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Liza Brasílio

Karina Sousa
André Demarchi
Odilon Morais
(Organizadores)

Direitos humanos
e diversidades

~EDUR
A editora da Universidade faderal do Toc.antlns

Palmas-TO
2018
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Reitor Pró-Reitora de Gestão e Desenvolvimento de


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Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Tocantins - SISBIB/UFT

F493b Direitos humanos e diversidades / Liza Brasílio, Karina Sousa, André Demarchi
e Odilon Morais (orgs). - Palmas/TO: Universidade Federal do Tocantins /
EDUFT, 2018.

369 p.:il.

ISBN: 978-85-60487-56-1

1. Direitos humanos. 2. diversidade. 3. diversidade cultural. 4. gênero. 5. relações


étnico-raciais. I. Título.
CDD 660.63

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do autor (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.
SUMÁRIO

Prefácio
g
Paulo Alberto dos Santos Vieira

Apresen tação: as diversidades dos direitos humanos


Liza Brasílio
André Demarchi 15
Karina Almeida de Sousa
Odilon Morais

PARTE 1: DIREITOS HUMANOS E GÊNERO 23

Direitos humanos, cidadania e diversidade: relações de


gênero e violência contra a mulher na microrregião do
Bico do Papagaio/TO 25
Liza Brasílio
Karina Almeida de Sousa

Memória e representações sociais: mulheres alcoolistas


no contexto de alcoólicos anônimos
43
Andr·essa M endes da Silva Dias
Luci Mora Bertoni

Mulheres encarceradas e o trabalho no tráfico de drogas


Marta B1·amuci D e Freitas &1
/J1Ja E lizabeth Santos Alves
PARTE 2: DIREITOS HUMANOS E RELAÇÕES
ÉTNICO-RACIAIS 85

Produção de conhecimento e comunidade: a experiência


do núcleo de estudos afro-brasileiros da U fscar
Ana Cristinajuvenal da Cruz 87
Priscila Martins Medeiros
Tatiane Cosentino Rodrigues

Do combate ao bullying a invisibilidade da discriminação


racial: contribuições para a pesquisa e a extensão
universitária
111
Ka;ina Almeida De Sousa

Extensão universitária e acesso ao nível supeiror na


unemat: contribuições do Projeto Teresa de Benguela à
democratização do acesso ao ensino superior. 141
Luiz Rodrigues
Paulo Alberto dos Santos Vieira
1

Racismos, currículo e os desafios da formação continuada


de educadores para as leis 10.639/03 E 11.645/08 em Ead
171
E rica Kawakami, jacqueline Costa
Thais Madeira

Do/a professor/a ao livro didático de ciências naturais:


discursos sobre sexualidade e DST/ AIDS e sua relação
com a lei nº 10.639/03
201
josé Antonio Novaes da Silva;
Clemilson Cavalcanti da Silva;
Karina Maria de Souza Soares
PARTE 3 - DIREITOS HUMANOS E POVOS
INDÍGENAS 231

Ditadura militar e os povos indígenas no norte goiano: uma


análise do relatório final da comissão nacional da verdade 233
Marcelo Gonzalez Brasil Fagundes

Qyanto vale uma terra indígena? Uma análise da gestão


pública do icms-ecológico no tocantins
André Demarchi
267
Odilon Morais

Da antropologia como corrida de tora


297
Júlio Cezar Melatti

A chefia feminina entre os Apinajé: o caso de Niró


303
Welitânia De Oliveira Rocha

Ressignificando a escola: o agenciamento dos professores


panhi (apinajé) na escola da aldeia. 319
Lidiane Alves

PARTE 4- DIREITOS HUMANOS E EXTENSÃO


UNIVERSITÁRIA: RELATOS DE EXPERIÊNCIA
337

Carta ao presidente da Funai: breve etnografia de um conflito


339
Odair Giraldin

Dar aula na fronteira: uma proposta de intervenção


contra o preconceito 347
André Demarchi E Odilon Morais
Aprender com a extensão: educação para as relações
étnico-raciais e a promoção da igualdade racial
Enilma Nunes 357
Janeide Cava/cante ,
Karina Almeida de Sousa
Ditadura Militar e os povos indígenas no norte goiano: uma análise do
relatório final da Comissão Nacional da Verdade1

2
Marcelo Gonzalez Brasil Fagundes

O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e os povos indígenas

Publicado em dezembro de 2014, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV)


estimou que, entre os anos de 1946 e 1988, mais de 8 mil indígenas foram mortos em
decorrência da ação direta de agentes do Estado ou de sua omissão. De maneira contundente, o
capítulo intitulado “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” inicia afirmando que
“os povos indígenas no Brasil sofreram graves violações de seus direitos humanos no período
[...]”3 (BRASIL, 2014. p. 204), e que estas práticas não foram esporádicas nem acidentais, mas
sistêmicas. Esse número contrasta – e muito – com os 434 mortos ou desaparecidos políticos em
virtude da ação estatal, apurados pela CNV. Além do mais, o relatório destaca que o número de
mortos deve ser muito superior, “uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos
indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade [...] é alta o bastante para
desencorajar estimativas” (BRASIL, 2014. p. 205).
Apesar da limitação da investigação realizada, foram demonstrados crimes cometidos
contra diversas etnias – como Guarani Kaiowá, Nambikwara, Xetá, Avá-canoeiro, Panará,
Parakanã, Yanomami, Waimiri-atroari, Krenak e Aikewara, entre outros – nas mais diversas
regiões e nas mais distintas situações (BRASIL, 2014). O capítulo sobre os povos indígenas do
relatório final foi elaborado por equipe multidisciplinar, sob a responsabilidade da psicanalista
Maria Rita Kehl. O documento é composto por nove partes, nas quais estão descritas as graves
violações de direitos humanos cometidos pela ação estatal, divididos em cinco eixo básicos: a)
expulsão, remoção e intrusão de territórios indígenas; b) desagregação social e extermínio; c)
mortandades e massacres; d) prisões, torturas, maus-tratos e desaparecimentos forçados; e)
perseguição ao movimento indígena. Em cada um desses tópicos são apresentados exemplos dos

1
FAGUNDES, Marcelo Gonzalez B.. Ditadura Militar e povos indígenas no norte goiano: uma análise do relatório
final da Comissão Nacional da Verdade. In: BRASÍLIO, Lisa; et. al. (orgs.). Direitos Humanos e diversidades.
Editora da Universidade Federal do Tocantins, Palmas-TO, 2018. pp. 233-266.
2
Professor Assistente do curso de História da Universidade Federal do Tocantins – UFT/Campus de Porto Nacional.
Doutorando em História Cultural, pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, na linha de pesquisa
Etnohistória, História Indígena e Arqueologia.
3
Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%205.pdf>. Acesso em
23 out. 2017.
povos que tiveram seus direitos humanos violados pela ação de agentes governamentais ou pela
sua omissão perante esses crimes.
Contudo, o relatório traz subsídios que possibilitam articular investigações que envolvam
a relação do Estado com os índios no norte goiano durante o regime militar (1964–1985). As
etnias Karajá, Krahô, Xerente, Javaé, Avá-Canoeiro e Apinajé são citadas no documento,
destacando as violações aos direitos humanos cometidos no período. Este artigo propõe pensar
possibilidades de estudos sobre os povos indígenas do Tocantins, durante o regime militar, a
partir do relatório final da CNV, tais como: a presença de Karajá, Krahô e Xerente na Guarda
Rural Indígena (GRIN) e no Reformatório Agrícola Indígena Krenak; o genocídio dos Avá-
Canoeiro; a política de desenvolvimento da Amazônia e os Apinajé. Estes – entre outros – são
problemas que, de alguma forma, perpassam os casos apresentados no documento e que
estabelecem a articulação entre a política desenvolvimentista e a política indigenista
empreendida pelos governos militares.
Criada em novembro de 2011 pela Lei nº 12.528, a CNV tinha poderes de requisitar
informações e documentos de entidades públicas – mesmo que sigilosos – de convocar pessoas
para entrevistas e testemunhos, de promover audiências públicas, entre outras atribuições, com a
finalidade de apurar as “graves violações de direitos humanos” em um período de mais de
quarenta anos. Além disso, buscava “efetivar o direito à memória e à verdade histórica e
promover a reconciliação nacional”. Inserida na perspectiva de uma chamada “justiça de
transição”, 4 a Comissão não possuía poder penal em virtude da vigência da Lei de Anistia de
1979. Este fator levou ao descrédito dos resultados práticos da Comissão.
Apesar das limitações da CNV, ela possibilitou trazer à tona debates sobre a situação dos
grupos indígenas durante a ditadura, demonstrando atrocidades que foram cometidas pelas
políticas de Estado, possibilitando inclusive a reparação de crimes cometidos contra estes
sujeitos. 5 Além disso, foram encontrados documentos há muito desaparecidos, tal como o
Relatório Figueiredo.
O Relatório da CNV destaca ainda que “as denúncias de violações cometidas contra povos
indígenas e de corrupção no órgão indigenista provocaram quatro Comissões Parlamentares de

