Você está na página 1de 9

DIREITO PENAL II – DIA

2013/2014

COMPARTICIPAÇÃO
Casos de António Brito Neves. Resolução de Teresa Quintela de Brito

1) Rosamunda tem intenção de se livrar de Alboíno, seu marido, espadachim


profissional. Conhecedora do carácter mortalmente ciumento do seu marido, arquitecta um
plano e põe-no em prática.
De noite, Rosamunda faz-se passar pela mulher de Peredeu, empregado de Alboíno.
Findo o coito, Alboína revela a Peredeu a sua verdadeira identidade e diz-lhe: ”certe
nunc talem rem perpretatam habes, ut aut tu Alboin interficies, aut ipse te suo gladio
extinguet” (“seguramente que, depois de teres feito tal coisa, ou matas Alboíno, ou ele te
tirará a vida com a sua espada”).
Não vendo alternativa, Peredeu arranjou uma pistola e disparou sobre Alboíno, quando este
dormia. Alboíno não chegou a acordar.

Resposta:
1. Rosamunda pratica contra Peredeu um crime de fraude sexual (art. 167º, n.º 2 do
CP) como acto preparatório de um crime de homicídio qualificado [art. 132º, n.º 2, b)].
2. Peredeu é autor material ou imediato de um crime doloso (dolo directo) de
homicídio.
Discutir se, relativamente a este, se verifica um estado de necessidade desculpante:
(i) Perigo actual (?) para a sua vida, e não removível de outro modo?
(ii) O homicídio de Alboíno é facto ilícito adequado a remover tal perigo?
(iii) Não é razoável exigir de Pereneu, nas circunstâncias [Alboíno é espadachim
profissional, tem um carácter mortalmente ciumento, porventura do conhecimento
de todos, e é patrão de Peredeu] comportamento diferente?
3. Se, como parece possível, se concluir que Peredeu mata Alboíno em estado de
necessidade desculpante, Rosamunda será autora mediata do homicídio do marido
materialmente executado por Peredeu (art. 26º, 2.ª proposição). De contrário, haverá que
qualificá-la como mera instigadora (art. 26º, 4.ª proposição).
4. Discutir a aplicação do art. 28º, n.º 1, a fim de transmitir o conteúdo de ilícito da
qualidade ou relação especial pessoal de “cônjuge da vítima”, de Rosamunda a Pereneu, para
efeitos de responsabilização de ambos no quadro do homicídio qualificado [art. 132º, n.º 2,
al. b)].
5. Sendo Rosamunda autora mediata do crime de homicídio, será que a responsabilização
desta pelo crime qualificado depende ou não da prévia aplicação do art. 28º, n.º 1?
a) Caso se considere que o facto do autor mediato é, de algum modo, acessório da
execução típica empreendida pelo autor imediato, haverá que aplicar o art. 28º, n.º 1, para
transmitir a qualidade ou relação especial pessoal da mulher-de-trás ao executor material.
b) Ao invés, dispensar-se-á a aplicação do art. 28º, n.º 1, para punir Rosamunda como
autora mediata de um homicídio qualificado [art. 132º, n.º 2, b)], se se entender que nem
sequer uma acessoriedade externa ou quantitativa (relativa ao grau de realização do facto
pelo executor) vale para a autoria mediata por o autor mediato realizar por si o tipo
incriminador, mercê da previsão do art. 26º, 2.ª proposição.
6. Caso se tenha concluído pelo afastamento do estado de necessidade desculpante e pela

! 1!
qualificação de Rosamunda como instigadora, Pereneu – e só ele (art. 29º) – poderia,
eventualmente, beneficiar da aplicação do n.º 2 do art. 28º, sendo então punido como autor
de um homicídio simples.

2. a) Iago nutre um secreto e profundo ódio a Otelo e põe em prática um plano para o
levar a matar a mulher, Desdémona.
Iago prende Desdémona num barracão em sua casa e, posteriormente, convence Otelo a
fazer explodir o barracão, dizendo-lhe que lá estão apenas pesticidas fora de prazo. Otelo,
feliz por ajudar o seu “fiel amigo” Iago, faz o barracão explodir, matando assim
Desdémona.

