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Criminalidade Patrimonial

e das Empresas
Questões de Direito Penal e de
Direito Proc. Penal I
Mestrado em Direito e em Criminologia
André Lamas Leite
Ano lectivo de 2022/23

1
Programa

2
I) Noção de património, propriedade e direitos patrimoniais para efeitos jurídico-penais

II) Os crimes contra a propriedade e contra o património:


1. Os furtos
2. Roubo
3. As burlas
4. Extorsão e infidelidade

III) Os crimes contra direitos patrimoniais:


1. Os delitos insolvenciais
2. Receptação e auxílio material

IV) Os crimes contra o sector público ou cooperativo agravados pela qualidade do agente

V) O crime de branqueamento

VI) Os delitos fiscais:


1. Fraude e abuso de confiança fiscais
2. Fraude e abuso de confiança contra a segurança social

3
Bibliografia básica

4
• Albuquerque, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal, 4.ª
ed, 2021
• ___ e José Branco, Comentário das Leis Extravagantes,
2010/11
• Cunha, José Damião da, Direito Penal Patrimonial, 2017
• Dias, Jorge de Figueiredo, Comentário Conimbricense do
Código Penal, t. II, 1999
• Garcia, Miguez e Rio, Castela, Código Penal: Parte Geral e
Especial com notas e comentários, 3.ª ed., 2018
5
Noção de património, propriedade e direitos
patrimoniais para efeitos jurídico-penais

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• Crimes contra a propriedade: lesão do direito de propriedade
e outros direitos absolutos, em regra configurados como no
Direito Civil (Stratenwerth et al.); são crimes de agressão,
praticados sem ou contra a vontade do titular do bem jurídico;
art. 62.º, n.º 1, da CRP

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• Discussão na Alemanha:
• Teoria da substância da coisa – Substanztheorie – a coisa em si
pode até não ter qualquer valor económico; apropria-se a
coisa em si, conceito que é desconhecido para o Direito Civil
• Teoria do valor material da coisa – Sachwerttheorie – exige-se
um efectivo valor económico e um verdadeiro prejuízo
patrimonial; o objecto de apropriação é o valor económico da
coisa

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• Teoria mista ou económico-jurídica de património: bens
susceptíveis de avaliação pecuniária, desde que juridicamente
tutelados ou, pelo menos, que não sejam juridicamente
desaprovados (Almeida Costa; concordante, Damião da Cunha)
• Exs. destes últimos: produtos estupefacientes; bens
economicamente legítimos, mas cuja fonte de aquisição pode
ser ilegítima

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Os crimes de furto
O furto simples

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Art. 202.º (Definições legais)
Para efeito do disposto nos artigos seguintes considera-se:
a) Valor elevado: aquele que exceder 50 unidades de conta (5.100 €) avaliadas no momento da prática
do facto;
b) Valor consideravelmente elevado: aquele que exceder 200 unidades de conta (20.400 €) avaliadas no
momento da prática do facto;
c) Valor diminuto: aquele que não exceder uma unidade de conta (102 €) avaliada no momento da
prática do facto;
d) Arrombamento: o rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de dispositivo destinado
a fechar ou impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou de lugar fechado dela dependente;
e) Escalamento: a introdução em casa ou em lugar fechado dela dependente, por local não destinado
normalmente à entrada, nomeadamente por telhados, portas de terraços ou de varandas, janelas,
paredes, aberturas subterrâneas ou por qualquer dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada
ou passagem;
f) Chaves falsas:
I) As imitadas, contrafeitas ou alteradas;
II) As verdadeiras quando, fortuita ou subrepticiamente, estiverem fora do poder de quem tiver o
direito de as usar; e
III) As gazuas ou quaisquer instrumentos que possam servir para abrir fechaduras ou outros dispositivos
de segurança;
g) Marco: qualquer construção, plantação, valado, tapume ou outro sinal destinado a estabelecer os
limites entre diferentes propriedades, postos por decisão judicial ou com o acordo de quem esteja
legitimamente autorizado para o dar.
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• Unidade de conta (UC) = 102 €
• Art. 5.º do DL n.º 34/2008 (Reg. das Custas
Processuais)
• Lei n.º 99/2021, de 31, de 31/12:
• Artigo 9.º (Valor das custas processuais)
Mantém-se em 2022 a suspensão da actualização
automática da unidade de conta processual prevista
no n.º 2 do artigo 5.º do Regulamento das Custas
Processuais, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º
34/2008, de 26/2, mantendo-se em vigor o valor
das custas vigente em 2021.
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• Lei n.º 12/2022, de 27/6 (OE para 2022):
• Artigo 174.º (Valor das custas processuais)
• Em 2022, mantém-se a suspensão da
actualização automática da unidade de conta
processual prevista no n.º 2 do artigo 5.º do
Regulamento das Custas Processuais,
aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º
34/2008, de 26 de fevereiro, mantendo-se em
vigor o valor das custas vigente em 2020.
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• Estatuto do animal: Lei n.º 8/2017, de 3/3
• “Seres vivos dotados de sensibilidade”

