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HELOISA BUARQUE DE ALMEIDA


ROSELY COMES COSTA ·

MARTHA CELIA RAMÍREZ


ÉRICA RENATA DE SOUZA
(Organizadoras)

GENERO
EM
MATIZES

EDITORA DA UNIVERSIDADE
SÃO FANCISCO SÃO fANCISCO CDAPH
UNIVERSIDADE SÃO FRANCISCO
Reitor: Altair Anacleto Lorenzetti, OFM
Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação
Coordenação: Moysé Kuhlmann Jr.
Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação - CDAPH
Coordenação: Marcos Cezar de Freitas
Conselho Editorial:
Ana Waleska Mendonça Lúcia Lippi Oliveira
Carlos Roberto Jamil Cury Luciano Mendes de Faria Filho
Clarice Nunc Luis Felipc Serpa
-liane Marta Teixeira Lopes Mana faria Chagas de Carvalho
Helena M. B. Oomeny Rogério Fenandes
José Gonçalves Gondra Zaia Brandão

396 Gênero em matizes/ [coordenação de] Heloisa Buarque de


G29 Almeida ; Rosely Gomes Costa ; Martha Celia Ramirez;
Érica Renata de Souza . - Bragança Paulista, 2002.
412p. (Coleção Estudos CDAPH. Série História &
Ciências Sociais)
A Aracy Lopes da S i lva,
1. Antropologia Social e cultural. 2. Gênero. 3. Sujeito. em memória
4. Feminismo. 5. Prostituição. 6. Adoção.
7. Homossexualidade. 1. Almeida, Heloisa Buarque de
li. Costa, Rosely Gomes. Ili. Ramirez, Mt1ha Celia.
IV. Souza, Érica Renata de. V. Série.

Ficha Catalográica elaborada pelas Bibliotecárias do Setor de Processamento


Técnico da Universidade São Francisco

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Todos os direitos autorais são resevados à Editora da Universidade São Francisco - EDUSF

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48 Daniel Schroeter Simião Mulher em Campo 49

ORTIZ, Renato. A procura de uma sociologia da pática. l n: ORTIZ, R. MULHER EM CAPO: REFLEXÕES SOBRE A
(Org.). P;erre Beu: Sociologia São Paulo: Ática 1 994. p. 7-29. EPERIÊNCIA ETNOGÁFICA
PAOLI, Maria Célia. As ciências sociais, os movimentos sociais e a
Heloisa Buarque de Almeida
questão do gênero. Novos Estudos, São Paulo: CEBRAP, n. 31, out.
1991.
PISCITELLI, Adriana. Tensões: fem inismos intenacionais e Em Junho de 1 996, saí de São Paulo para fazer um trabalho de
perspectivas contemporâneas de gênero. Campinas, 1 997. Mimeograado. campo em Montes Claros, cidade de aproximadamente 250 m i l
PONTES Heloísa A. Do palco aos bstidores. 1 986. Dissertação hab itantes, no norte d e M i nas Gerais. Dentro d e u m proj eto de
(Mes t rad o em Antropologia Social) - Insrtuto de F ilosofia e Ciêncis pesquisa mais amplo, tinha sido designada àquela cidade com o
Humanas, Unicamp, Campina s. objetivo de fazer uma etnografia de recepção da novela das oito, O Rei
do Gado, buscando cobrir toda sua exibição, do início ao i nal da
PONTES, Heloísa A. Durkheim: uma análi se dos fundamentos
novela.1 A partir da experiênc ia de trabalho de campo nessa c idade,
simból icos da vida social e dos undamentos sociais do simbolismo.
busco compreender como se dá a leitura e a interpretação da novela,
Cadernos de Campo, São Paulo, n . 3, p. 89- 1 02, 1 994.
para d iscutir o que a televisão sign ifica no contexto de sua recepção,
RODRÍG UEZ, Lilia. Genero ydesarrollo. Quito: CEPAM, 1 993. na vida cotidiana de pessoas variadas. O oco deste artigo não é, no
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria úti l de análise histórica. entanto, esta análise de recepção da novela, mas sim o processo de
Educação e realidade, Porto Alegre, n. 1 6, nov./dez. 1 990. tràbalho etnográfico, com atenção à questão do gênero.
Muitos estudos se azem sobre mídia e recepção que
SIMIÃO, Dan iel Schroeter. Um conceito itinetanle: os usos do gênero
consideram a necessidade do trabalho etnográfico, mas circunscritos
no universo das organizações não-govenamentais. 1999. Dissertação
aos campos da comunicação ou dos estudos culturais denom inam
(Mestrado em Antropologia ocial) Instituto de Filosoia e Ciências
-
etnograia aquilo que na antropologia chamamos de entrevistas em
Humanas, Unicamp, Campinas.
pround idade, ou grupos focais,2 mas não necessariamente a idéia de
STOLCKE, Verena. Sexo está para gênero assim como raça para um longo processo de observação participante num universo ou
etnicidad e? E·tudos ,i·o-Asiâticos, n . 20, 1 991. "comun idade". Foi essa longa i nserção - sete meses em campo - que
me permitiu várias interpretações sobre a interação dos conteúdos da
STRATHERN Maylin. The gender ofthe gt. Problems with women '
and problems with society in Melanesia . Berkeley: University of telev isão com diversos aspectos daquilo que é vivido como local. Foi
esse mesmo processo que me levou a reflexões mais profundas sobre
Calionia Pre s, 198 8.
questões de gênero, motivadas i nclusive pela renitente sensação de
TELLE Vera da Si lva. Sociedade civil, direitos e espaços públicos. desigualdade entre homens e mulheres, e por uma aproximação maior
Revista Pó/is São Paulo, 1995. e identificação com outras mulheres durante o trabalho de campo.
YUDELMAN Sally. The integration of women into development
3
projects: observations on the NGO e perience in general and i n Lati
n
Mulher é uma gente muito infeliz
America in particular. World Development. Londres, v. 15, Marcela sentou-se na cama e mostrou a Bíblia
suplemento p. 179-187 1987. aberta: estava rezando. Perguntei se estava tudo bem, e ela,
"mais ou menos". Começou a falar que nestes últimos dias
rezava muito, muito mesmo e perguntou se eu acreditava no
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poder da oração. Por que ela rezava tanto? Porque precisava Ela falou que não era o caso de s e separar, porque
se livrar de muitos pecados, sentia muita culpa. Também talvez gostasse dele. Depois, voltou à culpa que sentia. Sentia­
rezava para proteger os filhos, sempre pedindo a Deus que se culpada por não dar conta das crianças, por não ser boa
eles não se envolves ·em com drogas, como seu marido. Orava mãe, por não ser boa dona de casa, ser tão desorganizada,
na busca de respostas, e para ter mais paciência e paz. Sua por não ter um trabalho.. . e foi se definindo pela negativa,
sensação ruim era talvez o que eu chamaria de angústia, mas pelafalta, pela ausência. Disse que não sabia o que fazer com
ela não usou este termo. Ficamos conversando, e ela foi aos o ilho mais velho e se preocupava com ele - menino "quieto
poucos revelando alguns fatos sobre as quais sempre parecia demais". Voltou a falar na culpa que sentia por seus pecados.
querer conversar, mas nunca tinha falado diretamente antes. Perguntei, afinal, quais eram esses pecados. Disse que depois
Falou que era muito infeliz no casamento, que se casou aos que o filho mais novo nasceu, tinha tomado aquele "remédio
dezesseis anos, rávida, e teve dois .filhos (muitas das para a menstruação descer " em algumas ocasiões. Perguntei
mulheres que conheci ali se casaram grávidas). Disse que como evitava a gravidez agora e ela disse que não evitava.
estava cansada do marido, que às vezes achava que não Comentei que era comum isso, que não devia se sentir
gostava mais dele. Quando ela falava em se separar, ele culpada, muitas mulheres tinham feito algum aborto. "Não!
ficava apaixonado, a procurava, corria atrás dela. Outras Não foi isso, quero dizer.. . eu não gosto dessa palavra, é
vezes, ela achava que gostava dele e então ele a tratava mal. muito forte. " E aí contou que uma vez demorou mais "pra
Ele bebia, usava cocaína. Perguntei então se ela estava tão descer" e tomou Cytotec, sofreu muito, teve uma hemorragia
infeliz, por que não se separava. Que não tinha coragem, que intensa, e nunca mais vaifazer isso. Foi só um jeito de fazer. . .
não tinha um trabalho, que nem tinha terminado o colegial. (o indizível), sem que o marido soubesse.
A conversa era entrecortada por grandes e Queria compensar, para ficar "quites " com Deus, vai
desconfortáveis silêncios. ter mais um filho - mas não agora, quando tiver 30 anos. Diz
Uma tristeza profunda. que precisa ter paciência, ter mais paciência com tudo, com o
Percebi que se eu falasse a respeito de separação ela marido também, parapoder acertar sua vida. Já teve paciência
reagia no sentido oposto, então eu falava que ela devia ficar com os casos amorosos que ele teve durante esses anos todos.
com ele e tentar melhorar a relação, mas daí respondia que Duro era icar ali, com ela, tentando mostrar que
não tinha jeito. Qualquer coisa que eu falasse, a levava a deveria haver alguma solução. Seu olhar no vazio, sua
reagir na direção oposta. Achei melhor ouvir. en ação de vida pe rdida seu r de alguém que não sabe o que
,

