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§ 28º — Falsificação de moeda

A. Bem jurídico e objecto de protecção nos artigos 262º a 266º


As incriminações de falsificação de moeda são, pelo menos para alguns autores, casos
especiais de falsificação documental. Protegem o interesse geral na segurança e a
credibilidade do tráfego monetário ou, como dizia o Prof. Beleza dos Santos, mas com
menor acerto, "a confiança ou fé pública na moeda". ( 1) A perda de confiança na moeda
envolve também uma profunda e generalizada desconfiança na capacidade de os estados
poderem garantir a circulação monetária. O ofendido vê-se a si próprio não apenas, como
na burla, uma vítima das manobras de um terceiro, mas também vítima da incapacidade de
a entidade soberana cumprir alguns dos seus mais significativos deveres.
A protecção incide sobre a moeda, definida no artigo 255º, alínea d), como sendo o papel
moeda, compreendendo as notas de banco e a moeda metálica, que tenham, esteja
legalmente previsto que venham a ter ou tenham tido nos últimos 20 anos curso legal em
Portugal ou no estrangeiro (artigo 255º, alínea d)). Há porém títulos que se equiparam a
moeda, daí a epígrafe desta secção: falsificação de moeda, título de crédito (e valor
selado).
A moeda é falsa quando é contrafeita ou depreciada no seu valor, é aquela que não provém
da entidade ou entidades legalmente legitimadas para a pôr em circulação. Fala-se em
moeda falsa como sendo aquela que não provém de quem tem o monopólio da sua
emissão, mas de outra pessoa.
A falsificação não tem de ser perfeita, bastando a aparência de que se trata de moeda. É
preciso que a moeda contrafeita, falsificada ou alterada tenha aparência de legítima, de
forma a poder confundir-se o dinheiro falso com o autêntico (legítimo), aquele que tem
curso legal, e desse modo conseguir, na circulação do dia a dia, defraudar qualquer pessoa
desprevenida. Mas não se devem colocar demasiadas exigências quando a tal semelhança,
advertem os autores — pode dar-se a aparência de legitimidade mesmo quando os
destinatários descubram com certa facilidade a falsificação. Para a jurisprudência alemã,
na interpretação de preceito idêntico ao nosso, o decisivo é apenas a possibilidade, o
perigo de a moeda falsa se confundir com a verdadeira.
A falsificação de moeda está intimamente ligada à soberania dos estados, e já não
propriamente à confecção de documentos, situação que arrasta a prerrogativa de os estados
criarem moeda. O que se tutela é por isso a segurança do tráfico jurídico monetário
internacional, já que a "moeda" compreende o "papel moeda" e a "moeda metálica" que
venham a ter ou tenham tido nos últimos 20 anos curso legal em Portugal ou no
estrangeiro (artigo 255º, alínea d)). Em palavras breves, tutela-se a função de garantia que
desempenha a moeda e desse modo a segurança jurídica nas transacções nacionais e
internacionais.
As modalidades típicas apontam, como melhor se verá com a subsequente exposição, para
1
Quanto a este último ponto, Matos Fernandes, Falsificação de documentos, moeda, pesos e medidas, CJ,
IX, tomo 4.

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 28º (falsificação de moeda e títulos), Porto, 2009
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uma antecipação da tutela com uma latitude pouco frequente. Punem-se como crime
autónomo autênticos actos preparatórios. Aprecie-se, por outro lado, os casos em que a
tentativa é punível (artigos 263º, 264º, 265º e 266º), o que certamente dará azo à
desistência voluntária (artigos 24º e 25º). Prevê-se aliás um regime de privilegiamento com
assento no nº 3 do artigo 271º.
B. As modalidades típicas
I. Falsificação de moeda (artigo 262º) e depreciação do valor (artigo 263º)
Artigo 262.º (Contrafacção de moeda) 1 — Quem praticar contrafacção de moeda, com intenção de a pôr
em circulação como legítima, é punido com pena de prisão de três a doze anos. 2 — Quem, com a intenção
de a pôr em circulação, falsificar ou alterar o valor facial de moeda legítima para valor superior é punido
com pena de prisão de dois a oito anos.
Artigo 263.º (Depreciação do valor de moeda metálica) 1 — Quem, com intenção de a pôr em circulação
como íntegra, depreciar moeda metálica legítima, diminuindo por qualquer modo o seu valor, é punido
com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias. 2 — Com a mesma pena é punido
quem, sem autorização legal e com intenção de a passar ou pôr em circulação, fabricar moeda metálica
com o mesmo ou com maior valor que o da legítima. 3 — A tentativa é punível.
Encontram-se no artigo 262º algumas das modalidades comissivas incluídas no artigo 2º da
Convenção de Genebra para a repressão da moeda falsa. No nº 1 pune-se a contrafacção
(falsificação por inteiro), no nº 2 a falsificação ou a alteração do valor facial de moeda
legítima para valor superior. A contrafacção há-de, no entanto, ser idónea para enganar,
embora haja quem admita que basta uma mínima aparência de autenticidade para aceder ao
tráfego.
Não estará em causa a criação de uma moeda imaginária, que não vulnera o bem jurídico
protegido. Igualmente não de inclui aqui a contrafacção de moedas somente com valor
numismático (antigas), actividade que poderá estar relacionada com o crime de burla.
É elemento subjectivo específico deste crime a intenção de pôr a moeda em circulação
como legítima. Trata-se de um segmento típico que de algum modo se equipara ao uso nas
falsificações documentais (Baukastensystem). Trata-se de um elemento indispensável
mesmo quando o dinheiro falso acaba por ser utilizado por outros conhecedores da
falsificação. Bastando o dolo acompanhado da intenção de pôr a moeda em circulação, o
crime mostra-se consumado com a contrafacção ou a depreciação da primeira "peça", não
sendo para tal necessário colocá-la efectivamente em circulação.
Se alguém quer apenas fazer alarde das suas capacidades ou da sua perícia como moedeiro,
não se verifica o crime, não obstante o agente saber que contrafaz moeda legítima. Se não
se pretende levar ao engano sobre a autenticidade da moeda, fabricando-a sem a intenção
de a pôr em circulação como legítima não sai vulnerado o bem jurídico correspondente.
Neste sentido, quem faz o dinheiro falso para si, não comete um crime de falsificação.
Também não comete o crime quem faz moeda para si, apenas para se divertir e apurar os
seus gostos artísticos e a moeda falsa acaba por ser furtada.
No nosso Código, o artigo 271º prevê a aplicação de pena a quem “preparar a execução”,
entre outros, de actos de contrafacção de moeda (artigo 262º), fabricando formas, cunhos,
adquirindo papel igual ou que se possa confundir com o utilizado no fabrico de moeda,
título de crédito ou valor selado. Tirando os trabalhos puramente artesanais, a resolução
criminosa ligada à moeda falsa envolve, por sua natureza, outras pessoas, transcendendo o
sujeito isolado. Nisso reside a faceta da especial perigosidade dessas actividades. Não
obstante se reconduzirem a uma fase de preparação criminosa, justifica-se plenamente