• Protecção penal nos artigos 387.º a 389.º


• Tipos legais de delito:
– Morte e maus tratos de animal de companhia
– Abandono de animais de companhia

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• Ac. do TC n.º 867/2021, de 10/11:
• Pelo exposto, decide-se: a) Julgar inconstitucional a norma
incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal, na
redacção introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29/8, por
violação, conjugadamente, dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da
Constituição (…)

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• Art. 201.º-B do CC: Os animais são seres vivos dotados de
sensibilidade e objecto de protecção jurídica em virtude da sua
natureza.
• Art. 201.º-C do CC: A protecção jurídica dos animais opera por
via das disposições do presente Código e de legislação especial.
• Art. 201.º-D do CC: Na ausência de lei especial, são aplicáveis
subsidiariamente aos animais as disposições relativas às
coisas, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza.

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• Art. 204.º, n.º 4: não há lugar à qualificação se a coisa ou o animal
furtados forem de diminuto valor
• Verdadeiro “contratipo” (Damião da Cunha)
• Cf. ainda o art. 207.º
• No abuso de confiança não existe este “contratipo”: a coisa móvel
pode ter valor inferior a 1 UC e mesmo assim há preenchimento
do art. 205.º, n.º 1
• Damião da Cunha critica a sua inexistência no n.º 5, do art. 205.º,
em função de situação paralela no peculato (art. 375.º, n.º 2).
Defende uma aplicação extensiva. Será?

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Art. 203.º (Furto simples)

1 - Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para


outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido
com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3 - O procedimento criminal depende de queixa.

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§ 242 do StGB (Diebstahl)

1 – Quem subtrair coisa móvel que pertença a outra pessoa, com


ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, é
punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.

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Considerações iniciais e bem jurídico
• Bem jurídico protegido: propriedade; “disponibilidade da fruição
das utilidades da coisa com o mínimo de representação jurídica”
• Não se exige que a coisa tenha efectivo valor patrimonial (de
mercado), podendo ter um simples valor sentimental – programa
de tutela ampla do legislador no furto; apesar do art. 202.º, visto
como mera norma operativa na destrinça entre o tipo matricial e os
tipos qualificados
• Crime semi-público
• Punibilidade da tentativa: art. 23.º, n.º 1, do CP – criticável;
resquícios de visão patrimonialista do CP
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Tipos de tipicidade
• Agente: crime comum

• Conduta: crime material ou de resultado e crime de execução


livre ou não vinculada

• Bem jurídico: crime de dano

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Tipos de tipicidade
• “Ladrão que rouba ladrão”:
• Pinto de Albuquerque: atipicidade da conduta posterior
• A. Costa e D. Cunha: protecção penal
• Nós: tendemos a concordar com A. Costa e D. Cunha, se e na
medida – como é óbvio – que se apure que aquele que se
apresenta como ofendido (art. 68.º do CPP) não é
efectivamente titular juridicamente lícito da coisa móvel em
causa; na prática, poderá haver condenação de um furto
relativo a uma coisa que previamente havia sido já furtada
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Tipo objectivo
• Coisa móvel: norma penal em branco –
remissão para o Direito das Coisas?