Resposta:
1. Otelo é o autor material do facto e está em erro sobre a factualidade típica (art.
16º, n.º 1, 1.ª parte): pensa estar a praticar um crime de dano com consentimento do
proprietário dos pesticidas, quando na realidade está a matar a própria esposa.
Quanto ao crime de dano, Otelo encontra-se em erro-suposição dos elementos
típicos, cometendo uma tentativa impossível por inexistência do objecto (os pesticidas), nos
termos dos arts. 212º; 22º, n.º 2, b); e 23º, n.º 3 a contrario. Porém, esta tentativa está
justificada por consentimento da vítima, do qual Otelo tem conhecimento (art. 38º).
Relativamente ao crime de homicídio, Otelo encontra-se em erro-ignorância, de modo que
se exclui o dolo da sua conduta, podendo apenas ser punido por homicídio negligente (art.
137º), se o erro for evitável (art. 15º).
2. Iago é autor mediato do homicídio (art. 26º, 2.ª proposição), por dominar a
vontade do executor em erro sobre o objecto do crime de homicídio.
Iago poderá ser responsabilizado como autor mediato de um homicídio qualificado
nos termos da al. b) do n.º 2 do art. 132º, ao abrigo do art. 28º, n.º 1, mercê da transmissão
do conteúdo de ilícito da qualidade ou relação especial, de Otelo (executor) para com a
vítima (Desdémona), ao homem-de-trás.
Faltando o dolo de homicídio a Otelo, este nunca poderia ser responsabilizado por
homicídio qualificado (necessariamente doloso), mas, tão-só, por homicídio negligente (arts.
137º e 15º).

2. b) E se Iago já tivesse os explosivos todos preparados, faltando apenas Otelo (que


já concordara em fazer explodir o barracão) carregar no botão para os fazer rebentar – só
que, segundos antes de este poder fazê-lo, o plano era descoberto?

Resposta:
Neste caso, Iago (autor mediato) já iniciou a execução do crime de homicídio de
Desdémona [art. 22º, n.º 2, c)] no momento em que, tendo prontos os explosivos, concluiu a
sua actuação de instrumentalização do executor (Otelo) à prática do facto. Só faltava mesmo
que Otelo (em erro sobre o objecto do crime de homicídio) carregasse no botão que
provocaria a explosão. Este já seria um acto de execução nos termos do art. 22º, n.º 2, b).
Por isso e porque a esfera de segurança da vida de Desdémona se encontra
manifestamente afectada, Iago deve ser punido como autor mediato de uma tentativa de
homicídio qualificado.
Otelo não seria punido, nem pelo crime de dano eventualmente tentado (se já tinha
na mão o dispositivo que accionaria a bomba) por causa do consentimento de Iago; nem
pela “tentativa” de homicídio de Desdémona, por actuar eventualmente com negligência

! 2!
quanto ao crime de homicídio desta, sendo a tentativa estruturalmente dolosa.

3) Amílcar, reputado violador, decide atacar Dália enquanto esta se dirige, no fim do
dia, para casa. Numa ruela mais escura, Amílcar salta sobre Dália. Esta começa a esbracejar e
a fazer tanto barulho que Amílcar se vê em dificuldades.
Aparece então Bernardo, chamado pelos gritos. Percebendo o que estava a
acontecer, oferece a sua carrinha a Amílcar. Os dois levam Dália para a carrinha e aí ela é
violada por Amílcar, enquanto Bernardo a mantém presa e, em seguida, é violada por
Bernardo, enquanto Amílcar a mantém presa.

