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Janet Carsten**
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CARSTEN, Janet (2004) "Families into Nation: the power of metaphor and the transformation of kinship"
in After Kinship. Cambridge, Cambridge University Press. [“Das Famílias à Nação: o poder da metáfora
e a transformação do parentesco”. Tradução para uso didático por Leandro de Oliveira. Crato: Universidade
regional do Cariri, 2014. Mimeo ] Sujeito a Revisão.
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Antropóloga, doutora pela London School of Economics (LSE), prof de Antropologia na School of Social
and Political Science da Universidade de Edimburgh.
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No original, “The West and the rest” (N. T.).
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Meu ponto de partida para pensar sobre estes tópicos são, mais uma vez, as
práticas e discursos malaios sobre o parentesco, que encontrei durante meu trabalho de
campo na ilha de Langkawi nos anos 1980. No capítulo anterior, discuti os termos pelos
quais pessoas descreveram para mim ideias sobre o sangue e o leite humanos. O fato de
que estas substâncias corporais sejam afetadas por fatores ambientais (incluindo as
formas de alimentação, residir em uma mesma casa, os encontros emocionais e assim por
diante) assim como pelo nascimento não tem somente uma importância simbólica.
Descrevi em outros textos (Carsten, 1995a, 1995b, 1997) como ideias sobre o sangue e a
conexidade se atrelam a características históricas e demográficas da vida Malaia. A
primeira destas características é uma substancial mobilidade demográfica, que foi
historicamente central para a ocupação de áreas pioneiras nas regiões mais periféricas dos
estados malaios. Em uma ilha como Langkawi, situada na divisa norte do estado de
Kedah, era possível, no fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, se
assentar e ganhar a vida ocupando terras novas ou se voltando para a pesca como fonte
de sustento. O estabelecimento e ampliação de novas comunidades eram intimamente
imbricados com o modo pelo qual conexões de parentesco podiam ser estabelecidas,
através da endogamia e da adoção de imigrantes. Em termos Malaios, casar-se com
aqueles que são “próximos” é em geral considerado algo bom. Tal proximidade pode ser
percebida em termos de conexão genealógica, proximidade geográfica, posição social e
similaridade de características ou disposições. Permanecer em uma mesma casa, comendo
junto, seja pela via da adoção ou do casamento endogâmico, podem deflagrar processos
que tornam uma pessoa gradualmente similar àquelas com quem ela vive. Em trabalhos
anteriores (Carsten, 1995b; 1997), argumentei que do ponto de vista dos aldeões em
Langkawi um hóspede ideal é aquele que permanece por um longo tempo, e
eventualmente se estabelece, casa e tem filhos na ilha.
difundidas e a forte tendência a formular as relações através deste idioma, não importa
quão curtas ou longas elas sejam. Uma porção significativa de crianças da aldeia é criada,
ou vive pelo menos algum tempo, em casas de pessoas que não são seus ‘pais de
nascimento’. É notável que os aldeões sintam um forte desejo de descrever todo e
qualquer hóspede – desde o jovem homem trazido à casa por alguns dias como amigo de
um filho adulto, até estudantes em visita que estejam trabalhando em projetos durante 30
dias – através do idioma da adoção. Embora arranjos informais de adoção deste tipo, de
modo geral, não envolvam a herança da propriedade dos pais adotivos como em outras
partes do sudeste asiático (ver, por exemplo, Janowski, 1995. Schrauwers, 1999), não há
sombra de dúvida de que a capacidade de abrigar crianças adotadas expressa prestígio.
Contudo, os efeitos destes usos merecem comentários adicionais.
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No original, “Foster relatives” (N. Do T.”).
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família Zumbagua consiste naqueles que comem juntos uns com os outros” e “o fogão
(...) suplanta a cama matrimonial como símbolo da vida conjugal e o laço de sangue como
emblema da parentalidade (Weismantel, 1988, p. 169 apud Weismantel 1995, p 693).
