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§ 5º — Crimes contra a vida (continuação). Homicídio a pedido


da vítima. Outros

Caso nº 1 Homicídio a pedido da vítima. B, doente incurável e em fase terminal, convencera A a


ministrar-lhe determinada droga capaz de lhe dar uma morte suave, sendo assim que pretendia
morrer. Oito horas depois, porém, B ainda respirava. A, de cabeça perdida e incapaz de por si
só se desembaraçar do terrível dilema em que se envolvera, pediu a C que acabasse com a vida
de B, o que C fez calmamente, dando-lhe repetidas pancadas na cabeça com uma barra de
ferro, que produziram o efeito letal.

A razão da pena privilegiada com que se sanciona o homicídio a pedido da vítima (artigo
134º do CP) ancora numa diminuição da ilicitude, mas também num menor grau de culpa
do agente. O tipo é caracterizado pelo "pedido" — e a vítima exprime-o de duas maneiras:
"Quero morrer !" e "Mata-me !". A primeira expressão tem a ver com o bem jurídico
protegido e diminui o ilícito, a segunda dirige-se à motivação do agente e diminui-lhe a
culpa. Mas para alguns autores a razão da pena mais leve está somente na diminuição da
culpa: só é decisiva a representação do agente face ao pedido sério, instante e expresso que
lhe é feito pela vítima.
No artigo 134º, ao contrário do anterior, é a própria vítima que renuncia à protecção penal,
convertendo-se no objecto da conduta criminosa com o “consentimento qualificado” que
prestou. A lesão consentida castiga-se com uma pena privilegiada que coincide com a
pressuposta redução do ilícito: o agente não segue os seus próprios impulsos mas é
motivado por um pedido sério e instante que está para além de qualquer inibição natural
em relação à morte.
As afinidades com a norma que proíbe o “incitamento ou ajuda ao suicídio”, que lhe vem a
seguir, suscitam também problemas de difícil demarcação, a ponto de um autor austríaco
— Moos, § 77, nº de margem 5 — nela encontrar semelhanças com a cabeça de Janus, um
deus romano com duas faces: para a vítima, o homicídio a pedido é uma espécie de
"suicídio" por mão alheia; para o agente, só se pode falar da morte de outra pessoa. O tipo
de homicídio a pedido da vítima tem, como elemento negativo, a não existência de suicídio
em sentido literal (Gimbernat Ordeig). Ainda assim, é a vítima quem decide o "se" e o
"como" do facto, servindo-se para a execução de um outro, que passa a ser seu
“instrumento” (hoc sensu) — por não poder, ou por não querer, executar o facto por si
mesmo. O "autor" do crime é quem tem o domínio do facto.
A cominação de uma pena é uma contra-motivação relativamente ao provocar da morte,
não obstante o consentimento qualificado em que se gera e desenvolve a acção. Ao
consentimento concede-se pelo menos o papel de filtro no contexto dos crimes contra a
vida. O "homicídio a pedido da vítima" é um homicídio-suicídio, mas nele estão
contempladas unicamente situações de homicídio propriamente dito, embora sob um
consentimento particularmente qualificado — ainda aqui, o agente mata outra pessoa
dolosamente em situação de imputabilidade.
Neste tipo de crime, o agente deve ter sido determinado por um pedido sério, instante e
expresso, transmitido por palavras, por atitudes ou por gestos inequívocos. A lei quer que a
actividade que se vai exercer sobre a vítima resulte do pedido desta, exigindo-se algo mais
do que a sua simples concordância. Há até quem imponha que o pedido daquele que está
“farto da vida” vá para além do "se", abrangendo o "como", o "quando" e o "quem" da

