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Das Famílias à Nação:

o poder da metáfora e a transformação do parentesco*

Janet Carsten**

No último capítulo deste livro, comecei a examinar a distinção entre código e


substância que se encontra no coração da análise conduzida por David Schneider a
respeito do “parentesco americano”. Esta distinção pode também ser conectada a um
conjunto mais abrangente de oposições, que são bastante familiares dentro e além do
campo de estudos antropológicos do parentesco: as distinções entre “natureza e cultura”,
e entre “biológico e social”. Como vimos, o emprego destes termos na análise
antropológica parece carregar, ao longo da história da disciplina, fortes implicações sobre
a diferente natureza do parentesco no Ocidente e no “resto”.1

Schneider vislumbrou a oposição e o potencial combinatório do código e da


substância como ocupando o cerne daquilo que constituía um “parente de sangue” nas
ideias Americanas (1980, p. 28). Contudo, vale parar um momento para considerar a
natureza desta combinação, e o trabalho que a separação e a combinação destes elementos
realiza – tanto no plano das ideias nativas sobre parentesco e quanto em sua análise pelo
antropólogo. Neste capítulo, focalizo relações que aparentemente não têm fundamento
algum em uma noção de substância, mas ainda assim são exprimidas através de um
idioma de laços “naturais” – por exemplo, laços de adoção, parentesco “fictício” e
parentesco gay. Qual é a força implicada em enunciar tais relações através de um idioma
natural? E quais tensões estão imbricadas neste tipo de trabalho de parentesco?

Assim como nos capítulos anteriores, extraio exemplos tanto de contextos


ocidentais quanto de contextos não-ocidentais. Meu objetivo é avançar na exploração da
distinção entre substância e código, e fazer algumas comparações entre casos ocidentais

*
CARSTEN, Janet (2004) "Families into Nation: the power of metaphor and the transformation of kinship"
in After Kinship. Cambridge, Cambridge University Press. [“Das Famílias à Nação: o poder da metáfora
e a transformação do parentesco”. Tradução para uso didático por Leandro de Oliveira. Crato: Universidade
regional do Cariri, 2014. Mimeo ] Sujeito a Revisão.
**
Antropóloga, doutora pela London School of Economics (LSE), prof de Antropologia na School of Social
and Political Science da Universidade de Edimburgh.
1
No original, “The West and the rest” (N. T.).
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e não-ocidentais. Ao proceder desta maneira, espero iluminar não somente o processo de


naturalização em jogo quando relacionamentos são formulados em um idioma do
parentesco (ver Yanagisako e Delaney, 1995), mas também iluminar os modos pelos
quais a naturalização, per si, comporta um poder emocional. Isto me conduz, nas seções
finais do capítulo, a considerar usos metafóricos do parentesco mais abrangentes, e a força
política potencial de tais metáforas. Quando nós examinados as conexões entre parentesco
e nacionalismo, fica bastante evidente que a possibilidade de transformar e fabricar
relações que são formuladas em um idioma do “natural” não ocorre apenas em contextos
exóticos e não-ocidentais. Ideologias nacionalistas, como muitos têm notado, iluminam a
saliência política dos usos metafóricos a serviço dos quais o parentesco pode ser colocado.
Mas quais são os mecanismos e deslizamentos que permitem ao parentesco assumir estes
disfarces? E o que confere a estes usos metafóricos do parentesco seu poder emocional?

Dissolvendo as fronteiras: a adoção como transformação

Meu ponto de partida para pensar sobre estes tópicos são, mais uma vez, as
práticas e discursos malaios sobre o parentesco, que encontrei durante meu trabalho de
campo na ilha de Langkawi nos anos 1980. No capítulo anterior, discuti os termos pelos
quais pessoas descreveram para mim ideias sobre o sangue e o leite humanos. O fato de
que estas substâncias corporais sejam afetadas por fatores ambientais (incluindo as
formas de alimentação, residir em uma mesma casa, os encontros emocionais e assim por
diante) assim como pelo nascimento não tem somente uma importância simbólica.
Descrevi em outros textos (Carsten, 1995a, 1995b, 1997) como ideias sobre o sangue e a
conexidade se atrelam a características históricas e demográficas da vida Malaia. A
primeira destas características é uma substancial mobilidade demográfica, que foi
historicamente central para a ocupação de áreas pioneiras nas regiões mais periféricas dos
estados malaios. Em uma ilha como Langkawi, situada na divisa norte do estado de
Kedah, era possível, no fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, se
assentar e ganhar a vida ocupando terras novas ou se voltando para a pesca como fonte
de sustento. O estabelecimento e ampliação de novas comunidades eram intimamente
imbricados com o modo pelo qual conexões de parentesco podiam ser estabelecidas,
através da endogamia e da adoção de imigrantes. Em termos Malaios, casar-se com
aqueles que são “próximos” é em geral considerado algo bom. Tal proximidade pode ser
percebida em termos de conexão genealógica, proximidade geográfica, posição social e
similaridade de características ou disposições. Permanecer em uma mesma casa, comendo
junto, seja pela via da adoção ou do casamento endogâmico, podem deflagrar processos
que tornam uma pessoa gradualmente similar àquelas com quem ela vive. Em trabalhos
anteriores (Carsten, 1995b; 1997), argumentei que do ponto de vista dos aldeões em
Langkawi um hóspede ideal é aquele que permanece por um longo tempo, e
eventualmente se estabelece, casa e tem filhos na ilha.

A segunda característica demográfica, que considero associada às ideias sobre


substancia corporal que descrevi anteriormente, são as práticas de adoção amplamente
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difundidas e a forte tendência a formular as relações através deste idioma, não importa
quão curtas ou longas elas sejam. Uma porção significativa de crianças da aldeia é criada,
ou vive pelo menos algum tempo, em casas de pessoas que não são seus ‘pais de
nascimento’. É notável que os aldeões sintam um forte desejo de descrever todo e
qualquer hóspede – desde o jovem homem trazido à casa por alguns dias como amigo de
um filho adulto, até estudantes em visita que estejam trabalhando em projetos durante 30
dias – através do idioma da adoção. Embora arranjos informais de adoção deste tipo, de
modo geral, não envolvam a herança da propriedade dos pais adotivos como em outras
partes do sudeste asiático (ver, por exemplo, Janowski, 1995. Schrauwers, 1999), não há
sombra de dúvida de que a capacidade de abrigar crianças adotadas expressa prestígio.
Contudo, os efeitos destes usos merecem comentários adicionais.

A tendência a borrar a distinção entre criar um neto, sobrinha ou sobrinho ao


longo de muitos anos e hospedar um estudante como visitante por alguns dias ou semanas
sugere que o processo subjacente a estas formas de hospitalidade pode ser bastante
semelhante. O hóspede ideal reflete de algo de volta sobre os anfitriões ideais: ela ou ele
é tão avassalado pela generosidade local e pela atmosfera de acolhimento que uma estadia
curta se amplia e, eventualmente, deixa de ter temporária. Aqueles que se estabelecem
permanentemente, é claro, já não são mais hóspedes; no processo de viver junto com as
pessoas locais, compartilhar comida e espaço da casa, e eventualmente casar e ter filhos,
eles se tornam parentes. Talvez não seja tão surpreendente que a alimentação dos
visitantes, a qual pode ser o primeiro estágio em uma longa série de atos de hospitalidade,
frequentemente é investida de um caráter coercitivo.

