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12/02/2021 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça


Processo: 03B535
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: CONSTRUÇÃO DE OBRAS
EDIFICAÇÃO URBANA
LICENCIAMENTO DE OBRAS
DIREITO SUBJECTIVO
DIREITO ABSOLUTO
DIREITO REAL
DIREITO DE PROPRIEDADE
DIREITO DE PERSONALIDADE
ILICITUDE
FACTO ILÍCITO
CAUSAS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE
ÓNUS DA PROVA
DANOS MORAIS
DANOS PATRIMONIAIS
Nº do Documento: SJ200305150005352
Data do Acordão: 15-05-2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 479/02
Data: 02-10-2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I - O artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil tipifica a ilicitude do facto constitutivo de responsabilidade
civil extracontratual em duas modalidades, podendo a mesma traduzir-se na violação do direito de
outrem, isto é, na violação de um direito subjectivo - maxime, de um direito absoluto, tal como o
direito de propriedade -, ou na violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses
alheios, distinção que apenas se compreende no pressuposto de que nem todo o interesse
juridicamente protegido de uma pessoa constitui um «direito subjectivo».

II - Para que se considere, no entanto, objectivamente preenchido o tipo legal e o seu autor incurso
em ilícito na segunda das modalidades apontadas, não basta a violação de uma «norma de
protecção» no sentido do preceito. Torna-se ademais mister atender ao «concreto escopo de
protecção da norma», implicando na especialidade a verificação de três requisitos fundamentais:
que o lesado pertença ao seu domínio subjectivo de aplicação, incluindo-se no círculo de pessoas
que a norma abstractamente visa proteger; que tenha sido em concreto ofendido o interesse tutelado
mediante a lei de protecção; que se mostre concretizado o perigo a esconjurar mercê da mesma lei.

III - Quanto à primeira modalidade, enquanto na vigência do artigo 2361.º do Código Civil de 1867
a violação do direito subjectivo esgotava o domínio da ilicitude, o n.º1 do artigo 483.º do Código
actual ampliou a antijuridicidade da conduta à violação de interesses não qualificáveis como
direitos subjectivos, subsistindo em todo o caso o preceito segundo o qual a ofensa destes direitos -
nomeadamente daqueles (direitos absolutos) a que subjaz um imperativo de abstenção a todos
dirigido, consubstanciado na denominada «obrigação passiva universal» - é em princípio
antijurídica, ressalvada a existência de causas justificativas.

IV - Deve, contudo, distinguir-se entre as violações de direitos que por se inserirem «no quadro do
processo executivo externo do facto» representam uma agressão directa, e aquelas que devido à
interposição de plúrimas causas intermediárias constituem apenas um efeito remoto de determinado
comportamento. Só no primeiro caso a consequência da violação se apresenta ainda como inerente
à conduta, sem resultar da intermediação de outros factores, e só nessa hipótese o preenchimento do
tipo legal «indicia» a ilicitude, legitimando sem mais o juízo de que o agente ofendeu, v. g., o
direito de propriedade de outrem de forma objectivamente ilícita - salvo causa de justificação
relevante.

V - O facto praticado no exercício regular de um direito considera-se justificado e, em


consequência, lícito, deixando de satisfazer às exigências do artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil.

VI - Em face do artigo 342.º do Código Civil, os factos integradores dos pressupostos da


responsabilidade civil extracontratual tipicizados no n.º 1 do artigo 483.º, incluindo a ilicitude, são
constitutivos do direito de indemnização dela emergente, competindo, por conseguinte, a sua prova
ao lesado; por seu turno, os factos integradores de uma causa de justificação, eventos que infirmam
na raiz a ilicitude, obstando à eficácia constitutiva deste pressuposto do dever de indemnizar,
assumem natureza impeditiva - se não extintiva -, cabendo por consequência ao lesante a prova

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respectiva.

VII - A depreciação sofrida por um prédio mercê de ampliação de edificação erguida no prédio
vizinho, traduzindo uma diminuição do valor comercial do imóvel, afecta em especial a faculdade
de disposição, amputando o direito do proprietário numa das suas mais relevantes dimensões - a
dimensão económica.

VIII - Não constitui exercício regular de um ius edificandi, susceptível de justificar essa lesão do
direito de propriedade, a concreta actividade de execução da aludida obra de ampliação,
relativamente à qual se constatou, vistoriada pela câmara, exceder em cerca de 52% a superfície de
construção licenciada, e cuja continuação nem o embargo municipal adrede implementado logrou
paralisar.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
"A" e filhos, por aquele chamados a intervir a título principal na qualidade de herdeiros de sua
esposa B, entretanto falecida, demandaram no tribunal de Barcelos a sociedade C, com sede na
mesma cidade, pedindo a condenação desta a indemnizá-los dos danos materiais e morais
emergentes da construção de um armazém, da edificação de uma parede com 10 metros de altura e
do funcionamento ali de uma tinturaria, levados a efeito pela ré em local estreitamente adjacente ao
prédio urbano, com terreno contíguo, propriedade e residência de A e B.

Danos, em suma, resultantes da desvalorização do prédio - no montante de 30 000 contos - e dos


incómodos ocasionados pelo ruído e trepidação da tinturaria - calculados em 6 000 contos -, no
total peticionado de 36 000 000$00.

A ré contestou e, a final, a acção veio a ser julgada totalmente improcedente.

Os autores apelaram da sentença, circunscrevendo, todavia, o pedido aos danos patrimoniais e


reduzindo-o ademais, nesta vertente, para montante «não inferior à desvalorização do imóvel»,
computada na instrução, mercê de perícia, em 12 469,95 euros, equivalentes a 2 500 000$00.

O recurso obteve integral provimento, posto que a Relação de Guimarães, com fundamento, em
síntese, no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, condenou a ré a pagar aos autores esta precisa
importância.

Justamente, do acórdão adrede proferido, em 2 de Outubro de 2002, traz a ré a presente revista.