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 28º (falsificação de moeda e títulos), Porto, 2009
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castigar os culpados. O artigo 271º (a exemplo do artigo 275º) pune actos preparatórios
enquanto tais, por haver um alto grau de probabilidade de realização do tipo de ilícito e a
"necessidade de uma intervenção penal específica num estádio particularmente precoce do
iter criminis". (2)
O próprio artigo 262º aplica-se a quem praticar contrafacção de moeda, acto que constitui,
materialmente, um acto preparatório. A norma impõe que o sujeito actue com intenção de
a pôr em circulação como legítima, desenhando-se como crime de tendência. ( 3) Com esta
configuração, o artigo 262º previne tanto a passagem (artigo 265º) como a aquisição de
moeda falsa para ser posta em circulação (artigo 266º), repercutindo a tutela a um
momento temporal de preparação destas outras actividades criminosas: o autor material da
contrafacção, que é sempre um perito, quando não um artista, possibilita, com a sua acção,
essas actividades posteriores, numa lógica de divisão do trabalho que se harmoniza com a
própria ideia de “preparação”. Com efeito, se “preparar” é reunir as condições para algo
que vem a seguir, “preparar um crime” é produzir uma actividade dirigida a possibilitar ou
tão só a tornar mais fácil a sua posterior realização. No contexto indicado, a função
atribuída ao artigo 262º é ainda a de castigar actos preparatórios, embora se trate de
um crime autónomo.
O Prof. Figueiredo Dias ( 4), entende que a solução legislativa de punir autonomamente a
matéria dos artigos 262º e 271º, por se reconduzir a uma “preparação da preparação”
conduz a punição “a estádios demasiado precoces e duvidosos da realização do crime
material” (colocar em circulação moeda falsa) “e é, por conseguinte, altamente
questionável em perspectiva político-criminal”. Em suma: não se deve punir a tentativa de
acto preparatório, mesmo que ela fosse em geral punível se o acto preparatório
constituísse um crime autónomo. Se se punem os actos preparatórios enquanto tais implica
não deverem voltar a considerar-se puníveis como crime autónomo, sob pena de violação
do princípio ne bis in idem (“recebido em certa medida no art. 29º-5 da CRP”). (5)
Como a moeda metálica tem hoje um valor meramente simbólico, passando-se o mesmo
com o papel-moeda, não se inclui aqui o cercear da moeda, como se fazia antigamente,
retirando-lhes partes do metal nobre com que então se compunham. Só a falsificação ou a
alteração do valor facial de moeda legítima para valor superior é que constitui modalidade
típica deste artigo.
No entanto, a depreciação do valor da moeda metálica legítima (diminuindo por qualquer
modo o seu valor), é crime do artigo 263º, nº 1. Mesmo a fabricação de moeda metálica
com o mesmo ou com maior valor que o da legítima é modalidade típica do nº 2. Satisfaz-
se assim a Convenção de Genebra que prevê tais condutas. Ponto é que haja a intenção de
pôr a moeda em circulação como íntegra, ou, não estando autorizado, de a pôr em
circulação.
Como nestes casos o ilícito é de intenção, a consumação tem sempre lugar no momento em
que termina a confecção da moeda, sem necessidade de a introduzir no tráfico (a

2
Figueiredo Dias, DP/PG I, 2ª ed., 2007, p. 683.
3
Para a consumação do crime basta a referida intenção, mas o ataque ao ordenamento social apenas se dá
com a entrada em circulação da moeda contrafeita (Conimbricense II, anotação antes do artigo 262º).
4
Figueiredo Dias, “Formas especiais do crime” — Textos de apoio, 2004, p. 4.
5
Sobre a via para uma "correcta desimplicação" (através da figura da "relação de subsidiariedade tácita"),
quanto a este ponto, Figueiredo Dias, DP/PG I, 2ª ed., 2007, p. 684 e 999.

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introdução no tráfico não passaria então de acto posterior não-punido).


II. Passagem de moeda (artigos 264º e 265º)
Artigo 264.º (Passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador) 1 — Nas penas indicadas nos
artigos 262.º e 263.º incorre quem, concertando-se com o agente dos factos neles descritos, passar ou puser
em circulação por qualquer modo, incluindo a exposição à venda, as ditas moedas. 2 — A tentativa é
punível.
Artigo 265.º (Passagem de moeda falsa) 1 — Quem, por qualquer modo, incluindo a exposição à venda,
passar ou puser em circulação: a) Como legítima ou intacta, moeda falsa ou falsificada; b) Moeda metálica
depreciada, pelo seu pleno valor; ou c) Moeda metálica com o mesmo ou maior valor que o da legítima,
mas fabricada sem autorização legal; é punido, no caso da alínea a), com pena de prisão até cinco anos e,
no caso das alíneas b) e c), com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 — Se o
agente só tiver conhecimento de que a moeda é falsa ou falsificada depois de a ter recebido, é punido: a)
No caso da alínea a) do número anterior, com prisão até um ano ou multa até 240 dias; b) No caso das
alíneas b) e c) do número anterior com pena de multa até 90 dias. 3 — No caso da alínea a) do n.º 1, a
tentativa é punível.
Pune-se no artigo 264º aquele que, em concerto com os factos descritos nas duas normas
anteriores, passar ou puser em circulação por qualquer modo, incluindo a exposição à
venda, as ditas moedas. O falso é posto em circulação quando sai das mãos do falsificador
para outras mãos. Por ex., entrega-se para "pagar" combustível, recebendo o troco (espera-
se que em moeda legítima…). Ou se o agente usa uma moeda metálica falsa para aceder ao
interior de uma máquina automática fornecedora de tabaco (estará então preenchida a
norma do furto: artigo 203º, nº 1). A lei não exige que a moeda falsa seja dada em
pagamento, podendo muito bem acontecer que seja entregue e aceite simplesmente como
caução.
Caso nº 1 A andou a fazer compras toda a tarde e ao conferir as contas verificou, surpreendido, que algum
dos comerciantes lhe dera de troco uma nota falsa. Para não ficar a perder, foi com ela
comprar um maço de tabaco, recebendo o troco em moeda legítima.
O caso entra directamente na previsão do artigo 265º, nº 2.
III. Aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação (artigo 266º)
Artigo 266.º (Aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação) 1 — Quem adquirir, receber em
depósito, transportar, exportar, importar ou por outro modo introduzir em território português, para si ou
para outra pessoa, com intenção de, por qualquer meio, incluindo a exposição à venda, a passar ou pôr em
circulação: a) Como legítima ou intacta, moeda falsa ou falsificada; b) Moeda metálica depreciada, pelo
seu pleno valor; ou c) Moeda metálica com o mesmo ou maior valor do que o da legítima, mas fabricada
sem autorização legal; é punido, no caso da alínea a), com pena de prisão até três anos ou com pena de
multa e, no caso das alíneas b) e c), com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias. 2
— A tentativa é punível.
Se alguém recebe de outrem dinheiro falso com o intuito de o guardar, porque, por ex., o
"dono" teme a intervenção da policia, ou aceita transportá-lo para um lugar seguro, pratica
este crime, desde que saiba que não se trata de moeda legítima e tenha a intenção de a
passar quando, por ex., as coisas acalmarem. Exige-se também aqui a intenção de, por
qualquer meio, a passar ou pôr em circulação.
C. Títulos equiparados a moeda
Artigo 267.º (Títulos equiparados a moeda) 1 — Para efeitos do disposto nos artigos 262.º a 266.º, são
equiparados a moeda: a) Os títulos de crédito nacionais e estrangeiros constantes, por força da lei, de um
tipo de papel e de impressão especialmente destinados a garanti-los contra o perigo de imitações e que,
pela sua natureza e finalidade, não possam, só por si, deixar de incorporar um valor patrimonial; b) Os
bilhetes ou fracções da lotaria nacional; e c) Os cartões de garantia ou de crédito. 2— O disposto no