Assim, aquilo que poderia, de início, parecer um ‘uso metafórico’ do parentesco,


é (de maneira gradual e imperceptível) transformado em laços de sangue e nascimento.
De fato, eu hesitaria em empregar o termo metafórico neste contexto. Ao falar sobre
crianças adotivas, os aldeões sempre enfatizam como elas tendem a ser as favoritas, para
seus pais adotivos. Eles também descrevem como uma criança adotada que viva com
“parentes adotivos”2 por um longo tempo irá gradualmente tornar-se semelhante a eles
em aparência e maneiras – de fato, a propósito disto, mudanças em minha própria
aparência eram frequentemente comentadas com aprovação. Se a comida é, pouco a
pouco, transformada em sangue dentro do corpo, e se aqueles que vivem juntos tanto se
tornam semelhantes uns aos outros quanto desenvolvem proximidade emocional, então
no longo prazo este é, seguramente, um processo um tanto quanto literal de produção de
parentesco.

Processos similares, nos quais aspectos físicos e sociais do parentesco


aparentemente se fundem uns com os outros, podem também ser discernidos em casos de
criação e adoção fora do sudeste asiático. Mary Weismantel (1995) descreve como na
comunidade equatorial das terras altas da Zumbagua, uma elevada proporção de parentes
é adotada. A adoção aqui não é nem um recurso raro, nem a última alternativa. Como no
caso malaio, há uma ênfase local sobre a alimentação na produção do parentesco: “A

2
No original, “Foster relatives” (N. Do T.”).
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família Zumbagua consiste naqueles que comem juntos uns com os outros” e “o fogão
(...) suplanta a cama matrimonial como símbolo da vida conjugal e o laço de sangue como
emblema da parentalidade (Weismantel, 1988, p. 169 apud Weismantel 1995, p 693).
Novamente, dado que a carne e o sangue são concebidos como formados a partir da
comida, corpos e substância se tornam conectados através da alimentação prolongada. E
assim, ao longo do tempo, aqueles que vivem e comem juntos vêm a compartilhar de uma
mesma carne, e portanto, vem a parecer uns com os outros fisicamente.

Neste contexto, Weismantel enfatiza que o parentesco adotivo dificilmente pode


ser considerado “ficional”/ convencional no sentido antropológico clássico. De fato, ela
trava um contraste entre a reação escandalizada de uma enfermeira estrangeira à
comunidade, quando a adoção de uma criança é mencionada na frente da própria criança,
e as atitudes Zumbagua, que não tentam de maneira alguma esconder da criança os fatos
do parentesco adotivo. As práticas locais, portanto, não parecem privilegiar o parentesco
biológico. Em Zumbagua, ela argumenta, a natureza não pode ser pensada como algo que
teria precedência sobre a cultura (1995, p. 690-691). Contudo, ao invés de simplesmente
reverter a priorização de aspectos biológicos do parentesco sobre os sociais na análise do
parentesco, Weismantel sublinha que a alimentação em si mesma é um processo que
combina aspectos fisiológicos e sociais (ver também Carsten, 1995a, 1997).

A alimentação, que é – a um só tempo – um processo biológico, simbólico e social,


cria o que Weismantel chama de “conexões materiais” entre pessoas (1995, p. 694).
Contudo, dado que este tipo de alimentação ocorre dispersa ao longo do tempo (ao invés
de ocorrer concentrada em um instante específico, como nas ideias ocidentais sobre a
concepção), ela carrega a implicação de que o parentesco não se origina em um único
momento de procriação sexual (como parece ser o caso no Ocidente), mas é gradualmente
criado. O argumento de Weismantel é concebido como crítica a uma abordagem
simbólica do parentesco, e visa empregar as práticas Zumbagua como um meio para ir
além das oposições material/ simbólico ou biológico/ cultural na análise do parentesco. E
ainda assim, como Susan McKinnon (1995) comentou, o argumento da autora por vezes
se ampara e parece inclusive reiterar estas mesmas dicotomias. Se McKinnon estiver de
fato correta ao destacar que a perspectiva de Weismantel tem muito em comum com a
abordagem que ela tenta minar, isto nos alertaria para a dificuldade implicada no projeto
de escapar aos termos em que grande parte das análises antropológicas do parentesco têm
sido formulada.

Os casos equatorial e malaio são sugestivos, penso, porque nos ajudam a


problematizar a distinção entre o que é biológico e o que é cultural, e é significativo que
isto ocorra de maneiras muito semelhantes em ambos os sítios etnográficos. A adoção
não é estatisticamente rara, nem em Langkawi nem em Zumabagua, e não corresponde à
‘exceção que confirma a regra’, como costuma ser sugerido nas abordagens
antropológicas clássicas. O parentesco adotivo, nestas comunidades, não serve
meramente como uma arena na qual um parentesco instituído por convenção seria
diferenciado contra o pano de fundo dos laços “reais” (leia-se, biologicamente baseados)
cuja primazia seria deste modo confirmada (ver Malinowski, 1930, p. 137; Schneider,
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1984, p. 171). Ao invés de ser um veículo para diferenciar o social do biológico, a criação
adotiva parece ser um meio de transformar o social em biológico, ou de misturar o social
ao biológico.

Tanto em Zumbagua quanto em Langkawi, o laço entre o que é social e o que é


biológico no parentesco é propiciado pelo consumo de comida e sua transformação no
corpo. A permeabilidade do vínculo entre o que poderia ser considerado social e biológico
nestes dois contextos não-ocidentais, que são demarcadamente distintos entre si, me
obriga a examinar novamente o emprego destas noções em exemplos ocidentais
específicos.

Deslindando a Ficção

Schneider sugeriu que a suposição fundamental e implícita sobre a qual


repousavam todas as análises do parentesco, desde Henry Maine e Lewis Morgan a Meyer
Fortes e Levi-Strauss, era que “o sangue é mais grosso que a água”. O parentesco era
aquilo que Schneider chamou de “um sistema privilegiado”, porque ele derivava dos laços
da procriação sexual, e isto era visto como um processo natural e biológico, qualquer que
seja o valor cultural que possa ser concedido a este processo (Schneider, 1984, p. 155-
177). Consequentemente, a adoção tinha especial importância nas abordagens clássicas,
justamente porque ela oferecia uma oportunidade de observar a distinção (supostamente
universal) entre relações de parentesco “verdadeiras” ou “reais” (leia-se, baseadas na
biologia) e aquelas que seriam “fictícias”, ou seja, aquelas que não derivam dos laços da
procriação sexual (1984, p. 171-173).3 Os exemplos do Equador e da Malásia não são
relevantes porque sugerir que as pessoas nestas comunidades não seriam capazes de fazer
este tipo de distinção (algo que elas, sem dúvida, são capazes de fazer). Estes exemplos
são relevantes, ao invés disto, porque mostram que estas culturas colocam ênfase em outro
lugar. Se o processo de transformar laços sociais de vizinhança em laços de sangue é
central para o parentesco malaio, traçar distinções rígidas entre laços “reais” e laços
“ficcionais” seria algo bastante incongruente aqui.

