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Vidas em Movimento1

Andréa Lobo
Universidade de Brasília

Resumo:
A emigração é um fenômeno central para a compreensão da sociedade cabo-verdiana e,
por esse motivo, tem sido foco de diversos estudos sobre as ilhas. Tais estudos abordam
o fluxo migratório sob variados aspectos; tanto da perspectiva de quem emigra quanto
daqueles que ficam nas ilhas; a evolução histórica e a centralidade da emigração nesta
sociedade; a saída de homens e mulheres; os fluxos de bens e valores que se constituem
no contexto do fluxo de pessoas; dentre outros. Numa tentativa de ampliar o
entendimento sobre a sociedade cabo-verdiana, o presente trabalho pretende abordar a
questão da centralidade de categorias como fluxo e movimento em outros domínios da
vida social no arquipélago. Com esse objetivo, trago para a análise a circulação de
crianças na esfera doméstica, buscando demonstrar como a movimentação de crianças
entre as casas é um elemento central para a reprodução social em, no mínimo, três
aspectos: no ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico, na construção das
trajetórias individuais e na manutenção de elos substanciais entre aqueles que emigram
e os que permanecem em Cabo Verde. Num contexto em que o movimento é um valor
importante, as crianças que circulam constroem, desde muito cedo, histórias de vida
percebidas como interessantes e, além disso, destacam-se como mediadoras entre as
pessoas, as casas e os países.

Palavras-chave: fluxos; circulação de crianças; Cabo Verde.

Introdução
A emigração cabo-verdiana é um fenômeno tão central que não passa
despercebida por estudiosos ou curiosos que se aproximem desta sociedade por alguma
razão. Não foi diferente no meu caso. Ao estudar a organização familiar em uma das
dez ilhas que formam o arquipélago, a ilha da Boa Vista, não pude deixar de analisá-la

1
Trabalho apresentado na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de
agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil. Agradeço ao PPGAS do Departamento de Antropologia da UnB pelo
apoio financeiro que viabilizou a participação neste evento.

1
levando em conta a emigração de mulheres que partem desta ilha em idade adulta,
deixando filhos, companheiros e demais familiares2.
Preocupada em entender como essas “famílias espalhadas” se configuravam e
como suas relações e sentimentos se mantinham em situações de distância física e
temporal prolongada, acabei por observar que a mobilidade das pessoas não se
encontrava restrita às situações de emigração de um dos membros, estando presente de
maneira importante em outras esferas do contexto familiar. Entender como a mobilidade
é um valor importante nesta sociedade é o objetivo deste trabalho. Para construir meu
argumento opto por uma via pouco usual em se tratando de um estudo sobre as ilhas, no
lugar de tratar do valor da mobilidade pela análise do fenômeno migratório, busco
encontrá-la no universo doméstico local.
Debruço-me, portanto, num tipo de movimento peculiar, a circulação de
crianças, com a intenção de demonstrar como a movimentação dos pequenos entre as
casas é um elemento central para a reprodução social em, no mínimo, três aspectos: no
ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico, na construção das trajetórias individuais
e na manutenção de elos substanciais entre aqueles que emigram e os que permanecem
em Cabo Verde. Num contexto em que o movimento é um valor importante, as crianças
que circulam constroem, desde muito cedo, histórias de vida percebidas como
interessantes e, além disso, destacam-se como mediadoras entre as pessoas, as casas e os
países.

Contextos familiares
A coesão familiar na sociedade cabo-verdiana depende da força dos mecanismos
para solucionar os riscos de uma estrutura que se especializou em ejetar alguns de seus
membros para além do sistema social3. Neste contexto, o pressuposto de que os
familiares têm que viver fisicamente juntos dá lugar à outra idéia de família. Os dados
que aqui apresento nos colocam diante de uma organização familiar marcada por
arranjos aparentemente contraditórios: que guarda características fortes da
4
matricentralidade, freqüentemente associada à família cabo-verdiana , mas que ao

