Você está na página 1de 9

1

Marcas de uma cor.


Notas acerca do preconceito racial dentro do processo de escolarização
desde o século XIX no Brasil.
Thiago de Assis Passos – CRP 05/45007
thpassos3113@hotmail.com
Rio de Janeiro, RJ, 15 de Janeiro de 2014

Resumo: Este trabalho possui como objetivo apresentar questões acerca do preconceito racial
existente no Brasil em pleno século XIX, já com a Abolição da Escravatura. Fora realizada
uma pesquisa bibliográfica e levantados pontos tais como a questão racial, a questão da
escolarização das crianças brasileiras do século XIX e o processo de escravidão que no Brasil
se encontra bastante ligado ao tom de pele dos indivíduos. A proposta aqui esperada é de
reflexão de como processos legislativos ainda que incidam sobre questões sociais, podem não
ser o suficiente para alterar questões culturais cristalizadas em uma sociedade, e portanto,
valores perduram por séculos por mais que tendam contra os processos legais em vigor no
momento.
Palavras-chave: Preeconceito. Raça. Educação. Leis.

1. Introdução
Em seu trabalho, “O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no
Brasil 1870-1930”, a autora Lilia Moritz Schwarcz nos introduz já com as seguintes palavras:
“Em finais do século passado [século XIX] o Brasil era apontado como um caso
único e singular de extremada miscigenação racial. Um ´festival de cores´[...] na
visão de vários intelectuais nacionais; de fato, era como uma nação multiétnica que
o país era recorrentemente representado” (SCHWARCZ, 1993:12)
Tais palavras merecem devida reflexão. Isso pois numa rápida leitura pensaríamos que
tais palavras são enaltecedoras de uma habilidade nacional, uma habilidade de validação da
diversidade étnica da qual tivemos oportunidade de “apreciar”. Aqui esta palavra em questão
precisa vir entre aspas pois boa parte de nós temos algum conhecimento de que ainda que
após a assinatura do marco abolicionista feito pela então princesa Isabel em 1888, a
escravidão poderia ter sido legalmente findada, mas muitos séculos depois ainda convivemos
com inúmeros casos que apontam que as ideias por detrás do processo de escravidão, ideias
de menos valia, de inferioridade, de marginalidade, todos vinculados ao tom escuro da pele de
alguns em comparação ao de outros, permanece vivo e por vezes quase enaltecidos em certos
círculos sociais.
Dessa maneira, sim de fato, éramos um caso extremado de miscigenação no século
XIX e não creio que estejamos tão distantes assim em pleno século XXI de tal colocação.
Contudo e entretanto, esse trecho da obra de Lilia é de longe um ponto de valorização e
resguarda diversos pontos que serão com o desenvolver deste trabalho apontados como:
discriminatórios, segregadores, preconceituosos.
E quanto as questões legais, que já se faziam presentes desde a assinatura da princesa,
tentando diminuir tais pontos supracitados, por vezes veremos também que tratam-se apenas
de um aparato que pouco poder possui em sua prática, colocando-se apenas como algumas
palavras e assinaturas dispostas em algum papel, dito importante, mas não necessariamente
tomado como tal.
2