Para Schneider, era evidente que as premissas analíticas às quais me referi não
eram somente implícitas, mas eram elas próprias derivadas da cultura européia (1984, p.
175). Por esta razão, quero olhar de perto para alguns exemplos extraídos da Europa e da
América do Norte, onde poderíamos esperar que a separação entre os laços “reais” e os
laços inventados/ fabricados fosse mais clara e sem ambigüidades. Eu gostaria de
examinar novamente dois casos aos quais me referi brevemente no capítulo 05. O
primeiro é a descrição de Gerd Baumann sobre Southall, um subúrbio etnicamente plural
em Londres, onde há um recurso muito difundido a um idioma da “relação de primos”4
entre jovens Sikh, hindus, muçulmanos, afrocaribenhos e brancos. A etnografia de
Baumann confere bastante atenção à dificuldade de atribuir especificidade genealógica a

3
4
Cousinhood.
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estas alegações, e aos problemas metodológicos que isto causa para antropólogos com um
interesse por parentesco (Baumann, 1995, p. 727-730). O que é importante é que “a ênfase
sobre os primos observada entre a juventude no Southall é compartilhada através de
significativas fronteiras étnicas, religiosas e culturais” (1995, p. 729). Baumann
demonstra que embora as alegações de “relação de primo” variem conforme os diferentes
padrões de parentesco e históricos migratórios destes grupos, seu lugar de destaque deriva
da mesma fonte. Esta é, precisamente, a fusão das duas ordens de parentesco de
Schneider: a ordem da natureza e a ordem da lei. O que os primos fazem para a juventude
de Southall está encapsulado na frase “primos são amigos que são parentes e parentes que
são amigos” (1995, p. 734). Primos, em outras palavras, invocam simultaneamente as
obrigações do parentesco e as escolhas da amizade, tanto a confiança e lealdade que
deriva do parentesco e as preferências pessoais características da amizade. Deste modo,
jovens invocam a “relação de primo” em tipos específicos de contexto – por exemplo,
quanto se tenta obter permissão dos pais para sair com terceiros, ou como uma ameaça
em potencial ao defender-se contra a intimidação exercida por terceiros, ou ainda como
uma desculpa para o próprio comportamento desviante. Baumann deixa claro como tais
invocações são eficientes justamente porque elas se amparam simultaneamente nas
moralidades do parentesco e da amizade.

É significativo, contudo, que alegações de “relação de primo” sejam feitas sempre


dentro da “comunidade” religiosa de uma pessoa – ao contrário dos laços de amizade, que
comumente cruzam fronteiras religiosas ou fronteiras “étnicas” localmente percebidas.
Baumann observa que esta oposição estrutural entre alegações de relação de primo e laços
de amizade implica um parado. O parentesco é, no fim das contas, o reino de laços que
são dados ao invés de serem feitos:

O fato de que é um termo de parentesco que dá conta deste equilíbrio entre “se misturar
com todos” e “ter amigos de outras culturas” não significa nada. O parentesco, e por
implicação os laços de parentesco entre pares, representam a epítome dos laços além de
qualquer questionamento para muitos jovens de Southall. O parentesco, ou simplesmente
a “família” ou o “sangue” fornecem a esfera discursiva por excelência em que se sustenta
a certeza axiomática. Muito do mundo social pode ser caracterizado formas provisórias
e mudança, por regras com exceções e contingências para além das regras. Em meio a
este universo de relatividade cultural, o parentesco representa aquilo que é, de maneira
paradigmática, “real”, dado e natural (Baumann, 1995, p. 736)

Como assinala Baumann, embora os jovens de Southall vejam o parentesco como


paradigmaticamente natural, eles simultaneamente vêem os diferentes padrões de
casamento e parentesco encontrados localmente – por exemplo, entre afro-caribenhos e
muçulmanos asiáticos – como “parte da sua cultura” (1995, p. 736). Aqui, cultura e
natureza não são duas ordens opostas, mas a cultura em si mesma é naturalizada como
parte da natureza – ou, como um informante sucintamente assinala, “é natural fazer o que
tua cultura te diz pra fazer” (1995, p. 737).
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Baumann sugere que esta naturalização da cultura, e a fusão entre natureza e


escolha, podem ser a fonte da força das alegações de “relação de primo”:

Os seres humanos são produzidos (e, portanto, ganham parentes) da mesma maneira ao
redor do mundo, e um primo é inevitavelmente um primo. Talvez seja essa aparente
certeza de que o parentesco é algo real, que ele é uma mesma coisa presente ao longo de
múltiplas “culturas” e de suas “comunidades”, que torna o primo um tropo tão poderoso
e aparentemente inquestionável entre pares com origens muito díspares (1995, p. 737)

Se as alegações de “ser primo” são poderosas justamente porque elas misturam o


que é dado e o que é fabricado, ou as ordens da natureza e da lei de Schneider, então como
podemos conceber as ficções por trás de tais alegações de parentesco? Como nos casos
da Malásia e do Equador, é evidente que é a mistura e não a distinção entre o “real” e
o ficto (no sentido das teorias clássicas do parentesco) aquilo que confere a estes laços de
parentesco sua proeminência. Para que não se pense que esta fusão é de algum modo
especialmente conectada às exigências da vida no multicultural subúrbio de Southall,
quero agora trazer outro exemplo ao qual me referi brevemente no capítulo 5: o do
parentesco gay na América do Norte, conforme a descrição de Kath Weston (1991, 1995).

O retrato produzido por Weston das ideologias formais do parentesco entre gays
e lésbicas em São Francisco nos anos 1980 deixa claro que o que torna o parentesco “real”
ou autêntico neste contexto não é a conexão biogenética, mas sua duração no tempo. Na
construção de uma ideologia alternativa de família, há uma recusa explícita a aceitar a
conexidade biológica como a fonte para o parentesco. Em vez disto, a construção de um
aparente oximoro, as “famílias escolhidas”, se assenta na permanência como a fonte (e
simultaneamente a prova) da autenticidade destes laços. Weston descreve as diversas
formas que tais famílias podem assumir e os múltiplos grupos domésticos que elas
encompassam, incluindo ex-amantes, amigos gays e heterossexuais, crianças que podem
ou não ser biogeneticamente conectadas àqueles que lhes forneceram cuidados parentais,
e redes entre aqueles que cuidam de outros que precisem de suporte na doença,
especialmente a Aids (Weston, 1995, p. 93). A permanência aqui não está simplesmente
atribuída como uma qualidade dos laços de sangue, como na ideologia dominante do
parentesco, mas precisa ser ativamente produzida no tempo (1995, p. 90-91; p. 99-102).

Weston assinala que a recusa em aceitar uma equação entre a conexão “biológica”
e a permanência pode ser lida como uma explícita rejeição à ideologia de parentesco
heterossexual dominante. Contudo, a construção de um idioma de “famílias escolhidas”
baseado na persistência através do tempo pode ser também visto como um movimento
que assimila os relacionamentos gays ao modo dominante de relação. Ao sublinhar os
sutis deslocamento de sentido implicados nestas ideias sobre permanência, ela mostra que
de fato nenhuma destas caracterizações é apropriada. Como ela assinala, embora a
equação entre os laços naturais e a permanência seja comumente feita nos discursos do
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parentesco, atribuição de permanência aos processos biológicos de procriação,


nascimento, vida e morte é em qualquer caso arbitrária:

Da mortalidade e da procriação à perpétua renovação do tecido no nível celular, os


processos biológicos poderiam com a mesma facilidade constituir um significante para a
mudança e o fluxo ao invés de continuidade e controle (Weston, 1995, p. 103).

Embora a invocação de persistência ao longo do tempo possa ser vista como uma
reiteração do discurso dominante do parentesco, Weston argumenta que este movimento
não representa nem uma alternativa radical nem uma assimilação ao modelo dominante.
Isto se dá porque o sentido da solidariedade duradoura, em si mesmo, se modificou em
resposta à luta reivindicatória pelo parentesco gay nas condições históricas e materiais
particulares à vida norte-americana nos anos 1980. Aqui a permanência deixa de ser vista
como um atributo inerente a certos tipos de relacionamento, mas precisa ser produzida
através de atenção e esforço continuados (Weston, 1995, p. 102-106).

