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§ 31º — Relação entre o crime de dano e os seus mais próximos


crimes de perigo

Caso nº 1 Crime de dano. Furto seguido da destruição da coisa: a categoria do facto posterior co-
punido. A e B, de comum acordo, apoderaram-se do automóvel de C. Com a ajuda de uma
ligação directa ao motor, foram à casa de A, onde deixaram alguns objectos que encontraram
no carro, no valor global de quinhentos euros, para depois os venderem. Resolveram então pôr
fogo ao carro, para ocultar possíveis vestígios da sua actuação. Para tanto, levaram o carro
para um local isolado e, depois que A derramou gasolina nos assentos e no motor, B ateou-lhe
o fogo com um isqueiro. O carro, que valia 15 mil euros, ardeu completamente.
Punibilidade de A e B ?

I. — O crime de dano (artigo 212º) e a sua mais próxima contrapartida


de perigo; situações de perigo e de lesão
Relativamente ao crime de dano (artigos 212º e 213º), as suas diversas contrapartidas de
perigo caracterizam-se sobretudo pelo modo de acção. Repare-se nos verbos de resultado
que se seguem (artigos 272º e ss.): “provocar incêndio”, “provocar explosão por qualquer
forma”, “fabricar”, “dissimular”, “destruir”, “danificar”, “poluir”.
Diríamos que o crime de dano (artigo 212º: "quem destruir, no todo ou em parte, danificar,
desfigurar ou tornar não utilizável") tem a sua mais próxima contrapartida de perigo no
artigo 277º, nº 1, alíneas b) e c): "quem destruir, danificar [desfigurar] ou tornar não
utilizável...". Já agora, observe-se também o artigo 290º, nº 1, a): "quem atentar...
destruindo, [suprimindo], danificando ou tornando não utilizável...", e o artigo 259º, nº 1:
"quem... destruir, danificar, tornar não utilizável, [fizer desaparecer, dissimular]...".
Por seu turno, o artigo 272º, nº 1, alínea a), pune quem provocar incêndio de relevo,
nomeadamente pondo fogo a edifício ou construção, a meio de transporte, e criar desse
modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais
alheios de valor elevado. Trata-se de um crime de "perigo comum", o qual consiste em se
criar, com o atear do fogo, um risco incontrolável ou de difícil controlo para a segurança
de outras pessoas ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, sendo necessário que
o dolo abranja também esse risco.
No caso nº 1, a situação não é de perigo comum, pois A e B só quiseram destruir a viatura,
não o tendo feito em condições de o fogo poder atingir terceiros ou propagar-se a outros
bens valiosos, como sucederia se ela estivesse recolhida dentro de algum edifício. De
facto, produziu-se um dano efectivo, mas conscientemente limitado, sem viabilidade de
qualquer perigo adicional, pelo que o incêndio da viatura apenas preenche o crime de
dano, eventualmente agravado: artigo 213º (cf., por ex., o acórdão do STJ de 1 de Março
de 1995).
No dano do artigo 212º, nº 1, o bem jurídico protegido é a propriedade. Estão
compreendidas todas as coisas alheias, móveis ou imóveis, mas nos casos das alíneas b), c)

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 31º (crimes de dano /crimes de perigo), Porto, 2008.
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e d) do nº 1 do artigo 213º (dano qualificado) a lei não se refere à natureza “alheia” da