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pessoa do autor, assim se pondo ao mesmo nível as condições de tempo e do modo da


acção homicida (cf. Kienapfel, p. 25).
Diz o artigo 134º: 1. Quem matar outra pessoa determinado (1) por pedido sério, instante
e expresso que ela lhe tenha feito é punido com pena de prisão até 3 anos. 2. A tentativa é
punível.
Pedido instante é um pedido convincente, mas não necessariamente insistente, de quem
quer morrer, para que o matem. É uma exigência que tem a ver com a ilicitude e que
acentua e complementa a seriedade do pedido, conferindo-lhe uma determinada
intensidade e capacidade persuasiva. Pedido sério é o pedido consciente e livre, aquele que
assenta numa decisão de vontade responsável e isenta de qualquer coacção, engano ou erro
— é o que corresponde à verdadeira vontade da vítima, aquela que não sofreu influências.
Deve exigir-se que o autor do pedido compreenda o alcance da sua decisão e se determine
em conformidade, tanto no que respeita às razões que a ele presidem, como às
consequências, que têm a ver com a irremediável lesão da vida. Uma tal capacidade de
valoração e de determinação pode faltar em pessoas jovens ou em pessoas afectadas por
determinadas anomalias psíquicas ou em situação de profunda depressão (Wessels;
Kienapfel).
Perante a nossa lei, devem valer as regras gerais sobre o consentimento: a imputabilidade e
a maioridade são restrições injustificáveis, pois as exigências essenciais já se encontram na
qualificação do pedido (Actas, 21, 198). O pedido deve subsistir no momento da acção e
poderá a todo o tempo ser eficazmente retirado (revogado). Geralmente entende-se que
tanto pode ser dirigido a uma pessoa determinada como a um conjunto determinado de
pessoas (médicos de uma clínica, pessoal de enfermagem de uma casa de saúde) para que
uma dentre elas o execute. O que especialmente releva é que o agente tenha sido
determinado pelo pedido, e não que a motivação se alcance por forma mais ou menos
directa. A questão pode relacionar-se com o pedido por “testamento de vida”, que é uma
disposição de vontade, feita por escrito, solicitando a morte, por ex., na previsão de
determinado acontecimento. (2)
Portanto, só goza do regime privilegiado do artigo 134º quem conhecia o pedido e foi por
ele determinado. Mas se o fundamento jurídico do privilegiamento passa pela situação
conflitiva, pela pressão psicológica que diminui a culpa, ainda haverá razão para o
conceder se o agente tem como bem vinda uma recompensa, não assim se o faz por
simples avidez, por ex., na expectativa do recebimento de uma herança. O que então move
o agente é exclusivamente o egoísmo. Neste caso a norma a aplicar poderá ser a do artigo
132º, "podendo caber —eventualmente— a atenuação especial do art° 72º, b), na parte em
que se refere à forte tentação ou solicitação da vítima" (cf. M. P. Gouveia Andrade;
Kienapfel).
Caso nº 2 Erro no âmbito do artigo 134º. A está junto ao leito de B, doente terminal, e supõe
erradamente que este lhe pede que lhe acabe com a vida, por estar farto de viver. Por isso,
ministra-lhe uma droga em dose letal que produz o seu efeito. Todavia, B limitara-se a
lamentar-se da sua triste sorte.

1
Cf. o termo “determinado” com a expressão “determinar” que o Código usa nos artigos 26º, última parte,
e 217º, nº 1, (burla comum). Determinar outra pessoa à prática do facto significa criar nela a decisão de o
cometer.
2
Ao contrário, o “testamento de paciente” consiste em declarações escritas em que o paciente declara, para
a hipótese de vir a ser encontrado inconsciente, que se opõe a qualquer tratamento indicado para salvar a
vida.

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Existe aqui um erro sobre a própria existência do pedido.