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número anterior não abrange a falsificação relativamente a elementos a cuja garantia e identificação
especialmente se não destine o uso do papel ou da impressão.
O Código, a mais da incriminação prevista no artigo 225º, equipara o cartão de garantia ou
de crédito a moeda, pondo-os em paralelo com os bilhetes ou fracções da lotaria nacional e
certos títulos de crédito nacionais e estrangeiros ( 6). Protege-se o cartão tanto da
contrafacção como da falsificação parcial e da sua posterior colocação em circulação, por
aplicação dos artigos 262º a 266º.
Quando o cartão, apesar de ser “de crédito”, puder servir para outros fins, nomeadamente
para levantamento de quantias de conta provisionada, a respectiva utilização para
subtracção ilegítima de dinheiro poderá corresponder ao crime de furto ou de burla
informática.
O cartão de garantia (cartão de garantia de cheques: carte-chèque, Checkkarte) funciona
como garantia de pagamento dum cheque até determinado montante. O eurocheque, por
ex., permite retiradas de dinheiro líquido e o pagamento de mercadorias e serviços.
O cartão de crédito (credit card; carte de crédit; Kreditkarte) integra-se num sistema que
compreende três partes (7), reunindo sucessivamente a entidade emissora (issuer),
geralmente um grupo de bancos, o titular do cartão de crédito (cardholder) e um universo
de comerciantes aderentes (merchants). Quando se faz uma compra, a pessoa legitimada
para usar o cartão (Visa, American Express, MasterCard, entre outros) aceita pagar ao
emitente assinando a factura do comerciante, donde constam os elementos do cartão e a
indicação do quantitativo a pagar. O vendedor tem meios de verificar se o cartão é válido e
se o titular dispõe do crédito suficiente para pagar o preço. Nos meses em que o cartão
tenha sido utilizado é remetida ao titular, para conferência, a nota indicativa das compras
efectuadas, seguindo-se o débito em conta. Para o comércio, uma transacção com cartão de
crédito é mais segura do que outras formas de pagamento, por ex., o cheque, uma vez que
o banco emissor aceita pagar ao vendedor ou prestador de serviços a factura conferida,
deduzindo o que lhe é devido pelo serviço prestado (discount rate). Ao titular do cartão de
crédito competirá efectuar pontualmente os pagamentos ou conseguir o correspondente
crédito bancário suportando os juros e as despesas. Na falta de cobertura em determinado
prazo, o banco credor pode chegar ao extremo de declarar o débito incobrável, com a
colocação em lista negra (“to be a charge-off”) e as consequentes desvantagens. (8)

6
Constantes, por força da lei, de um tipo de papel e de impressão especialmente destinados a garanti-los
contra o perigo de imitações e que, pela sua natureza e finalidade, não possam, só por si, deixar de
incorporar um valor patrimonial.
7
Os cartões de crédito entram no chamado “Three-partner-system”, ao contrário dos simples cartões de
crédito emitidos por certos vendedores ou por empresas de aluguer de automóveis, que se limitam ao
“Two-partner-system”.
8
Do cartão de crédito distingue-se o chamado cartão de débito, que permite efectuar pagamentos e
levantar dinheiro no sistema multibanco por débito imediato da conta bancária provisionada, portanto sem
a intervenção ou intermediação de outras entidades. Cf. por ex., Yves Bernard e Jean-Claude Colli,
Dicionário económico e financeiro, 1º vol,, Círculo de Leitores, 1997, p. 122. O Decreto-Lei nº 166/95, de
15 de Julho, aprovou o regime jurídico da emissão e gestão de cartões de crédito. O processo de
estabelecimento das instituições de crédito e sociedades financeiras que podem emitir ou gerir cartões de
crédito, bem como o exercício da respectiva actividade, são regulados pelo Regime Geral das Instituições
de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, com a
redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 201/2002, de 26 de Setembro . De muito interesse é o trabalho de
Maria Raquel Guimarães, As transferências electrónicas de fundos e os cartões de débito, Almedina, 1999.

