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Caso nº 1 Crime de dano. Furto seguido da destruição da coisa: a categoria do facto posterior co-
punido. A e B, de comum acordo, apoderaram-se do automóvel de C. Com a ajuda de uma
ligação directa ao motor, foram à casa de A, onde deixaram alguns objectos que encontraram
no carro, no valor global de quinhentos euros, para depois os venderem. Resolveram então pôr
fogo ao carro, para ocultar possíveis vestígios da sua actuação. Para tanto, levaram o carro
para um local isolado e, depois que A derramou gasolina nos assentos e no motor, B ateou-lhe
o fogo com um isqueiro. O carro, que valia 15 mil euros, ardeu completamente.
Punibilidade de A e B ?
M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 31º (crimes de dano /crimes de perigo), Porto, 2008.
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1
No caso nº 1 temos de relacionar o dano (destruição da viatura) com o anterior furto dela: dano e furto são
crimes contra a propriedade (alheia) e no caso estão em relação de consunção. A intenção do agente de se
apropriar da coisa que é objecto de furto já abrange a sua posterior destruição. A regra ne bis in idem obsta
a que se trate a destruição de coisa anteriormente subtraída como crime distinto e independente do furto
dela..
M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 31º (crimes de dano /crimes de perigo), Porto, 2008.
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idoso está a morrer e o quer à sua cabeceira. A espera firmemente que o telegrama chegue a
tempo. Entretanto, prepara na cave do edifício uma mecha e rodeia-a de materiais facilmente
inflamáveis. Rega tudo com gasolina a que põe fogo, o qual se propaga imediatamente e em
grande velocidade. Quando as chamas já lambiam o último andar, os bombeiros conseguem
extingui-lo, depois de chamados pelo morador, que a tempo sentiu o intenso cheiro dos
materiais a arder.
A, além de um crime de homicídio tentado (com dolo eventual) pode ter cometido um
crime do artigo 272º.
O artigo 272º segue o esquema subjectivo, que adopta a técnica própria destes crimes de
perigo comum: no nº 1 - acção dolosa e criação de perigo doloso; no nº 3 - acção dolosa e
criação de perigo negligente; no nº 4 - acção negligente e criação de perigo negligente.
Fogo posto num objecto significa que este é envolvido de tal forma que o fogo pode
propagar-se unicamente pelas suas próprias forças. A queima de umas silvas ou de uns
desperdícios não basta para integrar o ilícito, que fala em provocar incêndio de relevo. Mas
já será suficiente o fogo posto na escadaria de um edifício se houver a possibilidade de o
fogo se propagar. Pôr fogo em outra parte de um edifício que já está a arder integra o
desenho objectivo do tipo. Mas é discutível se assim se deve entender quando o agente se
limita a atiçar o fogo posto por outro. No direito alemão a resposta costuma ser afirmativa
porque aí, ao contrário do preceito português (1), a situação é definida como de perigo
abstracto e tanto faz que a actuação crie o perigo ou o intensifique. (2)
Especialmente visados, de acordo com o artigo 272º, são os edifícios, construções ou
meios de transporte, sem se distinguir se são próprios ou alheios. Está em causa a
criação de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens
patrimoniais de valor elevado que (estes sim) devem ser alheios. São casos em que o
perigo tem que ser concretizado, mas se se provoca incêndio com danos em edifício alheio,
o crime poderá ser também o de dano (artigo 212º), que protege a propriedade.
No caso nº 2, A, ao provocar incêndio de relevo, pondo fogo a edifício e criando deste
modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais
alheios de valor elevado, cometeu um crime do artigo 272º, nº 1, alínea a), já que
procedeu dolosamente quanto à acção como quanto á criação do perigo, com
conhecimento e vontade de realização típica.
Como A provocou incêndio com danos em edifício alheio, os factos integram também o
crime de dano (artigo 212º, nº 1), que protege a propriedade, eventualmente agravado.
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Também agora entre nós (depois das alterações de 2007), o incêndio florestal previsto no nº 1 do artigo
274º, é crime de perigo abstracto ou presumido. Se com a correspondente acção se cria perigo para a vida
ou para a integridade física de outrem, ou para bens alheios patrimoniais alheios de valor elevado, a pena é
agravada em função da criação do perigo concreto para esses valores (veja-se, nomeadamente, a alínea a)
do nº 2).
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Para o significado de incêndio de relevo, cf. o acórdão do STJ de 31 de Outubro de 1995, BMJ-450-154.
O conceito de incêndio de relevo é dado pela referência legal a incêndio provocado em edifício, construção
ou meio de transporte. Também é de considerar incêndio de relevo o que causa alarme social,
nomeadamente aquele que não consiga ser apagado por intervenção de bombeiros destinada a evitar a sua
propagação, diz-se no acórdão da Relação de Coimbra de 5 de Fevereiro de 1998, CJ, ano XXIII (1998), t.
II, p. 51.
M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 31º (crimes de dano /crimes de perigo), Porto, 2008.
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M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 31º (crimes de dano /crimes de perigo), Porto, 2008.