Eu ouvia, pela via da fofoca, que ela e o marido fazer com tanta angústia - e eu não sabia mais o que dizer.
tinham uma relação violenta. Falavam que ele às vezes batia E os silêncios.
nela e ela "descontava" nos filhos - era isso o que se Isso aconteceu outras vezes em campo - volta e meia
comentava. Parecia estar num redemoinho de relações eu me via ouvindo conidências das mulheres, conversas
familiares violentas que, pelo que diziam, vinha desde sua compridas, às vezes cheias de silêncios, como a de Marcela -
famlia de origem. Ela nunca disse uma só palavra sobre sua mas não tão angustiadas. Depois, voltava para minha
família de origem - mas, pela fofoca, eu ouvia uma história "tenda ", meu quarto de pensão, e eu me sentia angustiada.
colituosa e violenta. Não sei o que era verdadeiro, o que era Para esquecer, ia até o telefone público e ligava para a minha
exagero (quem conta um conto, aumenta um ponto), mas no casa, em São Paulo. Para matar as saudades e lembrar que
contexto, tais relatos eram verossímeis.
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eu tinha uma outra vida, longe dali e que, ao final da pesquisa neste artigo. Rabinow propõe que se compreenda melhor o lugar do
de campo, ia voltar para casa. antropólogo como um lugar liminar, que busca azer a ponte entre as
culturas, construído por uma relação intersubjetiva e pessoal com os
Em certo aspecto, a história de Marcela acima não era a mais informantes. O próprio trabalho de campo constrói uma relação
comum, ou típica. Simplesmente pelo fato de que ela não trabalhava, a intersubjetiva entre informantes e antropólogo, um lugar particular e
não ser o trabalho eventual de aj udar o marido em seu negócio. Todas liminar que não pertence totalmente a um só universo cultural, e que
as outras m u lheres de camadas médias e populares de Montes Claros promove em ambos a relexão e a crítica acerca de suas culturas de
com quem convivi trabalhavam - mesmo que a fonte de rendimentos origem . Nesse sentido, Rabinow destaca como alguns informantes q ue
fosse um trabalho dentro de casa, como costura, ou azer salgados e eram um tanto liminares na sociedade marroquina eram os melhores,
bolos para festas. Ainda assim, seu exemplo pode ser um pouco mais na medida em que já tinham um certo distanciamento e visão crítica, e
extremo (embora não raro) pela questão da violência, mas a sensação que sofriam um processo de elaboração objetiva sobre a sociedade em
de desigualdade era renitente e era isso que mais me impressionava. que viviam, por vezes, de modo quase marginal . O processo
M uitas mulheres de classe média, e com menor freqüência algumas comunicativo do trabal ho de campo cria um sistema de significados
mais jovens de camadas populares, sempre remetiam ao tema do compartilhados entre informante e etnógrao, um mundo liminar e à
machismo - m uitas vezes apenas para comentar como o marido era parte de ambas as culturas.
ciumento ou controlador. Proponho aqui que talvez esse espaço liminar permita à
Uma das q uestões centrais abordadas neste artigo é a situação pesquisadora romper as aparentes fronteiras do gênero, fazendo
de confl ito entre o lugar social da mu lher na sociedade pesquisada e o passagens entre universos considerados masculinos ou femininos. O
espaço de atuação da antropóloga. Em vários ensaios da coletânea que fato de não ser do local permite q ue parte das restrições impostas à
analisa a experiência de antropólogas em campo, organizada por maioria das mulheres seja rompida - conclusão semelhantes à de
Peggy Golde ( 1 986), evidencia-se, por exemplo, como é complicado Golde. Isso não se dá sem gerar outros problemas, como talvez certo
reagir diante de padrões comportamentais que restringem a ação e a receio por parte dos informantes diante de uma pessoa cuj o status não
liberdade das mulheres. Mas tona-se igual mente notável como muitas é evidente. Por este motivo, Rabinow destaca a necessidade, ao
vezes é possível romper com o comportamento esperado, dado que se mesmo tempo, de ser bem aceito e manter relações com pessoas que
trata de uma m u lher que é de fora.4 Pretendo destacar aqui que, de são consideradas respeitáveis no grupo social estudado. São estas
início, para ser bem aceita em certos grupos, é preciso também questões inspiradas nos trabalhos de Rabinow, Landes e Golde entre
adequar-se ao comportamento esperado por uma mulher de famlia, ou outros, e na minha experiência de campo que comento neste atigo.
então meu acesso ao espaço doméstico das pessoas, na hora noturna, Gênero é pensado aqui não como conseqüência direta do sexo
num momento de intimidade familiar, na hora de assistir TV (momento biológico, da matéria corporal, mas como construções simbólicas acerca
central para minha etnograia) estaria ameaçado - como destaca Ruth do m undo, baseadas numa interpretação cultural sobre o dimorfismo
Landes (1986). Algo semelhante ao que comenta Lila Abu-Lughod sexual. Não pretendo que a categoria gênero seja apenas pensada como
( 1 986) em contexto social (beduínos no Egito) em que a distância diferença sexual, ou a oposição entre homens e mulheres, mesmo se
entre comportamentos masculinos e femininos era mais extremada. 5 construída cu ltural e socialmente - mas é uma oposição entre
Além desta reflexão, há uma outra inspiração central neste comportamentos masculinos e femininos para a qual tenho que chamar a
artigo: a chamada onda pós-moderna na antropologia e sua reflexão atenção para analisar algumas dificuldades durante o trabalho de campo.
acerca do trabalho de campo. O livro de Paul Rabinow, Relections on Porque a divisão sexual é essencialmente um processo cultural, não há
Fieldwork in Morocco ( 1 977), é a fonte central deste questionamento uma "essência" que defina o gênero independentemente do contexto

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histórico e cultural - tudo é relativamente construído, sendo as atribuições A EXPERIÊNCIA D O TRABALHO D E CAMPO
de gênero reelaboradas nas situações específicas. São estas reelaborações
que pem1item à antropóloga ir além das restrições normalmente impostas Instalei-me em Montes Claros num pensionato prox1mo ao
às mulheres na sociedade estudada. centro da c idade que aci litava a minha locomoção por vár ios bairros e
Sob essa perspectiva, as representações acerca do gênero são servia de referência para ir aos poucos conhecendo mais pessoas na
também sua própria constituição, que se dá em vários campos da c idade. O meu quarto, l ogo na entrada da casa, separado do resto,
experiência social e da produção cultural (como a televi são e as parecia uma metáfora da m i nha sensação i n icial de sol idão. É
telenovelas). No entanto num dado contexto não há representação inevitável perceber o quanto a oportunidade de azer uma etnografia
ixa, ma sim vária corr nte nesta construção do gênero ainda que no sentido tradicional de viagem a outra situação social - distante do
alguma (ou alguma ) con titua parte do di curso hegemôn ico.6 As meu cotidiano em São Paulo, onde eu já tinha feito outros trabalhos de
construções de gênero da televisão interagem com as construções campo - gerava uma situação de ragil idade emoc ional. Ao mesmo
locais e, nesse processo, os comportamentos sociais mascul inos e tempo, configurava-se como a idéia do rito de passagem central na
fem ininos também se modificam. formação disciplinar. Nesse processo, não é só a formação profissional
Nesse sentido, exploro aqui algumas dessas construções de que será constituída, mas a própria pessoa da pesquisadora sofre uma
gênero mais dominantes em Montes Claros e como foi possível, enquanto mudança intena (Golde, 1 986, p. 9 1 ). Segundo Ruth Landes ( 1986), a
pesquisadora, lidar com elas. O que é localmente construído como dificu ldade do trabalho de campo reside exatamente na dificuldade de
feminino - numa interação compl xa entre várias instituições soc iais (por "se encontrar" num contexto em que tudo difere das referências
exemplo a Igreja Catól ica) - entava por vezes em choque com as anteriores do antropólogo.7
concepções que eu tinha, de início basicamente restringindo minha ação e Mas Montes Claros talvez não fosse tão distante, e a televisão
gerando um receio inicial de me expressar abertamente. parecia ser a ponte que acilitava a passagem, intermediando, gerando
Esta reflexão inclui aspectos subjetivos do trabalho de campo conversas e relações sociais, e omecenedo algumas reerências comuns.
q ue podem ser reveladores das construções de gênero. Embora eu Consegui contatar algumas amílias que não só costumavam assistir à
relate algumas formas pelas q uais as distinções entre homens e novela das oito - objeto de reflexão da etnograia - como aceitaram a
m u lheres são vistas como "naturais", pretendo na verdade demonstrar minha presença em momentos de intimidade fami liar, na hora de ver TV,
como tais construções se dão num encontro que tem, no mínimo, três em casa, à noite. Construí uma rede de pessoas e famílias de orma direta
influências: o contexto local a televisão e seus programas e a presença e pessoal. Primeiro, convers�ndo no pensionato onde morava. Ali, tive a
de uma "antropó loga pauli sta' (como muitas veze ui classiicada). oportuni dade de assistir a televisão com as jovens do pensionato e a
Esses três elementos não ão homogêneos nem un ívocos. Montes empregada doméstica que morava na casa, uma adolescente vinda da
Claros não é uma aldeia e tampouco uma pequena comunidade rural. wna rural do norte mineiro.
Se ela parece uma comunidade relativamente coerente, isto é apenas uma Através das pessoas deste pensionato, de seus fami l iares,
maneira de tentar demonstrar algumas idéias e problemas de modo amigos e vizinhos, iz algumas redes de l igações pessoais e consegui
conciso, em um artigo, buscando algumas generalizações possíveis. em poucas semanas ormar um grupo de pessoas com quem ass i tia
Mas espero também demonstrar como há uma heterogeneidade e uma regularme nte a O Rei do Gado. 8 e outro grupo que m uitas vezes
mudança de valores em processo. formava elos nessas apresentações tornaram-se também parte do meu
trabalho de campo de forma menos direta (mu itas destes sequer
costumavam assistir a tel evisão). Alguns deles eram professores ou
alunos do curso de Ciências Sociais da Universidade Estad ual de