2. Uma história de misturas e ainda assim de distinções


Lilia, não muito depois das palavras ressaltadas na introdução deste trabalho continua
a nos introduzir e esclarecer sobre a questão brasileira, de misturas de etnias ou raças e como
ela acabaria por ser percebida e compreendida pela sociedade e acima de tudo, por um vasto
grupo de pensadores e acadêmicos do período:
“Como representante de um ´típico país miscigenado´ é que João Batista Lacerda,
então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, era convidado a participar do I
Congresso Internacional das Raças, realizado em julho de 1911. A tese apresentada -
´Sur les métis au Brèsil´ - era clara e direta: ´o Brasil mestiço de hoje tem no
branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução´.” (SCHWARCZ,
1993:12)
Talvez seja necessária uma contextualização aqui importante para compreensão do
possível impacto que tal ideologia significava na ocasião e os resultados que vivemos até os
dias atuais de tal ideologia. Isso pois, em 1911, vivíamos já os primeiros anos do Brasil
República, em vista sua proclamação tenha ocorrido em 1889. Tínhamos também já
legalizado a igualdade em termos legais dos que foram escravos até 1888, com a Lei Áurea e
acima de tudo, estávamos como se pode perceber com tais fatos, em um período de transição.
Um período de transição de um país marcado pela dominação dos ideais monárquicos para os
vislumbres de um Estado livre e democrático (ao menos nas intenções da população) e uma
transição mais importante que era a forma que o capitalismo aqui iria se solidificar para
erguer o país, em vista a mão de obra sendo alterada da escrava para a proletária.
Tomando a fala de que “O Brasil teria no branqueamento sua perspectiva de saída e
solução” já nos mostra que nessa transição, aparentemente não cabia espaço para ideias de
diversidade e aceitação, ao menos não naquele momento e devemos refletir se tal proposta de
“branqueamento” não perduraria por muitos outros séculos na sociedade brasileira.

3. O século XIX: suas implicações científicas e a questão racial no território brasileiro


“O homem é mau por natureza, a menos que precise ser bom.”
(Nicolau Maquiavel)

As transformações ocorridas no cenário mundial durante o século XIX, dispostas


anteriormente e reflexos dos avanços científicos, tais como: o desenvolvimento das ciências
naturais e exatas; inovações no campo da biologia, botânica, física, além da química e
geologia; assim como o aparecimento de uma Psicologia científica; acabaram por desenvolver
um clima em geral de euforia sobre a sociedade daquele período. (MANSANERA; SILVA,
2000)
No cenário brasileiro, começaram a serem introduzidas teorias de pensamentos até
então não antes conhecidas e este sentimento eufórico aqui acompanhava o cenário mundial,
mas com uma peculiaridade em particular. Tal peculiaridade estava na questão das diferenças
humanas e as justificativas atribuídas a estas, a questão racial. O termo raça foi introduzido
na literatura nacional em inícios deste mesmo século XIX, por Georges Cuvier, e com sua
introdução começam a ser também discutida a possibilidade da existência de heranças físicas
e posteriormente, cognitivas, permanentes entre os diversos grupos humanos. (MORIT, 1993)
Com a então publicação e divulgação de A Origem das Espécies de Charles Darwin
em 1859, diversas leituras surgem de seu trabalho, muitas com interpretações que desviavam
do perfil originalmente concebido pelo autor. (MORIT, 1993) Seu primo, o naturalista e
psicólogo inglês Francis Galton, que possuía já interesse pela realização de medidas físicas
(antropomórficas) e psicológicas (de acuidade sensorial) como forma de avaliação das
3

