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CURITIBA
2020
EDUARDO RUSSO RAMOS
CURITIBA
2020
Dedico este trabalho aos meus pais que,
pela música, me ensinaram os valores e
os sentidos da brasilidade.
AGRADECIMENTOS
This dissertation is part of the field of intellectual studies. Observing the need for a
theoretical-methodological convergence for its treatment, it seeks to conduct analytical
work through the important contributions of Raymond Williams to the sociology of
intellectuals. In particular, this reflection aims at the elaboration and publication of the
Coleção História Nova between the years 1963 and 1964, a project organized within
the scope of the activities of the Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) by a
group of intellectuals formed around the historian, military, communist activist and
literary critic Nelson Werneck Sodré (1911-1999). Understanding the centrality of this
intellectual for the realization of the collection, we will study aspects of his trajectory
and thinking to examine the realization of the project within the scope of the intellectual
relations that gave rise to the group and that create the conditions for his intellectual
intervention addressing it in its relationship with the concept of brasilidade
revolucionária (revolutionary brazilianness) as the feeling structure that marked the
cultural and intellectual production of the 60’s in Brasil (Marcelo Ridenti). In view of
this, having this work as a documentary source and object, this study seeks to propose
an interpretation of its realization, its meaning and its destiny: after the military blow of
1964, its volumes were seized by the military forces, its authors were arrested or if
exiled, the group that conceived it dissipated; in 1966, in an attempt at a reissue, it was
submitted to a Military Police Inquiry, never being published in full. Thus, this study
seeks to contribute to research that addresses the trajectory and social thought of
intellectuals that marked the formation, development and consolidation of the plural
Brazilian Marxist tradition.
PCB – Partido Comunista do Brasil (até 1961) e Partido Comunista Brasileiro (de 1961
em diante)
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 14
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 97
INTRODUÇÃO
História é isso mesmo: uma singular mistura do grande e do pequeno.” (SODRÉ, 1993,
p. 36).
19
O fato é que, nos quintais universitários, Sodré e sua obra são sumariamente
fuzilados como “ortodoxos”, “esquemáticos”, “mecanicistas” – sem que se
conheçam estudos rigorosos que se ocupem da comprovação de tão
inapeláveis julgamentos. Na verdade, o que se vem construindo em torno da
obra de Sodré, nos últimos três lustros, é uma muralha de preconceitos que
assombra: tanto menos se a examina com os cuidados habituais da crítica
séria, tanto mais se difundem juízos que a desqualificam (1992, p. 27).
2011a). Do mesmo autor, em coautoria com Fátima Cabral, foi publicado em 2006
uma coletânea de 21 textos, entre depoimentos e artigos oriundos de um evento
científico realizado na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho no
campus de Marília, sobre a “dupla vocação” de Sodré – expressão de NETTO (1992,
p. 9) operacionalizada por CUNHA (2011a, p. 17) em sua tese – com o título Nelson
Werneck Sodré: entre o sabre e a pena ([2006] 2011b).
Em seguida, a publicação organizada pelo professor Marcos Silva do
Dicionário crítico Nelson Werneck Sodré, no ano de 2008, trouxe o impressionante
número de 83 autores apresentando verbetes dedicados à bibliografia de Sodré.
Decerto ciente do apelo à releitura com diálogo crítico sustentado por KONDER (1991,
p. 78) na década anterior, o organizador constou na introdução a seguinte direção dos
trabalhos:
tomado por objeto o pensamento social e político, a trajetória dos grupos culturais e
políticos e as instituições que marcaram o período. Desta forma teríamos quatro
décadas de produção que, de formas diferentes, tangenciam, mesmo que
minimamente, elementos do pensamento e da trajetória de Sodré. Apesar desta vasta
produção, é importante ressaltar que a leitura dos trabalhos da primeira década do
nosso século evidencia que parte dessa produção ainda é muito caudatária da
campanha crítica, da muralha de preconceitos, que foi lançada e erguida diante do
historiador. Cumpre, portanto, acompanhar parte deste percurso polêmico.
Abrindo a coletânea que organizou em 2001, Marcos Silva sintetiza parte
desta campanha demonstrando que a formação de uma tradição intelectual
predominantemente acadêmica concentrada em São Paulo durante a década de 1970
avaliou o lugar de Sodré na tradição historiográfica brasileira de forma muito negativa
(SILVA, 2001, p. 10). Os trabalhos de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1972; 1984),
Carlos Guilherme Mota (1977), Giselda Mota (1986), Marilena Chauí (1978; 1983) e
Caio Navarro de Toledo (1977) se destacam neste projeto.1 De acordo com SILVA,
Desde então, Sodré continuou a ser uma referência para muitos campos
temáticos da pesquisa universitária (imprensa, militares, literatura),
englobando diferenças críticas, sem que a discussão sistemática sobre sua
obra tenha merecido uma revitalização. Pelo contrário, a tendência ao
silenciamento sobre esse trabalho sugere que seu autor foi excluído de
qualquer horizonte historiográfico, apesar de alguns de seus textos serem
mantidos como indicação para muitos debates, inclusive, pela necessidade
de serem refutados a partir de outras problemáticas (2001, p. 11).
1 Referência às seguintes publicações: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem
escravocrata. São Paulo: IEB, 1972; FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. O tempo das ilusões. In:
CHAUÍ, Marilena; FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Ideologia e mobilização popular. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978; MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira: pontos de
partida para uma revisão histórica. São Paulo: Ática, 1977; MOTA, Giselda. Historiografia. Bibliografia.