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M ontes Claros q ue me procuraram, e eventualmente me ajudaram a constrangimentos. Eles se sentiam responsáveis pela mi nha volta ao
fazer uma rede de conhecidos. Outros eram vizi nhos q ue não se pensionato, m uitas dessas fam íl ias agindo como se eu precisasse de
interessavam pela pesquisa em si, mas pela m inha pessoa, ou pela proteção - estava claro que as mu lheres, à noite, são vistas ali como
oportunidade de ver a cidade ou si próprio tomar-se objeto de estudo. vulnerávei s e possíveis vítimas. Nesse sentido, era importante além de
Ser uma antropóloga de São Paulo, associada a nomes carregados de ser mulher, comportar-me adequadamente - não estar fora dos padrões
sentidos si mból icos de legitimidade e autoridade (como U S P, onde fiz locais do comportamento emin ino para uma mulher casada, mas que
meu mestrado) azia de mim em certo circuito uma pessoa conhecida está ali desacompanhada. Ou pelo menos, o que parecia ser adeq uado
na cidade. Por um lado, pela el ite intelectual, os professores da para as famílias de diferentes estratos sociais e esti los com as quais eu
un iversidade local, alguns amigos e parentes do cidadão mais famoso l idava - incl uindo pessoas de idade em alguns casos, católicos mais
de Montes Claros, Darcy Ribeiro, por outro, na vizinhança e no conservadores, ou em outras situações mais fáceis para mim em que
circuito das famílias que se tomavam meus informantes, percebi aos os pais eram da m inha idade e tinham uma postura mais liberal .
poucos q ue me tornei conhecida. Ainda q ue não fosse uma aldeia, Ficou evidente que o ato de ser m ulher e simpática fac ilitava
sentia-me às vezes um tanto observada. essas entradas, mas tal comportamento também fazia parte do
Em termos de técnica de pesquisa, para refletir sobre o papel processo de conquistar os informantes - usar a simpatia feminina, ser
da televisão no cotidiano, buscava assistir às novelas com pessoas que sorri dente, sem ser ameaçadora. A idéia era ir aos poucos e, assim,
tinham o hábito de acompanhar as narrativas, ou O Rei do Gado em criava uma intim idade na maior parte das vezes iniciada com as
particular. Esta proposta exigia um contato com o ambiente mulheres, especial mente aquelas que tinham uma idade próxima à
doméstico, num horário de intimidade ami l iar. Eu apresentava a minha (mu itas vezes, eram as mães nas casas com crianças pequenas).
pesqu isa dizendo tratar-se de um estudo sobre a influência da televisão A outra condição facilitadora era o contato pessoal e fami l iar, as redes
na família e como a família interagia com a TV. Ao invés de perguntas de parentesco e amizade através das quais fui contatando essas
d iretas, eu me mantinha visitando regularmente algumas amílias, assistia pessoas. O fato de ser apresentada por um amigo ou parente era u m
à novela com eles, e conforme a conversa começava, eu apenas ponto fundamental e o que mais facil itava a visita à s residências no
i ncentivava que as pessoas dessem sua opinião e refletissem sobre os período noturno.
conteúdos e programas. Parecia uma simples visita (eu não levava Alguns acasos não planejados permitiram a criação de uma
gravador nem fazia anotações ali) mas todos sabiam q ue não era. imagem de boa moça, de família e, portanto, fac il itaram a entrada e a
A lguns estranharam que eu não fizesse perguntas diretas, então intimidade no espaço dom�stico. Por exemplo, fazer as visitas
,
elaborei algumas perguntas iniciais para poder ser encaixada na categoria acompanhada de uma das crianças que moravam comigo no
de pesquisadora. Só no final, depois de quatro meses em campo, comecei pensionato - o q ue só aconteceu casualmente, porque uma das
a fazer entrevistas em profundidade com o gravador - já eq uipada do meni nas com freqüência queria me acompanhar quando eu visitava
material de várias conversas, e muitas vezes, relembrando na entrevista o alguém que ela conhecia ou que tinha crianças de sua idade com q uem
que cada pessoa já havia comentado antes. A m i n ha presença e meu pudesse brincar. No in ício, eu não soube como negar o pedido, mas
interesse nesta narrativa levou mu itas pessoas a acompanhá-la - temi que ao levá-la comigo poderia atrapalhar a pesquisa. Logo
pessoas q ue nem sempre costumavam assistir às novelas - e tam bém percebi q ue andar acompanhada de uma criança me tornava mais
certamente provocou mais reflexões sobre esta narrativa. respeitável do que a igura de uma mulher sozinha, e abria portas. As
Percebi, desde o início, que ser mulher facilitava esta entrada pessoas não se sentiam ameaçadas por uma forasteira, mas agiam
no espaço doméstico. A igura feminina é menos ameaçadora. Por como se osse apenas uma visita, com uma criança j unto permitindo
outro lado, ao sair da casa das pessoas à no ite, gerava alguns um tom mais fami 1 iar e "normal". Ruth Landes ( 1 986) também notou

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i sso na Bahia dos anos trinta. O ato de eu ser casada mas não ter contexto local. Essas construções, questionadas também por m uitos
filhos era considerado estranho, mas andar com as crianças denotaria que viviam al i, explicam a diicu ldade inicial de alguns em reve lar
m inha tendência fem inina à maternidade, ao cuidado com elas, a uma suas opiniões acerca de temas como sexualidade e relações entre
postura de seriedade e de responsabil idade.9 homens e m ulheres.
Havia uma aparente aci l idade de abordar certos temas em
campo se o tema era considerado fem inino ou doméstico. A televisão Montes Claros é outra realidade (Laura)
é um meio de comunicação dentro do espaço doméstico e a telenovela Isso que eu te falei, Montes Claros ainda é muito
é considerada femi nina. Dado que a novela é relativamente preconceituosa. É isso que eu quero te dizer. E a realidade da
feminil izada, é visto como normal que uma pesquisadora do sexo novela, da cidade grande, mostra uma realidade, que para o
feminino aça este trabalho. (Isso não signiica que pesqu isadores do Rio e São Paulo é tudo natural. Aqui é outra realidade. Os
sexo mascul ino não possam pesquisar o tema, apenas que meu valores são outros. . . é um contraste. Por exemplo, a questão
interesse pelo tema era considerado normal e menos questionado.) da virgindade, eu estou falando porque eu já escutei no meu
Mais ainda, a situação promovia a conversa com outras mul heres, num colégio, com os adolescentes: "Ah! não, tenho que paquerar
espaço ami l iar e apropriado para visitas. Nesse contexto, aparecer na todas ", isso falam os meninos: "tenho que paquerar todas.
casa de conhecidos que tinham filhos e levar mais uma criança, para Mas casar, vou casar com uma menina que é virgem, não vou
q ue brincassem juntas, completava a sensação de apenas uma visita, casar com uma que já foi. . . " Você acredita? (. . ) Eu ouço isso
criando um ambiente agradável e menos "artificial" na observação de dos meninos de quatorze, quinze, dezesseis anos.
campo. M inha opção por não fazer anotações naquela hora, de ixando
para escrever as observações posteriormente, também pareceu acertada A fala acima é de Laura, orientadora em escola pública e mãe
para perm itir q ue as pessoas se acostumassem com a m inha presença. de três filhas adolescentes. Ela costumava comentar o machismo da
É preciso esclarecer aqui que uma mulher sozinha v inda de região, criticando-o, e tentava mostrar o quanto gostaria de mudar essa
São Paulo era ao mesmo tempo, também, perturbadora. Na medida em situação. Por este motivo, destacava que educava suas filhas de modo
que os valores dom inantes q uanto à sexualidade e ao gênero se diverso à forma q ue havia sido educada em sua famíl ia de origem. Ela
chocavam com a i magem da "paulista independente", havia uma casou-se aos 1 8 anos e dizia querer promover outra opção para suas
situação delicada que até gerou alguns constrangimentos. Por exemplo, filhas, para que elas pudessem ser mais maduras ao se casar, não tão
n uma fam íl i a na qual consegui certa intim idade com a mãe e a fi lha, o jovens, e que tivessem alguma experiência (sexual ou amorosa?) antes
pai raramente conversava comigo, dando a entender que não gostava do casamento. No entanto, sentia-se como exceção se comparada à
muito de m inha presença. Houve outros casos, como um homem que me maioria das mães de adolescentes e percebia que essa idéia não era
conheceu no bar, num contexto em que só havia homens além de m im, bem aceita na cidade.
não quis me apresentar a sua esposa quando os encontrei juntos noutra Esse machismo - esse é o termo usado ali - era um tema
ocasião - dando a nítida impressão de que eu não deveria ser uma recorrente nas conversas com as mulheres. Eram conversas que
"mu lher de famíl ia". Outras pessoas não se sentiam à vontade para aconteciam com maior freqüência fora dos ambientes domésticos e
dizer o que pensavam e às vezes precisavam explicar q ue ali era dos momentos de se assistir às novelas. Por exemplo, Graça,
diferente de São Paulo, principalmente na hora de expressar opiniões, manicure, casada, mãe de quatro filhos, era contida enquanto
por exemplo, a favor da virgindade para moças até o casamento. assistíamos a novela, quase não falava. Muitas vezes, m inha forma de
Para entender esse eventual desconforto com a m i nha perguntar e conversar tinha que ser control ada - eu me vigiava para
presença, é preciso explorar algumas construções de gênero no não i mpor o meu esti lo de conversar a pessoas que mu itas vezes

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60 Heloisa Buarque de Almeida Mulher em Campo 61