Da respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão em apreço, flui, como
adiante melhor se verá, que o objecto do recurso e as questões, por conseguinte, submetidas à nossa
apreciação se reduzem tão-somente ao problema de saber se a questionada construção erigida pela
ré merece a qualificação de acto eivado de ilicitude, no pressuposto da obrigação de indemnizar
tipificado no preceito a que vem de se aludir.
II
1. A Relação considerou assentes os factos já dados como provados na 1.ª instância - referenciando
respectivamente as alíneas da especificação e os artigos do questionário concernentes -, a saber:

«1.º Encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial a favor do autor o prédio urbano,
composto de casa com dois pavimentos, confrontação a Norte e Poente com J (...), a Sul com M (...)
e Nascente com caminho, inscrito (...) sob o art. 393.º, e que correspondia ao antigo artigo 215.º,
conforme certidão de fls. (...) sendo o referido prédio urbano composto por uma área de terreno
composta por 600 m2 - [alíneas a) e b) dos Factos Assentes].

«2.º Em Maio de 1997, a ré iniciou a construção de um armazém, tendo a ré construído no lado


nascente e junto ao muro que ladeia a casa de habitação do autor, uma parede com cerca de 10
metros de altura - [alíneas c) e d) dos Factos Assentes].

«3.º Confrontado com a referida construção, o autor encetou diligências junto das autoridades
administrativas para impedir a continuação da construção em causa, conforme documento junto a
fls. (...) e como consequência da solicitação do autor, a Câmara Municipal de Barcelos, face a uma
vistoria à obra e inspecção ao local, constatou que a ampliação a que a ré estava a proceder da sua
unidade fabril ultrapassava em 172 m2 o processo de obras aprovado, o que motivou que fosse
decretado o embargo de obra, conforme documentos de fls. 24 e 25 cujo teor se dá por
integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, sendo que, contudo, a ré continuou com a
construção, o que originou que o autor diligenciasse junto daquela instituição, para que outras
medidas fossem tomadas, conforme resulta dos documentos de fls. (...) - [alíneas e) a g) dos Factos
Assentes].

«4.º Considerando a área do terreno adjacente ao prédio referido em 1. e antes da construção

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efectuada pela ré, o prédio do autor tinha um valor de mercado de cerca de Esc. 25 000$00
(correspondentes a 124 699 euros e 47 cêntimos), sendo que com a edificação da parede de 10
metros de altura junto ao muro e no circunstancialismo descrito, o imóvel do autor sofreu uma
desvalorização comercial de Esc. 2 500 000$00 (correspondentes a 12 469 euros e 95 cêntimos) -
(resposta aos quesitos 3.º e 4.º da base instrutória).

«5.º A mulher do autor encontrava-se acamada, na altura, há cerca de 15 anos - (resposta ao quesito
10.º da base instrutória).»

2. Alicerçada, pois, na descrita factualidade, considerou a Relação procedente a apelação, com a


fundamentação jurídica que seguidamente se resume.

A «única questão a decidir», era a de saber se a conduta da ré «preenche os requisitos enunciados


no artigo 483.º» do Código Civil (1) - e, mais precisamente, como há momentos se deixou entrever,
o requisito da ilicitude -, implicando a «obrigação de indemnizar os autores pelos danos
patrimoniais decorrentes da desvalorização do seu prédio» mercê da obra de alargamento das
instalações fabris a que procedeu.

Neste sentido, o acórdão sub iudicio, explanando em breve excurso as restrições ao conteúdo do
direito de propriedade e aos direitos do proprietário prevenidas por remissão no artigo 1305.º do
Código Civil, propende num primeiro momento, com a sentença sob recurso, e em face da prova
produzida, no sentido de que a problemática construção não violava, por um lado, restrição alguma
de direito privado de entre as previstas nos artigos 1344.º e segs. - maxime a invocada com base no
artigo 1360.º, n.º 1 - nem, por outro lado, qualquer das restrições de direito público recortadas pelos
autores dos artigos 45.º, 58.º e 73.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) (2).

Numa segunda aproximação, ainda, pondera a Relação o disposto no artigo 59.º deste último
diploma (3), mas apenas para ilustrar a sensibilidade do legislador do Regulamento à «situação de
prédios fronteiros, procurando defendê-los das agressões resultantes de uma elevada altura do
prédio a construir», uma vez inexistir em derradeiro termo no processo alegação e prova de factos
conducentes «à conclusão segura de que houve violação, por parte da ré, da restrição de direito
público contida neste preceito legal».

Conclui em todo o caso o aresto que a factualidade provada denuncia «a prática, pela ré, de um acto
contra legem».

Em primeiro lugar, porque «procedeu à construção de um armazém» e esta «ampliação da sua


unidade fabril ultrapassa em 172 m2 o processo de obras aprovado», infracção que determinou a
Câmara Municipal de Barcelos a decretar o respectivo embargo.

Segundo, porque, «no circunstancialismo descrito, a edificação da dita parede de 10 metros de


altura junto ao muro do prédio dos autores, também não pode deixar de ser entendida como
contrária ao estatuído» no artigo 121.º do RGEU (4), o qual impõe «que as construções contribuam
para a ‘dignificação e valorização estética’ do conjunto em que venham a integrar-se».

Entendimento este, por seu turno, «perfeitamente contido na causa de pedir invocada pelos
autores».

«O interesse público que subjaz às referidas normas - observa a Relação de Guimarães - prende-se
«com razões de estética, já que a tendência do construtor é muitas vezes a de aproximar a sua
construção dos limites do seu terreno e de elevar a altura do seu prédio, por forma a tirar proveito
de uma maior área de construção, com prejuízo manifesto do espaço livre entre edificações e,
consequentemente, da qualidade urbana no seu conjunto».

E colocando-se neste conspecto o problema de saber se tais normas do RGEU que tutelam
interesses públicos protegem ou não, outrossim, interesses particulares, podendo o seu desrespeito
constituir os infractores em responsabilidade civil extracontratual uma vez verificados os demais
pressupostos desenhados no artigo 483.º do Código Civil, o acórdão recorrido, louvando-se numa
certa doutrina e jurisprudência, pronuncia-se em sentido afirmativo.

Assim, a obra de ampliação da unidade fabril da ré, por excesso de área e excesso de altura de uma
das suas paredes, constitui violação do artigo 121.º do RGEU e dos interesses particulares
relacionados com o prédio fronteiro, também protegidos pelo normativo.

Daí que, verificado o questionado requisito da ilicitude da construção em apreço, e havendo esta
determinado uma desvalorização comercial do imóvel dos autores computada em 2 500 000$00,
por isso se tenha constituído a ré na obrigação de indemnizar os lesados no mesmo montante
(artigos 562.º, 563.º, 565.º e 566.º, do Código Civil).