Documentos. In: MOTA, Carlos Guilherme. 1822 – Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1986; CHAUÍ,
Marilena. Seminários. São Paulo: Brasiliense, 1983; CHAUÍ, Marilena; FRANCO, Maria Sylvia de
Carvalho. Ideologia e mobilização popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978; TOLEDO, Caio
Navarro de. ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática, 1977.
23
Colégio Militar do Rio de Janeiro, começou a colaborar com textos de ficção para a
revista A aspiração, pertencente à sociedade literária da instituição (Ibidem, p. 15). Já
aos 18 anos, estreou na imprensa com o conto “Satânia”, premiado e publicado na
revista carioca O Cruzeiro (Idem). Em 1931, completando 20 anos, ingressou na
Escola Militar de Realengo, optando pela artilharia, e esse momento marca o início de
uma trajetória pessoal que combinará ao longo de sua vida a vocação intelectual com
a vocação militar (Ibidem, p. 14). Nos anos que se seguem ao início dessa formação
na oficialidade do Exército, Sodré continuou sua colaboração na imprensa e produziu
sua primeira obra, História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos,
publicada no ano de 1938. Conforme a análise realizada por NETTO, seu caráter
pioneiro no âmbito de uma abordagem global da nossa história literária numa
perspectiva marxista e a interpretação do Brasil ali inscrita – mesmo que ainda de
caráter incipiente e que será depois revisado pelo próprio autor na década de 60 –,
assegura o lugar de Sodré ao lado de outros intérpretes do Brasil do período como
Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda (1992, p. 37; ALVES
FILHO, 1998, p. 9).
Entre tantos deslocamentos e transferências realizadas por conta da carreira
militar, Sodré estreitou os laços com os meios intelectuais e passou a colaborar tanto
com a imprensa paulista quanto com a carioca. Neste período, integrou a chapa
vitoriosa da eleição de 1950 para a direção do Clube Militar – chapa nacionalista que
encabeçava a campanha O petróleo é nosso – e assumiu a Direção Cultural do Clube.
Como indica NETTO, os desdobramentos desse período contribuíram de forma
significativa para a definição do perfil político e intelectual de Sodré (2011, p. 17). Alvo
da perseguição da chapa vencida, Sodré foi transferido em 1951 para uma unidade
militar do Rio Grande do Sul de onde só retornaria no ano de 1955, que marca também
seu ingresso nas cadeiras do ISEB. Marcando um momento de intenso engajamento
político-intelectual, foi neste período que Sodré produziu boa parte de suas
intervenções mais significativas no campo da historiografia e da tradição marxista
brasileira. Como destaca NETTO:
historiador, observa que “vincular as teses de Sodré às teses que se vinculam ao PCB
é um equívoco.” (2011b, p. 91).
Outro apontamento relevante pode ser encontrado ao abrirmos a questão de
sua passagem e participação pelo ISEB. Como já citado, NETTO sustenta que os
acontecimentos do início da década de 1950 contribuíram significativamente para a
definição do perfil político e intelectual de Sodré (2011, p. 17). Significaram o início e
o fim do “exílio interno” que passou em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, entre 1951 e
1954, e o início de um longo período em que residirá no Rio de Janeiro, cidade a que
retorna em 1955, para lecionar no ISEB. Em suas memórias, relatando seu retorno ao
Rio de Janeiro, o autor destacou que o ponto positivo do isolamento sulino, do ponto
de vista da cultura, foi o “afastamento da agitação, e particularmente da agitação
política, o sossego que permitia a meditação, os estudos, a preparação dos trabalhos
intelectuais.” (SODRÉ, 1990, p. 132). Aludindo à sua relação com o sociólogo Alberto
Guerreiro Ramos e sua aproximação ao Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia
e Política (IBESP) – que viria a se tornar o já aludido ISEB –, Sodré relata:
Outro elemento que aponta a riqueza deste período em sua trajetória é sua
produção bibliográfica. Para além da quantidade de obras, são deste período e dos
anos seguintes suas obras mais estudadas e discutidas: a Introdução à revolução
brasileira (1958); a revisão e reedição da obra História da literatura brasileira ([1ª
edição de 1938] [3ª edição revista e ampliada em 1960] 1964a); a Formação histórica
do Brasil (1962); a coleção História Nova (SANTOS, et. al., [1963] 1993); a História da
burguesia brasileira (1964b); a História militar do Brasil (1965); entre outras que
marcaram os debates travados neste conturbado período.
Levando em consideração esta produção, PINTO propõe uma periodização
que atenta às particularidades desta trajetória. Para o autor, a produção de Sodré
pode ser pensada em dois momentos cronológicos distintos: o primeiro, de 1938 à
1945; e o segundo, de 1958 à 1964 (2011b, p. 152). Segundo o analista:
28
Entretanto, é preciso constar que este relativo silêncio do período pode ser
tensionado se observarmos que se trata de um momento em que verificamos uma
série de eventos não menos importantes de sua trajetória: foi nomeado professor da
disciplina História Militar na Escola de Estado-Maior no Rio de Janeiro, no ano de 1948
(CUNHA, 2013, p. 210); integrou a chapa nacionalista e vitoriosa nas eleições para o
Clube Militar de 1950, ligada à campanha O Petróleo é nosso (Ibidem, p. 213); dirigiu,
naquela instituição, entre 1950 e 1951, seu Departamento Cultural e,
consequentemente, a então prestigiosa Revista do Clube Militar (Ibidem, p. 218).
