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Direito Penal II

Os presentes apontamentos foram realizados na sequência da regência da professora


Maria Fernanda Palma (Turma B ano lectivo 2016/17), aulas práticas da professor João
Matos Viana e na leitura estudada dos manuais de Direito Penal Tomo I (Figueiredo
Dias), Direito Penal: Parte geral, Da Tentativa Possível, O Princípio da Desculpa
(Maria Fernanda Palma).

Índice

1. A Acção Positiva…………………………………………………………pág.3
2. A Omissão……………………………………….………………………..pág.4
2.1. A teoria material-formal de Figueiredo Dias…..……………………….....pág.6

3. Imputação Objectiva……………………..………………………….....pág.10
3.1. Teoria das condições equivalentes………………………………………..pág.11
3.2. Teoria da causalidade adequada…………………………………………..pág.11
3.3. Teoria do risco…………………………………………………………….pág.13
3.4. A causalidade virtual……………………………………………………...pág.16

4. Imputação Subjetiva…………………………………………………..pág.17
4.1. Momento intelectual do dolo…………………………………………pág.17
4.2. Momento volitivo do dolo……………………………………………pág.22

5. Ilicitude………………………………………………………………....pág.25
5.1. Elementos objectivos e subjectivos da acção…………………………....pág.26
5.2. Preenchimento do tipo objectivo mas não do tipo subjectivo…………...pág.28
5.3. Efeitos de exclusão da causa de justificação…………………………….pág.30
5.4. Legítima defesa……………………………………………………….....pág.31
5.5. Estado de necessidade justificante………………………………………pág.39
5.6. Conflito de deveres……………………………………………………...pág.43
5.7. Consentimento justificante……………………………………………...pág.44
5.8. Outras causas de justificação………………………………………........pág.48

6. Culpa…………………………………………………………………..pág.51

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7. Comparticipação………………………………………………………..pág.59
7.1. Formas de autoria…………………………………………………………pág.61
7.1.1. Autoria imediata…………………………………………………...pág.61
7.1.2. Autoria mediata…………………………………………………....pág.61
7.1.3. Co-autoria………………………………………………………….pág.66
7.1.4. Autoria paralela……………………………………………………pág.68
7.1.5. Início da tentativa………………………………………………….pág.68
7.2. Instigação………………………………………………………………….pág.70
7.3. Cumplicidade……………………………………………………………...pág.70
7.3.1. Cumplicidade e participação……………………………………….pág.70
7.3.2. Fundamento de punição da cumplicidade………………………….pág.71
7.3.3. A acessoriedade da cumplicidade………………………………….pág.71
7.3.4. O momento temporal da cumplicidade…………………………….pág.72
7.3.5. Dolo na cumplicidade……………………………………………...pág.72
7.3.6. Espécies de cumplicidade………………………………………….pág.73
7.3.7. Punição do cúmplice……………………………………………….pág.74
7.4. Cumplicidade e tentativa………………………………………………….pág.75

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Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Introdução
Em Direito Penal II estudam-se os pressupostos de responsabilidade penal, são eles: a
acção e omissão; a tipicidade (a imputação objectiva e imputação subjectiva); a ilicitude;
e a Culpa. Estando preenchidos, o sujeito penal praticou um crime.

1.Acção Positiva
O primeiro dos pressupostos é o facto que tanto inclui a acção e a omissão. O direito penal
é um direito penal do facto e não do agente. Um agente só viola o direito se o violar
efectivamente e não por ter apetência a fazê-lo. Posto isto questiona-se se todos os factos,
que sejam acções, são relevantes para o direito penal. Surgem dois casos debatidos:

• Movimentos reflexos: o agente reage por uma reacção corporal e não por dirigir
o seu corpo à acção12. Como não existe qualquer dirigibilidade ou poder de
controlo por parte do agente, estes factos não são qualificados como acção, e como
tal, não são relevantes para o direito penal3.
• Automatismos: são movimentos4 que estão de tal forma interiorizados e
motorizados que determinam reacções imediatas sem a ponderabilidade de
decisão5. De acordo com Fernanda Palma haverá acção quando houver
previsibilidade e evitabilidade da situação e do estímulo que suscita o facto.

Tanto os movimentos reflexos como os automatismos são analisados de acordo com a


dirigibilidade. No entanto, outro critério que é utilizado para excluir a relevância penal
do facto é o de os actos anteriormente praticados. Encaixa nesta sede a Actio Libera in
causa.

Se um agente estiver em estado de inimputabilidade, em princípio não terá


responsabilidade penal. Porém, quando tiver causado esse estado de inimputabilidade
apenas para praticar o crime, é excluída a inimputabilidade (art.20º/4)6. Daí que se chame
“acção livre na causa”.

Ainda assim apenas estão abrangidos pelo art.20º/4 o dolo directo e necessário. Quando
o dolo for eventual ou houver negligência não se pune o facto, mas a autocolocação no

1
A tem um vaso na mão, B assusta-o e, com o susto, A larga o vaso e este parte-se ao cair no chão.
2
Está em causa a convocação do sistema nervoso periférico. Chega-se até à espinal medula, mas não até
ao cérebro (ou sistema nervoso central), provocando um estímulo.
3
A estava na praia com uma faca a cortar fruta. B deitou água gelada sobre A e este pelo choque térmico
esticou o braço e esfaqueou C. Não existe acção; A estava no miradouro que começou a desabar. Numa
reacção defensiva A agarra em B e arrasta-o consigo, acabando por morrer os 2. Também neste caso não
existe acção.
4
Que diferentemente dos movimentos reflexos chegam até ao cérebro.
5
Escrever estes apontamentos, conduzir. São movimentos que fazemos automaticamente sem pensar nem
individualizar cada acção.
6
Se A toma substâncias que o levam a um estado de inimputabilidade apenas para matar B, considera-se
imputável perante a sua acção.

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estado de inimputabilidade (art.295º), funcionando a prática do facto como uma condição
objectiva de punibilidade7.

2. Tipo de Ilícito dos Crimes de Omissão


Tipo de ilícito objectivo (pressupostos comuns a todo o delito de omissão).

Já se explicou que o facto tanto engloba a acção como omissão. Mas será que todas as
omissões são relevantes? E quais são os pressupostos comuns das omissões relevantes?
Distingue-se omissão própria de imprópria porque a primeira tem o seu conteúdo típico
directamente descrito na lei (art.200º), a segunda resulta da cláusula de equiparação do
art.10º/2.

a) A “situação típica” e a ausência de acção esperada. A primeira é constituída


por pressupostos fácticos que permitem determinar o conteúdo concreto do dever
de actuar. Quanto aos delitos próprio não existe problema ao determinar uma vez
que o molde legal assim descreve os pressupostos do dever de actuar. Já para os
delitos impróprios na medida que é necessário recorrer à cláusula do art.10º CP/2,
reduz-se à criação de um risco de verificação de um resultado típico (ela existe
desde que aquele risco ocorra ou seja potenciado por força da omissão).
Já para a segunda (ausência de acção esperada), é conforme à situação típica, mas
ambos se verificam na lei tanto para próprios como impróprios.
b) Possibilidade fáctica de acção. Tem de existir uma possibilidade do omitente
levar a cabo a acção esperada ou devida. Se o dever for impossível, neste caso não
lhe seria esperado tal dever. Refere Figueiredo Dias que o “pessoalmente” no
art.10º/2 CP para a punibilidade do agente assenta na consequência do princípio
ad impossibilita nemo tenetur ou obligatur. É exigida então uma capacidade
fáctica individual de acção – na sua falta existe uma verdadeira causa de
atipicidade do comportamento. Existe falta de capacidade fáctica quando existe
falta de capacidade corpórea ou física de acção ao agente (omitente)8.
Em lugar de impossibilidade física podemos equiparar a incapacidade técnica
(falta de conhecimentos ou de meios de auxílio)9

7
Quer isto dizer que o agente pode colocar-se no estado de embriaguez, mas só será punido se praticar o
facto típico, como matar, furtar, sequestrar. Se A alcança um estado de inimputabilidade para matar B e
depois nada faz, não é punido.
8
Não será exigido a um pai paralítico (de esquerda) salvar o filho que cai ao lago e está a afogar-se – o pai
está impossibilitado de praticar a acção de salvamento. No entanto este pode gritar por ajuda e o apelo já
se enquadraria numa acção possível e o pai seria então capaz para esse efeito.
9
Um electricista que nada percebe de primeiros socorros não comete uma omissão de auxilio se não
estancar uma hemorragia, assim como se este não souber operar com telemóveis (o que seria estranho) não
lhe seria exigido ligar para o 112, ainda se este estivesse sozinho com a vitima numa cave, longe da
comunidade, não lhe seria igualmente exigido gritar por socorro (embora fosse conveniente). Aqui não há
propriamente uma incapacidade de acção – ele pode agir, mas não sabe como ou mesmo que saiba de nada
vale, há então aqui uma impossibilidade jurídica – insubstância em casos do dever jurídico de actuar.

4
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Problema da imputação objectiva. Podemos falar de causalidade em omissão?

a) Finalistas referem que que não – veja-se KAUFMANN e WELZEL. A


causalidade apenas pode ser real para os delitos omissivos. Mas pode existir do
ponto de vista normativo – veja-se ROXIN: “ causalidade da omissão como
condição conforme à lei”.
b) Figueiredo Dias prossegue essa ideia do ponto a) assim: o comportamento
esperado não levado a cabo é dotado de uma força causal potencial ou hipotética
(resultante de adequação típico-normativa), é por isso necessário apelar à
idoneidade não do comportamento eventualmente levado a cabo mas do
comportamento esperado ou devido para chegar a um resultado. Resposta: pode-
se falar de causalidade em omissão se fizermos uma “conexão do risco”: a acção
esperada ou devida deve ser uma tal que teria diminuído o risco de verificação
do resultado típico.

A posição de garante: Como a cláusula de equiparação do art.10º/2 não descreve que


agente pode estar em causa, é necessário apurar critérios que permitam identificar quem
tem esta posição de garante.

Nos tipos de ilícito impróprios de omissão – imputação objectiva do resultado apenas


pode ser feita àquele sobre qual recaia “um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a
evitar esse resultado”, art. 10º nº2 CP. Assim se constitui num dever de garante da não
verificação de um resultado típico. De acordo com o princípio da legalidade na vertente
de nullum crimen sine lege, de que modo se delimita os deveres de garantia penalmente
relevantes? (3 precisões necessárias):

a) DAMIÃO CUNHA refere que “dever jurídico” significa dever que “tem de
assentar numa relação de confiança susceptível de produzir efeitos jurídicos.
b) Dever jurídico que pessoalmente obrigue o garante significa não se tratar de um
dever geral mas de deveres concretos que ligam o garante a determinados
deveres de protecção de bens jurídicos ou de fiscalização de fontes de perigo
também elas determinadas.
c) Mais uma vez, interligar a obrigação de levar a cabo a “acção adequada a evitar
o resultado”, art. 10º nº1 CP.

Respostas:

i) Teoria Formal do dever jurídico e das posições de garante: crime de


omissão pressupõe um especial fundamento jurídico (lei ou contrato) e daí
se extrai a base da obrigatoriedade. Acrescenta-se ainda á lei e contrato outra
fonte: situação de ingerência (situação de perigo anterior criada pelo
omitente). Críticas do Prof. JFD (2): a) está ultrapassada esta visão do séc.

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XIX, naturalística e positivista, apresenta valores insubsistentes porque
renuncia a uma consideração dos conteúdos dos deveres assim criados; b)
não possui um elemento material delimitador – critério material de ilicitude
da inobservância do dever de actuar.
ii) Teoria das Funções: concepção material na medida que permite ligar a
infracção daquele dever a um sentido de ilicitude material – veja-se
KAUFMANN: os deveres de garantia se fundam ou numa função de guarda
de um bem jurídico concreto ou numa função de vigilância de uma fonte de
perigo. Criação de deveres de protecção e assistência para o primeiro caso
(pai e seu filho menor p.e) e uma determinante de deveres de segurança e
controlo para a segunda (controlador do tráfego aéreo relativamente à
movimentação dos aviões p.e), mas o garante nesta segunda apenas tem de
fiscalizar as fontes de perigo determinadas.

2.1. Teoria material-formal de Figueiredo Dias


Dadas as complicações que a cláusula de equiparação comporta para o nullum crimen
sine lege, convém delimitar pormenorizadamente as posições do garante. JFD apresenta
vários critérios e fontes de deveres de garante. Por outro lado MFP defende um único
critério, tem que haver uma forma de auto-vinculação para assumir um dever prévio à
omissão.

2.1.1. Deveres de protecção e assistência a um bem jurídico em perigo


Os deveres de protecção e assistência de bens jurídicos desamparados podem provir de
vários tipos de relações, sejam familiares ou análogas, ou ainda de relações do agente
para com a comunidade. Em qualquer dos casos o dever de garante fundamenta-se em
relações fácticas- no sentido da aludida proximidade sócio-existêncial - entre aquele
sobre quem a lei faz recair certo dever e o bem jurídico lesado pelo resultado,
nomeadamente em situações de dependência daquele.

2.1.1.1. Relações de protecção familiar e análogas


As relações entre pais e filhos consubstanciam as posições mais evidentes de garante por
força de deveres de protecção e assistência. Por um lado, a lei civil avança neste sentido
(art.1874º CCiv), por outro, a própria relação de proximidade natural, que demonstra
posições de dependência e de guarda, justificam estes deveres.

A ausência física dos pais não exclui necessariamente a sua posição enquanto garantes.
A relação cessa ou atenua-se juridicamente quando o filho abandona o âmbito de

6
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protecção dos pais (também segundo a sua idade e condição); ou quando os pais e
separam, encarregando-se apenas um deles da protecção e assistência do filho.

Este dever subsiste relativamente a cada um dos pais, mesmo quando o perigo provém do
outro10.

A estes casos de relações familiares devem ser medidos pela particular proximidade, seja
esta definida pela coabitação ou pela dependência. Este critério deve valer para as
restantes relações desde avós/netos, irmãos, cunhados, sogros, genros ou noras, primos e
ainda namorados/noivos se a sua situação for análoga à dos cônjuges.

O caso dos cônjuges pressupõe relações fácticas de solidariedade resultantes de uma


comunidade de vida efectivamente existente11, deve haver um projecto de vida comum.
A relação conjugal tem que ser avaliada caso a caso, porque pode haver casos em que os
cônjuges se mantenham como tal apenas por razões económicas, e podem casos de
ruptura em que mantenham a sua relação fáctica de solidariedade.

2.1.1.2. Assunção de funções de guarda e assistência


A assunção de funções de guarda e assistência a bens jurídicos do carente de protecção
fundamenta uma posição de garante. Mas note-se que o verdadeiro fundamento não é a
relação contratual entre as partes, mas sim a assunção fáctica de uma função de protecção
materialmente baseada numa relação de confiança. Releva aqui a circunstância do carente
de protecção confiar na disponibilidade interventora12 do garante, assim se sujeitando a
riscos acrescidos ou dispensou outra protecção.

As autoridades e funcionários que tenham por tarefa zelar13 por um especial círculo de
interesses e, nesta medida, afastarem perigos para bens jurídicos de terceiros e da
colectividade, assume uma posição de garante pela não verificação de resultados típicos.
Mas esta posição de garante por parte de autoridades e funcionários só deve afirmar-se
quando o concreto bem jurídico carenciado de protecção lhes está confiado de forma
imediata, de tal modo que em a sua segurança dependa da acção daqueles.

10
Ac. Da ARC 1/6/1988, condenou a mãe por homicídio por omissão a mãe que teve plena consciência que
a conduta do pai (dando vinho misturado com veneno ao filho) conduziria necessariamente à morte do filho.
A mãe podendo ter contrariado a conduta do pai, nada fez.
11
A lei civil também ajuda (art.1672º CCiv)
12
Instrutor de natação ou alpinista que se compromete a dirigir a excursão à montanha.
13
E existirá dever de garante consoante o tipo de função assumida.

7
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2.1.2. Comunidade de vida e de perigos
Por força das relações de confiança e de dependência mútuas que no grupo se estabelecem
e se corram riscos acrescidos ou sejam dispensadas outras medidas de protecção, devem
ser imputadas posições de garante.

Esta situação é abrangida pelas mencionadas anteriormente para caracteriza-se pelo


frequentar de uma actividade com riscos onde recairão deveres nas relações estreitas e
efectivas entre agentes. É uma questão de prevenção geral de perigos, mas que funciona
quando o perigo já pesa sob a vítima.

2.1.3. Deveres de vigilância e segurança face a uma fonte de perigo


Estas situações caracterizam-se pela proximidade do garante com uma fonte de perigos.
O agente deve assim vigiar e controlar a fonte de perigo14 de modo a que providencie pela
não lesão dos bens jurídicos que são vistos como potencialmente afectados pela fonte de
perigo.

2.1.3.1. Dever de obstar à verificação do resultado por força de uma


acção anterior (ingerência)
Quem cria um perigo, ilicitamente ou não diminui um risco (ilicitamente), que pode
afectar terceiros (ingerência) deve cuidar de que ele não venha a actualizar-se num
resultado típico.

O resultado típico tem de considerar-se objectivamente imputável, segundo as regras


gerais, ao incumprimento do dever de garante. Por isso não assume uma posição de
garante, aquele que com o seu facto precedente se contém dentro dos limites do risco
permitido. Para além disso, a criação de perigo tem ainda de ter sido ela própria,
objectivamente ilícita. Não haverá dever de garante se a sua actuação anterior se
encontrar justificada15. MFP discorda desta posição porque em casos de riscos especiais
o agente deve responder na mesma

14
Mas é este o seu único dever.
15
Salvo se a justificação for o estado de necessidade justificante. Nessa situação, o agente interveio no
âmbito de liberdade de uma pessoa a quem não cabe qualquer responsabilidade pelo estado de necessidade.
O agente retirou da esfera do lesado, a possibilidade deste se auto-tutelar.

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2.1.3.2. Dever de fiscalização de fontes de perigo no âmbito do
domínio próprio
A comunidade tem de poder confiar em quem exerce um poder de disposição sobre um
âmbito de domínio ou sobre um lugar determinada, que se encontram acessíveis a outras
pessoas. O agente deve dominar os riscos que para estas podem resultar estados ou
situações perigosas16.

O proprietário ou possuidor de coisas, instalações, máquinas, está obrigado a controlar os


perigos que delas provêm e a impedir que se produzam danos em bens jurídicos alheios.

Ficam de fora os casos em que alguém penetra o domínio do dono ou que este tomou as
devidas precauções. Se o responsável por uma construção coloca um letreiro visível a
proibir a passagem a estranhos à obra, não pode ser responsabilizado se alguém salta a
cerca ou a destrói para penetrar na construção e em consequência sofre danos pessoais.
Aplica-se o princípio da auto-responsabilidade.

Mas este critério só é utilizável no âmbito de actividades duradouras. O caso do produtor


é um caso interessante que se inscreve dentro das actividades duradouras. Quem fabrica
medicamentos, automóveis, produtos de beleza, produtos alimentares, produtos tóxicos
ou corrosivos, etc., detém sobre o produto uma posição de domínio. O produtor é o único
que se encontra suficientemente informado sobre os riscos do produto que fabrica, e por
isso, impõe-se a ele um dever de fiscalização conducente a evitar situações mesmo só
potencialmente lesiva de bens jurídicos do consumidor.

2.1.3.4. Dever de garante face à actuação de terceiros


Contrariamente ao estatuído pelo princípio da auto-responsabilidade, existem situações
em que alguém é responsável pelas actuações de outrem. Falamos de casos em que o
terceiro não é responsável ou tem a sua responsabilidade diminuída. Sobre estes terceiros
existe quem tenha um dever de vigilância. Deste modo, os garantes têm deveres de
vigilância e segurança a perigos que partam dos terceiros17.

Também, neste sentido, tem vindo a lei a apontar deveres de garante no que respeita a
membros de órgãos directivos e de fiscalização de sociedades anónimas. Discute-se se as
pessoas que, dirigem e fiscalizam actividade empresarial privada, podem vir a ser
responsabilizadas face a factos ilícitos cometidos pelos seus subordinados. JFD
pronuncia-se pela afirmativa dizendo que o pessoal dirigente deve cuidar de que a fonte

16
Pe: empresários, industriais, comerciantes e em geral possuidores de estabelecimentos e instalações que
devem conservar em condições de segurança para trabalhadores e para a generalidade das pessoas, evitando
acidentes.
17
Como acontece com a direcção e pessoal de estabelecimentos de internamento destinados a doentes
mentais ou ao cumprimento e penas privativas da liberdade. Igual dever recai sobre os pais, professores de
crianças ou adolescentes menores etc..

9
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de perigos (a empresa) permaneça sob controlo de segurança, partam perigos do potencial
material ou pessoal da empresa.

2.1.4. Posições de monopólio


À semelhança dos deveres de fiscalização de fontes de perigo no âmbito do domínio
próprio, a posição de monopólio abarca as situações que ficaram de fora da categoria do
domínio próprio. O domínio próprio abrangia situações de actividade duradoura, por
outro lado, a posição de monopólio comporta situações diversas e instantâneas. Conclui-
se que tem um dever de garante quem, ainda que for fortuita ou acidentalmente, estiver
numa posição de domínio fáctico absoluta da fonte de perigo.

Assim, exige-se que o agente:

a) Esteja efectivamente investido, mesmo que fortuitamente, numa posição de


domínio fáctico absoluto e próximo da situação18;
b) Que o perigo em que incorre o bem jurídico seja agudo e iminente
c) Que o agente possa levar a cabo a acção esperada, como numa acção de
salvamento, sem ter de incorrer numa situação perigosa ou danosa para si mesmo.

Apesar dos bons fundamentos éticos e sociais desta posição do monopólio, para alguns
autores, não se justifica a atribuição de um dever de garante. O agente nestas situações
recai na previsão do art.200º, mas não da cláusula de equiparação do art.10º/3. MFP
justifica esta posição, porque não houve qualquer forma de auto-vinculação do agente.

2.2. Posição de garante e dever de garante


Na omissão pura atende-se à situação típica, à ausência da acção imposta e a possibilidade
individual de acção. Na omissão impura acresce o resultado típico objectivamente
imputável à omissão e a posição do omitente de garante da não verificação do resultado.

3. Imputação Objectiva
O tema aqui abordado retrata a imputação (atribuição) do resultado à conduta do agente
em crimes de resultado. Por outras palavras, a atribuição do resultado à acção num sentido
de conexão entre o comportamento humano e o resultado obtido desse comportamento.

18
E não tem que ser o único agente. Se estiverem 40 pessoas no domínio fáctico e todas se absterem de
agir, incorrem todas em responsabilidade por omissão.

10
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
A grande questão aqui colocada é de até onde vai essa imputação? A este propósito de
atribuição de uma delimitação à imputação surgem as teorias das condições equivalentes;
causalidade adequada; teoria do risco:

3.1. Teoria das Condições Equivalentes19


Nomeadamente sobre a forma da “conditio sine qua non” em que a(s) causa(s) de são
todas as condições para existir o resultado – causa de um resultado é toda a condição sem
a qual o resultado não teria lugar. Neste sentido e aqui importa a sua grande característica:
todas as condições contribuem para o resultado em pé de igualdade uma vez que o
resultado é indivisível.

Figueiredo Dias acusa que esta teoria é demasiado ampla – argumento do regressus ad
infinitum – uma vez que se podia regredir de forma ridícula à causa mais distante (p.e
incriminar os pais do assassino por estes terem praticado o acto de concepção da sua
existência); não resolve problemas de interrupção do nexo causal por terceiro; não resolve
questões de causalidade virtual (p.e A mata B por disparo no momento em que este tem
um ataque); dupla causalidade (A e B metem veneno de forma igual para causar a morte
de C); ou situações de risco (p.e em situações de atentados ao ambiente, manipulação
genética ou actuações cirúrgicas de risco).