coisa, face à especial destinação e utilidade dessas coisas. (1)
Caso nº 2 A, voluntariamente, deitou fogo ao automóvel do B, estacionado no final da Rua dos C..., em
Pinhal do V..., C..., do lado esquerdo da faixa de rodagem, junto a um lote de terreno sem
construção, tendo ao seu lado direito o prédio do lote 50, que faz fronteira com os prédios que
se lhe seguem, já na Rua da V.
No caso (tratado no acórdão do STJ de 24 de Abril de 2008, no processo nº 07P3183), o
objecto de acção foi um só (e perfeitamente diferenciado): o automóvel do B, estacionado
«no final da Rua dos C..., em Pinhal do V..., C..., do lado esquerdo da faixa de rodagem,
junto a um lote de terreno sem construção, tendo ao seu lado direito o prédio do lote 50,
que faz fronteira com os prédios que se lhe seguem, já na Rua da V...». Não se provou que
a acção incendiária do A (ao pôr fogo, destruindo-o, ao automóvel do B) haja «criado
perigo para a vida ou para a integridade física de outrem» ou, mesmo, para outros (e
indiferenciados) «bens patrimoniais alheios de valor elevado» (designadamente, «o prédio
do lote 50» e os «que se lhe seguem já na Rua da V...», ou outros veículos porventura
estacionados na mesma rua ou na seguinte).
"Não estando em causa que o A tivesse provocado incêndio de relevo, pondo fogo a meio
de transporte, a verdade é que não se alegou nem provou que o arguido haja, «deste
modo», «criado perigo para a vida ou para a integridade física de outrem» ou, mesmo, para
outros (para além do meio de transporte incendiado) «bens patrimoniais alheios de valor
elevado». Como também não se provou – e nem, sequer, se alegara - que o dolo de
resultado do arguido (a destruição do veículo visado) contivesse o dolo de perigo de outros
bens (pessoais ou materiais). Parafraseando José de Faria Costa (Comentário
Conimbricense, p. 879), «é óbvio que a acção incendiária é, pela própria natureza das
coisas, um comportamento que pode integrar um simples crime de dano. Se A, para
destruir o quadro de B, o incendeia é evidente que está a cometer um crime de dano e não
o de incêndio». Pois «para que se verificasse o crime [de perigo comum de incêndio, em
que este consumiria o de dano], seria necessária a verificação de muitos mais elementos»
(«que o qualificariam em crime de resultado de perigo-violação e não em um crime de
resultado de dano-violação» ). Ora, faltando, no caso, esses «muitos mais elementos», a
adequada qualificação jurídico-penal da acção do arguido será, simplesmente, a de um
crime de «dano qualificado» previsto – e punível com pena de prisão até 5 anos ou multa
até 600 dias - pelo art. 213.1.a do CP (e não a de um crime doloso de perigo comum de
incêndio, previsto – e punível com prisão de 3 a 10 anos de prisão – pelo art. 272.1.a do
CP)."
Caso nº 3 A dá-se muito mal com B, seu inimigo de há longa data, e quer vingar-se dele, custe o que
custar. Como B tem um prédio, quase todo arrendado a uma firma de exportações, com
excepção do último andar — onde vive, sozinho, um indivíduo de idade —, A, para tramar a
vida a B, resolve deitar fogo ao prédio. Nada disso lhe parece difícil, até porque já em ocasião
anterior se tinha ocupado de tarefa semelhante e tudo correra bem. A hora ideal será por volta
das dez da noite, quando todos os empregados da firma, incluindo as mulheres da limpeza, já
estão nas suas casas. Problema é o inquilino do último andar. Para evitar a morte deste, A
remete-lhe um telegrama, pouco antes de dar início aos seus planos, fingindo que um filho do

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No caso nº 1 temos de relacionar o dano (destruição da viatura) com o anterior furto dela: dano e furto são
crimes contra a propriedade (alheia) e no caso estão em relação de consunção. A intenção do agente de se
apropriar da coisa que é objecto de furto já abrange a sua posterior destruição. A regra ne bis in idem obsta
a que se trate a destruição de coisa anteriormente subtraída como crime distinto e independente do furto
dela..