Novamente, dado que a carne e o sangue são concebidos como formados a partir da
comida, corpos e substância se tornam conectados através da alimentação prolongada. E
assim, ao longo do tempo, aqueles que vivem e comem juntos vêm a compartilhar de uma
mesma carne, e portanto, vem a parecer uns com os outros fisicamente.
1984, p. 171). Ao invés de ser um veículo para diferenciar o social do biológico, a criação
adotiva parece ser um meio de transformar o social em biológico, ou de misturar o social
ao biológico.
Deslindando a Ficção
Para Schneider, era evidente que as premissas analíticas às quais me referi não
eram somente implícitas, mas eram elas próprias derivadas da cultura européia (1984, p.
175). Por esta razão, quero olhar de perto para alguns exemplos extraídos da Europa e da
América do Norte, onde poderíamos esperar que a separação entre os laços “reais” e os
laços inventados/ fabricados fosse mais clara e sem ambigüidades. Eu gostaria de
examinar novamente dois casos aos quais me referi brevemente no capítulo 05. O
primeiro é a descrição de Gerd Baumann sobre Southall, um subúrbio etnicamente plural
em Londres, onde há um recurso muito difundido a um idioma da “relação de primos”4
entre jovens Sikh, hindus, muçulmanos, afrocaribenhos e brancos. A etnografia de
Baumann confere bastante atenção à dificuldade de atribuir especificidade genealógica a
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Cousinhood.
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estas alegações, e aos problemas metodológicos que isto causa para antropólogos com um
interesse por parentesco (Baumann, 1995, p. 727-730). O que é importante é que “a ênfase
sobre os primos observada entre a juventude no Southall é compartilhada através de
significativas fronteiras étnicas, religiosas e culturais” (1995, p. 729). Baumann
demonstra que embora as alegações de “relação de primo” variem conforme os diferentes
padrões de parentesco e históricos migratórios destes grupos, seu lugar de destaque deriva
da mesma fonte. Esta é, precisamente, a fusão das duas ordens de parentesco de
Schneider: a ordem da natureza e a ordem da lei. O que os primos fazem para a juventude
de Southall está encapsulado na frase “primos são amigos que são parentes e parentes que
são amigos” (1995, p. 734). Primos, em outras palavras, invocam simultaneamente as
obrigações do parentesco e as escolhas da amizade, tanto a confiança e lealdade que
deriva do parentesco e as preferências pessoais características da amizade. Deste modo,
jovens invocam a “relação de primo” em tipos específicos de contexto – por exemplo,
quanto se tenta obter permissão dos pais para sair com terceiros, ou como uma ameaça
em potencial ao defender-se contra a intimidação exercida por terceiros, ou ainda como
uma desculpa para o próprio comportamento desviante. Baumann deixa claro como tais
invocações são eficientes justamente porque elas se amparam simultaneamente nas
moralidades do parentesco e da amizade.
O fato de que é um termo de parentesco que dá conta deste equilíbrio entre “se misturar
com todos” e “ter amigos de outras culturas” não significa nada. O parentesco, e por
implicação os laços de parentesco entre pares, representam a epítome dos laços além de
qualquer questionamento para muitos jovens de Southall. O parentesco, ou simplesmente
a “família” ou o “sangue” fornecem a esfera discursiva por excelência em que se sustenta
a certeza axiomática. Muito do mundo social pode ser caracterizado formas provisórias
e mudança, por regras com exceções e contingências para além das regras. Em meio a
este universo de relatividade cultural, o parentesco representa aquilo que é, de maneira
paradigmática, “real”, dado e natural (Baumann, 1995, p. 736)
Os seres humanos são produzidos (e, portanto, ganham parentes) da mesma maneira ao
redor do mundo, e um primo é inevitavelmente um primo. Talvez seja essa aparente
certeza de que o parentesco é algo real, que ele é uma mesma coisa presente ao longo de
múltiplas “culturas” e de suas “comunidades”, que torna o primo um tropo tão poderoso
e aparentemente inquestionável entre pares com origens muito díspares (1995, p. 737)
O retrato produzido por Weston das ideologias formais do parentesco entre gays
e lésbicas em São Francisco nos anos 1980 deixa claro que o que torna o parentesco “real”
ou autêntico neste contexto não é a conexão biogenética, mas sua duração no tempo. Na
construção de uma ideologia alternativa de família, há uma recusa explícita a aceitar a
conexidade biológica como a fonte para o parentesco. Em vez disto, a construção de um
aparente oximoro, as “famílias escolhidas”, se assenta na permanência como a fonte (e
simultaneamente a prova) da autenticidade destes laços. Weston descreve as diversas
formas que tais famílias podem assumir e os múltiplos grupos domésticos que elas
encompassam, incluindo ex-amantes, amigos gays e heterossexuais, crianças que podem
ou não ser biogeneticamente conectadas àqueles que lhes forneceram cuidados parentais,
e redes entre aqueles que cuidam de outros que precisem de suporte na doença,
especialmente a Aids (Weston, 1995, p. 93). A permanência aqui não está simplesmente
atribuída como uma qualidade dos laços de sangue, como na ideologia dominante do
parentesco, mas precisa ser ativamente produzida no tempo (1995, p. 90-91; p. 99-102).