3.2. Teoria da Causalidade Adequada20


Surge no âmbito da inutilidade da teoria anteriormente descrita, fazendo ainda recurso a
leis da experiencia, de base estatística ou probabilística, formando uma teoria embora não
sendo esta, da Causalidade Adequada, fez uma maior aproximação, mas insere-se no
ponto a). Mas sobre a Causalidade Adequada, esta parte de uma valoração jurídica ao
objecto, mas de forma muito mais delimitadora do que a Teoria das Condições
Equivalentes.

Surge-nos como uma segunda fase da causalidade. Aqui a característica essencial é: as


condições não têm todas a mesma valoração para um resultado, elas carecem de ser
diferenciadas. A diferenciação parte de uma escolha entre causas relevantes e causas
irrelevantes para a valoração da ilicitude. As relevantes são aquelas que são previsíveis
nos termos do homem médio naquelas circunstâncias, isto é, a capacidade geral do
homem quanto às direcções dos processos causais. Noutros termos e nas palavras de
Figueiredo Dias, são relevantes aquelas que, segundo as máximas da experiência e a
normalidade do acontecer, são idóneas para produzir o resultado21. Em sentido
contrario, as irrelevantes são aquelas imprevisíveis, anómalas, ou de verificação rara para

19
É uma teoria de causalidade.
20
É uma teoria de imputação.
21
Critério da previsibilidade.

11
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
a produção de um resultado – p.e uma chapada numa pessoa que tenha especiais
problemas a nível do crânio e que morra da devida chapada (isto claro sem que o agente
conhecesse a condição especial e anómala da vitima).

A nossa lei nos arts.10º e 22º CP parece indicar a teoria da adequação através da referência
à “acção adequada” a produzir certo resultado, como à “omissão da acção adequada a
evitá-lo” (art.10º/1).

Posto isto, as dificuldades passam pelo facto de a adequação ser feita de forma geral e
objectiva, prescreve um juízo ex ante e não um juízo de prognose póstuma22. O juiz tem
de voltar mentalmente ao passado à data da conduta enquanto observador objectivo
dispondo de regras de experiência e normal acontecer dos factos, comprovando se a acção
praticada teria como consequência a produção do resultado. Se a produção do resultado
era imprevisível ou improvável, a imputação não deverá ter lugar.

Mas para além dos conhecimentos relativos à experiência comum, é necessário atender
aos conhecimentos especiais do agente. Se o agente sabe que alguém tem determinada
doença ou sensibilidade que possa provocar a morte, se agredir este último, resultando na
morte, o resultado deve ser imputado23.

Há ainda situação de interrupção do processo causal ou nexo causal por intervenção de


terceiros. A actuação de terceiro que se integre no processo causal desencadeado pelo
agente excluirá a imputação, salvo se ela aparecer como previsível e provável24.

O problema é que a teoria da causalidade adequada não nos fornece resposta correcta para
as situações que envolvem actividades de risco para bens jurídicos – actividades digam-
se lícitas ou permitidas, como p.e a condução rodoviárias, o transporte de material
perigoso, intervenções médicas arriscadas.

3.3. Teoria do Risco


Segundo Fernanda Palma surgem duas maneiras de encarar ou perspectivar o
surgimento desta teoria:

i. Forma de delimitar a teoria da adequação;


ii. Teoria completamento autónoma face à adequação e com respostas diferentes.

22
Posterior à verificação do resultado. “Prognose” significa conhecimento antes e “póstuma” significa
depois de verificado o resultado.
23
Ac. STJ 21/4/1994, Proc. 046105: “apenas comete o crime de ofensa à integridade física simples (art.143º
CP) o arguido que dá um empurrão no ofendido, apesar de este vir a falecer em consequência de enfarte do
miocárdio, desde que não se provou que ele tinha conhecimento dessa doença cardíaca e que tivesse
utilizado esse empurrão para fazer surgir tal enfarte”.
24
A deixa uma arma carregada em local onde B e C travam violenta discussão, pode ser imputada a A a
morte de C se esta foi produzida por disparos efectuados por B com essa arma apenas quando, face à
intensidade da querela, se possa considerar normal que um dos contedores pegasse na arma e disparasse.

12
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Adiantamos desde já que Fernanda Palma no seu método diz-nos que ambas devem ser
interligadas. Isto é, a resolução parte primeiro da teoria da causalidade adequada, se a
resolução se mostrar insuficiente então partimos para a teoria do risco da qual iremos
explicar. Porém em situação de conflito em que a imputação pode partir de ambas, devem
ser aplicada aquela que for mais conforme aos princípios já abordados da legalidade,
tutela subsidiária de bens jurídicos e necessidade da pena.

Figueiredo Dias refere-nos que deriva da limitação da imputação do resultado negando


certas situações de imputação da adequalidade. Por isso podemos dizer resumidamente
que esta teoria defende: uma imputação do resultado a condutas das quais derivam um
perigo idóneo de produção de resultado. Mas só é imputado quando a acção apresente um
risco proibido para um bem jurídico (abrange situações de criação ou aumento de perigo).
Dito de outro modo, a quem cria ou aumenta um risco proibido, e esse risco
actualiza-se num resultado, é imputado o objectivamente o resultado ao seu facto.
Aquele resultado tem que ser explicado por aquele risco proibido, se alguém morre, o
risco proibido tem que ser um risco de morte.

Para a teoria do risco, a concretização no resultado explica-se por duas vias:

1) Havendo regra expressa, viola-se essa regra.


2) Não havendo regra expressa, utiliza-se o critério da causalidade adequada, a
previsibilidade.

3.3.1. Criação de um risco não permitido


Teremos então de determinar a existência de um círculo de riscos, onde estão
compreendidos riscos permitidos e fora deste círculo estão os proibidos – delimitação do
risco. Sempre que o agente diminui ou atenua o risco de lesão de um bem jurídico não
deve ser-lhe imputado tal resultado, por exemplo: um agente que parte um braço a um
civil quando o empurra para o chão no âmbito de um tiroteio (para lhe salvar a vida),
assim como se protege um bem maior, é lícito e devido que o agente tenha essa conduta.
Seguir a causalidade adequada implicaria que o agente tivesse realizado a lesão típica do
bem jurídico, mas lícita por se estar perante um estado de necessidade (art.34º). De acordo
com a teoria do risco, exclui-se, desde logo, a imputação objectiva, pois, houve a criação
de um risco permitido, que colocou o bem jurídico em melhor situação. Por isso, não
houve lesão típica do bem jurídico.

A imputação é também excluída nos casos em que o resultado tenha sido produzido
por uma acção que não ultrapassou o limite do risco juridicamente permitido, uma
vez que vivemos num mundo repleto de riscos provenientes de actividades que a
sociedade não pode prescindir e assim, não pode o Direito Penal punir tais actividades,
dada a sua ultima ratio em sancionamento de comportamentos que são tolerados. São
exemplos: condução rodoviária, a colocação de químicos em produtos agrícolas. Em
especial as áreas da medicina são consideradas de um risco acrescido em certas operações.

13
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Estas actividades de risco são permitidas e aceites socialmente. O mundo actual depende
das mesmas e, como tal, não há como as impedir. Mas o que cabe ao Direito, é definir as
precauções e cuidados a ter na prática dessas actividades. Neste âmbito surgem as
normas25 da circulação rodoviária, do uso de produtos prejudiciais para a saúde, das
construções civis, entre outros.

Dentro do risco permitido está o chamado risco geral da vida dotado de uma medida
normal, isto é se são adequados e se não cabem nos riscos proibidos. Fala-se de riscos
socialmente adequados, vejamos o seguinte exemplo: médico receita um antibiótico a
um paciente, mas não tem que provir por todos os exames indispensáveis para saber se o
paciente não é sensível ao mesmo antibiótico26.

A propósito da teoria do risco, convém voltar a debater o ponto da interrupção do nexo


de causalidade, ou seja, aquelas situações que o resultado se verifica em consequência
de uma co-atuação da vítima ou do terceiro. Aqui a solução para FD domina-se pelo
princípio da auto-responsabilidade da vítima ou de terceiro27. O contrário só se
verifica quando a conduta do terceiro ou vítima for, em concreto, altamente provável.

3.3.2. Potenciação do risco


Por outras vezes, o risco de perigo já existe e um agente piora a situação em
consequência de criar uma maior ameaça para o bem jurídico. O risco é assim
aumentado ou potenciado pela conduta do agente. Seguem-se os exemplos do agente que
agride ou agrava o estado corporal de um doente ou moribundo; do condutor da
ambulância, que em virtude de manobra errada causa a morte de um paciente transportava
em emergência. Sucede o mesmo no caso de intervenção/interrupção num processo causal
de salvamento, em situações em que um agente impede o outro (que pratica o acto de
salvamento) de efectivamente salvar, ou diminuí as chances de salvamento28.

3.3.3. A concretização do risco não permitido no resultado típico

25
Em alguns casos, a legis artis, ou seja a regulação legal confia nas regras definidas pelos especialistas no
sector em causa, como a medicina e construção civil.
26
Neste caso, o médico deve informar o paciente, mas não é responsável, se o paciente sofrer determinados
danos, se tais acontecerem por o paciente não ter realizado determinado exame em determinada fase da sua
vida para identificar a sensibilidade àquele antibiótico
27
A, portador de SIDA, mantém contactos sexuais com B, conhecer da situação, criando em B perigo de
infecção; C deixa uma porção de droga disponível a um toxicómano, D, que, ao ingeri-la, acaba por morrer
de overdose.
28
A está a morrer e a ambulância vem a caminho. B, sabendo da situação, pega no seu carro e embate na
ambulância, impossibilitando-a de qualquer salvamento.

14
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Quanto ao risco não permitido não basta comprovar que um risco foi criado ou
potencializado por um agente, é ainda necessário comprovar que esse risco se manifestou
– materializou ou concretizou - num resultado típico. Assim, o juízo é realizado ex ante,
e com o critério deste ponto, é também realizado ex post, ou seja, com a análise de todas
as circunstâncias relevantes para a verificação efectiva do resultado.

Esta matéria é difícil e ainda mais o é em situações de concursos de riscos, como no caso
referido da ambulância e o paciente que morre, questiona-se se a morte se deveu à
manobra ou ao enfarte. Se se provasse que ele quase de certeza tivesse morrido de enfarte
se não fosse pela manobra, tratar-se-ia aqui de um caso de comportamentos lícitos
alternativos, isto é, quando se provar que, tendo o agente agido licitamente (neste caso,
não criar o perigo proibido, a manobra perigosa) que o resultado se teria igualmente
verificado29. O problema é o da inutilidade da norma porque o seu cumprimento não
impede a verificação de resultado30. É por isto que se distingue da causa virtual, na causa
virtual o resultado é explicado pela violação da norma.

Existem duas comprovações que podemos assegurar:

a) aplicando-se a doutrina da adequação, não deixaríamos de imputar o resultado à


conduta por ser normal e previsível, segundo um juízo de prognose póstuma.

b) mas o mesmo parece suceder para um critério de potenciação de risco, na medida em


que qualquer daquelas condutas servisse para aumentar o risco para os bens jurídicos
ameaçados

O Prof. JFD considera então que a resposta correcta seria de que se pode responder
unitariamente. Demonstrando que o resultado teria tido seguramente lugar ainda que a
acção ilícita não tivesse sido levada a cabo, parece que se deve negar a imputação
objectiva seja porque não se prova um aumento do risco ou potenciação do risco. Se se
imputasse um resultado apenas pela licitude ou ilicitude da conduta, estar-se-ia a violar o
princípio da igualdade.

Diferentemente são os casos em que não se demonstra que também com o comportamento
alternativo lícito o resultado típico teria seguramente tido lugar mas apenas que era
provável ou possível que tal acontecesse. Imputar o resultado a conduta neste ultimo caso
coincidiria com a colisão do principio in dúbio pro reo (art.32º/2 CRP)– em caso de
duvida o juiz deve valorar em favor do arguido, excluindo a imputação (É também esta
posição de MFP). Contrariamente, Roxin permite que o resultado venha a ser imputado
ao réu por razões preventivas, nas situações de extrema probabilidade.

29
Vejamos o caso do dono de uma fábrica que adquire determinados produtos infectados e, incumprindo as
normas de processo desinfecção, os trabalhadores morrem por terem contraído a infecção. Se o dono da
fábrica tivesse cumprido as normas de processo de desinfecção e, ainda assim, os trabalhadores contraírem
a infecção, pelo comportamento lícito alternativo, o resultado não lhe pode ser objectivamente imputado.
30
É por alguém violar a norma do art.131º que a vítima vem a morrer.

15
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Causas cumulativas: quando um facto só se produziu em virtude de um conjunto de
causas, estamos perante causas cumulativas. Se 2 irmãos colocam doses não mortais no
chá da mãe, se a soma das 2 doses não mortais causar a morte, há causas cumulativas. As
acções dos irmãos, estando isoladas, nunca produziriam o resultado de morte. Se ambos
desconhecerem da acção de um do outro, aplica-se o regime da tentativa aos dois. Porém,
se ambos conhecerem, há previsibilidade que a colocação da dose não mortal irá causar
a morte. Neste último caso, faz-se a imputação objectiva do resultado ao facto.

Causas paralelas ou alternativas: quando existem 2 causas e cada uma isoladamente pode
produzir o resultado, estamos perante causas paralelas ou alternativas. Se 2 irmãos
colocam doses mortais no chá da mãe, pode-se imputar o resultado ao facto praticado por
ambos os irmãos. Tal explica-se porque cada um criou um risco proibido e a dose de
colocada por cada um (que foi mortal) explica a morte.

3.3.4. Produção de resultados não cobertos pelo fim e pelo âmbito de


protecção da norma
Para se realizar a imputação do resultado à acção, torna-se necessário que o perigo
concretizado num resultado seja um daqueles corresponde ao fim de protecção da norma
de cuidado. Quando tal não suceda JFD defende a não imputação31. Neste sentido, Roxin
defende que o ilícito é a criação de um risco não permitido dentro do âmbito do tipo. O
resultado tem que ser a materialização do risco que caiba na esfera de protecção da
norma.

3.4. A causalidade virtual


Pergunta-se se o agente produziu o resultado numa hipótese, em que se não tivesse
actuado, o resultado surgiria em tempo e sob condições tipicamente semelhantes, por
força de uma acção de terceiro ou de um acontecimento natural. Não se confude este caso
com o concurso de riscos porque a causa virtual não chega na realidade a actuar e portanto
nem sequer a concorrer realmente para a produção de um resultado. São exemplos os
casos em que: C é morto no avião, mas este acaba por se despenhar por erro de actuação
do piloto causador da morte de todos os passageiros; A é condenado à morte, e no segundo
anterior à sua execução, B, querendo vingar o homicídio do seu filho, dispara sobre A,
causando a sua morte. De acordo com FD, a causa virtual ou hipotética é irrelevante

31
A começou a ultrapassar B. B, sem ver que A o ia ultrapassar, vira à esquerda, embatendo com A. Do
acidente resultou a morte de C, acompanhante de B. A foi acusado da prática de um homicídio negligente
por, ao realizar a ultrapassagem a 80Km/h quando o limite velocidade máxima permitida era de 50Km/h.
O tribunal absolveu A porque se entendeu que o limite de velocidade se devia a um sinal de aproximação
de travessia de peões e que A cumpriu as demais regras rodoviárias.

16
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
porque, à luz da função de tutela subsidiária de bens jurídicos, continua a ter sentido não
abandonar o bem jurídico à agressão do agente só porque aquele já não pode, em
definitivo, ser salvo32.

4. Imputação subjectiva
A questão do dolo e negligência são problemas de tipicidade. O comportamento só é
típico se houver dolo e negligência (quando esta estiver prevista).

Para se avaliar a existência de dolo ou negligência, o intérprete olha para os elementos


constitutivos do tipo e verifica a direcção de vontade por parte do agente. Por exemplo,
no 131º é elemento “matar” e “outra pessoa”; no furto “subtrair” “coisa móvel alheia”.

A doutrina define dolo como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de


ilícito. No dolo pode existir intenção (dolo directo art.14º/1, dolo necessário 14º/2) ou
conformação (dolo eventual art.14º/3). Já na negligência, o agente age com violação de
deveres de cuidado, criando riscos ou não diminuindo, sem intenção e conformação
(art.15º). O dolo, por ser mais grave, é sempre punido, ao contrário da negligência que só
é punida se o próprio tipo prever (art.13º).

4.1. Momento intelectual do dolo


O elemento intelectual do dolo exige que o agente conheça ou represente as circunstâncias
do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo (art.16º/1). Pretende-se que ao actuar,
o agente conheça tudo quanto é necessário a um correcta orientação da sua
consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção
intentada, para o seu carácter ilícito. Só quando todos os elementos de facto estão
presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu
pela prática do ilícito e deve responder por uma atitude contrária ou indiferente ao bem
jurídico lesado pela conduta33.

As primeiras circunstâncias a serem atendidas são as circunstâncias do facto, que se


reportam ao respectivo tipo de ilícito objectivo. O agente tem que representar/conhecer
que está a matar uma pessoa para se aplicar o art.131º.

Surgem igualmente os elementos de direito. Na maior parte dos casos, os tipos objectivos
são portadores de elementos de direito, não bastando a referência a “factos nus”34, mas
sim factos valorados pelo Direito. Para distinguir os elementos de facto dos elementos de

32
Este princípio deve ser temperado (na sua consequência final para a responsabilização do agente), em
certas hipóteses bem delimitadas de direito de necessidade sob a forma de colisão de vida contra a vida.
33
Quando tal não se verificar, o dolo terá que ser negado. A este respeito fala-se de um princípio de
congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito doloso.
34
Sem conceito puramente jurídico ou que são pré-jurídicos como “matar”.

17
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
direito, os primeiros são descritivos e os segundos são normativos. Os elementos
normativos só podem ser representados com referência a normas.

Elementos de facto: “outra pessoa” (art.131º), “corpo” (art.143º), “mulher” (art.168º),


“alimentos ou bebidas” (art.220º/1 a).

Elementos normativos: carácter “alheio” (arts.203º, 204º. 209º e 212º); qualidade de


“funcionário” nos crimes cometidos no exercício de funções públicas (arts.372º e ss);
“Mãe-Pátria” (art.308º), “Governo” e “Estado” (art.309º); “tribunal” (art.360º),
“testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete” (art.360º); “casamento” (art.247º);
“coisa (…) que tenha entrado na sua posse ou detenção” e “caso fortuito” (art.209º);
“documento” e “moeda” (art.255º/a) e d)).

A questão que se coloca é qual o grau de conhecimento exigido para estes elementos
normativos? Não se pode exigir o mesmo grau para os elementos de facto, ou seja, a
“exacta subsunção dos factos na lei que os prevê”, sob pena de só o jurista sabedor poder
actuar dolosamente. Não é necessário conhecer o regime jurídico. O que se exige é que o
agente conheça o significado social daquelas palavras de modo a que seja possível
representar o seu significado35. Noutros casos, a exigência ainda se afigura menor, porque
o legislador apenas incluiu conceitos que abrangessem vários exemplos para facilitar a
leitura do CP. São exemplos “descendente” “ascendente” (art.177º/1 a)), “bons costumes”
(art.38º e 149º). Basta o conhecimento dos pressupostos materiais da valoração, ou seja,
o agente deve conhecer a materialidade subjacente.

Porém, existem casos em que se exige algum conhecimento técnico no sentido em que o
agente consiga determinar os critérios determinantes da qualificação. Tal acontece no
Direito Penal Secundário em que surgem expressões como “obtenção indevida”;
“prestação tributária aduaneira legalmente devida”.

De resto, os elementos descritivos ou de facto são condicionados pela sua


imagem/aparência física. Se um agente tem uma relação sexual com uma pessoa de 14
anos que aparenta ter 20, não tem conhecimento possível da idade da jovem. Só através
da palavra da mesma ou por demonstração de documentos poderia o agente ter essa
representação. Situação diferente é aquela, em que apesar da aparência, o agente
considera a opção contrária, aí o dolo não será excluído segundo MFP.

Actualidade da consciência intencional da acção: o elemento intelectual verifica-se se a


representação do agente for actual ou actualizável. O agente tem que realizar a
representação dos factos no momento36. Mas a consciência não tem que ser reflectida, o
agente não tem que estar a pensar pormenorizadamente, basta a consideração do que se

35
Esfera paralela do leigo
36
Quando o agente quer matar alguém que se encontra no arbusto, tem que representar no momento que a
pessoa, que se pretende matar, se encontra no arbusto no momento. O agente não vai disparar sobre uma
pessoa conscientemente se a viu no arbusto há 2 meses.

18
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
passa, a isto se chama “co-consciência imanente à acção”37. Para além disto, a consciência
deve ser actualizável38, se tal se verificar, não há dolo mas sim negligência.

Erro sobre a factualidade típica: quando falha o elemento intelectual do dolo, estamos
perante uma situação de erro, seja dos elementos do facto, ou dos elementos de direito
(art.16º/1), nesses casos não haverá dolo. O agente estará em erro sempre que
ignorar/desconhecer que os elementos constitutivos do tipo se preenchem 39. Para JFD o
erro vale não ó para as circunstâncias que fundamentam o ilícito, mas também para todas
aquelas que o agravam e para a aceitação errónea das circunstâncias que o atenuam 40,
como no dolo dos crimes simples e qualificados. O legislador só não o referiu no CP
porque o achou dispensável.

Cumpre ainda esclarecer a parte final do art.16º/3 que refere que, não obstante a
verificação do erro (art.16º/1), fica ressalvada a punibilidade por negligência. Esta
ressalva atende às regras gerais portanto, o agente é punido por negligência:

1) Se estiver preenchido o tipo objectivo;


2) Se a negligência estiver prevista no tipo objectivo;
3) Se foi negligente violando um dever de cuidado;

4.1.1. A previsão do decurso do acontecimento


Nos crimes de resultado, tanto a acção como o resultado são circunstâncias do facto
pertencentes ao tipo objectivo de ilícito, o agente deve representar a acção e o seu possível
resultado. Existem vários tipos de erro quanto ao decurso do acontecimento:

• Erro sobre o processo causal: neste caso, ocorre uma divergência entre o risco
conscientemente criado e aquele do qual deriva efectivamente o resultado. Uma
doutrina diz que se aplica a tentativa. Outra doutrina pune o agente pelo crime
consumado, ressalvando a hipótese de crimes de execução vinculada. Segundo
JFD, quando o erro sobre o processo causal for um erro sobre a factualidade típica,
deve-se punir apenas pela tentativa, o dolo continua existir41.
• Dolus generalis: o agente pratica mais que um acto e erra quanto ao que
efectivamente produziu resultado.

37
O nadador salvador que está em engate com outra pessoa, não estará a pensar na vítima que morre
afogada. Mas soube que ela se afogava e isso basta.
38
O médico identifica uma alergia a certos medicamentos a determinado paciente. 2 Anos depois dessa
identificação, o médico receita um medicamento cujo paciente era alérgico. O médico é negligente porque
podia ter consultado a ficha do paciente.
39
Se A matar B, pensando tratar-se de um espantalho, A não representou a “pessoa” que é um elemento
constitutivo do tipo. Há erro (art.16º/1).
40
Quem furta coisa móvel alheia sem consciência de que com a subtracção “deixa a vítima em difícil
situação económica” não actua com dolo do tipo de furto qualificado (art.203º/1).
41
A querendo matar B, dispara sobre este que fica gravemente ferido. B vem a morrer devido a um acidente
na ambulância pelo qual estava a ser transportado. A teve dolo de homicídio mas só é punido pela tentativa
por não se realizar imputação objectiva.

19
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
• Aberratio ictus vel impetus: o agente, por erro na execução, lesa diferente pessoa
ou objecto do pretendido. Na execução há uma falha que pode liderar à
incontrolabilidade por parte do agente.
• Error in persona vel objecto: o decurso real do acontecimento corresponde
inteiramente ao intentado, só que o agente se encontra em erro quanto à identidade
do objecto ou da pessoa a atingir.

No caso do Dolus generalis, o agente pratica um acto em que pensa erroneamente ter
produzido o resultado, e vem depois praticar outro que o produz42. Existem duas
doutrinas:

1. Há um concurso eventual entre a tentativa e o cometimento negligente do facto43.


2. Há aceitação do crime consumado e por isso pune-se esse crime dolosamente.
3. Solução intermédia de JFD. Se o risco que se concretiza no resultado pode ainda
reconduzir-se ao quadro dos riscos criados pela (primeira) acção, aplica-se a
primeira solução, caso contrário, aplica-se a segunda solução.