2
Os dados aqui apresentados são oriundos de trabalho de campo realizado em Cabo verde, na Ilha da Boa
Vista, nos anos de 2004 e 2005 por ocasião de meu doutoramento. Para um estudo mais aprofundado ver
Lobo: 2006.
3
Para um resgate da importância da emigração na formação e história do arquipélago ver: Trajano Filho,
2009; Lobo, 2006; Dias, 2000; Carreira, 1983; Monteiro, 1997; Andrade, 1998; Batalha & Carling, 2008.
4
Os estudos que tratam da organização familiar em Cabo Verde (Solomon, 1992; Dias, 2000, Monteiro,
1997) salientam o laço fundamental e constituinte do conceito de família: a relação mãe-filho. Na Boa

2
mesmo tempo empurra as mulheres5 para a emigração na Europa; de famílias que
percebem o binômio mãe-filho como o vínculo mais importante, porém separam-nos em
nome da reprodução familiar; famílias que têm a criança como um valor fundamental,
mas que as colocam para circular entre casas e localidades; famílias que constroem a
idéia de parentesco por relações de partilha e proximidade, mas vivem os
relacionamentos parentais à distância. A questão é: tais valores seriam de fato ambíguos
ou contraditórios?
A análise que farei busca demonstrar que o limiar entre um sentimento de
pertencimento ou de quebra nas relações familiares depende de um equilíbrio na
manutenção dos diversos princípios de filiação social que mantêm as pessoas unidas.
Para construir meu argumento busco inspiração no debate sobre relatedness
sistematizado por Carsten (2004) em outro contexto etnográfico. A partir de um diálogo
com a teoria do parentesco (Radcliffe-Brown, 1952; Fortes, 1974; Schneider, 1984;
Needham, 1971) a autora propõe que se utilize o conceito de relatedness como
ferramenta teórica adequada para indicar as formas nativas de agir e conceituar as
relações entre as pessoas.
Neste trabalho, o conceito de relatedness será utilizado para pensar as relações
genealógicas enquanto formas primárias de estabelecer conexão, um primeiro contato,
uma primeira troca de fluídos. Porém, enfatiza que isto não é suficiente, pois há um
espaço que precisa ser preenchido por signos de proximidade: dar e receber,
dependência mútua, trocas recíprocas de materiais, cognitivas e emocionais. Como tento
mostrar pela etnografia que apresento, o domínio do parentesco precisa ser praticado em
solidariedade. Mais do que isso, se as relações de proximidade não acontecem dentro do
universo do sangue, buscam-se caminhos em outras vias, criando-se relações de
parentesco onde antes não existia.
Neste contexto, além de viver junto e ser criado na mesma casa, partilhar
experiências e coisas são as principais fontes de identificação pessoal de um indivíduo.
Sua posição na sociedade está marcada não só pelos laços de família, mas pela relação
com as pessoas que acompanharam seu processo de socialização. Dada a importância da
mobilidade – entre casas, povoados, ilhas e países – que acaba por gerar o que

Vista, esse laço é a base para a formação das redes de reciprocidade entre parentes e não parentes e que
provê a estabilidade, continuidade e amplitude das relações de uma pessoa.
5
Diferentemente das demais ilhas, a emigração da Boa Vista é, prioritariamente, feminina. Esse fator traz
questões interessantes que complementam os diversos estudos aqui já apontados sobre a diáspora do
arquipélago, percebida como essencialmente masculina. Além dos autores já aqui apresentados em notas
anteriores, ver Akesson, 2004.