capacidades intelectuais de uma pessoa, tocado pela disseminação das teorias raciais e a
influência da obra de Darwin, se dedicou a investigação da transferência de habilidades
cognitivas de uma geração para outra. (BUENO; RICARTE, 2017)
Galton, em seu livro Hereditary Genius de 1869, dez anos após a publicação do
clássico de seu primo Darwin, passa a ser considerado o fundador da Eugenia. Conforme
apontado por Masiero (2005:199) Eugenia, “definiria as diretrizes, para o estudo e
manipulação da hereditariedade com o objetivo de melhorar ao máximo as qualidades inatas
das “raças humanas”, sobretudo suas habilidades mentais.” Desta maneira, Galton afirmava
que suas pesquisas sobre a diversidade humana o levaram à conclusão que tais raças seriam
distintas não apenas esteticamente, mas também em capacidade intelectual, sendo a branca, a
mais inteligente. Ainda tomando tal lógica de avaliação, ele sugeria formas racionalmente
sustentadas de intervir na evolução humana através de medidas incentivadoras da geração de
herdeiros biológicos dos “melhores” (eugenia positiva) e impeditivas dos “piores” (eugenia
negativa). (MASIERO, 2005) Resumidamente, Galton não somente propunha uma avaliação
de habilidades mentais baseando-se em aspectos fisiológicos que atribuíam graus de evolução
à espécie humana, como também idealizava formas de tornar a humanidade mais “evoluída”
através de políticas que diriam como e a quem deveria ser concebido o direito de herdeiros
biológicos.
A questão racial teve bastante impacto com suas teorias quando se defrontou com a
miscigenação da população brasileira. Não somente a miscigenação foi influenciadora nesse
momento, pois fatos tais como a situação que o país sofria envolto a mudanças inúmeras
desde a independência de Portugal e posteriormente a abolição da escravatura e a imigração
de povos de inúmeras raças, levaram a fundamentos que tornaram os teóricos racistas bastante
citados nesse período. Tais teóricos acreditavam que a comprovação da causa da degeneração
que a população brasileira sofria estaria em sua miscigenação e apontaram até mesmo as
maneiras como tal degeneração ocorreria: pelas relações dos indivíduos representantes de
raças “inferiores” com as “superiores”, basicamente. (MASIERO, 2005)
Dentre os considerados “inferiores”, se encontravam representantes não apenas das
distinções físicas, mas também doentes mentais, criminosos e alcoólatras. Deixando assim
evidentes as correlações das avaliações e fundamentações baseadas na ideologia introduzida
por Galton, pondo em pareamento questões intelectuais, cognitivas e emocionais com
aspectos fisiológicos. Isso ocorria em evidência no território nacional, pois tais ideias foram
se ajustando à realidade social vigente e concebendo produções de cunho psicológicas, com
subsídio para debater questões problemáticas tais como as causas da loucura, saúde mental,
inteligência, personalidade, educação e o comportamento tanto individual como o social.
(MASIERO, 2005)
Galton pode ter sido um dentre os nomes de destaque que promulgaram tais ideologias
que consequentemente acabaram por potencializar políticas e um projeto social brasileiro
específico, todavia aqui cabe o destaque de dois outros nomes: Cesare Lombroso e Enrico
Ferri. O primeiro foi um psiquiatra, higienista e criminologista antropólogo italiano e o
segundo também italiano e criminologista que tiveram em seus estudos base para ações
adotadas pelas práticas de avaliação criminal no Brasil desta época. (SCHAWARCZ, 1993)
Ainda que não sejam psicólogos, ambos faziam estudos sobre a avaliação do indivíduo
a partir de seus tipos físicos, raças e algumas propostas realizadas por principalmente
Lombroso, chegavam a inferir que as características fenotípicas de um indivíduo poderiam lhe
atribuir características criminais. Lombroso chegou a criar uma tabela aonde elementos
anatômicos se encontravam pareados a elementos psicológicos para uma avaliação do perfil
criminal de alguns indivíduos. Cabe destaque que até elementos sociais como a presença de
tatuagens eram correlacionados com outros elementos tais como a assimetria do crânio e
questões de personalidade como insensibilidade, para determinar tal perfil criminológico.
4