Resposta:
1. Amílcar já está a praticar uma tentativa de violação [arts. 164º e 22º, n.ºs 1 e 2 c) e
a) (violência)], quando Bernardo se junta a ele na execução desse crime, celebrando ambos
um novo plano criminoso que inclui a participação de Bernardo.
Amílcar e Bernardo são co-autores de crime de violação, cada um tomando parte na
execução realizada pelo outro. Cada um deles pratica actos de execução nos termos das
alíneas a) [violência e coito], c) e b) do n.º 2 do art. 22º.
2. Parece que Amílcar deverá ser punido por um único crime de violação
consumado, e não por uma tentativa em concurso efectivo com a consumação em co-autoria
desse crime.
Apesar de Amílcar já estar a cometer uma tentativa de violação quando se lhe juntou
Bernardo, a verdade é que se trata da violação da mesma mulher, no mesmo lapso temporal
e em execução de uma única e mesma resolução criminosa, já antes tomada por Amílcar, à
qual vem a aderir Bernardo.

4) Telma e Luísa resolvem assaltar a delegação de Telheiras do BCP. Luísa conduz o


carro de fuga até à porta do banco e Telma entra na filial com uma pistola. Reunido o
dinheiro, Telma ainda dispara sobre Dário, funcionário do banco, seu ex-namorado, para se
vingar das humilhações que ele a fizera passar. Telma nunca falara a Luísa sobre Dário.
Uma vez regressada ao carro, Luísa pergunta-lhe que disparo foi aquele, mas Telma
ordena-lhe que guie e as duas fogem.

Resposta:
1.Tipo de crime – roubo (art. 210º).
2. A condução de Telma até à porta do banco, por parte de Luísa, constitui mero
acto preparatório do roubo, como tal não punível (art. 21º). Já o assegurar a fuga configura
um acto de execução do roubo, nos termos do art. 22º, n.º 2, b), na medida em que, através
dele, Luísa garante a constituição de uma detenção definitiva sobre o dinheiro subtraído por
Telma, a favor de ambas.
Logo, Telma e Luísa são co-autoras de um crime de roubo consumado (arts. 210º e
26º, 3.ª proposição), iniciando-se a tentativa para ambas (solução global) assim que Telma
comece a executar o crime de roubo nos termos do art. 22º, n.º 2, c).
3. O homicídio de Dário nada tem a ver com a prática do roubo: foi cometido depois
de estar reunido o dinheiro e para Telma se vingar das humilhações infligidas pelo seu ex-
namorado. Trata-se, portanto, de um “assunto privado” de Telma, que não respeita de forma
alguma a Luísa.
A morte de Dário nem sequer pode ser objectivamente imputável à conduta de Luísa
de co-autoria no roubo, pois sobre a sua comissão esta não exerce qualquer senhorio, nem

! 3!
uma tal comissão era previsível para Luísa, já que Telma nunca lhe falara de Dário, nem da
presença deste no banco.
Por esta razão, o homicídio também não poderia ser subjectivamente imputável a
Luísa, nem mesmo a título de negligência.
4. O homicídio de Dário parece ser o verdadeiro objectivo de Telma, mais do que o
próprio roubo: este apenas serviria para “encobrir” aquele [exactamente a situação oposta à
prevista no n.º 2, al. g) do art. 132º] . Ou seja: Telma responderia em concurso efectivo de
crimes por roubo consumado e homicídio qualificado por motivo torpe [a vingança – art.
132º, n.º 2, e)]. Não se lhe aplicaria a agravação prevista no art. 210º, n.º 3, porque o
homicídio de Dário, sendo autónomo relativamente ao roubo, não se pode dizer que deste
resultou.

5) César, agente da GNR, regista a prática de uma contra-ordenação grave por parte de um
conhecido deputado. Por isso, pede à sua irmã, Cremilde, que entre em contacto com o
deputado para negociarem o problema. Em consequência, o deputado aceita pagar a quantia
de 500 euros a Cremilde para que a coima seja esquecida. A quantia é dividida entre César e
Cremilde.