conversam de outras formas: pelos gestos, olhares, sorrisos e até qual idade que as destacasse para não ficarem simpl esmente mal
si lêncios (como mencionei na conversa com Marcela), mas também aladas - ser artista, ou da elite, ou de uma família tradicional, ou ser
por metáoras, exemplos, contando casos aparentemente d istantes ou de fora. Como lembra Rabinow, os informantes relativamente
passados. Depois da terceira visita, Graça me convidou para tomar "marginais" na sociedade são muitas vezes i deais - reletem mais
uma cerveja no bar ao lado de sua casa. Como seu marido não sobre a sociedade em que vivem, suas regras sociais, seus padrões,
costumava beber - situação bastante atípica se comparada com os outros exatamente porque m uitas vezes os questionam. Também algumas
casais - era no bar que tínhamos conversas mais íntimas e "de mul her". dessas mulheres, ao lado de outros grupos fora do padrão hegemôn ico
Embora muitas vezes os bares, à noite, sejam lugares masculinos, com - artistas, homossexuais, adolescente rebeldes - formavam grupos
Graça era um espaço de conversa eminina, principalmente pela chance alternativos, rodas de am igos que se encontravam em alguns lugares
de estar longe dos fi l hos e do marido. Mas i sto se dava sempre num especiais, como a casa de uma cantora. Outras, no entanto, ficavam
horário em q ue o bar era ainda fami l iar - mais tarde da noite, ele mesmo um tanto isoladas socialmente.
poderia tomar-se um ambiente excl usivamente masculino. No bar ao Quase todas as mulheres e vários homens falavam do
lado de sua casa, Graça (e às vezes alguma de suas ami gas) alava do machismo reinante, e elas ainda l amentavam-se da infidelidade e dos
machi smo local, das diiculdades no casamento ou na educação dos ciúmes - dois traços associados a esse mach ismo. Todos destacavam
fi lhos, e fazi a perguntas mu ito diretas sobre meu casamento, como que Montes Claros era dierente de São Paulo: mais atrasada,
meu marido h avia deixado q ue eu osse para Montes Claros etc. tradicional, i nteriorana, o q ue podia ser considerado positivo por
Essa observação era mu ito recorrente. As pessoas sempre se várias pessoas (especialmente as mais velhas, com mais de 40 anos, os
espantavam q uando eu dizia ter um companheiro. Afirmavam que catól icos mais conservadores), mas era visto como algo negativo por
meu marido devia ser mu ito bom por permitir que eu viajasse a aquelas que acrescentavam o adjetivo mach ista.
trabalho e que isso só podia mesmo acontecer porque eu não tinha A problemática do gênero surgia de forma forte e marcante n a
fi lhos e porq ue vinha de São Paulo - onde tudo é mais moderno, real idade local, e também servia de contraponto constante à televisão.
inclusive os casamentos. Também o termo moderno é uma categoria Nas novelas, tudo seria diferente de Montes C laros, e parecido com o
nativa q ue, no entanto, é al imentada de sentidos pela mídia. O ato de que imagi navam ser no Rio ou em São Paulo. Nesse sentido, eu era
eu ter mais de 30 anos, ser casada e não ter ilhos parecia igualmente muitas vezes vista pelas mulheres como alguém de sorte. Assim, esta
uma opção estranha - não conheci nenhuma mulher al i que osse oposição entre um aqu i tradicional (termo que e les usavam) e um lá
casada e não tivesse filhos, a não ser que não pudesse tê- los. Nota-se moderno (São Paulo de onde eu vinha, ou a cidade grande da novela)
assi m que por ter um marido que me deixava vijar a trabalho sozinha, era o parâmetro para se di scuti r q uestões de gênero, o conteúdo da
por não ter fi lhos, por ter coragem de encarar tal trabalho, e por vir de novela, e o papel social da televisão. Era também o contraponto para
São Pau lo, eu era categorizada como uma mulher atípica para o contexto. explicarem porque a vida al i era diferente do que eu conheci a e tinha
No entanto, era um tipo bastante conhecido se comparada às mulheres vivido em São P aulo.
modenas e profissionais de cidade grande q ue eram admiradas nas Por outro lado, relações ami li ares, gênero e sexual idade eram
novelas - pelo menos era a imagem que algumas pessoas expressavam, o meu objeto de estudo já em comparação com a telev isão e
especialmente algumas adolescentes que o disseram mais abertamente. certamente algumas dessas reflexões foram sendo eitas à medi da que
Entretanto, cabe ressaltar que conheci muitas mul heres eu estimulava meus i normantes a pensar nesses problemas. A
corajosas, que também não se encaixavam no modelo tradicional, referência costumava ser como a família é mostrada nas cenas de O
mas elas às vezes tinham o estatuto de pessoas diferentes, exceções à Rei do Gado, e como em Montes Claros era diverso. Se o protagoni sta
regra, alvo de fofocas e piadas. Era preciso que tivessem alguma da narrativa aceitava a traição de sua mulher, na vida real, é o

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62 Heloisa Buarque de Almeida Mulher em Campo 6

contrário que costuma acontecer - os homens traem, e as m ulheres telenovelas). Mesmo quando a novela retrata um contexto rural, com
relevam. Essa comparação expunha o que chamavam de mach ismo. era o caso de O Rei do Gado, considera-se q ue os valores am i liare�
De qualquer forma, era a situação da pesqui sa que promovia essa as ormas de relações entre homens e mulheres combinavam com ·

intensa relexão sobre o tema, como lembra Rabinow: universo dos padrões comportamentais de uma cidade grande e nã·
tinham a ver com a real idade de uma cidade relativamente pequena, d
Quando um antropólogo se insere numa cultura, ele interior, como Montes Claros. Nessa oposição, as variações intenas
treina as pessoas a objetivarem seu mundo da vida. Em todas as cada contexto eram apagadas em nome de uma generalização.
culturas, com certeza, já existem processos de objetivação e Ainda que destacassem uma desigualdade, mencionada con
relexão sobre si mesma. Mas essa tradução consciente e reqüência pelas mulheres (e que era melhor percebida pela comparaçfü
explícita para um meio exteno é rara. O antropólogo provoca com os conteúdos da televisão e das novelas), a maioria das mulhere:
um acréscimo de consciência. Assim, a análise antropológica que conheci trabalhavam fora e tinham muitas vezes uma atuação q ut
deve incorporar dois fatos: primeiro, que nós próprios estamos não correspondia à i magem de mulher oprimida do exemplo inicial dt
historicamente situados através das questões que perguntamos e Marce la. Mas na esfera da sexualidade a desigualdade de gênem
da maneira que buscamos entender e vivenciar o mundo; e parecia mai s forte: a atuação sexual masculina (heterossexual) en
segundo, que o que recebemos de nosso informantes são exaltada como uma natureza incontrolável, principalmente fora de
interpretações, igualmente mediadas pela história e pela cultura. casamento; a em inina deveria ser controlada e restrita idealmente :
Conseqüentemente, os dados que coletamos são duplamente esfera do casamento. Se esta construção de natureza masculina levav:
mediados, primeiro pela nossa própria presença e depois pela ao sexo, principalmente ao ad ultério, a fem inina era vista como de
r�lxão de egunda ordem que demandamos de nossos outra ordem, que l evava à mateni dade e à instauração da amília. Ma
informantes. (1977 p. 1 19)10 a virgindade era cada vez mais um ideal u ltrapassado pelos ato
(como o número de mulheres na faixa dos 30 anos que se casaran
Concordo inteiramente com esta reflexão de Rabinow. Mas grávidas revela).
além dessas mediações, no meu caso, pela temática que comb inava
com o tipo de tema das novelas (relações de amor e amíl ia) a própria
televisão e a novela já traziam para m uitas pessoas esse tipo de MUDANÇA SOCIAL E AS F RONTEI RAS
reflexão comparativa. As pessoas já costumavam ter uma reflexão
sobre estes temas a partir da comparação com a televisão, que era Carlos e Fernanda têm uma relação relativamente i gual itária
parte de seu cotidiano há m uito tempo. Con s iderando este universo de ambos trabalham fora e sustentam a casa, ele cuida m uito das filhas -
medi ações, é preciso destacar q ue a própria televisão é construtora de na verdade, como vários casais de classe média na aixa dos 30 ano:
categorias do gênero e de sexualidade que estavam sendo pesqu isadas. ou mais jovens, demonstram que há uma mudança social rn
Certamente, minha insistência no tema foi o q ue provocou m uitas construção de gênero. Mesmo assim, Carlos revela como su:
dessas observações e ainda uma implícita comparação com o q ue se educação era diferente do controle que sofriam suas irmãs. Ao passe
i maginava a respeito das relações fami l i ares e os casamentos na que era incentivado a iniciar sua v ida sexual, ele percebe que sua:
cidade e no contexto social de onde eu vinha: São Paulo, meio irmãs eram mu ito reprim i das - o que acabou sendo inútil, na sw
universitário. A comparação mais explícita era com o universo da opinião, poi s duas delas casaram-se gráv idas e depois se d ivorciaram
novela, e esta também era aproximada aos grandes centros urbanos Embora reve lem ter u ma relação mais i gualitária como vários do:
(ponto também demonstrado em outras anál ises de recepção de casai s mais jovens que conheci, Fernanda critica os ci úmes de Cario:

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64 Heloisa Buarque de Almeida Mulher em Campo 65

