Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
O limiar da década 1980 é o momento em que o movimento negro ressurge como grupo
social organizado e com intencionalidades políticas marcantes frente a sociedade brasileira. Na
literatura que trata desse assunto, dois aspectos da atuação desse movimento são ressaltados:
i) tendo como horizonte a premissa da existência de um racismo estrutural que
influencia na conformação de desigualdades no Brasil, o movimento buscou
inserir tal problemática na esfera política e, consequentemente, interferir nas
políticas institucionais do Estado;
ii) e, diante do “mito da democracia racial” e, paradoxalmente, a existência
marcante do racismo, há uma revisão acerca dos discursos sobre a nação
realizada por intelectuais-militantes negros. Na verdade, a “narrativa fundante da
nação” se torna uma arena de disputas e ativistas-intelectuais se mobilizaram
para interferir nela, pois, a afirmação da existência de um racismo estrutural no
Brasil previa justamente a elaboração de outras perspectivas para o
entendimento do “corpo da nação” (povo, território e história nacionais).
Meu foco se dará exatamente sobre o segundo aspecto que envolveu essa conjuntura
política e trago a luz para apreciação Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez. Ambos, não
somente atuaram organicamente na organização e atuação do movimento negro nos anos
1980, como produziram instigantes reflexões sobre as relações raciais no país e na diáspora.
O texto está organizado na seguinte ordem: primeiramente, será realizada uma breve
discussão sobre o processo de “epistemicídio” que envolve a produção de intelectuais negros e
negras na academia brasileira; em seguida serão abordadas as ideias e perspectivas teóricas
diaspóricas de Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez.
2
1
Há que se fazer um adendo acerca disso aqui. Nos últimos anos vemos a retoma de alguns desses autores,
contudo, que fique explícito a crítica que estes são abordados quase que isoladamente, como peças de um museu que
descontextualiza o momento histórico de suas produções. De alguma forma os escritos desses autores e autoras
negros/as ainda são mantidos no vácuo, como se os mesmos não estivessem dialogando e criticando os autores e
obras tomadas como cânones no período.
3
disso, e para não nos limitarmos a uma afirmação retórica, também tomamos a pergunta
levantada por Ortiz para entendermos essa problemática: “como entender o fato de algumas
ideias chegarem ao porto de destino e outras não?” (ORTIZ, 2005, p. 27-28), ou melhor, por
que algumas ideias chegam ao porto e outras não?
Como ressalta Stengers (1990)2, na economia política do conhecimento científico, a
melhor forma de “matar” uma teoria é ignorá-la. No sentido que apresenta a autora, ignorar
significa não considerá-la de forma alguma, nem mesmo como ideia a se refutar. Foi
justamente isso o que ocorreu (e de alguma forma ocorre) com os intelectuais negros/as na
história do pensamento social brasileira no que toca a questão étnico-racial; estes foram
soterrados pelo silêncio na academia ou, de forma distorcida, foram tomados como abordagens
radicais e imparciais de um momento histórico restrito. A prova mais contundente disso é que
os autores e autoras (tidos como referência acadêmicas no assunto) que se propuseram a
fazer um balanço da produção sobre a questão étnico-racial no Brasil não citaram ou
comentaram uma obra se quer de autores negros/as3. Refiro-me mais exatamente a Ortiz
(2005), Schwarcz (1993) e Guimarães (2004).
Todo esse processo se encaixa nas discussões que alguns autores/as vem fazendo
sobre as relações de poder embutidas nas ciências: precisamente no que Mignolo (2005)
denomina de “totalitarismo epistémico” frente ao conhecimento europeu e eurocêntrico sobre o
resto do mundo; bem como, o “epistemicídio”, categoria que Suely Carneiro (2005) tomou
emprestada de Boaventura de Souza Santos para enfatizar a invisibilização dos discursos dos
intelectuais negros e negras nos espaços de produção do conhecimento brasileiros; ou mesmo,
a própria “sociologia das ausências e das presenças” proposto por Souza Santos (2004), ou
seja, a produção da não-existência por meio de uma “monocultura racional”.