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 31º (crimes de dano /crimes de perigo), Porto, 2008.
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idoso está a morrer e o quer à sua cabeceira. A espera firmemente que o telegrama chegue a
tempo. Entretanto, prepara na cave do edifício uma mecha e rodeia-a de materiais facilmente
inflamáveis. Rega tudo com gasolina a que põe fogo, o qual se propaga imediatamente e em
grande velocidade. Quando as chamas já lambiam o último andar, os bombeiros conseguem
extingui-lo, depois de chamados pelo morador, que a tempo sentiu o intenso cheiro dos
materiais a arder.
A, além de um crime de homicídio tentado (com dolo eventual) pode ter cometido um
crime do artigo 272º.
O artigo 272º segue o esquema subjectivo, que adopta a técnica própria destes crimes de
perigo comum: no nº 1 - acção dolosa e criação de perigo doloso; no nº 3 - acção dolosa e
criação de perigo negligente; no nº 4 - acção negligente e criação de perigo negligente.
Fogo posto num objecto significa que este é envolvido de tal forma que o fogo pode
propagar-se unicamente pelas suas próprias forças. A queima de umas silvas ou de uns
desperdícios não basta para integrar o ilícito, que fala em provocar incêndio de relevo. Mas
já será suficiente o fogo posto na escadaria de um edifício se houver a possibilidade de o
fogo se propagar. Pôr fogo em outra parte de um edifício que já está a arder integra o
desenho objectivo do tipo. Mas é discutível se assim se deve entender quando o agente se
limita a atiçar o fogo posto por outro. No direito alemão a resposta costuma ser afirmativa
porque aí, ao contrário do preceito português (1), a situação é definida como de perigo
abstracto e tanto faz que a actuação crie o perigo ou o intensifique. (2)
Especialmente visados, de acordo com o artigo 272º, são os edifícios, construções ou
meios de transporte, sem se distinguir se são próprios ou alheios. Está em causa a
criação de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens
patrimoniais de valor elevado que (estes sim) devem ser alheios. São casos em que o
perigo tem que ser concretizado, mas se se provoca incêndio com danos em edifício alheio,
o crime poderá ser também o de dano (artigo 212º), que protege a propriedade.
No caso nº 2, A, ao provocar incêndio de relevo, pondo fogo a edifício e criando deste
modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais
alheios de valor elevado, cometeu um crime do artigo 272º, nº 1, alínea a), já que
procedeu dolosamente quanto à acção como quanto á criação do perigo, com
conhecimento e vontade de realização típica.
Como A provocou incêndio com danos em edifício alheio, os factos integram também o
crime de dano (artigo 212º, nº 1), que protege a propriedade, eventualmente agravado.

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Também agora entre nós (depois das alterações de 2007), o incêndio florestal previsto no nº 1 do artigo
274º, é crime de perigo abstracto ou presumido. Se com a correspondente acção se cria perigo para a vida
ou para a integridade física de outrem, ou para bens alheios patrimoniais alheios de valor elevado, a pena é
agravada em função da criação do perigo concreto para esses valores (veja-se, nomeadamente, a alínea a)
do nº 2).
2
Para o significado de incêndio de relevo, cf. o acórdão do STJ de 31 de Outubro de 1995, BMJ-450-154.
O conceito de incêndio de relevo é dado pela referência legal a incêndio provocado em edifício, construção
ou meio de transporte. Também é de considerar incêndio de relevo o que causa alarme social,
nomeadamente aquele que não consiga ser apagado por intervenção de bombeiros destinada a evitar a sua
propagação, diz-se no acórdão da Relação de Coimbra de 5 de Fevereiro de 1998, CJ, ano XXIII (1998), t.
II, p. 51.

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II. — Concurso entre os crimes de perigo e os respectivos crimes de dano