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Ora, dado que “o art. 285.º constitui um caso de agravação de pena, tal significa que a
pena que ao crime se deve aplicar haverá de ser superior àquela que resultaria das regras
decorrentes do concurso de crimes (concurso entre o crime fundamental e o crime de
homicídio ou ofensas corporais graves negligentes, cfr. os arts. 137.º e 148.º-3)”. ( 1) Sendo
protegidos no crime de condução perigosa, além da segurança das comunicações, os bens
jurídicos individuais vida e integridade física, postos em perigo pela conduta do agente,
ainda que estes reflexamente, se ocorrer uma lesão destes últimos como resultado daquela
conduta, os referidos bens jurídicos de natureza pessoal passam a ser protegidos não só
pelas disposições combinadas dos artigos. 291.º, 294.º e 285.º, mas também, de forma
genérica, pelos crimes dos artigos. 137.º e 148. E quando tal acontece, as disposições
penais encontram-se numa relação de consunção – uma, a de protecção mais ampla [lex
consumens] consome a protecção que a outra [lex consunta] já visa e que deixa de ser
aplicada sob pena de clara violação do princípio ne bis in idem. (2)
Sendo assim, continua o acórdão, "tendo em conta o teor do art. 291.º, complementado
pelos artigos. 285.º e 294.º, pode afirmar-se que o dano na vida ou na integridade física
consome o perigo. O tipo do art. 137.º acaba por ter, também nas situações de negligência
grosseira, um campo de aplicação mais lato do que o crime do art. 291.º agravado pelo
resultado. O que permite inferir que se ocorrer a morte de terceiro em consequência da
violação grosseira de outras regras de circulação rodoviária, o agente não comete este
crime, obtendo-se a sua punição pela norma mais geral do art. 137.º, n.º 2.
Daqui resulta que, tendo o legislador considerado apenas a prática de certas manobras
como devendo levar à punição do condutor pelo perigo que causam na circulação
rodoviária e tendo querido punir especialmente as situações em que, em resultado da morte
de terceiro, o perigo se transformou em dano, seria de esperar que viesse a prever uma
punição mais severa do que a que se encontra estabelecida para o homicídio por
negligência, mesmo quando agravado por negligência grosseira. Contudo, provavelmente
devido ao uso de um critério de agravação por remissão indirecta, acabou por vir a
estabelecer uma moldura penal inferior àquela pela qual o homicídio negligente é punível
pelo art. 137.º, n.º 2. (3)
1
A citação é de Damião da Cunha, Comentário, II, anotação ao art. 284.º, pág. 1034.
2
Advertia Eduardo Correia que, nestes casos, “a eficácia da consunção não só está dependente da
circunstância de efectivamente concorrerem dois preceitos cujos bens jurídicos se encontrem numa relação
de mais para menos, mas ainda de que, no caso concreto, a protecção visada por um seja esgotada,
consumida pelo outro, coisa que nem sempre acontece”. Por isso, comparando-a com a situação de
especialidade, sustentava que “enquanto a especialidade se pode afirmar em abstracto, só em concreto se
pode afirmar a consunção dum pelo outro” (A Teoria do Concurso em Direito Criminal – Unidade e
Pluralidade de Infracções, págs. 131-132).
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A propósito de situações como a referida, considerava Eduardo Correia (citando Binding), que “casos
há ... em que a lei descreve um tipo de crime que só se distingue doutro por uma circunstância tal que
apenas se pode admitir tê-la querido o legislador como circunstância qualificativa agravante – verificando-
se todavia, que a pena para ele cominada é inferior à do crime fundamental”. Para estes casos, designados
de “consunção impura”, bem como nas situações em que “dois tipos de crime se comportam entre si, na
protecção de bens jurídicos, como dois círculos que coincidem na sua parte mais importante e valiosa”, é
aplicável o tipo fundamental, não se devendo considerar cumulativamente realizado o tipo correspondente
ao crime especial, pois, “entre deixar de considerar uma circunstância só qualificativa e violar
profundamente o princípio ne bis in idem sofrerá muito menos o direito com a primeira solução” – Direito
Criminal, II, pág. 207.
M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 31º (crimes de dano /crimes de perigo), Porto, 2008.
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1
Cf. tanto Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. I, pág. 114, como Eduardo
Correia, A Teoria do Concurso, pág. 139.
2
Pinto de Albuquerque, Jornadas, p. 279.
M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 31º (crimes de dano /crimes de perigo), Porto, 2008.
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Caso nº 5 A seguia conduzindo o seu potente BMW pela via pública e a dada altura transpôs a linha
longitudinal contínua do eixo da via, quando descrevia uma curva para a esquerda, atento o
seu sentido de marcha, pondo comprovadamente em perigo a vida de B, C e D, que
transitavam pelo passeio ao lado.
Quantos crimes do artigo 291º, nºs 1, alínea b) e 4, cometeu A? Um ou três?
No Código, como já vimos, boa parte dos crimes de perigo comum [e dos crimes contra a
segurança das comunicações] incluem a criação de um perigo entre os seus elementos
típicos, pressupondo o perigo para uma pessoa, enquanto “representante da comunidade”,
“o que significa que, independentemente do número de vítimas, existe apenas um crime
(que preclude toda a consideração do “real” número de vítimas). “Haverá um só crime do
artigo 291º, nº 1, se o desvalor do evento próprio do crime de condução perigosa como
resultado de perigo se mostrar individualizado numa vítima, ou mesmo num conjunto
delas, ou num bem”. (1)
1
Assim, José Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, p. 481, onde se nota que a dimensão “processual”
da configuração destes tipos legais que “contêm elementos “exoneradores” do âmbito de relevância da
prova no que toca a “resultados” — e no que toca à imputação de todo um conjunto de resultados”.
M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 31º (crimes de dano /crimes de perigo), Porto, 2008.