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A idêntica solução, de resto, chega a Relação ponderando subsidiariamente o exercício abusivo do
direito de propriedade por parte da ré.

Com efeito, segundo o artigo 334.º do Código Civil, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando
o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim
social ou económico desse direito».

Por outro lado - aduz a decisão em revista -, uma vez que «o Código Civil vigente consagrou a
concepção objectivista do abuso do direito, não é necessária a consciência malévola, a consciência
de se excederem, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes
ou pelo fim social ou económico de direito, bastando que se excedam os seus limites, se bem que a
intenção com que o titular do direito agiu não deixe de contribuir para a questão de saber se há ou
não abuso do direito».

Acresce - remata - que o abuso do direito «equivale à falta de direito, gerando as mesmas
consequências jurídicas que se produzem quando uma pessoa pratica um acto que não tem o direito
de praticar».

Em semelhantes pressupostos se integra, por conseguinte, a conduta da ré na edificação do


armazém, erguendo «no lado nascente e junto ao muro que ladeia a casa de habitação» dos autores
«uma parede com cerca de 10m de altura», assim procedendo a uma ampliação da sua unidade
fabril que «ultrapassa em 172m2 o processo de obras aprovado», o que determinou a Câmara a
embargá-la, e prosseguindo ainda a construção a despeito do embargo, com a consequente
desvalorização do imóvel contíguo em 2 500 000$00.

3. Contra o entendimento sustentado no acórdão sub iudicio, que vem de sumariar-se, argumenta a
recorrente ré na sua alegação, formulando as conclusões cujo sentido útil transparece das
proposições seguintes:

3.1. Fundando-se a condenação da ré na violação dos artigos 59.º e 121.º do RGEU, desde logo os
autores não alegaram como causa de pedir nem provaram quaisquer factos susceptíveis de integrar
o artigo 59.º; por outro lado, o recurso, cujo âmbito se determina pelas conclusões do recorrente,
visa reapreciar a decisão recorrida e não apreciar matéria nova, salvo a de conhecimento oficioso, o
que não era o caso; e por isso que a Relação não pudesse julgar a apelação à luz do artigo 59.º sem
ofensa, nomeadamente, do artigo 664.º do Código de Processo Civil (conclusões n.os 3 a 7,
limitando--se as conclusões n.os 1 e 2 a reproduzir factos assentes);

3.2. O mesmo se diga no tocante ao artigo 121.º, matéria nova não escorada em factos alegados
pelos autores idóneos a infringir esse normativo, cujo conhecimento pela Relação importou
igualmente desconsideração daquela norma processual.
Tanto mais que, alega a ré, competindo às entidades licenciadoras dos projectos de construção
pronunciar-se acerca da estética e enquadramento urbanístico, então, «no âmbito do artigo 121.º do
RGEU - e transcreve do sumário de acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10 de
Dezembro de 1998, identificado na conclusão 9 - o Tribunal não pode exercer um controlo
jurisdicional pleno, não podendo ir além da decisão garantística ou formal da decisão [sic]
administrativa, aferindo-se, em especial, os aspectos vinculados do acto, sem contudo ser possível
ajuizar sobre a dimensão material, não podendo o Tribunal substituir pelos seus os juízos e as
valorações empreendidas pela Administração, a menos que se alegue e demonstre a existência de
erro manifesto ou de utilização de critérios claramente desadequados ao nível da integração do
conceito indeterminado» (conclusões n.os 8 a 10);

3.3. Ora, ademais da carência dos respectivos factos integradores, também o licenciamento da obra
em causa pela Câmara de Barcelos permite concluir não ter havido qualquer violação dos artigos
59.º e 121.º do RGEU (conclusão n.º 13);

3.4. De entre os requisitos da obrigação de indemnizar, nos termos do artigo 483.º do Código Civil,
para que o facto seja ilícito é necessário, no caso dos autos, que haja violação de uma norma legal
que proteja interesses alheios, por modo que o dano se tenha registado no círculo de interesses
privados que a norma violada visa tutelar; todavia, o artigo 121.º do RGEU vai apenas dirigido à
protecção do fim de interesse público de assegurar a beleza estética dos edifícios e a sua harmonia
no quadro em que se inserem, e de modo algum à tutela, directa ou indirecta, de qualquer interesse
particular, de forma a excluir que a discutida construção constitua fonte de responsabilidade por
facto ilícito à luz do citado preceito do Código Civil (conclusões n.os 11, 12, 14 e 15);

3.5. Por último, não se configura também um abuso do direito - na acepção do seu exercício
anormal, quanto à intensidade ou à execução, em termos clamorosamente ofensivos da justiça,
ultrapassando o titular inequivocamente os limites referidos no artigo 334.º do Código Civil -, posto
que a recorrente se limitou a edificar em prédio seu, com licença de construção da Câmara
Municipal de Barcelos, ampliando instalações para acorrer ao incremento da sua actividade

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industrial sem propósito algum de criar embaraço, retaliar ou prejudicar de qualquer forma
interesses legítimos dos autores (conclusões n.os 16 a 21);

3.6. De resto, o embargo da obra não se fundamentou na edificação da controversa parede com
cerca de 10 metros de altura junto ao muro que ladeia o prédio dos autores, mas no excesso de
172m2 de construção relativamente ao projecto aprovado, sem que, ademais, transpareça do
processo se a área excessiva se localiza junto à extrema daquele prédio ou noutro qualquer lugar;
embargo, por conseguinte, fundado nos artigos 1.º e 2.º do RGEU, que visam tutelar interesses
públicos em vez de um interesse próprio ou protegido dos autores capaz de fundar o pedido de
indemnização; e excesso, aliás, posteriormente aprovado pela referida Câmara Municipal,
consoante flui da minuta de apelação dos autores - assim se interpreta -, bem como do documento
emitido pelo mesmo órgão autárquico anexo à presente alegação da ré (conclusões n.os 22 a 24);

3.7. Foram consequentemente violados, por erro de interpretação, os artigos 660.º, n.º 2, 664.º,
684.º, n.º 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, os artigos 334.º e 483.º do Código Civil e
os artigos 59.º e 121.º do RGEU (conclusão n.º 25).