Weston assinala que a recusa em aceitar uma equação entre a conexão “biológica”
e a permanência pode ser lida como uma explícita rejeição à ideologia de parentesco
heterossexual dominante. Contudo, a construção de um idioma de “famílias escolhidas”
baseado na persistência através do tempo pode ser também visto como um movimento
que assimila os relacionamentos gays ao modo dominante de relação. Ao sublinhar os
sutis deslocamento de sentido implicados nestas ideias sobre permanência, ela mostra que
de fato nenhuma destas caracterizações é apropriada. Como ela assinala, embora a
equação entre os laços naturais e a permanência seja comumente feita nos discursos do
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Embora a invocação de persistência ao longo do tempo possa ser vista como uma
reiteração do discurso dominante do parentesco, Weston argumenta que este movimento
não representa nem uma alternativa radical nem uma assimilação ao modelo dominante.
Isto se dá porque o sentido da solidariedade duradoura, em si mesmo, se modificou em
resposta à luta reivindicatória pelo parentesco gay nas condições históricas e materiais
particulares à vida norte-americana nos anos 1980. Aqui a permanência deixa de ser vista
como um atributo inerente a certos tipos de relacionamento, mas precisa ser produzida
através de atenção e esforço continuados (Weston, 1995, p. 102-106).
Reuniões de Adoção
Eu tinha acabado de sair e comprado pra mim uma nova blusa. Eu pensei, vou vestir
meu terninho e esta nova blusa para encontrá-la; Eu planejei tudo: eu não queria
parecer vestida bem demais, eu não queria parecer desalinhada. Eu queria aparentar
algo intermediário, porque eu tinha essa ideia de que talvez ela fosse muito pobre...
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palavras dela, sua mãe de nascimento simplesmente não tinha aquele direito; ela abrira
mão dele quando ela dera sua filha para adoção trinta anos antes. Alguns entrevistados
expressaram a ideia de que as trocas normais do parentesco não são um direito
automático, mas um privilégio que é conquistado através do árduo esforço demonstrado
em criar, alimentar e cuidar de uma criança. Como uma adotada me disse, “Eu não estava
procurando por outra mãe, eu tenho uma”. Tais afirmações eram em parte uma espécie
de declaração de lealdade aos parentes adotivos, mas elas também expressavam algumas
das tensões envolvidas em estabelecer um novo conjunto de relações com os parentes de
nascimento.
Como no caso do parentesco gay, esta “interferência” sobre o valor simbólico dos
laços de nascimento é acompanhada por deslocamentos no valor dado ao próprio tempo
na produção do parentesco. Uma característica impressionante de muitas das entrevistas
que conduzi era o recurso frequente a artefatos visuais de vários tipos – cartas, fotografias,
poemas, documentos oficiais e peças de vestuário de bebês – que eram produzidas ou
referidas no curso da conversação. Quando o nascimento não implica certeza,
durabilidade ou solidariedade, ele é esvaziado da maior parte do sentido simbólico que
ele recebe no discurso dominante do parentesco, e o tempo em si mesmo tem um papel
chave na produção de novos sentidos para o parentesco. Os artefatos visuais que eram
regularmente produzidos para minha inspeção eram uma produção literal de história.