• Art. 202.º do CC:


1. Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de
relações jurídicas. 2. Consideram-se, porém, fora do
comércio todas as coisas que não podem ser objecto
de direitos privados, tais como as que se encontram
no domínio público e as que são, por sua natureza,
insusceptíveis de apropriação individual.
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Tipo objectivo
• Art. 203.º do CC (Classificação das coisas)
As coisas são imóveis ou móveis, simples ou compostas, fungíveis ou não
fungíveis, consumíveis ou não consumíveis, divisíveis ou indivisíveis, principais
ou acessórias, presentes ou futuras.
• Art. 212.º do CC (Frutos)
1. Diz-se fruto de uma coisa tudo o que ela produz periodicamente, sem
prejuízo da sua substância.
2. Os frutos são naturais ou civis; dizem-se naturais os que provêm
directamente da coisa, e civis as rendas ou interesses que a coisa produz em
consequência de uma relação jurídica.
3. Consideram-se frutos das universalidades de animais as crias não
destinadas à substituição das cabeças que por qualquer causa vierem a faltar,
os despojos, e todos os proventos auferidos, ainda que a título eventual.

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Tipo objectivo
• Mas não só: especificidade de coisa em sentido
jurídico-penal – o que o comum das pessoas
entende por “coisa”
• O conceito jurídico-civil é um mero ponto de
partida; valor heurístico
• Especificidade do conceito quando entra nos
quadros da discursividade penal (adaptação do
que está na base de um certo entendimento do
conceito social de acção de Schmidt, 1932)
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Tipo objectivo
• Exemplo concreto: o furto de energia eléctrica
• Analogia proibida ou interpretação (extensiva)?
• Art. 1302.º do CC: Só as coisas corpóreas, móveis
ou imóveis, podem ser objecto do direito de
propriedade (…)
• A solução portuguesa e a germânica (§ 248c do
StGB) ou suíça
• Jurisprudência nacional sobre furto de sinal de TV
por cabo: ac. do TRL de 10/10/2001; em sentido
contrário, da mesma Relação, de 10/12/2008
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Tipo objectivo
• Partes destacadas, autónomas e individualizáveis:
regra – podem ser objecto de furto (ex. sangue,
próteses não implantadas)

• Excepção: esperma e óvulos – extensão da


pessoa; coisas fora do comércio (ex. cadáver) –
Faria Costa e Teresa Quintela; contra, Pinto de
Albuquerque. Razão assiste a P. de Albuquerque

• Qualquer tipo de informação: não – Lei do


Cibercrime
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Tipo objectivo
• Fora do conceito de coisa em sentido
juspenalístico:
– Direitos de crédito (outros tipos que os tutelam, p. ex.
infidelidade ou crimes insolvenciais), hipotecários,
direitos de autor
– Res nullius
– Expectativas juridicamente relevantes e com valor
comercial
– Líquidos e gases se não contidos em recipientes (M.
Garcia/C. Rio e P. de Albuquerque, pois não releva o
estado físico em que a coisa se encontra)

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Tipo objectivo
• Passível de furto: água da rede pública, mas já
não aquela que não foi desligada do solo, por
se tratar de coisa imóvel – pode configurar o
crime de usurpação de coisa imóvel, desde
que praticado com violência ou ameaça grave
contra as pessoas (ac. do TRG de 25/6/2019)
• Mas o desvio de água para uma escola de
condução, usando materiais adequados para o
efeito já é furto (ac. do TRG de 21/9/2005)
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Tipo objectivo
• Coisa móvel para efeitos penais: “toda a coisa
(corpórea ou incorpórea) que tem existência
física autónoma quantificável e pode ser
fruída ou utilizada por uma pessoa” (P. de
Albuquerque, 4.ª ed., p. 859)