III
Em conformidade com o exposto, cingindo-se o objecto da revista, como sabemos, à questão da
ilicitude da construção erigida pela recorrente, para os efeitos do artigo 483.º, n.º 1, do Código
Civil, e encontrando-se disponíveis os indispensáveis elementos de apreciação, cumpre decidir.

1. Conforme o citado normativo (5), a ilicitude do facto vem tipificada em duas modalidades,
podendo traduzir-se na violação do direito de outrem, isto é, na violação de um direito subjectivo,
ou na violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios.

No domínio dos direitos subjectivos acautelados pela norma - e dando como certo que a tutela dos
direitos de crédito defronte a formas de incumprimento imputável foi remetida para o capítulo da
responsabilidade contratual (artigos 798.º e segs.) -, contempla a primeira hipótese em especial os
direitos absolutos, com relevo para os direitos reais e os direitos de personalidade (6).

Aquela mesma classe de direitos que o preceito homólogo do § 823 do Código Civil alemão, em
contraponto ao enunciado categorial do artigo 483.º, n.º 1, discrimina na sua primeira alínea (7) -
com vantagens e inconvenientes que não cabe aqui detalhar (8) -, entre os quais, como acabou de se
ver, o direito de propriedade, de nuclear interesse no litígio que está na origem deste processo,
justificando se lhe conceda sequentemente privilegiada atenção.

Já a segunda hipótese delineada, por seu turno, no referido artigo compreende, não a violação de
direitos subjectivos, mas a infracção de normas de protecção de meros interesses particulares.

Com efeito, a diferença entre as duas modalidades de ilícito apenas se compreende no pressuposto
de que nem todo o interesse juridicamente protegido de uma pessoa constitui um «direito
subjectivo» (9).

E, justamente, na segunda modalidade apontada, a protecção jurídico-civilística dos bens ou


interesses em causa desenvolve-se em duas direcções. Por um lado, não se torna, por conseguinte,
necessário que mercê da infracção da «norma de protecção» resulte do mesmo passo violado um
direito subjectivo. Por outro lado, o pressuposto da culpa há-de referir-se tão-somente à
contravenção da norma, enquanto a violação do interesse respectivo carece apenas de ser
adequadamente causada - salvo se a própria norma exigir uma especial imputação culposa desta
violação (10).

Por «normas ou leis de protecção» na acepção esboçada entendem-se «todas as prescrições que
impõem ou proíbem um certo comportamento» com vista à tutela dos «interesses juridicamente
reconhecidos de determinadas pessoas ou círculos de pessoas».

Não basta, no entanto, a violação de uma «norma de protecção» neste sentido para que se considere
o tipo legal objectivamente preenchido e o seu autor incurso em ilícito na modalidade em apreço.
Torna-se ademais mister atender ao «concreto escopo de protecção da norma», implicando na
especialidade a verificação de três requisitos fundamentais: que o lesado pertença ao seu domínio
subjectivo de aplicação, incluindo-se no círculo de pessoas que a norma abstractamente visa
proteger; que tenha sido em concreto ofendido o interesse tutelado mediante a lei de protecção; que
se mostre concretizado o perigo a esconjurar mercê da mesma lei (11).

2. O travejamento jurídico-factual da presente acção apresentou-se na petição inicial


perspectivando as duas modalidades de ilícito previstas no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil.

A pretensão indemnizatória foi consequentemente equacionada como decorrente da violação do


direito de propriedade e da infracção de normas do RGEU tendentes à protecção de interesses

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particulares, o que tudo redundou, em suma - havendo-se prescindido dos danos morais no curso do
processo -, na desvalorização do prédio dos autores com um prejuízo estimado em 2 500 contos (12
469,95 euros).

Suscitaram-se, todavia, dificuldades nas duas vertentes - por carência de factos integradores e
divergências de entendimento acerca da intencionalidade tutelar jurídico-privatística dos
normativos recortados daquele diploma -, com expressivo reflexo em duas decisões antagónicas das
instâncias bem como na exaustão dos graus de recurso ordinário admissíveis.

E o amplo debate assim desencadeado entre as partes veio de certo modo a lateralizar-se na
modalidade de ilicitude hipotizada na segunda parte do n.º 1 do artigo 483.º

Entende-se, contudo, que a pretensão dos autores procede irrecusavelmente ao abrigo da primeira
parte do mesmo preceito.

Por dever de ofício, o Supremo Tribunal de Justiça não está sujeito às alegações das partes no
tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, aplicando definitivamente aos
factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigos 664.º
e 729.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Ora, o elenco desses factos foi há momentos apresentado e cingindo-se o objecto da revista, repete-
se, à questão da natureza ilícita da construção erigida pela recorrente é, por conseguinte, oportuno
centrar a atenção na primeira modalidade de ilicitude configurada no n.º 1 do artigo 483.º

3. Que deve, na realidade entender-se por ilicitude, qual a sua consistência e fonte de revelação
processual?

3.1. Numa acepção muito ampla pode dizer-se que a ilicitude consiste na violação da ordem
jurídica (12) - determinada conduta caracteriza-se como ilícita quando, considerada na sua
figuração exterior e abstraída ainda da atitude interna do sujeito, contradiz um imperativo ou
proibição da ordem jurídica (13) - ou, ainda, na violação de um dever jurídico (14).

Mas este lato universo restringe-se, nos termos daquele preceito, aos dois tipos de situações de
ordem geral nele previstas em abstracto - sem prejuízo evidentemente do regime especial gizado
nos artigos 484.º a 486.º quanto a determinados factos antijurídicos, aliás estranhos ao objecto do
presente litígio.

Uma brevíssima retrospectiva permite elucidar a dicotomia (15).

O correspondente artigo 2361.º do Código de Seabra identificava a ilicitude com a violação do


direito subjectivo de outrem - «Todo aquele, que viola ou ofende os direitos de outrem, constitui-se
na obrigação de indemnizar o lesado (..)» -, não bastando a prática de facto lesivo de meros
interesses alheios ou a violação de qualquer norma tendente a protegê-los.

Só muito mais tarde veio a lei reformular a ideia de ilicitude no domínio sensível da
responsabilidade civil dos médicos, ao referir a obrigação de indemnizar a todo o «dano injusto»
causado (16).

Procurando deste modo superar a estreiteza do conceito de 1867 em homenagem a muitos


interesses merecedores de tutela ressarcitória a despeito de não corresponderem à titularidade de
direitos subjectivos, a fórmula escolhida pecava, todavia, pela sua excessiva imprecisão, prestando-
se a interpretações divergentes (17).