3
denomino de “famílias espalhadas”, as formas de criar “proximidade à distância” são os
instrumentos aos quais os indivíduos recorrem na tentativa de lidar com as inseguranças
resultantes da mobilidade que caracteriza esta sociedade. Para melhor entender esta
afirmação, dois fatores devem ser salientados aqui.
Primeiro, quero chamar atenção para o lugar das obrigações materiais entre
pessoas fisicamente distantes para a manutenção de um sentimento de proximidade e
pertencimento. Trajano Filho (inspirado por LeVine, 1976) nos fala do ethos que
enfatiza a falta de ansiedade diante da separação física entre aqueles que ficam e aqueles
que partem, e de como um forte sentimento de relatedness é mantido pela continuidade
das obrigações materiais, que agem como uma ponte para a distância física (2009:
525)6. A troca de coisas operando como um fator primordial para a construção e
manutenção do sentimento de “pertencer a” fundamental para a reprodução social.
Ora ao mesmo tempo em que estamos diante de um ethos da mobilidade (que
acontece em meio a muitas tensões), a casa (enquanto espaço doméstico que se
confunde conceitualmente com família) assume importância central para estas pessoas,
é uma marca de pertencimento. As casas são como âncoras que prendem o indivíduo a
um grupo num contexto percebido como inseguro e de difícil atualização dos laços
familiares. Portanto, são pelas relações intra-domésticas que se constrói um sentimento
de identidade familiar que será mantido e atualizado por outro conjunto de relações, as
trocas inter-domésticas. A experiência partilhada de viver junto, ou de ter vivido junto
por um dado período, é de fundamental importância, já que se opera uma intensa
cooperação entre os membros que vai se estender entre as casas, ilhas e países.
Portanto, o conceito de relatedness parece dar conta do sistema de reprodução
do tipo que encontramos em Cabo verde, onde a ênfase central se coloca na experiência
de coabitação (mesmo que fortuita) e cooperação doméstica entre pessoas relacionadas
e tais laços dependem da perpetuação de estratégias de proximidade. A idéia de família
seria, então, um projeto sempre construído e reavaliado por seus membros a depender
de sua capacidade de atualizar estratégias de proximidade (entendida aqui como
relatedness). Estar presa a conceitos como o de conjugalidade, paternidade,
maternidade, descendência, tais como apresentados nos estudos clássicos de nossa
disciplina poderia implicar em percepções distorcidas e até equivocadas da realidade
estudada. É preciso, portanto, procurar instrumentos que ajudem a pensar as diferentes

6
Sobre um desenvolvimento mais detalhado sobre esse tema ver também: Lobo, 2010 e Dias, 2010.

4
formas familiares numa perspectiva que recuse hierarquias etnocêntricas e, ao mesmo
tempo, resgate a especificidade de cada configuração social.
As formas pelas quais a proximidade é construída em Cabo Verde podem ser
percebidas pela amplitude do sistema de parentesco. Se, em teoria, os indivíduos fazem
clara distinção entre os parentes consangüíneos e os demais a partir da categoria nha
família (minha família); na prática, aqueles que fazem parte da família não estão,
necessariamente, restritos a laços genealógicos, ou seja, no cotidiano opera um conceito
amplo de família em que o importante a se levar em conta é o tipo de relação construída
por indivíduos que compõem diferentes grupos domésticos.
De acordo com o padrão ideal, as relações familiares se caracterizam por um
comprometimento mútuo, contatos sociais regulares e um fluxo constante de benefícios
materiais e não-materiais. Tais requisitos, fundamentais para a construção do conceito
de proximidade, atuam tanto para fortalecer laços pré-existentes, quanto para ampliar o
campo de relações assumidas como de parentes.
Em ambos os casos é possível observar um fluxo contínuo de bens, serviços e
informações em circulação recíproca entre casas vizinhas. Bons vizinhos, assim como
parentes, trocam refeições, ajudam com os filhos uns dos outros, cedem crianças para
auxiliar nos mandados7 e, uma vez que não são parentes “de verdade”, podem casar os
filhos entre si. Há uma espécie de fidelidade especial entre os habitantes de uma mesma
zona, um tipo de tratamento que se aproxima do sentimento que se tem para com um
parente.
Fica claro que, tanto interna quanto externamente às casas, existe uma rede de
solidariedade, essencialmente feminina, que perpassa toda a organização doméstica e
inter-doméstica. A participação das mulheres em atividades geradoras de renda
depende, em grande parte, da possibilidade de contar com parentes (idealmente a mãe)
que agüentem as crianças. Essas crianças por sua vez, se sentem pertencendo tanto às
unidades onde passam o dia quanto àquelas onde passam a noite.
Tal sistema é operacional em dois sentidos. Primeiro, com o elevado índice de
emigração na ilha, nem sempre é possível contar com a ajuda imediata de uma mãe ou
irmã que, estando por perto, são as primeiras com quem uma pessoa pode contar para
deixar os filhos, ajudar em alguma tarefa doméstica ou até num momento de dificuldade

7
Categoria utilizada para se referir aos afazeres cotidianos do contexto doméstico – manutenção da casa
em geral, limpeza, cuidados com as crianças, compras e confecção de alimentos etc. Como veremos,
grande parte dos mandados são de responsabilidade das crianças.