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O que agora interessa é a sua equiparação a moeda,, aplicando-se por isso o respectivo
regime.
D. Disposições comuns
Artigo 271.º Actos preparatórios1 — Quem preparar a execução dos actos referidos nos artigos 256.º,
262.º, 263.º, no n.º 1 do artigo 268.º, no n.º 1 do artigo 269.º, ou no artigo 270.º, fabricando, importando,
adquirindo para si ou para outra pessoa, fornecendo, expondo à venda ou retendo: a) Formas, cunhos,
clichés, prensas de cunhar, punções, negativos, fotografias ou outros instrumentos que, pela sua natureza,
são utilizáveis para realizar crimes; ou b) Papel, holograma ou outro elemento igual ou susceptível de se
confundir com os que são particularmente fabricados para evitar imitações ou utilizados no fabrico de
documento autêntico ou de igual valor, moeda, título de crédito ou valor selado; é punido com pena de
prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 — É correspondentemente aplicável à falsificação
dos títulos constantes do artigo 267.º o disposto no número anterior. 3 — Não é punível pelos números
anteriores quem voluntariamente: a) Abandonar a execução do acto preparado e prevenir o perigo, por ele
causado, de que outra pessoa continue a preparar o acto ou o execute, ou se esforçar seriamente nesse
sentido, ou impedir a consumação; e b) Destruir ou inutilizar os meios ou objectos referidos nos números
anteriores, ou der à autoridade pública conhecimento deles ou a ela os entregar.
Como já chamámos a atenção, o nosso Código, o artigo 271º prevê a aplicação de pena a
quem “preparar a execução”, entre outros, de actos de contrafacção de moeda (artigo
262º), fabricando formas, cunhos, adquirindo papel apropriado, etc. Tirando os trabalhos
puramente artesanais, a resolução criminosa ligada à moeda falsa envolve, por sua
natureza, outras pessoas, transcendendo o sujeito isolado. Nisso reside a faceta da especial
perigosidade dessas actividades. Não obstante se reconduzirem a uma fase de preparação
criminosa, justifica-se plenamente castigar os culpados. O artigo 271º (a exemplo do artigo
275º) pune actos preparatórios enquanto tais, por haver um alto grau de probabilidade de
realização do tipo de ilícito e a "necessidade de uma intervenção penal específica num
estádio particularmente precoce do iter criminis". (9)
Atente-se no nº 2, que estende o regime do anterior nº 1 à falsificação dos títulos
constantes do artigo 267º.
Interessa-nos, sobretudo, o regime de não punibilidade do nº 3.
Consumada a infracção, já o seu autor a não pode apagar. Pode, ainda assim, fazer tudo o
que estiver ao seu alcance para a atenuar e sobretudo para reparar os prejuízos. No Código,
a ideia de utilidade da contra-conduta, do actus contrarius do agente, pode encontrar-se
também na PE, constituindo situações que se projectam normalmente no aligeiramento da
sanção ou levam a que o tribunal decrete a dispensa de pena. Por exemplo, a pena pode ser
especialmente atenuada se, em caso de rapto ou tomada de reféns, o agente
voluntariamente renunciar à sua pretensão e libertar a vítima, ou se esforçar seriamente por
consegui-lo (artigos 161º e 162º). Levam à dispensa de pena os “esclarecimentos ou
explicações” dados em juízo pelo agente da ofensa de que foi acusado, aceites como
satisfatórios (artigo 186º, nº 1). A renúncia à entrega da vantagem pecuniária pretendida e
actos análogos que tenham lugar até ao início da audiência de julgamento em 1ª instância
no crime de usura (artigo 226º, nº 5) tem como efeito a atenuação especial da pena ou
então o facto deixa de ser punível. Em certos crimes de perigo comum e outros contra a
segurança das comunicações, se o agente remover voluntariamente o perigo antes de se ter
verificado dano considerável verifica-se a atenuação especial ou mesmo a dispensa de
pena. Veja-se ainda a retractação, por ex., no caso de falsidade de depoimento, a tempo de
poder ser tomada em conta na decisão e antes que tenha resultado prejuízo para terceiro

9
Figueiredo Dias, DP/PG I, 2ª ed., 2007, p. 683.

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(artigo 362º, nº 1); e, com alguma semelhança, o caso da restituição ou reparação da coisa
furtada ou ilegitimamente apropriada (artigo 206º).
De modo diferente, se o facto se encontrar ainda na fase da tentativa, o autor beneficia de
isenção completa, deixando a conduta de ser punível, como na desistência (voluntária)
prevista no artigo 24º, nº 1. A consequência não é assim simplesmente a atenuação
especial ou a dispensa de pena. O diferente tratamento dado num caso concreto pela PE
afasta o geral dos artigos 24º e 25º (prevalência da lex specialis), devendo acentuar-se que
o desistente de uma tentativa de violação sexual não fica necessariamente eximido de
responsabilidade civil por danos não patrimoniais causados à vítima.
No presente caso, o que se espera de quem prepara a execução dos actos referidos nos
artigos 256º, 262º, 263º, no nº 1 do artigo 268º, no nº 1 do artigo 269º, ou no artigo 270º, é
que abandone a execução do acto preparado e prevenir o perigo por ele causado, de que
outra pessoa continue a preparar o acto ou o execute; ou se esforçar seriamente nesse
sentido, ou impedir a consumação. A alínea seguinte oferece a não punibilidade a quem
destruir ou inutilizar os meios ou objectos de que fala o artigo ou der à autoridade pública
conhecimento deles ou a ela os entregar. Em qualquer dos casos só releva a contra-
conduta voluntária.
E. Problemas de concurso
Acórdão do STJ de 13 de Outubro de 2004, no processo nº 04P3210. O concurso efectivo
de crimes de crime é real quando o agente pratica vários actos que preenchem
autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções) e é
ideal quando através de uma mesma acção se violam normas penais ou a mesma norma
repetidas vezes (unidade de acção). A par categoria de concurso efectivo de crimes temos a
de concurso aparente, onde as leis penais concorrem só na aparência, excluindo umas as
outras, segundo regras de especialidade, subsidariedade ou consumpção. O critério
operativo de distinção entre categorias reverte ao bem jurídico e à concreta definição que
esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. A respeito da confluência dos espaços
de protecção dos crimes de colocação em circulação de moeda falsa ou actividade
equiparada e de burla tem este Supremo Tribunal protagonizado duas posições, no sentido
de que se verifica uma situação de concurso aparente segundo as regras da consumpção e
no de que existe concurso real entre estes dois ilícitos penais. Porém, só aquela primeira,
que aponta para existência de um concurso aparente, por força da regra da consumpção,
trata adequadamente, por referência aos crimes de colocação em circulação de moeda falsa
ou actividade equiparada e de burla, a problemática da distinção do bem jurídico
protegido, seu sentido e alcance.
De modo diferente decidiu o acórdão do STJ de 04.10.2007, proc. n.º 2309/07-5, no blog
"cum grano salis". Relator: Conselheiro Simas Santos. "A questão do concurso aparente ou
real dos crimes de colocação em circulação da moeda falsa tem sido objecto de posições
contrárias quer na doutrina, quer na jurisprudência do STJ que já se pronunciou no sentido
de que a passagem de moeda falsa, não obstante possa envolver a violação de dois bens
jurídicos (o da regularidade da circulação fiduciária e o do património dos adquirentes da
moeda) constitui um único tipo de crime, não se cumulando, em concurso real, com o
crime de burla, mas também se pronunciou no sentido de que o crime de passagem de
moeda falsa previsto se acumula, sob a forma de concurso real, com o crime de burla. É
esta a posição a seguir pelo STJ por imposição da jurisprudência fixada em lugar paralelo,
pois que, na questão do concurso entre a falsificação e a burla decidiu esse Tribunal, em