Resposta:
1. César, funcionário, pratica um crime de corrupção passiva (art. 373º CP): por
interposta pessoa (a irmã, Cremilde), solicita, para si e para Cremilde, vantagem patrimonial
para a prática de omissão contrária ao dever do cargo (não promoção de processo contra-
ordenacional).
César é autor material ou imediato deste crime, mercê da peculiar construção típica
do crime de corrupção passiva (“por si ou por interposta pessoa”). A irmã, da qual César se
serve para cometer este crime, não se encontra em nenhuma das situações típicas da autoria
mediata. O que, face às regras gerais, obstaria à configuração daquele como autor mediato,
obrigando a classificá-lo como mero instigador. Porém, nestes casos, o art. 373º converte em
autor material ou imediato o funcionário que solicita, por intermédio de outrem, vantagem
patrimonial para a prática de acto ilícito. Ou seja: faz de um mero instigador um autor.
2. Como punir Cremilde? Por cumplicidade material ou autoria do crime de
corrupção passiva?
Verdade que Cremilde não é funcionária. Contudo é por intermédio dela e mediante
instigação do próprio César, que este solicita vantagem patrimonial para a prática de omissão
contrária aos deveres do cargo e, depois, aceita tal vantagem. O que parece assegurar a
Cremilde – e substancialmente apenas a ela - o domínio do facto de corrupção passiva,
permitindo assim qualificá-la como co-autora deste crime, mercê da elevação típica do
funcionário instigador à posição de autor e mercê, ainda, da aplicação do art. 28º, n.º 1.
Neste caso, Cremilde não poderia beneficiar do disposto no art. 28º, n.º 2, por a corrupção
passiva ser um crime específico próprio.
3. César comete também o crime de denegação de justiça (art. 369º, n.º 1): no âmbito
de processo por contraordenação, conscientemente e contra direito, não promove este
mesmo processo, deixando “esquecida” a contraordenação perpetrada pelo deputado.
Cremilde não deverá ser punida por cumplicidade na prática deste crime, sob pena
de dupla valoração do seu contributo, que já originou responsabilização por co-autoria no
crime de corrupção passiva conjuntamente com o irmão, César.
4. O deputado realizou o crime de corrupção activa (art. 374º, n.º 1): por interposta
pessoa (Cremilde) e com o conhecimento e ratificação desta, deu a César, funcionário,

! 4!
vantagem patrimonial para a prática de omissão contrária aos deveres do cargo.
Pelas razões que se apresentaram (violação do “non bis in idem” – art. 29º, n.º 5 da
CRP), Cremilde não poderá ser punida por cumplicidade material neste crime do deputado.

6) Frederico, presidente de uma empresa e conhecido como “Fred dos truques”,


passa os dias a pregar partidas aos seus empregados.
João e Bernardo são trabalhadores da empresa e estão cansados de se sentar em cima
de pioneses e de receber falsas notas de despedimento, pelo que planeiam livrar-se de
Frederico.
Para isso contratam Miguel, pois, segundo ouviram, este é homem para trabalhos
pesados. Fica acordado que Miguel matará Frederico, em troca do que receberá uma quantia
avultada.
No entanto, e apesar de ter dado o seu assentimento, Miguel guarda o dinheiro e
denuncia João e Bernardo à polícia sem nada fazer para executar o crime.

Resposta:
1. Miguel não chega sequer a cometer uma tentativa de homicídio de Frederico.
2. João e Bernardo praticam uma tentativa de instigação de Miguel, pois, pelos vistos,
nem sequer o conseguiram convencer à prática do homicídio.
Por essa razão e ainda porque Frederico (o “instigado”) não inicia a execução do
homicídio, João e Bernardo não podem ser responsabilizados como instigadores (art. 26º, 4.ª
proposição).
3. Miguel poderá, inclusive, ter cometido o crime de denúncia caluniosa (art. 365º, n.º
1): por qualquer meio e perante autoridade, denuncia ou lança sobre João e Bernardo a
suspeita da prática de crime, com intenção de que contra estes se instaure procedimento.