• Inclui energia eléctrica e ondas hertezianas

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Tipo objectivo
• Em casos de contitularidade, propriedade de mão
comum (ex. património conjugal) ou de titularidade a
uma quota-ideal (ex. herança), há furto em relação à
parte já autonomizada que não é detida pelo agente,
ou cuja titularidade ainda não está determinada;
contra, P. de Albuquerque, defendendo que só há furto
quanto à quota não detida – dúvidas
• Não basta o simples conceito juscivilístico de
“propriedade”, mas também se abrange a
detenção/posse: quem estiver na disponibilidade
fáctica da coisa, podendo usar (ainda que o não faça)
de todas as utilidades da mesma derivadas; relevo dos
apelidados “direitos reais menores”
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Jurisprudência relevante: união de facto
• Ac. do TRP de 10/3/2021: I - De acordo com o disposto no art. 1.º, n.º 2,
da Lei n.º 7/2001, de 11/5, que adopta medidas de protecção das uniões
de facto, «[a] união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que,
independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos
cônjuges há mais de dois anos» mas em que cada um dos elementos da
união de facto mantém a sua autonomia patrimonial e também a total e
exclusiva responsabilidade quanto às dívidas que contraiu na constância
dessa vivência. II - Havendo uma economia comum reflectida numa conta
bancária solidária, uma vez acabada a união de facto, para desfazer essa
conta será necessário determinar qual o contributo de cada um dos
elementos, designadamente os originados com os proventos do trabalho.
III - Uma conta é solidária «quando qualquer dos titulares possa
movimentar sozinho e livremente a conta, exonerando-se o banqueiro pela
entrega da totalidade do saldo a quem o pedir». (…) V – Comete o crime
de furto aquele que, tendo cessado o período de vivência em união de
facto com a companheira, na ausência de acordo em contrário e sem o
consentimento da mesma, transfere para conta exclusivamente sua o
montante existente em conta solidária de ambos proveniente do
vencimento daquela.
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Tipo objectivo
• Compropriedade (D. da Cunha): não pode
haver furto ou abuso de confiança, uma vez
que a coisa indivisível não pode ser entregue
“parcialmente” e o mesmo se diz quanto à
subtracção, pois a guarda da coisa é integral
• Críticas. Desvantagens político-criminais e
autonomia do conceito de “coisa” para efeitos
penais

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Tipo objectivo
• Coisa vendida com reserva de propriedade: se o comprador
não paga o preço, é atípico o apossamento pelo vendedor (ac.
do TRP de 22/11/2000)
• Se o comprador se apropriar, inverte o título e existe abuso de
confiança
• O mesmo quanto a comodatários ou usufrutuários (logo no
seio da Comissão Revisora, Eduardo Correia)

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Jurisprudência relevante
• Ac. do TRP de 26/11/2008:
• O conceito de “coisa” para o Direito Penal desliga-se do seu
valor comercial/económico, abrangendo também o “valor
sentimental”
• Sem prejuízo da desclassificação do furto qualificado, restando
sempre o simples
• Não há cláusula de “adequação social” no furto [Faria Costa
entende o “valor venal” como elemento implícito do tipo]