Mas o erro no artigo 134° também pode incidir sobre as características do pedido, que tem
de ser "instante", "sério" e “expresso".
Aquele que, de algum modo ainda no âmbito do artigo 134º, mata em situação de erro,
pode supor erroneamente que foi A, maior e imputável, quem formulou o pedido, quando
na realidade fora outra pessoa que meia hora antes ainda ocupava o mesmo quarto da
clínica. Ou mata B, porque pensa que o pedido deste é livre, quando na realidade não é. Ou
porque pensa que a solicitação foi feita conscientemente: B formulou o pedido porque
pensava sofrer de doença incurável mas está de perfeita saúde (o que ambos desconhecem:
exemplo colhido em M. P. Gouveia Andrade). Recorde-se que a pena do artigo 134º é
privilegiada em função tanto duma menor ilicitude como duma menor culpa. Daí a
pergunta: havendo erro sobre o pedido, continuaremos a aplicar o artigo 134º? Ou
aplicaremos a pena do artigo 131º, como crime fundamental? Ou a pena do crime
negligente do artigo 137º, reconhecendo a relevância do erro e conjugando-a com o regime
do artigo 16º, nºs 1 e 3 (erro sobre as circunstâncias de facto)?
Parece-nos de acolher a opinião do Prof. Costa Andrade quando entende que o erro releva
— de modo que se deverá aplicar o tipo privilegiado que o agente supõe realizar (artigo
134º). Cf. Comentário Conimbricense, tomo I, anotação ao artigo 134º, p. 69. Aliás, em
caso de erro sobre elementos privilegiantes do homicídio, a doutrina alemã pronuncia-se
pela aplicação no caso concreto da norma do crime privilegiado. No caso acima, A seria
punido como autor de um crime do artigo 134º com pena de prisão até 3 anos, ainda que
lhe nenhum pedido lhe tivesse sido dirigido. Mas a solução não logra unanimidade. Outra
é a opinião da Prof. Teresa Beleza: o erro deverá projectar a sua influência dirimente
apenas no desvalor da acção e não no desvalor do resultado do facto — quem mata outrem
em erro sobre o pedido, e é o que acontece no caso anterior, tem intenção de matar uma
pessoa, i. é, tem dolo de homicídio, mas erra sobre uma circunstância desse facto, sobre a
existência do pedido. O agente deverá ser punido por tentativa de um homicídio
privilegiado (artigos 134º, 22º e 23º) em concurso efectivo com um crime de homicídio
negligente (artigo 137º), desde que concorram os correspondentes pressupostos. Se não
houver negligência, o resultado não poderá ser imputado ao agente. Afasta-se igualmente a
aplicação do artigo 16º. Cf. Teresa P. Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O
Regime Legal do Erro, p. 15 e ss.
"É a propósito da representação do pedido e da orientação da vontade do agente que deve ser colocado o
problema do erro no artigo 134°. "Assim quando A mata B, maior e imputável porque pensa que o seu
pedido é livre quando não é porque se trata de um pedido que B fez quando se encontrava sob hipnose (o
que A ignora), ou porque pensa que o pedido é consciente: B formulou o pedido porque pensava sofrer de
doença incurável mas está de perfeita saúde (o que tanto A como B desconhecem). Embora as
circunstâncias relativas à vítima sejam circunstâncias típicas, como típicas são as características do pedido,
não se pode dizer que este "erro sobre o tipo" releve nos termos preconizados pelo artigo 16°, 1 — o dolo
de homicídio existe sempre e não é excluído por este erro, já que o autor não está em erro quanto à sua
própria conduta, quanto à sua acção homicida. No entanto, deve entender-se que este erro releva, e a sua
relevância será sempre favorável ao agente" (M. P. Gouveia Andrade).
Caso nº 3 Homicídio a pedido na forma tentada; tentativa inidónea, desistência. A, uma estudante de
medicina, e B, pintor de arte, são íntimos amigos. B encontra-se irremediavelmente doente e a
sofrer dores insuportáveis. Pede a A que lhe ministre um veneno qualquer, capaz de lhe dar a
morte, livrando-o das dores. Após longa hesitação, perante os permanentes rogos e as
insistências manifestamente responsáveis de B, A injecta-o, em desespero, com um veneno que
lhe parece adequado. O veneno, porém, não produz a morte, mas unicamente, e tanto quanto é
possível prever, uma definitiva imobilização de B.

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Como qualificar os comportamentos de A e B?