Da nossa parte a primeira e a terceira solução são inviáveis. Nos casos referidos, em todo
o momento o agente deseja verificação do facto (morte de B). É verdade que o agente não
está consciente de que está a matar a vítima, mas tal só acontece porque o agente, pensa
dolosamente já o ter feito. É um erro que não exclui dolo44 (art.16º/1). Não se pode
premiar um agente que não fiscalizou o estado da vítima, aplicando um regime menos
severo como o da tentativa ou da negligência. Deste modo, concordamos com a segunda
doutrina, devendo o agente ser punido por dolo pelo crime consumado.

O terceiro caso é o da referida aberratio ictus vel impetus. O agente quer matar B, mas
por má pontaria acaba por atingir C45. Aqui, diferentemente do que sucede no erro
sobre o decurso do acontecimento, o resultado ao qual se referia a vontade de
realização do facto não se verifica, mas sim um outro. O resultado desejado deve ser
encarado por tentativa46, e o resultado verificado encarado como um crime negligente
consumado47. Há concurso efectivo entre estes dois segundo MFP. A autora justifica o
tratamento diferente do error in persona vel objecto porque a segunda acção (execução)
não é totalmente controlada pelo agente no momento da decisão e, por isso, não se podem
aferir as possibilidades de motivação pela norma do homicídio doloso. No entanto,
existem outros casos duvidosos

42
A bate em B e pensando aquele que B já se encontra morto, simula o suicídio através de enforcamento.
B morre apenas no enforcamento; A pensa ter assassinado B e depois atira-o ao rio para esconder o corpo.
Acabando B por morrer afogado.
43
Tentativa de matar B e depois o homicídio negligente. Nos casos referidos o acto negligente seria o do
enforcamento e o atirar o corpo ao rio.
44
O agente não desconhecia que estava a matar outrem.
45
Ou A quer destruir uma coisa, mas acaba por atingir uma pessoa.
46
Tentativa de matar B
47
Morte de C

20
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
a) Quando o agente não executa directamente, mas através de outra pessoa48. Na
execução haverá uma completa falta de domínio. Pune-se por tentativa e
homicídio negligente, ou por homicídio consumado? A favor da primeira, diz-se
que o “autor material se manifesta como uma arma desviada ou um maquinismo
avariado que falha o alvo”. A favor da segunda diz-se que o autor cria um risco
muito intenso de erro do autor material que deveria evitar e que torna previsível o
resultado49. O agente deve ser punido apenas pelo homicídio doloso consumado.
b) A situação do dolo alternativo, A pretende atingir B, mas é indiferente se atingir
C porque ambos são inimigos. Segundo MFP há dolo directo sobre B e dolo
eventual sobre C e, caso A atinja C, a solução correcta, estando B e C presentes,
é a de punir 2 crimes, a tentativa (de homicídio a B) e o crime consumado
(homicídio doloso a C). Poder-se-ia acusar esta posição de violar o ne bis in idem,
porém MFP defende que está em causa uma acção bivalente, o agente contenta-
se com a morte de um dos 2, há uma decisão de atingir ou B ou C. Ambas vítimas
foram objectos da acção e ambos os concretos bens jurídicos (a vida de cada dum)
foram postos em perigo.

Por fim, resta analisar o error in persona vel objecto. Neste caso, o agente identifica mal
a pessoa ou o objecto, mas não apresenta nenhum erro na execução. É um erro na
formação da vontade. O agente mata B por pensar tratar-se de C.

Sempre que o objecto concretamente atingido seja tipicamente idêntico ao projectado, o


erro sobre o objecto (ou pessoa) é irrelevante. A lei não proíbe a lesão de C, mas de todas
as pessoas. A representou que estava uma pessoa e matou-a, preenche o elemento
intelectual do dolo. O agente é assim punido pelo crime consumado com dolo. Porém,
situação outra é a de que o agente erra sobre as qualidades tipicamente relevantes do
objecto por ele atingido. Nessa situação, o agente terá que ser punido pela tentativa em
concurso efectivo com a negligência. Vejamos o seguinte o caso, A dispara para um
arbusto, pensando que lá se encontra um inimigo seu, enquanto estava um animal. A seria
punido pela tentativa de homicídio do inimigo, e pelo crime de dano por ter morto o
animal (art.212º/1).

Causas cumulativas: A dá dolosamente a B uma dose não mortal. Mas depois arrepende-
se, e dá outra dose não mortal, mas por erro, pensando tratar-se de outra substância. A
vítima acaba por morrer. Há um concurso aparente entre a tentativa e o homicídio
negligente consumado. O crime consumado consome a tentativa.

48
A envia uma carta bomba para matar B, mas o correio engana-se no andar e entrega-a a C, que nem
sequer é conhecido de A, matando-o.
49
E é discutível que se trate de duas acções. Para além disso, é duvidosa que, a mera expedição de uma
carta (que eventualmente chega a C), seja uma tentativa de homicídio a B.

21
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
4.1.2. O conhecimento da proibição legal
O art.16º/1 também refere o erro sobre a proibição. Falamos de situações em que a acção,
levado a cabo pelo agente, tem relevância axiológica quase insignificante e, por isso, não
é exigível que o agente conheça a proibição. Ou seja, estão em causa acções que não
têm intensidade enquanto conceito de valor (por exemplo ético). Se olharmos para
uma norma do código da estrada em que se diga “que é proibido virar à esquerda”, a acção
de virar à esquerda é neutra moralmente. Como aquela acção não tem propriamente uma
aparência “errada”, torna-se relevante que o agente conheça da sua proibição para
conseguir orientar devidamente a sua conduta. Quanto tal se verifique, não existe dolo
(art.16º/1).

Mas quando é que o desconhecimento da proibição não é censurável ao agente? Segundo


JFD a situação verifica-se com frequência nos ilícitos de mera ordenação social. É certo
assim, que alguns crimes, estando próximos das contra-ordenações, são abrangidos pelo
16º/1, salvo quando a sua gravidade indiciar o contrário50. Também nas normas de
direito penal secundário, nomeadamente no direito penal económico, quando as
condutas proibidas não tenham em si um desvalor ético ou social que seja evidente (como
por exemplo, a mera violação de normas de execução orçamental), se entende que o
desconhecimento não é censurável (art.16º/1). Por fim, restam os casos em que o
legislador incriminou certas condutas, em função de bens jurídico-penais que não se
encontram completamente aceites pela comunidade e pela sua consciência de
valores.

Erro sobre ilicitude, a acção tem relevância axiológica, o agente é que não conhece o
valor.

4.2. Momento volitivo do dolo


O dolo não pode bastar-se com a representação, por parte do agente, dos elementos do
facto e normativos. Exige-se um momento volitivo do dolo, ou seja, a prática do facto
deve pressupor uma vontade dirigida à sua realização. O dolo assume assim 3 formas, o
dolo directo (art.14º/1), dolo necessário (art.14º/2) e dolo eventual (art.14º/3).

Dolo directo: no dolo directo a realização do tipo objectivo de ilícito surge como o
verdadeiro fim da conduta (art.14º/1). Este dolo é também chamado de dolo directo
intencional ou de primeiro grau. Assim se A quer matar B e o faz, fá-lo dolosamente. Para
além disto, JFD classifica como dolo directo as situações em que a actuação do agente
não representa o fim último, mas um pressuposto ou estádio intermédio necessário do seu
conseguimento. Vejamos: A mata o vigilante B para conseguir assaltar um banco. Embora

50
O desconhecimento da proibição de conduzir com 1,2 de taxa de alcoolemia é censurável porque pela
gravidade há um indício que se trata de um crime e não de uma contra-ordenação.

22
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
as motivações sejam mediatas, o agente dirigiu directamente a sua vontade no sentido de
matar B. Para efeitos de dolo, esta última situação é igual à primeira51.

Dolo necessário: a realização do facto surge não como pressuposto ou degrau intermédio
para alcançar a finalidade da conduta, mas como sua consequência necessária (art.14º/2),
no preciso sentido de consequência inevitável. A previsão do facto não compreende uma
probabilidade, mas é uma consequência certa ou altamente provável (na visão do agente).
O exemplo perfeito é o do agente que coloca uma bomba num avião como forma de matar
o seu inimigo que nele viaja, mas plenamente consciente de que a explosão provocará a
morte dos restantes viajantes. A morte do inimigo é realizada por dolo directo e a dos
restantes passageiros por dolo necessário.

4.2.1. O problema do dolo eventual


Em primeiro lugar, no dolo eventual (ou condicional), tal como na negligência consciente,
o agente previu a realização do tipo objectivo de ilícito apenas como consequência
possível da sua conduta (art.14º/3 e 15º/ a)). É indiscutível que, quando o agente preveja
a realização do tipo objectivo de ilícito como consequência possível da sua conduta e o
aceite que há dolo eventual. Questionável é o âmbito da “conformação” que é exigida no
dolo eventual (art.14º/3) que é a qualidade distintiva da negligência consciente
(art.15º/a)).

A fim de solucionar o problema, a doutrina apresentou três teorias possíveis: a da


probabilidade, aceitação e conformação

Teoria da probabilidade: não basta a mera representação do facto como possível


(elemento comum ao dolo eventual e à negligência consciente), é necessário que a
representação feita pelo agente assuma a forma da probabilidade ou de alta probabilidade.
JFD aponta duas dificuldades. Primeiro, é difícil a determinação do grau mínimo de
probabilidade para o dolo eventual52. Segundo, independentemente da probabilidade, o
agente pode tomar decisão firme por exemplo em disparar, sabendo que mesmo estando
a longa distância pode acertar na vítima. Neste caso o elemento volitivo é intenso e não
se vê como não qualificar a situação como dolo.

Teoria da aceitação: se o agente, apesar da representação da realização típica como


possível, aceitou intimamente a sua verificação, ou pelo menos revelou a sua indiferença
perante ela, trata-se de dolo eventual. Porém, se, nestas condições de representação, o
agente repudiou a verificação do facto típico, esperando que o facto não se verificasse,
trata-se de negligência consciente. Para esta teoria basta que o agente decida contra o
direito ou com indiferença perante ele para encontrarmos dolo eventual.

51
A motivação poderá já ter relevância no domínio da culpa ou medida da pena.
52
Ou seja, até que ponto o agente deve achar que a realização do tipo objectivo se encontra provável para
haver dolo eventual?

23
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Teoria da conformação: para haver dolo eventual, o agente tem que se conformar com a
realização do facto típico, foi a teoria consagrada pela nossa lei (art.14º/3). Para Eduardo
Correia, a conformação explicava-se pela “não confiança em que o resultado não se
verificaria”. Para JFD esta formulação não é boa porque utiliza uma conotação demasiado
psicologista de “confiança”, acabando por privilegiar o optimista impenitente (que confia
em que tudo correrá pelo melhor) face ao pessimista depressivo (incapaz de confiar em
que se não passará o pior). Para JFD é necessário que o agente tome sério o risco de
(possível) lesão do bem jurídico, que entre com ele em contas e que, não obstante, se
decida pela realização do facto. Aos olhos do agente o propósito que move a sua
actuação vale bem o “preço” da realização do tipo. Deste modo, o agente está
intimamente disposto a arcar com o seu desvalor.

Surge ainda a questão de a probabilidade ser completamente estranha à conformação.


JFD responde negativamente na sua formulação, porque o agente não tomou a sério a
possibilidade de realização se esta é manifestamente remota ou insignificante53.

Para MFP, para haver dolo eventual, o agente tem que considerar que há um lucro em
proceder à acção que revele a indiferença pela lesão do bem jurídico. Há uma lógica
empresarial, os custos (indesejáveis) são superados pelos lucros, sendo os primeiros
minimizáveis portanto.

Exemplos académicos:

- Mendigos russos, no séc.XIX para usar empresarialmente crianças, lesionavam as


crianças (por vezes amputavam pernas e braços), para que elas pudessem ir mendigar para
as ruas, algumas morriam. MFP há dolo eventual54, há uma lógica empresarial, as
crianças morrem, mas morrem poucas. Os custos são minimizáveis.

- Caso lacman: 2 amigos numa feira fazem uma aposta segundo a qual, 1 deles vai acertar
numa bola que uma menina tem na mão. Um deles dispara e acerta na mão. É parecido
com a situação de Guilherme, mas não é igual por causa das razões éticas. Neste caso, a
brincadeira/competição não pretende trazer danos, há uma confiança na não produção do
resultado. Para MFP não há dolo eventual. Não há propriamente uma aceitação implícita
do risco da lesão do bem jurídico.

Há um motivo puro (lícito ou ilícito, motivo principal) e outro motivo (aceitação do risco).

- Caso very light: no final da taça de Portugal, quando uma das equipas marca golo e um
dos adeptos atira um very Light para o ar. O mesmo adepto atira um very Light e acaba
por atingir a bancada dos adeptos da equipa adversária, causando a morte de um adepto
(1995). O tribunal considerou que não havia dolo eventual e MFP concorda. Há um
contexto de festa, de euforia, não há uma lógica empresarial. Não encontramos a

53
É difícil o caso da transmissão do vírus da SIDA através de contactos sexuais não protegidos por pessoa
infectada, que todavia representa a doença ou a morte do parceiro como possível. JFD considera que não
há dolo eventual, dada a possibilidade de 1% de transmissão do vírus.
54
Ao contrário da lógica hipotética de franco que define que os agentes não agiriam se a lesão fosse certa.

24
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
conformação, conformar-se é aceitar que algo acontece, tem uma posição positiva de
vontade. Mas também não conseguimos provar que houve uma confiança absoluta na não
verificação do resultado. O art.14º/3 exige a conformação positiva, não exige apenas a
indiferença.

No dolo necessário e eventual há uma lógica de aceitação de riscos. Mas no dolo eventual
alguém decide agir para obter um certo resultado desejado, não se importando com riscos
que isso acarreta, porque mesmo que o risco se concretize, as probabilidades de que tal
não aconteça são tentação suficiente.

Há tipos de crime em que o legislador dá relevo a certas motivações e intenções. Como


no furto “intenção de apropriação de coisa alheia”; contrafacção de moeda “quem praticar
contrafacção de moeda, com a intenção de a pôr em circulação como legítima” (art.262º).
Apresentam-se outros casos em que se exige uma verificação de atitudes internas,
motivações ou impulsos íntimos como: “acto de crueldade para aumentar o sofrimento da
vítima”, “ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento para
excitação ou para satisfação do instinto sexual (art.132º/ a e c)); conscientemente e contra
direito” no crime de denegação de justiça (art.369º); “com intenção de prejudicar” no
crime de prevaricação (art.369º/2). Nestes tipos, o legislador afasta o dolo eventual como
preenchimento subjectivo do tipo55.

5. Ilicitude e causas de justificação


Aqui tratamos de saber se a ilicitude está determinada numa certa acção. Noutras palavras,
procurar se a acção foi lícita ou ilícita.

Em princípio, estando verificados os tipos (havendo imputação objectiva e subjectiva) à


uma indicação de ilicitude, presumimos que o acto foi ilícito. Existe uma fundamentação
provisória de ilicitude. A ilicitude pode, no entanto, ser excluida mediante causas de
exclusão da ilicitude ou causas de justificação da acção.

Numa perspectiva estrutural os tipos justificadores são como os incriminadores, apesar


do seu regime ser totalmente diferente. Pois os tipos incriminadores indicam de forma
concreta e individualizadora os bens jurídicos a proteger, já os tipos justificadores
apresentam antes uma natureza geral e abstracta. Tal justifica-se, o facto da
generalidade e abstracção pois os tipos justificadores não se apresentam para um bem
jurídico determinado, mas antes para uma multiplicidade de bens jurídicos (p.e a legítima
defesa para protecção da vida humana e da integridade física), enquanto os tipos
incriminadores servem bens jurídicos específicos (p.e crime de homicídio tutela o bem
“vida”). Para além disso, tal como os tipos incriminadores, nos tipos justificadores há
uma lógica de preenchimento de “tipo” objectivo e subjectivo.

55
E em certos casos exige-se dolo directo (art.369º/2).

25
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
As causas de justificação do facto ilícito não estão sujeitas, nos mesmos moldes que os
tipos incriminadores, ao princípio da legalidade e suas consequências – nullum crimen
sine lege. Aliás se estivesse sujeito aos mesmos moldes então aí haveria uma falta de
garantia, uma sujeição a intervenções arbitrárias do poder punitivo do Estado. Também
não estão sujeitas à proibição da analogia, mais uma vez, as causas de exclusão de
ilicitude não incriminam (ou agravam a incriminação de) alguém (excluem a ilicitude do
facto), logo são permitidas analogias que resultem bonam partem – isto é, a favor do
agente, que resulte para ele uma maior liberdade. Não vale ainda o princípio da
irretroactividade da lei penal.

As causas de justificação não têm de possuir carácter especificamente penal, servem a


totalidade da Ordem Jurídica, constando em qualquer ramo do Direito. Esta dogmática
está presente no art.31º CP. Portanto, se uma acção é considerada lícita ou conforme ao
Direito para efeitos de Direito Civil, então o mesmo valerá para o Direito Penal. Cabe
discussão aqui se se deve pensar numa ideia de unidade de ilicitude ou numa ilicitude
específica do Direito Penal.

a) A doutrina dominante sufraga a concepção da unidade da ilicitude (princípio da


unidade da Ordem Jurídica). Em que, sendo ilícito num ramo do Direito, será
ilícito em todos os outros ramos. Contrariamente, sendo lícita para um ramo, será
também lícita para os restantes. O que diverge são depois as consequências da
ilicitude e como elas são regulamentas – veja-se as consequências da ilicitude em
Direito das Obrigações e em Direito Penal. Contudo, aceita-se que a valoração
seja igual. Esta posição é aceite pelo Prof. JFD.
b) Não se tem por aceite a posição contrária. De que o ilícito é parcial, não é uma
coisa em si e que por isso este só se determina pelas consequências. Concluindo
então que há especificidade na norma penal desde logo pela especificidade da
pena e das medidas de segurança. Este é o pensamento negativo do princípio da
unidade da Ordem Jurídica.
c) Consideração final: deve ser seguida a concepção de EDUARDO CORREIA
sendo que pode haver possibilidade de uma específica exclusão do ilícito penal.
Contudo a ilicitude penal não é exclusivamente penal, é una a todo o ordenamento.

5.1. Elementos objectivos e subjectivos das causas de justificação


Discute-se se, para a ilicitude ser excluída, basta estar preenchido o tipo objectivo, ou se
é necessário o tipo subjectivo. Se o agente quando age, é exigida uma certa direcção de

26
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
vontade? Um certo ânimo ou conhecimento56? Pode-se ainda questionar se isto vale
apenas para algumas causas de justificação ou para todas.

A resposta hoje em dia é pacífica, é afastada a perspectiva objectiva (pelo menos de


forma única). Assim, considera-se necessário o elemento subjectivo para apreciação da
causa de justificação mais a perspectiva objectiva. A densidade do elemento subjectivo
será diferente consoante a causa de justificação em causa.

Basta a consciência da agressão ou exige-se que a agressão seja a motivação de quem age
em legítima defesa? Basta a consciência/conhecimento dos pressupostos de justificação
(animus justificandi):

• Temos um direito penal do facto e não um direito penal da motivação. Se 2


agentes que têm consciência que estão a ser atacados e se defendem, mas com
motivações diferentes, estar-se-ia a tratar diferentemente 2 situações
factualmente/objectivamente iguais.
• A mera exigência da consciência da causa de justificação permite melhor proteger
os bens jurídicos. Os agentes não precisam de ser motivados apenas pela agressão
para defender os seus bens jurídicos.

Mas este entendimento é igual para todas as causas de justificação? MFP diz que não,
deve-se analisar caso a caso. Funciona para a legítima defesa e estado necessidade. Nos
restantes casos exige-se, para além do tipo objectivo, que a motivação do agente seja a
prevista na causa de exclusão de ilicitude57.

Resumindo, é necessário que estejam preenchidos os elementos objectivos do tipo para


excluir o desvalor de resultado (p.e morte de uma pessoa) e os elementos subjectivos
para demonstrar a falta de desvalor de acção. Estando ambos elementos verificados,
há exclusão da ilicitude.

Porém, realizando-se o tipo objectivo e não o tipo subjectivo, aplica-se o regime da


tentativa por via art.38º/4 que a doutrina entende que se aplica a todas as causas de
justificação. Porquê o regime da tentativa? Porque o agente que age ao abrigo de uma
causa de justificação (mas sem saber) provoca um resultado valioso, apesar de a sua acção
ser desvaliosa. Assim:

56
Em caso de legítima defesa, A mata B, mas A tem a intenção de herdar os seus bens, contudo B de facto
queria matar A. Considera-se justificada a acção? Outro exemplo: C pratica aborto a D, por questões de
dinheiro, contudo vem-se a saber que C salvou a vida de D devido a uma doença não justificada. Considera-
se justificada a acção? Não porque só está preenchido o tipo objectivo.
57
O flagrante delito permite que se detenha alguém imediatamente quando comete um crime público ou
semi-público (art.255º e 256º CPP). Neste caso tem que se ser mais exigente subjectivamente, a pessoa
detém outrem para entregar às autoridades, mas para manter o arguido em casa. Exige-se a motivação.

27
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
• Na tentativa, alguém tenta matar (acção desvaliosa), mas não consegue (resultado
não desvalioso).
• Na causa de justificação, A agride B simplesmente porque quis (acção
desvaliosa), mas depois descobriu-se que B ia agredir A, o que significa que A se
defendeu objectivamente (resultado valioso)

Com base nesta comparação nunca se poderia punir o agente pelo crime consumado. Se
estão preenchidos os elementos objectivos (faltando o desvalor de resultado), não
fazendo sentido punir de forma igual às situações em que há desvalor de resultado e
desvalor de acção58. Por outro lado, não há analogia proibida uma vez que é feita bonem
partem no sentido em que alarga os limites da justificação, não os restringe –
(favorecendo o agente).

Contudo, JFD entende no entanto que deve ser feita uma ressalva quanto à aplicação de
todas as causas de justificação. Não se deve aplicar àquelas onde a justificação seja
somente constituída pela prossecução de um fim determinado59

Falta ainda discutir se o 38º/4 implica que se aplica a pena calculada pelo regime da
tentativa ou se se aplica o regime da tentativa. As situações são diferentes porque há
crimes que não são punidos pela tentativa (art.23º), para além de que não há tentativa por
negligência. Quando não haja lugar a punição por tentativa, se se aplicar o regime da
tentativa, o agente não é punido. Se por outro lado entendermos que se aplica a pena
calculada da tentativa, o agente é punido pela pena calculada para a tentativa. JFD
entende que se deve aplicar o regime da tentativa porque se o legislador previu que
determinadas situações não seriam punidas, foi porque tal não é necessário (princípio da
necessidade da pena.

5.2. Preenchimento do tipo subjectivo, mas não do objectivo


O agente supõe falsamente a verificação dos tipos objectivos, são as chamadas
justificações putativas ou de erro sobre os elementos do tipo justificador – o agente
desconhece os elementos objectivos do tipo justificador60.

O agente pensa que o mundo fáctico está composto de tal forma que, sendo verdade, agiria
sobre uma causa de justificação. Cabe então saber se o agente será punido. Diz o art.16º/
2 “o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto”, exclui o
dolo. Significa isto que apenas o dolo do agente é excluído e não a ilicitude. O agente
poderá ser punido por negligência (art.16º/3)

58
A quis agredir B e fá-lo.
59
Deve ser punido por sequestro consumado (art.158º) o polícia que detém um mero suspeito com outra
intenção que não seja a de identificação (art.29º/3 g) e art.250º/6 CPP).
60
A diz para B, em tom de brincadeira de mau gosto e com um brinquedo, “a bolsa ou a sua vida” e B
rapidamente pensando ser um assalto dispara sobre A.