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acórdão uniformizador de jurisprudência, que "no caso de a conduta do agente preencher


as previsões de falsificação e de burla do artigo 228º, nº 1, alínea a), e do artigo 313º, nº 1,
respectivamente, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes" e a
moeda falsa não é mais do que falsum específico, pelo que lhe é aplicável esta mesma
doutrina, devendo concluir-se pelo concurso real. Mesmo no entendimento diverso devem
ressalvar-se as situações em que além do uso da moeda falsa, na boa fé dos ofendidos, são
introduzidos outros elementos do engano próprio da burla, caso em que terá lugar o
concurso real entre aqueles crimes, como sucede quando é feito uso de falsa identidade".
F. Casos práticos
Caso nº 2 A fotocopiadora. A e B, falsificadores muito conhecidos, com largo cadastro na polícia, acabam
de ser libertados, depois de cumprirem pena de prisão de vários anos. Na cadeia já tinham
planeado a compra de um novo modelo de fotocopiadora, acabadinha de aparecer no
mercado, e pôr-se com ela a fazer notas de cinquenta euros. As intenções dos dois amigos
chegaram aos ouvidos de P, um importante funcionário policial, que tinha os seus
informadores, e que, com base nisso, conseguiu autorização judicial para colocar sob escuta os
telefones dos dois amigos, logo que estes foram libertados. Foi assim que P interceptou uma
conversa de A para B, a dar-lhe notícias do local onde tinha encomendado a fotocopiadora e da
data da entrega. Logo P se pôs em contacto com o fornecedor F, a quem instou a não vender a
fotocopiadora a A e B, dando-lhe conta dos desígnios dos dois atrevidos moedeiros falsos. F,
no entanto, não se mostrou permeável às razões de P e logo ali lhe foi dizendo que “negócio é
negócio” e que não queria perder a oportunidade de ganhar o “seu”. Aliás, entregando a
mercadoria, nada mais tinha a ver com ela, e disso estava bem convencido, acrescentou. Foi
assim que, logo a seguir, mandou entregar a fotocopiadora na casa do A, recebendo o preço
devido, como tinham acertado. E tudo seguiu o seu caminho. A e B, equipados com a soberba
fotocopiadora, fizeram nela uma quantidade considerável de cópias da nota de cinquenta euros
que entregaram a um seu conhecido, M, para que este as pusesse em circulação, como se
fossem verdadeiras, o que M aceitou, conhecendo a proveniência das notas. Já depois disso, A
e B resolveram obsequiar uma sua conhecida, T, e fotocopiaram um passe dos serviço de
transportes urbanos, que ficou “uma beleza”, e que a T aceitou com entusiasmo, seduzida,
inclusivamente, com a vantagem de não ter de pagar as suas deslocações em autocarro e no
comboio suburbano, e divertida com a ideia de enganar o revisor sempre que lhe mostrasse o
passe. Com efeito, logo que se pôs a viajar, ninguém deu fé de que o passe era afinal uma
fotocópia, tão perfeita estava. Crentes de que estavam ricos, e interessados em não deixar rasto
da sua actividade, A e B resolveram então desfazer-se da fotocopiadora. A ideia era mandá-la
pelos ares, com uma bomba, mas como eram gananciosos e completamente desprovidos de
escrúpulos, depois de lhe montarem o explosivo dentro, ofereceram a máquina a G, por um
preço de amigos, que este lhes pagou, ainda que cientes de que a explosão que se seguisse
podia matar o primeiro que se propusesse tirar fotocópias. A morte do G era-lhes, porém, bem
vinda, na medida em que ficavam sem um competidor, pois também G era um conhecido
moedeiro-falso. P, entretanto, soube que a máquina estava na posse do G e dirigiu-se a casa
deste. Como tinha urgência em conseguir uma cópia de uma nota de cinquenta euros, para
entregar no laboratório, P accionou a fotocopiadora que logo explodiu, matando-o. Cf. Roland
Hefendehl, Jura 1992, p. 374. (10)
Punibilidade de A, B, F, M e T ?
A. — O recebimento da máquina e o fabrico das notas de cinquenta euros e do passe.
I. Punibilidade de A e B.
i ) Artigos 26º, 3ª proposição, e 262º, nº 1 (contrafacção de moeda).
A e B, na execução do plano comum e actuando em conjunto, estão comprometidos com a
prática, em co-autoria, de um crime do artigo 262º, nº 1, já que fotocopiaram o original de

10
No presente caso prático avultam as questões ligadas ao concurso de normas.

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 28º (falsificação de moeda e títulos), Porto, 2009
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uma nota de cinquenta euros, reproduzindo-a na máquina que para isso adquiriram. Trata-
se de moeda, na forma de papel-moeda, que compreende as notas de banco com curso
legal em Portugal e noutros paises (artigo 255º, alínea d). A lei penal previne qualquer
forma de contrafacção, a par de outros actos fraudulentos de fabrico ou de alteração da
moeda, que são casos especiais de falso documental. No crime de contrafacção de moeda
exige-se a intenção de pôr a moeda em circulação como legítima. Só assim se lhe seguirá a
eventualidade da aplicação da moldura penal de prisão de 3 a 12 anos. É no entanto
preciso que a moeda fabricada tenha aparência de legítima, de forma a poder confundir-se
o dinheiro falso com o autêntico (legítimo), aquele que tem curso legal, e desse modo
conseguir, na circulação do dia a dia, defraudar qualquer pessoa desprevenida. Mas não se
devem colocar demasiadas exigências quando a tal semelhança, advertem os autores —
pode dar-se a aparência de legitimidade mesmo quando os destinatários descubram com
certa facilidade a falsificação. Para a jurisprudência alemã, na interpretação de preceito
idêntico ao nosso, o decisivo é apenas a possibilidade, o perigo de a moeda falsa se
confundir com a verdadeira.
A e B actuaram dolosamente, com intenção de entregarem as notas fotocopiadas ao M,
como acabaram por fazer, e assim colocarem as notas falsas em circulação como se fossem
verdadeiras. Para a consumação do crime basta a intenção, ainda que esta não venha a ser
realizada.
A e B cometeram, em co-autoria, um crime dos artigos 26º, 3ª proposição, e 262º, nº 1, do
Código Penal.
ii ) Artigos 262º, nº 1, e 271º, nº 1, a ) (actos preparatórios)
A e B adquiriram a fotocopiadora para a usarem na contrafacção de moeda. Todavia, é
duvidoso que a fotocopiadora seja um dos instrumentos a que a lei se reporta na apontada
alínea do nº 1 do artigo 271º, que pune quem preparar a execução dos actos referidos no
artigo 262º e em outros que se lhe seguem na estrutura do código.
De qualquer forma, os artigos 262º, nº 1, e 271º encontram-se em relação de concurso
aparente: o artigo 271º nunca seria aplicado a A e B.
iii ) Artigos 26º, 3ª proposição, e 256º, nº 1, a) (falsificação de documento).
A e B podem estar igualmente envolvidos na comissão em co-autoria de um crime do
artigo 256º, nº 1, alínea a), na medida em que fotocopiaram o passe dos serviços de
transportes urbanos, com intenção de obterem para outra pessoa benefício ilegítimo. Terá
que se tratar de um documento. Segundo o artigo 255º, alínea a), documento, para efeitos
de falsificação, é a declaração (de vontade ou de ciência) corporizada ou registada,
intelegível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas (com o que
se cumpre a sua função de perpetuação), que, sendo idónea para provar facto juridicamente
relevante (com o que se cumpre a sua função e destinação probatória, mesmo que esta só
lhe seja conferida em momento posterior ao da emissão), permite reconhecer o emitente
(com o que se cumpre a sua função de garantia documental, excluindo os casos de
anonimato).
As simples fotocópias não são documentos, nomeadamente porque não se sabe de quem
provêm — falta-lhes a função de garantia que se exige para o documento, na medida em
que o autor do original se não comprometa com a sua correspondência com o original. ( 11)

