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A razão da pena privilegiada com que se sanciona o homicídio a pedido da vítima (artigo
134º do CP) ancora numa diminuição da ilicitude, mas também num menor grau de culpa
do agente. O tipo é caracterizado pelo "pedido" — e a vítima exprime-o de duas maneiras:
"Quero morrer !" e "Mata-me !". A primeira expressão tem a ver com o bem jurídico
protegido e diminui o ilícito, a segunda dirige-se à motivação do agente e diminui-lhe a
culpa. Mas para alguns autores a razão da pena mais leve está somente na diminuição da
culpa: só é decisiva a representação do agente face ao pedido sério, instante e expresso que
lhe é feito pela vítima.
No artigo 134º, ao contrário do anterior, é a própria vítima que renuncia à protecção penal,
convertendo-se no objecto da conduta criminosa com o “consentimento qualificado” que
prestou. A lesão consentida castiga-se com uma pena privilegiada que coincide com a
pressuposta redução do ilícito: o agente não segue os seus próprios impulsos mas é
motivado por um pedido sério e instante que está para além de qualquer inibição natural
em relação à morte.
As afinidades com a norma que proíbe o “incitamento ou ajuda ao suicídio”, que lhe vem a
seguir, suscitam também problemas de difícil demarcação, a ponto de um autor austríaco
— Moos, § 77, nº de margem 5 — nela encontrar semelhanças com a cabeça de Janus, um
deus romano com duas faces: para a vítima, o homicídio a pedido é uma espécie de
"suicídio" por mão alheia; para o agente, só se pode falar da morte de outra pessoa. O tipo
de homicídio a pedido da vítima tem, como elemento negativo, a não existência de suicídio
em sentido literal (Gimbernat Ordeig). Ainda assim, é a vítima quem decide o "se" e o
"como" do facto, servindo-se para a execução de um outro, que passa a ser seu
“instrumento” (hoc sensu) — por não poder, ou por não querer, executar o facto por si
mesmo. O "autor" do crime é quem tem o domínio do facto.
A cominação de uma pena é uma contra-motivação relativamente ao provocar da morte,
não obstante o consentimento qualificado em que se gera e desenvolve a acção. Ao
consentimento concede-se pelo menos o papel de filtro no contexto dos crimes contra a
vida. O "homicídio a pedido da vítima" é um homicídio-suicídio, mas nele estão
contempladas unicamente situações de homicídio propriamente dito, embora sob um
consentimento particularmente qualificado — ainda aqui, o agente mata outra pessoa
dolosamente em situação de imputabilidade.
Neste tipo de crime, o agente deve ter sido determinado por um pedido sério, instante e
expresso, transmitido por palavras, por atitudes ou por gestos inequívocos. A lei quer que a
actividade que se vai exercer sobre a vítima resulte do pedido desta, exigindo-se algo mais
do que a sua simples concordância. Há até quem imponha que o pedido daquele que está
“farto da vida” vá para além do "se", abrangendo o "como", o "quando" e o "quem" da
M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 5º (homicídio a pedido e outros), Porto, 2008
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Cf. o termo “determinado” com a expressão “determinar” que o Código usa nos artigos 26º, última parte,
e 217º, nº 1, (burla comum). Determinar outra pessoa à prática do facto significa criar nela a decisão de o
cometer.
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Ao contrário, o “testamento de paciente” consiste em declarações escritas em que o paciente declara, para
a hipótese de vir a ser encontrado inconsciente, que se opõe a qualquer tratamento indicado para salvar a
vida.
M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 5º (homicídio a pedido e outros), Porto, 2008
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M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 5º (homicídio a pedido e outros), Porto, 2008
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Artigo 136º. A mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência
perturbadora, é punida com prisão de 1 a 5 anos.