28
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
No entanto, a solução da exclusão do dolo não é pacífica na doutrina. Várias teorias
tentam resolver o problema:

• Teoria do dolo: a consciência do ilícito é elemento do dolo a par do conhecimento


e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito e assim o erro sobre
pressupostos de uma causa de justificação não pode deixar de ser considerado
como um erro que exclui o dolo e só pode ser punível (se for) a título de
negligência.
• Teoria da culpa estrita: o dolo perfaz-se com o conhecimento e vontade de
realização do tipo objectivo de ilícito, pelo que o erro sobre os pressupostos de
uma causa justificativa não pode excluir o dolo, pode é assumir-se significado a
nível de culpa.
• Teoria da culpa limitada: o dolo não integra a consciência do ilícito mas, em
todo o caso, o erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação ou
conforma um verdadeiro erro sobre elementos do tipo objectivo de ilícito (teoria
dos elementos negativos do tipo) ou constituindo um erro diferente de puro erro
sobre a factualidade típica, deve ser-lhe equiparado quanto á consequência
jurídica: exclusão do dolo.

Para JFD a solução correcta é a da teoria da culpa limitada, como consta do art.16º/2
CP e como é seguida pelas correntes dominantes. Fundamento:

a) Quem erra sobre os pressupostos de um tipo justificador é, em definitivo,


materialmente idêntica à de quem erra sobre os elementos que pertencem a um
tipo incriminador.
b) Na responsabilidade dos agentes, nenhum deles tem erro em que incorre, a sua
consciência ética correctamente orientada para se pôr e resolver o problema da
concreta ilicitude do facto.
c) Existe um défice a nível da sua consciência psicológica ou intencional, não
possuem conhecimento indispensável para uma correcta avaliação da ilicitude.

Todavia a teoria da culpa estrita não deixa de ter razão numa perspectiva puramente
dogmática e sistemática. Existe de facto uma diferença estrutural entre uma e outra
situação. Aquele que erra sobre a factualidade típica (decurso do acontecimento,
proibições legais de forma relevante) actua sem dolo do tipo. Enquanto quem aceita
erroneamente os elementos fácticos que, a existir, excluiriam a ilicitude, actua com dolo
do tipo. De todo o modo, pode dizer-se que o agente actua de facto com dolo, mas o
legislador não lhe imputa esse dolo. É uma solução dogmática, apresentada por Augusto
Silva Dias, alternativa às teorias expostas, muito mais simplificada e não levanta
problemas.

No caso de o agente ter a hipótese de ter evitado o erro através de uma cuidadosa
comprovação, face à situação justificadora, então fica ressalvada uma eventual
condenação a título de negligência se o respectivo tipo ilícito assim previr a punibilidade
a esse título (art.16º/3 CP).

29
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Caso diferente, é o de o agente errar sobre a causa de exclusão de ilicitude ou sobre o seu
âmbito, o agente pensa que existo um tipo justificador que não existe61, ou pensa que o
tipo justificador cobre certos factos que, na realidade, não cobre. Há aqui uma suposição
falsa da existência de uma causa de justificação que a Ordem Jurídica não reconhece. O
erro aqui é de valoração e, como tal, aplica-se o regime da falta de consciência de ilícito
(art.17º).

5.3. Efeitos das causas de exclusão de ilicitude


Estando preenchida qualquer causa de justificação, o facto é lícito. Podemos ainda referir
pressupostos necessários a tal verificação, como por exemplo: a existência de uma
agressão ilícita (art.32ºCP). Isto para chegar à importante conclusão de que contra causas
de justificação não é admitida legítima defesa – uma vez que a agressão é considerada
lícita.

Outro efeito que podemos enunciar é de que a licitude do facto do autor não torna
punível o facto do cúmplice (acessoriedade limitada). Ao agente que actua ao abrigo de
causa justificante, não pode ser-lhe aplicada uma medida de segurança.

Estes efeitos são importantes para efeitos de distinção entre causas de justificação e causas
de exclusão da culpa. Um agente pode agir em legítima defesa contra alguém que tenha
causa de exclusão de culpa e cada comparticipante é punido segundo a sua culpa
independentemente do grau de culpa dos outros participantes. É ainda possível a aplicação
de uma medida de segurança a um inimputável que actua numa situação de
inexigibilidade.

Podemos tomar em conta ainda, de uma posição minoritária (alemã) quanto aos efeitos.
Aqui os autores defendem que as situações da vida não são tão puramente dualistas: entre
ser-se lícito ou ilícito. Assim, a intervenção sob uma causa de justificação não leva
imediatamente a um comportamento lícito (ou pelos menos certas causas de justificação
– para não dizer todas). Assim os autores convergem na ideia de que para além do campo
lícito e ilícito, há o espaço livre de direito. Afirmam que o Direito não aprova
positivamente a acção, ele apenas se apresenta como neutro perante ela. Fica guardada
uma valoração jurídico-objectivas entregando essa tarefa (em exclusivo) à consciência
ética do agente. Visto haver casos de difícil resolução ética (como o suicido e a
interrupção voluntária da gravidez) pensam os autores que seriam bom deixar ao Direito
um espaço que não é aprovado pelo Direito e tão pouco é proibido. JFD não vê porque
não se considere condutas estranhas à valoração jurídico-penal quando se trate de licitude
ou ilicitude. Porém, conclui que na prática a ilicitude ou é afirmada ou negada e no campo
lexical português a palavra aprovado ou suportado pelo Direito chegamos à conclusão
que é negada a ilicitude do facto (sendo o um espaço que o Direito considere neutro ou

61
O agente pensa que a “correcção” excluí-a a ilicitude de agressões. A correcção era uma causa de exclusão
de ilicitude que existia até 1974 que permitia que os professores batessem nos alunos.

30
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
em que aprove tal conduta). Por isso, numa lógica deôntica ou “bivalente” é a justificação
resulta na consideração lícita ou ilícita do facto.

5.4. Legítima defesa


A justificação histórica da legítima defesa foi apresentada por Berner que dizia que “O
Direito não deve nunca ceder perante o ilícito”. Berner sustentava que o agente que age
em legítima defesa defendia não só o seu “interesse” mas também interesses supra-
pessoais6263.

Hoje o fundamento reside na necessidade e consequente preservação do bem jurídico


(ilicitamente) agredido. Assim há 2 fundamentos:

• Necessidade de defesa da ordem jurídica: através da qual se justificará que se


sacrifiquem bens jurídicos de valor superior aos postos em causa pela agressão, e
que a legítima defesa, em princípio, não esteja limitada a uma ideia de
proporcionalidade.
• Necessidade de protecção dos bens jurídicos ameaçados pela agressão: a pessoa
agredida deve ter meios para se preservar. Para haver legítima defesa, tem que
haver necessidade de proteger os bens jurídicos.

5.4.1. Proporcionalidade, requisito ou não?


É pela prática do facto ilícito que o lesado pode sacrificar bens ou interesses superiores
ao seu. Taipa de Carvalho rejeita a ideia de proporcionalidade porque tal resultaria na
injustiça que seria impor o agredido, por um agressor doloso e censurável, uma limitação
da sua liberdade de estar ou da defesa activa dos seus bens.´

Porém, a tese de Taipa configura uma situação absoluta e ilimitada de legítima defesa
que desconsidera a tutela de todos os bens jurídicos em questão. Neste sentido, MFP
defende algo parecido à proporcionalidade, pelo que não se deve permitir a lesão de bens
qualitativamente superiores aos preservados em que se manifesta a dignidade da pessoa
humana e a igualdade na protecção dos sujeitos jurídicos6465.

Quando falamos de bens que fazem parte do núcleo essencial da dignidade da pessoa, o
agente tem que se poder defender com todos os meios necessários. Se estiverem em causa

62
O agente que se defende, está a defender o interesse da comunidade da integridade do direito objectivo.
63
Outra justificação é a de que a legítima defesa representaria uma transferência legal para os agentes
privados do monopólio penal do Estado (Hassemer).
64
O A é um paralítico que tem um tomate, e crianças começam-lhe a tirar o tomate, a única maneira de A
se defender é disparar um tiro. Não pode haver legítima defesa.
65
Para JFD esta concepção é igualmente radical e é demasiado restritiva à liberdade do agredido que se vê
lesado em resultado de uma actuação contrária ao Direito. JFD prefere que hajam apenas limitações ético-
sociais.

31
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
bens fora desse núcleo essencial, não pode danificar bens do núcleo essencial do agressor.
A ordem jurídica hierarquiza os direitos (com base na dignidade da pessoa humana) e é
essa lógica que justifica estes critérios.

5.4.2. Os requisitos da situação de legítima defesa


Iremos analisar que tipo de situações é que pode estar em causa a legítima defesa (art.23º).

Comportamento agressivo: agressão é uma ameaça derivada de um comportamento


humano a um bem juridicamente protegido. Só seres humanos podem violar o Direito,
nunca os animais66 ou coisas inanimadas. Contudo alerta-se que estamos a falar de
legítima defesa e não direito de necessidade (art.34º CP). Excepciona-se o caso de o
animal estar a ser utilizado como meio para a agressão (instrumento de agressão) pois o
animal é utilizado como arma, por isso admite-se legítima defesa contra animais.

A conduta tem de ser voluntária, não se deve exercer contra estados de inconsciência
ou outro estado de ausência de vontade. Por outro lado admite-se a legítima defesa perante
entes colectivos.

Abrange-se na agressão tanto o comportamento activo como omissivo na violação do


dever jurídico. A legítima defesa já é admitida contra situações de omissões impróprias
(forçar a mãe a alimentar o seu filho para este sobreviver – em articulação, arts.10º, 131º
e 144º), mas e em relação às próprias? (art.200º CP – forçar automobilista a levar o
lesado ao hospital). JFD responde afirmativamente, parte da Doutrina rejeita,
restringindo assim a legítima defesa só às impróprias, sendo que nas próprias não há
colocação em perigo de bens jurídicos individuais ou então, que a omissão nesses casos
não é punível como lesão desses bens jurídicos – certo é, como refere o autor que omitindo
estas situações resulta um perigo para bens jurídicos individuais e supra-individuais,
havendo assim legitimidade para legítima defesa.

Agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro: o bem


jurídico deve ser juridicamente (não só penal) protegido. A vida, integridade física,
liberdade, bom nome e a propriedade, são interesses juridicamente protegidos para efeito
de legítima defesa. Mas isto são os bens individuais, a questão coloca-se quando aos bens
supra-individuais.

A posição clássica da doutrina e jurisprudência portuguesa defende que sim; outra


posição defende que o art.32º CP está previsto para bens pessoais ao referir “interesses
do agente ou terceiro” e não “do Estado ou comunidade”. Todavia, há quem diga que na
expressão “terceiro” cabe o Estado e assim, numa forma abrangente a Comunidade assim
entendida em Estado. JFD não vê o porquê de se ter que distinguir entre pessoas físicas

66
Take that PAN.

32
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
e jurídicas, especialmente porque os bens colectivos podem ser susceptíveis de fruição
individual67 salientando que seguro é que a agressão a bens colectivos põe em sério perigo
bens das pessoas e daí se justifica a legítima defesa contra, por exemplo, um individuo
alcoolizado que tenta conduzir. Acrescenta-se que os bens jurídicos colectivos ou
universais são de igual modo dignos de tutela penal assim como os individuais, não
existindo razão de princípio para os excluir do catálogo dos interesses juridicamente
protegidos para efeito de legítima defesa.

Todos os restantes casos são duvidosos, por isso é que se tem vindo a restringir a
necessidade de os proteger pois eles são cada vez mais funcionais, isto é, tem de ser uma
legítima defesa muito adequada no caso concreto.

Actualidade da agressão: a agressão é actual em 3 situações: quando é iminente, já se


iniciou ou ainda persiste. PROBLEMA: determinação dos critérios para definir a
actualidade, são objectivos ou subjectivos? Isto é, a perspectiva do observador comum,
homem diligente o suficiente ou a representação que o agredido tem?

A agressão é iminente quando o bem jurídico se encontra já imediatamente ameaçado68.


Nestas situações, em que houvesse certeza que A iria agredir B, nem houve tentativa, mas
a doutrina tende a aplicar o seu regime nos actos de execução (art.22º). JFD discorda
desta solução, defendendo que a iminência ainda é actualidade69.

São caso interessante as situações em que já se sabe antecipadamente que, com certeza
ou elevado grau de segurança, a agressão vai ter lugar. Por exemplo, dono de uma
estalagem ouve os 3 hóspedes a combinarem o assalto ao estabelecimento durante a noite
e então o dono da estalagem mete comprimidos para dormir nas suas bebidas. Isto para
alguns autores chama-se a teoria da defesa mais eficaz, segundo a qual a agressão seria já
actual no momento em que se soubesse que ela viria a ter lugar se o adiamento da reacção
para o momento em que ela fosse iminente tornasse a resposta impossível (chama-se a
legítima defesa preventiva).

JFD rejeita esta posição pois considera já demasiado lata para o conceito de actualidade
e porque pode ter efeitos nefastos pois são os privados a actuar e a “roubar” a competência
das autoridades policiais autorizadas para esse efeito. Por ventura, a situação referida
poderia todavia ser excluída quanto à sua ilicitude por via do direito de necessidade do
art.34º CP.

A actualidade termina quando a agressão deixa de persistir, costuma ser com o momento
da consumação. Em casos de agressão, crê-se que quando A esmurraça B num sentido de
continuação, inicia-se com o primeiro murro, mas B pode defender-se dos murros

67
Defender-se legitimamente de um furto de material de uma escola ou danificação de um banco de um
jardim público.
68
B leva a mão ao bolso para sacar do revólver para disparar em A.
69
Para além de que o regime do art.22º não é idóneo para resolver situações em que a agressão se dirige a
bens jurídicos que não os jurídico-penalmente tutelados.

33
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
seguintes. Não se considera admitida legítima defesa se D der uma chapada em E, dando
razões claras que não passou disso, logo E não pode responder com outra lambada. Para
este efeito diz-se que o momento é até ao qual a defesa é susceptível de pôr fim à
agressão70. Quando o perigo é afastado e a defesa se considera desnecessária para
repelir a agressão71.

A ilicitude da agressão: é um pressuposto fundamental, é o que funda a legitimidade da


defesa. A ilicitude da acção afere-se à luz da totalidade da Ordem Jurídica, não tendo de
ser especificamente penal. Pode-se repelir agressões violadoras não só do Direito Penal
mas sim de toda a Ordem7273. Os bens jurídicos em perigo são susceptíveis de defesa
desde que estejam verificados os outros requisitos. Existe uma unidade de ilicitude geral
e ilicitude para efeito de agressão. Já as agressões justificadas não são ilícitas. Como já
foi aqui referido não pode haver legítima defesa contra causas de exclusão da ilicitude
(pois estas são lícitas).

Quem actua ao abrigo de causa de exclusão de ilicitude, tem um verdadeiro direito de


intervenção na esfera de terceiros e estes terceiros, têm dever de suportar tal
intervenção, pois não podem reagir em legítima defesa.

Questiona-se admissibilidade de legítima defesa contra condutas perigosas levadas a


cabo com a diligência e com os cuidados devidos (lícitas), mas de onde resulta todavia
uma lesão ou um risco iminente de lesão de bens jurídicos. Condutas como das de
conexão de risco que não ultrapassam o risco do proibido.

Conclui JFD que se nesses casos, havendo resultado, negamos a imputação objectiva
destes à actuação do agente, então por razão lógica nega-se a legítima defesa como modo
de reacção – acresce-se que não existe desvalor de acção, logo a acção não é ilícita para
se poder reagir e só uma visão extremamente objectiva do desvalor do resultado
justificaria posição contrária. Novamente, não se enquadrando na legítima defesa, o Prof.
JFD refere que se pode colocar no âmbito do direito de necessidade e assim não tem o
agredido que cruzar os braços (dentro de uma lógica de proporcionalidade, claro).

Só para as condutas dolosas ou também negligentes? A doutrina maioritária defende que


para ambas vale o mesmo princípio da resposta da legítima defesa. JFD enquadra-se
na legítima defesa. O contrário levaria a uma imensidão de incerteza não contar com as
condutas negligentes e tal restrição levaria a uma grande insegurança – o agredido não
saberia quando o agressor está a agir com dolo ou negligência. Lembramos ainda para a

70
Logicamente, no caso de sequestro, o sequestrado pode reagir enquanto durar o cativeiro.
71
Quando A dispara e fere gravemente B, para evitar que este fuja com as coisas que acabou de subtrair,
há legítima defesa porque foi a resposta necessária para recuperar a coisa subtraída, dado que a reacção
teve lugar logo após o momento da subtracção e o ladrão não tinha iniciado a sua posse pacífica da coisa.
72
Dos jedi
73
A agride B para impedir que este leve o seu colar de pérolas a uma festa sem a sua autorização. Trata-se
de um furto não punível penalmente (art.208º), mas relevante para o direito civil.

34
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
matéria de prevenção geral e tutela de bens jurídicos que também fundamenta a legítima
defesa

Para concluir é de referir que a legítima defesa pressupõe a ilicitude da acção/agressão


e não a culpa do agressor. Há lugar a legítima defesa mesmo que o agente actue sem
culpa devido a inimputabilidade ou por o agente beneficiar de causa que exclui a culpa.
Interpretar que se exige a culpa do agente resultaria numa interpretação contra legem e
levaria a uma confusão entre causas de exclusão da ilicitude e causas de exclusão de
culpa. Não se desconsidera no entanto uma ponderação de necessidade da acção de defesa
face a doentes mentais, crianças.

5.4.3. Os requisitos da acção de defesa


Neste ponto iremos analisar de que modo é que, verificando-se a situação de legítima
defesa, pode o agente reagir.

Necessidade do meio: Quais os critérios para afirmar que foram os meios necessários
usados pelo agredido? O meio é necessário se for um meio idóneo para deter a agressão
e se for adequado de resposta = ser menos gravoso para o agressor e indispensável para a
defesa. Este juízo de necessidade reporta-se ao momento da agressão e tem natureza ex
ante.

Nele deve ser avaliada objectivamente toda a dinâmica do acontecimento com especial
relevância para as características especiais do agente agressor. O agende que procura
defender-se para fazer uso da legítima defesa tem de estar na impossibilidade de fazer
recurso às forças de autoridade (art.21º/1 CRP), mas já resulta da correcta interpretação
do art.32º CP na expressão necessidade de meio – resposta das autoridades à partida será
menos gravoso para o agressor, desde que a intervenção policial seja eficaz e por isso
necessário à defesa.

Questão coloca-se para a fuga que deve entender-se que conta como meio para evitar a
agressão (pussy run) e por isso um meio idóneo para evitar agressão e causa menos
prejuízos ao agressor. Todavia não é imposto (o agente não é obrigado à desonra), pois
estaríamos a não ir em concordância com as exigências de prevenção geral a que a
legítima defesa está adstrita.

O exemplo anterior não afasta a hipótese de, no caso de A ter uma arma e B o querer
matar, A disparar para o ar primeiro para o ameaçar ou mesmo ameaçando por palavras,
só se necessário é que se dispara para o agressor (ressalvando que deve ser em zonas não
vitais, evitar a cabeça ou o coração74). Não é necessário um meio que não seja
suficientemente seguro, por isso mesmo numa luta, ela pode ter resultado incerto75.

74
Só podendo disparar sobre o tronco ou a cabeça quando os tiros anteriores se mostrarem infrutíferos.
75
Ou seja, se o agente tem armas à sua disposição, deve optar por usá-las para ameaçar o agressor é só
depois bater-lhe com elas.

35
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Quanto a meios de autoprotecção, como cães perigosos, aparelhos eléctricos, venenos e
objectos cortantes ou perfurantes, são meios de defesa mas muito provavelmente não se
tratam de meios necessários.

A violação deste requisito resulta no excesso de meios da legítima defesa (art.33º) e o


facto será considerado ilícito. Porém, no meio de uma agressão o agente não tem frieza
mental e pode ser dominado por sentimentos de intranquilidade e insegurança, levando a
que use os meios mais gravosos. Nestes casos a ilicitude mantém-se, e a culpa será
diminuída atenuando a pena. Pode, porém, excluir-se a culpa se o excesso de meios fique
a dever-se a “perturbação, medo ou susto, não censuráveis (art.33º/2).

Necessidade da defesa: É normativamente imposta, não há defesa legítima se ela for


desnecessária. Num conflito ou colisão de bens é necessário salvar um deles à custa do
outro. Os meios necessários para repelir a agressão actual e ilícita têm de ser usados para
a acção de defesa.

Agora vejamos os seguintes casos dentro da necessidade da defesa:

i) Agressões que não importam uma desatenção unívoca pelos direitos do


agredido – existem quando a agressão actual e ilícita ocorre dentro de um
condicionalismo que não se apresenta como uma ofensa socialmente
intolerável dos direitos do agredido. Nestes casos, o agente deve defender-se
dentro de uma certa proporcionalidade. Traduz-se num direito não pleno para
o agredido para legitimar a sua defesa mesmo que utilize os meios necessários
para repelir a agressão. Divide-se em duas vertentes a ver:
1) agressões não culposas, quando a agressão é ilícita e actual mas o
agressor age sem culpa (sendo inimputável, menor, com falta de
consciência do ilícito não censurável ou esta numa situação de
inexigibilidade legalmente prevista ou situação análoga) – quanto menos
responsável o agressor pela agressão, mais apertados são os limites de
necessidade de defesa (evitar defesa agressiva), a compreensão é objectiva
para actuações não culposas e há aqui, sim o critério de proporcionalidade
entre agressão e dano76;
2) Agressões provocadas ou precedida de atitudes de provocação do
agredido sobre o agressor (é o agredido que dá azo a situação de
confronto através de injúrias ou prática de outros actos ilícitos que afectam
a esfera jurídica do agressor.
A necessidade de defesa deve ser negada quando esteja em causa uma
agressão pré-ordenadamente provocada, não há necessidade de afirmação da
Direito na pessoa do agredido pois ele criou a situação de legítima defesa, não
há defesa do lícito perante o ilícito aqui. Mas desde que a provocação seja
proferida ilicitamente, sendo ofensivo de um bem jurídico do provocado, tem

76
O agente deve procurar afastar-se do doente mental que o insulta.

36
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
também que ter estreita conexão temporal e uma adequada proporção com a
agressão que provoca. Caso contrário, não devem existir limitações às suas
defesas.
ii) Crassa desproporção do significado da agressão e da defesa: É o caso do
paralítico que dispara sobre o ladrão para o matar quando este furta-lhe uma
carteira com 5 euros. É unânime não conferir este tipo de direito de
intervenção nestes casos pois a reacção é completamente ilícita. A
insignificância dos 5 euros não serve de fundamento. Já vimos que está sujeita
a uma reserva de relevância social, está em causa antes agressões significantes
mas que causam uma crassa desproporção em que questionamos a necessidade
da defesa. Existem autores que falam aqui em proporcionalidade mas o JFD
diz antes tratar-se de um abuso de direito de legítima defesa, é negado o
requisito da necessidade de defesa e a sua acção é ilícita.
iii) Posições especiais: é questionada a defesa nas situações de proximidade
existencial, criadores de especiais laços de solidariedade juridicamente
relevante. É o caso dos cônjuges, ou pessoas que vivam em condições
análogas, ou entre pais e filhos. O ameaçado deve sempre que possível evitar
a agressão, escolher o meio menos gravoso e defesa, ainda que este se
apresente menos seguro. Esta limitação só desaparece se a agressão for de tal
natureza e gravidade que elimine o dever de solidariedade existencial que
fundamenta a limitação.
iv) Actos de autoridade: a actuação de forças policiais sofre maiores restrições a
este respeito, especialmente no que toca ao uso de armas de fogo (art.1º/c
CPP). As armas de fogo só poderão ser utilizadas em situações de extrema
necessidade e ineficácia de outros meios (arts.2º e 3º CPP). Naturalmente que
os arts.1,2 e 3 CPP prevalecem sobre o art.32º CP por se tratarem de normas
especiais.

Elemento subjectivo: além do requisito geral das causas de justificação (animus


justificandi, do conhecimento da situação de legítima defesa) acresce o animus
defendendi (a uma actuação de vontade de defender bens jurídicos ameaçados pela
agressão). Já nos pronunciámos sobre a questão, mas aqui trataremos melhor de outras
posições.