5
financeira. Ao ampliar as regras de reciprocidade àquelas que vivem próximas e em
uma relação de vizinhança, as mulheres de uma mesma localidade garantem um
aumento de suas possibilidades ocupacionais, uma vez que têm sempre a garantia de
que alguém a ajudará na criação dos filhos ou em casos de necessidade. Segundo, a rede
de solidariedade feminina é fundamental para diminuir a dependência da mulher face ao
companheiro que não estabelece uma relação afetiva de proximidade nem para com ela,
nem para com os filhos. Na visão das mulheres o homem é aquele com quem não se
pode contar.

Crianças e as circulações possíveis


Nesse contexto as crianças aparecem como elos fundamentais na manutenção
das redes de solidariedade. Elas estão por toda a parte, basta um olhar atento para o
cotidiano local que as veremos participando dos diversos eventos e afazeres que
constroem o dia a dia na Boa Vista8. Crianças dos cinco aos 10 anos são os mais
freqüentes mediadores entre as casas. Elas são os veículos de mensagens, presentes e
itens de troca (alimentos, utensílios domésticos, dinheiro). São as crianças que as
mulheres enviam com coisas e alimentos que são fundamentais para a reciprocidade que
mantém as casas relacionadas. É difícil imaginar uma casa sem crianças que lá habitam
ou passam o dia. Complementarmente às mulheres, elas são atores fundamentais para as
relações no contexto doméstico. Um trecho de meu diário de campo pode fornecer esta
dimensão.
Estávamos todas no quintal envolvidas com a preparação de alimentos, éramos
três mulheres e quatro crianças, sendo uma ainda de colo. Se para nós, adultas,
cabiam alguns afazeres, as crianças estavam ali também para realizar seus
mandados – aos mais velhos cabia cuidar dos mais novos, ir comprar algum
mantimento que faltasse para o preparo dos donetes (espécie de rosca doce),
lavar os utensílios e, depois, sair pelas ruas para vender os donetes bem
quentinhos. Em meio aos trabalhos, D. Dina9 brigava com um e com outro,
resmungava sobre a preguiça dos jovens e, logo em seguida, quando os
pequenos desapareciam de nossas vistas, ela dava um grito para que todos
voltassem e ficassem à sua volta. As conversas também giravam em torno das
crianças, Isaura (17 anos, filha de D. Dina com 17 e já mãe de Diego, de um
aninho) contava que já havia ajudado a criar muitas crianças e que agora tem que
a agüente seu filho. Explica-me que as coisas são assim na Boa Vista. Por sua

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Apesar de sua ampla inserção na vida comunitária, há dois momentos da sociabilidade que lhes são
interditados, situações de doença e morte. As casas de doentes graves ou a casa do morto são os únicos
lugares na Boa Vista que não encontramos crianças. Essas visitas têm um forte caráter de obrigatoriedade
e formalidade. Há pouca conversa, muita bebida e comida e uma atmosfera quieta. A criança não é bem
vinda nesses eventos.
9
Conforme acordado com meus informantes, os nomes aqui apresentados são fictícios.

6
vez, D. Dina reclama que às vezes fica enrascada, sem ter um menino para
fazer-lhe os mandados, “se você se distrair, eles ganham o mundo nas
brincadeiras”.