Ainda, segundo a hipótese de CUNHA, foi no âmbito da docência na Escola
de Estado-Maior que o historiador teve contato com a obra do marxista húngaro
György Lukács (2011a, p. 243-245). Importante leitor e difusor da obra de Lúkacs no
Brasil, KONDER sustentou, em seu ensaio sobre Sodré, que a utilização das teorias
29
Esta recomposição institucional ainda seria afetada por outras crises, mas PINTO
destaca, por exemplo, que se em 1958 o nosso historiador lecionou 22 sessões de
aulas e coordenou 3 seminários, no ano de 1959 o número passaria para 53 sessões
de aula e 4 seminários (2011b, p. 157). Portanto, mais do que uma crise institucional,
as consequências da ruptura de 1958 levaram também a um reposicionamento do
historiador nos quadros da instituição.
O terceiro fator que gostaríamos de destacar diz respeito a outra inflexão, esta
ocorrida no cerne da orientação política do PCB, que veio a afetar tanto o
desenvolvimento de nossa tradição marxista quanto o cenário político-cultural dos
anos que antecederam o golpe de 1964; nos referimos à Declaração sobre a política
do PCB de março de 1958. De acordo com Antônio Albino Canelas RUBIM:
2 Para uma consulta integral aos números, índices e conteúdos da Revista Estudos Sociais, conferir:
ARIAS, Santiane. A revista Estudos Sociais e a experiência de um “marxismo criador”.
Dissertação (Mestrado em Sociologia), Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Campinas, p. 187, 2003.
31
A Coleção História Nova (CHN) foi uma obra polêmica tanto em seus
objetivos, quanto em sua recepção e posterior interpretação por parte de diversos
analistas, mas também por seus autores. Logo, cabe analisar algumas destas
controvérsias, sumariar questões de pesquisa e dar forma ao objeto específico sobre
o qual nos debruçaremos em seguida.
Concebida no calor dos anos das Reformas de Base, em pleno governo de
João Goulart, a CHN foi elaborada através de uma intersecção complexa entre as
atividades realizadas por diversos intelectuais e instituições que permeavam o cenário
político cultural de esquerda do pré-golpe. Enquanto projeto didático-editorial, foi
produto de um esforço conjunto de integrantes quase simultâneos do ISEB, da FNFi,
do PCB e do MEC. Sendo de Sodré o papel de diretor deste esforço, os membros que
integraram o grupo foram: Joel Rufino dos Santos, Pedro Alcântara Figueira, Maurício
Martins de Mello, Pedro Celso Uchôa Cavalcanti Neto e Rubem César Fernandes;
representando a ponte entre estes e o MEC, Roberto Pontual, então diretor da
Campanha de Assistência ao Estudante (CASES).
Denominada 30 anos depois por um de seus coautores como a “reforma de
base no campo do ensino da História” (SANTOS, et. al. 1993, p. 16), a CHN teve como
objetivo declarado a “tentativa já impostergável de reformular, na essência e nos
métodos, o estudo e o ensino de nossa história” (Ibidem, p. 115). Organizada através
de monografias redigidas coletivamente, a coleção teve três edições: a primeira,
publicada em 1964, pelo convênio ISEB-CASES, ambos vinculados ao MEC; a
segunda, publicada em 1965, pela Editora Brasiliense, do marxista paulista Caio
Prado Júnior, através de intervenção de Sodré; e a terceira, publicada em 1993,
reedição idealizada pelo editor Cláudio Giordano em virtude do seu trigésimo
aniversário de lançamento, trazendo importantes depoimentos inéditos de seus
autores. Cada edição apresentou projetos editoriais distintos e, inclusive, enquanto a
primeira edição foi publicada sob o título Coleção História Nova, as duas últimas
trouxeram o título História Nova do Brasil (CARDOSO, 2016, p. 133-142).
De acordo com os dados trazidos por FONSECA, os primeiros projetos
apresentavam os seguintes planos:
34
História da FNFi era controlado pelo PCB (Ibidem, p. 238). Em seguida, referindo-se
à obra de Sodré, alega que sua interpretação marxista representava uma: “Estratégia
etapista, diga-se de passagem, calcada numa aplicação mecânica do materialismo
clássico.” (Ibidem, p. 242). Essas coordenadas levam então à seguinte proposição:
“Seja como for, a proposta do Ministério da Educação de confiar ao ISEB, em
particular a Nelson Werneck Sodré, a tarefa da elaboração da História Nova ajustava-
se como uma luva aos propósitos do Partido.” (Idem). Seu trabalho prossegue então
aproximando o conteúdo da CHN, que é brevemente analisado pelas autoras, como
representação ipsis litteris da militância comunista, nos termos dos depoimentos e
autocríticas realizados pelos autores por ocasião da reedição da coleção em 1993.
Em trabalho de outra natureza, apresentando um acesso vasto das fontes e
dos documentos do período, a pesquisadora Vanessa Clemente Cardoso realizou
uma análise sobre a CHN como trabalho didático, estabelecendo um paralelo entre o
projeto e outras produções semelhantes presentes na tradição historiográfica do
período. Em determinado ponto, a autora delimita que sua pesquisa analisa o
conteúdo da coleção investigando a sua relação com o pensamento de intelectuais
brasileiros que tiveram obras referenciadas nos volumes: Caio Prado Júnior, Celso
Furtado e Nelson Werneck Sodré (CARDOSO, 2019, p. 32). Nesta exposição, o
pensamento de Sodré é tomado quase como externo ao projeto, como algo ao qual
pode-se comparar, estabelecer paralelos, e não como um autor que está
umbilicalmente ligado ao projeto. Através de uma importante análise histórica dos
centros de produção historiográfica e do movimento estudantil do período de 1930 a
1960, a autora levanta a hipótese da presença, na coleção, de elementos da
Declaração da Bahia, documento redigido em 1961 no âmbito da União Nacional dos
Estudantes (UNE). Segundo a autora, a presença de temas como a “libertação do
Brasil do imperialismo e do colonialismo por meio da sua independência econômica,
social, política e cultural” na CHN remetem à influência do movimento estudantil no
seu processo de produção (Ibidem, p. 78). Assim, localizando essas matrizes da
escrita da CHN, os autores são tomados em suas trajetórias e depoimentos para o
estudo da coleção em função da crítica aos compêndios didáticos do período.