11
O Código Civil tem um conjunto de disposições especiais (artigos 380º e ss.) a respeito de certidões,

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 28º (falsificação de moeda e títulos), Porto, 2009
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Mas se alguém fabricar documento falso ou falsificar documento, pondo em circulação o


respectivo conteúdo através de uma cópia, fazendo crer que é o original, não há dúvida de
que isso corresponde ao que objectivamente se descreve no nº 1, alínea a), do artigo 256º.
A e B, dolosamente, ao comporem, por fotocópia, o passe mensal, donde parece resultar
que a declaração documental provém dos serviços de transportes urbanos respectivos, ou
seja, que estes serviços são o seu verdadeiro autor — fabricaram um documento que não
era autêntico: o passe fabricado pelos dois amigos não foi emitido pelos serviços
competentes, embora isso pareça derivar da própria fotocópia. Acresce que A e B
actuaram com intenção de obter benefício ilegítimo para outra pessoa e isso tornou-se
evidente com o uso que a beneficiária, conscientemente, acabou por dar ao passe
falsificado.
A e B cometeram em co-autoria o crime dos artigos 26º, 3ª proposição, e 256º, nº 1, a).
II. Punibilidade de F.
1.Artigos 27º e 262º, nº 1. Cumplicidade na contrafacção de moeda através do
fornecimento da copiadora.
Na medida em que F vendeu a fotocopiadora a A e B, temos que averiguar se isso
corresponde a uma forma de cumplicidade na prática de contrafacção de moeda, punível
nos termos dos artigos 27º e 262º, nº 1.
Já vimos que a cargo de A e B se pode afirmar um facto principal ilícito. A cumplicidade,
como forma de participação, segue a regra da acessoriedade limitada: supõe-se que outrem
realiza uma actividade executiva, pelo menos típica e ilícita. F estava consciente de que a
fotocopiadora se destinava a servir numa actividade criminosa. P acentuou isso mesmo,
ainda que não tivesse dado pormenores, nem esses pormenores seriam necessários.
Objectivamente, a cumplicidade consiste em, por qualquer forma, prestar auxílio material
ou moral à prática por outrem de um facto doloso. Este auxílio não pode ser entendido
como todo e qualquer contributo em favor do crime ou de quem o comete. Cúmplice é só
aquele que presta um contributo real à actuação do autor, não basta a simples colocação de
certos meios para que a exigência legal de "prestar auxílio" fique preenchida.
O fornecimento da fotocopiadora é sem dúvida causal do resultado que veio a verificar-se:
a contrafacção das notas de cinquenta euros. O contributo de F é causal, no sentido da
teoria das condições. Todavia, repugnará ao sentimento jurídico de alguns que o
comerciante seja punido por vender uma coisa do seu comércio a um cliente que dela se
serve para cometer um crime por forma plenamente responsável.
Entende-se, por outro lado, que para a afirmação da cumplicidade basta que o resultado
criminoso seja favorecido pela acção do cúmplice. Para os adeptos da teoria do
favorecimento, basta que o resultado criminoso seja facilitado ou favorecido, por qualquer
forma, pelo comportamento do cúmplice. De facto, no artigo 27º, nº 1, a punibilidade do
cúmplice não depende da comprovação, nesse sentido, de uma qualquer relação causal. A
prestação de auxílio é dirigida "à prática" do crime alheio. Consumando-se o ilícito, só se
pune o auxílio prestado à actividade criminosa, sem dependência da sua repercussão no
resultado. Faltando o resultado, a cumplicidade é ainda punível, embora só como
cumplicidade no crime tentado. Em suma, o resultado criminoso, não sendo "obra" do

certidões de certidões, cópias e fotocópias de documentos.