As normas que nos diversos códigos penais punem a mãe que matar o filho durante ou
logo após o parto (crime de infanticídio; Kindestötung) têm atrás de si uma história de
séculos, desde logo, porque o homicídio do próprio filho pode constituir uma circunstância
especialmente censurável. Mas as pessoas não deixaram de se impressionar, já no decorrer
do séc. XIX, com a grande perturbação com que a mãe se deparava em certos casos. Com
o nascimento do filho, ficava patente perante a sociedade a vergonha da gravidez da mãe
solteira. No Código de 1886, que vigorou até 1982, no § único do artigo 356º ainda se
previa uma situação privilegiada para o infanticídio cometido pela mãe para ocultar a sua
desonra, ou pelos avós maternos para ocultar a desonra da mãe. A atitude da sociedade
modificou-se em tempos mais recentes. Foi só em 1995 que se eliminou o infanticídio
privilegiado da mãe que mata o filho acabado de nascer ou durante o parto para ocultar a
desonra, as chamadas "razões de honra" foram então desvalorizadas, deixando o legislador
de atribuir relevo penal a esse facto. Ter um filho não pode ser nunca uma desonra para
ninguém: o sentido tradicional da referência perde-se hoje em dia.
A execução do crime de infanticídio (artigo 136º), que é um homicídio privilegiado, pode
ser anterior ao nascimento, uma vez que a norma prevê a comissão "durante o parto": "a
mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência
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A mãe que durante um sono profundo, com as faculdades anímicas inteiramente “desligadas”, esmaga
com o seu corpo o filho que dorme a seu lado não poderá ser penalmente responsabilizada por uma morte
causada nesse estado de inconsciência. Nem o seria em caso de sonambulismo ou de hipnose. São casos de
não-acção. Mas o médico que estando de serviço na urgência hospitalar toma um forte sonífero, omitindo
uma determinada acção que tinha o dever de praticar, pode ser responsabilizado tanto civil como
criminalmente. É certo que também a mãe tinha a obrigação de não criar uma situação de risco para a vida
ou a integridade física do filho. Mas aqui a “acção” não está no esmagamento do filho ou na inacção do
médico que chegou ao hospital, mas sim “na conduta precedente que criou uma situação de perigo para
determinados bens jurídicos, ao impossibilitar o cumprimento do dever de não lesar, ou de salvar, bens
jurídicos alheios” (Prof. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa, p. 92). Nesse sentido, terá havido
imprudência da parte da mãe, quando colocou o filho a dormir, podendo prever que durante o sono o seu
corpo abafaria o do menino. Impõe-se, tudo o indica, diferente solução quando a morte da criança ocorrer
porque um terceiro a depôs ao lado da mãe, enquanto esta dormia, em termos de a isentar de qualquer
implicação no facto.
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Questões de comparticipação (artigos 26º, 27º, 28º e 29º). A culpa é uma questão
pessoal de cada interveniente. Quem comparticipa no crime privilegiado da mãe, agindo
conjuntamente com esta, só poderá ser punido pelo artigo 131º (tendo ainda em atenção os
artigos 132º e 133º), independentemente da sua culpa (artigo 29º). Como apenas a mãe
poderá beneficiar da atenuação típica da "influência perturbadora do parto", o artigo 136º
é, em matéria de autoria, um crime específico, só a mãe o pode cometer — ao contrário
dos restantes crimes contra a vida, o preceito não começa com o “quem” anónimo da
generalidade dos crimes comuns. Sendo sujeito activo do crime apenas a “mãe” que matar
o filho, a situação não chama a si o mecanismo de comunicação das circunstâncias do
artigo 28º, mas unicamente o regime do artigo 29º, por se tratar no artigo 136º de um tipo
de culpa— o artigo 28º só se aplicaria se estivesse em causa a própria graduação da
ilicitude. Mesmo que a mãe cometa o crime através de outra pessoa, a punição faz-se pelo
artigo 136ª (supondo no caso todos os correspondentes pressupostos), em vista da
diminuição da culpa da mãe que actua sob a influência perturbadora do parto, mas esta
circunstância não é extensível a outras pessoas que devam ser punidas como autoras.
Artigo 137º. 1. Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com
pena de multa. 2. Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.