A antiga doutrina dominante dizia que sim, era necessário, mas segundo Taipa, isso
equivalia a exigir que o defendente representasse a existência de uma agressão actual e
ilícita. A jurisprudência mantém a antiga posição dominante e até impõe que essa vontade
se expresse em dolo directo. Hoje a Doutrina dominante vai no sentido de que existindo
o conhecimento da situação de legítima defesa, não deverá fazer-se a exigência adicional
de uma co-motivação de defesa – resumindo, basta o elemento subjectivo genérico das
causas de exclusão da ilicitude (o animus justificandi). Caso contrário corríamos o risco
de pisar a linha do Direito Penal do agente.

37
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
A acção de defesa que recaia sobre terceiros: A defesa só é legítima se os seus efeitos
se façam sentir sobre o agressor e não sobre terceiro alheio à agressão. Se A para parar a
agressão de B, por erro dispara sobre as pernas de E, o facto é ilícito.

5.4.4. Auxílio necessário


A legítima defesa permite proteger interesses de terceiro, o chamado auxílio necessário.
Caso se trata de defesa do próprio ou de terceiro aplica-se aquilo que aqui tem vindo a ser
desenvolvido, isto é pacificamente acolhido pela Doutrina. Os requisitos são os mesmos.

O problema coloca-se quando o agredido não quer ser defendido ou quer ele ser o próprio
a defender-se. Na Alemanha a opinião dominante vai no sentido de que o agredido nunca
deve ser defendido contra sua vontade expressa porque assim ultrapassa-se o pensamento
da prevalência do Direito sobre o ilícito na pessoa do agredido. Hoje, em Portugal tem-se
vindo a discutir, primeiro, se falamos de bens jurídicos disponíveis ou indisponíveis
(teoria diferenciadora). JFD segue o sentido da Doutrina Alemã.

5.4.5. Legítima defesa civil (art.337º CCiv)


Quanto à relação com o Direito Civil (art.337º CCiv), JFD considera ter uma redacção
infeliz, pois tem problemas de compatibilidade com o ordenamento penal com a
expressão “acto de defesa não seja manifestamente superior ao que derivaria da agressão”.
De resto não apresenta grandes discrepâncias substantivas. O problema coloca-se na
exclusão da responsabilidade uma vez que a proporcionalidade é requisito em Civil mas
não o é em Penal – tendo em conta que corre o princípio da unidade da ilicitude, para
excluir num lado exclui em todos os outros. A contradição é insanável.

CONCEIÇÃO VALDÁGUA refere que existe uma espécie de revogação do preceito do


Código Civil com a entrada em vigor do Código Penal na parte que refere a
proporcionalidade, resolvendo assim a situação dando prevalência ao Direito Penal, nisto
apoia-se também o Prof. JFD. Sumariamente, art.32º CP > art.337º CC. Afastando mais
uma vez a proporcionalidade da questão. O fundamento assenta ainda em razões de
segurança e certeza onde urge clarificação nesta causa de justificação.

5.5. Estado de necessidade justificante


O fundamento do direito de necessidade é a utilidade social traduzida na maximização
da protecção de interesses ou bens jurídicos. O direito de necessidade permite que uma
acção típica seja considerada lícita no tocante a um conflito de bens jurídicos.
Basicamente, quando o agente pratique um facto típico para afastar um perigo que ameace
interesses juridicamente protegidos e houver sensível superioridade entre o bem jurídico

38
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
a salvaguardar e o sacrificado, praticará um facto lícito (art.34º). Iremos analisar os
pressupostos com maior detalhe

5.5.1. A situação de necessidade


Neste ponto será analisado em que situações é que se coloca o problema do estado de
necessidade e só no ponto seguinte iremos verificar a medida da resposta possível do
agente que age de acordo com o estado de necessidade.

O perigo actual que ameaça o bem jurídico: em primeiro lugar tem que haver um
perigo actual e objectivo para interesses juridicamente protegidos. Quanto à
actualidade aplica-se tudo o que dissemos quanto à legítima defesa com o ligeiro
alargamento: para além da iminência, o perigo será actual quando o protelamento do facto
salvador represente uma potenciação do perigo, ou no caso dos perigos duradouros77.
Quanto ao estado de necessidade preventivo, é de rejeitar pelas mesmas razões dadas
quanto à legítima defesa.

Os interesses juridicamente protegidos em conflito com esse perigo: o legislador


evitou referir a expressão de bens jurídicos, seja para evitar lacunas ou para evitar o
entendimento que só se poderia actuar ao abrigo do estado de necessidade por perigo
causado a bens jurídico-penais78. Com efeito, os bens jurídicos, mas não jurídico-penais,
são tutelados pelo art.34º79. Estão encobertas pelo 34º as situações em que o bem jurídico
salvaguardado é o que também pode vir a ser sacrificado80.

A provocação do perigo: o perigo não pode ter sido “voluntariamente” criado pelo
agente salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro (art.34º/a)). Por
“voluntariamente” entende-se que o agente pré-ordenadamente quis criar a situação de
perigo para aproveitar a exclusão de ilicitude que o estado de necessidade provocaria81.
Claro que mesmo que isto se verifique, estando em causa interesse de terceiro, a conduta
é justificada.

77
Existe um edifício em perigo de desmoronamento.
78
A referência a interesses também permite-nos ponderar melhor certos aspectos como o grau de perigo
ameaçador, a intensidade da lesão esperada, a autonomia pessoal do lesado, a maior ou menor adequação
do meio salvador.
79
Pode agir em estado necessidade o segurança que empurra um fotógrafo ou um jornalista insistente
(ofensa à integridade simples art.143º) como meio necessário e adequado de “assegurar o seu posto de
trabalho”. JFD admite ainda, excepcionalmente que se abranja bens jurídicos não do indivíduo, mas da
comunidade. Será o caso de alguém cometer um facto típico patrimonial de valor relativamente pequeno
para afastar um perigo actual e significativo de contaminação ambiental.
80
Se, por não haver conhecimento científicos suficientes, o médico realiza uma cirurgia de alto risco ao
paciente, tal será justificado porque, embora a vida seja colocada em risco, a cirurgia é a única maneira
possível de paciente sobreviver.
81
Se A, querendo ver a casa do seu vizinho B, incendiar a sua casa (e não conseguindo entrar directamente
em sua casa) e para evitar o incêndio entrar na casa do vizinho não age ao abrigo do direito de necessidade.

39
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
5.5.2. O princípio do interesse preponderante
O art.34º/ b) exige a “sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao
interesse sacrificado”. Estamos perante um problema de ponderação ou conflito de
interesses que supostamente será resolvido pela hierarquia de direitos. A expressão
“sensível” deve ser entendida no sentido de evidente superioridade nos olhos do agente
quando pratica o facto típico (ao abrigo do art.34º). Mas esta hierarquia de direitos
configura-se bastante difícil.

Molduras penais: JFD propõe que se atenda à medida legal da pena, se o dano ao bem B
é susceptível de pena superior ao dano ao bem C, em princípio, o bem B é superior ao C.
Mas, como próprio autor refere, tal critério não chega porque existem vários bens de
elevado valor constitucional que estão dispersos e só são atendidos em manifestações
concretas82. Para não falar que os bens que não sejam jurídico-penais logicamente não
terão pena para se comparar.

A intensidade da lesão do bem jurídico: há que verificar se está em causa o aniquilamento


completo do interesse ou só a sua lesão parcial ou passageira. Em princípio, a integridade
física (arts.143º e ss), liberdade pessoal (art.153º) devem considerar-se superiores a bens
puramente patrimoniais. Mas pode acontecer que a lesão destes bens pessoais seja mínima
comparada à lesão dos bens patrimoniais. Esta ponderação também deve ser feita tendo
em conta a “intensidade previsível da lesão”83.

O grau do perigo: a violação do bem jurídico nem se apresenta como certa, pode ser
meramente provável. Na primeira situação não haverá problema e acção típica encontra-
se justificada. Já na segunda situação, a criação do perigo concreto com base no perigo
abstracto deve ser balanceada consoante o grau de probabilidade84.

A autonomia pessoal do lesado: quando o bem jurídico sacrificado é de natureza pessoal


é necessário alguma cautela. O facto praticado ao abrigo do art.34º não pode pôr em causa
(consideravelmente) o direito de autodeterminação ou auto-realização do lesado, ou
ainda, a sua dignidade pessoal. Tem que ser “razoável impor ao lesado o sacrifício do seu
interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado” (art.34º/ c)). Percebe-
se o problema porque efectivamente, havendo direito de necessidade, o lesado é obrigado
a suportar a conduta do agente que age ao abrigo de uma causa de justificação85.

A imponderabilidade da vida de pessoa “já nascida”: na mesma linha do ponto anterior,


nunca se pode fazer contas com a vida do lesado para salvar outros interesses, nem que
esses interesses sejam outras vidas. A vida humana sendo o bem jurídico mais valioso da
ordem jurídica nunca pode ser aniquilado com base no direito de necessidade. Se a única

82
É o caso da liberdade.
83
Assim se o empresário que incumpre o dever de omissão de auxílio porque tinha uma inadiável reunião
de negócios que acarretaria gravíssimos prejuízos patrimoniais para ele e/ou para outrem, em princípio,
justifica a sua omissão.
84
Justifica-se que uma ambulância realize uma “corrida” para transportar pacientes em situação de
urgência. O mesmo não acontece se a lesão do paciente for ligeira e o perigo for pouco provável.
85
Não é razoável A impor a B que doe o seu rim a C que irá morrer sem esse rim. Não há justificação.

40
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
maneira de salvar 30 pessoas for matar 2, no que toca a ilicitude, a conduta de matar os 2
nunca estará justificada. JFD ainda considera que em certos casos o interesse justifique
o sacrifício de uma vida. Mas tal discussão da “irresponsabilidade” dos agentes só pode
ter lugar no domínio da culpa, como no estado de necessidade desculpante (art.35º). Salvo
na legítima defesa86, nunca será lícito tirar a vida a alguém 87. Tal implicaria dizer ao
lesado que é obrigado a deixar que os outros o matem e não se pode defender, não pode
acontecer.

Em conclusão, a sensível superioridade do interesse deve ser atendida no caso concreto e


globalmente considerada com todos os estes critérios.

5.5.3. A adequação do meio


A determinação do “meio adequada para afastar o perigo” é feita pelos critérios que
anteriormente referimos. Quanto muito se pode considerar certas situações em que
segundo a experiência comum certo meio (coberto pelo direito de necessidade) for
inidóneo para salvaguardar o interesse ameaçado88. Esta discussão pode eventualmente
resolver-se no erro sobre os pressupostos do direito de necessidade.

5.5.4. Auxílio de terceiro


O art.34º refere expressamente que o interesse a salvaguardar poderá ser “do agente ou
de terceiro”. Portanto, é permitido ao agir ao abrigo do direito de necessidade para
proteger o interesse de outrem.

5.5.5. Requisitos subjectivos


Quanto aos requisitos subjectivos do agente, mantemos a posição que defendemos a
propósito da legítima defesa. Basta que o agente tenha consciência que a situação factual
que preenche os pressupostos do estado necessidade para que actue ao abrigo dessa causa,
mesmo que queira aproveitar a situação para lesar os bens jurídicos de outrem. Outros
autores defendem que tem que existir uma vontade de defender o interesse preponderante
dado que se diz que o agente deve utilizar um “meio adequado para” defender o interesse.
A lei refere-se à situação objectiva a esse propósito.

86
Porque há uma agressão ilícita e, eventualmente, a morte do agressor pode ser a única maneira de
tutelar os bens jurídicos do agredido e de fazer cessar a agressão.
87
E o mesmo se dirá quando é certo que o lesado morrerá, por exemplo, se um grupo de pessoas for para
uma gruta e um gordo ficar preso na entrada. A única maneira do grupo sobreviver é matar o gordo, que
inevitavelmente irá morrer, e escapar da gruta. Não obstante do destino inevitável, não cabe ao grupo
assumir o papel de deus ou de “selar o destino do gordo”. A acção é ilícita, podendo apenas ser desculpada.
88
O agente tenta impedir um incêndio utilizando pequenos baldes do vizinho.

41
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
5.5.6. Estado de necessidade defensivo jurídico-penal
Tem-se discutido a admissibilidade de um estado de necessidade defensivo, isto é, quando
o agente o lesa o bem jurídico de terceiro porque se defende de um perigo que tem origem
nesse terceiro. O agente não pode recorrer da legítima defesa porque está em causa um
perigo e não uma iminência de agressão89, ou está em causa uma actuação lícita90.

JFD concorda que admitir uma causa de exclusão supra legal poderia trazer demasiados
riscos para a segurança jurídica. Assim, só poderá haver estado de necessidade defensivo
quando cumpra os requisitos do estado de necessidade justificante (art.34º).

5.5.7. Estado de necessidade jurídico-civil


A lei civil também consagrou o estado necessidade (art.339º CCiv) para efeitos de
exclusão de responsabilidade civil. Quanto à letra da lei, o art.339º CCiv difere do art.34º
quando exige que a protecção dos interesses ameaçados se faça à custa dos interesses
patrimoniais e já não de interesses pessoais (como a integridade física, honra etc). JFD
discorda que assim seja e defende, com base na mesma teleologia do art.34º que o estado
de necessidade jurídico-civil pode estender-se no sentido de permitir a lesão de danos
pessoais. Não concordamos, a teleologia é diferente. O direito penal serve como o ramo
do direito que tutela subsidiariamente os bens jurídicos e que trata dos factos e sanções
mais graves da ordem jurídica. Dada a gravidade da responsabilidade penal, justifica-se
a extensão do estado de necessidade justificante (penal). Porém, no direito civil está em
causa responsabilidade civil (reconstituição natural e, sendo esta impossível, a
indemnização) pela lesão de direitos de personalidade que deve ser ponderada de acordo
com as regras próprias da responsabilidade civil (art.483º CCiv e 798º CCiv). Em
primeiro a ilicitude civil processa-se de modo diferente da “penal”. A ilicitude penal
verifica-se na ausência do preenchimento de uma causa de justificação, a ilicitude civil
verifica-se quando há uma lesão de direitos subjectivos ou violação de normas de
protecção. Em segundo lugar, há responsabilidade por factos lícitos. Concluindo, o estado
de necessidade civil não tem que excluir o facto típico que sacrifique bens pessoais do
lesado.

5.6. Conflito dos deveres


Trata-se de uma causa específica e autónoma (relativamente) à teoria do estado de
necessidade justificante que no passado não foi considerada pela doutrina. Hoje podemos

89
A tem um ataque epiléptico e, se não for afastado à força, eventualmente irá destruir um jarro de
porcelana.
90
Se A, tendo observado as regras de trânsito (agindo licitamente), perder controlo do carro por algo
inesperado, pode B (possível vitima) agir em estado de necessidade defensivo?

42
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
dizer, no entanto, que o conflito de deveres repousa no mesmo fundamento que o estado
de necessidade justificante (e para ele remetemos o estudo do fundamento). As diferenças
assentam na forma como se solucionam os conflitos, daí ser específico.

Devemos distinguir situações de verdadeiro conflito de conflito aparente. No


verdadeiro conflito existem deveres de acção distintos que colidem e que apenas um deles
pode ser cumprido91. Não cabendo então situações de deveres de acção e de omissão, que
cabem no falso conflito ou aparente (e não cabem no art.36º nº1, 1ªparte CP), nesses casos
não há conflito de deveres mas sim de colisão de interesses e remete-se para o art.34º CP.

A autonomia face ao estado de necessidade assenta numa lógica de justiça material nos
casos de ponderação de dois interesses iguais, sendo que a escolha de um iria acarretar a
ilicitude face ao outro. Por isso considera-se excluida a ilicitude no caso do agente
cumprir apenas um dos deveres (sendo que partimos do pressuposto que é impossível
realizar ambos e que tem de ser feita uma escolha). O dever deve ser correspondido de
forma igual em termos de valor face ao que é sacrificado – significa que não nos pode
saltar à vista que são desiguais, diferentemente verificamos isso no estado de necessidade
que tem de ser “sensivelmente superior”.

No caso de o agente não cumprir um dos deveres, o seu comportamento é ilícito. A Prof.
MFP faz no entanto uma ressalva para uma cláusula de desculpa atípica no caso de não
cumprimento de ambos os deveres por imobilização sentimental que obsta a realização
de ambos os deveres iguais, isto é, o agente cuja motivação esteja paralisada ou sob
pressão moral (pelo amor p.e) o leva a não realizar nenhum dos deveres em conflito. Ele
não será punido, pois embora seja um acto ilícito, ele é desculpável (princípio da desculpa
em funcionamento). Estas situações são os casos de dilemas aos quais o agente não tem
e não dá resposta, ficando “entregue a Deus” ou ao Destino. O fundamento da Prof. MFP
assenta no facto de ser uma condição essencial de vida do agente cujo seu sentido de vida
se esvazia perante tal conflito. P.e: a mãe imobilizada pelo amor aos seus dois filhos e
que tem de escolher um deles, sendo que o seu sentido de vida é a segurança de ambos.

O fundamento do conflito de deveres assenta também na ideia que: se fossemos a


considerar ilícita a actuação em que pelo menos um dos deveres foi cumprido, estariamos
a equiparar este agente ao que nada fez – não cumpriu nenhum. Não faria muito sentido
nas situações que o agente fez o melhor que podia e ainda assim não conseguiu cumprir
todos os seus deveres por impossibilidade.

Na escolha de um dos deveres, no caso de serem iguais, o Direito deixa um espaço livre
de escolha ao agente. Outra consequência legal parece a não fazer sentido moral, social
ou jurídico. Vejam-se as situações de um pai que tem de salvar um dos filhos ou o médico
um dos seus pacientes.

91
Se os irmãos A e B estão prestes a morrer afogados, e C, seu pai, tem um dever de garante de salvar
ambos os filhos, caso contrário responde por omissão. Se apenas conseguir salvar um deles (por exemplo
A), age licitamente em relação à omissão de auxílio a B.

43
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
O Prof. JFD afirma que, tal como no art. 34º CP deve-se atender não só ao bem jurídico
em causa e em colisão, mas antes à ponderação concreta dos interesses em conflito no
quadro da situação global. Aceitando por isso que se escolham deveres onde hajam mais
bens jurídicos em perigo e onde há mais perigo (ainda que tenham igual valor).

Refere ainda o Prof. JFD que deve ser dado primazia às situações em que exista um dever
especial de garante, esse dever irá prevalecer sobre o outro.

A segunda parte do art. 36º nº1 CP refere-se ao conflito de ordens legítimas da autoridade,
explicando que são casos de conflito de deveres uma vez que uma ordem assumida irá
impossibilitar a outra. Sendo então que este regima se aplica na integra.

5.7. Consentimento justificante **não revisto**


Chama-se o consentimento real ou efectivo. A antiga teoria do negócio jurídico
considerava o consentimento como um verdadeiro negócio unilateral e que o agente teria
direito à lesão de um bem jurídico seu e por isso uma causa de justificação.

A teoria foi ultrapassada para uma de abandono do interesse ou consequente renúncia


à protecção penal, por parte do titular. Segundo esta, o ordenamento jurídico colocava
na disponibilidade do ofendido os objectos de protecção. Reforçando a defesa da
autonomia pessoal e o direito à autodeterminação do titular do bem jurídico lesado. O
Prof. JFD refere ser um caso de renúncia ao bem jurídico e não apenas a sua protecção
penal.

Outra teoria aponta para a intenção político-criminal como fundamento deste instituto
justificante. Aponta também para a auto-realização do titular do bem jurídico e que o
Direito Penal permite que essa vontade subjectiva prevaleça sobre a da comunidade para
preservação do bem jurídico. JFD acolhe esta embora aponte reparos.

Pois aqui cabe também discutir um caso de conflito de interesses em si mesmos dignos
de tutela penal. De um lado o interesse jurídico penal (justificação social) na preservação
de bens jurídicos e a força do consentimento do titular.

Existe sempre uma lesão efectiva de bens jurídicos que se confronta com o interesse na
preservação jurídica e penal, da auto-realização e da autonomia e vontade do titular do
bem jurídico lesado. Consideramos desde já que o Direito refere-nos casos em que os
bens jurídicos são considerados “disponíveis” pelo seu titular como p.e a integridade
física.

O sistema social perde para o sistema pessoal, na medida em que confere ao titular, por
lei, uma possibilidade de consentir dando assim eficácia justificante do consentimento.
Isto explica a dogmática do consentimento.

44
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Trata-se de uma causa de justificação do facto e não só de uma exclusão da tipicidade do
facto, para JFD o sistema do consentimento é dualista. Quem defende o contrário pensa
da seguinte forma: em todos os casos em que a lei proteja a liberdade de disposição do
indivíduo, o acordo do interessado faz com que não possa nem deva falar-se de violação
do bem jurídico.

O Prof. JFD defende-se existindo casos para ambas as construções de acordo para o tipo
e consentimento para causa de justificação.

Face ao objecto do consentimento, apresentam-se duas teses:

a) A dominante – o consentimento tem de abranger, nos crimes de resultado, tanto a


acção como o resultado típico.
b) A minoritária – consentimento nos crimes negligentes tem apenas como objecto
a acção.

Este problema retrata também a eficácia do consentimento. Nós seguimos a primeira


posição, sendo a mais conforme à teoria da imputação objectiva do risco.

Os pressupostos de eficácia do consentimento justificante:

a) O carácter pessoal e a disponibilidade do bem jurídico lesado. O bem jurídico


tem de ser pessoal (do próprio portador ou titular individualizável) e em definitivo
para reafirmar a auto-realização pessoal – só pessoa individual por regra mas
também colectiva.

Complexo é o problema do art. 38ºnº1 CP sobre o carácter “livremente disponível” do


interesse. Claramente, fora deste estão os bens urídicos comunitários que como tais são
protegidos. Dentro dos disponíveis não se levantam dúvidas quanto aos bens patrimoniais
individuais. A grande dúvida é sobre a vida e integridade física que são os que mais valor
apresentam no nosso sistema, acima de tudo a vida. A Doutrina unânime aponta para a
“absoluta indisponibilidade” da vida humana, e nisto concordamos, face a lesões de
terceiros, o fundamento assenta na teologia e no sistema legal que define como ilícito
típico punível o matar alguém (mesmo sobre pedido sério e expresso pelo titular).
Acresce-se que tratando-se de um facto contra os bons costumes, a vida tem tutela não
só a nível de lei ordinária mas também constitucional e tem um claro primeiro lugar na
hirarquia de bens urídicos dignos e que carecem de tutela penal. O Prof. JFD acrescenta
que se deve abranger ainda os casos dos direitos de personalidade elementares.

Os casos de ofensa à integridade física são diferentes. Ela é considerada como um bem
disponível pelo seu titular mesmo face a ataques de terceiro. Controversa fica a questão
face à clausula já aqui referida dos bons costumes.

b) O consentimento não pode ser contrário aos bons costumes. Esta referência é
nos dada pela parte fnal do art. 38º nº1 CP e é pressuposto de relevância
justificadora do consentimento que o facto consentido não ofenda bons costumes.

45
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Mas qual o entendimento e âmbito deste conceito/clausula? O critério é impreciso
e imaterial.

Passa pela gravidade e sobretudo pela irreversabilidade dos danos nesses casos ainda
que o bem urídico seja disponível por lei e assim a lei valoriza mais altamente a lesão que
a auto-realização do seu titular. O consentimento nestas situações acarreta a ineficácia,
relembramos, se for com gravidade tal e dotado de uma irreversabilidade do dano. No
caso de ser simples e passageiro, admite-se o consentimento eficaz pois não ofende os
bons costumes, independentemente dos fins ou motivos na base do consentimento.´

Associada à cláusula de bons costumes está a problemática do perigo grave para a vida.
Tem-se entendido que o consentimento no perigo grave para a vida é uma peça
indispensável e insubstituível da negação do ilícito típico.

c) O acto de autodeterminação. Quem consente tem de ser capaz, a capacidade


não é analisada à luz do CC, a capacidade reporta-se à necessidade de garantir
que quem consente é capaz de avaliar o significado do consentimento e o
sentido da acção típica, supondo maturidade, certa idade e discernimento que é
produto da normalidade psíquica. Daí o preceito do nº3 do art. 38º CP. Em caso
de incapacidade penal, admite-se a via de representação legal em nome do
incapaz. Existem no entanto, excepções: ofensas corporais graves, intervenções
médico-cirúrgicas fora dos pressupostos do art. 150º CP.