Considere agora a seguinte variante:
Caso nº 4 Logo que injectou B, A começou a ter problemas de consciência. Dirigiu-se com B ao hospital
e tratou de lhe ministrar um antídoto. Apesar da assistência médica e medicamentosa imediata,
B, segundo todas as previsões, ficará definitivamente impossibilitado de andar. A averiguação
que se seguiu revelou que o veneno, de acordo com os conhecimentos da medicina, nunca
poderia ter provocado a morte. (Cf. Roxin/Schünemann/Haffke, Strafrechtliche
Klausurenlehre, 2ª ed., 1975, p. 117).
Nos delitos de encontro, como a usura (artigo 226º), os participantes necessários (autor e
vítima) desempenham papéis diferentes: na usura só é punível quem explora a necessidade
do devedor, cuja actividade (obrigando-se a conceder ou a prometer vantagem pecuniária)
vai de encontro à intenção do usurário de alcançar um benefício patrimonial. No mesmo
sentido, aponta-se também na doutrina o exemplo do homicídio a pedido da vítima (artigo
134º), cujo nº 2 prevê a punibilidade da tentativa.
Caso nº 4-A Comparticipação em crime do artigo 134º (homicídio a pedido da vítima ): A mata B,
porque este lhe pede, sendo o pedido sério, instante e expresso. C ajuda A com vista a receber
os elevados valores da herança de B. D também ajuda A, mas porque está condoído com o
grande sofrimento de B.
O crime do A é o do artigo 134º, estando presentes todos os elementos objectivos e
subjectivos do ilícito. C (cumplicidade) pode ser especialmente censurável (artigo 132º,
mas beneficiando do disposto no artigo 27º). A C (também cumplicidade) aplica-se o
artigo 133º, igualmente com a atenuação própria dos cúmplices (artigo 27º). O valor
específico do artigo 134º não se estende aos cúmplices do A, que o praticou, daí a solução
de M. M. Silva Pereira, Os Homicídios, 2008, p. 98.

§ 5º-A —Crimes contra a vida (continuação). Infanticídio.

Artigo 136º. A mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência
perturbadora, é punida com prisão de 1 a 5 anos.
As normas que nos diversos códigos penais punem a mãe que matar o filho durante ou
logo após o parto (crime de infanticídio; Kindestötung) têm atrás de si uma história de
séculos, desde logo, porque o homicídio do próprio filho pode constituir uma circunstância
especialmente censurável. Mas as pessoas não deixaram de se impressionar, já no decorrer
do séc. XIX, com a grande perturbação com que a mãe se deparava em certos casos. Com
o nascimento do filho, ficava patente perante a sociedade a vergonha da gravidez da mãe
solteira. No Código de 1886, que vigorou até 1982, no § único do artigo 356º ainda se
previa uma situação privilegiada para o infanticídio cometido pela mãe para ocultar a sua
desonra, ou pelos avós maternos para ocultar a desonra da mãe. A atitude da sociedade
modificou-se em tempos mais recentes. Foi só em 1995 que se eliminou o infanticídio
privilegiado da mãe que mata o filho acabado de nascer ou durante o parto para ocultar a
desonra, as chamadas "razões de honra" foram então desvalorizadas, deixando o legislador
de atribuir relevo penal a esse facto. Ter um filho não pode ser nunca uma desonra para
ninguém: o sentido tradicional da referência perde-se hoje em dia.
A execução do crime de infanticídio (artigo 136º), que é um homicídio privilegiado, pode
ser anterior ao nascimento, uma vez que a norma prevê a comissão "durante o parto": "a
mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência

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perturbadora, é punida (...). Esse momento é anterior ao momento que determina a