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Conceito de “coisa” na jurisprudência
• Ac. do TRP de 26/10/2016: I – O significado de coisa móvel
que consta na descrição do crime de furto não pode ser
equiparado em termos absolutos ao conceito de coisa
móvel do Direito Civil. II – A água que corre nas
canalizações de abastecimento publico é um bem de valor
económico, controlável e quantificável, com autonomia em
relação ao seu meio de origem que, para efeitos penais, se
integra no conceito de bem móvel. III – Coisa alheia, para
efeitos penais é aquela que esteja ligada por uma relação
de interesse juridicamente tutelado a uma pessoa diferente
daquela que pratica a infracção. IV – Os bens dominiais
devem considerar-se alheios para efeitos penais, dado que
o seu uso e fruição comum não incluem o direito de os
subtrair a quem tem o domínio da sua exploração
económica para uso próprio e exclusivo.
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Conceito de “coisa” na jurisprudência
• Ac. do TRL de 17/12/2008: V. O estabelecimento de uma ligação
não autorizada à infraestrutura de rede da «TV Cabo», que permite
a fruição de um serviço não contratualizado e, por isso, não pago e
causa um prejuízo patrimonial àquela empresa, não consubstancia
a prática de um crime de furto, porquanto o sinal de televisão
recebido por cabo não é uma coisa, no sentido em que este
conceito é utilizado no art. 203.º do CP, não sendo o sinal
equiparável a qualquer forma de energia. VI. Esses mesmos factos
também não integram o tipo descrito no n.º 2 do artigo 221.º do CP
(burla nas comunicações) uma vez que a ligação efectuada não se
destina a «diminuir, alterar ou impedir, total ou parcialmente, o
normal funcionamento ou exploração de serviços de
telecomunicações», nem tem sequer esse efeito. VII. Um tal
comportamento consubstancia apenas a contra-ordenação prevista
e punida nos artigos 104.º, n.º 1, al. d), e 113.º, n.ºs 1, al. sss), e 3,
da Lei n.º 5/2004, de 10/2, na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º
176/2007, de 8/5.
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Tipo objectivo
• Ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa
• Não há apropriação se o agente for titular do direito de
propriedade
• Kindhäuser: “vontade de deter a posição de proprietário sem
reconhecimento jurídico”
• Coisas perdidas, esquecidas… – art. 209.º
• Evidente ausência de punição da negligência
• Punibilidade do comportamento omissivo: os possíveis deveres de
garante (art. 10.º, n.º 2)

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Tipo objectivo
• Abuso de confiança: crime de apropriação sem subtracção
• Furto: crime de subtracção com intenção de apropriação
• Furto: não é crime de resultado parcial ou cortado – o
elemento subjectivo especial tem de existir no momento da
consumação, sob pena de punição impossível da negligência
• Ao invés, Paulo P. de Albuquerque
• Pode haver imediato consumo da coisa furtada

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Tipo objectivo
• Subtracção: eliminação do domínio de facto que outrem detinha
sobre a coisa
• Não basta a privação da coisa do sujeito passivo, mas que o agente
tenha adquirido um pleno e autónomo domínio sobre a coisa, com
um mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa
• Consumação:
– Contrectatio: tocar
– Ablatio: transferência para fora da esfera do domínio (entendimento
jurisprudencial dominante)
– Illatio: conservação em lugar seguro (Eduardo Correia e alguma
jurisprudência)

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Tipo objectivo
• Sua importância:
– Distinção entre consumação e tentativa (artigos 22.º e
23.º)
– Exercício do tipo justificador da legítima defesa (art.
32.º)

• Desistência da tentativa e arrependimento activo


(artigos 24.º e 25.º)

• Inexistência de qualquer comunicabilidade das


circunstâncias (art. 28.º)
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“Subtracção” na jurisprudência
• Ac. do TRE de 17/3/2015: I. A «subtracção» (elemento fundamental no furto)
não é uma «apropriação» (o exercício dos poderes que formam o conteúdo do
direito de propriedade), mas tão só a perda dos poderes de facto do detentor
originário e a constituição de uma nova detenção por parte do agente do
crime. II. A investidura nessa situação de nova detenção (por parte do agente
do crime) dever-se-á considerar realizada quando o agente passa a controlar,
de facto, a coisa, passa a tê-la sob o seu domínio, em exclusividade, o que
pressupõe que a coisa foi retirada do poder de facto do anterior detentor, que
sobre ela deixou de ter a possibilidade de controlo. III. O arguido, ao colocar os
objectos de cobre no interior de um carro de mão e ao transportá-los para o
laranjal contíguo ao empreendimento turístico do qual foram removidos,
retirou os mesmos da esfera patrimonial da sua proprietária, tendo eles
entrado na esfera patrimonial do arguido, pelo que este incorreu na prática de
um crime de furto na forma consumada (e não na forma tentada), sendo
irrelevante a circunstância de, pouco depois, o arguido ter sido surpreendido
por agentes de autoridade.
42
Tipo objectivo
• Outra orientação jurisprudencial: ex. ac. do STJ de
16/1/2002: existência de um mínimo de tempo que
permita dizer que um efectivo domínio de facto sobre a
coisa é levado a cabo pelo agente, mas sem que se
exija que tal ocorra “em pleno sossego ou em estado
de tranquilidade”
• P. de Albuquerque: “teoria ampla da ablatio”
• Nossa posição (concordante com M. Garcia/C. Rio e,
segundo cremos, de D. da Cunha): importância das
representações colectivas no pertinente círculo da vida
social; exige-se que o agente passe (ultrapasse) o
círculo de poder do anterior
proprietário/detentor/possuidor
43
Tipo objectivo
• Pode ser acompanhada de processos astuciosos e mesmo
assim existe apenas furto e não qualquer tipo de concurso de
crimes (nomeadamente a burla)