A vontade tem que se traduzir num acto de vontade séria, livre e esclarecida, assim
refere o nº2 do art. 38º CP, por parte do titular do interesse juridicamente protegido.
Quanto a ser esclarecido, fala-se do alcance, envergadura e possíveis consequência da
ofensa. A lei faz exigências no art. 157º CP para a intervenções médicas (acrescentando
privilégio terapêutico) sendo que deve comunicar as circunstãncias para serem
conhecidas pelo paciente, o perigo para a sua vida e os danos que possam ser causados e
a gravidade da saúde física ou psíquica.

A vontade não pode estar viciada para ser eficaz. Seja por engano, erro, ameaça ou
coacção tornam o consentimento ineficaz. Hoje tem-se defendido porém um concepção
diferenciadora, onde apenas as coações e ameaças são ineficazes em todos os casos, mas
no caso do engano e do erro em sentido estrito (não provocado) só é posta em causa a
eficácia do consentimento se nos depararmos com um engano referido ao bem jurídico.
Assim não será se o engano não for referido ao bem jurídico.

O Prof. JFD dispensa formalismos para a eficácia do consentimento na tradução de


um acto de autodeterminação. Basta só que o consentimento seja manifestado. Assim,
conforme à lei, se diz que pode ser expresso por “qualquer meio” – art. 38 nº2, 1ª parte
CP. Daí se extrai também que o consentimento pode ser revogado até à execução do facto.

46
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
d) Conhecimento do consentido. Tem de ser conhecido do agente. Sim, é tão
simples quanto isto.

Os casos de consentimento hipotético têm tido relevo, isto é, os casos em que o


consentimento teria sido dado se o devido esclarecimento tivesse tido lugar. No entanto
não foi dado esse consentimento, sendo um problema de formulação da vontade. Para
estes casos remetemos o estudo para a Imputação obectiva e a lógica de comportamentos
alternativos lícitos.

Sobre o consentimento presumido, refere o nº2 do art. 39º CP a sua ocorrência. O titular
do bem urídico não consentiu na ofensa, mas nela teria presumivelmente consentido se
lhe tivesse sido posssível por a questão – o chamado estado de necessidade da decisão”.
O seu carácter é subsidiário, daí distinguir-se do consentimento hipotético: o presumido
sói entra em jogo quando não for possível obter a manifestação expressa da vontade ou
houver perigo sério na demora.

Fundamento do consentimento justificante presumido:

a) Correspondência do facto ao verdadeiro bem ou interesse do lesado – vontade


unicamente como limite do âmbito admissível de intromissões na vida alheia.
b) Outra posição: presunção não do interesse do lesado mas da direcção da sua
vontade – equiparação ao consentimento real e eficazmente prestado. Nesta
incorre o Prof. JFD e a lei portuguesa no art. 39º nº1 Cp que manda equiparar o
consentimento presumido ao efectivo. O nº2 reporta a suposição razoável de que
ele teria consentido (essa teria sido a sua vontade se conhecesse as circunstâncias).

Requisitos de eficácia:

a) Interesses juridicamente livres e disponíveis.


b) Facto não ofenda bons costumes.
c) A presunção tem de reportar-se ao momento do facto
d) Titular do bem jurídico possuir capacidade jurídico penal para consentir.
e) Necessidade de uma decisão que não pode ser retardada.
f) Impossibilidade de ela ser tomada pelo interessado.
g) Vontade a atender dever ser a normal ou razoável do interessado – não se impõe
o conhecimento da real.
h) Agente deve ter uma cuidadosa comprovação da situação (exigível por parte da
Doutrina) – Prof. JFD rejeita.

5.8. Outras causas de justificação (**NÃO REVISTO**)


5.8.1. Actuação Oficial
Ao titular de poder oficial (agentes do Estado) são conferidos concretos direitos de
intervenção, um exercício de um direito, art. 31º nº2 b) ou o cumprimento de um

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Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
dever, art. 31º nº2 c) CP. Estes factos apesar de formarlmente serem típicos, são
justificados.

A lei não redesenha com precisão suficiente e por vezes torna-nos questionáveis se
estão ou não presentes. Não há preceito geral no sistema português. Limitando-se ao
art. 271º CRP a fazer a determinação. Tem-se defendido que se deve atender a um
conceito especial de ilicitude que “guarde as costas” da autoridade sempre que esta
erre sobre pressupostos fácticos da legitimidade da sua actuação: ilícita só será a
actuação se o erro em que recai a autoridade for particularmente grosseira ou
censurável, ou se o agente não levar a cabo uma cuidadosa comprovação conforme
ao dever da situação de facto.

Deve considerar que a actuação oficial constitui uma causa de justificação nos termos
do art.31º nº2 b) CP apenas quando se verifica a totalidade dos pressupostso fácticos
e jurídicos de que a lei faz depender a concessão do respectivo direito de intervenção.

5.8.2. Ordens Oficiais ou de Serviço


No Estado Novo partíamos da posição totalitarista de que “o Estado tinha sempre
razão” nos seus procedimentos e actuações. O mesmo não pode serdito na obediência
devida enquanto causa de justificação do facto. A questão é a de saber em que medida
e sob que condições o inferior hierárquico que cumprisse uma ordem ilegal recebida
do seu superior e, cumprindo-a, praticasse um facto criminalmente ilícito poderia vê-
lo justificado.

A primeira posição é a da “obediência cega” segundo o qual ao inferior só caberia


cumprir a ordem recebida do superior, sem dever ou sequer apreciar da sua legalidade
formal e material – a obediência é sempre devida e por isso seria uma causa de
justificação. Apenas haveria responsabilidade para o superior hierárquico.

Depois surge a tese da “obediência devida limitada” segundo a qual a causa


justificativa operaria sempre que a ordem recebida fosse formalmente legal ou no caso
de persistente dúvida sobre a legalidade material e solicitasse ao superior a
confirmação da ordem recebida ou a sua redução a escrito.

Discute-se, em relação ao subordinado, a que solução chegariamos: a de justificação


– do facto praticado pelo subordinado assente na ideia do cumprimento do dever; ou
de exclusõ da culpa – que nega a justificação a partir de uma perspectiva objectivista
da ilicitude e do princípio de que uma ordem, só por si, não pode ter condão de
transformar em lícita uma conduta ilícita.

EDUARDO CORREIA afirma a existência do princípio de que cessa o dever de


obediência hierárquica quando conduz à pratica de um crime, art. 271º nº3 da CRP e
nos arts. 36ºnº2 e 31º nº2 c) do CP. Estes preceitos delimitam o campo do efeito
justificativo.

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Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Importa distinguir:

a) Ordem ao inferior conduz à prática de um facto típico criminoso mas não ilícito
por actuação oficial – a ordem é legítima e de cumprimento devido e o facto está
justificado para o superior e para o inferior
b) Sendo um ilícito criminal – nunca a ordem oficial ou de serviço pode em si mesma
constituir uma causa de justificação.
c) Se a ordem ilegítima não conduzir à realização de um facto criminalmente ilícito
– vale o art. 271ºnº2 da CRP que consagra a tese da responsabilidade limitada do
subordinado.

Importa reforçar que a ordem para a prática de um crime nunca é obrigatória. A


doutrina maioritária continua a atribuir ao subordinado uma causa de exclusão de
ilicitude no cumprimento de ordem ilegítima cujo funcionário confiou sobre estado
de erro inevitável sobre o substracto factual da ordem na sua legitimidade.

Tem-se entendido que existe um conflito de deveres entre o dever de obediência e um


dever de não ir contra um dever de norma penal. Cabe portanto saber qual deles é
superior. Se o dever de obediência for superior, então existe causa de justificação da
ordem ilegítima.

O Prof. JFD refere no entanto que um ordem de autoridade ou de serviço que conduza
à realização de um facto criminalmente ilícito não consitui nunca, em si e por si
mesma, uma causa justificativa. Pode no entanto estar em causa antes uma causa de
exclusão da culpa do subordinado que a cumpre (art. 37º CP).

5.8.3. Autorizações Oficiais


É importante em relação ao direito penal do ambiente e do ordenamento do território.

Pode estar ao nível da exclusão da tipicidade como pode estar ao nível da exclusão da
ilicitude. Num lado existem actividades que são socialmente adequadas e mesmo
desejáveis, mas noutros casos a actividade autorizada conduz efectivamente à lesão de
bem jurídico e não é socialmente adequada. No segundo grupo de hipóteses há causa de
justificação do facto.

Na Doutrina, a propósito do Direito Administrativo, tem-se entendido que não existe


eficácia ustificadora se o acto for nulo. Já quando à anulabilidade a Doutrina divide-se
nas respostas sobre a justificação ou não do facto. A questão liga-se ao facto de, se do
ponto de vista jurídico-penal, em ultimo termo decisivo para a ustificação, deve ligar-se
ás normas juridico administrativas materiais ou se deve ligar ao acto da autoridade
administrativa competente – acessoriedade de direito vs acessoriedade de acto.

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Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
O Prof. JFD aponta para um ponto de partida: a acessoriedade do acto para dar eficácia
justificadora da autorização oficial. Em princípio, uma vez concedida a autorização sendo
ela anulável segundo o direito administrativo material, não deve ser possível considerar
ilícito o facto praticadono uso dessa autorização pelo particular. Só assim não devendo
acontecer quando o acto de autorização da Administração constitua resultado directo de
uma actividade ilícita e dolosa do particular.

6. Agere Pro Magistratu – Actuação no lugar de um órgão oficial


A utilização da força é exclusiva do monopólio estadual, mas não exclui o direito de
actuação legítima dos particulares em lugar do Estado ou dos seus órgãos como medida
provisória de realização da ordem jurídica. Temos os casos da detenção em flagrante
delito; acção directa; e direito de correcção.

a) Detenção em flagrante delito.

Poder que assiste a qualquer pessoa para proceder à detenção em flagrante de um delito
do agente de um crime punível com pena de prisão no caso de um ente judiciário ou
entidade policial não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil, art. 255ºnº1
b) do CPP. Condição: a pessoa tem de entregar imediatamente o detido à autoridadde
judiciária ou policial; apenas vale para a privação de liberdade e não para violação típica
da integridade física do detido mesmo que este tente a fuga. Fica subordinada aos
princípios da provisoriedade – entregar assim que puder às autoridades; e da
subsidariedade – quando não seja possível reccorer a autoridades competentes.

b) Acção Directa.

Consta do art. 336º CC, permite o uso da força para interesses jurídicamente relevantes
para a apropriação, destruição ou deteriorização de uma coisa, na eliminação da
resistência irregularmente oposta ao exercício de um direito ou ouro acto anáogo.
Requisitos: recurso à força tem de ser indispensável pela impossibilidade de recorrer em
tempo útil aos meios coercivos normais para alcançar a finalidade visada; o agente não
pode exceder o necessário para evitar o prejuízo; o facto não pode sacrificar interesses
superiores aos que o agetne visa realizar ou assegurar.

c) Direito de Correcção.

De forma restritiva está apenas concebido para pais e tutores. Tem que ver com ofensas
à integridade física e castigos corporais do art. 143º e ss do CP ou com os maus tratos do
art. 152ºCP. Prevê-se ainda para as situações de violação de liberdade pessoal (ameaças,
de coacção e de sequestro). Ou ainda o caso da honra (injúria – art. 181ºCP) ou da reserva
da vida privada (segredo de correspondência e telecomunicações) art. 194º CP.
50
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
A Doutrina é quase unânime em atribuir uma ustificação caso sejam cumpridas três
condições: 1) agente actue com finalidade educativa e não por irritação, tensão nervosa
ou prazer de infligir dor ou intimidação; 2) o castigo tem de ser criterioso e portanto
proporcional, ser o mais leve possível não sendo grave ou muito grave; 3) e que em
consequência ele seja em todos os casos moderado e não ultrapassar um limite de ofensa
qualificada ou atentória da dignidade do menor.

Não parece digno de sufragar que um professor tem direito de correcção sobre os alunos
por factos criminalmente típicos (podendo antes dar-vos más notas, não dar aulas ou
simplesmente cagar em vós). De referir o estatuto de estudantes que proíbe tais práticas.
Torna-se difícil assim de resolver o problema de indisciplina nas escolas, fazendo-se
apelo para as práticas consuetudinárias ou socialmente adequadas.

Tem-se colocado em questão que se a posição é ainda restrita aos pais e tutores, uma vez
que o art.1907º CC parece a transportar tal direito para instituições de educação ou
assistência e para terceira pessoa – uma transferência de poderes/deveres dos pais.
PAULA RIBEIRO DE FARIA refere que uma equiparação para tais direitos não deve
prosseguir e nisto concorda JFD, a legitimidade permanece nos pais. aplicação é legítima
e pode (por adequação social) ser considerada atípica e não meramente justificada. O
Prof. JFD tem dúvidas se foi longe demais,

6. Culpa (** não revisto**)


A culpa é o juízo de censurabilidade social que se faz ao agente que praticou o facto típico
e ilícito. Para se ter culpa é necessário:

• Não ser inimputável em razão da idade (ter maturidade art.19º) ou por


anomalia psíquica (ter sanidade mental art.20º).
• Ter capacidade de motivação pela norma. Se o agente é coagido a fazer algo
não tem essa capacidade.
• Ter consciência de ilicitude (art.17º), convém ter justa oportunidade para saber
do carácter ilícito do facto.

6.1. Inexigibilidade
I. Trata-se de uma causa de exclusão de culpa, assim é considerado no
ordenamento português, apesar da sua controvérsia (além fronteiras) se apenas
atenua a culpa (e assim a pena) ou se deve excluir desde logo a ilicitude (ou
até mesmo a responsabilidade diretamente como refere Roxin)

Por origem da culpa na sua conceção normativa, considerando-a como censurabilidade


ao facto em atenção à capacidade do agente para se deixar levar pela norma. Acrescenta-
se ainda que a censura só deve efetivar-se quando ao agente, na situação concreta, seja
exigível um comportamento adequado ao Direito. Tem que ver então com as motivações

51
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
do agente quando comete o facto, se existiam outras decisões que o agente deveria ter
tomado adequadas ao Direito. Mas e se o agente for “arrastado” ou tenha-lhe sido roubada
a possibilidade de agir de outra forma, por força de situação exterior? Em suma, ele não
tem poder de agir para atuar de forma diferente por isso exclui-se a culpa.

Assim, a ilegibilidade constituiria uma causa de exclusão de culpa, pois o Direito não
deve censurar quem não teve poder de decisão por causa exterior que impediu o agente
de agir com conformidade/licitamente. Compreende-se que o agente não estava com a
correta capacidade para se motivar pela norma devido à pressão do condicionalismo. As
intenções são distorcidas dada a pressão imperiosa de momentos exteriores (p.e arma
apontada à cabeça). É unânime que o Direito não impõe à pessoa ser um herói moral, mas
antes um homem dotado de resistência espiritual normal, honesto, normalmente fiél ao
Direito que teria atuado de forma correta não fosse esse momento exterior que o desvia.
Este é então o fundamento da inexigibilidade enquanto causa desculpante.

Os polícias, bombeiros e soldados estão no entanto em posição diferente – a de


exigibilidade intensificada, um especial dever de suportar riscos. Entende-se que nestes
casos não se pode desculpar.

Não existe uma cláusula geral de exclusão de culpa, sendo que é necessário a lei conferir
tal pejorativa. Figuras que são as seguintes:

a) Estado de Necessidade Desculpante do art. 35º CP.

Antes de mais implica uma colisão de bens jurídicos, os requisitos da figura de exclusão
de ilicitude (Estado de Necessidade) carecem de estar estabelecidos: perigo para bens
jurídicos, adequação de meio, a necessidade. Claramente aqui, para a figura desculpante
verificamos que não há salvaguarda de bens jurídicos preponderantes. São inferiores ou
iguais ou não sensivelmente superiores ao bem jurídico lesado.

Requisitos:

1) Perigo atual e não removível de outro modo: Remete-se para o estudo de


Estado de necessidade Justificante, sublinha-se a actualidade neste conceito
deve ser mais amplo, abrangendo os perigos duradoiros. Quanto à cláusula de
o perigo não poder ser removido de outro modo deve ser entendido de forma
estrita, p.e o soldado que não pode invocar esta cláusula. Entende-se ainda que
não devem ser invocados perigos insignificantes para a cláusula de
inexigibilidade.
2) Bens susceptíveis de serem lesados. A ordem jurídica estabelece que dá mais
importância à conservação de bens jurídicos mais valiosos. O comportamento

52
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
deve no entanto ser conforme ao Direito, por isso os bens jurídicos individuais
elementares são aqueles que são admitidos para haver exclusão de culpa –
vida, integridade física, honra ou liberdade. Questão coloca-se para a vida
intrauterina, o Prof. JFD afirma que é possível desculpar quem protege essa
vida, assim como a Doutrina maioritária alemã. O princípio de afastar o perigo
vale para o próprio ou terceiros.
3) Cláusula de inexigibilidade e o seu significado – não se pode exigir ao
agente, naquelas circunstâncias, outro comportamento diferente. Este é o
requisito mais importante e conforme ao princípio da culpa. O critério é
pessoal e objetivo, um certo dever de suportar perigos, mas não todos, o agente
não tem de ser um herói moral. A desculpa é, contudo, sempre negada se a lei
exigir que o agente deve suportar o perigo (os chamados estatutos especiais),
as profissões de perigo acrescido já referidas dos polícias, bombeiros e
soldados – esta cláusula não se aplica e eles não terão desculpa. Duvidosa é a
situação em que o perigo foi causado pelo próprio agente, o Prof. JFD refere
que deve ser negado quando o agente provoca voluntariamente o perigo.
Há desculpa se os bens jurídicos tiverem o mesmo valor, se o bem jurídico a
salvaguardado ser superior mas não sensivelmente superior ao bem lesado e
ainda no caso do bem lesado ser inferior ao salvaguardado. Recusam-se os
casos em que existe uma crassa desproporção dos bens em jogo, devendo os
restantes casos subsumidos à cláusula de inexigibilidade na situação – p.e
quando o bem salvaguardado é sensivelmente inferior ao bem lesado.
4) Quanto ao elemento subjetivo, entende-se que apenas se exclui a culpa do
agente, quando este pratica o facto com finalidade de salvação do bem jurídico
ameaçado. Não são exigidos motivos nobres por parte do agente, basta que a
finalidade última seja a salvação do bem jurídico em perigo e que a ação seja
praticada com essa finalidade (de preservação de bens jurídicos ameaçados).

Podemos dizer, em questão diversa, que existe uma possibilidade de atenuação especial
ou dispensa de pena nos termos do art. 35º nº2 CP quanto a “interesses jurídicos diferentes
dos referidos no número anterior” e quando os pressupostos mencionados anteriormente
estejam verificados. Existe um alargamento da figura do Estado de Necessidade
Desculpante para quaisquer interesses jurídicos diferentes da vida, integridade física,
honra ou liberdade. Estaremos perante uma causa geral de desculpa? Não. É um problema
de “carência de pena” – existe antes uma diminuição ou exclusão de pena de acordo com
o princípio da necessidade da pena (desculpem a redundância), será essa a ratio do
preceito.

Nos casos de aceitação errónea de uma situação de Estado de Necessidade Desculpante,


o art.16º/ 2, última parte só permite a punibilidade a título de negligência uma vez que
exclui o dolo. É de difícil verificação prática surtirem erros sobre a inimputabilidade ou
sobre excesso não culposo. Não tem que ver com erros de factualidade típica (nº1 do
mesmo art.) nem com falta de consciência do ilícito (art.17º). JFD explica (não aderindo)
que nos casos de erros sobre um estado de necessidade desculpante, o agente não só atua

53
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
com dolo do tipo como ainda com consciência do ilícito – concluindo que o erro é
irrelevante – chamando-lhe de tese da inexigibilidade. Opõe-se outra, a da analogia –
reporta-se não a um pensamento de inexigibilidade mas a da espécie do erro em causa
que carece de analogia para se lançar mão para tratamento do erro sobre os pressupostos
de um obstáculo à ilicitude. Na segunda tese a exclusão do dolo equipara-se à da exclusão
da culpa quando há erro sobre os pressupostos. A lei toma claro partido e adere à da
analogia e contra a tese da inexigibilidade, o Prof. JFD adere a esta mesma tese desde que
seja com o sentido de: o de que são fundamentalmente exatas a forma como a tese da
inexigibilidade põe o problema e a forma como a analogia o soluciona – se, apesar do
erro em que o agente incorreu, lhe era exigível outro comportamento, então o erro é
irrelevante e a punição deve ocorrer a título de dolo. Conclui-se que é possível a ausência
de culpa se o erro não for censurável. Se for censurável, deve-se procurar saber que tipo
de erro está em causa e qual a sua influência na culpa do facto.

b) O excesso de Legítima Defesa Desculpante do art.33º

Simplesmente pode-se dizer que ocorre quando o agente se serve de um meio mais lesivo
para o agressor do que aquele que era necessário. Aqui ultrapassa-se a medida de
necessidade do meio (excesso de meio de legítima defesa). O fundamento encontra-se no
estado de afeto/passional (passion dj8) que reconduz a uma ação (defesa) excessiva – não
havendo então causa de exclusão de ilicitude, não há legítima defesa (haver há, em sentido
conceptual da palavra mas sendo excessiva, configura uma figura diferente) e a ação é
considerada ilícita. Este estado de afeto desvia as motivações do agente para agir de
acordo com o Direito – fora das suas intenções normais, daí existir uma atenuação
especial da pena (arts.33º, 72º e 73º). Taipa de Carvalho refere que esta atenuação é
obrigatória mas JFD refere ser facultativa, Taipa de Carvalho fundamenta com o
princípio vitimológico, por ser uma defesa de quem é agredido. No lado contrário,
defende-se que é absolutamente injustificado o risco de produção de danos mais gravosos
do que os necessários para o agressor e é feita uma analogia para as causas de justificação
no excesso do meio. Estamos de acordo com esta ultima posição.

O estado de afecto deve ser asténico, casos de perturbação, medo ou susto não censuráveis
– este critério é legal, pessoal e objetivo. Por isso não se admite os casos de afeto esténico
como a raiva, a vingança, ódio ou cólera. Apenas os primeiros servem de fundamento
para impedimento do cumprimento e consequentemente para desculpa. Mas o afeto
asténico causa pressão psíquica ou espiritual da mesma forma que o esténico, no caso de
concurso de ambos, apenas se exclui a culpa se o primeiro for dominante e o segundo for
secundário – o JFD refere no entanto que no concurso não é uma questão de culpa mas
antes de medida da pena.

Refere-se ainda que o estado de afeto asténico tem de ser ele próprio não censurável –
como no caso de estado de necessidade desculpante – não deve ultrapassar a medida de
intensidade que a ordem jurídica espera que seja suportável por todo o homem fiel ao
direito. Chama-mos a este critério o da inexigibilidade. Não pode uma sra defender-se

54
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
com um bastão na cabeça de um homem que seja galanteador inoportuno por esta ter
tendência a achar que são todos uns tarados sexuais perigosos – esse medo não conduz à
desculpa.

A questão do excesso extensivo ou intensivo não carece de muita atenção, no entanto,


para exclusão da culpa, a questão coloca-se a nível da atualidade da agressão. Concorda-
se com Taipa de Carvalho (e JFD), resolvendo-se que deve restringir-se ao momento atual
e não posterior, pois caso contrário estaríamos perante um ilícito típico doloso ou erro
sobre a legítima defesa.

Quanto a se é consciente ou inconsciente, os preceitos legais não distinguem uma e outra


espécie de excesso. Conclui o Prof. JFD que tanto o excesso consciente e inconsciente,
desde que seja asténico e não censurável (ele próprio), pode conduzir à desculpa.