4
Fico (2012) define como justiça de transição “os procedimentos através dos quais as pessoas atingidas por
violações dos direitos humanos buscam reparações em países que viveram regimes autoritários ou outros
processos violentos” (p. 53).
5
A CNV colheu depoimentos em 2013 que consistiram de provas testemunhais dos fatos ocorridos ao povo
Aikewara (Suruí do Pará) pela ação dos militares no combate a guerrilha do Araguaia. Em setembro de 2014, a
Comissão de Anistia reconheceu o status de “anistiado político” a treze indígenas pelos maus-tratos, violência e
tortura cometidos pelo Estado brasileiro (o primeiro caso de concessão de anistia para indígenas). O relatório da
CNV destaca ainda que “os 121 presos no reformatório já identificados em lista, são hoje casos aptos à constituição
de processos de reparação”. (BRASIL, 2014. p. 247). Como apontaremos adiante, cerca de metade dos indígenas
presos no Reformatório Krenak são das etnias Karajá, Krahô e Xerente.
Inquérito – no Senado, a CPI de 1955, e, na Câmara, as de 1963, 1968 e 1977” (BRASIL, 2014. p.
208). Além de três missões internacionais que foram realizadas no Brasil entre 1970 e 1971 e
denúncias enviadas ao Tribunal Russell, realizado entre 1974-1976. Todas essas investigações
constituem-se de fontes inestimáveis para a história indígena. 6
Em tempos recentes, diversos documentos do período militar têm vindo a público. 7 Esses
documentos possibilitam observar sob uma nova perspectiva a relação estabelecida entre o
regime militar e os povos indígenas e reafirmam a vinculação da política indigenista com um
projeto de desenvolvimento para a Amazônia. 8 Garfield diz que “para os povos indígenas, sob a
tutela do governo federal, a centralização do poder de Estado sob o regime autoritário
comprometido com o desenvolvimento do interior representava uma nova era” (GARFIELD, 2011,
p. 210). Para Schwarcz e Starling (2015), os indígenas pagaram caro por estarem posicionados
entre os militares e a realização do projeto estratégico de ocupação do território brasileiro. Esse
processo teve terríveis consequências para essas populações.
Este texto procura levantar algumas reflexões sobre a situação dos povos indígenas do
Tocantins durante a ditadura militar. Analisa a política indigenista, destacando a violação de
direitos humanos dos sujeitos indígenas, com base no Relatório da CNV.

Política indigenista durante o regime militar 9

As violações de direitos humanos, qualificadas de sistêmicas pela Comissão, resultam da adoção


de “políticas estruturais de Estado”, que se materializam através da política indigenista. O
relatório destaca que as violações dos direitos territoriais indígenas estão na origem dos
principais problemas enfrentados por essas populações. Constituiu-se um esquema espoliativo
que provocava o esbulho das terras indígenas.

6
Todos os documentos referentes as CPIs, as missões internacionais e as denúncias enviadas ao Tribunal Russell
estão disponíveis em: <http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=DocIndio>. Acesso em 31
out. 2017.
7
Valente (2017) fala que muitos documentos perderam a classificação de sigilosos a partir de 2008 e destaca, por
exemplo, “os 187 dossiês produzidos pelo braço do Serviço Nacional de Informações (SNI) na Funai sobre pessoas,
instituições e assuntos” (p. 12), localizados no Arquivo Nacional de Brasília.
8
Dos estudos que procuraram tratar de maneira geral a relação dos militares com os indígenas, destacam-se Davis
(1978); Heck (1996); Bigio (2007); e Valente (2017).
9
Heck (1996) divide o chamado “novo modelo de indigenismo”, implementado pelos militares, em cinco fase
distintas: a) 1ª fase (1964–1967): caracterizado pela busca da autossuficiência e crise do Serviço de Proteção ao
Índio (SPI); b) 2ª fase (1967–1969): marcada pela reforma administrativa do governo Costa e Silva, que criou o
Ministério do Interior, voltado para projeto de interiorização e desenvolvimento; c) 3ª fase (1969–1974): a política
indigenista passa a ser fortemente influenciada pela Doutrina de Segurança Nacional (surgimento da ASI e da
GRIN); d) 4ª fase (1974–1979): período de adaptação e consolidação do modelo indigenista, através do binômio –
desenvolvimento e segurança; e) 5ª fase (1979–1984): marcado pela crise do modelo e aprofundamento do
controle militar.
De modo geral, a política indigenista instaurada com a República foi institucionalizada
sob dois aspectos principais, que permaneceram presentes na ação estatal até a ditadura militar.
Em primeiro lugar, caberia a submissão dos povos indígenas ao Estado nacional para, em
seguida, tornar efetiva e segura à expansão capitalista nas áreas onde havia conflitos entre os
índios e fazendeiros (GLAGLIARDI, 1989. p. 253). Assim, articulou-se a necessidade de
“pacificação” e “integração” dos povos indígenas ao projeto nacional-desenvolvimentista.
O fenômeno da Marcha para o Oeste como política de colonização e desenvolvimento
agrário do Estado Novo varguista (1937–1945), estava vinculado a uma conjuntura nacionalista
de ocupação das fronteiras e de exploração das riquezas naturais presentes em seu interior. A
ideologia da “nação em marcha” foi incorporada pelo discurso estatal e disseminada por uma
estrutura burocrática através da propaganda, “forjando a imagem de uma nação em movimento à
procura de sua integração, de seu acabamento, de seu desenvolvimento, da sua interiorização,
enfim, do ‘progresso’ e da ‘modernidade’” (ROCHA, 2003. p. 164). Visto como uma continuidade
de um itinerário místico das bandeiras paulistas, a marcha buscava efetivar a conquista e a
integração do território nacional.
A concretização desse movimento se deu através da organização da expedição Roncador-
Xingu, que mais tarde foi incorporada à Fundação Brasil Central (FBC), responsável pela política
de colonização do Centro-Oeste. A expedição consistia efetivamente numa “Frente de Atração”
de grupos isolados e “hostis” com o intuito de “pacificá-los”, possibilitando a criação de rotas
migratórias de penetração na Amazônia. Desta forma, abria-se caminho para a colonização.
Conforme Rocha (2003), esse processo pode ser visto como precursor das políticas
desenvolvimentistas dos governos militares, exemplificados pela rodovia Transamazônica e pelo
Programa Carajás.
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade apontou que esta política de
“colonização dirigida” faz parte dos planos governamentais que sistematicamente desencadeiam
esbulho de terras, favorecendo a invasão e titulação de territórios indígenas a terceiros. O
relatório cita o texto da CPI, instaurada em 1977, onde afirma que “a Fundação Nacional do Índio
(Funai) segue, de certa maneira, a prática do órgão antecessor, o Serviço de Proteção ao Índio
(SPI). Mas ‘moderniza’ esta prática e a justifica em termos de ‘desenvolvimento nacional’, no
intuito de acelerar a ‘integração’ gradativa [...]” (BRASIL, 2014. p. 208). A especificidade desse
processo durante o regime militar caracterizou-se pela aceleração das “atrações” e “pacificações,
com vistas a garantir a realização de um projeto de colonização e desenvolvimento dos sertões
“desabitados”. Conforme o relatório:
A subordinação do órgão tutor dos índios, encarregado de defender seus direitos,
em relação às políticas governamentais fica evidente quando se nota que o
Serviço de Proteção aos Índios (SPI) era órgão do Ministério da Agricultura e que
a Fundação Nacional do Índio (Funai), que substituiu o SPI em 1967, foi criada
como órgão do Ministério do Interior, o mesmo ministério a cargo do qual
estavam a abertura de estradas e a política desenvolvimentista em geral. [...]
(BRASIL, 2014. p. 208).