• Ex. troca de etiquetas em produtos de supermercado

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“Consumação” na jurisprudência
• Ac. do TRL de 12/5/2015 : 1. Por ser um crime de consumação
instantânea, para que o crime de furto esteja consumado, basta a
sua mera consumação formal, não sendo necessário verificar-se o
exaurimento total do plano do agente, não dependendo da duração
de qualquer tempo imprescindível para que se verifique a
consumação. 2. Uma coisa é o apossamento/tomada da posse de
coisa alheia, tomando-a como sua, assumindo-se como dono. Outra
a (eventual, necessariamente posterior) recuperação. De um lado a
assunção da posse, uti domino. Do outro a destituição dessa
posse/restituição do objecto, por efeito da descoberta, a posteriori,
do crime. 3. O crime ficará consumado com a tomada da posse de
coisa alheia pré-intencionada à apropriação, uti domino, sem
qualquer título de transmissão do direito.

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“Consumação” na jurisprudência
• 4. In casu, o crime de furto atingiu a sua perfeição quando o
recorrente logrou colocar o motor em funcionamento, por ser o
momento em que adquire total controlo e domínio sobre o veículo,
que lhe permitiu, após efectuar ligação directa, a recolha das
patolas do pesado de mercadorias e a sua deslocação do local onde
estava estacionado, sendo irrelevante se este logrou ou não
concretizar o plano que delineou, uma vez que, como referido supra,
este é um crime de consumação instantânea, não sendo, por isso, de
exigir (…) a posse pacífica da coisa, o que se traduziria, in casu, no
sentido interpretado pelo mesmo, na fuga bem-sucedida deste. 5. A
deslocação do veículo durante 7 metros do local onde se encontrava
estacionado, com o motor em funcionamento, demonstra a plena
assumpção pelo arguido do veículo como coisa sua.

46
“Consumação” na jurisprudência
• Ac. do TRP de 7/12/2018: II - A consumação do
crime de furto basta-se com a transferência da
disponibilidade da coisa do seu titular para o
agente e que este a detenha de forma
relativamente pacífica ou estável, que não em total
segurança. III - Assim sendo, o momento que marca
essa estabilidade nos espaços comerciais é o lugar
do pagamento nas respectivas caixas,
independentemente de estas constituírem, ou não,
o único local previamente determinado para a
saída do estabelecimento.
47
“Consumação” na jurisprudência
• Ac. do TRP de 4/2/2009: Há consumação do furto se o agente se
introduziu na casa de residência do ofendido e aí se foi apoderando de
objectos, guardando-os numa bolsa, e, depois de se aperceber que, no
exterior, o seu comparticipante fora interceptado por agentes policiais,
escondeu os objectos de que se apoderara debaixo de um colchão, num
quarto da casa, abandonando esta.
• Ac. do TRP de 16/5/2012: I. O crime de furto consuma-se quando a
coisa sai da esfera de domínio do seu dono e o agente adquire um
mínimo de estabilidade no domínio de facto correspondente ao seu
apossamento – uma estabilidade que lhe assegure a possibilidade
plausível, ainda que não absoluta, de fruição e disposição da coisa
subtraída. II. Comete, por isso, o crime de furto na forma tentada
aquele que retira um produto da prateleira de um supermercado, que
oculta com a intenção de o fazer seu sem o pagar, mas que, antes de
passar e se afastar da linha das caixas, é surpreendido e descoberto.
48
“Consumação” na jurisprudência
• Ac. do TRC de 27/11/2007: 1. O furto é um crime de
consumação instantânea. Torna-se perfeito logo que a coisa
entra na esfera patrimonial do agente, ficando à sua
disposição ou seja, logo que o agente passa a controlá-la,
passa a tê-la sob o seu domínio, não se exigindo que este
domínio se exerça com sossego e tranquilidade. 2. Tendo o
arguido já retirado do interior da casa de habitação e
colocado num terreno distante cerca de 50 metros, e para
depois os transportar para o veículo onde se encontrava a
arguida, um número considerável de objectos pertencentes ao
ofendido, quando foi avistado e abordado pelos militares da
GNR, é inquestionável que o arguido já controlava de facto as
coisas, já as tinha sob o seu domínio durante um mínimo de
tempo e de estabilidade pelo que se deve entender que o furto
se consumou.