7) Arnaldo está farto do hálito horrível de Emília, sua mulher, que o impede de dormir.
Arnaldo contrata Bruno para matar Emília. Bruno aceita e, nessa mesma noite, põe em
prática a sua parte do plano. Vendo pela janela que Emília está sozinha na cama – Arnaldo
prometera que se levantaria de noite para não haver azares –, Bruno dispara. Afinal foi Cátia,
não Emília, quem morreu: Arnaldo enganou-se na janela.

Resposta:
1. Bruno comete um crime de homicídio simples doloso consumado em autoria
material ou imediata [arts. 131º; 14º, n.º 1; 22º, n.ºs 1 e 2 c) e b); e 26º, 1ª proposição]. O erro
sobre a identidade da vítima irreleva para efeitos de exclusão do dolo de homicídio.
2. Arnaldo carece do domínio do facto de homicídio. É mero instigador de Bruno
(art. 26º, 4.ª proposição). Precisamente por lhe faltar o domínio da realização típica, não faz
sentido dizer que o erro sobre a identidade da vítima do autor material (Bruno) se converte
numa aberratio ictus para o instigador.
Ao instigar Bruno, Arnaldo não está a praticar actos de execução do homicídio da
mulher, que permitam suportar uma tentativa de homicídio desta.
Conclusão: assim como o erro sobre a identidade da vítima não exclui o dolo de
homicídio do autor material, o mesmo deverá acontecer relativamente ao instigador. Quer
seja a sua mulher ou outrem, o instigador conhece e quer que o “instigado” mate uma
pessoa.
3. Uma vez que o autor material não matou a mulher do seu instigador, mas uma
outra mulher, falece a base para aplicar o art. 28º, n.º 1, a fim de comunicar o especial

! 5!
conteúdo de ilícito inerente à qualidade ou relação especial de “cônjuge da vítima” do
instigador (Arnaldo) ao autor (Bruno).

8) Heitor está cansado da sua mulher, Gertrudes, que passa a vida a ensaiar Mozart
com o seu clarinete. Heitor é um fã de música pimba e não suporta a delicadeza das melodias
austríacas.
Heitor convence Bento a matar Gertrudes. Entrega-lhe uma arma carregada com
uma bala para ele passar à acção. Vendo-se com uma arma nas mãos, Bento aproveita para
matar Carolina, sua sogra, que sempre odiara.
Enquanto se dirigia para casa de Gertrudes, repara que a arma não tem mais balas.
Assim, resolve livrar-se da arma e abandona o plano de matar Gertrudes.

Resposta:
1. Bento realiza em autoria material ou imediata um homicídio doloso consumado
contra Carolina [arts. 131º; 14, n.º 1; 22º, n.ºs 1 e 2, als. c) e b); e 26º, 1ª proposição]. E não
chega sequer a iniciar a execução do homicídio de Gertrudes. Por isso, apesar da
voluntariedade da sua actuação, não se pode falar de uma desistência da tentativa.
2. Não tendo Bento iniciado a execução do homicídio de Gertrudes, Heitor não
poderá ser punido como instigador (art. 26º, 4.ª proposição). Verdade que Heitor pretende
que Bento mate uma pessoa e Bento efectiva e dolosamente mata uma pessoa. Contudo, a
morte desta pessoa deve-se a uma decisão inteiramente autónoma de Bento, não previsível
nem controlável por Heitor. Tanto que Heitor entregou a Bento a arma carregada com uma
só bala.
No caso anterior, o erro sobre a identidade da vítima do autor material ainda é
causado pelo instigador (Arnaldo), que se engana na janela. Aqui, a morte da sogra de Bento
nem sequer é objectivamente imputável a Heitor: não foi o risco criado pela conduta do
instigador que se concretizou na morte da sogra de Bento, mas sim o risco autonomamente
criado por Bento ao decidir matar a sogra, Carolina, quando se viu com uma arma carregada
na arma. Critério corrector da teoria do risco: a repartição de esferas de responsabilidade ou
competência entre instigador e autor. Repartição que obsta à inclusão, no fim e no âmbito de
incriminação da instigação, da decisão livre e autónoma de homicídio de pessoa diferente por
parte do “instigado”.
Conclusão: Heitor não poderá ser punido, sequer, como cúmplice material do
homicídio de Carolina (art. 27º), por lhe faltar o dolo quanto à morte desta por parte de
Bento.