Assim, a concentração de duas atribuições aparentemente contraditórias – proteger os povos


indígenas e promover a expansão capitalista para Amazônia –, na verdade, revela a mais pura
faceta da política indigenista do regime militar: a submissão dos interesses indígenas aos
interesses econômicos.
O livro A política de genocídio contra os índios do Brasil, de autoria desconhecida e
publicado em 1976, foi escrito como forma de denúncia contra o governo brasileiro perante o
Tribunal Penal Internacional (Tribunal Russel II). Neste documento, é citada portaria interna da
Funai, datada de 25 de janeiro de 1971, que afirma que “a assistência ao índio, que deve ser a
mais completa possível, não visa e não pode obstruir o desenvolvimento nacional nem os eixos
de penetração para a integração da Amazônia” (A política de genocídio..., 1976. p. 9).
No que se refere a situação dos grupos indígenas do norte goiano, a denúncia destaca a
situação dos Karajá e Javaé, que habitavam o Parque Indígena do Araguaia, criado por decreto
presidencial em 1971.

A ilha é o território tradicional de duas tribos: os Carajás e os Javaés. Chamar,


porém essa área de Parque Indígena é mais uma demonstração da falta de
honestidade de propósitos da política indigenista do governo. Há mais de dez
anos, a ilha do Bananal está ocupada por fazendas de gado e nela há hotéis de
turistas. [...] Apesar de o “Hospital do Índio” estar localizado na ilha, 17% dos
Carajás são tuberculosos. A mortalidade das crianças é alta. Os Javaés estão
encurralados pelas cercas de arame farpado das fazendas de gado. Morrem à
míngua, atacados de tuberculose, tracoma, gripe e sarampo (A política de
genocídio..., 1976. p. 13).

Os Karajá tiveram uma experiência intensa de contato com a sociedade não indígena em virtude
da localização de suas aldeias às margens do rio Araguaia. A aldeia Santa Isabel foi fortemente
impactada pela ação estatal. Recebeu a visita de presidentes da República, além de outros
agentes do Estado, pesquisadores, exploradores de minérios, turistas, comerciantes. A partir dos
anos de 1960, o fluxo de não indígenas aumentou consideravelmente com o início da Operação
Bananal e as ações da Fundação Brasil Central (FBC). Os aglomerados urbanos que se formaram
nessas áreas de expansão da sociedade nacional, transformaram-se em cidades. É o caso de São
Félix do Araguaia, Luciara e Santa Terezinha, no Mato Grosso, que localizadas muito próximas
às grandes aldeias Karajá trouxeram problemas relacionados ao alcoolismo e à invasão de terras.
O esbulho das terras indígenas estava associado ao incentivo estatal dado aos projetos de
colonização. Em Tocantínia, no norte goiano, por exemplo, a situação dos Xerente é descrita da
seguinte forma pelo documento enviado ao Tribunal Russel:

Ao longo dos últimos 150 anos os Xerente tiveram sucessivas oportunidades de


lamentar os contatos com a frente de expansão. Progressivamente seu território
foi sendo ocupado por fazendas. [...] As matas que habitam foram sendo
transformadas em pastagens. Se matam algum gado para comer são perseguidos
pelos fazendeiros, como ocorreu em 1971, quando suas aldeias foram invadidas,
um índio ferido a bala e vários velhos e crianças espancados, em represália (A
política de genocídio..., 1976. p. 15).

O texto destaca que os Xerente reuniram-se em uma grande assembleia e deslocaram-se em


guerra contra o invasor, exigindo a desocupação de seu território. O episódio provocou a fuga de
dezenas de famílias de fazendeiros e culminou no deslocamento de tropas da Polícia Militar de
Goiás. Por fim, foram reconhecidos os seus direitos indígenas sobre a terra. No entanto, em
março de 1974, o território ainda permanecia ocupado por 43 fazendas. O relatório traz um
depoimento de Nilo Oliveira Veloso, de 22 de maio de 1963, à CPI do SPI em que retrata o
mecanismo de esbulho do território Xerente. Ele diz:

Viajei em julho do ano passado pelos Xerentes. [...] Suas terras foram
totalmente invadidas. Para legalizar essa invasão a Prefeitura de Tocantínia dá
um recibo. Por quarenta alqueires de terra 98 cruzeiros por ano. Pagando o
arrendamento de quarenta alqueires de terra ficam tais indivíduos protegidos na
invasão da terra dos índios, tornando-se impunes. De posse daquele documento
oficial, julgam-se donos da terra e a petulância vai a tanto que eles põem sua
cerca de arame farpado a vinte metros da casa do índio, proibindo-o de plantar e
de ter sua criação doméstica. Quando esta cerca é retirada propositalmente, o
gado invade a terra do índio e destrói sua plantação. (BRASIL, 2014. p. 242).

Essa prática de esbulho do território é, segundo a CNV, “a força motriz para todas as graves
violações de direitos humanos cometidas contra os povos indígenas” (BRASIL, 2014. p. 221). O
arrendamento de terras e a emissão de títulos implica a vinculação direta do Estado nessas
violações. Esse processo de supressão de direitos territoriais está também no cerne dos crimes
investigados pelo procurador-geral Jáder Figueiredo, em 1967.
Desaparecido por mais de quatro décadas, o Relatório Figueiredo expôs os inúmeros
crimes cometidos pelos agentes estatais e por latifundiários. Este relatório, elaborado a partir de
uma investigação sobre a política indigenista realizada a pedido do então ministro do interior
Albuquerque Lima, em 1967, contém mais de 7 mil páginas e é fruto de uma investigação que
percorreu 130 postos indígenas em todo o país. A partir de relatos orais e documentos, o
procurador-geral Figueiredo comprovou massacres de comunidades inteiras, assassinatos,
torturas, prostituição, trabalho escravo, apropriação e desvio de recursos do patrimônio indígena,
além de inoculação intencional de doenças e veneno, entre outros crimes. 10 Tal como afirma
Davis (1978), as repercussões internacionais do Relatório Figueiredo produziram uma onda de
protestos no mundo e obrigou o regime militar a promover mudanças na política indigenista,
resultando na própria criação da Fundação Nacional do Índio (Funai) (p. 35-36).
Segundo Rocha (2003), para além das denúncias de corrupção, a extinção do SPI estava
vinculada a uma busca pela racionalização da política indigenista. A modernização dos
organismos estatais fazia parte de uma nova conjuntura de internacionalização da economia
brasileira. Neste novo contexto, era necessário garantir uma exploração das riquezas existentes
nas áreas indígenas e, para isso, o novo órgão procurou reorganizar a “renda indígena” (ROCHA,
2003. p. 63). A Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, que criou a Funai, procurou superar as
dificuldades administrativas e orçamentárias dos órgãos indigenistas anteriores incluindo o
dízimo da renda líquida anual do “patrimônio indígena”, destinado ao custeio dos serviços de
assistência. Esse mecanismo de exploração das riquezas naturais e transformação dos Postos
Indígenas em unidades produtivas, voltadas ao custeio da assistência, procurou legitimar-se no
ordenamento jurídico internacional que tratava das relações entre Estados nacionais e essas
populações.
A preocupação do regime militar com os direitos indígenas se deveu, sobretudo, à pressão
internacional exercida por movimentos de defesa dos direitos humanos a partir dos dispositivos
legais internacionais. Como nos informa Lima, “a ação [desses movimentos] sobre o
establishment desenvolvimentista, notadamente o Banco Mundial, repercutiu nos dispositivos
financiadores da expansão governamental rumo à Amazônia, ameaçando cortar os recursos
financeiros ao regime militar [...]” (LIMA, 2010, p. 32). Dessa forma, os militares se viram
obrigados a incorporar diretrizes da legislação internacional no intuito principal de preservarem
suas fontes de financiamento para projetos de desenvolvimento.
Segundo Bigio (2007), a Convenção nº 107, da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), foi referência para a criação da Funai. Com o objetivo de proteger e integrar as
populações indígenas no seio dos Estados nacionais, a OIT estabeleceu, em 26 de junho de 1957,
a Convenção nº 107, que só seria substituída, em 1989, pela Convenção nº 169. De forte teor
evolucionista e assimilacionista, a Convenção nº 107 esteve em vigor no Brasil entre 1966 e