Desde já, nosso trabalho busca propor uma angulação diferente das questões
que se abrem a partir do estudo da CHN. Um trabalho que já propôs uma leitura
semelhante foi o de Rodrigo Czajka, localizando a escrita do projeto no plano da
organização das esquerdas culturais no final da década de 1950 e início da década
37
3 O texto publicado em 1965 compôs uma coletânea de textos reunidos sob título homônimo e
publicados em 1986 pela Editora Vozes. Ver: SODRÉ, Nelson Werneck. História da História Nova.
Petrópolis: Vozes, 1986.
39
O que significa dizer que, ao tomar como objeto o fenômeno dos intelectuais,
as supostas bem estabelecidas fronteiras disciplinares perdem seu vigor e ganha
força a postura de se recorrer, sem prejuízo à análise, às contribuições de outros
campos do saber.
A reflexão sobre o estatuto do intelectual, o significado desta figura social, do
seu papel, de sua atividade e de suas relações, aponta questões importantes para
pensarmos a perspectiva de Williams. Neste sentido, parte das dificuldades referidas
acima residem no caráter vago e problemático do termo “intelectuais” e o recurso ao
histórico do termo no Caso Dreyfus parece indicar também a origem destas
dificuldades.
Conforme Leclerc, o surgimento do termo remonta ao polêmico Caso Dreyfus
ocorrido no ano de 1894 na França, onde um oficial judeu, o capitão Alfred Dreyfus,
foi condenado à deportação perpétua por alegadamente ter entregue documentos
oficiais à embaixada da Alemanha. No ano de 1896, o novo comandante chefe do
serviço de informações descobre que Dreyfus era inocente, porém o exército busca
abafar o caso. Constituem-se assim dois campos, de um lado os defensores de
Dreyfus, os “dreyfusistas”, republicanos, antimilitaristas, socialistas, reunidos da Liga
dos Direitos do Homem; de outro lado, os “antidreyfusistas”, nacionalistas, anti-
semitas e clericais reunidos na Liga da Pátria Francesa. Em janeiro de 1898 o ilustre
escritor Émile Zola publicou a carta J’accuse onde toma a defesa de Dreyfus. Se no
mesmo mês Georges Clemenceau referiu-se ao grupo de personalidades que
subscreveu a carta de Zola como o “manifesto dos intelectuais”, foi Maurice Barrès,
antidreyfusista, que, utilizando o termo como um insulto, assegurou seu significado
histórico (LECLERC, 2004, p. 53-55):
de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de
vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e também por) um público” (SAID, 2005,
p. 25) para, em seguida, referir-se da seguinte forma:
Cabe ainda notar que, abordando os limites do estudo das formações, o autor
observa que o seu estudo não pode prescindir da extensão de sua análise para a
história geral, “onde a ordem social como um todo e todas as suas classes e
formações podem ser adequadamente tomadas em consideração.” (Ibidem, p. 85). O
estudo das formações proporciona o levantamento de questões sociológicas e
históricas que podem ser levantadas para “sugerir novas áreas para pesquisa
pormenorizada” (Idem).
Como nos referimos, a última entrada de questões possíveis para se ler o
fenômeno dos intelectuais na perspectiva de Williams é através do seu conceito de
“estrutura de sentimento”. Segundo Maria Elisa Cevasco, o crítico inglês cunhou este
conceito no intuito de “descrever a relação dinâmica entre experiência, consciência e
linguagem, como formalizada e formante na arte, nas instituições e tradições”
(CEVASCO, 2001, p. 151). Relação dinâmica que é investigada através da inserção
da tensão entre passado e presente na experiência histórica da produção cultural
(WILLIAMS, 1979, p. 130-131). Portanto, propõe um tipo de enquadramento da
experiência social das práticas culturais que compreende-as na expressão vivida de
um processo de transformação:
4 Não cabe aqui listar a amplitude e diversidade desses estudos, mas para ilustrar, em parte, essa
afirmação, consulte-se os ricos trabalhos e debates apresentados no segundo volume da coleção As
Esquerdas no Brasil organizada por Jorge Ferreira e Daniel Aarão Reis: FERREIRA, Jorge; REIS,
Daniel Aarão (orgs.). Nacionalismo e reformismo radical (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007. (As Esquerdas no Brasil; v.2).
51
Ao longo dos anos setenta, tal interpretação difunde-se e ganha solidez entre
aqueles intelectuais que, por permanecerem concentrados na vida
acadêmica, mantinham-se distantes da atividade política direta. São
exatamente esses intelectuais, que não têm uma participação política direta,
que levam às últimas consequências, do ponto de vista intelectual, a crítica
ao nacionalismo e o questionamento do populismo (2001, p. 86-86).
5 Para tanto, consulte-se os trabalhos de BARIANI JUNIOR (2005), de MOTTA (2000), de PEREIRA
(1998) e de OLIVEIRA FILHO (2000).