Faz parte dos mandados das crianças irem às lojas para compras de
mantimentos, realizar a venda porta-à-porta de alimentos produzidos pelas mulheres,
transportar coisas e, especialmente, comida entre as casas etc. Além de levar e trazer
dinheiro, alimentos e bens materiais, as crianças também levam e trazem palavras entre
as casas, transportando recados e rumores. Em situações de conflitos entre famílias, elas
são as únicas que podem circular entre duas casas em que os adultos não mais circulam.
Crianças, por sua característica mobilidade, personificam e reproduzem grande parte das
relações de troca que são necessárias para a manutenção de um conceito amplo de
família.
Mas elas não são somente veículos importantes para a partilha e a troca
recíproca, são também objetos de partilha e reciprocidade. Além da circulação
cotidiana, estar entre as casas tem outro significado. A mobilidade se estende ao que
podemos chamar de circulação10 de crianças. O sentido aqui é de que outros, parentes
ou não, podem agüentar uma criança por um tempo determinado. Isso ocorre com
freqüência entre pessoas que se tratam como parentes. Agüentar é uma expressão da
língua crioula que pode apresentar dois significados que merecem aqui um
esclarecimento mais cuidadoso, pode ser entendida como “cuidar de” ou como “criar”
uma criança. Esta categoria indica, portanto, o duplo caráter desta circulação, de curta
ou longa duração – o relato de Isaura esclarece a primeira concepção de agüentar,
cabendo a segunda à D. Dina.
Dos jovens e adultos que mantive contato em campo, raros foram aqueles que
haviam residido em apenas uma casa ao longo de sua vida. O mais freqüente é que uma
criança resida mais ou menos permanentemente na casa de um parente próximo à mãe,
especialmente com a avó materna, porém, elas transitam entre diversas unidades
domésticas, tanto por períodos curtos quanto em estadas mais prolongadas. Os arranjos
e motivos para dar uma criança à outra casa são variados, as explicações para mudar de
“casa” vão desde a simples vontade da criança até a necessidade de ter uma criança para
ajudar nos mandados, por questões financeiras, pela proximidade de uma determinada

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Utilizo circulação de crianças aqui no sentido do inglês “foster children”. Adoção não é a categoria
adequada no meu caso, visto que a circulação de crianças não tem um caráter formal ou fixo. Claudia
Fonseca (2006) também adota o termo circulação ao tratar de seu caso de estudo na periferia de Porto
Alegre.

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casa com a escola, emigração da mãe etc. A variação também inclui o tempo de
residência, a criança pode permanecer numa casa por meses, anos ou toda a vida. Um
fator comum aos diversos casos é o significado de receber uma criança de outro: abrigar
uma criança, especialmente quando a situação não envolve parentesco consangüíneo,
significa ser solidário e faz parte da dinâmica local.
Esther Goody (1982), em seu estudo sobre os Gonjas da África Ocidental,
mostra que as crianças circulam com o objetivo de entrelaçar ramos geograficamente
dispersos do grupo familiar. Ao falar de circulação de crianças, a autora diferencia entre
circulação de crise e voluntária. No caso desta última, o objetivo seria de cimentar laços
de parentesco, o filho visto como um recurso da família. Sendo assim fostering não
pode ser tomado somente em termos do micro-movimento de crianças, mas como uma
forma de replicação e reprodução da sociedade.
Esta hipótese nos leva a refletir sobre alguns aspectos do caso cabo-verdiano. A
facilidade que as crianças têm em circular entre as casas compensa várias tendências
que poderiam, de outra forma, enfraquecer a solidariedade do grupo familiar como um
todo. Ao cuidar de um neto, por exemplo, uma mulher justifica sua demanda de apoio
material e de afeto aos seus próprios filhos. As avós recebem benefícios especiais ao
cuidar de um neto: aumentam a chance de receber ajuda filial e consolidam seu direito
ao apoio da rede de parentes.
Além de unir gerações numa fase do ciclo doméstico que poderia ser
caracterizada pela dispersão, as crianças podem contrapor a tendência masculina a se
afastar do novo grupo familiar. Uma mulher, a depender do contexto, abriga filhos de
um homem parente seu. Mães podem cuidar dos filhos de seus filhos ou mesmo as
irmãs abrigam filhos de seu irmão. Avós e tias paternas seriam, portanto, mediadoras
entre pai e filhos.
Mesmo que a criança não resida com parentes paternos, pela mobilidade entre as
casas no transporte de coisas e alimentos, elas aproximam os laços de afinidade. Num
contexto em que a relação afetiva entre mãe-de-filho e pai-de-filho11 é, num primeiro
momento, marcada pela instabilidade, a criança oriunda dessa relação, pela circulação,
cria um elo entre as famílias, elo este que pode garantir que o homem retorne

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Esses são os termos comumente utilizados para se referir aquele ou àquela com quem ego teve um
filho. Além disso, quando o casal mantém uma relação conjugal, esse é o termo que se usa para se referir
ao companheiro ou companheira, meu pai-de-filho ou minha mãe-de-filho.