10
Apesar das investigações e dos crimes apurados, Valente (2017) destaca que o procurador-geral Jader de
Figueiredo Correia “estava longe de ser um opositor ao governo” (p. 37). Afirma ainda que ele atuou em sintonia
com o Ministério do Interior e com o Serviço Nacional de Inteligência (SNI) e não investigou a transferência dos
Xavante de Marãiwatsede, não contestou a decisão dos militares de abrir estradas na Amazônia sem antes fazer
levantamento dos índios isolados, além de não ir a Goiás e Pará onde havia “muitas irregularidades” (Apud:
VALENTE, 2017. p. 38.) Relatório Figueiredo. Disponível em
<http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=museudoindio&pagfis=>. Acesso em 10 maio 2017.
2003 e foi o principal instrumento jurídico internacional utilizado pelo Estado brasileiro no
tratamento das populações indígenas durante esse período.
Em seu artigo 2º, a convenção estabelece que “competirá principalmente aos governos
pôr em prática programas coordenados e sistemáticos com vistas à proteção das populações
interessadas e sua integração progressiva na vida dos respectivos países” (Apud: SUESS, 1980, p.
106). Conforme entendimento geral da Convenção, as culturas indígenas eram apresentadas
como inferiores às culturas “mais desenvolvidas da comunhão nacional”, uma vez que se
encontrariam em “estágios transitórios de evolução”, necessitando ser integradas à comunhão
nacional para o seu próprio bem-estar. (Apud: SUESS, 1980, p. 107).
Um dos debates fundamentais no âmbito dessa Convenção referia-se às categorias de
nominação dos nativos. Uma definição mais precisa sobre povos indígenas era uma condição
indispensável para a aplicabilidade da legislação (PAPADÓPOLO, 1995, p. 13). A adoção do termo
“povo” causou reação em muitos países que viam a utilização de tal termo como uma ameaça à
soberania territorial do Estado. Dessa forma, o artigo 1º destaca que a convenção se aplica “aos
membros das populações tribais e semitribais em países independentes [...]” (SUESS, 1980, p.
105). A definição de “populações indígenas” foi tema que gerou muita controvérsia nos debates
que se seguiram nos anos de 1970 e 1980, sendo que – apesar das incertezas – foi substituída na
Convenção nº 169 pela categoria “povos indígenas” (PAPADÓPOLO, 1995, p. 13).
Através do Decreto nº 58.824, de julho de 1966, o governo militar de Castelo Branco,
ratificou a Convenção nº 107. Segundo o artigo 11º da referida convenção, “o direito de
propriedade, coletivo ou individual, será reconhecido aos membros das populações interessadas
sobre as terras que ocupem tradicionalmente” e no artigo subsequente aponta para a
impossibilidade de deslocamento forçado dessas populações “a não ser em conformidade com a
legislação nacional, por motivos que visem à segurança nacional” (SUESS, 1980, p. 109). Não é
estranho que os militares tenham incorporado a Convenção à legislação nacional, uma vez que
ela subordinava a posse do território indígena aos interesses de “desenvolvimento” e da
“soberania nacional”. Em 1973, o Estatuto do Índio incorporou essas premissas.
Em fins de 1968, o governo havia decretado o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que
aumentava a repressão dos movimentos de oposição ao regime. Segundo Relatório da CNV, este
fato foi um marco que endureceu a política indigenista tornando-a mais agressiva. A partir da
criação da Funai intensificou-se um processo de aparelhamento do órgão com a ocupação dos
cargos por militares vindos do serviço de informação e segurança. Nesse processo, os militares
passaram a dar destaque à questão indígena por sua vinculação com a segurança nacional, mas
também por sua relação com o projeto de desenvolvimento econômico. As terras ocupadas por
indígenas e suas riquezas naturais tornam-se questões estratégicas. Por isso a política de
ocupação da Amazônia torna-se fundamental para compreender a política indigenista (HECK,
1997. p. 68). Essa política foi incorporada pela Doutrina de Segurança Nacional e
operacionalizada por militares dos serviços de informação. Esse modelo de “segurança e
desenvolvimento” organizou o sistema de espionagem dentro da Funai e fundamentou, por
exemplo, a criação da Guarda Rural Indígena (GRIN).

A Guarda Rural Indígena (GRIN) e o Reformatório Krenak

Dentre as investigações que compõe os trabalhos da Comissão, são de extrema relevância para a
história dos povos indígenas do Tocantins pesquisas que abordem a formação da Guarda Rural
Indígena (GRIN). Criada em 1969, a GRIN recrutou principalmente índios das etnias Karajá, Krahô
e Xerente, que receberam treinamento militar – inclusive da prática de tortura 11 – e retornaram
para exercerem o papel de polícia no interior dos seus territórios. Defendida inicialmente, a GRIN
foi acusada de “arbitrariedades, espancamentos e abusos de toda a sorte” (BRASIL, 2014. p.
212). 12 Fato este que derrubou o presidente da Funai, Queiroz Campos, em junho de 1970.
Entretanto, o Relatório destaca a necessidade de aprofundamento das investigações sobre GRIN,

“para se apurarem responsabilidades dos militares envolvidos em sua criação e manutenção, bem
como a necessidade de reparação aos indígenas atingidos” (BRASIL, 2014. p. 212). 13
Segundo Egon Heck (1997), a GRIN estava inserida em uma conjuntura mais ampla de
expansão de frentes econômicas sobre novos territórios e de repressão com vistas à subtração de
obstáculos ao projeto de desenvolvimento. Conforme o capitão Pinheiro, chefe da GRIN, “o índio
é o fator de segurança nacional, pois quando ele se revolta, cria desordem e a subversão e, deste
modo, depois de preso pela GRIN, é enviado a Crenaque (colônia penal indígena) para reeducar-
se e ser um índio bom” (Jornal do Brasil, 27 ago. 1972. Apud: HECK, 1997. p. 51).
No entanto, a ideia de uma polícia indígena voltada para a defesa do “patrimônio
indígena” não foi uma ideia original do período militar. Guardas selecionados entre os grupos,
sob o comando dos funcionários do SPI, era uma prática desde fins dos anos de 1930. Apesar de
11
Marcelo Zelic, membro da equipe investigativa da CNV, encontrou no Museu do Índio vídeo em acervo de vinte
rolos de filme 16mm, sem áudio, intitulado “Arara”. Para a surpresa do pesquisador, não se tratava dos índios
Arara do Pará, mas de uma referência a técnica de tortura “pau de arara” – talvez o único registro audiovisual. O
filme retratava a formatura da 1ª turma da Guarda Rural Indígena, em 5 de fevereiro de 1970, e foi feito pelo
documentarista Jesco Von Puttkamer. Folha de S.Paulo, 11 nov. 2012. Ilustríssima. p. 4–5.
12
Conforme Jornal do Brasil de 6 jun. 1970, e Jornal do Brasil e Estado de S. Paulo de 7 jun. 1970 (Apud:
FREITAS, 2011, p. 14).
13
A Comissão Estadual da Verdade do Tocantins realizou pesquisas sobre os indígenas do norte goiano. No entanto,
não foram divulgadas informações sobre a GRIN. Disponível em
<https://mvjtocantins.wordpress.com/2014/08/20/em-tocantinopolis-pesquisadores-entrevista-moradores-sobre-a-
ditadura/ >. Acesso em 30 out. 2017.
normatizado somente na década de 1960, os objetivos principais das “polícias indígenas”
consistiam na “manutenção da ordem” dos territórios, através do controle da entrada de bebidas
alcoólicas e de “pessoas estranhas” no interior das reservas. Casos de “insubordinação”,
homicídio, roubo, alcoolismo e “nomadismo” eram passíveis de punição. Entre as medidas
punitivas se destacam a “transferência e o aprisionamento”, promovendo a saída do “infrator” do
grupo de origem (CORRÊA, 2000).
A GRIN era um projeto de Queiróz Campos, que pretendia reunir “mais de 3 mil
indígenas” para “defender aldeamentos contra abusos e impedir que os silvícolas também
pratiquem desmandos” (Apud: VALENTE, 2017. p. 73). Conforme Portaria 231, de 25 de
setembro de 1969, as atribuições da GRIN eram:

a) Impedir a invasão de suas terras, sob qualquer pretexto, por parte de


civilizados; b) Impedir o ingresso de pessoas não autorizadas nas comunidades
tribais, cuja presença venha contrariar as diretrizes da política indigenista
traçadas pela Funai; c) Manter a ordem interna e assegurar a tranquilidade nos
aldeamentos, através de medidas preventivas e repressivas; d) Preservar os
recursos naturais renováveis existentes nas áreas indígenas, orientando os
silvícolas na sua exploração racional visando rendimentos permanentes; e)
Impedir derrubadas, queimadas , explorações florestais, caça e pesca, por parte
das pessoas não autorizadas pela Funai; f) Impedir as derrubadas, as queimadas,
a caça e pesca criminosas praticadas pelos índios contra o patrimônio indígena;
g) Impedir a venda, o tráfego e o uso de bebidas alcoólicas, salvo nos hotéis
destinados aos turistas; h) Impedir o porte de armas de fogo por pessoas não
autorizadas legalmente; i) Impedir que os silvícolas abandonem suas áreas, com
o objetivo de praticar assaltos e pilhagens nas povoações e propriedades rurais
próximas dos aldeamentos (Apud: FREITAS, 2011. p. 4-5).