e o ato dele querer controlar seus decotes e m i n issaias, e implicar que enquanto os homens passavam o tempo na rua, as suas esposas
com sua amizade com rapazes homossexuais. deveriam estar em casa, com as crianças. Especi almente durante a
Eu era com reqüência definida pelo local de origem: a paulista - semana depois das dez horas da noite, os bares eram espaços
uma forma de categorizar como alguém de ora, que destacava que eu emi nentemente masculi nos. Assim, ser da rua, rueiro, é masculino -
estava lá de passagem e que ao mesmo tempo me perm itia maior mulheres rueiras são cada vez mais comuns, mas nem sempre bem
l iberdade. Aproveitando esse diferencial inevitável, fui ampliando o vistas pelos mais velhos. Ser rueira é um adjetivo negativo a uma mulher.
escopo da pesquisa ao permanecer às vezes mais tempo com os homens A lguns trabalhos etnográficos (como vários artigos em Golde)
no bar, conversando também mais longamente com alguns deles, falam dessa necessidade de que o antropólogo vá além dos l imites do
especialmente alguns que se tonaram meus amigos, como Carlos. Essa universo do mesmo gênero do pesquisador. É no entanto de se
situação também aconteceu casualmente - passando na frente de um bar, surpreender a idéia de que a antropóloga, do sexo eminino, possa
à noite, um conhecido, proessor universitário que já havia morado em com mais facil idade fazer as passagens para universos masculinos do
Belo Horizonte e na Bahia, e um dos maiores críticos ao machismo e que os homens pesquisadores. Miguel Vale de Almeida afirma:
coronelismo local, me convidou para tomar uma cerveja com ele e outros "Agora que a experiência de campo já pertence ao passado, tenho
amigos. Estas conversas no bar com alguns homens, por exemplo, não a consciência de que tudo teria sido mais ácil se fosse estrangeiro, se
criavam problemas na medida em que eu também me comportava, ao tivesse tido de aprender a língua e, inclusive, se fosse mulher e não
mesmo tempo, de modo apropriado - não estava "dando bola" para homem. O meu estatuto de homem (e, para mais, oficialmente, solteiro)
ninguém, mas ficava no bar, apenas conversando, vendo futebol, tomou diicil o acesso ao mundo fem inino." (1 995, p. 22)
tomando uma cerveja, e puxando conversa. Todos comportamentos bem E em nota na mesma página:
aceitos para mulheres casadas, mas que exigem, de preferência, que o
marido ou um parente esteja por perto. (.) em contextos de forte divisão sexual, se propiciem poucs
Essas conversas eram reveladoras: os homens também faziam situações de contato inter-sexual. Eu acrescentaria: e quando se
desabafos e revelavam suas angústias, lamentavam algumas propiciam, s informantes não 'assexuam ' necessariamente o
circunstâncias da vida e aziam fofocas - estas reveladoras sobre os antropólogo. A experiência de terreno relatada por algumas
padrões morais, sobre o que era visto como desvio, inclu indo críticas colegas parece indicar que a investigadora é mais facilmente
terríveis a algumas m u lheres consideradas más. Por outro lado, ficar 'assexuada 'pelo informantes, para não dizer 'masculinizada', o
no bar até tarde só com os rapazes, gerava fofocas desagradáveis (para que se prende, naturalmente aos estereótipos de género
'
m im) a meu respeito. Carlos contou-me que um ou outro conhecido associados à divisão de trabalho e ao poder simbólico da
lhe haviam perguntado, com malícia, qual era a relação dele comigo. ciência. ( 1 995, nota à pagina 22)
Ele contava isso para demonstrar, mais uma vez, como Montes Claros
era careta no seu dizer, já que não se podia i maginar que seríamos Considero que em certos casos de fato, o pesquisador é
amigos, sem haver algo mais por trás dessa amizade. Carlos criticava assexuado, ou seja, ser mulher ou ser homem não é relevante, não é o
a caretice das pessoas em achar q ue um homem e uma m ulher, sem que está em destaque em muitas situações da vida social, inclusive no
ser parentes, não poderiam ser apenas amigos - ainda mais trabalho de campo. Talvez Vale de Almeida tenha razão quanto a um
considerando a amizade que eu tinha com sua esposa. O proessor processo de relativa masculinização da antropóloga devido aos
universitário também me avisava para tomar cu idado com a língua do próprios estereótipos associados ao campo proissional e c ientífico.
povo. Ainda que o bar tenha seu horário fami l iar, de fato, depois de Por o utro lado, é mesmo d ifícil fazer essa passagem de um
certa hora da noite, ele tornava-se um ambiente mascul ino e parecia universo de mascu lino para em in ino (ou vice-versa), de acordo com o

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66 Heloisa Buarque de Almeida Mulher em Campo 67

contexto em que se faz a pesq uisa de campo. Se eu falei em freqüentar Vale de Almeida certamente encontrou dificuldade semelhante,
o mu ndo masculi no, por exemplo, era porque isso era possível em um contraponto à descrição de Abu-Lughod. Mas talvez sua
m inha pesquisa e porque ele nem sempre era tão distante do feminino necessidade de se tornar mais à vontade nos espaços mascul inos
ou tão exclusivamente masculi no, mas pode ser mu ito dificultado em devido ao tema de seu trabalho (masculin idade) o tenha excluído
outros casos. Lila Abu-Lughod ( 1 986) comenta em sua pesquisa com progressivamente, aos olhos os i normantes, dos espaços emin i nos.
os beduínos que, para ser aceita, tinha que ser adotada por uma amíl ia Assim, considero q ue é possível buscar alguns espaços não marcados
e comportar-se como i lha. Naquele contexto, qualq uer atitude fora pelo gênero, ou que "ultrapassem" as aparentes ronteiras locais de
dos padrões de com portamento fem inino colocaria em cheque a honra gênero, para conhecer melhor o contexto cu ltural e social pesqui sado
da própria família que a acolhera, mas, por outro lado, nesse universo - embora seja i mportante considerar os riscos inerentes às tentativas
fem i n i no e doméstico, agindo e sendo socializada como alguém da do pesquisador que quebrem as regras locais. Mas parece ser indicador de
famíl ia, deu-se um espaço de mu ito proveito para sua pesquisa. Ela uma questão mais complexa sobre o jogo de poder o fato de em
revela que conseguia, mesmo dentro desse ideal de comportamento sociedades onde a segregação sexual e a desigualdade são maiores, ser
fem i n i no mu ito restrito, acesso a certas questões das conversas mulher, ou sej a, ter menor status, facilite o trabalho de pesquisa.
mascu l i n as, mas que o mesmo não se daria se fosse um pesq u isador Em Montes Claros, uma outra construção de gênero aparecia:
do sexo mascul ino: a central idade da figura emi n ina e materna nas famíli as - por isso
inclusive sair com crianças pode facilitar a circulação da antropóloga.
Minha concentração no mundo das mulheres poderia O contexto é dierente daqueles das classes populares dos grandes
também ser considerada uma limitação. No entanto, de muitas centros urbanos, de amília matrifocais, em que a igura do pai é
maneiras, meu acesso a ambos os mundos era mais ausente - como desenvolve Ruth Landes ( 1 947) a respeito das
equilibrado do que se fosse um homem. Exceto circunstâncias famílias de santo na Bah ia. Ainda assim, a idéia permanece de que
raras, pesquisadores do sexo masculino em sociedades em manter uma fam ília un ida é uma característica da mulher e da sua
que há segregação sexual têm muito menos acesso às capaci dade de segurar as pontas - em vários sentidos, em termos de
mulheres do que eu tinha aos homens. Meu afitrião não era rendimentos, de afetividade, ou de saber li dar com os contratempos do
apenas um informante muito articulado e generoso sobre si cotid iano. Aparece tam bém a idéia de que a mulher tem que relevar
próprio e sua cultura, mas seu irmão mais novo, seus filhos, muitas coisas, como por exemplo, a infidelidade conj ugal . No fundo,
sobrinhos e homens com status de clientes eram todos visitantes trata-se de uma concepção de que a mulher é mai s forte do que o
reqüentes ao mundo das mulheres, com os quais eu podia homem . Ser mais orte, no e�tanto, leva-as a ter uma "carga maior
conversar de modo relativamente livre. Ademais, a estrutura para levar nas costas". No d iscurso de mu itas mulheres, não é sexo
de luxo de informações entre o mundo dos homens e das frágil, mas o forte, o que pode não ser nada vantaj oso.
mulheres não era simétrico. Devido ao padrão hierárquico, os Era também como mulheres fortes e corajosas q ue mu itas
homens falavam entre si na presença das mulheres, mas o heroínas das novelas eram consideradas. Esse conceito de força
inverso não acontecia. Ainda, homens jovens e de status feminina é ambíguo e leva a dois extremos opostos: por um l ado, a
inferior informavam suas mães, tias, avós e esposas sobre os idéia de que é preciso agüentar e, por outro, a noção de batalhar, muitas
negócios da esfera dos homens, enquanto ninguém levava as vezes incluindo aí a questão da carreira profissional. Especialmente para
notícias aos homens adultos. Uma conspiração de silêncio as moças mais jovens, ainda solteiras, é recorrente a i déia de que a
1 1
excluía os homens do mundo das mulheres. ( 1 986, p. 2 3 ) proissão é algo muito importante, a que almejam e que explica muitas
vezes o esforço no campo do estudo, principalmente das moças das

�-= -_-


68 Heloisa Buarque de Almeida Mulher em Campo 69

amílias de camadas populares. Como uma antropóloga que estava Marta: Casei [grávida] com dezessete anos, tive dois
batalhando na proissão eu era bem aceita e até admirada por algumas filhos, eu ganhei Isadora filha mais velha} com dezoito anos,
mulheres nessa categoria de "batalhadora" com a qual muitas se fiz a ligação de trompas com vinte quatro anos, e depois
identificavam, além de apontar para os tipos em in inos nas novelas. separei. . . .) Alberto [ex-marido} foi o primeiro homem na
Batalhar no trabalho nem sempre se trata de uma profissão minha vida, ele tinha uma segurança que eu seria mulher dele o
específica, mas um modo de se virar - se muitas mu lheres têm resto da vida, ele tinha certeza disso, que eu nunca teria
profissões definidas ao longo de toda a vida, principalmente no campo coragem de separar. Eu sempre fui assim. .. com ele eu era
da educação, no entanto é m uitas vezes mudando várias vezes de submissa. Eu não era muito de discutir com ele não, porque ele
atividade e buscando novas formas de sustentar a amília que homens era muito grosso. Então, para eu não escutar, eu não falava.
e m u lheres sobrevivem no mercado de trabalho, muitas vezes no Ele nunca iria esperar que eu tomasse essa atitude.
mercado informal . Batalhar é uma l inguagem entendida pela maioria Heloisa: Por isso foi tão dficil a separação?
das mulheres, quase todas trabalham fora e o sustento am i l iar Marta: Foi, muito, porque eu queria separar dele
depende de seus rendimentos. Note-se que o termo reere-se a uma quando eu tive a Isadora. Não consegui separar por causa da
l uta, a luta da vida coditiana, da labuta. família.
Por isso mesmo, parecia-me marcante a noção de uma maior Heloisa: Suafamília não queria que você separasse?
l iberdade por parte dos homens principalmente na questão da Marta: Não, e eu era muito nova, tinha dezoito,
sexualidade, inclusive com a valorização da "tradição" de q ue a dezenove anos, não consegui. Então foi por mim mesmo, eu
m ulher deve se casar virgem. Certamente i sso não signiica que as falei "não adianta que eu não quero, pronto, acabou. Minha
m u lheres de ato se casem ainda virgens. Mas é nesta esera da mãe não vai viver minha vida ". Eu tinha que viver mesmo a
sexualidade, em que a maior desigualdade entre homens e m u lheres minha vida e deixar pra trás. . . Se eu fosse viver daí parafrente,
pode ser notada, que surge uma reflexão e um discurso bastante crítico eu já estava com vinte e sete, se fosse continuar com Alberto,
quanto à televisão, que estari a rompendo com valores tradicionais. imagina aos quarenta, eu já estaria morta. Sendo um vegetal,
Nota-se no discurso dos espectadores a percepção de que só, porque eu estava vegetando. Não que assim . . . eu não estava
mudanças de valores em termos de amília e sexualidade se daria pela com aquela preocupação que eu tinha que arrumar outro
" infl uência da televisão", pelas heroínas i ndependentes e sexualmente homem, não é isso. Eu queria me libertar, porque além de tudo,
l ivres das novelas, pelo excesso de cenas de sexo e nudez. Isso oi da maneira dele me trqtar, ele era muito ciumento, possessivo,
mencionado de modo ren itente no i n ício do trabalho de campo, como não deixava eu conversar, não deixava eu sair, não deixava eu
um aspecto ruim da TV, sua i nfluência negativa e perversa - ou como falar, não deixava eufazer nada. Ele era assim, machista.
chegam a dizer alguns religiosos, "pern iciosa". Mas ainda que
criticando alguns excessos na televisão, este aspecto de l i beral ização Como o exemplo de Marta e sua decisão de se separar, há
de costumes associado à sua i nluência pode ser visto como algo outras possibil i dades de construção de gênero e comportamentos, para
positivo, pelas pessoas que valorizam essas m udanças como parte da além dos mais legitimados. Nota-se que o relato de Marta poderia ser
d im inuição de um machismo tradic ional (como era o caso de parecido ao de M arcela - casa-se grávida, muito jovem, mas Marta
Fernanda). Algumas dessas mudanças eram então positivadas e conta que sempre trabal hou. Como já disse, a força emi n ina pode
destacadas i nclusive nas histórias de v ida: estar no aspecto da l uta para mudar a situação, como o exemplo
acima. M arta constrói uma narrativa a respeito de si que passa da
mul her q ue agüenta um marido machista, para uma m ulher q ue decide