49
“Consumação” na jurisprudência
• Ac. do TRE de 10/12/2013: I. Tendo-se provado que o arguido, ao seguir na viatura
do ofendido, aproveitou-se da atenção que este prestava à condução para lhe
subtrair a carteira, aí colocada, incorreu na prática de um crime qualificado nos
termos combinados dos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, al´. b) do CP. II. Houve
clara intenção do legislador em equiparar o furto de coisa móvel que se encontre
numa relação de transporte com o veículo com aquela, que, simplesmente, aí foi
colocada ou deixada, em razão da especial censurabilidade que se prende com o
aproveitar do contexto específico que facilita a prática delituosa, em concreto, a
concentração do condutor direccionada para a condução do veículo, ficando assim
fragilizado e indefeso em relação às agressões que o seu património possa desse
modo ser alvo. III. É irrelevante, para o efeito, que a entrada no veículo seja, ou
não, legítima.
• Ac. do TRG de 17/3/2014: I. Para a consumação do crime de furto não é
necessário que o agente detenha a coisa de forma pacífica e segura, mas exige-se
um mínimo plausível de fruição das suas utilidades. II. Há mera tentativa de crime
de furto quando o arguido foi surpreendido pelas autoridades policiais, que o
encontraram escondido debaixo dum balcão de atendimento ao público, após ter
retirado de uma das gavetas desse balcão um envelope com a quantia de € 485,00,
que colocou nas cuecas.

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Tipo subjectivo
• Elemento subjectivo especial (Absichtdelikt)
• Dolo do tipo (art. 14.º):
– Elemento intelectual
– Elemento volitivo (dolo directo, necessário ou eventual)
• Hipóteses de erro:
– Sobre a factualidade típica (art. 16.º, n.º 1)
– Sobre a existência de um tipo justificador (art. 16.º, n.º 2)
– Casos especiais de erro sobre a factualidade típica (sobre o processo causal, sobre o
objecto, na execução)
– Impossibilidade de configurar erro sobre as proibições (art. 16.º, n.º 1, 2.ª parte)
– Sobre o preenchimento e sentido de um tipo justificador (artigos 16.º e 17.º)
– Praticamente impossível configurar um erro sobre a ilicitude do art. 17.º

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Culpa

• Nos termos gerais

• Elementos:
– Ausência de inimputabilidade
– Ausência de inexigibilidade
– Consciência da ilicitude (elemento emocional do dolo)

52
Pena
• Prisão de 1 mês (art. 41.º, n.º 1) a 3 anos ou

• Multa de 10 dias a 360 dias (art. 47.º, n.º 1)

• Sistema da multa alternativa e suas vantagens

• Concurso aparente na modalidade de especialidade com o tipo


qualificado

53
Concurso
• Furto de uma coisa titulada por várias pessoas – um só crime
• Furto de várias coisas tituladas por vários sujeitos – concurso
efectivo (art. 30.º, n.º 1, do CP)
• Furto e falsificação de documento – concurso efectivo:
apropriação de cheque e seu preenchimento
• Furto seguido de destruição
– P. de Albuquerque – concurso aparente (consunção): facto
concomitante não punido
– Nós – concurso efectivo