atribuição da personalidade jurídica, ou seja, o do nascimento completo e com vida (artigo
66º, nº 1, do Código Civil). Não há coincidência entre os dois ramos do direito,
considerando os penalistas que o nascimento se inicia a partir do início dos trabalhos de
parto, havendo que distinguir entre o parto normal e o parto por cesariana. Um qualquer
homicídio pode assim ser cometido a partir do início dos trabalhos de parto, portanto antes
do nascimento: "o legislador penal perfilhou este critério atendendo à essencial identidade
de valor entre a vida do "nascituro terminal" e a vida do recém-nascido (Rui Carlos
Pereira, O crime de aborto e a reforma penal, 1995, p. 77).
Não se põe de parte que situações honoris causa determinem, ainda hoje, a mãe a matar o
filho infante. Se não estiverem presentes os pressupostos do artigo 136º, o homicídio só
poderá ser o do artigo 131º — eventualmente qualificado pelo artigo 132º ou privilegiado
segundo o artigo 133º, conforme as situações determinantes de uma maior culpa ou de uma
diminuição sensível da culpa. A actuação para ocultar a desonra será atendível na fixação
concreta da pena. É de crime doloso que então se trata, em todos estes casos, não ficando
prejudicada a hipótese do homicídio negligente (artigo 137º) se a mãe causar a morte do
filho por descuido. (3)
Com a expressão "influência perturbadora do parto", o legislador refere-se a um estado de
semi-imputabilidade ou de imputabilidade diminuída. "Aqui o legislador tem em mente
situações patológicas que acompanham por vezes o parto e que levam a mãe da criança a
ter menos discernimento e liberdade de acção, matando o seu próprio filho." Mas o artigo
136º exige ainda que se atenda à limitação temporal decorrente da morte durante ou logo
após o parto, perguntando-se se se tratará de um limite temporal rígido para este crime. A
resposta está no fundamento da atenuação. O Supremo (acórdão de 27 de Maio de1992)
considerou que não integra o crime de infanticídio privilegiado do artigo 137º do Código
Penal de 1982 a conduta da mulher que, passados 7 dias após o parto que decorreu
normalmente e depois de ter tido alta do hospital, por ser considerada em estado físico
normal, mata o filho com insecticida, por verificar que ele é de raça negra, quando ela e o
homem com quem vivia eram de raça branca. As considerações do Supremo encontraram
um ser verdadeiramente autonomizado, pelo que já não poderia haver infanticídio.
O legislador não foi rígido nessa delimitação temporal. O que é decisivo é saber até onde
(num período de continuidade temporal) se pode estender uma situação de perturbação
após o parto e a partir de que momento se pode reconhecer o recém-nascido como um ser
verdadeiramente autónomo. Cf. Rui Carlos Pereira.

3
A mãe que durante um sono profundo, com as faculdades anímicas inteiramente “desligadas”, esmaga
com o seu corpo o filho que dorme a seu lado não poderá ser penalmente responsabilizada por uma morte
causada nesse estado de inconsciência. Nem o seria em caso de sonambulismo ou de hipnose. São casos de
não-acção. Mas o médico que estando de serviço na urgência hospitalar toma um forte sonífero, omitindo
uma determinada acção que tinha o dever de praticar, pode ser responsabilizado tanto civil como
criminalmente. É certo que também a mãe tinha a obrigação de não criar uma situação de risco para a vida
ou a integridade física do filho. Mas aqui a “acção” não está no esmagamento do filho ou na inacção do
médico que chegou ao hospital, mas sim “na conduta precedente que criou uma situação de perigo para
determinados bens jurídicos, ao impossibilitar o cumprimento do dever de não lesar, ou de salvar, bens
jurídicos alheios” (Prof. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa, p. 92). Nesse sentido, terá havido
imprudência da parte da mãe, quando colocou o filho a dormir, podendo prever que durante o sono o seu
corpo abafaria o do menino. Impõe-se, tudo o indica, diferente solução quando a morte da criança ocorrer
porque um terceiro a depôs ao lado da mãe, enquanto esta dormia, em termos de a isentar de qualquer
implicação no facto.

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Questões de comparticipação (artigos 26º, 27º, 28º e 29º). A culpa é uma questão
pessoal de cada interveniente. Quem comparticipa no crime privilegiado da mãe, agindo
conjuntamente com esta, só poderá ser punido pelo artigo 131º (tendo ainda em atenção os
artigos 132º e 133º), independentemente da sua culpa (artigo 29º). Como apenas a mãe
poderá beneficiar da atenuação típica da "influência perturbadora do parto", o artigo 136º
é, em matéria de autoria, um crime específico, só a mãe o pode cometer — ao contrário
dos restantes crimes contra a vida, o preceito não começa com o “quem” anónimo da
generalidade dos crimes comuns. Sendo sujeito activo do crime apenas a “mãe” que matar
o filho, a situação não chama a si o mecanismo de comunicação das circunstâncias do
artigo 28º, mas unicamente o regime do artigo 29º, por se tratar no artigo 136º de um tipo
de culpa— o artigo 28º só se aplicaria se estivesse em causa a própria graduação da
ilicitude. Mesmo que a mãe cometa o crime através de outra pessoa, a punição faz-se pelo
artigo 136ª (supondo no caso todos os correspondentes pressupostos), em vista da
diminuição da culpa da mãe que actua sob a influência perturbadora do parto, mas esta
circunstância não é extensível a outras pessoas que devam ser punidas como autoras.