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tomar sua v i da em suas mãos, separar-se, rompendo com amarras de não reagia (no início). Por outro lado, a partir do caso de Léia, muitos
ordem fam i l iar. Mas esse foi um processo que levou dez anos - nada comentavam casos de pessoas conhecidas, mulheres que permaneciam
tão fáci l quanto mostram as novelas. Marta tinha dúvida e angústias, numa relação vio lenta. Todos que relatavam tais casos em terceira
mas d ierentemente de Marcela e quase como uma protagonista da pessoa eram unân imes em criticar tal passividade, em dizer que a
novela, destacava a sua atuação e sua escolha individual. mulher não deveria aceitar isso, devia l argar do mar ido, devia reagir.
Revendo minhas anotações no diário de campo, comecei a Estaria, portanto, nas mãos das mulheres tomar uma atitude para
perceber que apenas o v iés da desigualdade de gênero e daqui lo que romper o contexto de violência conj ugal, separando-se - impl ícito
era visto como uma tradição familiar formava um retrato um tanto estava que um homem bom j amais faria isso. A definição de homem
sim p l iicado do que acontecia ali - ainda que as pessoas destacassem e ruim remete àquel e q ue bate na mulher e tem mais de um dos vícios
repetissem essa noção, sempre se opondo aos conteúdos da televisão. Se a masc u l inos (bebida, mulheres, ou jogo).
tradição familiar fosse tão poderosa mesmo, não haveria tantos conflitos, I nfe l izmente, mas também de modo revelador, Marcela nunca
mulheres divorciadas, ou as que se consideravam independentes, nem as conversou sobre os personagens Léia e Ralf - aliás, ninguém d iscutiu
pessoas que conversavam com igo criticando esses traços mais o tema em primeira pessoa. Cabe notar aqui que ao fazer contatos
conservadores da v ida nessa cidade, como Laura. Percebi então que a mais extensos e constantes com algumas famíl ias, aquelas que me
trad ição local, pensada como os valores fam i l i ares q ue levavam a aceitavam em sua casa no momento de ver a novela só o faziam se
desigualdade entre os gêneros, era também vista negativamente. estivessem em situação fami liar rel ativamente tranqüila e não tão
Entretanto, algumas h istórias pessoais, bem como algumas confl ituosa. Algumas casas que v isitei no início, buscando pessoas
tragédias que aconteceram ali me aziam reletir sobre os níveis de que acompanhassem a novela, não se sentiam nem um pouco à
violência na sociedade brasileira. Parecia m uitas vezes estranho que vontade com a m inha presença. Um certo estranhamento inicial, na
eu falasse na violência local - afinal todos lembravam q ue eu vinha de primeira visita, ou nas primeiras, era considerado normal. Mas
uma cidade de m uita violência, com altos índices de assaltos e algumas pessoas se senti am visivelmente tão incomodadas com m inha
assassinatos. Mas a violênci a constante que senti em Montes C laros presença - por exemplo, ninguém falava nada durante a novela nem
não era dessa ordem, da violência urbana. Na verdade, era um tipo durante o comercial, e mesmo pouca conversa depois - que eu havia
comum em toda a história do Brasi l - a vio lência doméstica que exc l u ído tais grupos de m inha pesq uisa. Se m inha presença era tão
relatei com o caso de Marcela, a violência pol ítica, 1 2 da famíl ias perturbadora (o motivo, eu não saberia dizer) considerei que não era o
tradicionais e dos coronéis, violência notável q ue há na pobreza e na melhor contexto para entender, a relação com a televisão com um
m iséria, nas tragédias do cotidiano, e a violência simból ica que se pouco mais de "naturalidade", de orma q ue demonstrasse algo
espalha suti lmente pela fofoca. condizente com o cotidiano local .
Ao mesmo tempo, na novela que acompanhávamos, houve Certamente eu era uma visita especial em muitas casas, mas já
casos de violência conjugal - um dos v ilões da narrativa (Ralf) batia comentei como aos poucos, contando com a ajuda das crianças, minha
em sua m u lher, Léia. Embora quase ninguém tivesse simpatia por presença podia se tomar uma visita mais comum, não como uma
Léia, desde o início da narrativa uma personagem v ista como "pesquisadora-invasora". Era uma certa naturalidade e maior conforto
antipática e fúti l , a situação de que ela começa a apanhar de seu novo que eu buscava, porque assim os comentários sobre a novela e a televisão
marido, um cafajeste (como d iziam as espectadoras) que vive às saíam com mais facil idade e toda uma gama de material sobre o tema da
custas do d inhe iro dela, gerou muitas d iscussões q uando assistíamos à pesquisa ia surgindo aos poucos, de forma crescente a cada visita.
novela. A partir destas cenas, m uitas m u lheres expressavam seu Parecia que apenas as amíl ias que não estivessem em
descontentamento, considerando-as como "mau exemp lo'', já que Léia momentos de grande conlito se sentiam mais à vontade com m i nha

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pre ença, mas por outro lado, Marcela por exemplo ins istia para que disso, o trabalho de campo exige também que o pesquisador seja levado
eu osse ver a novela com ela. Certamente ela busca a uma am iga pelos informantes, e não tenha controle o tempo todo - mu itas vezes
alguém com quem conver ar especialmente porque Marcela era uma era acompanhando as pessoas em seus aazeres mais cotid ianos, sendo
pessoa muito sol itária e quase sem amigos. Mas outras informantes levada a festas, reuniões pol íticas, m issas e rituais religiosos, visitas e
tiveram-me também como ami ga e conidente - não era tão rara essa viagens que eu azia e mantinha uma a rede de i normantes e uma
expectativa com relação à m inha pessoa, uma vez que essas conversas visão melhor da sociedade local . Mesmo assim, algumas dessas
com as mulheres eram uma fonte importante de dados para minha situações eram i ncômodas ou mesmo assustadoras, e geravam dúvidas
pesquisa e eu as incentivava. Mas no caso de Marcela surge um tema do tipo "será que eu deveria estar aqui?", "o que estou azendo?" ou
muito difíci l de tratar sem parecer confessional demais para reflexões "será que eu disse alguma bobagem?".
acadêmicas: eu não me sentia à vontade perto de seu marido, Há certamente riscos de ordem emocional - uma amília da
especialmente dentro da casa dele. Ele tentava ser simpático e puxar qual fiquei mu ito próxima, cuja amizade oi central, sofreu uma
conversa com igo - mas eu me sentia desconfortável e às vezes até tragéd ia com a morte repentina de uma mu lher exatamente da m i nha
com receio. Para entrar n um momento de intimidade ami l iar, era i dade, num acidente de carro. O i lho dela, um meni no de 1 1 anos que
preciso mais do que conquistar a confiança ou a simpatia de alguns também estava no acidente, ficou bastante ferido. E uma parte grande
membros de uma família, mas o i nverso também se dava. Enim, a de m i nha pesquisa i cou imersa na tentativa de dar apoio àquelas
simpatia precisava ser rec íproca. E simpatia não é um termo, um pessoas e de eu mesma lidar com a perda em questão, e com os sentidos
conceito claro - talvez seja o que alguns autores, como Rabinow, simbólicos que aquela morte provocou. (Não foi a única morte naquele
chamam rapport. Mas mesmo rapport é algo certamente bastante período, mas foi a mais próxima de mim.) Esse rapport, essa simpatia e
subjetivo. No entanto, é uma relação central para u m bom trabalho de aproximação que eu tinha com a família que sofreu a perd, por exemplo,
campo, pelo menos no caso de uma pesquisa que trata de temas sobre muitas vezes levava a um sentimento de identiicação que acontecia com
a intimidade e a privacidade dos i ndivíduos, como relações fam i liares homens e mulheres, mas com mais reqüência com as mulheres
e moral sexual. Percebi a importância do rapport apenas com a (principalmente as de classe média na mesma faixa etária que eu).
experiência do próprio campo. Foi muito produtivo consegu ir explorar maior i ntimidade com
Além da simpatia é prec iso lembrar que há, de fato algumas algumas mulheres e com alguns grupos de pessoas - como um n úcleo
s ituaçõe de risco e per i go para io pesquisador/a em campo. É de jovens homossexuais e artistas, algumas pessoas que haviam
prec iso lembrar que o traba lho de campo inclui inúmera situações morado em São Paulo ou R)o de Janeiro que se tornaram meus
incômodas e desconfortáveis - sem alar no eventual desconforto físico, ami gos, e outras que se sentiam um tanto marginais nas regras locais,
de espaço, de alimentação, de doenças causados pela distância social e seja porque se viam como alternativos pelo estilo de vida, sej a por
geográfica. Cada nova família contatada e todas as primeiras vezes que vi motivos de alcool ismo e uso de drogas, ou mesmo pe la orientação
a novela numa nova casa constituíam momentos de estranhamento sexual . Todos eles foram inormantes fundamentais - embora mu itos
(mútuo?) entre pesq uisador e informantes. Mas aos poucos, na maioria deles nem sequer assistissem à nove la ou à televisão, mas pela
das vezes, isso mudava. Não que tudo ficasse resolvido - havia muitos conversa revelavam aspectos da sociedade local, e pela i ntimidade e
desentendidos, mal-entendidos, ironias que eu não captava, medo de estar amizade de alguns tornaram mais agradável a m inha estadia na cidade.
fazendo algo errado que comprometesse o trabalho insegurança q uanto à Eram exatamente aqueles que se consideravam altenativos, ou até se
i nterpretação ds alas e pr inc ipalmente dos olhares e dos si lêncios etc. sentiam um tanto marginal izados, que exp l icitavam com maior
Ainda assim, progressivamente fui me sentindo "em casa" com diferentes destaque as regras sociais - especialmente através de críticas, como
pessoas, mais à vontade e desenvolvendo i ntimidade com alguns. Além desenvolve Rabi now sobre alguns i nformantes no Marrocos.