Como objetos em um museu, eles davam profundidade histórica às versões vigentes das
identidades das pessoas que entrevistei. A relevância destes objetos, e o tipo de história
retrospectiva em construção ali, eram consideravelmente amplificados pela frequência
com que não somente a adoção, mas a morte ou nascimento de um parente de nascimento
perturbava o fluxo do tempo nestes relacionamentos. Quer tais mortes tenham precedido
ou sucedido a descoberta da identidade de um parente de nascimento, elas encapsulavam
os consideráveis deslocamentos de “tempo de parentesco” experimentados por aqueles
que buscavam tais reuniões.
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No capítulo 04, descrevo como uma entrevistada sentiu que era necessário
estabelecer a identidade de seu pai de nascença através de testagem de DNA, a despeito
da avaliação dela própria sobre o caráter dele como bastante desonesto, e da
impossibilidade manifesta de estabelecer um relacionamento satisfatório com ele. Os
resultados de um teste deste tipo estabeleceriam a verdade – ou, nas palavras dela,
“parariam as mentiras” – em face da persistente evasão dele. Contudo, claramente, a esta
altura ela não teria reconhecido muito mais do que este laço físico com seu pai de
nascença. Entrevistadas frequentemente falavam sobre aspectos de sua própria aparência
física em relação àqueles de seus pais adotivos e de nascença. Uma mulher descreveu
como, quando era criança, ela sempre se sentira muito ciente de seu cabelo encaracolado,
porque seus pais adotivos e as famílias deles tinham cabelo liso. Quando ela
eventualmente conheceu sua mãe de nascença, ela descobriu a proveniência de seu tipo
de cabelo. Mas neste caso, como em muitos outros, a relação em si não resultou numa
situação harmoniosa. Se as conexões físicas eram bastante fáceis de construir, estas não
eram necessariamente sucedidas por laços emocionais.
Definitivamente não houve um “click”,7 não houve uma conexão, algo assim, porque
essa é uma pessoa que você não conhece. Você não conhece essa pessoa, ela é uma
completa estranha. Ela poderia não ser minha mãe, ela poderia ter mandado outra
qualquer no lugar dela.
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No original, “no Ting”, nenhum ‘tinido metálico’.
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aqueles que entrevistei sentiram certo senso inicial de conexidade, mas eles eram uma
minoria. Do mesmo modo, as reuniões com diferentes pais de nascença não
necessariamente seguiam o mesmo rumo. O jovem homem que negou qualquer senso de
conexidade com sua mãe de nascença não apenas estabeleceu uma boa relação com sua
meia-irmã materna, mas também veio a saber um bocado a respeito de seu pai de
nascença, que falecera pouco antes que seu filho descobrisse a identidade dele. Na
ausência de qualquer possibilidade de encontro, ficava claro que os fatos que ele
estabelecera sobre a identidade de seu pai não somente asseguraram sua própria conexão
com este homem, mas foram instrumentais na resolução de suas próprias incertezas sobre
“de onde eu vim”.
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“Nature and nurture”, no original.
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Da Substância à Metáfora?
O material que citei até aqui sugere que o potencial simbólico do parentesco na
Grã-Bretanha e na América do Norte é, em grande medida, aberto a reformulações
criativas. De fato, embora os antropólogos tenham a tendência a, implícita ou
explicitamente, justapor o parentesco ocidental àquele das sociedades não-ocidentais que
eles estudam, os casos que discuti aqui parecem ter bastante em comum. Sem ter a
pretensão de minimizar importantes diferenças nos contextos sociais e história das
pessoas ou comunidades específicas estudadas na Malásia, São Francisco, Southall,
Equador ou Escócia, é difícil não reparar em uma óbvia similaridade na suscetibilidade
do parentesco a contínuas transformações e adaptações. São estas possibilidades criativas
que emprestam ao parentesco sua enorme força simbólica – um poder que é ainda mais
saliente porque emana das circunstâncias emocionais e práticas da vida cotidiana das
pessoas, das coisas que elas consideram mais queridas, e com as quais, sob todos os
aspectos, elas estão mais familiarizadas. É esta força simbólica que torna cruciais as
implicações das tentativas feitas por antropólogos e sociólogos de traçar uma fronteira
entre sociedades ocidentais e não-ocidentais com base parentesco.