§ 5º-B — Crimes contra a vida (continuação). Homicídio por


negligência

Artigo 137º. 1. Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com
pena de multa. 2. Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.
1. No artigo 137º, nº 1, prevê-se, em alternativa, a pena de multa, ao contrário dos outros
crimes contra a vida.
Exige-se a realização de uma acção sem a diligência devida, violando, portanto, o dever,
tanto objectivo como subjectivo, de cuidado, que é necessário ter em conta nos
comportamentos, delitivos ou não, que previsivelmente podem ocasionar a morte de outra
pessoa. A previsibilidade, objectiva e subjectiva, da morte constitui, portanto, e do mesmo
modo, um elemento conceptual do homicídio negligente. Ao lado destes dois elementos —
violação do dever de cuidado e previsibilidade — a produção do evento mortal em
conexão causal com a acção imprudentemente realizada é elemento típico imprescindível
ao desencadear dos efeitos contidos na norma.
A comprovação da negligência tem que se fazer tanto no tipo de ilícito como no tipo de
culpa: é um exame de dois graus — cf. o artigo 15º que, ao referir o cuidado a que o
agente "está obrigado" e de que é "capaz", num caso e noutro "segundo as circunstâncias",
aponta para a consideração de um dever de cuidado objectivo, situado ao nível da ilicitude,
a par de um dever subjectivo, situado ao nível da culpa. O artigo 137º, nº 1, pune quem
matar outra pessoa por negligência. São momentos típicos a causação do resultado e a
violação do dever de cuidado que todavia, só por si, não preenchem o correspondente
ilícito típico. Acresce a necessidade da imputação objectiva do evento mortal. Este critério
normativo pressupõe uma determinada conexão de ilicitude: não basta para a imputação de
um evento a alguém que o resultado tenha surgido em consequência da conduta descuidada
do agente, sendo ainda necessário que tenha sido precisamente em virtude do carácter
ilícito dessa conduta que o resultado se verificou; por outro lado, a produção do resultado
assenta precisamente na realização dos perigos que deve ser salvaguardada de acordo com
o fim ou esfera de protecção da norma. O risco desaprovado pela ordem jurídica, criado ou
potenciado pela conduta descuidada do agente, e cuja ocorrência se pretendia evitar de

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acordo com o fim de protecção da norma, deve concretizar-se no resultado mortal,