Para não me restringir ao plano teórico dessa afirmação, podemos levantar alguns
exemplos concretos desse processo de segregação de ideias. Vejamos: Manoel Querido
(1851-1923) foi um contemporâneo de Nina Rodrigues (1862-1906), viveram ambos em
Salvador onde fizeram pesquisas com as mesmas temáticas. Ao contrário de seu conterrâneo,
Manoel Querino produzia um discurso em tornoda cultura africana em que buscava justamente
enfatizar suas características positivas e, consequentemente, desconstruir as ideias de
inferioridade da população negra (REIS, 2009). Sua obra teve pouca repercussão nas ciências
sociais brasileiras – sendo retomado somente nos últimos anos, enquanto as teorias de Nina
Rodrigues fizeram escola nas ciências sociais, a despeito das abordagens racistas contidas em
sua obra.4 Luís Gama (1830-1982), jurista e ex-escravizado, atuou ferrenhamente contra o
regime escravistae enfatizava a necessidade de se ressarcir os ex-escravizados por conta de
4
anos de trabalhos forçados. Foi conterrâneo de Joaquim Nabuco (1849-1910) e ambos eram
abolicionistas, contudo, apesar dos muitos escritos deixados por Luís Gama, o que temos hoje
é somente o seu vulto na academia com a taxação de “o abolicionista radical” (CARVALHO,
2005). No período em que Gilberto Freyre publica Casa e Senzala (1933) existiam uma série
de organizações e jornais negros que proferiam discursos que se contrapunham às suas ideias
de “harmonia racial brasileira”. Isso foi e é desconsiderado, na maioria dos casos, pelo mundo
acadêmico quando se analisa esse período histórico5. No momento das pesquisas
encomendadas pela Unesco na década de 1950, quando foi publicada a coletânea de trabalhos
de Florestan Fernandes e Roger Bastide (1955), Guerreiro Ramos (1995) já enfatizava que tais
pesquisas utilizavam o negro como objeto e questionava a “neutralidade racial” no campo
teórico – algo que, diga-se de passagem, hoje é um posicionamento amplamente conhecido e
aceito por meio de intelectuais como Stuart Hall, Edward Said, HomiBhabha, dentre outros.
Apesar da grande contribuição para as Ciências Sociais brasileiras e de suas ideias inovadoras
para a época, Guerreiro Ramos foi relegado ao ostracismo. O mesmo cumpriu praticamente
toda sua carreira como acadêmico, desgostosamente, exilado nos Estados Unidos e
trabalhando em uma área do conhecimento que não a Sociologia (OLIVEIRA, 1995).
Cito acima, sem estabelecer muitos detalhes, alguns casos que envolvem a “sociologia
das ausências”, o “epistemicídio” e o “totalitarismo epistémico”, entretanto, tal problema não
envolve somente a invisibilização ou o silenciamento de perspectivas teóricas, mas também a
segregação de corpos. Manoel Querino, apesar dos seus excelentes trabalhos de pesquisa,
nunca conseguiu ministrar aulas nas faculdades de Salvador. Limitou-se a dar aulas de arte em
escolas do ensino básico de Salvador (REIS, 2009). A despeito da elaboração de reflexões
avançadas para a época no Direito, Luís Gama nunca foi convidado a ministrar aulas ou
qualquer outro tipo de atividade na Faculdade de Direito de São Paulo. Guerreiro Ramos,
mesmo com toda sua produção e já consolidado como um intelectual reconhecido foi preterido
em um concurso na Universidade do Brasil por um pesquisador iniciante (CARVALHO, 2005).