Ferri, apesar de concordar com os pressupostos de Lombroso, era mais ponderado e se referia
apenas a “uma predisposição ao delito”. (SCHAWARCZ, 1993)
Mesmo não se tratando de psicólogos, tais autores abordavam questões que bebiam em
bases psicológicas para a elaboração de suas teorias e estas levaram a diversas práticas
profissionais que no período não vieram a se enquadrar como não éticas ou mesmo
questionáveis. O processo de avaliação, que aqui ia além do psicológico, pois também
abarcava questões outras com fundamentação nas teorias raciais da época, levaram ao
processo de higienização que, de maneira geral, via na desorganização social e o mau
funcionamento da sociedade causas do adoecimento desta. (MANSANERA; SILVA, 2000)
Todavia tal desorganização e mau funcionamento tinham como embasamentos teorias
endossados por nomes como de Lombroso, Ferri e Galton, fazendo assim entender que em
última instância o problema do adoecimento da sociedade residia naqueles que eram
considerados “inferiores” e através de seus processos de avaliação correlacionando entre
muitas características, também algumas de aspectos psicológicos, poderiam se prever os
“potenciais criminosos” e os curar ou ao menos impedir a perpetuação de suas
“inferioridades” através de políticas públicas, intituladas como higienistas.
Aqui cabe a necessidade de relembrar o já exposto, tal como a preocupação dos
profissionais da Psicologia interessados em diferencia-la da Filosofia e a busca de
padronizações em seus procedimentos de observação com especial ênfase na utilização de
números para aproximar a Psicologia às ciências naturais e consequentemente de se mensurar
atributos físicos os associando aos aspectos mentais humanos. (BUENO; RICARTE, 2017)
Esses pontos são de suma importância para validar a concepção de como diversos fatores,
mesmo externos à natureza das ideias contidas em uma corrente científica podem configurar
posicionamentos dos caminhos que ela tomará e conforme questões inúmeras, naturais aos
processos de evolução de qualquer sociedade, podem levar a ações de proporções imensas na
tentativa de se solucionar questões nem sempre tão coletivas.
A Psicologia, tanto como os pensamentos de Galton e sua Eugenia tornaram-se
fundamentos científicos para o processo higienista e basicamente base científica da higiene
mental. Com essa posição, acabaram se tornando a justificativa científica de ações que não
apenas não viria de encontro com a atual consolidada posição das práticas em avaliação
psicológica, um dos segmentos mais antigos da Psicologia e que se propõem a ser um
processo limitado no tempo, com embasamento teórico e que se dispõem a avaliar as questões
colocadas por um requerente com objetivo final o auxiliando e fornecendo subsídios para a
tomada de uma decisão. (BORSA; QUEIROZ; SEGABINAZI, 2017)
A promulgação das teorias raciais com os embasamentos, naquele momento tido como
científicos, elaborados por nomes como Lombroso ou mesmo Galton estavam dispostos a um
momento histórico e social, como dito. E assim tomaram tamanha força e apelo, sendo desta
maneira bases para propostas políticas como as higienistas. Talvez em outros contextos
históricos e culturais, resultados diferentes teriam sido desenrolados, mas fica impossível os
prever, entretanto, os resultados dos conceitos teóricos científicos de tais autores, ficaram
marcados na história não somente da avaliação psicológica e a Psicologia enquanto corrente
científica, como em termos de História nacional e mundial.
Como já colocado, as questões éticas estão dispostas sobre outras questões tais como
recortes históricos temporais, portanto nem tudo que hoje seria considerado não ético assim
seria em determinadas outras sociedades e em determinados outros recortes temporais. Mas
cabe a reflexão aqui, como também já dispostos, de quais fatores podem influenciar a prática
não somente do profissional psicológico em sua atenção como avaliador da psique humana,
mas também diversos outros profissionais que correlacionam teorias de suas áreas de
conhecimento com as propostas pela Psicologia e geram assim práticas difundidas que por
vezes causam impactos profundos em determinados grupos sociais.
5

A Psicometria, por mais que tenha possuído origens fundamentadas na classificação


com a busca de irregularidades nos aspectos psicológicos individuais, sofreu como as
sociedades, mudanças e evoluções tanto em seus intuitos finais como em seus processos de
condução. Mudanças que ainda estão a sofrerem, e portanto expostas a diversos fatores
externos até mesmo ao pensar científico psicológico e assim sendo, se torna sempre válido a
precaução do psicólogo em tentar manter suas práticas científicas e em caminhos éticos.