55
sentido williamsiano já exposto — não podem ser analisadas tão somente como
reflexo das relações entre produtores e Estado, enfatizando a capitulação daqueles
por este; ou reflexo das formulações teóricas acerca das definições de “ideologia”,
“realidade nacional” e “desenvolvimento” formuladas pelos núcleos intelectuais do
período; ou como derivação quase necessária dos supostos erros políticos das
esquerdas. Como alternativa a tais narrativas, acreditamos que o ISEB pode ser visto
como uma instituição cultural oriunda de um processo de integração e articulação
entre intelectuais do Rio de Janeiro e de São Paulo – portanto pertencentes a
agrupamentos intelectuais e extrações sociais distintas – cuja equação que operava
como fator aglutinador era a preocupação teórica e política com os “problemas
brasileiros” na forma que se apresentavam em seu momento histórico. Em sua fase
pré-institucional, foi notadamente uma formação cultural no sentido williamsiano, fruto
da auto-organização de um grupo de intelectuais que, para além das reuniões no
Parque Nacional de Itatiaia, produziu uma intervenção pública simbolizada pela edição
dos Cadernos do Nosso Tempo.
Além do importante estudo de seus horizontes intelectuais na forma de sua
produção teórica, nos parece que se faz necessário abordar a produção do período
tendo em vista sua realização, seus modos de realização, o alcance de suas atuações,
na especificidade de suas formações e instituições culturais, no campo de tensões
que se constitui no seu interior, na dinâmica das mudanças sociais e culturais
investigadas em seus fatores sociais mais amplos; tomando, portanto, a produção
cultural do período como um campo fundamental para se entender as análises e
disputas sobre o Brasil contemporâneo.
É neste quadro de preocupações que surge nosso recurso ao conceito de
brasilidade revolucionária forjado por Marcelo Ridenti. Tendo sido definido na obra
Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política, publicada no ano de 2010,
o conceito acompanha o fio condutor das interpretações anteriores do autor sobre a
produção cultural das décadas de 50 e 60, precisamente através do conceito de
romantismo revolucionário, derivado da obra de Michael LÖWY e Robert SAYRE
(2015).
Nesta leitura, o autor observa que a formação de uma brasilidade, de um
imaginário da nacionalidade própria do Brasil (RIDENTI, 2010, p. 9), pode ser
encontrada em elementos do século XIX, mas se desenvolveu no pensamento social
brasileiro a partir dos anos 1930 “de formas distintas e variadas à direita, à esquerda,
60
6 Acreditamos que parte das intenções deste esforço interpretativo estão inscritas e sintetizadas no
artigo Cultura e política brasileira: enterrar os anos 60? (RIDENTI, 2003, p. 197-212).
62
para além da esfera estatal ou da influência das orientações do PCB ou do ISEB, mas
também de refletirmos sobre estas ambiguidades, estas relações complexas e
incertas que se estabelecem no campo da produção cultural, especialmente mais ricas
do que leituras que circunscrevam-nas à mero epifenômeno de relações estruturais
pressupostas.
É o caso, por exemplo, da leitura que Ridenti realiza sobre as relações entre
artistas e intelectuais com o PCB buscando uma alternativa às leituras limitantes que
tomam ou a militância dos primeiros como “parte de um desejo de transformar seu
saber em poder” (Ibidem, p. 57) ou a relação entre estes e os dirigentes comunistas
como mera manipulação dos primeiros pelos últimos (Idem). Se com RUBIM podemos
visualizar que a “organização do campo cultural e, em especial, dos intelectuais pode
ser considerada uma das mais permanentes e nítidas iniciativas dos comunistas”
(2007, p. 427), a perspectiva de RIDENTI permite-nos compreender – nas vicissitudes
da história do PCB desde 1947, quando foi colocado novamente na ilegalidade, até o
golpe de 1964 – que a relação entre estes produtores culturais e o partido não eram
de mão única (2010, p. 61):
Mais importante ainda, cabe realçar outro lado da questão: para além da
condição “ornamental” a que eram submetidos, havia contrapartidas que
mantinham intelectuais e artistas na órbita partidária, apesar de tudo. Em
suma, não se deve caricaturar a ação cultural do partido nos anos 1950,
significativa em áreas como o teatro, o cinema, as artes plásticas, a
arquitetura, a imprensa, a literatura, o ensaísmo, a educação popular etc. As
mudanças no PCB dos anos 1960 – que contribuíram para o florescimento
cultural e político brasileiro na época – vinham sendo lentamente maturadas
no período em que ainda prevalecia o stalinismo (Idem).
(...) era significativa a luta contra o poder remanescente das oligarquias rurais
e suas manifestações políticas e culturais; havia um otimismo modernizador
com o salto na industrialização a partir do governo Kubitschek, sem contar o
imaginário da revolução brasileira – fosse ela democrático-burguesa (de
libertação nacional) ou socialista –, impulsionado pelos movimentos sociais
de então (Idem).
Trabalhamos até esta etapa do trabalho com uma caracterização voltada para
preparar uma leitura da realização da Coleção História Nova que colocasse-a em
perspectiva distinta das já trabalhadas e demonstradas em nosso primeiro capítulo.
Parte importante de nosso roteiro analítico é a dimensão do significado de sua
realização na conjuntura do pré-golpe. Analisaremos este plano neste momento para,
em seguida, abordar os aspectos da formação do grupo e como sua atividade pode
revelar elementos mais amplos repercutidos no cenário intelectual do período. As
fontes principais deste último capítulo serão os depoimentos dados por seus autores
em determinadas ocasiões e os documentos presentes em IPMs (especificamente da
História Nova e dos Generais da Reserva), fontes essenciais, mas certamente não
exaustivas, para examinarmos suas relações intelectuais.