6.2. Falta de consciência de ilicitude


Por vezes, há sim uma falta de consciência intelectual/ética do erro que leva o agente a
não ter um conhecimento correto da factualidade. Não estando num conhecimento
correcto da factualidade então aplicar-se-ão as regras da negligência - artigo 16º, nº1 in
fine. Aqui a situação é outra, o agente conhece a factualidade, o seu desconhecimento
existe face a uma determina valoração da possível conduta por parte do agente (art.17º).

Existindo uma falta de conhecimento das regras de Direito, pode dar-se um erro de
valoração por parte do agente, o que, em algumas situações, impede o agente de ter uma
atitude censurável. A vida em sociedade é dominada por uma altíssima discutibilidade e
reconhecimento de vários pontos de vista axiológicos, o que impossibilita que todos os
agentes possuam a “correcta” valoração das suas condutas.

Podem haver erros de ilicitude não censuráveis que levem à exclusão da culpa, iremos
analisar o critério de censurabilidade (art.17º).

6.2.1. Critérios de censurabilidade do erro


6.2.1.1. O critério da inevitabilidade ou invencibilidade do erro
Deste critério resultam duas distinções que não devem ser acolhidas:

i) Capacidade de conhecer o ilícito ou incapacidade e daqui vem a


inevitabilidade ou invencibilidade do erro: JFD faz duras criticas a este
critério e suas vias, afirmando que não nada mais do que “um poder agir de
outra maneira” completamente insustentável e inexequível.
ii) Poder de pôr em tensão a consciência ética: Esta só serve para os ilícitos que
tem base na ordem moral, mas para todos os outros não, o que orça o agente a
uma falha intelectual que resulta da falta de esforço do agente em conhecer da

55
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
ilicitude da sua conduta. Aquilo que acaba de ser dito demonstra a
incompatibilidade entre os dois critérios pois tendo como objectivo excluir a
censurabilidade e por consequência a culpa acaba por levar novamente a
censura da conduta do agente, este critério de “exclusão” da culpa torna-se o
critério que atribui a censurabilidade. JFD fala mesmo no critério de
censurabilidade do erro.

Os dois critérios acabam por não ser compatíveis, o da invencibilidade do erro amplia e
o da tensão ética restringe a uma análise moral e emocional.

Uma outra crítica é feita quanto a concepção de culpa, o critério da tensão ética transforma
o poder conhecer o ilícito num dever de conhecer o ilícito. o Direito num dever de agir
em conformidade com o Direito. Este critério não busca o erro mas sim infirmar o
incumprimento do dever de conhecimento da norma jurídica que violou – há uma
agressão óbvia ao princípio de debere ad posse non valet consequentia.

Este critério – tensão ética – tem como pressuposto a existência de uma consciência aberta
ao ordenamento jurídico e que pode levar o agente a conhecer que o carácter do facto é
ilícito, o que leva à criação de uma lacuna nos casos em que existe uma anomia jurídica
causada pelo hábito de viver fora dos parâmetros normais do ordenamento. Como
exemplo os agentes que são habituais delinquentes92, que desenvolvem valores contrários
ao Direito. Nestes casos, e seguindo o critério da tensão ética, aqui também teria de negar
a culpa para manter a coerência o que teria resultados devastadores para a política
jurídico-penal.

Igualmente insuportável para o ordenamento penal seria o critério da falta de informação


e de esclarecimento baseado na falta de cognoscibilidade, só seria provocado por um
estado de excitação ou qualquer outra emoção que não permitia ao agente ter noção da
ilicitude do facto. Mas sendo o conhecimento desse estado de excitação um facto
psicológico seria impossível saber da veracidade deste estado. Conclui-se que o critério
da inevitabilidade ou invencibilidade do erro não é defensável.

6.2.1.2. A “rectitude” da consciência errónea como critério da não


censurabilidade da falta de consciência do ilícito
Não falamos aqui de casos em que uma característica da personalidade acaba por afastar
a censurabilidade do facto afastando a culpa93. O que falamos aqui é em casos em que
apesar de haver ilícito o agente é movido por uma fidelidade que é reconhecida
juridicamente tem que haver uma conexão entre a conduta do agente e uma protecção do

92
Assaltantes profissionais, como os gangs onde o tráfico e roubo atingem níveis de profissionalismo.
93
Como no caso de um pedófilo que tem uma tendência para violar viu-se obnubilado na sua consciência
sobre a ilicitude do abuso sexual de um menor de 14 anos art.º 172º.

56
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
ordenamento ao facto mesmo sendo ilícito tem que haver um reconhecimento pelo
Direito, tem que ser valorado juridicamente.

Para entendermos o conceito de consciência recta temos que recorrer a conceitos da


teologia moral católica: os conceitos de conscientia vera (em conformidade com a
verdade); e a conscientia recta que não está em conformidade objetiva mas não é
censurável (uma conscientia erronea). Suarez e Duns Escoto tratam este tipo de
consciência não como uma falta de capacidade para conhecer o mal mas é uma
conscientia erronea inculpabilis. Aqui tal como na consciente vera há um amor pela
verdade e uma demanda pela perfeição moral, porém não conduzida para a verdade
objectiva, mas não deixa de ser uma consciência válida e guiada com critérios objectivo.

Baptista Machado estabelece que no panorama existencial do homem, este para se incluir
na humanidade histórica – que o autor se refere – tem que ter uma disponibilidade total e
participar dessa humanidade – através dos seus valores. Ora bem mesmo tendo uma
abertura aos valores da humanidade e uma atitude de querer integrar essa humanidade
histórica nem sempre esse caminho é correto, pode haver violações de deveres
primordiais o que não transforma a consciência ética do agente não deixa de ser recta mas
é errónea.

6.2.1.2.1. Requisitos da consciência recta


O primeiro requisito de uma consciência recta é a presença do agente numa situação em
que a ilicitude concreta é extremamente controvertida e discutível, onde conflituam
vários pontos de vista jurídicos todos eles relevantes. Mesmo que o agente escolha um
dos pontos de vista não deixa de ser relevante para o Direito e até fiel para com este.

O segundo requisito é o propósito do agente de recorrer a um desses pontos de vista, de


preferência de forma consciente, se prejuízo de bastar um desejo ou esforço continuado
de lealdade ao Direito. Mas é engraçado ver que existe sempre culpa nestas situações, a
culpa na condução da sua vida ou na preparação da sua personalidade. Esta busca de se
manter recto não se fica somente pelo momento estrito do facto praticado mas em toda a
sua vida.

Poderíamos concluir que só existiria a falta de consciência do ilícito não censurável nas
hipóteses de fronteira de uma clausula de exclusão de ilicitude, mas tal ideia e de rejeitar
pois não podemos esquecer quando a criação de um tipo incriminador já é por si só
envolta em conflitos de opiniões juridicamente relevantes, nestas situações o legislador
escolhe o ponto de vista, nestes casos também pode surgir falta de consciência do ilícito
não censurável94.

94
Exemplo: artigo 157º há um conflito de princípios, nesta situação de intervenções médico-cirúrgicas
sem consentimento do paciente, estão em conflito a liberdade pessoal e a defesa da vida.

57
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Uma advertência quanto há ideia de o agente ter o propósito de agir em conformidade
com o ponto de vista juridicamente relevante mesmo sabendo que este é ilícito, em muitos
ordenamentos isto é defendido mas não só isto é irrelevante como o que é necessário
entendermos que a falta de consciência tanto pode ser uma aceitação da ilicitude com uma
falta de percepção desta. Pode definir-se este critério como de não-censurabilidade
pessoal-objectivo.

6.2.1.3. A questão da atenuação da culpa


A falta de consciência da ilicitude censurável é uma causa de diminuição da culpa, a que
o juiz tem que atender, sobre pena de aplicar penas demasiado severas. Mas importa saber
qual a fundamentação para essa atenuação da culpa permitida no artigo 17º nº2.

6.2.1.3.1. A tese da atenuação especial obrigatória


Esta teoria defende que sendo menos grave o facto cometido sem consciência do que o
que foi cometido com consciência não existe uma possibilidade mas sim uma obrigação
de atenuação da pena, com base no art.72º nº1 in fine “quando por forma acentuada a
ilicitude do facto, a culpa do agente …”com ressalva das situações e hostilidade ao
Direito. No entanto Figueiredo Dias faz uma crítica a esta teoria: não leva a sério a falta
de cognoscibilidade do ilícito que é igual à falta que cria a culpa mesmo nos casos de
hostilidade ao Direito. Assim mesmo dando uma grande segurança jurídica ao tribunal
não é bastante.

6.5.2.2. Atese da atenuação especial facultativa


Esta tese defende que deve haver uma faculdade de atenuação e não uma obrigação com
base na insuficiência de critérios de diferenciação entre os ilícitos cometidos com falta de
consciência e os com consciência da ilicitude, tal como dissemos atrás a deficiência que
provoca o ilícito e a mesma que provoca a falta de consciência daquele daí ser de rejeitar
a obrigatoriedade, e abraçar uma visão que privilegie o caso concreto onde é possível
observar o que diferencia os dois tipos de erro (erro de consciência da ilicitude e o erro
material de prática do ilícito). Mesmo nos casos de hostilidade ao Direito, Warda diz não
ser legítimo que seja feita à priori uma exclusão da atenuação da pena. Conclui-se que a
atenuação tem de ser sempre feita à posteriori – segundo um juízo ex post – caso a caso
o que nos leva a admitir uma atenuação extraordinária facultativa da pena segundo o
artigo 17º nº2.

7. Comparticipação

58
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Em sede de comparticipação iremos estudar a responsabilidade pela realização de factos
típicos e ilícitos quando haja uma pluralidade de agentes (ou comparticipantes), sendo
estes autores ou não.

A comparticipação apenas se determina em função do ex ante facto ou no momento da


sua prática. Tudo o que se passa ex post facto não releva para comparticipação. Deste
modo, o encobridor não entra nas contas da comparticipação e pratica crimes autónomos
(art.231º e 367º).

Existem três figuras de comparticipação, a autoria, a cumplicidade, e a instigação. Os


autores são a “figura central do acontecimento criminoso” são eles que praticam o facto
típico. Os cúmplices são figuras secundárias/laterais na integral realização típica, não
realizam o tipo de ilícito, mas participam de um tipo de ilícito realizado por outrem (como
auxiliares). O instigador é quem determina dolosamente outrem à prática de um facto. O
nosso código penal define estes conceitos nos arts.26º e 27º.

Teoria forma-objectiva: “autor é todo aquele que executa, total ou parcialmente, a conduta
que realiza o tipo (de ilícito”. É uma doutrina que institui um excelente ponto de partida
no sentido em que aponta para uma ligação indissolúvel entre a figura do autor e a
realização do ilícito típico. Todavia, não é suficientemente explícita e clara, acabando por
pecar no seu conteúdo.

Teoria material-objectiva (causalidade): é a chamada teoria unitária da autoria porque


visa colocar, de modo igual, todos os comparticipantes no mesmo facto ilícito típico e
trata-los como autores. É autor todo o indivíduo que executa o facto oferecendo uma
contribuição causal para a realização típica, independentemente do seu relevo. Esta teoria
consagrava do projecto de Eduardo Correia, mas foi rejeitada pelo legislador nos
arts.26º e 27º95. Neste âmbito Farinacius dizia que o autor seria o sujeito em que o facto
não teria sido cometido sem a sua actuação; seria mero participante se o facto ainda
tivesse sido cometido sem a sua actuação, embora o tivesse então por modo, tempo, lugar
diferentes. O problema desta tese é que deixa tudo ao acaso, porque é aí que a causalidade
“necessária”96 se encontra. Se 2 pessoas subtraem conjuntamente uma coisa, obviamente
que seria possível uma delas subtrair a coisa sozinha. A definição de autoria está
relacionada com a realização do tipo. É autor quem executa directa ou indirectamente o
facto (art.26º), não apenas “quem o causa”. Para haver ilícito, este tem que ser pessoal, o
“crime” tem que ser obra pessoal do agente.

Teorias subjectivas: esta doutrina focou-se no lado subjectivo do crime, dizendo que a
autoria residiria em realidades internas ou psíquicas, sejam elas a vontade, a intenção, os
motivos, os sentimentos ou as atitudes interiores do agente. É autor quem realiza o facto
com vontade autor (animus auctoris), é mero participante quem colabora no facto de
outrem com vontade de partícipe (animus socii). Está errado, o agente não passa a ser

95
Por exemplo, a cumplicidade contribui para a causalidade do facto, e o legislador não qualificou o
cúmplice como autor.
96
Facto “sem o qual não”.

59
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
autor apenas por o sentir, ele tem que praticar actos no mundo factual. Esta teoria evoluiu
posteriormente para considerações de culpa, ou seja, o agente era autor se, relativamente
a outro agente, fosse mais censurável. O que levou a maus resultados, o agente podia ser
considerado autor não porque tivesse realizado o facto, mas porque, não o tendo
executado mas só nele colaborado, a sua posição aparecia mais censurável do que a do
verdadeiro autor97.

Teoria do domínio do facto: é autor quem domina o facto, quem toma a execução “nas
suas próprias mãos” de tal modo que dele depende decisivamente o se e o como da
realização típica98. O autor é a figura central do acontecimento, o facto típico é obra de
uma vontade que dirige o acontecimento (elemento subjectivo), noutra vertente como
fruto de uma contribuição para o acontecimento dotada de um determinado peso e
significado objectivo. O senhor do facto domina execução típico, cabendo a ele a
iniciativa, interrupção, continuação, consumação e realização. No art.26º vêm referidas 3
formas de autoria, a imediata, mediata e co-autoria. O agente é autor imediato porque é
ele próprio quem procede à realização típico. O agente é autor mediato porque, embora
não tenha intervindo fisicamente na realização típica, domina o executante através de
coacção ou erro. Por fim, o agente é co-autor porque pode ainda dominar o facto através
de uma divisão de tarefas com os outros agentes, desde que, durante a execução, possua
uma função relevante para a realização típica. O domínio do facto constitui uma valoração
que exprime uma síntese de elementos psicológicos e normativos

Contudo, o critério do domínio do facto apenas funciona para determinar a autoria dos
crimes dolosos de acção. No crime negligente não há um “controlo do acontecimento pela
vontade do agente” e nos crimes de omissão o agente não execute nem dirige a execução
da acção esperada. Nestes casos, não é necessário ter o domínio do facto, basta a violação
do dever que cabe ao agente99. Existem ainda outras 3 situações especiais:

a) O tipo de ilícito exige, para além do dolo do tipo, elementos subjectivos especiais:
nomeadamente uma certa intenção, determinados motivos ou certas
características de atitude interna. Neste caso, será autor quem, detendo o domínio
do facto, realize a acção com os elementos subjrctivos especiais tipicamente
requeridos pelo ilícito respectivo.
b) Crimes específicos: em que o autor sobre o autor recai uma qualidade ou uma
relação (e consequentemente dever) especiais. Nestes casos, ao domínio do facto
acresce a violação do dever típico especial por quem dele é titular.

97
No caso Stanchynsky um agente secreto da URSS matou em Munique, por ordem da polícia secreta
soviética, dois refugiados opositores do regime comunista. O tribunal condenou o agente como mero
cúmplice do homicídio, porque a posição juridicamente mais censurável pertencia aquém lhe havia dado a
ordem, enquanto o executor não teria tido nem nenhuma vontade independente, nem um interesse próprio
na realização do facto. Este caso representa a aderência à teoria subjectiva.
98
Domínio positivo do facto: capacidade o fazer prosseguir até à consumação; domínio negativo
(capacidade de o fazer fracassar, frustrar).
99
Dever de cuidado (no caso de negligência) ou dever previsto pelo crime de omissão (omissão pura), ou
dever de garante (omissão impura).

60
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
c) Crimes de mão própria: estes só existirão onde tenha sido intenção da lei construir
o tipo de ilícito por forma tal que autor só possa ser aquele que realiza, ele
próprio, a acção (com o seu corpo) e em que, por conseguinte, o facto só possa
ser cometido em autoria imediata.

7.1. Formas de autoria


7.1.1. Autoria imediata
É autor imediato “quem executar o facto, por si mesmo” (art.26º/1º parte). Este autor tem
que executar o facto com as suas próprias mãos, em termos de preencher na sua pessoa a
totalidade dos elementos objectivos e subjectivos do ilícito típico. Por isso, o autor
imediato tem o domínio da acção.

7.1.2. Autoria mediata


É autor mediato “quem executar o facto (…) por intermédio de outrem” (art.26º/2º parte).
Efectivamente existe um “homem-de-trás” (aquele cuja autoria se pergunta) e um
“homem-da-frente”, o executor, intermediário ou instrumento (que não pode ser
plenamente responsável). Para que haja autoria mediata, todo o acontecimento tem que
ser obra do “homem-de-trás” e da sua vontade responsável, de modo a que todos os
pressupostos de punibilidade corram por esse agente e não pelo “instrumento”.

Com efeito, o homem-de-trás tem possui o domínio da vontade sobre o homem da frente.
Existem assim duas primeiras situações paradigmáticas e uma terceira mais duvidosa:

i. Domínio da vontade por coacção: O homem-de-trás coage o homem-da-frente à


prática da acção100.
ii. Domínio da vontade por erro: o homem-de-trás engana o homem-da-frente
levando a que ele se torne em executor involuntário do seu plano delituoso.
iii. Domínio da vontade nos quadros de aparelhos organizados de poder (Roxin): em
sede de uma organização rígida e disciplinar, alguns autores entendem que, por
vezes, os agentes que recebem ordens acabam por se tornar meros instrumentos.

7.1.2.1. O instrumento (homem-da-frente) actua atipicamente


Cabem aqui as situações em que o instrumento não preenche os elementos do tipo.
Existem várias situações a considerar a autoria mediata:

100
A aponta arma à cabeça de B dizendo que, se este não disparar sobre C, A irá matá-lo.

61
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Por não praticar uma acção: o instrumento não chega a levar a cabo uma acção em sentido
jurídico-penal, mas é utilizado por outrem como puro corpo ou forma de acção (até como
“projéctil”)101. Aqui o homem-de-trás não é autor mediato, mas sim imediato.

Por intervir quanto a ele uma causa de exclusão da tipicidade: em certas situações em que
o instrumento pratica uma acção que só seria um ilícito típico se praticada pelo homem-
de-trás. A acção do instrumento surge assim como atípica, mas o homem-de-trás
continuará a ser autor mediato.

Por ser a própria vítima: quando o instrumento é a própria vítima, não está a preencher o
elemento do tipo. Nomeadamente, a lei refere que pratica agressão à integridade física
quem provoque a lesão a “outra pessoa”, ou no crime de dano, provocar danificação a
coisa alheia. O homem-de-trás será considerado autor mediato sempre que a vítima aja
não detendo o domínio do facto, mas por força de coacção ou erro provocados/explorados
pelo homem-de-trás102. Diferentemente, quando a vítima detiver o domínio do facto, mas
a lesão tiver sido causa da “determinação” que o homem-de-trás causou ao homem da
frente, falar-se-á de instigação e não de autoria mediata. Ficam de foras as situações em
que o homem-de-trás incite ou auxilie o suicídio do homem da frente porque constituem
crime autónomo103.

Por actuar sem dolo do tipo: o instrumento pratica uma acção que preenche o tipo
objectivo de ilícito, mas não o tipo subjectivo por lhe faltar o dolo, nomeadamente por
força de um erro sobre a factualidade típica dolosamente causado ou explorado pelo
homem-de-trás104. O homem-de-trás é autor mediato na medida do seu domínio do erro
do homem-da-frente. A mesma solução aplica-se quando o instrumento actua sobre
negligência inconsciente. Por outro lado, JFD admite a mesma solução na negligência
inconsciente. Imagine-se que A dispara contra rapariga, sem se conformar com a
possibilidade de a atingir, mas ferindo-a na realidade, enquanto B, que com ele apostou,
quer que a lesão se produza ou pelo menos conformou-se com essa possibilidade.
Segundo JFD, aquele que se serve da inconsideração de outrem para a realização de um
facto também o orienta e domina, tanto mais quando o executor não é ainda responsável
a título de dolo. Não concordamos, vigora o princípio da auto-responsabilidade, apenas
se podendo discutir a instigação ou cumplicidade.

Para haver autoria mediata não se exige que o homem-de-trás provoque o erro do
executor, mas simplesmente que o explore ou se sirva dele para cometimento do facto105.

101
A ergue B e o atira contra C para ofender a integridade física deste, ou se serve, para o mesmo efeito, de
actos puramente reflexos de B.
102
A convence B de que desligou a corrente eléctrica e este pode por isso proceder a uma reparação, A é
autor da morte por electrocussão ou da lesão corporal de B (e até se discute se A não é autor imediato).
103
Ainda nestes casos JFD considera que o homem-de-trás continuará a ser autor mediato se detiver o
domínio do facto da morte do homem-da-frente.
104
A serve-se de B para entregar a C um pacote que diz conter umas compotas quando, na verdade,
contém explosivos que determinam ferimentos ou a morte C.
105
A, apercebendo-se de que B gostaria de atirar sobre aquilo que julga ser uma peça de caça mas é
realmente o camponês C, não o adverte do engano e lhe passa para a mão a sua caçadeira, com a qual B
atira matando C; D substitui às escondidas um medicamente por um veneno letal, que a enfermeira E, não
suspeitando da troca, dá a beber à doente F, de quem D tem pressa em herdar.

62
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
A autoria mediata existe porque, estando o autor em erro, o autor mediato tem o domínio
do facto.

7.1.2.2. O instrumento actua licitamente


Trata-se dos casos em que o intermediário instrumentalizado preenche, com a sua acção,
o tipo incriminador, mas, no entanto, actua licitamente (justificadamente). Os casos em
que isto efectivamente se verifica são raros. Acontece se o juiz, por se querer vingar de
C, ordena o polícia B à detenção de C, embora não estando presentes os pressupostos de
legalidade da detenção. A questão reside em saber, não obstante a actuação aparentemente
lícita do instrumento, se o homem-de-trás não pode ser considerado como autor mediato
face ao engano que produziu no instrumento. Se o homem-de-trás tem o domínio da
vontade do executar, é de facto autor mediato.

Do mesmo modo, se o homem-de-trás provocou uma situação de legítima defesa ou de


estado de necessidade justificante e por isso o homem-da-frente -ameaçado ou enganado
sobre a verdadeira situação e actuando assim como instrumento- pratica o facto
“justificado”. A autoria mediata do homem-de-trás deve ser aceite sempre que ele detenha
o domínio do facto perante o instrumento e perante o atingido. A solução igual aquela
que vimos em que quem cria dolosamente uma situação de coacção que só pode ser
eliminada através da lesão de um dos bens jurídicos naquela co-envolvidos, deve ser
responsabilizado jurídico-penalmente por uma realização típica e ilícita, a ilicitude não
vem a ser excluída.

Contudo, quem pensa agir em legítima defesa ou estado de necessidade justificante, não
age licitamente, mas apenas sem dolo (art.16º/2). Não havendo dolo, não há plena
responsabilidade do instrumento e há autoria mediata.

7.1.2.3. O instrumento actua sem culpa


Se o homem-de-trás explorar situações em que o instrumento pratica um ilícito
tipicamente doloso mas não pode, relativamente a ele, ser afirmada a sua culpa dolosa, a
solução deve ser a de conferir autoria mediata ao homem-de-trás. Sempre que o homem-
de-trás tem o domínio do facto (ou domínio da vontade) por coacção ou engano do
instrumento, é autor mediato. Nos restantes casos em que o executor seja plenamente
responsável, o que pode é existir instigação ou, eventualmente cumplicidade.

Falta de imputabilidade: nestas situações estão quebradas as conexões objectivas entre o


agente e o facto. Ainda que o homem-da-frente tenha o dolo do tipo, não tem o domínio
do facto. Quanto aos casos em que a imputabilidade é diminuída/duvidosa/parcial, deve
analisar-se caso a caso se há autoria mediata do homem-de-trás. Haverá autoria mediata
quando do homem-da-frente haja uma dependência psicológica perante o homem-de-trás
(art.20º/2 e 3).