Ressaltamos novamente, estes não são casos isolados, muitos outros poderiam aqui ser
citados. Esta situação, inclusive, leva Carvalho (2005) a afirmar que as universidades
brasileiras foram fundadas em um processo de “confinamento racial branco”. E, como bem
ressalta o autor, a conformação teórica e epistemológica de interpretações das relações étnico-
raciais no Brasil se deu nesse espaço segregado e desigual racialmente, e o que é pior,
paradoxalmente foi justamente desse local que saíram e saem todas as teorias que negam a
existência de uma desigualdade étnico-racial no país. Nas próprias palavras do autor: “as
teorias e as interpretações das relações raciais no Brasil sempre foram elas mesmas
5
O fim dos anos 1970 e início dos 1980 é um momento em que se inicia a abertura
política no Brasil e “novos sujeitos políticos entram em cena” (SADER, 1988). Nesse momento
há uma rearticulação dos movimentos sociais, dentre os quais se encontra o movimento negro.
Esse foi um período intenso que envolveu ação política e produção teórica por parte de
ativistas-intelectuais que buscavam exatamente desmascarar a ideologia da “democracia
racial” e enfatizar a existência de um racismo estruturante das desigualdades no país
(GONZALEZ, 1982; RANCHARD, 2001; ADREWS, 2003; RATTS, 2009). É nesse período que
emergem grandes intelectuais-ativistas negras e negros como Lélia Gonzalez, Beatriz
Nascimento, Eduardo de Oliveira e Oliveira, Hamilton Cardoso e o retorno de intelectuais que
se encontravam no exílio, como por exemplo, Abdias Nascimento, Joel Rufino, dentre
outros/as.
Os escritos de Lélia Gonzalez e Abdias Nascimento tiveram grande importância nesse
período (e ainda hoje o têm) para a (re)formulação do movimento negro e da conformação de
uma consciência negra politizada no Brasil. Em seus textos – e isso parece algo novo para a
realidade política que se abria - há leituras não somente sobre as relações raciais na
sociedade brasileira, mas sobre a diáspora africana.
Nesse sentido, entre as várias influências que lhes tocaram, encontram-se as providas
do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos e o arcabouço teórico do blackpower, do
movimento de libertação e descolonização dos países africanos e dos movimentos feministas e
de esquerda na América Latina. Desse cenário, ambos absorveram todo um regime discursivo,
estético e iconográfico, o que foi traduzido, reelaborado e criticado à luz do contexto brasileiro.
Ainda assim, um fundo comum de experiências que envolviam formas semelhantes – mas não
idênticas – de opressão racial facilitou para que esses pensamentos se conectassem no
espaço e tempo da diáspora nas Américas.
Lélia Gonzalez, por exemplo, realiza uma série de discussões que articulam as
categorias raça, gênero e classe para melhor compreender a realidade da população negra em
seus diversos “lugares”. Do mesmo modo, ao pensar a realidade transnacional que envolve a
opressão sobre as mulheres indígenas e afrodescendentes cunhou a categoria
“Amefricanidade” (a junção de ameríndias e africanas). Com isso a autora questiona
justamente o próprio radical Latino que envolve a identidade latino-americana. Segundo a
intelectual, esse radical nega e invisibiliza as influências e a experiências indígena e africana
que conformaram as sociedades Americanas. Além do mais, a “amefricanidade” é conformada
pela autora como uma categoria política relacionada às experiências de opressão e resistência
7
Considerações Finais
Em minha visão, Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez insurgem como uma opção
para a descolonização e “desembranquecimento” do pensamento social brasileiro. Estes
intelectuais não somente trazem outras referências para se pensar a sociedade brasileira e
suas desigualdades, mas, falam de “dentro” de processos políticos e experiências relacionados
ao que analisam, o que traz mais contundência as suas proposições. Igualmente, estes
intelectuais intercruzam uma série de categorias e dados os quais o cânone do pensamento
social pouco tem dado importância. Isso pode contribuir para uma leitura mais complexa e
abrangente de Brasil. Indo além, as análises sobre esses intelectuais nos permitem
compreender entender como estes traduziram e decodificaram para a realidade brasileira
discursos político-teóricos de outras realidades. Isso pode nos levar entender com maior
8
Bibliografia:
GUIMARÃES,AntônioS.G.PreconceitodecoreracismonoBrasil.RevistadeAntropologia,v.47,n.1,p.