9) Hortênsia está farta do seu marido Guilherme, que passa o tempo a contar
anedotas sem graça. Convence então o seu amante Caetano a matá-lo – e entrega-lhe uma
arma com duas balas.
Caetano mata Guilherme com prazer. Aproveita ainda para matar Margarida, uma
histérica, sua ex-namorada, que ameaçava atormentar a futura vida amorosa de Caetano com
Hortênsia.

Resposta:
1. Caetano é autor material ou imediato de dois crimes de homicídio doloso
consumado: um contra Guilherme e outro contra Margarida [arts. 131º; 14, n.º 1; 22º, n.ºs 1
e 2, als. c) e b); e 26º, 1ª proposição].
2. Hortênsia é instigadora do homicídio do marido, Guilherme, nos termos dos arts.

! 6!
132º, n.º 2, al. b); 14º, n.º 1; e 26º, 4.ª proposição.
Caetano poderá responder por este homicídio qualificado, mercê da aplicação do art.
28º, n.º 1, embora porventura venha a beneficiar do disposto no n.º 2 deste preceito, por ser
um “extraneus” e por se estar perante um crime específico impróprio.
3. Hortência já não é instigadora do homicídio de Margarida, que resultou de decisão
livre e autónoma do autor material. Volta a relevar aqui a repartição de esferas de
competência e responsabilidade entre o instigador e o autor. Repartição que veta a inclusão,
no fim e no âmbito da incriminação de instigação, da decisão livre e autónoma do
“instigado” de, além da pessoa “encomendada”, matar outra pessoa por conveniência
pessoal.

10) Pedro gosta muito de ver, de sua casa e com a ajuda de uns binóculos, as relações sexuais
do seu vizinho Carlos e da mulher.
Carlos descobre que tem público e contrata Hugo para dar uma tareia ao seu vizinho
Pedro. Hugo dá uma tareia a Pedro que lhe vem a provocar a morte – resultado que nem
Carlos nem Hugo desejavam.

Resposta:
1. Pedro é autor material ou imediato de um crime de devassa da vida privada, que
realiza com dolo directo [arts. 192º, n.º 1, al. c); 26º, 1.ª proposição; e 14º, n.º 1].
2. Hugo é autor imediato de um crime doloso de ofensas à integridade física de que
vem a resultar a morte, na qual se concretizou o risco proibido criado por Hugo. Muito
provavelmente, Hugo actuou apenas com negligência relativamente à morte de Pedro. Por
isso, responderá nos termos do arts. 147º, 18º e 15º (crime de ofensa à integridade física
agravado pelo resultado morte).
3. Carlos é instigador de um crime de ofensas à integridade física de Pedro (arts.
143º; 14º, n.º 1; e 26º, 4.ª proposição), agindo com duplo dolo quanto a este crime (quanto à
sua própria instigação e quanto à prática do facto principal pelo autor material).
Só responderá, em concurso efectivo, pela autoria imediata de um homicídio
negligente (não há comparticipação negligente), se, ao instigar Hugo a “dar uma tareia” a
Pedro, tiver violado um dever de cuidado relativamente à vida deste (v.g. se Hugo for
pugilista profissional e homem particularmente violento e possante, quando confrontado
com Pedro). Esta solução depende, ainda, da aceitação de um conceito unitário de autor
negligente, segundo o qual à autoria nos crimes negligentes basta a violação de um dever de
cuidado que seja (co)causa do resultado.