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ciclicamente àquela mulher, acabando por se fixar em uma relação conjugal que pode
culminar no casamento (daí a importância de ser mãe-de-filho).
Nos casos de emigração, a depender da relação que se estabelece entre mães e
filhos à distância, as mães não sentem que abandonaram seus filhos e estes não se
sentem abandonados12. O fato de deixar os filhos com outra, mesmo que esta seja sua
avó materna (a preferencial), implica a idéia de um sacrifício da mãe em razão do
benefício da criança e do grupo familiar. Quem fica com a criança, vê seu ato como
solidário e como possibilidade de manter e intensificar relações com a emigrante.
Além disso, a companhia das crianças dá um sentido especial à rotina diária, dá
prazer e diversão. As crianças não são um fardo, são uma dádiva. Agüentar uma criança
preenche o dia, garante interação social com vizinhos, permite o compartilhamento dos
afazeres domésticos, é fonte de afeto, é elo entre mulheres e, por extensão, entre
unidades domésticas e entre países, sendo a principal ponte entre as emigrantes e suas
famílias locais.
Compartilhar crianças é uma estratégia importante que diminui a ameaça de
afrouxar a solidariedade entre parentes advinda de uma valorização da mobilidade
social. Como nos afirma Fonseca (2006) em seu caso de estudo sobre circulação de
crianças na periferia de Porto Alegre, entender que a movimentação das crianças no
tempo e no espaço, entre gerações e entre as casas, não é um problema, mas um
processo que faz parte da dinâmica social nos faz perceber essa organização familiar
não como um modelo alternativo (que existe quando há um modelo ideal) ou muito
menos como anomalia, é apenas outra forma de organização social. Assim como o
nosso, é um sistema entre tantos outros.
Neste ponto é preciso chamar atenção para a relação entre circulação de crianças
e maternidade. Um observador desatento poderia concluir que o compartilhamento de
crianças seria uma estratégia utilizada para casos em que a maternidade não pode ser
plenamente exercida, como por exemplo, nos casos de emigração feminina. Esta seria
uma conclusão equivocada. A relação entre mãe e filhos tem um caráter muito especial
em Cabo Verde, e vou além, se há alguma relação percebida como duradoura e estável
na esfera familiar, é esta que liga as mães aos filhos. O que a análise da mobilidade das
crianças revela é que a maternidade no caso cabo-verdiano não está restrita a uma única

12
De acordo com os relatos, esse é um sentimento marcado pela ambigüidade. Apesar de não se sentirem
abandonados, os filhos ressentem-se de terem crescido longe da mãe, isso é expresso por categorias como
solidão e tristeza.

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mulher, incorpora a avó e outras mulheres, envolvendo ambas no duplo sentido que se
atribui à categoria agüentar.
Quando nasce uma criança, mãe e avó se mobilizam e se complementam na
tarefa de criá-la e educá-la. De certa forma, para uma criança, estar com a avó é
complementar a estar com a mãe e isso se expressa pela complementaridade dos termos
“mãe” e “mamã”. Maternidade é, portanto, uma categoria social e só pode ser
completamente exercida pela ação conjunta de duas gerações. Ser mãe é um processo
que começa quando nasce uma criança e só atinge sua plenitude quando a mulher se
torna avó, sendo necessária a presença das duas mulheres para que se possa criar e
prover uma criança13.
A mobilidade também influi no processo de construção da paternidade. O papel
do pai vai variar a depender do padrão de residência adotado. De forma geral, a relação
entre pai e filho será mais ou menos intensa conforme os pais vivam juntos ou não. Nos
casos em que o pai vive separado fisicamente da mãe, seu papel se restringe a visitas
periódicas aos filhos. Quanto à ajuda econômica, esta dependerá de diversos fatores e
não são raros os casos em que as mães reclamam de não receber qualquer apoio
financeiro do pai-de-filho. Mesmo nos casos em que pais e filhos residem numa mesma
casa, o laço emocional com o pai é frouxo, a relação é caracterizada pela distância,
enquanto no que diz respeito à mãe, percebe-se uma grande proximidade e um grande
calor afetivo.
É importante salientar que não há uma ausência de relação entre pai e filho, essa
relação existe e é mediada por um sentimento de respeito à autoridade paterna, os filhos
devem respeitá-lo. Porém, os filhos compartilham de um sentimento relatado pelas
mulheres quando caracterizam a presença do marido na casa, como uma figura com
quem não se pode contar. Isto não apenas no sentido financeiro, pois geralmente é a
mãe ou a avó que assume as despesas escolares e de alimentação dos filhos, mas
também na esfera psicológica e na transmissão de saberes, domínios pelos quais o pai
passa distante, especialmente na fase em que os filhos ainda são crianças. Dito isto,
voltamos à importância da mobilidade das crianças na construção da paternidade - ao
circular livremente nas unidades domésticas da família do pai e estabelecerem relações
afetuosas com as mulheres que são parentes próximas deste, as crianças “fazem” a
relação com os pais.