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74 Heloisa Buarque de Almeida Mulher em Campo 75

PASSAGEN S acesso a espaços masculinos; por outro lado, diante das desigualdades
sociais de gênero, m inha identidade fem inina se destacava, sendo que
A frase d e Guimarães Rosa que é d ita por Diadorim e m a experiência do sofrimento e da angústia era mu itas vezes o lugar da
Grande Sertão Veredas ("Mulher é u m a gente muito inel iz") revela proximidade com outras mulheres. Não u i a campo para fazer uma
um conceito comum sobre a dureza e infel icidade maior da v ida etnografia feminista, mas voltei do campo m u ito mais feminista em
fem in ina numa sociedade em que o homem é v isto como superior. m inhas convicções do que eu poderia imaginar.
Rosa refere-se ao sertão, ao espaço mascul ino dos jagunços e da A postura de tentar u l trapassar os l im ites do gênero
violência armada, em que resta poucos lugares sociais respeitáveis às dificilmente tira da pesquisadora, como indiv íduo, sua capacidade de
mulheres q ue não seriam de sorimento, espera e paciência. Por isso, buscar identidades e aprofundamentos baseados em seu próprio
me remetem à descrição q ue fiz de Marcela acima. Mas isso não é um gênero - cono izeram Vale de A l meida e Abu-Lughod c itados
dado inescapável, uma cond ição sem saída. São construções h istóricas acima. As mulheres que me tonavam cono confidente revelavam
e sociais que restringem a v ida cotidiana, mas que também se h istórias q uase secretas de suas vidas, suas angústias etc., talvez
transformam nesse mesmo cotidiano, como o próprio personagem estivessem aproveitando a oportunidade para falar, a chance de ter
D iadorim, uma mulher d isfarçada de homem, revela. Diadorim não se alguém q ue q u isesse ouvir e d iscutir seus problemas. Estas situações
resignou ao espaço feminino, travestiu-se e "tornou-se um homem" me expunham ao sorimento e às dificuldades cotidianas, com os quais
para l utar e v ingar a morte do pai (atitude de i lho homem), mas não por vezes eu me identiicava. Assim, era inevitável uma proximidade
escapou (como não poderia) das condições sociais v iolentas daquele e uma sensação de simpatia especíica com as mulheres, reforçando
mesmo espaço social mascul ino. Dentro destas cond ições sociais, no m inha identidade fem inina. Isso não impede nem exclui a am izade
entanto, Diadorim ultrapassou a aparente ronteira de gênero, tonou­ com os homens, alguns dos quais também centrais tanto ao trabalho da
se socialmente homem . É uma metáfora do que a antropóloga pode ter pesqu isa como à m inha sobrev ivência emocional durante o período.
que azer em campo. Mas D iadorim era ainda assim uma mu lher que No entanto, seria impossível esquecer de outras dierenças e
sofria, e por isso "ele" mesmo d izia a R iobaldo: "m u l her é uma gente desigualdades nesse encontro. Por u m lado, a diferença entre ser a
m u ito infeliz". pesquisadora e ter uma v isão mais geral do trabalho, com a chance de sair
É possível concluir q ue o lugar l im inar, ou intercultural que e me l ibertar daquele un iverso que por vezes me parecia tão opressivo.
Rabinow ala a respeito do etnógrafo em campo acaba sendo também Por outro, as d iferenças também entre as m u lheres com quem mais me
semelhante a certa l ininaridade em termos de gênero q ue é al i criada e identificava: d iferenças de classe s�cial, de raça e também de contextos
sem a q ual não seria possível c ircular e pesqu isar de modo mais cotidianos. Ser "de fora" era, mu itas vezes, um grande alívio, e Fenanda
amplo. Ambas as situações exigindo de todas as partes envolvidas - percebia isso quando estava se despedindo de mim:
antropóloga e informantes - constantes questionamento e reflexão. No
caso, a telev isão servia também de mediação e espaço de passagem, Helô, agora você vai embora. Vai voltar para São
l i m inar entre o cotidiano local e o seu lugar de produção, o Rio de Paulo, escrever a sua tese, e vai esquecer da gente. E a gente
Janeiro. Pela aproximação entre televisão e comportamentos das vai sempre falar em você, nas conversas, vamos lembrar de
cidades grandes, eu também era entendida e aceita como d iferente você. Mas você vai esquecer da gente.
porque de fora.
Na m inha experiência, percebi um paradoxo: se, por um lado, De fato, v im embora e a sua real idade não faz mesmo parte de
para real izar completamente a pesquisa, era preciso "ultrapassar o meu cotidiano. Mas mal sabe ela que a marca deixada por aquela
gênero" e tornar-me um pouco mais neutra, consegu indo assim ter experiência não se apaga, não se esquece facilmente - principalmente
76 Heloisa Buarque de Almeida Mulher em Campo 77

porque é relembrando os aconteci dos em Montes Claros que escrevo a melodramatic imagination. London: Routledge, 1 98 5 ; vanos ensaios em
tese. Voltar do trabalho de campo toma a pesquisadora mais segura, BROWN, M ary El l en (Ed.). Television and Women 's Culture: the politics of
the popular. London: SAGE, 1 990; artigos em LULL, James (Ed.). lnside
sem dúvida, porque finalmente a experiência tradicional do campo me
Family Viewing: ethnographic research on te/evision 's audiences. London:
constitu i u como antropóloga. Ainda mais, como lem bram q uase todos
Routledge, 1 990; MORLEY, David. Family Television - cultural power and
os autores que citei aqui, há mesmo uma constituição interna, da vida
domestic leisure. London: Routledge, 1 993 ( 1 986); SEITER, E l len et ai. .
pessoal , que se modiica com essa experiência.
Remate Contrai: Television, audiences and cultural power. London and New
Principalmente na hora em q ue escrevo a tese e revejo vários
York: Routledge, 1 989. Os trabalhos bras i leiros que real i zam com maior
acontecimentos que as isti e vi i no período em questão pe rce bo que profundidade a etnograia de recepção, por exemplo, são os de LEAL,
a ex per iência de Montes C laros ainda não sai do pensamento. A Ondina Fach e l . A Leitura Social da Novela das Oito. Petrópol is: Vozes, 1 986
sensação de esq uecimento de Fenanda, entretanto, tem m uito senti do e PRADO, Rosane Man hães. Mulher de novela e mulher de verdade. Rio de
- basta atentar para o que o processo da escrita acadêmica az com a Janeiro. 1 987. Dissertação ( Mestrado) U F RJ - Museu Nacional.
"vida vivida" q ue observamos. Na hora de escrever sobre as pessoas e 3 "Mulher é uma gente muito infel iz" é uma frase de Diadorim em Grande
suas vidas, tanto d isso fica diminuído, tanta vida (e morte) desaparece Sertão: Veredas. Agradeço a A l i ne Mendonça por chamar a minha atenção
diante dos problemas e questões teóricas, da crescente bibliografia, do quanto a esta frase e a outras menções à obra de G u imarães Rosa. Agradeço
arranjo lógico de um argumento, um texto, uma tese. mais ainda a todos de Montes Claros que permitiram essa pesquisa, que
partil h aram de suas vidas e intimidade comigo.

4 Cf. por exemplo, B RIGGS, Jean. "Kap l una Daughter'', CODERE, Helen.
"Fieldwork in Rwanda, 1 959- 1 960", FREEDMAN, Diane. "Wie, W i dow,
NOTAS Woman: Roles of an anthropologíst in a Transylvanian v i l l age'', GOLDE,
Peggy. "Odissey of Encounter", WEI DMAN, H azel H. "On Ambivalence
1 Tratava-se do projeto "O Impacto Social da Televisão sobre o Compor­
and the Field", N A D E R, Laura. "From Anguish to Exultation", todos em
tame nto Reprodut i vo no Brasi l , no q llal eu me inseri como pesquisadora do GOLDE, Peggy (ed.). Women in The Field: anthropologica/ experiences.
Cebrap. Esta pesquisa contou com profissionais das áreas de antropologia Berkeley: Universíty of Caliomia Press, 1 986 ( 1 970).
sociologia, demograia e comunicação de ár i as institu ições (Cebrap 5 Outras etnograias, às vezes definidas como eministas, ou mesmo textos
Unicamp, USP, UFMG e Universidade do Texas), foi inanciada pelas considerados l iterários e de icção inspiram este trabalh o e tocam em temas
undações Hewlett, M acArthur e Rockee l ler, e conté m várias outras etapas, semel h antes, além de trabalhos que discutem especificamente questões
além de três etnografias de recepção realizadas em Montes Claros, São Paulo teórico-metodológicas quanto à etnograia. C. B EHAR, Ruth. Translated
e Macambira (nome ictício de uma pequena c idade de 2 m i l habitantes no Women. Boston: Beacon Press, 1 993 e The Vulnerable Observer. Boston:
seão do Rio Grande do Note). Agradeço aos participantes do projeto. Beacon Press, 1 996; BOWEN, E lenore Smith. Return to Laughter. New
Durante essa pesqu isa de campo, elaborei meu projeto de doutoramento que York: Doubleday Anchor, 1 964; CALLAWAY, Helen. "Ethnography and
visa d i scutir gênero tele isão e consumo pensando d i ferentes esferas - o experience: gender implications in ieldwork and texts" in Callaway and
universo da produção comercial da televisão, por um lado, e a recepção da Okely. Anthropoloy and A utobiography. London: Routledge, 1 992 ;
narrativa iccional, por outro. O doutoramento conta com o apoio da FAPESP CLI FFORD, James. "lntroduction: Partia! Truths" e "On Ethnographic
- Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Agradeço a Guita Al legory" i n C L I F FORD, James e MARCUS, G eorge. Writing Culture: The
Grin Debert os comentários e a d iscussão sobre este artigo. Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley: University of Caliomia