Tenho algo a acrescentar sobre a equação entre laços biológicos e permanência na


seção que se segue. Mas primeiro eu gostaria de considerar o que este caso Norte-
Americano nos mostra sobre a separação entre os aspectos “natural” e “social” do
parentesco, e sobre a representação dos laços construídos/inventados na análise
antropológica. Mais uma vez parecemos ser confrontados com a evidência de uma ênfase
explícita na fabricação do parentesco – desta vez através do cuidado e do trabalho. É o
esforço continuado envolvido na manutenção de relações ao longo do tempo que
simultaneamente produz “famílias escolhidas” e prova sua autenticidade. Se
concordarmos com o argumento de Weston de que estas atitudes não são nem uma
rejeição frontal nem uma reprodução direta de modos dominantes do parentesco, seremos
levados a considerar que o trabalho simbólico do parentesco deixa muito mais em aberto
do que a análise de Schneider implica. Aqui a conexão entre a procriação biológica e os
laços naturalmente duráveis é quebrada, enquanto as amizades conotam estabilidade e
permanência. Contudo, como Weston mostra, categorizar tais amizades como parentesco
“fictício” em oposição às relações “verdadeiras” derivadas da procriação sexual caminha
em sentido oposto aos relatos sobre o parentesco gay no qual as amizades são retratadas
como “ ‘tão reais quanto’ outras formas de parentesco” (Weston, 1995, p. 99).

Asseverar a primazia da conexidade biogenética neste contexto pareceria, no


mínimo, desconsiderar o que os informantes nativos estão nos dizendo sobre sua
ideologia de parentesco explícita. E isto coloca a autoria da “ficção” do parentesco
ficcional sob alguma dúvida. Se, neste caso, o que os antropólogos têm estado habituados
a descrever como parentesco ficcional for afirmado como tão real quanto o ‘verdadeiro’
parentesco – ou se, no caso de Southall, é virtualmente impossível estabelecer as bases
genealógicas para as alegações de “ser primo” de alguém – então quem é o autor da
ficção? Schneider afirmou que a primazia dos laços biológicos nas análises
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antropológicas do parentesco emergiu de premissas populares européias e norte-


americanas. Contudo, parece que nem todos os nativos aderem a estas assunções do
mesmo modo ou no mesmo grau. E isto pode sugerir que o primado da biologia foi o
produto de uma estratégia analítica particular, ao invés de ter sido importado de forma
direta e simples do interior de modelos europeus populares de parentesco.

Reuniões de Adoção

Em 1997, quando comecei a conduzir uma série de entrevistas na Escócia com


pessoas que haviam estado envolvidas em reuniões congregado adultos adotados durante
a infância e seus parentes de nascimento (birth kin), eu tinha uma ideia específica em
mente. Meu palpite era que os relatos destas reuniões poderiam oferecer uma conveniente
porta de acesso a algumas das maneiras pessoas quais os parentescos “biológico” e
“social” eram separados na Grã-Bretanha contemporânea. Tais reuniões, eu supunha,
seriam necessariamente predicadas sobre justaposições e articulações fortes entre o que é
esperado de (ou atribuído a) parentes adotivos por oposição aos parentes de nascimento.
Minha própria hesitação sobre a pesquisa que eu estava conduzindo foi bem articulada
para mim por uma colega que prefaciou suas indagações acerca deste trabalho: “Elas são
todas obcecadas com genética?”. De fato, o suposto de que as motivações de pessoas
adotadas que procuram tais encontros revelariam visões totalmente “geneticistas” sobre
o parentesco e a personalidade era uma premissa deprimentemente óbvia. A realidade que
estou apenas comendo a desembaraçar aqui, é claro, era um tanto quanto diferente.

Nas entrevistas que conduzi, alguns cenários aparentemente típicos emergiram.


No capítulo 4, discuti como a resposta mais frequente ao questionamento sobre o que
levara meus interlocutores a procurar seus parentes de nascimento era bastante simples:
“saber de onde eu vim”, “ser completo”, “descobrir quem eu sou”. De fato, as respostas
que recebi eram de tal maneira clichê e estereotipadas que sugeriam que a pergunta, em
si, era praticamente redundante: não era inteiramente óbvio porque uma pessoa poderia
querer passar por esse processo? Também aludi, no capítulo 04, à considerável dor e
revolta que a experiência de buscar e posteriormente se encontrar com os parentes de
nascimento envolvia. Com muita frequência, tive a impressão de que esta dor iniciara
muito tempo antes do início da busca em si. As relações com parentes adotivos eram
descritas para mim de maneiras muito variadas por diferentes informantes. Em certos
casos, os parentes adotivos eram descritos em termos extremamente positivos, como
pessoas amorosas e que lhes apoiavam, a tal ponto que elas por vezes eram quase
consideradas protetoras ou indulgentes demais. Em outros casos, essas relações eram
claramente tensas e problemáticas ou foram vivenciadas como distantes e desprovidas de
afeto. Qualquer que fosse a natureza destes laços, o anseio por se conectar com os parentes
de nascimento parecia praticamente axiomático. Em apenas um ou dois casos os
entrevistados expressaram alguma surpresa com o fato de terem se envolvido neste
processo (“isso não me preocupava tanto assim”), mas em seguida eles simplesmente
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atribuíram esta premissa a terceiros, amigos ou outros, que expressavam interesse e


preocupação.

Todos aqueles que entrevistei descreveram em tons vívidos sua ansiedade e


nervosismo a medida que se aproximavam do fim de sua busca e tentavam marcar um
encontro inicial – usualmente com a mãe de nascimento. Em um caso tremendamente
pungente, uma jovem mulher casada com sua própria família relembrou como ela chegou
ao ponto de comprar todo um conjunto de roupas, e como ela calculou sua aparência
desejada:

Eu tinha acabado de sair e comprado pra mim uma nova blusa. Eu pensei, vou vestir
meu terninho e esta nova blusa para encontrá-la; Eu planejei tudo: eu não queria
parecer vestida bem demais, eu não queria parecer desalinhada. Eu queria aparentar
algo intermediário, porque eu tinha essa ideia de que talvez ela fosse muito pobre...

A importância de transmitir o tipo correto de primeira impressão é vividamente


expressada aqui – assim como o potencial para disjunções representado pela riqueza ou
pela classe. Contudo, quando a busca dela chegou ao fim, esta mulher descobriu que sua
mãe (a qual, se soubera, fizera ela própria repetidas porém fracassadas tentativas de
contatar sua filha) falecera pouco tempo antes da filha conseguir descobrir sua identidade.
A morte era, de fato, um tema surpreendentemente recorrente nas narrativas que coletei.
Com muita frequência, era revelado que uma mãe ou pai de nascimento não estava mais
vivo, e este era frequentemente a mais traumática dentre muitas descobertas difíceis.5

O resultado destas buscas era inteiramente imprevisível. Quando perguntei a eles


que conselho eles dariam a outros que estivessem considerando empreender uma busca
por seus parentes de nascimento, os entrevistados inevitavelmente reiteravam esta
incerteza sobre o que poderia ser descoberto sobre seus antecedentes: “Eu diria, vá em
frente – desde que a pessoa saiba o que ela quer com isso, e esteja preparada pra lidar
com o lado ruim disto. Esteja sempre preparado pro lado ruim disto”. Em apenas alguns
casos, minhas interlocutoras e interlocutores relataram ser capazes de estabelecer algum
tipo de relação harmoniosa com os parentes de nascimento. E era impressionante que tais
resultados positivos tendiam a ocorrer em casos onde as relações entre a pessoa adotada
e seus pais adotivos era também, nitidamente, harmoniosa e acolhedora. Até mesmo aqui,
encontros com parentes de nascimento tendiam a ser conduzidos numa base infrequente
ou informal. Na grande maioria dos casos, contudo, estas relações pareciam ter
intrinsecamente algo de condenado. Elas eram tão impossíveis de estabelecer hoje quanto
tinham sido no passado – duplamente encerradas, por assim dizer, pela morte, por
histórias específicas, pela natureza das personalidades envolvidas ou por excesso de
demandas de uma das partes ou de ambas. Uma mulher descreveu pra mim como, não
muito após um encontro inicial, sua mãe de nascimento começou a fazer demandas e a
dar conselhos de uma maneira que ela considerava um tanto quanto injustificada. Nas

5
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palavras dela, sua mãe de nascimento simplesmente não tinha aquele direito; ela abrira
mão dele quando ela dera sua filha para adoção trinta anos antes. Alguns entrevistados
expressaram a ideia de que as trocas normais do parentesco não são um direito
automático, mas um privilégio que é conquistado através do árduo esforço demonstrado
em criar, alimentar e cuidar de uma criança. Como uma adotada me disse, “Eu não estava
procurando por outra mãe, eu tenho uma”. Tais afirmações eram em parte uma espécie
de declaração de lealdade aos parentes adotivos, mas elas também expressavam algumas
das tensões envolvidas em estabelecer um novo conjunto de relações com os parentes de
nascimento.