13
Para uma análise mais detalhada da maternidade em Cabo Verde ver Lobo, 2010.

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Essa relação de distância não retira ao pai o desejo de ter filhos. Na maioria dos
casos, a mulher engravida a pedido do namorado ou companheiro e ele espalha a boa
novidade a todos, com orgulho e alegria. Ter um filho é um valor importante no
universo masculino, assim como ter uma mulher (ou várias). Ambos são símbolos de
masculinidade e exibidos constantemente nas rodas de conversas entre homens. Porém,
enquanto as mulheres valorizam a idéia de estar próximo, os homens se envolvem com
o universo doméstico por meio de um pertencimento distante. O homem deve ter uma
família (e isso significa ter filhos), mas seu relacionamento com ela é marcado por um
distanciamento relativo, mediado pelas relações que se constroem entre mulheres e
crianças das duas famílias envolvidas.

Movimento como valor


Acredito ter esclarecido como a movimentação de crianças “faz” família no caso
cabo-verdiano e como, ao falar de circulação de crianças, não me restrinjo à dimensão
do movimento físico, mas estou tratando das razões e significados desses movimentos.
Para completar esse quadro, devo ao leitor a abordagem do sentido do movimento na
trajetória de vida dos cabo-verdianos e de como a circulação ao longo da vida é
valorizada por estes, valor simbolizado pela categoria de “boa vida”.
Durante o período que realizei meu trabalho de campo pude reconstruir as
trajetórias pessoais de alguns de meus informantes pelo discurso, além de ter tido
oportunidades ímpares de acompanhar algumas. Voltando aos meus dados de campo e
tomando como referência mulheres e homens adultos, um dado que persiste é o da
movimentação – é raro encontrar quem não tenha habitado em unidades domésticas
diferentes, povoados diversos, ilhas distintas ou países distantes. Além de ser, por si, só
um dado instigante, uma vez que não estamos falando de uma circulação momentânea
como uma viagem de férias, de uma visita ou de turismo, mas estamos no universo da
habitação; é interessante notar como esse é um dado altamente valorizado e salientado
nas conversas ou entrevistas.
Geralda é de família de Cabeça dos Tarafes, um dos povoados da ilha da Boa
Vista. É filha de mãe que já emigrou e de pai que ainda é emigrante. A mãe
emigrou antes de ter o primeiro filho, depois que engravidou ficou na Boa Vista
e daqui não saiu mais. O pai emigra desde os dezessete anos de idade e continua
emigrado até hoje. Geralda diz que a relação com o pai sempre foi muito
complicada, nunca conviveu com ele. “Ele vinha e passava um mês por ano em
casa e achava que podia mandar na gente”. Diz que se criou sem pai e isso nunca
lhe fez muita falta, vivia com a mãe e passava muito tempo com a avó materna,

11
“foram as duas que me agüentaram e me colocaram no mundo como sou hoje”.
Geralda vive hoje com Lisa, sua tia, aqui na Vila de Sal-Rei. Quando era criança
pequena, morou por uns tempos na casa da avó materna, outros tempos com a
mãe, depois foi estudar na Praia (a capital) e lá ficou por muito tempo vivendo
em casas de parentes, “quando não dava certo com um, ia para a casa de outro,
assim morei numas três casas lá na Praia” (abre um longo parêntese para relatar
os maus-tratos que sofreu quando morou na Praia). No momento está tentando ir
fazer curso superior em Portugal ou Brasil. (...) Alguns meses depois, Geralda
sai da casa de sua tia e vai viver com outra tia de sua família paterna, conta-me
que não estava dando mais certo com Lisa.

