Você está na página 1de 6

Hipótese (HELENA MORÃO)

O velho Barão do Campo Grande, doente do coração, viu-se obrigado a admitir no seu palacete um
enfermeiro interno a tempo inteiro. Após várias entrevistas, foi contratado AURÉLIO, enfermeiro especializado
no tipo de patologia cardíaca de que o Barão padecia.
AURÉLIO sabia que o Barão era um grande coleccionador de arte contemporânea, e ouvira dizer que um
dos seus quadros mais valiosos era um Miró que costumava estar pendurado por cima da lareira do salão de baile.
Certa madrugada, por volta das seis da manhã — quando ao silêncio do palacete se aliavam os primeiros raios de
sol — AURÉLIO, cauteloso, saiu do quarto de hóspedes onde dormia, dirigiu-se ao salão de baile e retirou o quadro
da parede. Na verdade, não se tratava do precioso Miró, mas de um desenho realizado pela pequenina bisneta do
Barão. Dias antes, muito orgulhoso do primeiro gatafunho da sua bisneta, o Barão mandara emoldurá-lo e dera-lhe
o lugar de honra que até então sempre pertencera ao Miró. Contudo, e uma vez que o desenho mais não era do que
um conjunto de rabiscos sem sentido, AURÉLIO (que visitara o Museu Miró durante umas férias em Barcelona)
nada estranhou, acreditando estar na posse da ambicionada obra de arte. Colocou o quadro debaixo do braço e
encaminhou-se para a janela, por onde pretendia fugir.
Entretanto, CUSTÓDIO, o mordomo, que tinha o sono muito leve, ouvira os passos de AURÉLIO. Julgando
haver ladrões no palacete, levantou-se, carregou o seu velho revólver com uma bala, e encaminhou-se para o salão
de baile, onde vislumbrou, por entre a semi-escuridão, um vulto junto da janela aberta, transportando aquilo que
lhe parecia ser um quadro. De imediato, apontou-lhe o revólver e vociferou: “Quieto! Tenho uma arma!”.
AURÉLIO, assustado, pousou imediatamente o quadro e retorquiu: “Se é pelo quadro, deixo-o aqui e saio já pela
janela”. CUSTÓDIO disparou, fazendo pontaria para um dos braços de AURÉLIO. Falhou o alvo, contudo, e a
bala saiu pela janela aberta. Nesse momento, Dona Mariazinha, a governanta, chegava ao palacete já munida de
pão fresco para o pequeno-almoço do Barão, e foi atingida no estômago pela bala disparada por CUSTÓDIO.
Receando um segundo tiro, AURÉLIO decidiu recorrer ao bluff e, brandindo o seu telemóvel na direcção de
CUSTÓDIO na esperança de que este o confundisse com uma arma, gritou: “Também estou armado, e sou bom
atirador!”. Efectivamente, CUSTÓDIO julgou que o assaltante estava prestes a alvejá-lo e, apesar de saber que o
seu revólver não tinha mais balas, decidiu erguê-lo novamente com o intuito de dissuadir AURÉLIO. Este, julgando
que CUSTÓDIO ia disparar, atirou com força o seu telemóvel à cabeça do mordomo, acertando em cheio e
produzindo-lhe um ferimento que, apesar de pouco profundo, imediatamente começou a escorrer sangue.
CUSTÓDIO desmaiou.
Neste preciso momento, o velho Barão, que acordara com o ruído do tiro, entrou no salão de baile. A visão
da cabeça ensanguentada do seu fiel mordomo foi um espectáculo demasiadamente terrível para o seu fraco
coração: sentiu uma forte dor no peito e caiu ao chão, sem sentidos. AURÉLIO percebeu que o Barão tinha sofrido
um ataque cardíaco e que, se não beneficiasse imediatamente de manobras de reanimação, morreria dentro de
minutos. Apesar disso, AURÉLIO saltou pela janela e fugiu. Pouco depois, o Barão morreu.
Dona Mariazinha veio a ser transportada para o hospital, onde morreria dois dias mais tarde, em
consequência de uma transfusão com sangue contaminado.

Aprecie a responsabilidade jurídico-penal dos intervenientes.


I. RESPONSABILIDADE JURÍDICO-PENAL DE AURÉLIO

A. Furto (arts. 203.º e 204.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal).

1. Tipicidade objectiva
Aurélio realiza, ao retirar da parede o quadro que acabou por não levar consigo, a descrição típica do crime
de furto (dito “simples”), previsto no art. 203.º do Código Penal, na forma tentada (arts. 22.º e 203.º, n.º 2, do
Código Penal).