1. No artigo 137º, nº 1, prevê-se, em alternativa, a pena de multa, ao contrário dos outros
crimes contra a vida.
Exige-se a realização de uma acção sem a diligência devida, violando, portanto, o dever,
tanto objectivo como subjectivo, de cuidado, que é necessário ter em conta nos
comportamentos, delitivos ou não, que previsivelmente podem ocasionar a morte de outra
pessoa. A previsibilidade, objectiva e subjectiva, da morte constitui, portanto, e do mesmo
modo, um elemento conceptual do homicídio negligente. Ao lado destes dois elementos —
violação do dever de cuidado e previsibilidade — a produção do evento mortal em
conexão causal com a acção imprudentemente realizada é elemento típico imprescindível
ao desencadear dos efeitos contidos na norma.
A comprovação da negligência tem que se fazer tanto no tipo de ilícito como no tipo de
culpa: é um exame de dois graus — cf. o artigo 15º que, ao referir o cuidado a que o
agente "está obrigado" e de que é "capaz", num caso e noutro "segundo as circunstâncias",
aponta para a consideração de um dever de cuidado objectivo, situado ao nível da ilicitude,
a par de um dever subjectivo, situado ao nível da culpa. O artigo 137º, nº 1, pune quem
matar outra pessoa por negligência. São momentos típicos a causação do resultado e a
violação do dever de cuidado que todavia, só por si, não preenchem o correspondente
ilícito típico. Acresce a necessidade da imputação objectiva do evento mortal. Este critério
normativo pressupõe uma determinada conexão de ilicitude: não basta para a imputação de
um evento a alguém que o resultado tenha surgido em consequência da conduta descuidada
do agente, sendo ainda necessário que tenha sido precisamente em virtude do carácter
ilícito dessa conduta que o resultado se verificou; por outro lado, a produção do resultado
assenta precisamente na realização dos perigos que deve ser salvaguardada de acordo com
o fim ou esfera de protecção da norma. O risco desaprovado pela ordem jurídica, criado ou
potenciado pela conduta descuidada do agente, e cuja ocorrência se pretendia evitar de
M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 5º (homicídio a pedido e outros), Porto, 2008
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M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 5º (homicídio a pedido e outros), Porto, 2008
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do motorista, um peão for colhido mortalmente quando o carro seguia a velocidade superior à
permitida. Mas A já será responsável se puser ao volante do carro, para que o conduza, uma
pessoa notoriamente embriagada que vem a causar a morte do peão. Neste caso, A actua com
manifesta falta de cuidado. Nos crimes negligentes, que se caracterizam pela perda do domínio
final do facto, não se pode distinguir a autoria da participação: é autor quem causa o facto por
forma negligente — é um conceito unitário.
3. Autor de um crime negligente pode ser não apenas o autor imediato, como o autor atrás
do autor, desde logo, o mandante ou o incitador de um comportamento que, por ex., vem a
terminar por um homicídio negligente: o patrão que manda o motorista circular a
velocidade excessiva em virtude da qual ocorre a morte de um peão, ou aquele que dá
droga a um dependente que com ela vem a morrer de overdose. Frequentes são na verdade
os casos de autoria paralela, em que o resultado é produzido imediatamente por um, mas
só porque outro anteriormente violou um dever objectivo de cuidado ou o risco permitido.
Por ex., A mata B com uma manobra do seu automóvel absolutamente proibida e perigosa,
porque obteve a carta de condução com os favores de C, que o aprovou no exame de
condução, apesar de se ter apercebido da sua inaptidão. Prof. Figueiredo Dias,
Conimbricense, p. 113. E se A vem a morrer por ter sido atropelado no momento em que
B, com falta de cuidado, dirige a manobra do condutor dum camião que faz marcha atrás
sem ter visibilidade? A negligência será unicamente de quem dirige a manobra, embora
não conduzisse o camião. É a actuação de A que no caso se encontra vinculada ao risco
como critério de referência da imputação — e que, consequentemente, é a conduta típica.
M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 5º (homicídio a pedido e outros), Porto, 2008