Como se pode observar, as atribuições da GRIN incluíam desde a proteção dos territórios
indígenas de invasores (a), como de pessoas que pudessem contrariar “as diretrizes da política
indigenista traçadas pela Funai” (b). Nesse segundo ponto, é preciso ter em mente a preocupação
dos militares com a conjuntura de conflito na região do Araguaia decorrente da guerrilha. Além
da atuação de missionários do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) na região. A manutenção
da ordem interna (c) através de medidas preventivas e repressivas será como uma “carta branca”
para os abusos cometidos no interior das aldeias, apontando para a vinculação da atuação da
GRIN com o envio de indígenas desses territórios para o Reformatório Krenak.
A GRIN foi formada em sua maioria por indígenas do norte goiano, territórios que estavam
próximos à zona de atuação dos guerrilheiros, justificando assim a preocupação com a entrada de
ideias “subversivas” no interior das terras indígenas. Segundo reportagem de O Globo (16 fev.
1970), 29 indígenas da etnia Krahô, 28 Karajá, 21 Xerente, cinco Maxacali e dois Gaviões
formavam a primeira turma da GRIN. Estes receberam um treinamento variado que incluía:
princípios de marcha e desfile, continência e apresentação; aulas de educação moral e cívica;
educação física, equitação, lutas de defesa e ataque, patrulhamento, abordagem, condução e
guarda de prisioneiros, além de aulas de “Conhecimentos Gerais” (FREITAS, 2011. p. 8).
Após o retorno para as suas aldeias, os guardas da GRIN passaram a exercer o papel de
polícia no interior dos territórios. Não demorou muito para surgirem denúncias de
arbitrariedades, atos de violência e insubordinação. Entre os Karajá, os guardas “teriam se
transformado em uma ‘plutocracia’, [...] desrespeitavam a autoridade dos chefes e a hierarquia da
própria tradição. Nas folhas dos jornais, o cacique Arutana, inconformado, chegava a pedir a
intervenção da FAB [...] para acabar com o poder da GRIN” (FREITAS, 2011, p. 14.) Essas
denúncias levariam mais tarde a extinção da GRIN e a substituição da presidência da Funai. No
entanto, o sistema de repressão montado pela guarda foi responsável pelo o envio de muitos
indígenas para o Reformatório Krenak. Conforme Corrêa (2003):

A recepção dos índios criminosos encontrados e detidos pelos GRINs em suas


áreas de ação, também consistia em um dos objetivos da criação do
reformatório, visualizadas pelo número considerável de índios Xerente e Karajá
para lá enviados (CORRÊA, 2003. p. 140).

Assim, articulam-se a atuação da GRIN e a finalidade para a criação do reformatório. O


Reformatório Agrícola Indígena Krenak funcionou entre 1969 e 1972, e tinha a finalidade de
“receber e recuperar índios considerados criminosos”. O reformatório era administrada pela
Polícia Militar de Minas Gerais, através de convênio com a Funai, e foi instalada dentro do Posto
Indígena Guido Marlière (PIGM) – hoje Terra Indígena Krenak, município de Resplendor (MG). A
instituição foi denunciada pelos indígenas e indigenistas por sua arbitrariedade e violência, tendo
funcionado efetivamente como um presídio para os indígenas (CORRÊA, 2003. p. 130).

Nos quatro primeiros anos, além dos nove índios Krenak que foram postos em
cárcere do reformatório, passaram pela instituição entre índios detidos e GRINS:
21 índios Karajá (GO); 12 Terena (MS); 10 Maxakali (MG); 8 Kadiwéu (MS);
cinco Kaiowá (MS) e Xerente (GO); três Bororo (MT), Krahô (GO) e Pataxó (BA);
dois Pankararu (PE), Guajajara (MA), Canela (MA) e Fulni-Ô (PE); e um
Kaingang (RS), um Urubu (MA), um Campa (AC) e um Xavante (MT) (CORRÊA,
2003. p. 139).

A pesquisa de Corrêa (2000) aponta para a presença de um número expressivo de indígenas do


norte goiano (21 Karajá, cinco Xerente e três Krahô), entre os anos de 1969 e 1972. Com base
nas investigações realizadas, ele elaborou uma lista com os nomes dos indígenas, contendo dados
como etnia, idade, tipo de punição, crime, responsável pelo envio, data de entrada e data de saída
(quando possível), além de outras informações. Entre tantos, estão lá indígenas da etnia Xerente,
Karajá (um nome está designado Karajá/Javaé), presos por “embriaguez”, que permaneceram por
mais de um ano. Outros foram presos por “homicídio” ou “roubo”. Outros sequer constam
informações dos motivos do encarceramento. Conforme Lista de motivos para envio ao
reformatório entre os anos de 1969 e 1972, levantados por Corrêa (2003) destacam-se a
“embriaguez” e “sem motivo para o envio”, somando metade dos casos. Sobre esse mecanismo
punitivo, ele diz:

Outro antigo problema para a administração tutelar envolvia os índios dos


estados do Maranhão e de Goiás, tidos como costumeiros andarilhos e
bebedores, e presentes por várias vezes nos ofícios emitidos pela Seção de
Orientação e Assistência (SOA) do SPI na década de 1950. Esses índios, e
principalmente seus “vícios” – fundamentados nas categorias usuais de
vadiagem e embriaguez –, continuavam a preocupar o novo órgão tutelar no
final da década de 1960, sendo “tratados”, então, com envio para recuperação
no reformatório [...] (CORRÊA, 2003).

Esse levantamento constitui uma valiosa fonte para a reconstituição da memória dos indígenas,
com vistas à reparação e anistia dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro. 14 O relatório
questiona: “Quais são as memórias dos 121 presos indígenas listados?” (BRASIL, 2014. p. 245).
Entretanto, a comissão não foi capaz de aprofundar os acontecimentos relacionados ao sistema
punitivo a partir da documentação reunida.
Parte das investigações da CNV sobre a GRIN e sobre o Reformatório Krenak basearam-se
nas pesquisas de Freitas (2011) e Corrêa (2000). Contudo, é evidente a necessidade de pesquisas
que procurem perceber a memória dos sujeitos indígenas envolvidos nesse processo. Pois tal
como aponta recomendação do relatório sobre esses casos, é necessário criar grupo de trabalho
para “organizar a instrução de processos de anistia e reparação dos indígenas atingidos por atos
de exceção, com especial atenção para os casos do Reformatório Krenak e da Guarda Rural
Indígena” (BRASIL, 2014. p. 254).