9-43.2004.
GUIMARÃES, Antônio S. G. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Ed. 34,1999.
HANCHARD, Michel G. Orfeu e Poder - Movimento Negro no Rio e São Paulo. Rio de Janeiro:
Ed. Uerj, 2001. 243 pp.
HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio
da perspectiva parcial. Cadernos Pagu. (5) 1995: pp. 07-41.
mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
MIGNOLO, Walter D. . “Os espelhos e as misérias da „ciência‟: colonialidade, geopolítica do
conhecimento e pluri-universalidade epistémica”. In: SANTOS, Boaventura de Souza (org.).
Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004.
MIGNOLO, Walter. Histórias locais, projetos globais. Editora UFMG, 2003.
MUNANGA, Kabengele. Teorias sobre o racismo. In: Hasenbalg, A. C.; MUNANGA, K.; et al.
Estudos e Pesquisas. Rio de Janeiro: EDUFF, 1998. p. 43-65.
NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo
NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo
mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo, 2d. ed. Brasília/ Rio de Janeiro: Fundação Cultural
Palmares, 2002.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. Kilombo e memória comunitária – um estudo de caso. Rio de
Janeiro, Estudos Afro-Asiáticos, 1982 6-7, pp. 259-265.
ORTIZ,Renato.Culturabrasileiraeidentidadenacional.SãoPaulo:Brasiliense,2005.
PAIXÃO, Marcelo, CARVANO, Luiz M., MONTOVANELE, Fabiana & ROSSETTO, Irene (orgs).
Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010. Rio de Janeiro:Garamond,
2010.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A geograficidade do social: uma contribuição para o
debate metodológico para os estudos de conflitos e movimentos sociais na América Latina. In:
Revista Eletrônica da Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Três Lagoas, MS, V1 – n.
3 – ano 3, maio de 2006. p. 05-26.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder e classificação social. IN: SANTOS, Boaventura de
Souza &MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p. 84-130
RATTS, Alecsandro (Alex) J. P.. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz
Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial/Instituto Kuanza, 2007.
RATTS, Alex. & RIOS, Flavia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010.
RATTS, Alex. Os lugares da gente negra: temas geográficos no pensamento de Beatriz
Nascimento e Lélia Gonzalez. In: SANTOS, Renato E.. Questões urbanas e racismo.
Petrópolis, Brasília: DP, ABPN, 2012. p. 216-243.
RATTS, Alex.. Encruzilhada por todo percurso: individualidade e coletividade no movimento
negro de base acadêmica. In: PEREIRA, Amauri M.; SILVA, Joselina da. O movimento negro
brasileiro: escritos sobre o sentido de democracia e justiça social no Brasil. Rio de Janeiro:
Nandyala, 2009. p. 81-108.
RIOS , Flavia. O protesto negro no Brasil contemporâneo (1978-2010). In: Lua Nova, São
Paulo, 85: 41-79, 2012 .
SANTOS, Renato Emerson dos (org.). Questões urbanas e racismo. Brasília, Petrópolis: DP e
A, ABPN, 2012.
10
SANTOS, Renato Emerson dos (org.). Questões urbanas e racismo. Brasília, Petrópolis: DPeA,
ABPN, 2012.
SANTOS, Renato Emerson dos. Movimentos Sociais e Geografia: sobre as espacialidades da
ação social. Rio de Janeiro: Consequência, 2011.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SCHWARCZ, Lilian M. Questão racial e etnicidade. In: MICELI, Sergio (org.). O que ler nas
Ciências Sociais (1970-1995). São Paulo: Editora Sumaré, ANPOCS; Brasília: CAPES, 1999. p.
267-325.