Um exemplo daquilo que tenho em mente aqui é fornecido pela sutil e iluminadora
análise de Iris Jean-Klein (2000, 201) sobre a explícita politização de aspectos cotidianos
da vida doméstica durante a Intifada Palestina – tais como visitar, comer e celebrar
casamentos. Jean-Klein rastreia a miríade de conexões entre tais práticas cotidianas e um
emergente Estado-nação, documentando a produção de novos “eus morais”9 por jovens
homens, suas mães e irmãs, que envolviam práticas de gênero e parentesco.
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Moral selves.
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Para Schneider, parecia que “O Judaísmo é o caso mais claro e mais simples no
qual o parentesco, a religião e a nacionalidade estão todos em um único domínio” (1977,
p. 77). Embora o critério mais importante para ser um judeu é o nascimento, ser um judeu
se sustenta não somente no nascimento, mas em um código de conduta específico e
elaborado. Schneider notou como a identificação entre religião, nação e parentesco
proposta no Judaísmo dava origem a problemas particulares para o moderno Estado-
Nação de Israel. É central à ideologia da nacionalidade em Israel que aqueles que podem
alegar ser Judeus por nascimento têm também o direito de reivindicar a cidadania no
Estado de Israel (1977, p.69). O recente trabalho de Susan Kahn (2000) sobre reprodução
assistida em Israel ilumina de modo vívido até onde o Estado e as autoridades religiosas
são capazes de ir, em Israel, para reproduzir a cidadania. É indicativo da posição pró-
natalista do Estado que “no meio dos anos 1990, havia mais clínicas de fertilização per
capita do que em qualquer outro país do mundo – 24 unidades para uma população de 5.5
milhões, quatro vezes o número de clínicas per capita existentes nos Estados Unidos”
(Kahn, 2000, p. 02).
(...) a linha de distinção entre metáforas vivas e metáforas mortas é uma linha
cambiante, na qual as mortas podem eventualmente ser propensas, sob o estímulo de
uma afinidade ou repulsão, a agitações galvânicas indistinguíveis da vida (Fowler,
1965, p. 356).
Tais “agitações galvânicas” têm sido evidentes nos momentos muito freqüentes
na história do século XX em que a “solidariedade difusa e duradoura” da nação foi
violentamente espatifada. Na ameaça do estado de guerra, apelos à “terra-mãe” ou à
“pátria” em nome da unidade da nação ou da solidariedade de uma irmandade de cidadãos
companheiros passam a ter uma particular atração.
Contudo, a violência da guerra civil, tal qual visto na Bósnia e no Kosovo nos
anos 1990 ou na Índia no tempo da partição sugere que em certas circunstâncias negativas
as metáforas do parentesco têm a habilidade de assumir sentidos que são mais literais do
que metafóricos. Em momentos drásticos de convulsão social como estes, os
comentadores se vêem perdidos na tentativa de dar conta dos processos de destruição que
eles testemunham. Como é possível para uma guerra entre forças “externas” se tornar
uma guerra que transforma vizinhos de longa data em inimigos? Como podemos dar
conta, para citar Tone Bringa documentando a aldeia na Bósnia na qual ela trabalhou, do
modo pelo qual “(...) começando como uma guerra travada por pessoas de fora, ela se
desenvolveu em uma na qual vizinho era colocado contra vizinho depois que a pessoa
familiar da casa ao lado foi tornada um estranho despersonalizado e membro das fileiras
inimigas”? (Bringa, 1995, p. xvi).