2. Tipicidade subjectiva
A realização do tipo subjectivo de furto exige, como elemento subjectivo geral, o dolo (art. 13.º do Código
Penal) e, além disso e como elemento subjectivo especial, a “intenção de apropriação”.
Tem de discutir-se se o facto de Aurélio julgar, erradamente, que o quadro subtraído, sendo um Miró, teria
um valor elevado — o que, a ser verdade, levaria a que o seu comportamento instanciasse a descrição típica do
crime de furto qualificado, prevista no art. 204.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na forma tentada — será relevante
para efeitos de apreciação do dolo do tipo efectivamente realizado (o tipo de furto “simples”, na forma tentada).
Considera a larga maioria da doutrina que o tipo do art. 203.º é um tipo geral e que o do art. 204.º é, em
relação àquele, um tipo especial. Dir-se-á, pois, que qualquer comportamento típico de furto qualificado é
igualmente subsumível à descrição do art. 203.º. Deste ponto de vista, o erro de Aurélio não afecta o seu dolo de
subtrair coisa alheia: no que respeita ao art. 203.º, o erro(ignorância) de que a coisa que tentou subtrair não tinha
“valor elevado” é um erro que, por não incidir sobre um elemento da factualidade típica, não conduz à exclusão do
dolo (uma vez que Aurélio não desconhece que o quadro seja “coisa alheia”), devendo qualificar-se essa ignorância
como error in objecto irrelevante (trata-se de um erro idêntico, e.g., a um erro sobre a identidade da vítima na
realização do tipo de homicídio). Portanto, e uma vez que Aurélio igualmente age com a especial “intenção de
apropriação”, ter-se-á por realizado o tipo subjectivo do crime de furto “simples”, na forma tentada1.
A suposição de que o quadro tinha valor elevado seria relevante como tentativa (impossível) de furto
qualificado. Quanto a isso, ou se considera — solução que aqui se prefere — que o n.º 4 do art. 204.º impede que
se atenda à circunstância qualificante (ainda que meramente suposta), e se afasta logo a tipicidade daquela tentativa
impossível; ou se entende que, ao lado da realização dolosa do tipo de furto “simples” na forma tentada, subsiste
(no plano da tipicidade) a realização do tipo de furto qualificado na forma de tentativa impossível 2.

1
Para quem, contudo, entendesse, acompanhando uma doutrina muito minoritária (e de fundamentação muito discutível) que
o tipo objectivo do art. 203.º inclui, como elemento típico implícito, o requisito de que a coisa não tenha valor elevado, a
relação entre ambas as disposições será uma relação (não de especialidade, mas) de exclusão recíproca (ou alternatividade),
e o erro de Aurélio valeria como ignorância de um elemento (negativo) do tipo que objectivamente realizou. Por isso, por
aplicação da primeira parte do art. 16.º, n.º 1, do Código Penal, teria de excluir-se o seu dolo e, consequentemente (uma vez
que, além de, em geral, o tipo de furto não admitir a forma negligente, se tratava, de todo o modo, de uma tentativa), a
tipicidade subjectiva do seu comportamento. Subsistiria somente, nesse caso, a possibilidade de o punir pela tentativa
(impossível) de furto qualificado.
2 Caso, este, em que teria de colocar-se a questão de saber se poderiam ambos esses tipos concorrer (em concurso efectivo de

crimes) para a responsabilidade do agente.


3. Ilicitude e culpa
Por não haver causas que excluam a ilicitude do facto ou a culpa com que o praticou, Aurélio será punido
por um crime de furto “simples” tentado (seguindo -se aqui, quanto à discutida questão de tipicidade, e como se
escreveu, a maioria da doutrina).

B. Ofensa à integridade física (art. 143.º do Código Penal).

1. Tipicidade objectiva
Aurélio lançou o seu telemóvel à cabeça de Custódio. Para que este comportamento realize objectivamente
o tipo de ofensa à integridade física (art. 143.º do Código Penal) — que é um tipo material, ou de resultado — é
necessário que possam produzir-se, cumulativamente, um juízo de causalidade entre esse comportamento e o
ferimento sofrido por Custódio e um juízo de imputação objectiva de esse resultado àquele comportamento (art.
10.º, n.º 1 do Código Penal).
No caso, nenhum dos juízos coloca problemas: a causalidade está fora de dúvida, seja qual for a teoria que
queira adoptar-se (a formulação da conditio sine qua non, ou um juízo nomológico-subsuntivo às leis da natureza);
e, no que respeita à imputação objectiva, tanto um critério objectivo-concreto de previsibilidade do resultado
quanto um critério que atenda à criação ilícita de um risco que se concretize no resultado (ambos compatíveis com
o sentido da expressão “adequação” constante do art. 10.º, n.º 1, do Código Penal) conduzirão à sua afirmação.