Pense-se na relação entre o crime de perigo do artigo 138º (exposição ou abandono) e o
crime de lesão do artigo 131º (homicídio); ou na que desenha entre a condução perigosa de
veículo (artigo 291º, nºs 1 e 3) e os diversos crimes involuntários, como o homicídio
(artigo 137º) ou a ofensa à integridade física (artigo 148º).
1. Se o perigo ultrapassa o concreto dano verificado (como muitas vezes sucederá com os
chamados “crimes de perigo comum), prevalecerá o crime de perigo. (1)
No que respeita mais especificamente à questão do concurso entre o crime de incêndio
(artigo 272º) e o de dano (artigo 212º), já se defendeu, no Supremo, a tese da unidade
criminosa (consunção impura): cf. o acórdão de 9 de Fevereiro de 1983, BMJ 324, p. 432,
onde se concluiu que visando ambos (incêndio e dano) a protecção do mesmo interesse
jurídico, aquele, mais fortemente sancionador, exclui este, segundo a regra da consunção.
Do mesmo modo, “comete um só crime, o do artigo 253º, nº 1, o réu que lança
voluntariamente fogo ao compartimento de um prédio urbano, habitado por outros
inquilinos, e não também o crime de dano, por ser aquele preceito o que melhor protecção
confere ao interesse jurídico violado” (acórdão do STJ de 10 de Julho de 1984, BMJ 339,
p. 251). Porém, no acórdão do STJ de 19 de Maio de 1993, BMJ 427, p. 256, parte-se da
natureza de crime de perigo concreto para vários bens jurídicos do crime de incêndio (na
altura o do artigo 253º) para se concluir pelo concurso efectivo, se os bens danificados não
foram os únicos bens postos em perigo. (2)
Caso nº 4 A seguia conduzindo o seu potente BMW pela estrada nacional que liga S. João da Madeira a
Arouca. Às tantas, iniciou uma ultrapassagem numa curva sem suficiente visibilidade e foi
chocar com o carro de B, que seguia em sentido contrário, respeitando todas as normas de
direito estradal. B morreu. O carro do B, um Renault novo, acabado de comprar, foi
directamente para a sucata.
Punibilidade de A? Pelos artigos 291º, nºs 1, alínea b), e 4, e 294º, nº 3, e 285º (agravação
de um terço nos limites mínimo e máximo), ou pelo artigo 137º, nº 2?
2. Um acórdão recente do STJ (acórdão de 22 de Novembro de 2007, no processo nº
05P3638), ocupou-se do concurso entre o crime fundamental de condução perigosa de
veículo rodoviário (artigo 291º) e o crime de homicídio ou ofensas corporais graves
negligentes (artigos 137º e 148º), tendo como pano de fundo a agravação decorrente dos
conjugados artigos 285º e 294º.
O acórdão começou por notar a coincidência da norma do artigo 291º com a segurança da
circulação rodoviária, acentuando igualmente a tutela de bens jurídicos individuais (a vida
e a integridade física), especialmente assegurada pelos crimes dos artigos. 137.º e 148º.
Lembrou, por outro lado, que "sempre que, por causa do perigo concreto criado pela
conduta do agente, ocorrerem a morte ou ofensas à integridade física de utentes das vias de
circulação rodoviária, o crime do art. 291.º é agravado pelo resultado, por aplicação do art.
285.º, em face do disposto pelo art. 294º".
1
Figueiredo Dias, Direito Penal, sumários e notas, 1976, p. 108.
2
Cf., na mesma linha de orientação, o acórdão da Relação do Porto de 7 de Março de 1984, CJ, ano IX, t.
2, p. 247: verifica-se um concurso de infracções quando, com a sua conduta, o agente viola o disposto no
artigo 253º - crime de incêndio - e 308º - crime de dano - do CP 82. Cf., ainda, o acórdão da Relação de
Lisboa de 27 de Março de 1996, CJ, ano XXI (1996), t. 2, p. 149, acerca das relações entre o dano e o
lançamento de projéctil contra veículo (artigo 293º).