A reconhecida importância do tempo e do esforço para a produção do parentesco


(ver também Modell, 1994) e o intenso repúdio à ideia de que na ausência desta
continuada nurturance haveria um laço de parentesco automático decorrente dos fatos do
nascimento poderiam ser consideradas surpreendentes entre pessoas que empenharam
considerável tempo e esforço em descobrir quem são seus parentes de nascimento. Mas
ela evoca as afirmações sobre as famílias escolhidas na América que citei acima. No caso
do parentesco gay, tempo e persistência (ao invés de alguma característica inerente de
relações atribuídas pelo nascimento) são a base e a prova das relações de parentesco
“apropriadas” (ou seja, “criadas”). Embora o ato de buscar os parentes de nascimento
pareça de forma muito evidente sublinhar a precedência dos laços de nascimento na
cultura do parentesco britânico, sob outros aspectos estas pessoas adotadas
simultaneamente perturbam esta primazia. Ao questionar os direitos dos pais de
nascimento, assim como ao frequentemente reconhecer o papel que seus próprios pais
adotivos desempenharam, os entrevistados afirmam com força os valores do cuidado e do
esforço que estão envolvidos na criação de laços de parentesco.

Como no caso do parentesco gay, esta “interferência” sobre o valor simbólico dos
laços de nascimento é acompanhada por deslocamentos no valor dado ao próprio tempo
na produção do parentesco. Uma característica impressionante de muitas das entrevistas
que conduzi era o recurso frequente a artefatos visuais de vários tipos – cartas, fotografias,
poemas, documentos oficiais e peças de vestuário de bebês – que eram produzidas ou
referidas no curso da conversação. Quando o nascimento não implica certeza,
durabilidade ou solidariedade, ele é esvaziado da maior parte do sentido simbólico que
ele recebe no discurso dominante do parentesco, e o tempo em si mesmo tem um papel
chave na produção de novos sentidos para o parentesco. Os artefatos visuais que eram
regularmente produzidos para minha inspeção eram uma produção literal de história.
Como objetos em um museu, eles davam profundidade histórica às versões vigentes das
identidades das pessoas que entrevistei. A relevância destes objetos, e o tipo de história
retrospectiva em construção ali, eram consideravelmente amplificados pela frequência
com que não somente a adoção, mas a morte ou nascimento de um parente de nascimento
perturbava o fluxo do tempo nestes relacionamentos. Quer tais mortes tenham precedido
ou sucedido a descoberta da identidade de um parente de nascimento, elas encapsulavam
os consideráveis deslocamentos de “tempo de parentesco” experimentados por aqueles
que buscavam tais reuniões.
P á g i n a | 12

Se a motivação daqueles que buscam reunião era, em alguma medida, descobrir


“de onde eles vieram”, então a importância de construir uma história documentada com
seus objetos mnemônicos anexos não é algo tão difícil de entender. Contudo, a premissa
de que estas buscas eram predicadas em uma visão completamente geneticista da natureza
humana ou da pessoa não se confirma. E aqui existe talvez uma divergência com relação
ao caso americano em que Kaja Finkler (2000) sugere que a busca de pessoas adotadas
pelos seus parentes de nascença tinha como premissa uma visão totalmente geneticista de
sua situação de saúde, personalidade e parentesco (Finkler, 2000, p. 121-122).6

No capítulo 04, descrevo como uma entrevistada sentiu que era necessário
estabelecer a identidade de seu pai de nascença através de testagem de DNA, a despeito
da avaliação dela própria sobre o caráter dele como bastante desonesto, e da
impossibilidade manifesta de estabelecer um relacionamento satisfatório com ele. Os
resultados de um teste deste tipo estabeleceriam a verdade – ou, nas palavras dela,
“parariam as mentiras” – em face da persistente evasão dele. Contudo, claramente, a esta
altura ela não teria reconhecido muito mais do que este laço físico com seu pai de
nascença. Entrevistadas frequentemente falavam sobre aspectos de sua própria aparência
física em relação àqueles de seus pais adotivos e de nascença. Uma mulher descreveu
como, quando era criança, ela sempre se sentira muito ciente de seu cabelo encaracolado,
porque seus pais adotivos e as famílias deles tinham cabelo liso. Quando ela
eventualmente conheceu sua mãe de nascença, ela descobriu a proveniência de seu tipo
de cabelo. Mas neste caso, como em muitos outros, a relação em si não resultou numa
situação harmoniosa. Se as conexões físicas eram bastante fáceis de construir, estas não
eram necessariamente sucedidas por laços emocionais.

Em outro caso, um jovem homem descreve de modo vívido o intenso tormento


que ele viveu crescendo como a única criança negra em sua vizinhança e escola. Contudo,
quando na casa dos 30 ele conseguiu localizar sua mãe de nascença (que era branca) e
finalmente a encontrou, embora tenha sido “uma sensação boa encontrá-la”, ele descreveu
como a mulher que ele encarou era uma “completa estranha. Não havia, simplesmente,
qualquer conexão:

Definitivamente não houve um “click”,7 não houve uma conexão, algo assim, porque
essa é uma pessoa que você não conhece. Você não conhece essa pessoa, ela é uma
completa estranha. Ela poderia não ser minha mãe, ela poderia ter mandado outra
qualquer no lugar dela.

Esta falta de qualquer conexão era reiterada nos depoimentos de muitos


entrevistados sobre seu primeiro encontro com os parentes de nascença, e contrasta
agudamente com relatos de mídia sobre as reuniões, que tendem a ser vertidos em tons
altamente românticos e sentimentais. Estes laços também requerem tempo – como um
input necessário, ainda que não suficiente – para se estabelecer. Alguns poucos dentre

6
7
No original, “no Ting”, nenhum ‘tinido metálico’.
P á g i n a | 13

aqueles que entrevistei sentiram certo senso inicial de conexidade, mas eles eram uma
minoria. Do mesmo modo, as reuniões com diferentes pais de nascença não
necessariamente seguiam o mesmo rumo. O jovem homem que negou qualquer senso de
conexidade com sua mãe de nascença não apenas estabeleceu uma boa relação com sua
meia-irmã materna, mas também veio a saber um bocado a respeito de seu pai de
nascença, que falecera pouco antes que seu filho descobrisse a identidade dele. Na
ausência de qualquer possibilidade de encontro, ficava claro que os fatos que ele
estabelecera sobre a identidade de seu pai não somente asseguraram sua própria conexão
com este homem, mas foram instrumentais na resolução de suas próprias incertezas sobre
“de onde eu vim”.