Por isso que o Código vigente, na primacial «intenção de auxiliar o intérprete», tenha pretendido
definir mais precisamente a antijuridicidade através das duas variantes plasmadas no n.º 1 do artigo
483º.

Em síntese. Enquanto na vigência do antigo Código Civil a violação do direito subjectivo esgotava
o domínio da ilicitude, o Código actual ampliou o carácter antijurídico da conduta à violação de
interesses não qualificáveis como direitos subjectivos, subsistindo em todo o caso o preceito
segundo o qual a ofensa destes direitos - maxime dos direitos absolutos, assim o vimos, aos quais
subjaz um imperativo de abstenção a todos dirigido, consubstanciado na denominada «obrigação
passiva universal» - é em princípio antijurídica, ressalvada a existência de causas justificativas (18).

Dito pelas palavras da doutrina alemã a propósito do § 823 I do BGB (19) - artigo 483.º, n.º 1,
primeira parte, do Código Civil português -, qualquer violação de um destes direitos é na
perspectiva do legislador reprovável, logo, objectivamente ilícita, caso por excepção não assista ao
lesante uma causa de justificação.

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Não se torna, portanto, necessário nessas situações averiguar ainda positivamente a ilicitude da
conduta através de outros critérios adjuvantes fora do tipo legal, aduzindo-se que este mesmo já
«indicia» por si a ilicitude. E a menção no Tatbestand, por conseguinte, do elemento constitutivo
«ilicitamente» significa apenas que a ilicitude da violação do direito, já «indiciada» pelo próprio
tipo, não há-de resultar excluída no caso concreto mercê de específica causa justificativa.

Esta concepção durante largo tempo dominante era, no entanto, conduzida a considerar em regra
ilícito qualquer facto susceptível de resultar em prejuízo do direito de outrem, quando meramente
causa adequada, ainda que em distante nexo de causalidade, desse dano, colocando assim o acento
tónico da ilicitude postulada pela lei na produção do resultado em lugar propriamente da conduta
do agente.

É, porém, da experiência comum que a utilização, por exemplo, de machados e serras, automóveis
ou aparelhos eléctricos origina frequentemente a produção de acidentes. Mas nem por isso actua
ainda de forma ilícita aquele que produz ou difunde no tráfico tais instrumentos, conquanto
predispondo na realidade uma causa adequada do acidente que um terceiro vem a sofrer em
contacto com eles.

Daí que se tenha introduzido uma certa afinação na doutrina tradicional mediante a distinção entre
as violações de direitos que por se inserirem nos quadros do processo executivo externo do facto
(im Rahmen des aüeren Handlungsablaufs) representam uma agressão directa, e aquelas que devido
à interposição de plúrimas causas intermediárias constituem apenas um efeito remoto de
determinado comportamento (20).

No primeiro caso, a consequência da violação apresenta-se ainda como inerente (zugehörig) à


conduta, não resultando apenas da intermediação de outros eventos, e só nessa hipótese de violação
«directa» o preenchimento do tipo legal «indicia» a ilicitude, legitimando sem mais o juízo de que
o agente ofendeu, v. g., o direito de propriedade de outrem de forma objectivamente ilícita. - salvo
causa de justificação relevante.

3. 2. A violação do direito subjectivo de outrem constitui nos termos expostos um facto ilícito, mas
pode efectivamente acontecer que a violação ou ofensa seja coberta por alguma causa justificativa
capaz de excluir a ilicitude e, por esse lado, a responsabilidade civil.

Não sendo este o ensejo apropriado ao aprofundamento do tema (21), observe-se apenas, em breve
parêntesis, que existem desde logo duas causas gerais de exclusão da ilicitude sem disciplina
expressa na lei civil: o regular exercício de um direito e o cumprimento de um dever jurídico (22).

E, assim, o facto praticado no exercício regular de um direito considera-se justificado e, em


consequência, lícito, deixando de satisfazer às exigências do artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil.

Além destas duas causas de ordem geral, outras causas nominadas de exclusão da ilicitude vêm
reguladas nos artigos 336.º e segs. do Código Civil - a saber: a acção directa, a legítima defesa, o
estado de necessidade e o consentimento declarado ou presumido do lesado -, de relevo, todavia,
muito secundário no âmbito do presente recurso.

3.3 Resta aludir sucintamente à questão do ónus da prova.

Nos termos do artigo 342.º do Código Civil, «àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos
factos constitutivos do direito alegado» (n.º 1), enquanto, por seu turno, «a prova dos factos
impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a
invocação é feita» (n.º 2).

Pois bem. Em face destas regras não se suscitam dúvidas de que os factos integradores dos
pressupostos da responsabilidade civil extracontratual tipicizados no n.º 1 do artigo 483.º, incluindo
obviamente o pressuposto sub iudicio da ilicitude, são constitutivos do direito de indemnização dela
emergente, competindo, por conseguinte, a sua prova ao lesado, como, aliás, é entendimento
comum (23).

No tocante aos factos integradores de uma causa de justificação, eventos que infirmam na raiz a
ilicitude, obstando à eficácia constitutiva deste pressuposto do dever de indemnizar, assiste-lhes
claramente natureza impeditiva - se não extintiva -, cabendo por consequência ao lesante a prova
respectiva (24).

Em correspondência, de resto, com o significado essencial do ónus probatório, na falta de prova de


determinados factos deve o tribunal decidir contra a parte onerada com a sua prova.

4. Importa, contudo, a concluir reverter ainda ao cerne substantivo da pretensão accionada pelos
autores, a fim de precisar a ofensa de que o seu direito se tornou objecto.

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Como há pouco se viu, dentre os direitos subjectivos subentendidos na modalidade de ilícito


figurada no primeiro segmento do n.º 1 do artigo 483.º avulta, pois, o direito de propriedade.

A violação deste direito tanto pode resultar de uma ingerência na posição jurídica do proprietário
enquanto tal, como da afecção material do seu domínio sobre a coisa (25). Pense-se apenas na
subtracção ou destruição desta e noutras formas de perturbação do seu uso.