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 28º (falsificação de moeda e títulos), Porto, 2009
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cúmplice, não pode, enquanto tal, ser-lhe imputado — a punibilidade do cúmplice não está
dependente das relações causais que se suscitem no âmbito da autoria. Em geral, poderá
sustentar-se que o auxílio relevante para a cumplicidade é só aquele que,
comprovadamente, aumentou o risco para a vítima e, consequentemente, as possibilidades
de sucesso do criminoso. Só quem dolosamente melhora as condições de êxito do
criminoso e aumenta o risco da vítima é que participa numa agressão ao bem jurídico.
Consequentemente, só será cúmplice quem com o seu auxílio possibilitar ou intensificar a
lesão do bem jurídico ou facilitar ou assegurar a prática do crime, desde que esse papel se
não integre na (co)autoria ou na instigação. E esse auxílio pode acontecer "por qualquer
forma", dando conselhos ou actuando, tanto faz — a lei não especifica os meios que
podem constituir um auxílio material (arranjar uma ferramenta, proporcionar uma ocasião
favorável ou o transporte para o local do crime, ou ficar a vigiar, enquanto esta actuação
não signifique uma parcela da execução do crime) ou moral (o remover dos últimos
escrúpulos do ladrão relativamente à planeada actuação, o dar conselhos sobre a forma de
agir no local, a promessa dum álibi, o cimentar da decisão criminosa, a garantia de ajuda
por ocasião da fuga proporcionando alimentação ou abrigo).
Questão controversa é esta que temos entre mãos, a de saber se um comportamento
corrente, idêntico a tantos outros do dia a dia — por ex., a venda dum veneno para ratos ou
duma faca numa loja comercial, sabendo o vendedor que o objecto vai ser utilizado num
homicídio —, pode constituir uma cumplicidade punível. Noutros sectores da vida, pense-
se ainda em acções de conteúdo aparentemente neutro, como a abertura duma conta
bancária para facilitar o branqueamento de capitais. Ou quando alguém, conscientemente,
fornece gasolina aos assaltantes dum banco que procuram a fuga de carro. Um dos casos
mais antigos deste género foi julgado pelo Tribunal do Reich em 1906, pondo-se a questão
de saber se o fornecimento de pão ou de vinho a um bordel favoreceria os comportamentos
imorais que ali tinham lugar e que na altura eram objecto de atenção penal. Decidiu-se que
o fornecimento do vinho era uma cumplicidade, mas não o do pão, porque só o vinho tem
as qualidades afrodisíacas capazes de fomentar as actividades próprias duma casa como
aquela.
Alguns autores transportam para aqui os pressupostos da adequação social ou da
adequação profissional, para limitarem a aplicação da fórmula legal "prestar auxílio".
Outros colocam a solução predominantemente no dolo: ao lado do saber (momento
intelectual do dolo) será necessário, para que haja dolo de cúmplice, que este queira,
também ele, o resultado criminoso (elemento volitivo), não bastando uma consciência
segura da ocorrência desse resultado. Outros, ainda, exigem a criação dum risco
desaprovado pela ordem jurídica, deslocando o problema para as questões de imputação.
Por ex., a venda do veneno para os ratos tem que, comprovadamente, aumentar o risco do
resultado criminoso e este deverá ser desaprovado pela ordem jurídica. A nós parece-nos
que se o vendedor do veneno sabe, de certeza certa, que o veneno vai servir para matar
outra pessoa, então a venda não estará justificada. Se pelo contrário o vendedor encarar
esse resultado apenas como possível, o interesse posto na venda, de âmbito profissional,
sobrepassa o interesse geral de não facilitar ou tornar possível a prática de um crime.
A ideia de F, de que o destino posterior das mercadorias por si vendidas não lhe dizia
respeito não terá influência a nível do artigo 17º, nºs 1 e 2 (erro sobre a ilicitude), já que se
trataria de um simples erro de subsunção, irrelevante no contexto em apreço, face ao
conhecimento de F e às circunstâncias do caso, que o polícia lhe transmitiu.

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 28º (falsificação de moeda e títulos), Porto, 2009
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Assim concluindo, F será cúmplice do crime de contrafacção de moeda (artigos 27º e 262º,
nº 1).
Mas o resultado contrário, quando devidamente justificado, também poderá ser aceite,
nomeadamente, se se negar o dolo de cumplicidade.
B. — O destino posterior das notas de 50 euros
I. Punibilidade de A e B
1. Artigos 26º, 3ª proposição, e 265º, nº 1, a ) (passagem de moeda falsa)
É duvidoso que o comportamento de A e B integre igualmente o tipo de crime do artigo
265º, nº 1, a). As notas por eles falsificadas nas circunstâncias já apreciadas vieram a ser
entregues ao M, para que este lhes desse destino. O M, contudo, estava inteiramente ao
corrente da falsidade das notas, quando recebeu as fotocópias das mãos de A e B sabia que
representavam notas falsas de 50 euros. Ora, o que no artigo 265º, nº 1, a ), se prevê é a
passagem de moeda falsa ou falsificada como legítima ou intacta, o que não era o caso: M,
estando no segredo da falsificação, nunca poderia ser enganado ao receber as notas falsas,
com efeito, nunca as receberia como legítimas ou intactas, sabendo-as falsas.
Este modo de ver as cosias não é porém forçoso. Sempre se poderia argumentar que a
entrega das notas ao M representava o primeiro passo na execução do plano dos
moedeiros-falsos, que aspiravam a ficar ricos. Nesse sentido, já as notas falsas seriam
postas em circulação como legítimas logo no momento seguinte, ao saírem das mãos do M
— e assim se cumpririam os elementos objectivos e subjectivos do tipo.
A e B são ainda co-autores do crime do artigo 265º, nº 1, a), mas a norma não lhes seria
aplicada por se encontrar em relação de concurso aparente com a do artigo 262º, nº 1.
II. Punibilidade de M
1. Artigos 22º, 23º, 73º, 262º e 264º, nºs 1 e 2 (tentativa de passagem de moeda falsa de
concerto com o falsificador)
M prontificou-se a pôr em circulação as notas falsas de 50 euros fabricadas por A e B. No
texto não se diz que M chegou, efectivamente, a passar qualquer dela, mas a tentativa é
punível. O plano de M, de concerto com os dois falsificadores, era o de pôr as notas em
circulação pelo que pelo menos se verifica a tentativa do indicado crime.
M cometeu o crime dos artigos 264º, nº 1, e 262, nº 1, pelo menos na forma de tentativa
(nº 2 do artigo 264º).
2. Artigos 22º, 23º, 73º, 266º, a ), aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação.
M adquiriu as notas de 50 euros para as pôr em circulação, como legítimas, sabendo-as
falsas. Todavia, a norma em apreço, mesmo só na forma de tentativa, está em relação de
concurso aparente com a do artigo 264º, pelo que nunca será aplicada a M.
III. Punibilidade de F
1. Cumplicidade no crime do artigo 265º, nº 1, a) (passagem de moeda falsa),
eventualmente praticado por A e B.
Reeditam-se agora as considerações feitas a propósito da cumplicidade das actividades
profissionais, como as dos comerciantes. Podemos considerar, como já antes se fez, que F
cometeu o crime do artigo 27º e 265º, nº 1, a). Todavia, como o acto de cumplicidade é só

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 28º (falsificação de moeda e títulos), Porto, 2009
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um, também as consequências não poderão exprimir-se em concurso efectivo.