Quando perguntei a meus interlocutores como eles viam a importância do


“sangue” e da “criação”8 em sua própria constituição pessoal, as respostas foram muito
variáveis. Era dito de forma simples, como algo pouco digno de nota, que eles pensavam
que suas personalidades eram o resultado de uma mistura da sua herança genética e do
ambiente no qual eles cresceram, embora algumas respostas atribuíssem maior papel à
biologia ou ao ambiente. Uma mulher me disse que seus pais adotivos nunca foram
parecidos com ela: “é como viver em uma casa de pessoas que são alienígenas”. Alguns
disseram que embora encontrar um pai ou mãe de nascença tenha lhes ajudado a entender
algum traço de caráter ou algum talento específico que possuíam, eles sentiam que suas
personalidades de modo geral e o curso assumido por suas vidas fora modelado pelo modo
que tinham sido criados. Meu palpite é de que tais declarações provavelmente não são
muito diferentes, seja em seu conteúdo ou sua variação, daquelas que poderiam ser feitas
pela população em geral.

O que fazer, então, da separação de aspectos “biológicos” e “sociais” nestes


relatos sobre parentesco? A impressão que se apossava de mim é que esta distinção é mais
embaçada do que qualquer modelo simplista nos levaria a imaginar. Aqui, nascimento
não implica “solidariedade difusa e duradoura”, dado o modo como ele é esvaziado de
suas conexões com a certeza, a longevidade ou obrigações e direitos. Enquanto isto, do
ponto de vista da criança, o parentesco adotivo é despojado dos elementos de escolha ou
preferência que os antropólogos usualmente atribuem à amizade ou ao “parentesco
ficcional”. Ao tentar estabelecer novas relações com seus parentes de nascimento, pessoas
adotadas precisam remodelar os símbolos de parentesco. As formas pelas quais elas o
fazem não sugerem, do modo como se poderia esperar, a existência de uma confiança
intensa no conteúdo genético do parentesco. A importância simbólica dos laços de
nascimento, que era aparentemente reiterada pelo processo de busca por parentes de
nascimento, é em muitos caros perturbada ou negada pelos inquietantes resultados destas
buscas. Igualmente, não é possível perceber uma distinção muito nítida ou consistente
entre aquilo é “passado pelo sangue” e o que é absorvido do ambiente. Em vez disto,
parece haver um considerável grau de seleção e escolha (ou daquilo que Jeannette
Edwards e Marilyn Strathern (2000) nomearam como interdigitação) entre a abundância
dos elementos de parentesco que são disponíveis. As ordens opostas da natureza e da lei

8
“Nature and nurture”, no original.
P á g i n a | 14

analisadas por Schneider se tornam, de forma praticamente indissociável, entrelaçadas


quando cartas ou documentos legais podem representar e substituir o sangue ou a criação,
ou quando um informante declara que sua mãe de nascença era para ele “uma completa
estranha”. A sugestão de que os modelos populares nativos do parentesco ocidental eram
a fonte do poder simbólico avassalador atribuído pelos antropólogos à procriação sexual
é, deste modo, colocada em questão quando o tempo, a preocupação e o esforço
continuado tomam seu lugar ao lado do nascimento na cultura do parentesco.

Da Substância à Metáfora?

O material que citei até aqui sugere que o potencial simbólico do parentesco na
Grã-Bretanha e na América do Norte é, em grande medida, aberto a reformulações
criativas. De fato, embora os antropólogos tenham a tendência a, implícita ou
explicitamente, justapor o parentesco ocidental àquele das sociedades não-ocidentais que
eles estudam, os casos que discuti aqui parecem ter bastante em comum. Sem ter a
pretensão de minimizar importantes diferenças nos contextos sociais e história das
pessoas ou comunidades específicas estudadas na Malásia, São Francisco, Southall,
Equador ou Escócia, é difícil não reparar em uma óbvia similaridade na suscetibilidade
do parentesco a contínuas transformações e adaptações. São estas possibilidades criativas
que emprestam ao parentesco sua enorme força simbólica – um poder que é ainda mais
saliente porque emana das circunstâncias emocionais e práticas da vida cotidiana das
pessoas, das coisas que elas consideram mais queridas, e com as quais, sob todos os
aspectos, elas estão mais familiarizadas. É esta força simbólica que torna cruciais as
implicações das tentativas feitas por antropólogos e sociólogos de traçar uma fronteira
entre sociedades ocidentais e não-ocidentais com base parentesco.

Ao argumentar que o parentesco no Ocidente tem um significado em essência


privado, enquanto nas sociedades não-ocidentais ele é constitutivo da ordem pública e
política, nós obstruímos qualquer possibilidade de compreender os modos pelos quais o
parentesco pode se tornar um poderoso símbolo político. Tais símbolos apelam às
emoções de cidadãos ordinários tão fortemente na Grã-Bretanhã ou na Bósnia quanto na
América, Índia e Israel.

Um exemplo daquilo que tenho em mente aqui é fornecido pela sutil e iluminadora
análise de Iris Jean-Klein (2000, 201) sobre a explícita politização de aspectos cotidianos
da vida doméstica durante a Intifada Palestina – tais como visitar, comer e celebrar
casamentos. Jean-Klein rastreia a miríade de conexões entre tais práticas cotidianas e um
emergente Estado-nação, documentando a produção de novos “eus morais”9 por jovens
homens, suas mães e irmãs, que envolviam práticas de gênero e parentesco.

Em um pequeno artigo publicado primeiramente em 1969, Schneider (1977)


argumentou de forma muito convicta que, longe de serem domínios separados, o

9
Moral selves.
P á g i n a | 15

parentesco, a religião e a nacionalidade na cultural americana eram estruturados mos


mesmos termos, e que as fronteiras entre eles eram borradas: “todos os símbolos do
parentesco americano parecem ‘dizer’ uma única coisa: eles dão sustentação a relações
de solidariedade difusa e persistente” (1977, p. 67). Schneider reparou nos paralelos entre
os dois principais modos pelos quais uma pessoa pode ser um cidadão (por nascimento,
ou por “naturalização”, leia-se, um processo legal) e os dois modos pelos quais uma
pessoa pode ser um parente (pela natureza ou pela lei). Ele sugeriu que, assim como no
parentesco a natureza e a lei davam origem a três categorias de parentes (parentes de
nascença, parentes jurídicos e uma combinação de ambos), o mesmo valia para a
cidadania. Uma pessoa pode ser americana de nascença, mas obter cidadania em outro
país por naturalização; uma pessoa pode se tornar americana através da naturalização;
uma pessoa pode ser americana de nascença e ser americana juridicamente.

Schneider estava particularmente preocupado com as implicações do que ele via


como uma estruturação idêntica da nacionalidade, do parentesco e da religião para montar
uma “definição útil de parentesco” (1977, p.68). Minha preocupação aqui é um tanto
quanto diferente. Convém considerar por um momento a questão crucial levantada
(porém não respondida) por Benedict Anderson (1983, p. 16) sobre o nacionalismo:
porque a nação exerce um tal apelo emocional sobre seus cidadãos? Porque, em outras
palavras, pessoas estão preparadas a dar suas vidas por seus países? Contudo, desejo pegar
uma estrada menos batida abordando esta questão através do parentesco ao invés da
política. 10 Ao invés de simplesmente assumir que a conexão entre família e nação é
metafórica, penso que vale a pena esquadrinhar as “fronteiras borradas” entre parentesco,
nação e religião de modo mais cuidadoso. 11

Carol Delaney (1995) sugere que, no caso da Turquia moderna, a mesma


imagética da procriação opera na religião, no parentesco e na ideologia do Estado-nação,
e que ela é uma fonte primária para a naturalização das hierarquias de gênero. O Estado-
nação é inerentemente marcado pelo gênero por “fixar das fronteiras da terra-mãe” – ou,
em outras palavras, assegurar a virtude e a integridade do Estado (1995, p. 186). Ao
constituir Kemal Ataturk como o “pai da nação” nos anos 1920, a ideologia da Turquia
moderna se emaranha em uma imagética marcada por gênero e procriação e já inscrita
nos domínios da religião e da família:

Vatandas, a palavra cunhada para significar “cidadão”, quer dizer literalmente


“companheiro de útero”. A substância física (a co-substancialidade) dos grupos de
siblings provém da mãe, mas sua identidade essencial e eterna provém do pai. Embora
tanto homens quanto mulheres possam ser cidadãos, a transmissão da cidadania
permanece uma prerrogativa masculina (1995, p. 186).