11) Arnaldo vê a sua namorada bambolear-se com outro rapaz em plena pista de
dança da discoteca “Noz Bimba”. Arnaldo está furioso e com ideias de lhe dar uma lição.
Bernardo incita-o a fazer isso mesmo e acaba por ajudá-lo a vencer as últimas
resistências. Arnaldo vai ter com a namorada e dá-lhe uma tareia.

Resposta:
1. Arnaldo é autor imediato de um crime doloso de ofensas à integridade física na
pessoa da namorada [arts. 143º; 14º, n.º 1; 22º, n.ºs 1 e 2, als. c) e b); e 26º, 1.ª proposição].
2. Bernardo “ajuda-o a vencer as últimas resistências” quanto à prática do facto.
Muito provavelmente, Bernardo é apenas cúmplice moral (art. 27º) pois não foi ele que
exclusiva ou decisivamente determinou Arnaldo à comissão do crime, como exige o art. 26º,
4.ª proposição. Bernardo tem dolo quanto ao seu próprio contributo e, ainda, relativamente à

! 7!
prática das ofensas à integridade física por parte de Arnaldo.

12) Timóteo quer disparar para um arbusto, pensando que se encontra ali um coelho. Hugo,
sabendo que não é um coelho que lá está, mas uma pessoa (Jorge, que Hugo quer ver
morto), satisfaz o pedido de Timóteo e entrega-lhe uma arma, sem lhe dizer uma palavra.
Timóteo dispara e mata Jorge.

Resposta:
Timóteo está em erro-ignorância sobre o objecto da conduta no crime de homicídio.
Esse erro exclui o dolo de homicídio (art. 16º, n.º 1, 1.ª parte), mas Timóteo poderá ser
punido por facto negligente, se tiver violado um dever de cuidado na avaliação da realidade
objectiva (arts. 16º, n.º 3; 137º; e 15º).
Hugo, apesar de parecer apenas um cúmplice material, na realidade é autor mediato:
domina a vontade do executor (em erro sobre o facto típico) e, por via disso, a realização do
tipo. Será punido por homicídio doloso consumado contra Jorge (arts. 131º; 26º, 2ª
proposição; e 14º, n.º 1). A cumplicidade material é subsidiária da (mais grave) autoria
mediata de homicídio, sendo Hugo apenas responsabilizado por esta.
A solução da autoria mediata de Hugo pode ser discutível, já que não é este que
induz em erro Timóteo, apenas se aproveita de um erro preexistente, não tendo um especial
dever de esclarecimento de Timóteo em virtude de uma especial e prévia relação entre
ambos.
Também me parece discutível a qualificação de Hugo como co-autor unilateral
(Helena Morão), por duas razões fundamentais. Primeira: o domínio da realização típica por
parte de Hugo advém da manutenção do estado de erro de Timóteo, não de um tomar
materialmente parte na execução do facto típico (a co-autoria é material e não mediata).
Segunda e decisiva: a lei define a co-autoria como o “tomar parte directa na execução por
acordo ou juntamente com outro ou outros”. O que pressupõe consciência e vontade
plurilateral de colaboração entre todos os co-autores. Não basta a adesão unilateral de um
agente à execução de outro, desconhecendo este a intervenção daquele.
Outra solução possível: punição de Hugo como autor paralelo de um homicídio (por
acção ou omissão?) doloso consumado, na medida em que a manutenção do estado de erro
de Timóteo representa uma ingerência ilícita na vida de Jorge. Ao não esclarecer Timóteo,
antes de este iniciar materialmente a prática de actos de execução do homicídio, Hugo cria
um risco proibido para a integridade física e a vida de Jorge, invadindo a esfera de liberdade
e de autonomia deste último. Risco esse que, justamente, se vem a concretizar no resultado.

13) Bruna e Cláudio, mulher e marido, tentam assaltar uma ourivesaria. Já depois de Cláudio
arrombar a porta, no preciso momento em que está a abrir o cofre e Bruna está à espera com
o saco na mão para tirar as jóias, são apanhados.