C. — O que se seguiu depois com o passe
I. Punibilidade de T
1. Artigo 217º, nº 1. Burla de T em prejuízo dos serviços de transporte.
T andou várias vezes, no período de “validade” do passe, nos transportes que lhe
interessavam, fazendo-o como os passageiros com título válido. Trata-se de
comportamento concludente, na medida em que T induziu em erro o revisor ao apresentar-
lhe documento falso que ele interpretou como verdadeiro. T actuou astuciosamente,
usando um ardil ao fingir que o título era válido. Houve prejuízo para os respectivos
serviços, que não receberam a paga esperada.
Tudo indica que se trata de um único crime de burla, não obstante as múltiplas viagens
realizadas, por ter havido uma única resolução criminosa. Se se tratar de várias resoluções
criminosas, é indicado verificar se estão presentes os pressupostos do crime continuado
(artigo 30º, nº 2).
T cometeu um único crime de burla (artigo 217º, nº 1).
2. Artigo 220º, nº 1, c). Burla para obtenção de serviços.
T utilizou meio de transporte sabendo que tal supõe o pagamento de um preço, mas com
intenção de não pagar, pelo que cometeu este crime. A norma, todavia, por estar em
concurso aparente com a do artigo 217º, nº 1, não lhe será aplicada.
3. Artigo 256º, nº 1, c). Falsificação, na forma de uso de documento.
T usou o passe e assim praticou o crime indicado, usando documento fabricado ou
falsificado por outra pessoa (passe fabricado por A e B). Fê-lo dolosamente, com intenção
de obter para si benefício ilegítimo. Não obstante as diversas fases de utilização, há uma
única resolução criminosa (verificando-se mais do que uma seria caso de averiguar dos
pressupostos do crime continuado: artigo 30º, nº 2).
II. Punibilidade de A e B.
1. Instigação ao uso de documento falso. Artigos 26º, última proposição, e 256º, nº 1, c).
A e B, na medida em que aconselharam T a usar a fotocópia do passe, podem ser indutores
do crime por esta praticado, de uso de documento falso, já que actuaram com dolo de
instigação.
2. Instigação ao crime de burla. Artigos 26º, última proposição, e 217º, nº 1.
A e B, na medida em que determinaram T a cometer este crime são instigadores do
mesmo, a punir nos termos indicados.
D. — O que se passou depois com a fotocopiadora
Punibilidade de A e B.
1. Artigo 217º, nº 1. Burla na venda da copiadora com uma bomba no interior.
Parece não ser caso de burla, mas só porque falta o elemento subjectivo da intenção de
enriquecimento ilegítimo por parte de A e B.
2. Artigo 131º. Homicídio voluntário.

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A e B introduziram uma bomba na fotocopiadora, que veio a explodir quando P a


manejou, provocando-lhe a morte. O resultado mortal é consequência directa e imediata da
explosão que resultou conforme o plano de ambos e por eles posto em prática.
Trata-se assim de co-autoria. Nos planos dos dois estava a morte do G, que inclusivamente
representaram e queriam, por lhes ser conveniente. Na verdade, com o desaparecimento de
G afastavam um competidor. Como se viu, foi o P quem morreu na explosão. O caso será
de erro na pessoa, mas há quem o qualifique antes como aberratio ictus.
A situação de aberratio ictus (desvio de golpe) é um erro na execução, corresponde àqueles
casos em que na execução do crime ocorre um desvio causal do resultado sobre um outro
objecto da acção, diferente daquele que o agente queria atingir: A quer matar B, mas em
vez de B o tiro atinge mortalmente C, que se encontrava ali ao lado. Distingue-se do típico
error in persona vel objecto. No “error in persona” há uma confusão e não um erro na
execução. Assim, no exemplo de Stratenwerth (Derecho Penal, parte general, I, Madrid,
1982), o “assassino” profissional mata um terceiro totalmente alheio, por supor que é a
vítima que lhe fora indicada e que só conhece por fotografia. Ou então, durante a fuga, o
ladrão dispara mortalmente contra a pessoa que hipoteticamente o persegue, quando na
realidade se tratava de um seu cúmplice, que igualmente fugia.
A e B dispuseram o sistema de activação da bomba de tal forma que só havia uma maneira
de a fazer explodir — e isso podia ser feito, indiferentemente, por uma ou outra pessoa que
pretendesse tirar fotocópias, pelo que é indiferente para a punição que tenha morrido P
quando podia ter morrido G ou até um outro qualquer. Na verdade, sempre seria atingida
na explosão a primeira pessoa que tivesse a infelicidade de fotocopiar algo. A e B
cometeram em co-autoria material um crime de homicídio voluntário do artigo 131º.
3. Artigo 210º, nº 1. Dano.
Da actuação de A e B resultou ficar destruída a fotocopiadora que nessa ocasião já era
coisa alheia relativamente a ambos. O dano constitui, porém, em casos destes, um facto
típico acompanhante, neste caso do crime de homicídio. A pena do homicídio já engloba o
desvalor da utilização dos meios escolhidos para dar a morte. A norma do artigo 210º, nº
1, não será aplicada, face à situação de concurso aparente.
4. Artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2: meio insidioso; meio que se traduz na prática de crime de
perigo comum; ter em vista encobrir um outro crime. Homicídio qualificado.
Convirá averiguar se A e B cometeram ou não um homicídio qualificado, usando de
especial perversidade ou fazendo-o de forma especialmente censurável.
Meio insidioso é o meio dissimulado e isso aconteceu no caso da bomba que ninguém
esperaria que se encontrasse no interior da fotocopiadora.
A bomba, por outro lado, representava um meio de perigo comum — consequentemente,
um perigo para um número indeterminado de outras pessoas e para bens patrimoniais
alheios de valor elevado.
Finalmente, A e B queriam fazer desaparecer a fotocopiadora para que dela não ficasse
rasto e para que as averiguações sobre a moeda falsa não conduzissem a nenhum deles.
Todavia, na medida em que a morte de P não interessava para esse fim, não se dá a
conexão exigida para que se possa afirmar a operância do exemplo–padrão correspondente.
A e B cometeram um crime de homicídio qualificado.

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5. Artigo 272º, nº 1, b). Explosão.


A e B provocaram explosão, utilizando para tanto uma bomba. As circunstâncias apontam
para a possibilidade de a explosão provocar situação de perigo para bens como a vida, a
integridade física e para bens patrimoniais de valor elevado, já que, naturalmente, a
máquina se encontrava dentro dum edifício onde trabalhavam ou residia um número
indeterminado de pessoas, igorando-se quem poderia ser atingido. A situação aponta deste
modo para o perigo comum. Ainda que se visasse a pessoa de G, era inevitável que se
atingiriam outros bens indeterminados, atenta a força expansiva desencadeada com as
bombas. A acção é dolosa e é dolosa a criação de perigo. Ambos, A e B, agiram com dolo,
não ignorando que da sua actuação resultaria a probabilidade de vários interesses jurídicos
alheios virem a ser lesados. O perigo concretizou-se. Um homem médio, colocado na
situação do agente no início da acção, concluiria pela perigosidade desta. Além disso, era
previsível que do desencadear do perigo correspondente iria resultar a probabilidade de um
dano para bens jurídicos alheios como a vida, a integridade física e propriedade alheia
(bens patrimoniais de valor elevado). O resultado, como já se esclareceu, concretizou-se. O
crime consumou-se.
6. Artigos 272º, nº 1, b ), 18º e 285º. Explosão agravada.
Tendo resultado da explosão a morte de P, põe-se a questão da agravação do crime do
artigo 272º, nº 1, b ), nos termos do artigo 18º e 285º.
E. — Resta determinar quais as normas a aplicar a cada um dos arguidos.

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