem, pg. 76.
tram que as teses racialistas eram sim hegemônicas até a década de 1930 no Brasil, porém,
existiram outros estudos que refutavam estas teses e que foram silenciados na época em
que vieram à tona e durante muito tempo pela própria historiografia. A grande pergunta é
o porquê isso aconteceu. Percebendo, a partir destes estudos, a centralidade das teorias do
embranquecimento e da utilização do evolucionismo social ao lado do racialismo para a manu-
tenção da dominação de classe e da construção de identidades extremamente hierárquicas no
contexto pós-Abolição e de inserção do liberalismo como modelo de doutrina política-filosófica
no país, creio que qualquer resposta não pode negligenciar o caráter de classe envolvido na
popularização destas teorias.
Desenvolver essa reflexão, infelizmente, não é a proposta deste artigo. Nas linhas
acima procuramos situar o cenário em que estas teorias chegaram ao Brasil e apresentamos,
a partir da historiografia sobre o tema, as saídas conceituais que alguns intelectuais brasileiros
tiveram quando lidaram com as questões. Identificamos, assim, que aquele louvor prestado a
Gilberto Freyre devido a sua “nova” postura em relação ao mestiço é muito mais fruto de cons-
truções posteriores e contemporâneas a sua obra do que de fato comprovável ao olharmos o
riquíssimo debate que se fazia nos centros de pesquisa, como estudado por Schwarcz, ou em
revistas e jornais, como analisado por Dantas.
43 “Essa democracia social seria basicamente um modo diferente de colonizar que significou miscigenar- se,
igualar-se, integrar os culturalmente inferiores, absorver sua cultura, dar-lhes chances reais de mobilidade
social no mundo branco. Freyre fala depois em “democracia étnica” para dizer que, no Brasil, apesar de uma
estrutura política muito aristocrática, desenvolve-se, no plano das relações raciais, relações democráticas.”
GUIMARÃES, Antonio Sérgio A. Como trabalhar com “raça” em sociologia. IN: Educação e Pesquisa, São Paulo,
v.29, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2003, pg. 102.
44 Cabe destacar, aqui, que a comparação entre os pormenores das relações raciais no Brasil e nos EUA não
foi apenas fruto dessas décadas. Mesmo que a obra de Freyre tenha influenciado outros a tecer esse tipo
de comparação na época em que foi publicada, principalmente, devido a Política da Boa Vizinhança, como
Frank Tannenbaum, podemos observar comparações desse tipo ainda no século XIX nos relatos de viajantes
estrangeiros e até entre os debates abolicionistas no Império. O tom comum que permeava essas aproxima-
ções e afastamentos era a constatação de uma relação mais harmônica entre brancos e negros no território
brasileiro em relação aos americanos do Norte. Inclusive, a preocupação dos homens dirigentes do Império de
não “racializar” explicitamente as leis e medidas que descriminavam os afrodescendentes e africanos foi muita
marcada pelo medo de não transformar o Brasil num novo EUA. Para aprofundar o debate, ver: ALBUQUER-
QUE, Wlamyra R. de, Op. cit., cap. 1; RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit., cap. 1.
Não foi o que se viu com o resultado das pesquisas. O chamado “Projeto Unesco”46,
no Brasil encabeçado por Florestan Fernandes, acabou trazendo dados empíricos e conceituais
que denunciavam o rótulo brasileiro de um país sem discriminação racial. A Escola de Socio-
logia Paulista com nomes como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio
Ianni, trouxeram teses que frustraram os entusiastas da ideologia nacionalista de um país de
vanguarda. O Brasil era racista. Essa foi a denúncia da Escola de Sociologia Paulista.
Nesse meio de luta, a categoria “raça” não será abandonada. Se ela serviu, duran-
te muitas décadas, para manter e legitimar a posição inferior da população negra no país,
agora, ela servirá como instrumento de mobilização e de ação de um movimento que busca
reconhecimento social. O seu traço essencializante, contudo, o maior responsável pela estru-
turação das famosas teses racialistas da virada do século será desconstruído. Deixando claro
que as identidades são consolidadas a partir de disputas políticas, selecionando tradições de
determinados grupos para dar coesão à reivindicação, se constituirá uma ideia de raça que
longe de manter os traços determinantes antigos cumprirá o seu papel na luta ao racismo. O
afastamento desse momento de essencialização, para Stuart Hall, é decisivo. Segundo ele:
Assim, nas décadas de 1970/80, e ainda nos dias de hoje, o quadro que se apresenta
é de continuação da luta contra a opressão e discriminação aos negros e aos afrodescenden-
tes que tem longa duração histórica, seja no Brasil ou se adotarmos uma visão transnacional.
Tecer perspectivas críticas a respeito de discursos que tentam apresentar como natural as
extremas desigualdades no campo das relações raciais no país é um dentre os muitos desafios
que os historiadores têm de lidar. Estando ciente que a todo o momento o historiador está
inserido nas lutas de representação e no processo de invenção de tradições, como lembra
Hobsbawm51, trabalhos como esse se mostram imprescindíveis nesta conjuntura. Como lem-
bra Benjamin52, o inimigo tem vencido sem cessar, e para os que têm a ânsia de mudar essa
espécie de rotina, a academia não pode ser um espaço apenas de trocas de figurinhas...
50 HALL, Stuart. “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”. IN: HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações
culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, pg. 345.
51 “Todavia, todos os historiadores, sejam quais forem seus objetivos, estão envolvidos neste processo [in-
venção de tradições], uma vez que eles contribuem, conscientemente ou não, para a criação, demolição e
reestruturação de imagens do passado que pertencem não só ao mundo da investigação especializada, mas
também à esfera pública onde o homem atua como ser político. Eles devem estar a tentos a esta dimensão de
suas atividades.” HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. IN: RANGER, Terence, HOBSBAWM,
Eric. Op. cit., pg. 27.
52 “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador con-
vencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem
cessado de vencer.” BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. IN: Disponível em: http://rae.com.pt/wb2.
pdf (Último acesso em 19/04/2014).