2 Por exemplo, é o caso de autores cujas reerências teóricas parecem Press, 1 986; Critique of Anthropoloy (Special Issue on Women Writing
relevantes, mas sem levar às últimas conseqüências o contexto social em que Culture). vol . 1 3 , n . 4, December, 1 993; G E E RTZ, Cliford. Wors and
se dá a re ce pção: ANG, Ien. Watching Dai/as: soap opera and the Lives: the anthropologist as author. Stanord : Stanord Uníversity Press,
78 Heloisa Buarque de Almeida Mulher em Campo 79

1 988; M EAD, M argaret. Coming of Age in Samoa. New York: Morow balanced than a man ' s wou ld have been. Except in rare i n stances, mate

Qu i l l , 1 96 1 ( 1 928); SHOSTAK, Marjorie. Ni a: The lfe and Words of a researches in sex-segregated societies h ave ar less access to women than

!Kung Woman. New York: Vintage Books 1 983; V I S W E WA RAN, 1 h ad to men. Not o n l y was my h ost an extremely art i c u l ate and generous

Kamala. Ficlions of Feminist Ethnography. M inneapol i s : University of i nformant about h imself and h i s c ulture, but h i s younger brother, sons and

M in nesota Press 1 994. nephews, and the c l ient-status men were al i requent v i s i tors in the
women ' s worl d with whom 1 could speak relatively reely. F u rthermore,
6 Teresa De Lauretis, em seus trabalhos recentes, com base em uma
the structure of i n formation flow between the m e n ' s and wome n ' s worlds
perspectiva oucaultiana, encara as concepções de gênero construídas em
was not symmetrical . Because of the pattern of h ierarchy, men spoke to
várias eseras da vida cotidiana (inclusive n a m fdia e seus textos) como
one another in the presence of women, but the reverse was not true. ln
· Tecnologias do Gênero" ( 1 994). Cf. mais sobre gênero em dierentes
addition, young and l ow-status men i normed mothers, aunts and
pesquisas em STRA THERN, Marilyn and MacCORMACK, Carol. Nature,
grandmothers, and (or the Iatter) wives about men ' s affairs, whereas no
Culture and Gender. Cambridge: Cambridge University Press, 1 980. one brought news to the adult men . A consp iracy of s ilence excl uded men
7 C. mais sobre as q uestões que R uth Landes enrentou no trabalho de campo rom the women ' s world." ( 1 986, p. 23)
em H EALEY, Mark. "Os desencontros da tradição em idades das 12
Aliás, em ano de eleições municipais, um desses casos aconteceu enquanto
Mulheres: raça e genero na etnograia de Ruth Landes". Cadernos Pagu,
eu estava lá. Um cabo eleitoral, que havia jogado um ovo num dos candidatos
Campinas, n . 6/7, 1 996, p. 1 53- 1 99.
a prefeito, e depois pedira perdão ao candidato diante das câmaras de televisão,
8 Novela das oito da Rede Globo que oi objeto central da anál ise de apareceu aogado n u m rio nas redondezas. Todo m undo desconfiava que não
recepção. Exibida enre J unho de 1 996 e Fevereiro de 1 997, oi escrita por osse nenhum "acidente". No entanto, cabe destacar que a violência eleitoral
Bened ito Rui Barbosa. era muito maior nas cidades pequenas da região, do que em Montes Claros.

9 Gutmann (GUTTMAN Mathew. The Meanings of Macho: Being a man in


1exico City. Berkeley: U n i v e rs ity of Cal i omia Press
1 996) que em seu REFERÊNCIAS B IB LIOGRÁFICAS
traba lho de campo viajou com sua famí l ia comenta que a presença de sua
filha ainda bem pequena tomou-se um meio de acesso à conversa sobre ABU-LUGHOD, Lila. Veiled Sentiments: honor and poetry in a
paten idade (um dos seus temas de estudo). No entanto, ele não explora todas bedouin society. Berkel ey: U n iversity of Caliorni a Press, 1 986.
as conseqüências possíveis da atuação de sua i lh a e de sua esposa no bairro
BRIGGS, Jean. Kapluna Daughter ln: GOLDE, Peggy (Ed .). Women
popular da C idade do México em que az sua pesqu i sa sobre masc u l i nidade.
10
in The Field: anthropo logical experiences. Berkeley: U niversity of
-.Whenever an anthropologist enters a culture, he trains people to objectiy Cal iorn ia Press, 1 986.
their l i fe-world or h i m . Within ali cultures, of course there i already
object i icarion and sel f-relection. But t h is e ·pl icit se l f-conscious translation CODERE, Helen. Fieldwork i n Rwanda, 1 959- 1 960 ln: GOLDE,
into an externa! medium is rare. The anthropologist creates a doubl ing of Peggy (Ed .). Women in The Field: anthropological experiences.
consciousness. Thereore, anthropological analysis must incorporace rwo Berkeley: University of Cal iforn ia Press, 1 986.
acts: irst that we ourselves are h istorically situated through the questions
we ask and the manner in which we seek to understand and experience Lhe
DE LAURETIS, Teresa. A Tecnologia do Gênero. ln: HOLLANDA,
world· and econd, that what we receive from our inormanrs are Heloisa B uarque de. Tendências e Impasses: o fem i nismo como crítica
interpretations equal ly mediated by h istory and culture. Consequently, lhe da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1 994.
data we col lect is doubly mediated, irst by our own presence and then by the
FREEDMAN, Diane. Wie, Widow, Woman : Roles of an anthropologist
second-ord r self-reflection we demand rom our informants. ( 1 977, p. 1 1 9)
in a Transylvanian v i l lage. ln: GOLDE, Peggy (Ed.). Women in The
1 1 " M y concentration in the woman ' s worl d might also be considered a
l i m itation . l n many ways, however, my access to both worlds was more
80 Heloisa Buarque de Almeida Prostituição e Diferenças Sociais 81

Field: anthropological experiences. Berkeley: U niversity of Caliornia PROSTITUIÇÃO E DIFERENÇAS SOCIAIS 1


Press, 1 986.
El isiane Pasin i
GOLDE, Peggy (Ed.). Women in The Field: anthropological
experiences. Berkeley: U n iversity of Cal ifomia Press, l 986a ( 1 970).
_. Odissey of Encounter. l n : GOLDE, Peggy (Ed.). Women in Meu interesse pela temática d a prostitu ição eminina começou
The Field: anthropological experiences. Berkeley: U niversity of ainda no curso de graduação, quando azia parte de um núc leo de
Cal iornia Press, l 986b. pesquisa na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), na
LAN DES, Ruth. The Ciy o/ Women. New York: MacMi llan, 1 947. cidade de Porto Alegre.2 Passado um tempo, agora no estado de São
Paulo, permaneci pesquisando o tema. Dessa forma, as questões aqu i
_. A Woman Anthropologist i n Brazil. ln: GOLDE, Peggy (Ed .). apresentadas oram sendo construídas com base nessas observações e
Women in The Fie/d: anthropological experiences. Berkeley: com leituras específicas no decorrer de ambas as pesquisas. Com esse
U niversity of Caliomia Press, 1 986.
"diálogo" foi possível, além de comparar os universos, alargar a
NADER, Laura. From Anguish to Exultation. l n : GOLDE, Peggy compreensão sobre o campo de estudos da prostituição.
(Ed.). Women in The Field: anthropological experiences. Berkeley: Entretanto, especiicamente, neste atigo3 estarei d iscorendo
U n ivers ity of Californ ia Press, 1 986. algumas idé ias sobre a pesquisa realizada em ruas localizadas na
região da Rua Augu sta, na cidade de São Paulo (São Paulo). O
RABINOW, Pau l . Relections on Fieldwork in Morocco. Berkeley:
principal intuito deste artigo está em compreender como as práticas
University of California Press, 1 984 ( 1 977).
corporais das m u lheres estudadas estão expressando tanto sua
perormance4 de garota de prorama como uma divisão entre sua
V ALE DE ALMEI DA, Mi guel . Senhores de si: uma i nterpretação 5
antropológica da masculin idade. Lisboa: F im de Século, 1 995 . vida na prostituição e sua vida ora dela, enocando, princ ipalmente,
WEIDMAN, Hazel H. "On Ambivalence and the Field". ln: GOLDE, suas relações com os clientes e com os n ão-c lientes.6
Peggy (Ed.). Women in The Field: anthropological experiences. Berkeley:
Universiy ofCal iforn ia Press, 1 986.
APRESENTAÇÃO DO UN IVERSO PESQU ISADO

M inha pesqu isa realizou-se na rua, num espaço preciso onde a


prática d a prostitu ição acontece em um tempo especíico. Em outros
horários, as ruas que pesq u isei , como ambientes sociais, são
constituídas por outras pessoas e por outras práticas. Assim, é nessa
parcela de espaço ressigni icado pelo período de tempo e da prática da
prostituição em que concentrei a pesquisa, mas, embora ela esteja
local izada no l ugar onde a prostituição é realizada, a própria d inâmica
da pesqu isa trouxe dados a respeito do contexto vivido por essas
garotas de programa ora da prostitu ição. Mesmo convivendo com
elas apenas nos pontos de prostituição, "conheci", por meio de suas
falas, outros aspectos da sua vida.

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