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 31º (crimes de dano /crimes de perigo), Porto, 2008.
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Ora, dado que “o art. 285.º constitui um caso de agravação de pena, tal significa que a
pena que ao crime se deve aplicar haverá de ser superior àquela que resultaria das regras
decorrentes do concurso de crimes (concurso entre o crime fundamental e o crime de
homicídio ou ofensas corporais graves negligentes, cfr. os arts. 137.º e 148.º-3)”. ( 1) Sendo
protegidos no crime de condução perigosa, além da segurança das comunicações, os bens
jurídicos individuais vida e integridade física, postos em perigo pela conduta do agente,
ainda que estes reflexamente, se ocorrer uma lesão destes últimos como resultado daquela
conduta, os referidos bens jurídicos de natureza pessoal passam a ser protegidos não só
pelas disposições combinadas dos artigos. 291.º, 294.º e 285.º, mas também, de forma
genérica, pelos crimes dos artigos. 137.º e 148. E quando tal acontece, as disposições
penais encontram-se numa relação de consunção – uma, a de protecção mais ampla [lex
consumens] consome a protecção que a outra [lex consunta] já visa e que deixa de ser
aplicada sob pena de clara violação do princípio ne bis in idem. (2)
Sendo assim, continua o acórdão, "tendo em conta o teor do art. 291.º, complementado
pelos artigos. 285.º e 294.º, pode afirmar-se que o dano na vida ou na integridade física
consome o perigo. O tipo do art. 137.º acaba por ter, também nas situações de negligência
grosseira, um campo de aplicação mais lato do que o crime do art. 291.º agravado pelo
resultado. O que permite inferir que se ocorrer a morte de terceiro em consequência da
violação grosseira de outras regras de circulação rodoviária, o agente não comete este
crime, obtendo-se a sua punição pela norma mais geral do art. 137.º, n.º 2.
Daqui resulta que, tendo o legislador considerado apenas a prática de certas manobras
como devendo levar à punição do condutor pelo perigo que causam na circulação
rodoviária e tendo querido punir especialmente as situações em que, em resultado da morte
de terceiro, o perigo se transformou em dano, seria de esperar que viesse a prever uma
punição mais severa do que a que se encontra estabelecida para o homicídio por
negligência, mesmo quando agravado por negligência grosseira. Contudo, provavelmente
devido ao uso de um critério de agravação por remissão indirecta, acabou por vir a
estabelecer uma moldura penal inferior àquela pela qual o homicídio negligente é punível
pelo art. 137.º, n.º 2. (3)

1
A citação é de Damião da Cunha, Comentário, II, anotação ao art. 284.º, pág. 1034.
2
Advertia Eduardo Correia que, nestes casos, “a eficácia da consunção não só está dependente da
circunstância de efectivamente concorrerem dois preceitos cujos bens jurídicos se encontrem numa relação
de mais para menos, mas ainda de que, no caso concreto, a protecção visada por um seja esgotada,
consumida pelo outro, coisa que nem sempre acontece”. Por isso, comparando-a com a situação de
especialidade, sustentava que “enquanto a especialidade se pode afirmar em abstracto, só em concreto se
pode afirmar a consunção dum pelo outro” (A Teoria do Concurso em Direito Criminal – Unidade e
Pluralidade de Infracções, págs. 131-132).

3
A propósito de situações como a referida, considerava Eduardo Correia (citando Binding), que “casos
há ... em que a lei descreve um tipo de crime que só se distingue doutro por uma circunstância tal que
apenas se pode admitir tê-la querido o legislador como circunstância qualificativa agravante – verificando-
se todavia, que a pena para ele cominada é inferior à do crime fundamental”. Para estes casos, designados
de “consunção impura”, bem como nas situações em que “dois tipos de crime se comportam entre si, na
protecção de bens jurídicos, como dois círculos que coincidem na sua parte mais importante e valiosa”, é
aplicável o tipo fundamental, não se devendo considerar cumulativamente realizado o tipo correspondente
ao crime especial, pois, “entre deixar de considerar uma circunstância só qualificativa e violar
profundamente o princípio ne bis in idem sofrerá muito menos o direito com a primeira solução” – Direito
Criminal, II, pág. 207.

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Concluindo quanto ao caso nº 4. No respeitante à morte da vítima, a punição do A deve ser