Importante relembrar a exposição que realizamos no início deste trabalho, de
que a CHN foi um projeto realizado através de uma trama institucional entre o ISEB,
a FNFi, o MEC e o PCB. Identificamos estes pontos de contato ao visualizar os
vínculos de suas personagens: Nelson Werneck Sodré, então professor e chefe do
Departamento de História do ISEB; Roberto Pontual, diretor da CASES (Campanha
de Assistência ao Estudante), órgão ligado ao MEC, na época chefiado pelo Ministro
Paulo de Tarso Santos; os estudantes do curso de História da FNFi, Joel Rufino dos
Santos, Maurício Martins de Mello e Rubem César Fernandes, e os professores
recém-formados pela mesma instituição e diretores do seu Boletim de História, Pedro
Celso Uchôa Cavalcanti Neto e Pedro de Alcântara Figueira; da parte do PCB a
literatura sobre a CHN considera sua influência através da forma como imantava as
lutas do movimento estudantil e na sua importância como fator integrador na formação
do grupo.
Ao dispor seus suportes institucionais desta forma, podemos partir para uma
leitura que tensione as ambiguidades que marcam as relações entre produtores
66
A História Nova foi mais militante do que acadêmica, mais política do que
pedagógica. Atendeu ao clamor das reformas de base do governo Goulart e
vislumbrou, por intermédio das monografias – distribuídas por correio a todos
os professores de História do Brasil –, o início de uma concretização de
reforma educacional, uma das muitas reivindicadas pelos movimentos
sociais. (Ibidem, p. 341)
70
Nos parece plausível relativizar este nexo entre a CHN e as reformas, visando
também compreender suas intenções, seu ritmo e suas inquietações a partir de outros
aportes. Como observado pela leitura de outras pesquisadoras sobre o conteúdo das
reformas de base no campo da educação, estas estavam muito mais ligadas às pautas
do Plano Nacional de Alfabetização, iniciativa em que ficou marcada a intervenção do
trabalho do educador Paulo Freire na história da educação brasileira, ou à questão
dos “excedentes”, ponto sensível da pauta da Reforma Universitária. A dimensão
militante e política da coleção talvez se relacionasse muito mais à articulação de seu
projeto com os processos de organização cultural que marcaram a produção cultural
do período do que direta e imediatamente com o “clamor das reformas”.
A pesquisadora lê a “ameaça” representada pela CHN diante da oposição
reacionária, tanto na campanha da imprensa quanto na forma como se expressou na
proibição de sua circulação e na perseguição de seus autores, como a “concretização
de uma reforma educacional na área de história” (MENDONÇA, 1990, p. 35): “Esse
fato tem um significado político muito importante, pois se o governo possui condições
de realizar uma reforma – e o faz – na educação, o mesmo poderia ocorrer nas demais
reformas de base.” (Idem). A dimensão militante da CHN é também entendida nas
atividades realizadas nos sindicatos, grêmios estudantis e associações de bairros
(Ibidem, p. 35).
A comparação realizada pela autora entre a CHN e os compêndios didáticos
a leva a considerar suas diferenças nos seguintes termos: relacionar a história do
Brasil à história internacional; romper com a história política que enfatiza somente a
ação de heróis isolados; e estabelecer a relação entre presente e passado, apontando
a necessidade de se buscar soluções para os problemas contemporâneos (Ibidem, p.
63-64). Neste último ponto é importante acrescentar: esta última preocupação não se
trata somente do resultado da ruptura com a historiografia oficial; a busca dessas
soluções não é uma busca genérica ou abstrata, é uma busca mediada pelas lutas
políticas do período e por seu cenário político-intelectual de forma mais ampla. A
última sentença do volume 7 da coleção expõe esta mediação, referindo-se ao quadro
da abolição da escravidão:
compêndios didáticos (Idem), resta uma lacuna sobre aquelas possíveis relações ou
tensões entre a influência da historiografia francesa e a influência de um pensamento
de cariz marxista via Sodré ou via PCB.
Segundo MENDONÇA, “a notícia de que Nelson Werneck Sodré estava
precisando de assistentes para um trabalho no Ministério da Educação chegou à
Faculdade Nacional de Filosofia via Partido Comunista, que influenciava
consideravelmente a base estudantil universitária.” (1990, p. 30). Em depoimento, Joel
Rufino dos Santos também suscitou a presença do partido nesta mediação:
Não, não! Nós tínhamos uma crítica muito grande em relação à perspectiva
de História que era dominante no curso. Tínhamos professores muitos
tradicionais, Eremildo Viana, em suma, era muito tradicional, e nós víamos
que não correspondia com a realidade, e a nossa formação era marxista.
Então, era natural que nós lançássemos a nossa atenção para as questões
sociais (Ibidem, p. 319).
Afinal de contas, como é que “pirralhos”, alguns deles ainda não diplomados,
ousavam afrontar o establishment universitário? Esta “inveja” de nossas
múltiplas atividades precede a História Nova. E não era somente causada por
nós, apesar de termos sido, nós do Curso de História, mais ativos
culturalmente. Era o clima reinante em toda a FNFi, o espírito do estudantado
de toda uma geração (Ibidem, p. 56).
76
Joel Rufino dos Santos também ressalta este aspecto da produção cultural e
mobilização política do período numa passagem anedótica:
Cumpre notar também que, neste período, o ISEB dirigido pelo professor
Álvaro Vieira Pinto – que também era professor na FNFi –, enfrentou diversas
dificuldades:
Werneck Sodré), Quem faz as leis no Brasil? (Osny Duarte Pereira), Porque os ricos
não fazem greve? (Álvaro Vieira Pinto), Quem dará o golpe no Brasil? (Wanderley
Guilherme), Quais são os inimigos do povo? (Theotônio Junior), Quem pode fazer a
revolução no Brasil? (Bolivar Costa), Como seria o Brasil socialista?, (Nestor de
Holanda), O que é a revolução brasileira? (Franklin de Oliveira), O que é a reforma
agrária? (Paulo R. Schilling), Vamos nacionalizar a indústria farmacêutica? (Maria
Augusta Tibiriça Miranda), Como atua o imperialismo iaque? (Sylvio Monteiro), Como
são feitas as greves no Brasil? (Jorge Miglioli), Como planejar nosso
desenvolvimento? (Helena Hoffman), A Igreja está com o povo? (Padre Aloísio
Guerra), De que morre nosso povo? (Aguinaldo N. Marques), Que É Imperialismo?