2. Tipicidade subjectiva
Por ter representado “um facto que preenche um tipo de crime”, actuando “com intenção de o realizar” (art.
14.º, n.º 1 do Código Penal), Aurélio age com dolo (“directo”).

3. Ilicitude
Aurélio supõe que está prestes a ser alvejado por Custódio e, consequentemente, julga que com o seu
comportamento evitará essa putativa agressão. Trata-se de uma suposição errónea, uma vez que a pistola do
mordomo já não tinha balas, pelo que (por falta de pressupostos objectivos) não pode considerar-se que tenha
actuado em legítima defesa. Porém, uma vez que, na sua defesa putativa, não se “excedeu” (i.e.: se a agressão
suposta fosse real, o meio utilizado, por ser o único, não seria considerado excessivo), pode dizer-se do “estado de
coisas” suposto por Aurélio que, “a existir, excluiria a ilicitude do facto” por legítima defesa. Por isso, deve excluir-
se o seu dolo por via de aplicação do art. 16.º, n.º 2 do Código Penal
Subsiste, contudo, a punibilidade, “nos termos gerais”, da negligência (art. 16.º, n.º 3 do Código Penal).
Quanto a isto, deve dizer-se que, apesar de se encontrar previsto o tipo negligente (art. 148.º), só muito dificilmente
se considerará que, na hipótese, qualquer cuidado adicional da parte de Aurélio teria dissipado a suposição de que
Custódio iria disparar um segundo tiro. A ser assim, Aurélio não seria punido.
B. Homicídio por omissão (arts. 131.º e 10.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Penal); alternativamente, omissão
de auxílio (art. 200.º do Código Penal).

1. Tipicidade objectiva
Aurélio (apesar de não ter contribuído causalmente para a morte do Barão, pelo que se não coloca a hipótese
de o punir como autor por acção de um homicídio), por ter omitido a prática de manobras de reanimação que, por
hipótese, teriam sido adequadas a impedir a morte do Barão — em relação a quem, por força de uma assunção
contratual de funções de protecção, se encontrava pessoalmente obrigado a evitar esse tipo de resultados (ou, por
outras palavras, em “posição de garante”), nos termos do disposto no n.º 2 do art. 10.º do Código Penal — praticou
um comportamento típico de homicídio: nos crimes materiais, e segundo o art. 10.º, n.º 1 do Código Penal, a
omissão da acção adequada a evitar o resultado realiza a descrição típica.

2. Tipicidade subjectiva
Há, pelo menos, dolo necessário (art. 14.º, n.º 2 do Código Penal). O “elemento intelectual” do dolo está
verificado, uma vez que Aurélio sabia estar investido na referida posição de “garante” e representou o risco de
morte em consequência do seu comportamento omissivo, bem como a possibilidade de uma intervenção
potencialmente salvadora; e, quanto ao “elemento volitivo”, pode afirmar-se, se não que agiu com “intenção” de
que o Barão morresse, ao menos que representou essa morte como consequência necessária da sua fuga.

3. Ilicitude e culpa
Por não haver causas que excluam a ilicitude do facto ou a culpa com que o praticou, Aurélio será punido
por um crime de homicídio doloso consumado, por omissão.
Esta punição exclui a necessidade de que se analise a realização do tipo de “omissão de auxílio”, previsto no
art. 200.º, uma vez que entre ambos medeia uma relação de “subsidiariedade” implícita.

II. RESPONSABILIDADE JURÍDICO-PENAL DE CUSTÓDIO

Quanto a Custódio, estamos perante uma situação de aberratio ictus com identidade típica de objectos. A
maioria da doutrina resolve este tipo de casos por via da afirmação de um concurso (ideal) de tentativa e
consumação negligente, posição que se seguirá aqui; há contudo, quem defenda a punição por um crime doloso
consumado.