feita com base na moldura penal do art. 137.º, n.º 2, do CP, com prevalência sobre a norma
do art. 291.º, n.º 1, al. b), agravada pelo resultado, por existir um concurso aparente de
infracções. Mas o artigo 291º, nºs 1, alínea b), e 4, pode ainda ter aplicação no que respeita
ao automóvel do B, desde que se conclua, como parece poder fazer-se, que se tratava de
um bem patrimonial de valor elevado. O próprio acórdão que referenciamos, equaciona a
possibilidade de existir um concurso real do crime de perigo para a segurança das
comunicações e do crime de homicídio por negligência, "tudo dependendo da verificação
que deverá ser levada a efeito sobre 'se o círculo de bens jurídicos, cujo perigo de lesão
uma determinada norma prevê, coincide com aquele cujo dano um outro proíbe', caso em
que se verifica a consunção". (1)
3. Os princípios fundamentais da punição do concurso de crimes de perigo concreto com
crimes de dano são assim resumidos por Pinto de Albuquerque (2):
a) A punição do crime de dano não consome a punição do crime de perigo concreto se
o perigo se verificou em outros bens além daquele objecto do dano, uma vez que
então o bem tutelado pela incriminação de perigo não se encontra integralmente
tutelado pela punição através do crime de dano.
b) A punição do crime de perigo concreto consome a punição do perigo abstracto e
abstracto-concreto, uma vez que não faz sentido duplicar a tutela do perigo com a
dupla punição de estádios de perigo mais ou menos próximos do resultado de
perigo, tratando-se em muitos casos na incriminação de perigo abstracto da
previsão de actos de preparação do crime de perigo concreto (por que razão punir o
agente que deteve e transportou o engenho explosivo que usou parta provocar uma
explosão, com vista a pôr em perigo a vida de outrem, o que conseguiu, com os
arts. 273º e 275º do CP?).
c) A punição do crime de dano não consome, em princípio, a punição a título de
crime de perigo abstracto, já que o bem tutelado pela incriminação de perigo não se
reduz ao bem tutelado pela incriminação do dano, excepto se a incriminação do
dano já é especialmente agravada com uma previsão da ocorrência de um crime de
perigo abstracto (como no homicídio com armas proibidas) e, portanto, a
ocorrência do crime de perigo abstracto é uma circunstância de uma forma
qualificada do crime de dano. Contudo, se estas são as regras básicas que decorrem
dos princípios gerais, o artigo 285º afasta, em princípio, as regras do concurso
entre os crimes de perigo e os crimes de homicídio e ofensas corporais graves. O
artigo 285º vale seja qual for a estrutura subjectiva dos crimes de perigo em causa e
deve ser aplicado só enquanto permite uma punição mais grave do concurso
de crimes do que a resultante do regular funcionamento das regras gerais do
concurso de crimes, uma vez que o legislador pretendeu com a estatuição desta
norma especial criar um regime mais gravoso do que o que resulta do
funcionamento daquelas regras.
4. Ainda um outro aspecto:

1
Cf. tanto Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. I, pág. 114, como Eduardo
Correia, A Teoria do Concurso, pág. 139.
2
Pinto de Albuquerque, Jornadas, p. 279.

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Caso nº 5 A seguia conduzindo o seu potente BMW pela via pública e a dada altura transpôs a linha
longitudinal contínua do eixo da via, quando descrevia uma curva para a esquerda, atento o
seu sentido de marcha, pondo comprovadamente em perigo a vida de B, C e D, que
transitavam pelo passeio ao lado.
Quantos crimes do artigo 291º, nºs 1, alínea b) e 4, cometeu A? Um ou três?
No Código, como já vimos, boa parte dos crimes de perigo comum [e dos crimes contra a
segurança das comunicações] incluem a criação de um perigo entre os seus elementos
típicos, pressupondo o perigo para uma pessoa, enquanto “representante da comunidade”,
“o que significa que, independentemente do número de vítimas, existe apenas um crime
(que preclude toda a consideração do “real” número de vítimas). “Haverá um só crime do
artigo 291º, nº 1, se o desvalor do evento próprio do crime de condução perigosa como
resultado de perigo se mostrar individualizado numa vítima, ou mesmo num conjunto
delas, ou num bem”. (1)

III. — Indicações de leitura


Acórdão da Relação de Coimbra de 5 de Fevereiro de 1998, CJ, ano XXIII (1998), t. I, p. 51 (crime de
incêndio: elementos típicos; conceito de incêndio de relevo).
Acórdão da Relação de Coimbra de 22 de Janeiro de 1997, CJ, XXII (1997), t. 1, p. 63 (crime de incêndio
negligente, crime de dano).
Acórdão do STJ de 14 de Dezembro de 1995, BMJ-452-263 (crime de incêndio; crime de perigo comum).
Acórdão do STJ de 23 de Junho de 1994, BMJ-438-261 (crime de incêndio; inexigência do móbil ou de
dolo específico; cumplicidade).

1
Assim, José Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, p. 481, onde se nota que a dimensão “processual”
da configuração destes tipos legais que “contêm elementos “exoneradores” do âmbito de relevância da
prova no que toca a “resultados” — e no que toca à imputação de todo um conjunto de resultados”.

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