Não se trata propriamente da defesa da liberdade de acção em geral, precisa a doutrina alemã, e não
bastará, por conseguinte, que o proprietário na sequência de quaisquer eventos deixe de poder usar
a coisa para a prossecução pacífica de fins determinados. O valor de liberdade que no direito de
propriedade vai implicado deve antes considerar-se atingido quando o proprietário por razões que
lhe são alheias fique impedido de usar a coisa para qualquer fim correspondente em termos de
razoabilidade à sua função.

Uma simples perturbação do uso apenas constituirá violação do direito de propriedade se a coisa se
tornar, pelo menos temporariamente, inútil em termos objectivos.

Teoricamente, a violação do direito de propriedade na previsão do n.º 1 do artigo 483.º do Código


Civil pode, portanto, revestir variados aspectos (26), em conexão natural com as faculdades e
poderes que integram o seu conteúdo.

Dispõe a este propósito o artigo 1305.º do Código Civil:


«Artigo 1305.º
(Conteúdo do direito de propriedade)

O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas
que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.»

Salienta-se que o preceito não formula propriamente um conceito de direito de propriedade,


limitando-se a doutrina, por seu turno, a apontar as características que o contradistinguem dos
restantes direitos reais de gozo.

A respeito destas fala-se, por exemplo, da «indeterminação dos poderes do proprietário»: enquanto
os direitos reais limitados têm um «conteúdo preciso», determinado «taxativamente», no direito de
propriedade «não tipifica» a lei os respectivos poderes de «modo directo e positivo».

Ainda assim, uma certa densificação não deixa nesse conspecto de ser ensaiada quando se aduz que
o proprietário pode concretamente praticar «todos os actos materiais de uso ou consumo de que a
coisa seja susceptível, bem como todos os actos (materiais ou jurídicos) de fruição ou disposição da
mesma».

E que estes últimos podem traduzir-se «na alienação da coisa (inter vivos ou mortis causa), na
extinção do direito de propriedade (por destruição da coisa ou, tratando-se de coisas móveis, por
abandono), ou na constituição de direitos reais limitados a favor de outrem» (27).

Em quanto ao direito de uso da coisa especialmente concerne, já há instantes se aduziram vectores


de tipificação de possíveis violações.

Mas a desvalorização do prédio dos autores relaciona-se nuclearmente com as faculdades de


fruição e de disposição.

Não vem por isso a despropósito notar que o artigo 1305.º teve a sua fonte no artigo 832.º do
Codice Civile (28). E procurando auscultar rapidamente a profícua doutrina do país de origem no
sentido de precisar a conexão podem sintetizar-se com interesse os tópicos seguintes.

A fórmula utilizada pelo legislador de 1942 suscitou debate (29) acerca do critério de distinção
entre as duas faculdades, de gozo - esta decomposta pelo nosso Código no uso e fruição - e de
disposição, atribuídas pelo citado normativo à esfera jurídica do proprietário.

Desde logo, tem-se como indubitável que a faculdade de disposição está abrangida na «noção legal
de direito de propriedade», que a intervenção sobre o poder de disposição constitui «técnica
adoptada na prossecução da função social» desse direito e que um semelhante poder se deve
considerar «compreendido na garantia constitucional» respectiva.

Posto isto, a orientação prevalecente vem a reconduzir ao direito de gozo «todos os modos de
utilização da coisa que não determinam uma ‘modificação’ das relações jurídicas» sobre a mesma,
dizendo a «modificação» já respeito, por seu lado, à faculdade de disposição - pelo menos quando
esta incida sobre a titularidade do direito de propriedade, se não também quando se dirija à

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constituição a favor de terceiro de direitos reais de gozo ou de qualquer direito de gozo pessoal.

Por outras palavras (30), o «direito de dispor pode ser entendido como direito de modificar a
organização produtiva do bem», constituindo neste sentido «o perfil mais intenso do direito de
gozar (ius abutendi).

Não raro, porém, se concebe como ius vendendi, ou seja, «como direito do proprietário de transferir
para outrem a titularidade que lhe pertence», uma fórmula proposta sobretudo «para representar o
conteúdo económico desta possibilidade e não tanto o conteúdo moral», a qual deveria por isso
acentuar a «probabilidade de um correspectivo» em lugar da «possibilidade de concluir qualquer
acto de alienação».

Neste sentido se compreenderá que na bipartição faculdade «de gozar e dispor» se tenha podido
discernir o reflexo da distinção entre «valor de uso e valor de troca» (31).

Em resumo. A depreciação sofrida pelo prédio dos recorridos com a edificação erguida pela
recorrente haverá afectado de algum modo a faculdade de fruição, mas, traduzindo uma diminuição
do valor comercial do imóvel, violou especialmente a faculdade de disposição, amputando o direito
de propriedade dos autores numa das suas mais relevantes dimensões - a dimensão económica.

5. À luz da teorização delineada, a conduta da ré integra, por conseguinte, a primeira modalidade de


ilícito prevista no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil - sendo certo não se provar causa alguma de
justificação excludente da ilicitude -, de modo a dever concluir-se pela verificação do pressuposto
da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar debatido nas instâncias.

E não se objecte que a demandada actuou no exercício regular do seu direito de propriedade como
causa de justificação do facto.

Sem dúvida que uma das expressões do direito de gozo - pleno e exclusivo, se se quiser - do
proprietário é a destinação da coisa, nas suas diferentes implicações, a determinado fim,
compreendendo decerto a construção e ampliação de edificações.

Mas a consideração autónoma da destinação permite compreender «a centralidade que a concreta


utilização do bem assume na hodierna disciplina da propriedade» (32). Mais, porventura, que o
poder do proprietário, sobreleva «a tipicização normativa do uso da coisa», a partir da relevância
conferida pelo ordenamento a uma determinada destinação, com formas de expressão diferentes
consoante as espécies de coisas e os tipos de interesses objecto da tutela normativa, constituindo «o
momento quiçá mais significativo da actividade legislativa na prossecução da função social da
propriedade».

Neste conspecto, a destinação ora é determinada directamente por lei, ora se apresenta confiada à
actuação da autoridade administrativa, numa relação com o poder de decisão do titular modelada
em feições diversas.

Daí justamente que a destinação dos bens prediais possa encontrar-se delimitada por instrumentos
normativos de planificação urbanística e condicionada à emissão de licenças municipais restritivas
da liberdade do proprietário.