A. Ofensa à integridade física de Aurélio, na forma tentada (arts. 143.º, 22.º e 23.º do Código Penal).

1. Tipicidade objectiva
Ao disparar sobre Aurélio, errando o alvo por falta de pontaria, Custódio realizou o tipo objectivo de ofensa
à integridade física na forma tentada (art. 143.º e art. 22.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) do Código Penal).
2. Tipicidade subjectiva
Por ter actuado com intenção de produzir a referida ofensa à integridade física de Aurélio, Custódio actuou
com dolo directo (arts. 13.º e 14.º, n.º 1).

3. Ilicitude e culpa
Custódio não beneficia de qualquer causa de justificação: uma eventual legítima defesa dos interesses
patrimoniais do Barão ficou precludida a partir do momento em que Aurélio, pousando o quadro, fez cessar a sua
“agressão” ilícita (que, portanto, já não era “actual” no momento em que Custódio disparara).
Por não haver qualquer causa de exclusão da sua culpa, Custódio praticou o crime de ofensa à integridade
física de Aurélio, na forma tentada. Uma vez que a pena prevista no art. 143.º do Código Penal não excede três
anos, trata-se de uma tentativa não punível (art. 23.º, n.º 1 do Código Penal).

B. Homicídio de Dona Mariazinha (art. 131.º do Código Penal).

É possível afirmar um nexo de causalidade entre o comportamento de Custódio e a morte de Dona


Mariazinha. O art. 10.º, n.º 1, do Código Penal exige, contudo, que possa imputar-se o resultado típico à acção
praticada segundo um critério de “adequação” — integrado quer com juízos de previsibilidade (ou “prognose”
objectiva-concreta do resultado verificado, quer com juízos que atendam à conexão de “risco” entre
comportamento e resultado — e, no caso da hipótese, essa imputação não pode ser afirmada. Segundo o juízo
objectivo-concreto de prognose póstuma com que opera a teoria da “causalidade adequada”, a morte de Dona
Mariazinha em consequência de uma transfusão com sangue contaminado excede já a esfera das consequências
previsíveis do comportamento de Custódio; do mesmo modo, não é possível afirmar-se que a esfera de risco
ilicitamente criado pelo comportamento de Custódio abranja este resultado, na configuração concreta que assumiu.
Deve, portanto, considerar-se que o comportamento de Custódio não realiza o tipo objectivo de homicídio, pelo
que não poderá punir-se o agente pela respectiva prática.

C. Ofensa à integridade física de Dona Mariazinha (art. 143.º do Código Penal)

A possibilidade de responsabilizar Custódio pela produção de ofensa à integridade física de Dona Mariazinha
deve ser equacionada, uma vez que não foi possível imputar objectivamente a morte desta ao seu comportamento
(caso em que, por força das regras do concurso de normas, poderia estar afastada a responsabilização, em concurso
efectivo, pela prática do crime previsto no art. 143.º, cuja análise agora se retoma).

1. Tipicidade objectiva
Entre o comportamento de Custódio e a lesão sofrida por Dona Mariazinha (que foi atingida no estômago
pela bala disparada por aquele) pode estabelecer-se, sem dificuldades, um nexo de causalidade; e, uma vez que —
agora sem dúvidas — pode afirmar-se que essa lesão particular foi concretização previsível do risco ilicitamente
criado com o disparo, tendo em conta as circunstâncias do caso (o facto de a janela estar aberta, ou a previsibilidade
de que, àquela hora, pudesse passar alguém no exterior da casa, e.g.), tem de concluir-se que aquele comportamento
foi, no sentido dado à expressão pelo art. 10.º, n.º 1 do Código Penal, “adequado” a produzir o resultado. Por isso,
encontra-se objectivamente realizado o tipo de ofensa à integridade física (art. 143.º do Código Penal).

2. Tipicidade subjectiva
Nenhum dos elementos descritos na hipótese autoriza a suposição de que Custódio tenha sequer
representado, no momento em que actuou, a possibilidade de alvejar Dona Mariazinha. Por isso, não é possível
imputar-lhe esse resultado a título doloso, já que o “elemento intelectual” do dolo exige, no mínimo, aquela
representação (art. 14.º). É viável, todavia, e uma vez que a punibilidade da negligência se encontra expressamente
prevista na Parte Especial do Código Penal (arts. 13.º e 148.º), a imputação a título de negligência (inconsciente:
art. 15.º, n.º 2, alínea b)).

3. Ilicitude e culpa
Por não haver causas que excluam a ilicitude do facto ou a culpa com que o praticou, Custódio será punido
por um crime de ofensa à integridade física por negligência.

Você também pode gostar