O Genocídio Avá-Canoeiro

Apresentado como violação de desagregação social e tentativa de extermínio, o caso


dos Avá-Canoeiro do Tocantins é “um dos mais dramáticos exemplos de opressão vivida por um
povo indígena em solo brasileiro” (RODRIGUES, 2012. p. 83). A partir dele, o relatório conclui
que “o fato de esses casos de desagregação social não serem isolados [...], tornam patente tanto a
sua sistematicidade quanto a sua conexão com as políticas de contato e remoções forçadas
operadas pelo órgão indigenista oficial” (BRASIL, 2014. p. 229). No entanto, pelo

14
Tramita atualmente no Ministério Público Federal de Minas Gerais Ação Civil Pública (nº 64483-
95.2015.4.01.3800) que pede ao Estado brasileiro que reconheça as graves violações de direitos humanos
cometidos contra o povo indígena Krenak em virtude da instalação do reformatório. Disponível em:
<http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/docs/acp-reformatorio-krenak.pdf/view>. Acesso em 23 out. 2017.
desconhecimento desses fatos pela maior parte das pessoas, os Avá-Canoeiro mantiveram-se
excluídos de uma pauta mínima de direitos humanos por décadas (RODRIGUES, 2012. p. 83).
Em 1973, uma “Frente de Atração” organizada pela Funai, contatou um grupo de 6 Avá-
Canoeiro – outros quatro seriam encontrados no ano seguinte – na região da Mata Azul. Eles
foram capturados nas imediações da fazenda Canuanã, pertencente aos irmãos Pazzanese, de
família abastada de São Paulo. A antropóloga Patrícia Mendonça Rodrigues, que realizou
estudos de identificação e delimitação do território dos Avá-Canoeiro do Araguaia, afirma que:

O evento crítico da captura – que marcou a derrota final depois de dois séculos
de ativa resistência – é percebido pelos Avá-Canoeiro como um divisor radical
entre um tempo de relativa autonomia e enfrentamento, ainda que marcado pelo
desaparecimento da maior parte do grupo, e o tempo do cativeiro, um eterno
presente de submissão, subordinação e extrema marginalização (RODRIGUES,
2012. p. 83).

O tempo do cativeiro demonstra, de maneira inequívoca, o modus operandi da política de


“pacificação” dos militares com objetivo de liberalização de terras. A captura dos Avá-Canoeiro
e posterior transferência para Posto Indígena Canoanã, onde viviam os Javaé – seus inimigos
históricos – respondeu unicamente aos interesses de grandes grupos econômicos que estavam
vinculados aos projetos de desenvolvimento dos militares.
Representados pelo imaginário nacional, como o grupo que mais resistiu ao contato e que
sempre se recusou a estabelecer relações com a sociedade envolvente, os Avá-Canoeiro foram
perseguidos e quase extintos. Etnia de língua tupi-guarani, os Ãwa – como se autodenominam –
habitavam o alto do rio Tocantins, quando as primeiras frentes de colonização chegaram à região
em meados do século XVIII. As perseguições e massacres levaram a dispersão e fragmentação do
grupo. Uma parte permaneceu nas cabeceiras do rio Tocantins, enquanto outra parte deslocou-se
para a bacia do rio Araguaia. Por volta da metade do século XIX, os Avá-Canoeiro do Araguaia
passaram a ocupar área tradicional de índios das etnias Karajá e Javaé, estabelecendo uma
relação de rivalidade com esses grupos (RODRIGUES, 2012. p. 84–85). No início dos anos 1970,
eles estavam refugiados na região da Mata Azul, localizados na margem direita do rio Javaés,
muito próximo a aldeia Canoanã (Javaé), encurralados por todos os lados e com dificuldades de
subsistência.
O estudo de Rodrigues (2012) revela que a partir dos anos 1930, os Avá-Canoeiro do
Araguaia passaram a ter contato mais frequente com mineradores de cristal de rocha, caçadores,
pescadores profissionais e criadores de gado que começavam a se instalar na região. Nos anos
1950, os índios rumaram para a região do vale do rio Javaés, onde os conflitos se intensificaram.
A crueldade da caçada aos “Cara Preta”, ainda hoje presente na memória dos sertanejos, levou a
uma completa transformação dos hábitos dos Avá-Canoeiro. Suas estratégias de sobrevivência
incluíam afastar-se dos cursos d’água, não acender o fogo durante o dia para não produzir
fumaça, ter que dormir durante o dia e caminhar e caçar à noite. Além disso, não podiam mais
praticar a agricultura, realizar os rituais funerários ou construir habitações permanentes.
Podemos apenas imaginar a tensão e o trauma com que viviam os remanescentes dos Avá-
Canoeiro.
Nos últimos anos antes da captura, os sobreviventes habitavam a Mata Azul. Esta fazia
parte da propriedade da imensa fazenda Canuanã, comprada pela família paulista Pazzanese para
implementar projeto agropecuário. A fazenda havia sido constituída originalmente, na metade
dos anos 1950, dentro do território da antiga aldeia Canoanã, dos Javaé, na margem direita do
rio, por um rico fazendeiro de Goiânia. Por conflitos com os Javaé, a fazenda foi vendida para os
irmãos Pazzanese, nos anos 1960. Após a aquisição, os Pazzanese desmataram grandes áreas
para o cultivo de pasto, construíram uma luxuosa sede para a fazenda e uma pista de pouso.
Durante o período militar, os irmãos fizeram uma parceria econômica com o Banco
Bradesco. Beneficiando-se dos incentivos fiscais e financeiros do governo, surgiu a Fundação
Bradesco/Fazenda Canuanã, uma instituição escolar. No entanto, a presença do Avá-Canoeiro
na Mata Azul ameaçava os investimentos econômicos. Num evidente caso de corrupção, a
Fazenda Canuanã havia obtido inclusive uma “certidão negativa” da Funai, atestando a
inexistência de índios nas imediações (RODRIGUES, 2012. p. 95). Dada a tensão da situação, a
Funaiiniciou uma Frente de Atração, em 1971. Como dito anteriormente, os interesses
econômicos se sobrepunham a própria existência dos índios, vistos sempre como um empecilho
ao “desenvolvimento”. Conforme o relatório:

A ativação da Frente ocorreu exatamente na mesma época em que o grupo


Bradesco manifestou a intenção de iniciar uma parceria econômica com os
Pazzanese, visando à criação de gado na região. O resultado prático da
precipitada ação do órgão indigenista beneficiou unicamente os interesses
privados do grupo Bradesco e dos proprietários da Fazenda Canuanã e a forma
como o contato foi realizado pela equipe da Funai, que se dirigia a superiores
militares em documentos produzidos à época, foi mais brutal e violenta do que
aparece nos boletins oficiais da época (BRASIL, 2014. p. 228).

O discurso estatal construiu uma imagem docilizada da captura dos Avá-Canoeiro. No entanto,
os relatos do contato estabelecidos pela equipe de sertanistas revelam que “foi mais brutal do que
aparece nos boletins oficiais da época” (RODRIGUES, 2012. p. 97). O relatório da CNV lembra que
a Frente de Atração entrou atirando no acampamento dos índios, resultando na morte de uma
menina, na fuga desesperada de quatro pessoas e na prisão de outras seis. Os Avá-Canoeiro
capturados foram amarrados em fila indiana, sob a mira de armas e levados a sede da Fazenda
Canuanã, onde foram exibidos ao público, como em um zoológico. Depois de abusos e
intimidações, foram transferidos para a aldeia de seus inimigos históricos e assimilados
culturalmente pelos Javaé como cativos de guerra (BRASIL, 2014. p. 228).
Segundo Rodrigues (2012), recentemente a atuação do Grupo de Trabalho para
identificação da Terra Indígena Taengo Ãwa, provocaram uma efervescência social, cultural e
política entre os Avá-Canoeiro, levando a uma inserção política dentro e fora da aldeia. Em
2003, os irmãos Marcela e Henrique Borela encontraram na Universidade de Goiás uma fita VHS
contendo imagens do “cativeiro Avá”. Os irmãos levaram esse material para os Avá-Canoeiro do
Araguaia e registraram o encontro com os arquivos do tempo em que foram capturados. 15 Essas
experiências contemporâneas fizeram os Avá-Canoeiro reavivarem na memória os momentos
traumáticos das fugas, perseguições, da captura e do cativeiro, mas principalmente, da
resistência.