10
11
P á g i n a | 16

O Argumento de Delaney nos alerta para a relevância da interseção entre


imagéticas de religião, parentesco, gênero e nacionalidade no processo de fazer certas
diferenças parecerem naturais (cf. Yuval-Davis, 1997; Bryant, 2002).

Para Schneider, parecia que “O Judaísmo é o caso mais claro e mais simples no
qual o parentesco, a religião e a nacionalidade estão todos em um único domínio” (1977,
p. 77). Embora o critério mais importante para ser um judeu é o nascimento, ser um judeu
se sustenta não somente no nascimento, mas em um código de conduta específico e
elaborado. Schneider notou como a identificação entre religião, nação e parentesco
proposta no Judaísmo dava origem a problemas particulares para o moderno Estado-
Nação de Israel. É central à ideologia da nacionalidade em Israel que aqueles que podem
alegar ser Judeus por nascimento têm também o direito de reivindicar a cidadania no
Estado de Israel (1977, p.69). O recente trabalho de Susan Kahn (2000) sobre reprodução
assistida em Israel ilumina de modo vívido até onde o Estado e as autoridades religiosas
são capazes de ir, em Israel, para reproduzir a cidadania. É indicativo da posição pró-
natalista do Estado que “no meio dos anos 1990, havia mais clínicas de fertilização per
capita do que em qualquer outro país do mundo – 24 unidades para uma população de 5.5
milhões, quatro vezes o número de clínicas per capita existentes nos Estados Unidos”
(Kahn, 2000, p. 02).

Em Israel, as leis de família são assentadas e informadas pela lei judaica.


Analisando casos em que esperma congelado originário de doadores não-judeus nos
Estados Unidos é utilizado na inseminação artificial de casais inférteis judeus ultra-
ortodoxos, e casos em que óvulos foram transferidos de mulheres não judias para
mulheres judias, Kahn documenta o apagamento efetuado por diversas regulações e
debates rabínicos e nos quais a substância genética originária de não-judeus é “subtraída
pra fora” da equação daquilo que faz um Judeu ou cidadão de Israel. O debate sobre a
busca por esperma levanta um número de problemas para Judeus Ortodoxos (Kahn, 2000,
p. 94-97). Dentre estes se encontra a questão de estabelecer se o esperma foi obtido de
um doador judeu, e de estabelecer se a criança resultante deveria ser considerada como
nascida de um relacionamento adúltero (e deste modo considerada um mamzer, ou seja,
o produto de uma união ilícita, e em consequência disto, proibido junto com todos os seus
descentes durante dez gerações de casar com qualquer pessoa que não seja também
mamzer). Este problema é aparentemente contornado pela prescrição ao uso de esperma
não-judeu (2000, p. 104-110). Dado que o status de judeu é transmitido por via
matrilinear, uma criança concebida por inseminação artificial usando esperma não-judeu
é, ainda assim, total e plenamente judia. O uso de esperma não-judeu também resolve o
problema da proibição da masturbação para os judeus, que não se aplica aos não-judeus.
A completude do apagamento é indicada pelo fato de que crianças nascidas de diferentes
mães a partir do mesmo esperma não são consideradas parentes e podem casar umas com
as outras (2000, p. 104-105).

A sucessão matrilinear torna os problemas levantados pela doação de óvulos ainda


mais complexos e sujeitos a intricadas discordâncias entre rabinos sobre como definir a
maternidade (2000, p. 128-139). A extraordinária evocação por Kahn das labirínticas
P á g i n a | 17

adjudicações do rabinato ortodoxo em Israel ilumina de forma vívida o argumento de


Schneider. Aqui, decisões sobre fertilidade e concepção estipuladas por rabinos definem
o que constitui um judeu e um cidadão, e determinam a reprodução do Estado-Nação de
Israel (2000, p. 71-78).

Tanto o caso da Turquia quanto o de Israel envolvem discursos explícitos de


naturalização na ideologia da nacionalidade. Tais processos de naturalização têm sido o
foco de recentes análises do nacionalismo e de conflitos concebidos em termos “etno-
nacionalistas” (ver Bryant, 2002). Contudo, eu sugiro que a naturalização em operação
aqui é de um tipo bastante específico. A aplicação de uma imagética do parentesco em
ideologias do nacionalismo é aparentemente convencional ao ponto de ser dificilmente
digna de comentário. Ela lembra a distinção de H. W. Fowler entre metáforas “vivas” e
“mortas”: uma distinção entre metáforas que são usadas com uma percepção consciente
da substituição, e aquelas cujo uso é tão convencional que a metáfora se tornou
praticamente indistinguível o referente literal. Contudo, a advertência de Fowler é
bastante apropriada:

(...) a linha de distinção entre metáforas vivas e metáforas mortas é uma linha
cambiante, na qual as mortas podem eventualmente ser propensas, sob o estímulo de
uma afinidade ou repulsão, a agitações galvânicas indistinguíveis da vida (Fowler,
1965, p. 356).

Tais “agitações galvânicas” têm sido evidentes nos momentos muito freqüentes
na história do século XX em que a “solidariedade difusa e duradoura” da nação foi
violentamente espatifada. Na ameaça do estado de guerra, apelos à “terra-mãe” ou à
“pátria” em nome da unidade da nação ou da solidariedade de uma irmandade de cidadãos
companheiros passam a ter uma particular atração.

Contudo, a violência da guerra civil, tal qual visto na Bósnia e no Kosovo nos
anos 1990 ou na Índia no tempo da partição sugere que em certas circunstâncias negativas
as metáforas do parentesco têm a habilidade de assumir sentidos que são mais literais do
que metafóricos. Em momentos drásticos de convulsão social como estes, os
comentadores se vêem perdidos na tentativa de dar conta dos processos de destruição que
eles testemunham. Como é possível para uma guerra entre forças “externas” se tornar
uma guerra que transforma vizinhos de longa data em inimigos? Como podemos dar
conta, para citar Tone Bringa documentando a aldeia na Bósnia na qual ela trabalhou, do
modo pelo qual “(...) começando como uma guerra travada por pessoas de fora, ela se
desenvolveu em uma na qual vizinho era colocado contra vizinho depois que a pessoa
familiar da casa ao lado foi tornada um estranho despersonalizado e membro das fileiras
inimigas”? (Bringa, 1995, p. xvi).

Na antiga Iugoslávia, assim como na Índia do tempo da partição, a guerra que


ocorreu foi de um tipo muito íntimo. Um dos meios pelos quais ela era travada foi através
da violação de mulheres que eram percebidas como outras, étnica e religiosamente. Veena
Das (1995a) documenta como na Índia casos de gravidez e crianças nascidas de abduções
P á g i n a | 18

e estupro de mulheres colocavam problemas bastante diferentes para as mulheres


diretamente envolvidas, para suas famílias e para o Estado.