(Edward Bailby), Porque existem analfabetos no Brasil? (Sérgio Guerra Duarte),
Salário é causa de inflação? (João Pinheiro Neto), Como agem os grupos de pressão?
(Plínio de Abreu Ramos), Qual a política externa conveniente ao Brasil? (Vamireh
Chacon), Que foi o Tenentismo? (Virgínio Santa Rosa), Que é a Constituição? (Osny
Duarte Pereira); Desde quando somos nacionalistas? (Barbosa Lima Sobrinho),
Revolução e contra-revolução no Brasil (Franklin de Oliveira) (Idem).
Tomando a observação de CZAJKA, observamos que este convênio ainda
revela aspectos da experiência social destas práticas culturais, apontando o
compartilhamento de valores e sentimentos que informam a brasilidade revolucionária
do período:
Parece ser também este o caso da CHN, cujo projeto editorial fui elaborado
em convênio com a CASES em edições de treze por dezenove centímetros em que,
além de serem distribuídas para os professores cadastrados no MEC, dentre os vinte
e quatro mil exemplares de sua primeira impressão, três mil e quatrocentos e vinte e
cinco livros foram destinados à comercialização em livrarias do Rio de Janeiro
(CARDOSO, 2019, p. 113):
79
Jorge Miglioli, que foi assistente de Álvaro Vieira Pinto, também contribui com
seu relato para entendermos estas estratégias:
sintonia com as lutas políticas do período, pode indicar outro roteiro a ser percorrido
para compreender a formação dos processos de produção cultural concebidas no
interior do Instituto. O caso da formação da CHN em suas relações intelectuais pode
nos auxiliar a rastrear parte destes processos, localizados, certamente, nesta última
fase da vida da instituição.
Ainda, o relato de Pedro Celso assinala o contato com Sodré e a formação do
grupo no âmbito destas atividades externas da instituição:
Nós éramos colegas, tinham alguns que eram mais velhos do que eu. O
Sodré nos conheceu no pré-vestibular, porque nós tínhamos uma atividade
já de bastante qualidade. Entrar na faculdade era difícil, então, tínhamos os
cursinhos pré-vestibulares (2019, p. 333-334).
O depoimento de Joel Rufino dos Santos aponta para outro fator, comum
também nos depoimentos de Rubem, Maurício e Pedro de Alcântara (Ibidem, p. 337;
p. 319; p. 328), sobre a mediação do PCB nestas relações:
Assim, sem tratar esta relação como uma “comunização” do ISEB ou como
uma forma de controlar e direcionar suas atividades a partir da atuação de seus
membros, a influência e penetração do partido nos meios intelectuais parece ter
permitido-lhe utilizar estas plataformas institucionais abertas pela atmosfera política
radicalizada que lançava-os na mesma trincheira das lutas do período. É a época da
criação da Frente de Mobilização Popular, por Leonel Brizola, congregando boa parte
das esquerdas na campanha de pressão pela realização das reformas de base pelo
governo de Goulart (FERREIRA, 2013, p. 119):
Diria Joel Rufino dos Santos que a própria concepção do projeto acompanhou
propositivamente o clima de agitação: “Aquele era o clima, aqueles eram os cenários,
aqueles éramos nós, os jovens isebianos, aquela era a nossa ação.” (SANTOS, 2005,
p. 43-44). Em nossa leitura, este clima e a posição privilegiada ocupada por Sodré no
cenário intelectual, num momento de sua trajetória já marcado pela dedicação
exclusiva à sua vocação intelectual e com presença expressiva nos círculos
intelectuais de esquerda, refletiu no ritmo e nos interesses que ficaram marcados na
atuação do grupo. Em depoimento de Ênio Silveira, dono da editora Civilização
Brasileira, podemos constatar esta localização de Sodré no cenário:
Durante todo esse período (segundo semestre de 1963 até o golpe de 1964),
somente uma vez o trabalho da História Nova foi interrompido. Deu-se isso
quando do assassinato de Kennedy, em novembro de 1963. Numa semana
resolvemos publicar um volume sobre Quem matou Kennedy? Cada um de
nós preparou um capítulo, com notas, recortes, bibliografia, enfim, material
que discutíamos entre nós e depois levávamos à mesa de Nelson. Ele,
filtrando o nosso trabalho, acrescentando o seu próprio, com aquela facilidade
incrível de escrever, fez que, quinze dias depois do assassinato, estivesse
nas livrarias um volume que veio a esgotar-se em menos de um mês, apesar
da grande tiragem. Lembro-me que, pelo menos no Rio, a prontidão da
resposta ao fato histórico causou repercussão. (Julgo que foi nesta época do
Quem matou Kennedy? que Sodré, chegando sempre pontualmente cedo no
ISEB, teve a surpresa de nos ver já trabalhando e exclamou: “É uma forja!”)
(CAVALCANTI NETO, 1993, p. 60).
Como lembrou Joel Rufino dos Santos, esta não seria a primeira vez que os
jovens estudantes e historiadores, na companhia de Sodré, estariam no Sindicato dos
Metalúrgicos. No ano de 1963: “O professor Werneck Sodré (ele preferia não ser
chamado de general) abriu e fechou o curso (seis aulas-conferências), deixando as
aulas intermediárias para seus jovens assistentes.” (SANTOS, 2005, p. 43).