Projetos de desenvolvimento da Amazônia e os Apinajé

No que refere as violações de expulsão, remoção e intrusão de territórios indígenas, o relatório


apresenta os casos das etnias Guarani, Kadiwéu, Xavante, Xetá, Xokleng, Pataxó e Nambikwara
como exemplos do que chamou de “modus operandi do Estado brasileiro quando seu objetivo foi
liberar terras indígenas para a colonização e para a realização de grandes empreendimentos”.
Isso demonstra “o caráter sistemático e deliberado da atuação ilegal do Estado diante dos povos
indígenas” (BRASIL, 2014. p. 223). Outros tantos grupos são citados como tendo sido afetados
por essa prática, entre eles os Apinajé. Entretanto, o relatório não descreve as circunstâncias em
que essas violações ocorreram. Cabe-nos indagar como se deu esse processo entre os Apinajé.
De modo geral, a ditadura militar procurou implementar um projeto de desenvolvimento,
voltado para crescimento interno, com incremento das exportações de produtos agrícolas e
produtos industrializados. 16 Para isso, subsidiou política de incentivos fiscais e créditos. A

15
Essa experiência resultou na produção do documentário Taengo Ãwa, de Marcela e Henrique Borela, lançado em
2016. “‘Taengo Ãwa’ registra resistência e reafirma identidade de índios”. Folha de S.Paulo, 12 maio 2017.
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/05/1883095-taego-awa-registra-resistencia-e-
reafirma-identidade-de-indios.shtml >. Acesso em 2 nov. 2017.
16
Como afirma Escobar, “entende-se ‘desenvolvimento’ como uma categoria coerente de fenômenos sociais, que
deve ser observado em seu processo histórico, mas também como prática discursiva, que constituem elementos da
realidade social”. É necessária “uma visão de desenvolvimento como invenção, como experiência historicamente
singular que não foi nem natural, nem inevitável, senão o produto de processos históricos bem identificáveis”
(ESCOBAR, 1997. p. 11). A concepção de “desenvolvimento” se apresenta carregada de pré-concepções que
constituem um filtro pela qual passa nossa percepção do mundo contemporâneo. O economicismo e o
eurocentrismo estão entre as perspectivas que determinam a forma de ver o “desenvolvimento”. O economicismo
deriva da teoria econômica neoclássica na configuração da identificação do desenvolvimento como crescimento
econômico. Já o eurocentrismo opera desde o colonialismo do século XVI como modelo ocidental de sociedade,
como parâmetro universal para medir o relativo atraso do progresso dos demais povos do planeta. Como o termo
intenção dos militares era promover a industrialização, a modernização agrícola e expandir a
infraestrutura, com o objetivo de resolver desequilíbrios regionais e garantir a “segurança
nacional”.
Tal como a Marcha para o Oeste, os militares incorporaram a ideia da necessidade de
conquista e integração da Amazônia – caracterizada pela noção de “vazio demográfico” 17 – e
empreenderam seu desbravamento através dos grandes projetos econômicos. O antropólogo
estadunidense Shelton Davis publicou, originalmente em 1977, resultado de sua pesquisa
intitulada Vítimas do milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil, cuja tese central é que
“para compreender a situação dos índios brasileiros, é necessário examinar a história econômica
da Região Amazônica” (p. 40) e discutir o fenômeno do aclamado “milagre econômico” do
Brasil.
O “milagre econômico” brasileiro – fenômeno associado as altas taxas anuais de
crescimento econômico entre os anos de 1968 e 1973 – teve como um dos principais expoentes o
Plano de Integração Nacional (PIN). Em princípios dos anos 1970, durante o governo do general
Emílio Médici (1969–1974), foi criado o PIN, que destinou mais de um bilhão de dólares, entre
1971 e 1974, para a construção da rodovia Transamazônica. O PIN tinha como objetivo ainda
promover a intensa colonização da Amazônia.
A ascensão de Médici à presidência da República e a nomeação do coronel José Costa
Cavalcanti no Ministério do Interior marcaram uma aceleração do processo de “atração” e
“pacificação” de grupos indígenas, com o objetivo de possibilitar a construção da rodovia. O
extermínio de grupos (eufemisticamente chamado de “atração” e “pacificação”), como os
Parakanã e os Krenakoré, ao longo do traçado da rodovia, foi parte de um esquema mais amplo
de destruição étnica intensificado a partir de 1970. “Entre 1970 e 1974, o governo brasileiro
tentou acelerar o processo de ‘integração nacional’ construindo uma série de estradas que
cortavam o parques e terras indígenas” (DAVIS, 1978. p. 101).
Neste momento, os Apinajé não tinham ainda seu território demarcado, mas sofreram o
processo de restrição de uso de seu território tradicional com a construção da rodovia.
Efetivamente, em 1985, quando a área indígena foi demarcada, a Transamazônica serviu de

“civilização” no século XIX, “desenvolvimento” é uma ideia que descreve, não só um valor, mas também um
marco interpretativo ou problemático através da qual conhecemos as regiões periféricas da economia global. O
“desenvolvimento” é o mito originário do sistema capitalista e da modernidade (ESCOBAR, 1997).
17
Conforme o relatório da CNV: “A noção de ‘vazio demográfico’, construída sobretudo por geógrafos, historiadores
e agentes estatais a partir da década de 1930, se constitui pelo apagamento da presença e dos territórios indígenas,
adotando um ponto de vista, o do colonizador, caracterizando-se, portanto, como um ‘mito’. Pelo apagamento, o
‘mito do vazio demográfico’ representa uma falsa versão do processo de conquista dos territórios indígenas,
encobrindo as violências cometidas contra esses nas áreas em colonização, como se esse processo fosse
harmonioso, ordenado e sem conflitos, no que se perdem de vista também as lutas e resistências dos povos
indígenas” (BRASIL, 2014, p. 258).
fronteira entre o território Apinajé e a área destinada aos assentamentos fundiários, apontando
para o modus operandi do Estado descrito no relatório da CNV.
A rodovia Transamazônica, conforme comunicado publicado no Jornal do Brasil em
março de 1970, atravessaria a “Belém-Brasília, na altura de Marabá, às margens do Tocantins
(mais precisamente em Estreito, no Maranhão, a aproximadamente trinta quilômetros do
território Apinajé) [...]”. A reportagem diz ainda que a rodovia “será uma vereda aberta ao
nordestino para a colonização do enorme vazio demográfico e o início da exploração de
potenciais até então inacessíveis” (Apud: VELHO, 2009, p. 139). A obra da rodovia foi iniciada
em fins de 1970, simultaneamente em diversos trechos, e já em outubro de 1971 já estava sendo
entregue ao tráfego. Velho (2009) afirma que “do outro lado do rio Araguaia, em Goiás, de um
ponto situado oito quilômetros acima de Araguatins abria-se também a ligação com a Belém-
Brasília, com a construção de estrada nova e o aproveitamento do ramal que ligava
Tocantinópolis à localidade do Estreito” (Apud: VELHO, 2009, p. 139).
O trecho mencionado acima atravessou o território de uso permanente dos Apinajé,
passando a cerca de dois quilômetros da aldeia São José, sua comunidade mais populosa. Dada a
proximidade com as habitações, pode-se imaginar o impacto da chegada de grandes máquinas
abrindo caminho em meio ao cerrado. Kangrô, que naquele tempo era vice-cacique da aldeia,
contou que a intenção era passar a estrada pelo meio da aldeia, o que foi rechaçado pelos
indígenas. Fala ainda que o cacique pediu aos operários da rodovia que abrissem uma estrada
para a aldeia, o que o militar do Exército, responsável pela supervisão dos trabalhos, não
autorizou. 18
Nas conversas feitas com Kangrô sobre a construção da Transamazônica e as mudanças
que tiveram que enfrentar com a chegada da rodovia, engendraram em suas memórias diversas
temporalidades. Entre as histórias “que sua avó contava” e os casos de conflitos mais recentes
com os kupẽ (não-índio), destacam-se as distintas dimensões em que operam as relações
interétnicas. Mas é significativo que, ao ser perguntado sobre a rodovia Transamazônica, ressalte
os momentos de conflito.
Logo após sua abertura, a Transamazônica passou a receber um fluxo intenso de carga e
de passageiros neste trecho (VELHO, 2009; DODDE, 2012). Antes da construção da rodovia, o
único acesso dos Apinajé ao município de Tocantinópolis era por uma trilha que ligava a uma
estrada rural em direção à cidade. Os Apinajé passaram a utilizar a Transamazônica para vender
artesanato e, em alguns casos, dirigiam-se à cidade de Marabá. Kangrô conta o episódio em que