4. O futuro da avaliação psicológica: como se manter ético diante de tantos fatores


influenciadores
“O homem é um animal político.”
(Aristóteles)

Durante a história da Psicologia, foram ao longo desses anos sendo criadas formas de
nortear a atuação do psicólogo e sua prática profissional, dentro e fora da área de avaliação.
Mas tal processo em comparação com os tempos atuais e a introdução das tecnologias de
informatização no processo de avaliação psicológica, em comparativos cronológicos, estaria
em desvantagem.
O computador e a informática estão cada vez mais presentes no modelo de vida
social atual, desde pelo menos a década de 1980, já havia a introdução de tais aparelhos
tecnológicos no estilo de vida de boa parte da população global, mas sem dúvida na virada do
milênio, ele está definitivamente consolidado no modelo de se viver de praticamente toda a
população mundial. Portanto, práticas profissionais acabaram por se adequar ao movimento
social proposto de mudança que se tornou inegável e assim sendo, também a prática
profissional psicológica e o uso de testes informatizados foram cada vez mais visíveis no
contexto de atuação do psicólogo contemporâneo. (GURGEL; REPPOLD, 2017)
Existem discrepâncias quando os estudos apontam a origem desse processo de
informatização da prática psicológica. Alguns datam o ano de 1930 ainda, como originário
desse modelo de trabalho, todavia outros só atribuem ao ano de 1950 nos EUA tal marco
histórico, aonde a proposta seria de melhoria na padronização dos testes psicológicos. Mas as
datas não acabam por ai, tendo as décadas de 1960 e 1970 outros pontos aonde se
encontrariam a origem desse movimento de informatização, também ocorrendo em solo norte-
americano. E entre 1970 e 1985, existiram estudos comparativos entre as versões tradicionais
com as computadorizadas de instrumentos voltados para avaliação de constructos tais como
personalidade e inteligência. Independentemente de quando se iniciaram o processo de
criação de softwares para a avaliação de constructos psicológicos, têm sido cada vez mais
evidentes estes no cenário de atuação psicológico. (GURGEL; REPPOLD, 2017)
Mas retomando a concepção de normas ou órgãos reguladores da prática do
profissional de psicologia e aqui com ênfase no processo de avaliação psicológica. Temos
nesse período da era computadorizada já ao menos três documentos gerados por três
diferentes associações que possuíam a concepção de regulamentar a prática psicológica, em
especial a aplicação e validação de testes psicológicos via sistema de informatização desde o
ano de 1986. Estes documentos normativos foram: o Guildenes for computer da APA em
1986, o Guildness for the Developmente and Use for Computer-based Assessmentes pelo
Psychological Testing Centre, da Britsh Psychological Society em 2002 e por último o
Guildenes on computer-based and intenet=delivered testing da Internacional Test
Commission – ITC em 2005. (GURGEL; REPPOLD, 2017)
Todos os documentos acima foram idealizados e formulados por instituições
internacionais, portanto, normalmente utilizando suas versões no processo de regulamentação.
Como já discutido, o cenário brasileiro possui características sociais, culturais e de diversas
6