Ainda, demostrando outra atividade desempenhada pelo grupo, além da
publicação da obra Quem matou Kennedy?, Pedro Celso constou que:
período, é também no início do anos 1960 que reformula quase integralmente o texto
da História da literatura brasileira publicado inicialmente em 1938. O peso dado pelo
autor à importância da CHN pode também indicar aspectos da continuidade deste
conjunto de interesses veiculados em seu projeto.
Ainda, Sodré recebeu um bilhete de Maurício Martins de Mello direto do
cárcere que também expressava o desejo de continuar trabalhando com o grupo
“Alegria de Estudar”, como revela:
intelectual brasileiro. Não só pela sede da editora, em São Paulo, apontando para
outros públicos, mas pela própria “filiação” da Revista Brasiliense à figura de Caio
Prado Júnior, notoriamente conhecido por suas tensões com a direção do PCB.
Assim, entrecruzadas, as intenções do grupo não passam somente pela reedição da
CHN, mas possivelmente também pelo alargamento dos debates, do seu alcance, de
sua eficácia política ou até mesmo de sua participação em círculos intelectuais
distintos daqueles do Rio de Janeiro. Tratam-se de hipóteses levantadas pela
constatação destas relações intelectuais, mas parecem plausíveis ao menos para
colocar questões iniciais para pesquisas futuras que busquem trabalhar com a
trajetória de Sodré nestes anos ou com o cenário intelectual brasileiro no pós-golpe.
O historiador ainda revela outras iniciativas envolvendo a CHN: em dois
momentos refere-se à tratativas com um contato da Tchecoslováquia, evidenciando o
interesse de publicar não somente as obras de sua própria autoria, mas também a
própria produção do grupo (Ibidem, p. 63; p. 80). Em uma das passagens, o contato
estrangeiro é quem demonstra interesse pela CHN, ilustrando o alcance que esta teve
nos meios intelectuais:
os documentos possuem data, mas não indicam o local de sua realização. Outro fator
importante obstaculiza a compreensão de seu significado: em nossas pesquisas não
encontramos até o momento nenhum trabalho que tematize o período da década de
60 em diante da trajetória do historiador, portanto, não podemos no momento levantar
hipóteses sobre a realização deste curso, tendo em vista a impossibilidade sequer de
identificarmos onde o autor se localizava no período, quais eram os meios intelectuais
em que circulava, entre outros fatores que poderiam nos permitir encontrar mais
pistas. Entretanto, minimamente podemos verificar com este documento mais uma
indicação de que o legado da CHN ainda se fez presente em seu pensamento e
trajetória, para além das atividades do ISEB e para além das tentativas de
reagrupamento da formação cultural que constituiu com os jovens historiadores da
FNFi; a recorrência destes elementos da CHN em sua trajetória indicam ainda que o
significado de sua realização para o autor foi muito mais amplo do que, por exemplo,
o atendimento de uma demanda ministerial ou uma preocupação restrita à má
qualidade dos compêndios didáticos.
Por fim, a leitura que buscamos realizar sobre a realização da CHN não só
extrapolou a dimensão educacional do projeto, enfatizada de forma unânime pelas
pesquisas realizadas até então sobre a coleção, mas, investigando sua dimensão
intelectual, seus modos de realização, as relações sociais e de produção cultural em
que foi concebida, identificou uma série de informações ignoradas até então que
podem alargar o campo de pesquisas sobre a atuação e a trajetória das esquerdas ao
longo da década de 1960.
97
CONCLUSÃO
por conta do golpe de 1964. Dentre estas atividades que apontavam para além da
CHN, encontramos um projeto de revistas em quadrinhos sobre a história do Brasil, a
tentativa de realizar alguma forma de publicação que levasse ao público a concepção
de História desenvolvida pelo grupo quando da redação da CHN e interessante
tratativa entre Sodré e Caio Graco Prado através de Maurício Martins de Mello
demonstrando o interesse do historiador em reativar a Revista Brasiliense.
Especialmente diante desta última informação, verificamos a possibilidade de
interpretá-la como um deslocamento de Sodré e do grupo no interior do próprio cenário
intelectual, objetivando o alcance de novos públicos, a ampliação do alcance de sua
eficácia política e mesmo o alargamento de seus debates tendo em vista a
participação em outros círculos intelectuais.
Finalmente, apresentamos um documento físico encontrado no acervo de
Sodré que revela um programa de aula de um curso datado de 1981 denominado
“curso História Nova do Brasil”. Dezessete anos depois de sua realização e também
da dissipação do grupo na conjuntura da ditadura, a História Nova ainda ocupava um
lugar nas reflexões do historiador, mas, tendo em vista a lacuna dos estudos sobre a
sua trajetória nas décadas de 1970, 1980 e 1990, não pudemos mais do que lançar
sugestões sobre o significado deste documento. Este documento, além de indicar a
permanência da CHN no horizonte intelectual de Sodré para além das experiências
do grupo “Alegria de Estudar”, do ISEB ou do período do pré-golpe, pode também
apontar possíveis encaminhamentos para pesquisas futuras que tratem tanto da
trajetória do autor quanto de aspectos mais particulares sobre sua obra.
102
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O AUTOR e o livro [Entrevista com Nelson Werneck Sodré]. [S.n.], Rio de Janeiro,
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ANEXOS
Anexo A – “NELSON Werneck Sodré fala sobre as origens do ISEB. Última Hora,
São Paulo, 17 out. 1963”
112
Anexo D – O Autor e o livro [Entrevista com Nelson Werneck Sodré]. [S.n.], Rio de
Janeiro, 1965.
150
”
156
157
158