Geralda é uma das pessoas com quem mantenho contato até hoje, o que me
permite continuar acompanhando sua trajetória: no ano seguinte ao me campo, a moça
conseguiu ser aceita em uma universidade no Brasil, após terminar o curso (em 2009),
ela seguiu para Praia, onde trabalha numa empresa de contabilidade. Da última vez que
conversamos via internet, contou-me, com entusiasmo, de seus planos de ir para a
Europa. Em se tratando de uma trajetória comum, encaro o trecho acima um bom
exemplo para ajudar a pensar em alguns aspectos da mobilidade em Cabo Verde.
Primeiramente, retomemos a questão da circulação de crianças quando relatada
por adultos e acessada pela memória. Quando o tema era a infância, os relatos que tive
acesso valorizavam positivamente o fato de ter vivido em casas diferentes, mesmo
quando tais experiências tinham um caráter negativo. Tais vivências negativas estavam
vinculadas, como no relato acima, às situações em que viveram em outra ilha, em casa
de conhecidos ou parentes distantes que recebiam os jovens para estudar o colegial.
Tive acesso a diversos relatos de maus-tratos e reclamações sobre o excesso de
mandados que tinham que executar em troca da oportunidade de estudo. Com
freqüência, o relato negativo era permeado pela positividade da experiência de ter
passado, já muito jovem, por dificuldades que os tornaram pessoas fortes, como um
“crioulo” tem que ser.
Trajano Filho (2009) ressalta, para o caso da emigração, o dilema do cabo-
verdiano. Informa-nos que apesar de ser estrutural, a emigração sempre foi um fato
social permeado por tensões – “menções ao sofrimento dual e terrível que aflige os
espíritos dos cabo-verdianos são recorrentes, sendo sumarizadas pela difícil escolha
entre partir e ficar. Este dilema tem sido tão profundamente experienciado na vida diária
dos ilhéus que se tornou um tropo da cultura do arquipélago (:525). O dilema está
expresso com maestria na música e poesia produzida no arquipélago, produção que
cristaliza a imagem do povo cabo-verdiano como aquele é profundamente dividido entre

12
o partir e o ficar. Ao trazer a mobilidade para outras esferas da vida do cabo-verdiano,
meu argumento pretende ser complementar a este.
A mobilidade é uma categoria presente na construção de uma auto-imagem de
alguém interessante e experiente. Não ter vivido em um só lugar significa ser esperto,
ter experiência, conhecer a vida e suas dificuldades. E o movimento cria movimento,
porque implica em relação. Ter circulado em diversos contextos amplia as redes de
relações sociais tornando o indivíduo conhecido e conhecedor de universos e pessoas
que podem abrir as portas para um universo ambicionado por grande parte dos cabo-
verdianos, a emigração – um valor nacional, um rito de passagem necessário para se
tornar uma “pessoa plena”!
Focando a trajetória individual tanto como lembrança quanto como projeto,
observa-se a mobilidade como valor para o cabo-verdiano. Analisando os movimentos
possíveis em pólos distintos, da circulação de crianças à emigração, observamos como o
movimento cria valor – no sentido de uma boa vida, de uma experiência conquistada, de
uma trajetória interessante, de um status adquirido e compartilhado – e como ele
mantém valor – quando ele é conservador e está por trás de algo que é aparentemente
inovador ou desestruturante, ou seja, quando ele faz relações pela partilha e circulação
de coisas e pessoas e opera como ferramenta fundamental para a reprodução social.
Ora, ao fim desta narrativa o leitor pode estar se perguntando o que difere o
contexto cabo-verdiano de tantos outros contextos sociais, nos quais encontramos a
ambigüidade entre parado (com um valor negativo) e movimentado (tendo um valor
positivo). Eu mesma me fiz essa pergunta por algumas vezes e talvez tenha encontrado
um indício de resposta nas diversas casas que me foram abertas por ocasião da pesquisa.
Nestas casas pude não só presenciar indivíduos indo, vindo, morando e “desmorando”,
mas pude observar a forma como meus informantes guardavam seus pertences, suas
roupas e demais acessórios de valor, raramente encontrados em guarda-roupas ou
armários, mas em malas, caixas ou “bidões”. Quando me dei conta de que os cabo-
verdianos vivem de “malas prontas”, comecei a entender o que para eles significa
circular.

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