Resposta:
Bruna e Cláudio são co-autores (art. 26º, 3.ª proposição) do crime de furto
qualificado de coisas de valor elevado, fechada em cofre e por arrombamento [artigos 202º,
al. d); 204º, n.ºs 1, als. a) e e), e 2, al. e)] na forma tentada. Efectivamente, ao arrombar a
porta e ao abrir o cofre, Cláudio praticou actos de execução do crime de furto nos termos do
art. 22º, n.º 2, als. a) e c). Apenas faltava praticar o acto de apreensão material das jóias [art.
22º, n.º 2, als. b) e a)]. Deve ainda discutir-se se Bruna não terá igualmente iniciado a
tentativa de furto, ao abrigo do art. 22º, n.º 2, al. c), pois já está dentro da ourivesaria e com

! 8!
o saco na mão prestes a retirar as jóias de dentro do cofre.
Mesmo que se entenda que Bruna não iniciou a tentativa de furto, à luz da solução
global quanto ao início da tentativa do co-autor, deverá ser igualmente punida como co-
autora da tentativa de furto qualificado (ainda que não tenha chegado ela própria a praticar
materialmente actos de execução deste crime). Acontece que, à luz do plano criminoso, lhe
cabia uma tarefa essencial à realização do crime e Cláudio iniciou a tentativa do facto global
dos dois co-autores - não se limitou a prestar o seu próprio contributo como se de um autor
singular se tratasse.
Nessa hipótese, para a solução individual (que trata a co-autoria como uma sucessão
de autorias singulares) apenas Cláudio seria punido como co-autor de uma tentativa de furto
qualificado. Bruna responderia somente por cumplicidade moral (pois participou na
celebração do plano criminoso, reforçando a vontade do outro co-autor) e material (segurar
no saco), no crime de furto qualificado nos termos dos arts. 27º e 204º, n.ºs 1, 2 e 3.

15) César, presença constante nos telejornais por ser arguido num polémico
julgamento por crimes de abusos sexuais de menores, passeia tranquilamente pela rua. As
pessoas sentadas na esplanada vêem-no e começam a incentivar-se uns aos outros: “lá vai o
malandro”, ”vamos dar-lhe o que merece”. Junta-se uma pequena multidão que persegue
César, apanha-o e espanca-o. César morre, vem a saber-se, de uma pancada na cabeça.
Todas as pessoas que comprovadamente participaram no espancamento, porém,
negam ter-lhe batido na cabeça, não sendo possível determinar o autor do golpe mortal.

Resposta:
Tipos: homicídio (art. 131º) ou ofensas à integridade física (art. 144º) de César.
Todos os intervenientes são (reciprocamente) cúmplices morais e depois co-autores
(art. 26º, 3.ª proposição) do crime de ofensas dolosas (dolo directo) consumadas à
integridade física de César, ou então co-autores do homicídio com dolo eventual (arts. 131º,
22º e 14º, n.º 3).
Como não se mata por telepatia mas lesando a integridade física da vítima, o dolo de
homicídio inclui o dolo de ofensas à integridade física e estas ofensas configuram um estádio
intermédio de realização do homicídio. Por estas razões, a punição por tentativa de
homicídio consome as ofensas à integridade física.
Além disso, a co-autoria como forma mais grave de comparticipação no mesmo
facto afasta a cumplicidade moral (subsidiariedade).
A partir do momento em que todos são co-autores e todos praticam actos de
execução do homicídio (com, pelo menos, dolo eventual), têm de ser todos condenados por
homicídio consumado, não interessando saber qual deles deu efectivamente o golpe decisivo.
O co-autor é responsável pelo facto global, no qual toma parte directa e a sua
responsabilidade é por esse facto global.
Só poderiam (e deveriam) ser condenados por tentativa (e não por crime
consumado) se não existisse co-autoria, caso em que a actuação de cada um (enquanto autor
imediato) não permitiria responsabilizá-los pelo homicídio consumado (in dubio por reo).

Lisboa. 10 de Junho de 2014

! 9!

Você também pode gostar