outras que por vezes precisam de adequações para a sociedade nacional, com o intuito de se
manter a fidedignidade na validação técnico-científica de tais instrumentos. E, dessa forma,
no cenário nacional o SATEPSI (uma também plataforma online) é o então responsável por
nortear a relação de testes com parâmetros técnicos científicos validados sobre a variedade de
nossa população, assim como os CRP e o CFP os órgãos reguladores da prática profissional
do psicólogo.
Fazendo aqui um comparativo, a Psicologia se torna uma ciência desde o século
XIX, como já colocado desde o início deste trabalho. O termo “testes mentais” foi utilizado
por James Maceen Cattell ainda em 1810, originando assim a concepção de psicometria.
Somente na década de 1900, temos o primeiro teste psicológico desenvolvido por Alfred
Binet e seu colaborador Theodore Simon, a escala Binet-Simon, composta por 30 itens,
apresentados de forma crescente de dificuldade e que mesmo não sendo bem estabelecida
naquele momento, tal escala já apresentava procedimentos de aplicação e avaliação bem
definidos e até evidências de validade. Tal escala demonstrava a possibilidade de avaliação do
constructo de inteligência em crianças. (BUENO; RICARTE, 2017)
Seguindo o avanço da história da Psicologia e por consequente da avaliação
psicológica, apenas em 1962 a Psicologia é então regulamentada enquanto disciplina e
profissão, resultando na criação dos conselhos reguladores da classe, o federal (CFP) e os
regionais (CRPs), que surgiram em 1974 através da Lei 5.776. (BUENO; RICARTE, 2017)
Apesar do surgimento dos conselhos reguladores da atuação do psicólogo terem
ocorrido em 1974, ao menos desde 1971 já existia um Código de Ética que se entendia como
norteador da prática em psicologia. Tal Código foi revisto por três vezes, sendo no ano de
2005 acrescentados preceitos sobre a competência (referente à busca constante de atualização
por parte do psicólogo ao reconhecer seus limites de competência para o desenvolvimento de
um trabalho de excelência), integridade (referente a uma atuação honesta, justa e respeitosa
que sempre deve se atentar para que seus valores pessoais não influenciem em sua prática
profissional), preocupação com o bem estar do outro (que se refere à consciência de que o
psicólogo ao ocupar uma posição de autoridade na sua relação profissional para com o outro,
procurar evitar enganos ou exploração dos envolvidos) e por último a responsabilidade
científica, profissional e social (aonde aborda a colaboração do profissional com colegas e
instituições para atender as necessidades dos indivíduos por eles atendidos, utilizando-se
sempre de pressupostos cientificamente aprovados, tais como técnicas em consonância com a
população em questão atendida). Tais acréscimos foram influenciados pela Associação de
Psicologia Americana – APA, que os colocava em questão ainda no ano de 1992. (BORSA;
QUEIROZ; SAGABINAZI, 2017)
Ao confrontarmos o tempo levado para avanços na regulamentação da prática
profissional do psicólogo desde 1962 até as recentes alterações de seus Códigos de Ética, se
passam cerca de 43 anos. Só desde o surgimento do primeiro teste psicológico, a escala Binet-
Simon na década de 1900 até a criação do sistema de regulamentação de testes psicológicos o
SATEPSI em 2003, são praticamente mais de cem anos. No contexto moderno, com o
crescente crescimento de investimentos na informatização da prática profissional psicológica,
apenas em cerca de 30 anos já conseguimos três documentos de extrema importância na
regulamentação dessa nova modalidade de atuação e porque não dizer de testagens. Sim, é
claro que agora já temos toda a bagagem criada através desses dois séculos desde o
surgimento da psicologia científica e tantos outros antes desta se consolidar enquanto ciência,
mas a importância de se colocar em debate a forma como os profissionais desse ramo
científico desempenham seu trabalho se faz importante, principalmente tendo em vista os
ocorridos no Brasil marcado por teorias raciais e de avaliações inúmeras que se utilizavam de
pressupostos psicológicos demarcando ainda mais a segregação social existente naquele
período e ainda até hoje existente.
7

O Brasil, quando comparado com outros países no tocante da avaliação psicológica,