As famílias de origem destas mulheres colocaram várias estratégias em jogo que


tornaram tais mulheres menos visíveis, incluindo dá-las em casamento a parentes
próximos, omitindo-as de suas narrativas familiares e, ponto crucial, raramente
reivindicando as crianças que resultaram de tais violações. O Estado, contudo, ao assumir
responsabilidade pela devolução destas mulheres a suas famílias de origem, não somente
invocava uma linguagem da honra nacional, mas também tornava consideravelmente
menos flexíveis as normas do parentesco:

O interesse nas mulheres (...) tinha como premissa sua definição não como cidadãs,
mas como seres sexuais e reprodutivos. A honra da nação estava em jogo, pois
mulheres enquanto seres sexuais e reprodutivos estavam sendo retidas à força pelo
outro lado (Das, 1995a, p. 221).

É notável que, ao tornar a devolução destas mulheres a suas famílias de origem


um assunto de honra nacional, o Estado mostrou muito pouca preocupação para com os
desejos das próprias mulheres. Em muitos casos, parece que estas mulheres tinham
posteriormente se casado, convertido e sido absorvida em novas famílias, e temiam ser
rejeitadas por suas famílias de origem. O Estado ignorava tais circunstâncias, forçando as
mulheres a deixar para trás qualquer criança nascida de tais uniões quando as famílias de
origem destas mulheres se recusavam a reivindicá-las. Das mostra como, ao assumir estas
responsabilidades, o Estado tornava a definição destas mulheres como Hindus ou
Muçulmanas muito mais flexível. Ao construir uma categoria singular de “mulheres
abduzidas”, que cobria as múltiplas circunstâncias em que tais uniões tinham ocorrido,12
o discurso do Estado tornava estas mulheres mais visíveis, e não menos visíveis. Enquanto
as normas do parentesco local possibilitavam a absorção, o discurso do Estado enfatizava
a “purificação” (Das, 1995a, p. 229).

Em um ensaio separado sobre “A Antropologia da Dor”, Das (1995b) reflete sobre


a relação entre a dor corporal e sua articulação em linguagem e memória, tanto no plano
público quanto no privado. Notando como aquelas que “traíram” as ideologias da pureza
e da honra abandonando seus parentes no período da Partição foram posteriormente
obliteradas das narrativas familiares e da memória, ela vê o estupro e a tortura de mulheres
como um meio de controlar o futuro. Infligir dor sobre os corpos de vítimas é um meio
de efetivamente fabricar memórias. E as experiências corporais não são somente um
idioma para a representação da dor e do trauma, ou um tipo de comentário sobre estas,
mas são parte daquele trauma (Das, 1995b, 186-188).

Tais eventos contradizem o saber convencional de que a ocorrência de uma


linguagem do parentesco em discursos políticos do nacionalismo é inequivocamente
metafórica. A ameaça e a realidade do parentesco ilícito, tornadas reais através de meios
violentos, são poderosos fatores disruptivos na harmonia interna da comunidade. Elas são
também, é claro, frequentemente implementadas em discursos racistas. E isto sugere que

12
P á g i n a | 19

não devemos tomar o teor aparentemente óbvio e evidente da metáfora da nação como
uma família em seu valor de face. George Lakoff e Mark Johnson argumento que
“metáforas pelas quais vivemos” estruturam nossas ações e nossas experiências. A ampla
ocorrência de frases denotando um conceito metafórico tal como “discutir é guerrear”13
reflete o modo como tais metáforas estruturam “o que fazemos e como compreendemos
o que estamos fazendo quando discutimos” (Lakoff e Johnson, 1980, p. 5). Tais
metáforas, ele sugere, estão emaranhadas tão profundamente na cultura que nós podemos
não as enxergar de fato como metáforas (1980, p. 66).

Contudo, a imagem da nação como uma família opera de tal maneira? Em parte,
parece que esta imagem não é absolutamente digna de nota, quase inconscientemente
evocada, de modo semelhante às “metáforas mortas” de Fowler. E, seguindo o argumento
de Lakoff e Johnson sobre o poder que as metáforas têm de estruturar nossas ações e
experiência, esta imagem pode levar a algum lugar na explicação do apelo emocional e
os extraordinários sacrifícios que as ideologias nacionalistas evocam. Em parte, contudo,
o emprego da linguagem do parentesco na retórica política é bastante estratégico e
flagrantemente óbvio. A acentuada imagética pode nos conduzir erroneamente a pensar
que o parentesco da nação é uma “mera” metáfora, um fenômeno superficial. Contudo,
se combinarmos as sugestões de Lakoff e Johnson com a observação de que, no limite,
esta metáfora em particular pode transformar a si mesma em uma realidade bastante
literal, talvez estejamos começando a encontrar uma resposta para questão de Anderson
sobre o apelo emocional do nacionalismo.

Considerações finais

Iniciei este capítulo descrevendo dois contextos aparentemente mundanos e


íntimos nos quais certas relações, a partir de uma base situada fora do parentesco, podem
ser transformadas em relações que operam em um idioma de parentesco. Tanto na Malásia
quanto no Equador, tais transformações invocam o simbolismo da alimentação. Estes,
contudo, não são processos puramente “domésticos”. Eles têm uma importância
econômica e política. No caso malaio, defendi que a facilidade pela qual é possível
transformar estranhos em parentes estava associada a padrões de mobilidade demográfica
e ocupação pioneira em áreas novas – em outras palavras, com uma economia política
regional.

A atribuição de fluidez e maleabilidade ao parentesco não-ocidental ocupa um


lugar familiar nos textos antropológicos. Contudo, em minha caracterização de exemplos
ocidentais, procurei demonstrar como parentesco é igualmente aberto a manipulações e
transformações nestes contextos. A criação ativa de parentesco entre gays em São
Francisco, por pessoas adotadas na Escócia ou no subúrbio etnicamente plural de Southall
são processos que, embora se amparando em uma imagética do doméstico, têm não
obstante uma relevância mais abrangente. Ao demandar uma consideração mais plena do

13
“Argument is war”
P á g i n a | 20

modo como substância e código podem ser combinados ou separados, e sobre o que
rótulos analíticos como parentesco “ficcional” ou “metafórico” implicam, sugiro que
devemos focar nossa atenção nos processos ativos através dos quais certas relações são
investidas de poder emocional. E isto está no cerne daquilo que devemos compreender,
se quisermos responder à questão de Anderson sobre o nacionalismo – uma necessidade
que parece ainda mais urgente no contexto de conflitos étnicos que tem dominado a
agenda política nos Balcãs, Sul da Ásia, Oriente Médio e muitas partes da África entre
fins do século XX e o início do século XXI. As combinações, separações e recombinações
de substância e código às quais aludi neste capítulo estão por trás do que Schneider
nomeou como “fronteiras borradas” entre parentesco, religião e nacionalidade. Aqui,
sublinhei o potencial ideológico e o destaque político de tais movimentos. O deslizamento
entre o que é “metafórico” e o que é “literal” torna os processos de naturalização que
operam nestas separações e combinações de substância e código particularmente difíceis
de captar. Sugeri que o poder da tão vulgarizada metáfora da nação como uma família
repousa, em parte, em sua própria familiaridade. Enquanto uma “metáfora pela qual
vivemos”, ela estrutura nossa experiência da nacionalidade. Contudo, sob condições
extremas, esta metáfora pode se tornar uma realidade viva. E este deslizamento é um
componente vital da força do parentesco na esfera política. Quando a violação sexual de
mulheres ameaça resultar no nascimento de crianças cujas identidades podem ser incertas,
problemáticas, estranhas e estrangeiras, então o clamor pelas lealdades nacionais ou
comunais pode vir literalmente a ser equacionado à lealdade aos parentes próximos. E
aqui o poder emocional do parentesco se torna bem pouco familiar. Ele pode,
aparentemente, conclamar a atos que tornam “a pessoa familiar da porta ao lado” em um
“estranho despersonalizado”. Dado que tais processos dizem respeito a nós enquanto
cientistas sociais e cidadãos, devemos compreender os mecanismos de parentesco sobre
os quais eles repousam.

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