18
Entrevista realizada com Francisco Kangrô Apinagé, na aldeia São José, Terra Indígena Apinayé, em 14 dez.
2015.
ele e o cacique pegaram a estrada rumo a Marabá, para trazer de volta algumas indígenas
Apinajé que haviam partido com um caminhoneiro.
Uma das consequências diretas da construção da rodovia para os Apinajé foi a restrição
do uso de seu território de ocupação permanente. Muitos Apinajé afirmam que os kupẽ passaram
a utilizar a rodovia como limite do território que poderia ser utilizado pelos índios. Em entrevista
realizada com o professor Roberto, ele afirmou que “quando a estrada passou, os kupẽ
começaram [...] ‘aqui, agora é terra do índio e isso aqui é nosso (gesticulando com as mãos)’”,
referindo-se à fronteira estabelecida pela rodovia. E prossegue: “[...] e aí cercaram tudo,
colocaram gado. [...] tava tudo proibido, o índio não entrava lá”. 19 Novamente são os conflitos
com os não índios que dão o tom da conversa. Esses conflitos foram intensificados pela
ocupação da terra facilitada pela construção da rodovia.
A política de ocupação e de colonização da Amazônia Legal idealizada pelo regime
militar pretendia amenizar os conflitos fundiários na região, por meio da criação do Grupo
Executivo de Terras do Araguaia Tocantins (GETAT) em 1980 (MAGALHÃES, 1990). Ao que tudo
indica, quando os militares tomaram conhecimentos de grupos de guerrilheiros na região do sul
do Pará, passaram a adotar uma política de ocupação e de desenvolvimento que amenizasse
focos de tensão social existentes na região. 20 Nesse contexto, a construção da Transamazônica e
a atuação do GETAT teriam o intuito de resolver os problemas fundiários e garantir a “segurança
nacional”. A política significou o apogeu da militarização da questão de terras no Brasil
(Martins, 1984, p. 49). A reserva de faixa de terras a oeste da rodovia Transamazônica para
colonização, sob tutela militar, afetou diretamente a área de uso permanente dos Apinajé. Área
esta de referencial cosmológico, histórico, utilizado para caça e pesca e coleta de plantas de uso
ritual e medicinal.
No entanto, a construção de infraestrutura e o reordenamento fundiário do norte goiano
estavam associados ainda a um contexto mais amplo de transformações sociais da região
amazônica. Em 1980, foi criado o Programa Grande Carajás (PGC), 21 que consistia em um
projeto de desenvolvimento integrado formado por quatro grandes projetos: um depósito de
minério de ferro, duas fábricas de alumínio e a hidrelétrica de Tucuruí, no baixo Tocantins. No

19
Entrevista realizada com Roberto da Mata Apinagé, na aldeia Patizal, Terra Indígena Apinayé, em 16 dez. 2015.
20
A Guerrilha do Araguaia foi um movimento guerrilheiro estabelecido na região do rio Araguaia em princípio dos
anos de 1970. Criado pelo Partido Comunista do Brasil, tinha por objetivo desencadear processo revolucionário
socialista. A região de abrangência da guerrilha compreende toda a macrorregião do Bico do Papagaio, portanto
dentro do território tradicional Apinajé. Os conflitos militares entre Exército e guerrilheiros ocorreram
principalmente no estado do Pará, a pouco mais de uma centena de quilômetros das comunidades Apinajé.
Aparentemente os Apinajé tiveram pouco envolvimento com o teatro de operações militares. No entanto, este
aspecto é um tema que deve ser melhor investigado.
21
Algumas referências levantadas sobre o PGC: Cota (1984); Davis (1977); Ferraz e Ladeira (1991); Hall (1989); e
Treece (1987).
entanto, as reservas minerais foram os principais pilares do programa. Descoberto
acidentalmente em 1967, na Serra de Carajás no Pará, o depósito de minério de ferro era, naquele
momento, uma das maiores reservas do mundo.
Assim, o II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975–79), criado pelo governo Geisel,
deu prioridade aos recursos minerais e à infraestrutura necessária para sua exploração. A
empresa era controlada principalmente pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), e financiada,
majoritariamente, pelo capital japonês, além de contar com subsídios do governo federal. O
projeto foi complementado em 1985 com a inauguração da Estrada de Ferro Carajás, que ligava
a mina ao porto de Itaqui em São Luís, no Maranhão (HALL, 1989).
A construção da Estrada de Ferro Carajás estabeleceu o programa conhecido como
Grande Carajás, que reconhecia impacto sobre diversos territórios indígenas, entre eles o
território Apinajé. A assinatura do Convênio entre Funai e CVRD, em 1982, previa a
disponibilização de US$ 13,6 milhões para viabilizar a demarcação física do território, bem
como para desenvolvimento das comunidades em longo prazo. Estavam incluídos, na área de
influência do PGC, quinze diferentes grupos indígenas, totalizando 13 mil indivíduos (TREECE,
1987). As autoridades empresariais relutaram em reconhecer a presença indígena na área de
influência do programa. Devido a recomendações do Banco Mundial, os recursos do PGC tinham
como finalidade principal garantir a demarcação das áreas indígenas. Apesar do empenho dos
antropólogos contratados para executar o plano, a maior parte do recurso foi destinado para
cobrir as próprias deficiências orçamentárias e manter ou ampliar a infraestrutura da Funai.
Contudo, devido aos desvios do projeto e à pressão dos antropólogos, o convênio foi suspenso
em 1986.
Para os Apinajé, a aplicação do recurso significou a adoção do Projeto de
Desenvolvimento voltado para melhorias nas instalações de saúde e educação, pertencentes à
Funai; aquisição de materiais diversos; instalação de uma cantina para venda de produtos;
aquisição de cabeças de gado; e compra de maquinário agrícola pesado para implantação de
projeto de monocultura de arroz. Dito de outra forma, os recursos foram utilizados para
manutenção da estrutura e execução de ação do órgão indigenista. Na lembrança dos Apinajé, o
“tempo da Vale” – em referência à empresa que financiava o projeto – foi marcado por muitas
transformações na vida cotidiana das aldeias. Atualmente pouco sobrou do maquinário agrícola,
sucateado ou vendido, das construções, da cantina ou do gado. Eram fortes, no entanto, as
lembranças das roças Apinajé “antes da Vale”, dos tempos “da roça mecanizada” de arroz e dos
conflitos entre famílias e aldeias por causa do gado e das máquinas. Todas essas memórias falam
muito sobre o desenvolvimento que os governos militares tentaram implementar na Amazônia.
Considerações finais

Este texto procurou identificar e levantar possíveis temas de investigação a partir dos casos
trazidos pela Comissão Nacional da Verdade. Outros temas fundamentais não foram abordados,
como exemplo, a perseguição ao movimento indígena. No entanto, um breve olhar sobre o
relatório final aponta para a gravidade das violações de direitos humanos dos povos indígenas
cometidas pelo Estado brasileiro durante o regime militar. Mais do que casos esporádicos,
consistiam de uma prática instituída de extermínio, usurpação e marginalização de populações
inteiras em nome de um suposto “desenvolvimento”. Os índios do antigo norte goiano estavam
localizados entre os militares e a realização desse projeto, como disse Schwarcz e Starling
(2015). As consequências desse processo se revelaram nas arbitrariedades cometidas pela
política indigenista: a coação, o encarceramento, o massacre, o esbulho dos territórios, enfim, a
submissão da condição humana dos sujeitos indígenas perpetrada por uma política de Estado
deliberadamente genocida.
A investigação promovida pela Comissão Nacional da Verdade apenas pontuou
necessários caminhos de pesquisa sobre essas violações. O relatório destacou ainda que o papel
da comissão residia em demonstrar apenas que os indígenas também foram atingidos pela
violência de Estado e que “esta investigação precisa de continuidade para que esses povos
participem e sejam beneficiados pelo processo de justiça transicional em desenvolvimento no
Brasil” (BRASIL, 2014. p. 206). Vivemos um momento político em que é difícil pensar em uma
reparação desses povos pelos crimes cometidos pelo Estado. No entanto, é necessário o
aprofundamento de pesquisas que subsidiem processos de reparação e anistia para os índios
afetados por esse processo. A dimensão da presença dos povos indígenas do Tocantins no
relatório, aponta para o esforço de investigação que elucide os mecanismos de “liberalização de
terras” para projetos de colonização, importante para pontuar as responsabilidades do Estado
brasileiro na violação dos direitos humanos. Dessa conjuntura decorrem inúmeros problemas
contemporâneos vivenciados por esses povos.
Ademais, a emergência de uma enormidade de documentos digitalizados e a existência de
uma certa bibliografia sobre a relação dos militares com esses povos constituem fontes
fundamentais para reconstruir estas histórias indígenas. Esforços investigativos, como o revelado
pela comissão, demonstram a fertilidade dos debates em torno do tema e o enorme trabalho de
pesquisa envolvido. Contudo, são precisos mais estudos que enfoquem as memórias dos sujeitos
indígenas sob as violações de direitos humanos cometidos durante o regime militar, com vistas
ao estabelecimento de subsídios para processos de anistia e reparação no âmbito das instâncias
legais.

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