se encontra por vezes em atraso nesse processo complexo que vai além de testagens e
padronizações de mensurações psicométricas. (BORSA; QUEIROZ; SAGABINAZI, 2017) A
própria utilização do instrumento de testagem no processo de avaliação psicológica demanda
competências, conhecimentos e posturas ao psicólogo para o bom uso deste dentro do
processo de avaliação psicológica que mesmo não tendo um modelo fechado de como deve
ocorrer (pela intrínseca necessidade de ser flexível perante a demanda apresentada), necessita
ser programado tendo em vista o antes, durante e depois deste, seguindo algumas diretrizes
que os próprios conselhos hoje são responsáveis em nortear. (MUNIZ, 2017)
Todavia, os mesmos conselhos apesar de atualmente disponibilizarem a qualquer
psicólogo com registro ativo neles a possibilidade de se efetuar o processo de avaliação
psicológica, não se atendo ao discernimento de se são ou não capazes de efetuarem o mesmo.
Dessa forma, cabe a cada psicólogo o discernimento próprio em decidir ser ou não capaz de
seguir com o processo de avaliação psicológica, que envolve além de conhecimentos por
vezes profundos da aplicabilidade de alguns testes psicológicos, assim como a condução do
próprio processo como um todo e sua contextualização perante aos fatores que o cercam.
Em casos de erros, mesmo que não conscientes durante esse momento de escolha
entre ser ou não responsável pela condução de tal processo de avaliação, se coloca a máxima
apontada por Leonard Michael Martin em seu trabalho “O erro médico e a má prática nos
códigos brasileiros de ética médica” de 1994, citado por Borsa; Qeiroz; Sagabinazi
(2017:192) “[...] qualquer profissional sempre será responsável por seus atos, porém nem
sempre será culpado, diferenciando responsabilidade de culpabilidade.” E assim, como definir
de fato quais princípios são éticos na atuação profissional de um psicólogo?

5. Considerações finais
“O homem é uma corda esticada entre o animal e o super-homem”
(Friedrich Nietzsche)

As sociedades estão em constantes mudanças, sejam elas causadas por fatores


econômicos ou políticos, sejam ainda por fatores ecológicos como desastres naturais e ou
mesmo pela talvez inerente necessidade humana de mudar. Os pontos que norteiam hoje a
ética nas práticas profissionais necessitam estar em consonância acompanhando tais
mudanças da sociedade na qual se propõe atuar. Todavia, se espera que o processo seja
evolutivo e com o intuito maior de prover o bem em termos coletivos e não priorizando,
segregando e estigmatizando alguns em benefícios de outros, por vias em números
infinitamente menores.
Ser psicólogo é se colocar a estudar algo, que mesmo atualmente já termos a tempos
os fundamentos científicos, padronizações de técnicas e instrumentos e tenhamos nos
distanciado muito das perspectivas que eram enviesadas por aquele responsável pelo processo
de avaliação, ainda não se coloca como uma tarefa fácil em seu cotidiano. Mesmo que hoje
tenhamos conselhos responsáveis por garantir uma prática pautada em ações éticas e diversos
documentos que norteiam nossa atuação, no âmbito de avaliação, clínica ou qualquer contexto
outro do qual o psicólogo se proponha estar, não devemos esquecer que nosso objetivo de
pesquisa, estudo, trabalho, atuação é o ser humano, criatura com inúmeras possibilidades de
demonstrações assim como de interpretações, estando nós mesmos, ainda que enquanto
psicólogos compondo este mesmo grupo também.
Questões éticas são sim de difícil definição e consenso, mas nunca deveriam estar
distanciadas da nossa prática cotidiana, assim como o indicado por nosso conselho desde
2005, há a constante necessidade de nos atualizarmos, de nos mantermos íntegros em nossas
8