Por isso mesmo, admitindo que o terreno onde a construção foi erigida é propriedade da ré (33),
não se propende, salvo o devido respeito, a considerar como exercício regular de um ius edificandi,
susceptível de justificar a lesão do direito de propriedade dos autores, a concreta actividade de
execução da obra levada a efeito pela recorrente, compreendendo a construção de um armazém e de
uma parede com cerca de 10 metros de altura no lado nascente, junto ao muro que ladeia a casa de
habitação daqueles.

Uma obra de ampliação, ademais, que - admitindo-se por hipótese duvidosamente ajustada às
estritas exigências da moldura legal do abuso de direito - se constatou, vistoriada pela câmara,
exceder em 172m2 - nada menos que 52%, números redondos - a superfície de construção
licenciada (34), e cuja continuação nem o embargo municipal adrede implementado logrou
paralisar (35).

Não se argumente tão-pouco, evocando a minuta da apelação dos autores bem como o documento
junto pela recorrente na alegação da revista, que o excesso de construção aludido foi
posteriormente aprovado pela Câmara de Barcelos (conclusão n.º 22 desta última alegação); que
não transparece, em todo o caso, do processo se a área excessiva se localiza junto à extrema do
prédio dos autores ou noutro qualquer lugar.

Quanto ao primeiro aspecto, não apenas porque a eventual legalização da construção em causa,
devendo necessariamente obedecer à tramitação de um procedimento administrativo, culminando

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na decisão do órgão competente, com sujeição a forma escrita, não possa, de plano, dar-se aqui
como provada na base de confissão da contraparte ou de acordo das partes nesse sentido.

Também, radicalmente, pelo facto de a tomada de posição dos autores acerca desse ponto de modo
algum poder interpretar-se, se bem se entende, no sentido preconizado pela recorrente, quando na
minuta da apelação escrevem argumentativamente, em resposta a pretérita alegação da ré, apenas o
seguinte:

«Não releva para apreciação da obrigação de indemnização que posteriormente ao Embargo a


Câmara Municipal tenha ou não aprovado a obra, nascida ilegalmente.»

E ainda, em relação ao documento apresentado com a alegação da recorrente, por se tratar de


fotocópia de ofício, aliás sem data legível, subordinado à epígrafe «Ampliação de Instalações
Industriais», mediante o qual a Divisão de Ordenamento do Território da Câmara Municipal de
Barcelos se limita a transmitir a C haver sido aprovado, por despacho de 8 de Dezembro de 1997,
«o projecto de arquitectura da obra mencionada em epígrafe, como legalização», convidando-a do
mesmo passo a «solicitar a provação dos projectos de especialidade» em determinado prazo.

Não se afigura, por conseguinte, que a mera, liminar aprovação de um projecto de arquitectura -
cfr., a título meramente ilustrativo, o n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de
Novembro, na redacção da Lei n.º 29/92, de 5 de Setembro - possa fazer-se já equivaler à
aprovação pela edilidade do excesso ilegal de construção.

Quanto ao aspecto, por fim, da «localização da área excessiva», duvida-se da pertinência técnica do
argumento, uma vez que a área de construção de uma edificação é função da área de implantação da
construção, um vector horizontal, decerto, mas também das áreas dos pisos edificados, projectando-
se na vertical.

Decisivo, em todo o caso, é que o ónus probatório da pretensa localização do excesso em lugar
diferente da extrema do prédio dos autores competia à ré, pelo que a falta de prova acerca desse
aspecto não pode redundar em seu favor.

6. Termos em que se nega a revista, confirmando-se o acórdão recorrido com as diferenças de


fundamentação que transparecem da exposição antecedente.

Custas pela ré recorrente.

Lisboa, 15 de Maio de 2003


Lucas Coelho
Ferreira Girão
Moitinho de Almeida
------------------------------------
(1) No texto do acórdão grafou-se, por manifesto lapsus calami, o artigo «384.º».
(2) Isto por virtude da resposta negativa ao quesito 2.º, que visava provar se a construção prejudica
o arejamento, iluminação natural e exposição prolongada à acção directa dos raios solares do prédio
dos autores, factores normativizados nos citados preceitos do RGEU.
(3) E topicamente o segmento relativo à proibição de que a altura de qualquer edificação, em todos
os planos verticais perpendiculares à fachada, e por qualquer dos seus elementos com excepção de
chaminés e acessórios decorativos, «ultrapasse o limite definido pela linha recta a 45º, traçada em
cada um desses planos a partir do alinhamento da edificação fronteira, definido pela intersecção do
seu plano com o terreno exterior».
(4) Do seguinte teor: «As construções em zonas urbanas ou rurais, seja qual for a sua natureza e o
fim a que se destinem, deverão ser delineadas, executadas e mantidas de forma que contribuam para
dignificação e valorização estética do conjunto em que venham a integrar-se. Não poderão erigir-se
quaisquer construções susceptíveis de comprometerem, pela localização, aparência ou proporções,
o aspecto das povoações ou dos conjuntos arquitectónicos, edifícios e locais de reconhecido
interesse histórico ou artístico ou de prejudicar a beleza das paisagens.»
(5) Que se reproduz por comodidade de leitura:
«Artigo 483º
(Princípio geral)

1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer
disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos
danos resultantes da violação.
2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.»

(6) Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e actualizada,
com a colaboração de MANUEL Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Lda., Coimbra, 1987, pág.
472; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª edição, revista e actualizada

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(Reimpressão), Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2003, págs. 532 e segs.; Mário Júlio de Almeida
Costa, Direito das Obrigações, 8.ª edição, revista e aumentada, Almedina, Coimbra, Setembro de
2000, págs. 505 e seguintes.
(7) A transcrição na íntegra do preceito do BGB - traduzido agora de Palandt, Bürgerliches
Gesetzbuch, 61. neubearb. Auf., C. H. Beck, München, 2002, pág. 1081 - imediatamente permite
constatar, para além da diferença salientada e da simplificação técnica quiçá introduzida pelo artigo
483.º, n.º 1, mediante a unificação numa mesma previsão de ambas as hipóteses autonomizadas nas
duas alíneas do § 823, a grande similitude entre os dois normativos em confronto, propiciando, na
compreensão do primeiro, relevantes subsídios doutrinários elaborados na perspectiva do segundo:

«§ 823 Obrigação de indemnização. - I - Quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente a vida,
a saúde, a liberdade, a propriedade ou outro direito de outrem fica obrigado a indemnizá-lo pelos
danos daí resultantes.
II - A mesma obrigação impende sobre aquele que infringir uma lei destinada à protecção de
outrem. Quando segundo o conteúdo da lei for também possível a violação desta
independentemente de culpa, a obrigação de indemnizar apenas surge em caso de culpa.»