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Concurso
• Ac. do TRP de 23/10/2002: Dando-se como provado que um arguido, após ter
rasgado com um instrumento cortante o toldo da caixa de carga de um veículo,
penetrou no seu interior de onde retirou, levando consigo, "coisas" no valor de
13.350$00 e provocou estragos no dito toldo no valor de 30.000$00, tal situação
configura um concurso real de crimes de dano e de furto e não um concurso
aparente em que apenas é punido o furto (simples). Isto porque a previsão típica do
furto não contém, nem compreende, directa ou indirectamente, a do dano, antes
conservando ambas as respectivas normas incriminatórias a respectiva autonomia
punitiva, a isso não devendo opor-se a circunstância de o crime de dano constituir
ou servir de meio de execução do crime de furto, porquanto a conduta que lhe está
subjacente, dirigida a coisa distinta da furtada, não se insere no âmbito de
protecção conferido pela previsão típica deste último. Só não seria correcto punir
autonomamente o dano provocado com o rasgão do toldo se tal facto tivesse
servido para "qualificar" o furto.

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Crime continuado
• Ac. do TRL de 13/8/2018: Para haver condenação por crime cometido na forma continuada
é condição sine qua non verificar-se a ocorrência de uma situação externa ao agente, donde
resulte uma sensível diminuição da sua culpa. Uma vez apurado - que o agente utilizando o
mesmo “modus operandi” e num curto espaço temporal, isto é em dois dias consecutivos de
Setembro de 2016, se dirigiu ao posto de abastecimento de combustíveis da GALP na Cruz
Quebrada e aí se apoderou e fez suas, várias embalagens de óleo, estamos perante um
quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que facilitou o reiteração da sua
actuação ilícita - essas duas sucessivas apropriações das embalagens de óleo, foram
facilitadas pela circunstância de ter conseguido passar com aqueles artigos pelas caixas do
supra referido estabelecimento da GALP sem ser detectado pelo funcionário ou por qualquer
sistema electrónico (vulgo apito de alarme), propiciando-lhe essa ausência de fiscalização
que experimentou aquando da primeira subtracção, uma falsa sensação de impunidade que
o incentivou a reiterar a sua conduta ilícita e a regressar ao mesmo local uma outra vez.

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Direito de queixa
• Ac. do TRL de 11/9/2018: I - Estando em causa um crime de
furto simples, sendo crime semi-público, o respectivo
procedimento criminal depende de queixa. II – Sendo o objecto
do furto bens de uma herança indivisa, a queixa de que
depende o procedimento criminal há-de ser apresentada por
todos os herdeiros.

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Direito de queixa
• Ac. do TRC de 8/9/2021: Relativamente a bens que
integram a herança aberta por óbito do seu marido e da
qual ela é herdeira não é juridicamente sustentável
imputar à arguida a prática de um crime de furto.

58
Direito de queixa
• Ac. do TRP de 28/2/2001: Relativamente ao crime de furto
simples previsto e punido pelo art. 203.º, n.º 1, do CP, que só
pode ser perseguido mediante prévia queixa, também é
ofendido e titular do interesse que a lei quis especialmente
proteger aquele que, não sendo o dono da coisa móvel
subtraída, tem sobre esta a disponibilidade de fruição das
respectivas utilidades. Assim, o legítimo possuidor da coisa,
que lhe havia sido emprestada pelo seu proprietário, tem
legitimidade para exercer o direito de queixa.
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Direito de queixa
• Ac. do TRL de 10/2/2022: Tendo sido apresentada queixa válida,
ainda que ineficaz por parte de um funcionário da ofendida/pessoa
colectiva, a ratificação, posteriormente apresentada pela mesma,
nomeadamente após o decurso do prazo legal para a sua
apresentação contido no art. 115.º, n.º 1, do CP, opera
retroactivamente conferindo desse modo eficácia à queixa
inicialmente apresentada, pelo que o MP tinha efectiva
legitimidade deduzir acusação nos autos, uma vez que existia
queixa válida e oportunamente ratificada pelo legítimo titular do
direito de queixa.
• No mesmo sentido, o ac. do TRG de 10/1/2022

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