práticas profissionais, sejam quais forem e aonde forem e a preocupação com aquele do qual
nos predispomos a trabalhar não deve ser esquecida, assim como nosso processo de trabalho
leviano com possíveis esquecimentos de nossa responsabilidade científica, profissional e
social enquanto psicólogos.
Já foi evidenciado pela própria história que algumas ações mesmo que eticamente
aceitas, podem acarretar grandes transtornos a uma significante parte da população. Não
devendo vir a ser este o papel nem da Psicologia e muito menos de seus psicólogos. Assim
sendo, o trabalho na prática de avaliar psicologicamente não inicia ou se encerra apenas no
consultório perante o solicitante. Este é um processo que permeia questões inúmeras, às vezes
até mesmo fora do contexto científico disponibilizado pela Psicologia e portanto, todo
cuidado é sábio no intuito de se manter ético e evitar resultados como os citados ao longo de
nossa história.
O presente trabalho não pleiteia encontrar caminhos ou resoluções para dúvidas que
provavelmente não possuiriam respostas, ou ao menos, uma única possibilidade de serem
respondidas. Mas aqui ele se propõe a trazer reflexões sobre nossa atuação no hoje e também
nos acontecidos que marcaram nossa história enquanto profissionais e como nossa
cientificidade auxiliou práticas de outros profissionais, utilizando-se de nossas fontes para
fundamentar tais ações, hoje dificilmente aceitas. O presente trabalho, acima de tudo, foca em
nosso futuro enquanto profissionais da Psicologia e que está consiga sempre estar em prol da
sociedade que se coloca a auxiliar, mantendo seus preceitos éticos e não deixando de lado
ninguém, principalmente aqueles que por vezes são os mais necessitários.

Referências
ANDRADE, Josemberg Moura de; SALES, Hemerson Fillipy Silva. A diferenciação entre
avaliação psicológica e testagem psicológica: questões emergentes. In: LINS, Manuela Ramos
Caldas; BORSA, Juliane Callegaro (Org). Avaliação psicológica – aspectos teóricos e
práticos. Petrópolis: Vozes. 2017. cap. 1, p. 09-22.

BORSA, Juliane Callegaro; QUEIROZ, Fernanda; SEGABINAZI, Joice Dickel. Aspectos


éticos na avaliação psicológica. In: LINS, Manuela Ramos Caldas; BORSA, Juliane Callegaro
(Org). Avaliação psicológica – aspectos teóricos e práticos. Petrópolis: Vozes. 2017. cap. 13,
p. 187-197.

BUENO, José Maurício Haas; RICARTE, Mirela Dantas. Aspectos históricos da testagem
psicológica: contexto internacional e nacional. In: LINS, Manuela Ramos Caldas; BORSA,
Juliane Callegaro (Org). Avaliação psicológica – aspectos teóricos e práticos. Petrópolis:
Vozes. 2017. cap. 3, p. 38-55.

FERREIRA, Arthur Arruda Leal. O múltiplo surgimento da psicologia . In: JACÓ-VILELA,


Ana Maria; FERREIRA, Arthur Arruda Leal (Org). História da Psicologia: rumos e
percursos. Rio de Janeiro: Nau Ed. 2006. cap. 1, p. 13-73.

GURGEL, Léia Gonçalves; REPPOLD, Caroline Tozzi. Instrumentos psicológicos


informatizados. In: LINS, Manuela Ramos Caldas; BORSA, Juliane Callegaro (Org).
Avaliação psicológica – aspectos teóricos e práticos. Petrópolis: Vozes. 2017. cap. 5, p. 76-
87.

MANSANERA, Adriano Rodrigues; SILVA, Lúcia Cecília da. A influência das ideias
higienistas no desenvolvimento da psicologia no Brasil. 2000. (Projeto de iniciação científica)
9

– Universidade Estadual de Maringá. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?


pid=S1413-73722000000100008&script=sci_abstract&tlng=pt> Acesso em: 13. Set. 2018.

MASIERO, André Luís. A psicologia racial no Brasil (1918-1929). Estudos de Psicologia.


Natal, v. 10, n 02. 2005. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S1413-294X2005000200006> Acesso em: 13. Set. 2018.

MUNIZ, Monalisa. Competências e cuidados para a administração da avaliação psicológica e


dos testes psicológicos. In: LINS, Manuela Ramos Caldas; BORSA, Juliane Callegaro (Org).
Avaliação psicológica – aspectos teóricos e práticos. Petrópolis: Vozes. 2017. cap. 7, p. 100-
113.

SCHAWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial
no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

VALLS, Alvaro Luiz Montenegro. O que é ética? São Paulo: Editora Brasiliense.1994.

Você também pode gostar