(8) A título de elucidação acerca deste aspecto remeta-se apenas para Rodrigues Bastos, Das
Obrigações em Geral, II, 1972, págs. 46/47, citando Vaz Serra.
(9) Karl Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts, B. II, Besonderer Teil, 12. Auf., C. H. Beck, München,
1981, pág. 593; Almeida Costa, op. cit., pág. 507.
(10) Larenz, idem, págs. 618 e segs., que estamos seguindo.
(11) Larenz, idem, pág. 621; grosso modo com similares precisões, Antunes Varela, op. cit., págs.
539/542; Almeida Costa, op. cit., págs. 506/507.
(12) Carl Creifelds et allii, Rechtswörterbuch, 7. neubearb. Auf., C. H. Beck, München, 1983, pág.
900.
(13) Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschaft (Studienausgabe), 5.ª edição alemã, Springer
Verlag, Berlin, Heidelberg, New York, Tokyo, 1983, pág. 354 [cfr. Metodologia da Ciência do
Direito (tradução portuguesa da 6.ª edição alemã), 3.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa, 1997, pág. 687].
(14) Almeida Costa, op. cit., págs. 504/505.
(15) No que acompanharemos muito de perto a lição de Antunes Varela, op. cit., págs. 530/533.
(16) Artigo 28.º do Decreto n.º 32 171, de 29 de Julho de 1942, que reproduzia idêntica fórmula do
artigo 2043.º do Código Civil italiano. Sobre este ponto, com outras explanações, cfr. Vaz Serra,
Requisitos da Responsabilidade Civil, «Boletim do Ministério da Justiça», n.º 92 (1960), págs. 68 e
seguintes.
(17) Ilustradas, pelo que respeita à literatura jurídica italiana, por Antunes Varela, op. cit., pág. 532,
nota 2.
(18) À luz do elemento histórico se compreende, pois, que «ilicitude e violação de um direito de
outrem» não constituam, de facto, expressões sinónimas - escreve Antunes Varela, op. cit., pág. 542
-, «sendo esta violação apenas uma das formas que a ilicitude pode revestir».
(19) Larenz, Lehrbuch, págs. 607/611 e segs., que por instantes voltamos a acompanhar.
(20) Com outros desenvolvimentos no plano metodológico, cfr. também do mesmo autor,
Methodenlehre, págs. 354/355 (Metodologia, págs. 687/689).
(21) Acerca do qual continua a revestir o maior interesse o desenvolvido estudo de Vaz Serra,
Causas Justificativas do Facto Danoso, «Boletim do Ministério da Justiça», n.º 85 (1959), págs. 16
e seguintes, que aqui nos apraz recordar.
(22) Almeida Costa, op. cit., págs. 510 e segs.; Antunes Varela, op. cit., págs. 552 e seguintes.
(23) Assim, ilustrativamente, Artur Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil (4.º Volume),
coligidas e publicadas por J. Simões Patrício/J. Formosinho Sanches/Jorge Ponce de Leão e revistas
pelo Professor, Atlântida, Coimbra, s/d, págs. 136/137; Pires de Lima/Antunes Varela, op. cit., pág.
303, Larenz, Lehrbuch, págs. 596/597.
(24) Neste sentido, Larenz, Lehrbuch, pág. 597.
(25) Larenz, idem, págs. 600/602.
(26) Assim, entre nós, Antunes Varela, op. cit., págs. 533/534, exemplificando com a privação do
uso ou fruição da coisa, imposta ao titular; a disposição indevida dela; a subtracção da coisa; a
perturbação do exercício do direito do proprietário, mediante a emissão de fumos, cheiros, vapores
ou ruídos fora dos termos permitidos pelo artigo 1346.º; o seu uso, fruição ou consumo, não
facultados pelo respectivo titular, etc.
(27) Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, Sumários das lições ao curso de 1966-1967
(policopiados), Coimbra, 1967, págs. 133/135.
(28) Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª edição, 1987, pág. 92. A
ilustrar a inspiração, transcreva-se o citado preceito italiano, em tradução de momento sobre texto
de Francesco de Martino, Della Proprietà, «Commentario del Codice Civile a cura di Antonio
scialoja e Giuseppe Branca», Nicola Zanichelli Editore/Soc. Ed. del «Foro Italiano»,
Bologna/Roma, 1946, pág. 113:

«Art. 832.º (Conteúdo do direito). - O proprietário tem o direito de gozar e dispor da coisa de modo
pleno e exclusivo, dentro dos limites e com a observância das obrigações estabelecidas no

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ordenamento jurídico.»
(29) Cesare Salvi, Il contenuto del diritto di proprietà, «Il Codice Civile. Commentario diretto da
Piero Schlesinger», Giuffrè editore, Milano, 1994, págs. 114/115, que se segue momentaneamente.
(30) Michele Costantino, Proprietà. II) Profili Generali - Dir. Civ., «Enciclopedia Giuridica»,
Instituto della Enciclopedia Italiana fondata da Giovani Treccani, Roma, 1991, pág. 5.
(31) Stefano Rodotà, Proprietà (Diritto Vigente), «Novissimo Digesto Italiano», vol. XIV, Torino,
1967, pág. 142.
(32) Salvi, op. cit., págs. 118/120, a que por momentos revertemos.
(33) Anote-se efectivamente que a ré contestou o direito de propriedade dos autores até que este se
revelasse no processo, dispensando-se do mesmo passo de provar o seu.
(34) Consta na verdade dos documentos juntos a fls. 25 e 26, emitidos pela Câmara Municipal de
Barcelos, cujo teor se deu como reproduzido nas alíneas F) e G) da especificação, que a área
aprovada mercê da respectiva licença de construção era de 330m2, medindo a obra já, quando
fiscalizada, 502m2 de construção.
(35) De facto, o embargo fora decretado em 12 de Agosto de 1997 e logo a 3 de Setembro
constatavam os serviços de fiscalização da Câmara a desobediência à providência com a
prossecução da edificação (citados documentos de fls. 25 e 26).

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