acompanhando um processo causal tipicamente adequado. No âmbito da culpa deve
comprovar-se se o autor, de acordo com a sua capacidade individual, estava em condições
de satisfazer as exigências objectivas de cuidado.
A teoria do risco. Conexão de ilicitude e fim de protecção da norma . O artigo 137º, nº 1, pune quem
matar outra pessoa por negligência (i. e, quem causar a morte de outra pessoa por negligência). São
momentos típicos a causação do resultado e a violação do dever de cuidado que todavia, só por si, não
preenchem o correspondente ilícito típico. Acresce a necessidade da imputação objectiva do evento mortal.
Este critério normativo pressupõe uma determinada conexão de ilicitude: não basta para a imputação de
um evento a alguém que o resultado tenha surgido em consequência da conduta descuidada do agente,
sendo ainda necessário que tenha sido precisamente em virtude do carácter ilícito dessa conduta que o
resultado se verificou; por outro lado, a produção do resultado assenta precisamente na realização dos
perigos que deve ser salvaguardada de acordo com o fim ou esfera de protecção da norma. O risco
desaprovado pela ordem jurídica, criado ou potenciado pela conduta descuidada do agente, e cuja
ocorrência se pretendia evitar de acordo com o fim de protecção da norma, deve concretizar-se no
resultado mortal, acompanhando um processo causal tipicamente adequado.
2. Em muitos domínios, a negligência começa quando se ultrapassam os limites do risco
permitido. As condutas realizadas ao abrigo do risco permitido não são negligentes, não
chegam a preencher o tipo de ilícito negligente. Se o agente não criou ou incrementou
qualquer perigo juridicamente relevante não existe sequer a violação de um dever de
cuidado. O exemplo discutido de há muito é o do jovem que marca um encontro com a
namorada e esta vem a morrer, no local do encontro, na queda de um meteorito (ou na
queda dum raio, ou por outro fenómeno natural, tanto dá): a conduta do rapaz não criou
um risco juridicamente relevante e não existe qualquer violação duma norma de cuidado,
portanto, não se lhe poderá imputar a morte da namorada. Por outro lado, se alguém
conduz uma viatura com observância das regras estradais e mesmo assim provoca lesões
noutra pessoa que se atravessa na frente do carro — também se não verifica uma violação
do dever de cuidado. A negligência exclui-se se o agente se contém nos limites do risco
permitido, se não criou nem potenciou um risco para a vida ou para a integridade física da
vítima do atropelamento.
Caso nº 1 Imaginemos que A dá a B, seu amigo, uma porção de heroína e que este se injecta com a
substância, vindo a morrer na sequência disso. Será A responsável pela morte de B ?
Na medida em que A deu a heroína a B, pôs-se uma condição para a morte deste. A morte
de B é, do mesmo modo, uma consequência adequada da acção de A. Com a entrega da
heroína, A aumentou, de forma relevante, o risco da morte de B. Dir-se-á que a morte de B
é assim de imputar a A. O BGH E 32, 262 decidiu, porém, em sentido contrário — uma
vez que B ainda era capaz de, por si, tomar decisões, por ex., a de conscientemente se
injectar com heroína, e como A não tinha deveres especiais para com B, não era, por ex.,
médico deste, a morte de B não pode ser imputada a A. B é o responsável pela sua própria
morte — princípio da auto-responsabilização.
No caso do meteorito, ninguém dirá que o resultado era previsível: falta, desde logo, a
criação dum perigo juridicamente relevante. Falta a realização do perigo criado se A,
atingido a tiro, de raspão, num braço, vem a morrer no despiste da ambulância que o
conduz ao hospital. Passa-se o mesmo com a evitabilidade. Se numa povoação segue um
carro em velocidade excessiva e um peão se lhe atira para a frente, não haverá negligência
do condutor se for claro que o atropelamento não poderia ter sido evitado mesmo que a
velocidade fosse a prescrita.
Caso nº 2 Em risco de perder o comboio, A promete uma boa gorjeta ao taxista se este o puser a tempo
na gare. O passageiro não será responsável por homicídio involuntário se, por falta de cuidado

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do motorista, um peão for colhido mortalmente quando o carro seguia a velocidade superior à
permitida. Mas A já será responsável se puser ao volante do carro, para que o conduza, uma
pessoa notoriamente embriagada que vem a causar a morte do peão. Neste caso, A actua com
manifesta falta de cuidado. Nos crimes negligentes, que se caracterizam pela perda do domínio
final do facto, não se pode distinguir a autoria da participação: é autor quem causa o facto por
forma negligente — é um conceito unitário.
3. Autor de um crime negligente pode ser não apenas o autor imediato, como o autor atrás
do autor, desde logo, o mandante ou o incitador de um comportamento que, por ex., vem a
terminar por um homicídio negligente: o patrão que manda o motorista circular a
velocidade excessiva em virtude da qual ocorre a morte de um peão, ou aquele que dá
droga a um dependente que com ela vem a morrer de overdose. Frequentes são na verdade
os casos de autoria paralela, em que o resultado é produzido imediatamente por um, mas
só porque outro anteriormente violou um dever objectivo de cuidado ou o risco permitido.
Por ex., A mata B com uma manobra do seu automóvel absolutamente proibida e perigosa,
porque obteve a carta de condução com os favores de C, que o aprovou no exame de
condução, apesar de se ter apercebido da sua inaptidão. Prof. Figueiredo Dias,
Conimbricense, p. 113. E se A vem a morrer por ter sido atropelado no momento em que
B, com falta de cuidado, dirige a manobra do condutor dum camião que faz marcha atrás
sem ter visibilidade? A negligência será unicamente de quem dirige a manobra, embora
não conduzisse o camião. É a actuação de A que no caso se encontra vinculada ao risco
como critério de referência da imputação — e que, consequentemente, é a conduta típica.

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 5º (homicídio a pedido e outros), Porto, 2008

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