O interesse nas mulheres (...) tinha como premissa sua definição não como cidadãs,
mas como seres sexuais e reprodutivos. A honra da nação estava em jogo, pois
mulheres enquanto seres sexuais e reprodutivos estavam sendo retidas à força pelo
outro lado (Das, 1995a, p. 221).
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não devemos tomar o teor aparentemente óbvio e evidente da metáfora da nação como
uma família em seu valor de face. George Lakoff e Mark Johnson argumento que
“metáforas pelas quais vivemos” estruturam nossas ações e nossas experiências. A ampla
ocorrência de frases denotando um conceito metafórico tal como “discutir é guerrear”13
reflete o modo como tais metáforas estruturam “o que fazemos e como compreendemos
o que estamos fazendo quando discutimos” (Lakoff e Johnson, 1980, p. 5). Tais
metáforas, ele sugere, estão emaranhadas tão profundamente na cultura que nós podemos
não as enxergar de fato como metáforas (1980, p. 66).
Contudo, a imagem da nação como uma família opera de tal maneira? Em parte,
parece que esta imagem não é absolutamente digna de nota, quase inconscientemente
evocada, de modo semelhante às “metáforas mortas” de Fowler. E, seguindo o argumento
de Lakoff e Johnson sobre o poder que as metáforas têm de estruturar nossas ações e
experiência, esta imagem pode levar a algum lugar na explicação do apelo emocional e
os extraordinários sacrifícios que as ideologias nacionalistas evocam. Em parte, contudo,
o emprego da linguagem do parentesco na retórica política é bastante estratégico e
flagrantemente óbvio. A acentuada imagética pode nos conduzir erroneamente a pensar
que o parentesco da nação é uma “mera” metáfora, um fenômeno superficial. Contudo,
se combinarmos as sugestões de Lakoff e Johnson com a observação de que, no limite,
esta metáfora em particular pode transformar a si mesma em uma realidade bastante
literal, talvez estejamos começando a encontrar uma resposta para questão de Anderson
sobre o apelo emocional do nacionalismo.
Considerações finais
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“Argument is war”
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modo como substância e código podem ser combinados ou separados, e sobre o que
rótulos analíticos como parentesco “ficcional” ou “metafórico” implicam, sugiro que
devemos focar nossa atenção nos processos ativos através dos quais certas relações são
investidas de poder emocional. E isto está no cerne daquilo que devemos compreender,
se quisermos responder à questão de Anderson sobre o nacionalismo – uma necessidade
que parece ainda mais urgente no contexto de conflitos étnicos que tem dominado a
agenda política nos Balcãs, Sul da Ásia, Oriente Médio e muitas partes da África entre
fins do século XX e o início do século XXI. As combinações, separações e recombinações
de substância e código às quais aludi neste capítulo estão por trás do que Schneider
nomeou como “fronteiras borradas” entre parentesco, religião e nacionalidade. Aqui,
sublinhei o potencial ideológico e o destaque político de tais movimentos. O deslizamento
entre o que é “metafórico” e o que é “literal” torna os processos de naturalização que
operam nestas separações e combinações de substância e código particularmente difíceis
de captar. Sugeri que o poder da tão vulgarizada metáfora da nação como uma família
repousa, em parte, em sua própria familiaridade. Enquanto uma “metáfora pela qual
vivemos”, ela estrutura nossa experiência da nacionalidade. Contudo, sob condições
extremas, esta metáfora pode se tornar uma realidade viva. E este deslizamento é um
componente vital da força do parentesco na esfera política. Quando a violação sexual de
mulheres ameaça resultar no nascimento de crianças cujas identidades podem ser incertas,
problemáticas, estranhas e estrangeiras, então o clamor pelas lealdades nacionais ou
comunais pode vir literalmente a ser equacionado à lealdade aos parentes próximos. E
aqui o poder emocional do parentesco se torna bem pouco familiar. Ele pode,
aparentemente, conclamar a atos que tornam “a pessoa familiar da porta ao lado” em um
“estranho despersonalizado”. Dado que tais processos dizem respeito a nós enquanto
cientistas sociais e cidadãos, devemos compreender os mecanismos de parentesco sobre
os quais eles repousam.