63
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Actuação sem consciência do ilícito: quando o homem-da-frente agiu com falta de
consciência de ilícito não censurável, intencionalmente criada pelo homem-da-frente, há
uma falta do domínio do facto (do instrumento) em virtude o erro de valoração que este
tem, retirando-lhe a consciência de agir contra o direito. O homem-de-trás tem o domínio
do acontecimento e é então autor mediato. Por outro lado, se a falta de consciência for
censurável, ainda que o homem-da-frente tenha uma menor culpa, não deixa de ser
completamente responsável pelo facto cometido. Nestes casos nega-se a autoria mediata
e pode discutir-se a instigação.

Actuação em estado de necessidade desculpante: quem dolosamente lança outrem, por


coacção, engano ou expediente equiparável, numa situação previsto no art.35º/1 é autor
mediato do facto necessitado. Porém, quem depara com uma situação de necessidade já
constituída e determina o necessitado à prática do facto (seja com ameaças, ou apenas
fomenta com conselhos), mas sem transformar a situação existente em desfavor da vítima
do facto, não pode ser autor mediato, mas apenas, consoante o caso, instigador ou
cúmplice.

7.1.2.4. Ao instrumento falta a qualificação ou a intenção tipicamente


requeridas
Trata-se aqui do problema em que ao executor falta a qualificação 106 ou a especial
intenção107 tipicamente requeridas para fundamentação ou agravação da
responsabilidade. A solução para este problema é resolvida pela comunicabilidade ou
incomunicabilidade das circunstâncias (art.28º), abordaremos posteriormente a questão.

7.1.2.5. O instrumento actua de forma plenamente responsável


Na opinião de JFD a autoria mediata só ocorre quando o homem-da-frente realiza o tipo
de ilícito de forma (totalmente, dolosamente) não responsável. Se esta condição não se
verifica o homem-de-trás será instigador ou cúmplice. Não existe autor atrás de autor, é
o que decorre do princípio da auto-responsabilidade.

No entanto, alguma doutrina procura limitar o princípio da auto-responsabilidade e


estender a autoria mediata a certos casos em que o homem-da-frente é responsável.

Os casos ditos de erro sobre o sentido concreto da acção: o homem-da-frente conhece


todas as circunstâncias necessárias à efectivação da sua responsabilidade dolosa pelo
facto que executa mas, no entanto, erra sobre outras circunstâncias também juridicamente
relevantes (erro provocado pelo homem de trás). Por exemplo, o agente sabe que irá matar
alguém (preenchendo o tipo do homicídio), mas o homem-de-trás convence que o

106
Como a qualidade de funcionário para o efeito dos arts.375º ou 380º.
107
Como a de apropriação ou de enriquecimento em múltiplos crimes patrimoniais.

64
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
homem-da-frente que a vítima é um alguém que este odeia (error in persona, ou sobre a
identidade). Apesar das supostas lacunas de punibilidade, o homem da frente actua de
modo plenamente consciente, sabendo que preenche o tipo. A lei pune quem matar
qualquer pessoa, não pune consoante as identidades, o dolo do tipo está preenchido. Por
conseguinte, o homem-da-frente é plenamente responsável e o homem-de-trás poderá ser
instigador ou cúmplice. Em conclusão, há autoria mediata se o erro, provocado pelo
homem-de-trás, exclui o dolo do tipo e há instigação ou cumplicidade quando esse erro
não exclui o dolo do tipo.

Aparelhos organizados de poder e domínio da organização: a autoria mediata do homem-


de-trás funda-se, supostamente, no domínio que este tem da organização. Existem
organizações de poder estruturadas hierarquicamente de dotadas de forte disciplina
interna, que assumem um modo de funcionamento quase automático para os que a eles
pertencem, adquirindo estes a natureza de meros “instrumentos” que reagem de forma
mecânica às ordens dos seus chefes. Os executores do crime acabam por surgir como
fungíveis perante a organização. E assim há quem entenda que sobre os executores se
exerce um domínio de vontade. JFD discorda dizendo que a dependência psicológica do
agente, quando compatível com uma plena responsabilidade pena do agente, não funda a
autoria mediata. Também não poderá haver co-autoria porque o o homem-da-frente tem
consciência que pertencer à organização significa dispor-se a executar instruções daquele
tipo108. Prevalece então o princípio da auto-responsabilidade e o homem-de-trás só poderá
ser um instigador.

7.1.3. Co-autoria
É co-autor quem tomar parte directa na execução (conjunta) do facto, por acordo ou
conjuntamente com outro ou outros (art.26º). O co-autor não domina o facto por si mesmo
(isoladamente), nem por intermédio de outro, mas sim em conjunto com outro ou outros.
Há assim um domínio colectivo do facto109. Há um significado funcional da contribuição
do co-autor para a realização típica, a actuação de cada co-autor apresenta-se como
momento essencial da execução do plano comum, ou, constitui a realização da tarefa que
lhe cabe na “divisão de trabalho”.

7.1.3.1. Decisão conjunta


O elemento subjectivo na co-autoria reside na decisão conjunta, ou seja, o agente apenas
pratica uma parte mas decide pela realização integral da execução típica. No caso de um
roubo (art.210º/1) dum banco levado a cabo por A (que paralisa os clientes e empregados
com uma arma: a ameaça) e por B (que retira o dinheiro dos cofres: a subtracção). Tanto

108
À semelhança do que Conceição Valdágua refere “subordinação voluntária do executor à decisão do
homem-de-trás”.
109
JFD fala em condomínio do facto.

65
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
A como B respondem pela totalidade da realização típica porque ela é fruto de uma
decisão conjunta110.

Não pode basear-se no mero acordo dos comparticipantes (mas ele tem que existir)111.
Também porque entre autor e cúmplice há acordo, implicando que seja necessária uma
expressão externa desse acordo. Deste modo, a decisão tem que revelar-se através de
acções expressas ou pelo menos através de acções concludentes. A co-autoria tem que
surgir não como um mero favorecimento de facto alheio, mas como uma parte da
actividade total. Assim, havendo esta representação externa, o acordo pode ser implícito,
desde que o consigamos extrair das acções dos comparticipantes.

A responsabilidade do co-autor só se verifica na precisa medida em que a execução se


encontre coberta pela decisão conjunta. Se acções de singulares co-autores constituírem
excesso quando à decisão comum, sejam elas praticadas por dolo ou por negligência, só
podem ser imputadas aos seus autores singulares112. O excesso só será imputado aos
restantes co-autores quando a estes seja possível imputar o dolo113.

O referido acordo entre comparticipantes verifica-se antes do início da execução do facto,


ou, durante a execução, mas nunca depois da consumação. Quando haja acordo após a
consumação, a jurisprudência alemã designa-o como co-autor “sucessivo” e qualifica-o
como responsável pela parte do facto já cometida pelos outros comparticipantes e dele
conhecida. Contrariamente, JFD considera que esta figura aproxima-se do dolus
subsequens, que é inaceitável. Ao co-autor só pode ser imputado o ilícito cometido depois
da sua adesão ao acordo.

7.1.3.2. Execução conjunta do facto


Participação directa na execução: vigora a lógica da repartição de tarefas que assinala a
cada comparticipante contributos para o facto, podendo essa tarefa situar-se fora do tipo
legal de crime, tornam a execução do facto dependente daquela mesma repartição114.

A referida repartição tem de persistir no estádio da execução, ou seja, em momento


situado entre o do início da tentativa e o da consumação do facto. Diferentemente, não é
necessária a ocorrência simultânea dos contributos, nem que os co-autores se encontrem
todos no mesmo local em que vai dar-se a execução matéria. Os contributos realizados na

110
Exige-se uma conexão mútua entre as partes da execução do facto a carga de cada um dos co-autores
que, numa consideração objectiva que implica que, nos ombros de um, esteja o destino dos outros
(reciprocamente).
111
Não é co-autoria a situação em que as pessoas actuam em direcção ao mesmo fim sem saberem umas
das outras.
112
A e B decidem conjuntamente matar C, mas B depois rouba a vítima, só o homicídio, não também o
roubo, é cometido em co-autoria, mesmo que após a apropriação também A se manifeste de acordo com
ela.
113
E ainda assim fica ressalvada a responsabilização por negligência.
114
“A” pratica coacção sobre os presentes no banco, B subtrai o dinheiro, C fica a vigiar se a polícia aparece,
D fica ao volante para permitir a fuga. Só A e B praticaram factos do tipo de roubo (art.210º/1), mas como
a tarefa de C e D é essencial à realização ou sucesso da verificação do facto típico, são também co-autores.

66
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
fase preparatória ou que respeitam ao planeamento e organização, não estão, em princípio,
abrangidos pela co-autoria. Estarão abrangidos (segundo Roxin), porém, se quem
planeou a operação, também a dirige.

Características da contribuição para o facto: que peso, relevo, importância e significado


deve ter o contributo do agente para ser considerado como co-autor? De acordo com o
critério central do domínio do facto, é indispensável que do contributo objectivo dependa
o se e o como da realização típica e não apenas que o agente se limite a oferecer ou pôr a
disposição os meios da realização. Este juízo é feito ex ante e não ex post115. Surgem
ainda dois tipos de co-autoria que se revelam com especifidades:

• Co-autoria aditiva (Herzberg): quando os agentes são demasiados e não é precisa


essa quantidade para a realização típica. Se 20 atiradores que disparam
simultaneamente sobre a vítima para mais seguramente a matarem, não se sabendo
quem os atingiu, poderia negar-se a co-autoria de muitos dos atiradores pela
contribuição “insignificante”. Porém, Roxin sustenta que há domínio funcional
dos 20 atiradores pelo seu igual peso da contribuição analisado ex ante.
• Co-autoria alternativa (Rudolphi): A e B tomam a decisão conjunta de matar C a
tiro e, sabendo que ele passa a uma hora certa ou pela rua “x” ou rua “y”, se se
situarem em ambas. C passa na rua “x” e é A quem o mata. Para Rudolphi B seria
apenas cúmplice. Para JFD tanto A como B praticaram actos de execução do
homicídio e podem ser considerados co-autores.

7.1.3.3. Punição da co-autoria


Cada co-autor é punido na moldura penal prevista para o facto decidido e executado
conjuntamente, tal como se o houvesse cometido sozinho (art.26º). Porém, na
determinação da pena cabida ao co-autor intervêm circunstâncias que individualizem a
punição face aos outros co-autores, tal será o caso do excesso que referimos
anteriormente.

7.1.4. Autoria paralela


Fala-se de autoria paralela quando vários participantes no facto, independentemente uns
dos outros (não sendo, assim, co-autores), actuam em vista da mesma realização típica ou

115
Porque todo o empreendimento ou resulta ou falha, mas isso não implica que não seja essencial à
realização típica.

67
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
produzem, com a sua actuação, o mesmo resultado116. Esta figura nem sequer assume
forma de autónoma de autoria, e como tal, não assume especificidades.

7.1.5. Início da tentativa


O facto cometido em autoria mediata ou em co-autoria pode não atingir a consumação e
ficar-se pelo estádio da tentativa. Existe uma grande discussão acerca da fronteira enttr
preparação e tentativa. Neste capítulo procura-se saber quando começa a tentativa na
autoria mediata e na co-autoria.

7.1.5.1. Autoria mediata


Tendo em conta que existe um autor mediato e um instrumento, a discute-se inicia-se com
a actuação do autor mediato. Surgem:

• Solução puramente individual: a tentativa começa logo com o início da conduta


externa de influência sobre o instrumento.
• Solução individual modificada: a tentativa inicia-se com o final da actuação do
autor mediato sobre o instrumento, ou seja, com a “saída de cena do autor
mediato”.
• Solução conjunta: a tentativa considera-se iniciada com a intervenção do
instrumento, e por conseguinte, quando este inicia a execução117.

A solução conjunta tem bons argumentos. Uma vez que o autor mediato se serve de um
instrumento humano, compreende-se o paralelo com a instigação. Por outro lado, segundo
Frank “o autor mediato executa através do intermediário e, por conseguinte, não antes
deste”.

A solução individual modificada também se serve do argumento, que o ao contrário do


que se sucede na instigação, o “instrumento” é sempre alguém não plenamente
responsável. Portanto a verdadeira “actuação” seria com o autor mediato. Para além disso,
existem casos em que a actuação do autor mediato possa compreender já a prática de actos
de execução, como no caso de o instrumento ser a própria vítima118. Segundo JFD quando
no fim da actuação do agente mediato, existir já uma conexão de risco típica para o
jurídico ameaçado deve aplicar-se a solução individual modificada. Nos restantes casos,
aplica-se a solução conjunta.

116
A e B, sem saberem um do outro e de forma independente, corrompem o funcionário C porque ambos
querem obter a mesma autorização.
117
Que é a solução da instigação.
118
No caso que demos da electrocussão em que A engana B dizendo que os aparelhos se encontram ligados
e B acaba por morrer electrocutado. A preparação da aparelhagem é um acto preparatório e a provocação
do erro por A é o acto de execução. Se A engana e B descobre, há tentativa.

68
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
7.1.5.2. Co-autoria
Pretende-se saber se a tentativa de todos começa quando um dos co-autores pratica o
primeiro acto de execução da decisão conjunta (solução global); ou se cada co-autor só
dever ser punido por tentativa quando a sua actuação individual alcançou o estádio de
execução (solução individual).

A doutrina alemã segue a solução global dizendo que a solução individual faz depender
a punibilidade do co-autor ao puro acaso119. Contrariamente, Conceição Valdágua não
vê por que razão não se pode tratar diferentemente co-autores que já deram início à
execução face aos que nada chegaram a executar. Para além disso não viola o princípio
da culpa o funcionamento do caso em favor do agente. Também não se pode afirmar que
a decisão conjunta só por si representa um início de execução. JFD segue a solução
individual porque cada co-autor precisa de desempenhar, exteriormente, a sua tarefa para
ser considerado como tal. A lei exige que cada um dos co-autores “tome parte directa na
execução” (art.26º).

7.2. Instigação
O instigador é aquele que dolosamente determina outra pessoa à prática de um facto ilícito
típico (doloso, art.26º). Ficam de fora as situações em que alguém ajuda outrem a sair da
sua dúvida, aconselha, ou apenas reforça suas as convicções. O instigador cria no executor
a decisão de atentar contra um certo bem jurídico-penal.

Segundo a escola de Coimbra, a instigação constitui uma forma de autoria, dada a


intensidade de domínio decisão que tem o instigador. Contudo, a fantástica espelunca
institucional classifica a instigação como mera forma de participação criminosa (ao lado
da cumplicidade). Temos teste na quarta por isso não me vou por aqui a explicar cenas.

Início da tentativa: do art.26º/ 4º parte retira-se que o início da tentativa da prática do


facto implica a prática de um acto de execução pelo instigado. Tal justifica-se porque,
como o homem-da-frente é plenamente responsável, só há perigo quando o instigado der
início à execução. Nesse caso vale a solução conjunta ou global.

Dolo na instigação: a determinação do instigador tem que ser dolosa (art.26º). JFD não
exclui a possibilidade de o dolo do instigador ser eventual. Para além disso, o instigador
tem que querer, não só instigar o executor, mas também que este pratique determinado
facto (é o chamado duplo dolo). O instigador tem que estar à espera que o instigado
pratique o acto que aquele quis. Como se exige o dolo, ficam de fora os excessos por

119
Por exemplo, se se verificar que um dos agentes actua primeiro que o outro, o que segundo sai
beneficiado porque não chega a ser punido.

69
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
negligência. Por outro lado, o dolo do instigador não tem que compreender a espécie e o
modo de execução, basta o preenchimento do tipo.

Também se discute se o dolo do instigador deve dirigir-se à consumação do facto pelo


instigado ou pode referir-se à sua mera tentativa. A lei não distingue, apenas exige que o
instigado tenha começado a execução (art.26º). Por isso, é possível a determinação de
outra pessoa a um facto tentado.

Instigação em cadeia: ocorre quando a determinação é resultado da actuação em cadeia


de vários instigadores. No caso concreto, apenas se pode conferir a qualidade de
instigadores aos que detêm o domínio da decisão, todos os restantes são cúmplices.

7.3. Cumplicidade
7.3.1. Cumplicidade e participação
A cumplicidade120 encontra-se prevista no art.27º “É punível como cúmplice quem,
dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outro
de um facto doloso”. Numa primeira ideia central, a cumplicidade constitui uma
colaboração no facto do autor, e por conseguinte, a sua punibilidade supõe a existência
de um facto principal (doloso) cometido pelo autor. O cúmplice, não é pois autor, visto
que este não comete por qualquer forma o delito nem pratica a acção típica. À
dependência da acção principal a doutrina chama de acessoriedade da participação. O
artigo 27º ao punir a cumplicidade, contem um alargamento da punibilidade a formas de
comportamento que sem ele não seriam puníveis121.

7.3.2. Fundamento de punição da cumplicidade


O fundamento da punição da cumplicidade reside no contributo que o comportamento do
cúmplice oferece para a realização pelo autor de um facto ilícito-típico. O que a actuação
do cúmplice directa e imediatamente viola não é a proibição do comportamento do autor,
mas a de prestar auxilio material ou moral àquele comportamento proibido (art.27º). A
cumplicidade é, nesta acepção, uma categoria acessória e dependente do facto do autor.122
O ilícito-típico do facto principal é pois, segundo o príncipio da participação no ilícito,
conditio sine qua non do ilícito da cumplicidade, devendo ainda fornecer a medida deste
ilícito.

120
Um sinónimo de cumplicidade é a “participação”, a qual resulta de uma extracção doutrinal, enquanto a
denominação “cumplicidade” resulta de uma extracção legal.
121
Pode é acontecer que a lei incrimine autonomamente a prática do cúmplice como no art.350º/1 quando
declara punível o funcionário que “por qualquer forma auxiliar” a evasão do preso.
122
Roxin – “O comportamento do cúmplice tem também de representar, em si mesmo, um ataque autónomo
a um bem jurídico”.

70
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
7.3.3. A acessoriedade da cumplicidade
A cumplicidade é acessória e dependente relativamente ao facto do autor, pelo que o seu
único requisito é o do princípio da participação no ilícito-típico do autor. Esta pode,
contudo, ter algumas exigências adicionais.

7.3.3.1. A acessoriedade dita qualitativa ou interna


Na acessoriedade trata-se antes de tudo de determinada medida mínima de elementos
constitutivos do facto do autor. De acordo com a tese da acessoriedade limitada123, para
que a cumplicidade seja punível é necessário que o facto principal seja típico, ilícito e
punível124. É impossível de afastar a exigência de que o facto do autor seja tipicamente
doloso ou negligente. Em nome do princípio da acessoriedade dita qualitativa ou interna
nada mais devera porventura ser exigido do facto do autor. Se este tem de ser doloso (e
tem segundo o art. 27º/1) ou pode ser negligente é uma questão que já não deve ser
decidida à luz do princípio da acessoriedade. Não devem, nem podem segundo a nossa
lei, entrar em consideração na questão em apreço as circunstâncias relativas à culpa do
autor, assim como o é relativamente aos restantes pressupostos da punibilidade.

7.3.3.2. A acessoriedade dita quantitativa ou externa


Por acessoriedade quantitativa ou externa costuma designar-se a exigência de que o facto
principal alcance um certo estádio de realização: se a cumplicidade é participação no facto
de outrem, no ilícito-típico de outrem, então aquela não pode existir de um ponto de vista
jurídico-penal e ser punível se o ilícito-típico não existir. Tal como no artigo 26º, 4ª
alternativa exige para a instigação, também no caso da cumplicidade (apesar do silencio
da lei) deve-se exigir “que haja execução ou começo de execução” da parte do autor.125
Não estando no entanto excluído que a cumplicidade possa verificar-se não só
relativamente à tentativa do facto principal, mas também aos seus actos preparatórios
nos casos excepcionais em que estes sejam puníveis126.

123
Existe também uma outra tese, a da acessoriedade rigorosa, na qual o fundamento de punição da
cumplicidade (na linha da teoria da participação na culpa) só estará presente se o facto do autor puder
considerar-se, para além de um facto ilícito-típico, também um facto culposo. Note-se que nesta altura a
culpa era composto pelo dolo e negligência.
124
Não procede por isso a doutrina da acessoriedade mínima na qual basta que o autor pratique um facto
típico, não obstante de depois a ilicitude ser excluída.
125
A razão da exigência é no entanto diversa. No caso da instigação, a exigência funda-se em particulares
razões político-criminais de segurança e certeza jurídicas e nada tem a ver com uma qualquer acessoriedade
da instigação, enquanto que na cumplicidade ela surge como pura decorrência (lógica e teleológica) da ideia
da participação no facto de outrem.
126
V.g. contrafacção de moeda (arts.271º/1 e 262).

71
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
7.3.4. O momento temporal da cumplicidade
Aqui trata-se de saber quando deve ter lugar o facto da cumplicidade para considerar-se
punível. O momento considerado é o da fase de preparação do facto principal. Será
durante esta fase que o cúmplice (na maior parte das vezes) prestará auxílio material ou
moral ao facto do autor. Por outro lado, a cumplicidade só pode contribuir para a
realização do facto pelo autor enquanto aquele não tiver sido ainda completamente
realizado, visto que uma cumplicidade ex post facto não existe. Prevê-se assim um
princípio segundo o qual a cumplicidade só é possível e punível até à consumação do
ilícito típico principal.127128

7.3.5. Dolo na cumplicidade


Apenas existe cumplicidade nos termos expressos pela parte final do art.27º/1, ou seja,
quando o cúmplice presta auxílio a um facto doloso. O dolo do cúmplice tem no entanto
de possuir uma dupla referência: prestação de auxílio (por um lado); e à própria acção
dolosa do autor (por outro lado). Relativamente à concretização deste dolo, não têm,
porém, de valer sem mais regras análogas às expostas a propósito da instigação.129

Relativamente à determinabilidade do dolo, não pode deixar de se exigir que o cúmplice


conheça a dimensão essencial do ilícito-típico a praticar pelo autor, sob pena de ineficácia.
A cumplicidade deverá no entanto ser admitida ainda quando o cúmplice desconheça, ou
não conheça exactamente as circunstâncias concretas em que vai desenvolver-se o ilícito
típico do autor130.

7.3.6. Espécies de cumplicidade


Tal como foi dito anteriormente, o artigo 27º/1 define o acto de cumplicidade como
“prestar auxílio material ou moral”, traduzindo-se assim em duas espécies diferentes,
ainda que submetidas a um regime jurídico-penal unitário que advém da exigência da
prestação pelo cúmplice de um contributo efectivo para o facto do autor. A prática do

127
É altamente discutido se esta consumação é sempre a consumação formal ou típica ou se pode ser a
consumação material, terminação ou conclusão do facto.
128
Segundo a jurisprudência alemã a cumplicidade é em princípio possível até ao término material do
facto/asseguramento do resultado. Roxin considera esta medida excessiva, devendo aplicar-se o princípio
de que a cumplicidade como tal não existe para além da consumação típica, visto que de um ponto de vista
político-criminal aquela solução pode conduzir a punições muito mais graves e injustificadas do cúmplice.
129
Isto deve-se ao facto de que aqui não se trata da imputação do facto ao autor mas a um mero colaborador
ou participante no facto do autor.
130
Ex: A entrega uma arma a B sabendo que este vai realizar um assalto com a mesma. A é punido como
cúmplice ainda que não possua informações mais pormenorizadas sobre a forma, o lugar ou mesmo o tempo
em que aquele assalto vai realizar-se.

72
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
facto do autor não tem de ficar na dependência do contributo do cúmplice, sendo que
basta que este favoreça aquele.131

Uma questão bastante discutida é a de saber se deve ainda considerar-se um contributo


como efectivo nos casos em que o auxilio se traduz numa prestação material que todavia
não vem a ser realizada pelo autor132. O critério aqui a aplicar será um critério paralelo ao
da potenciação do risco, bastando que o acto de cumplicidade aumente as hipóteses de
realização típica por parte do autor. Mesmo em certas hipóteses em que o auxílio material
não tenha sido causal, ele pode constituir auxílio moral.

7.3.6.1. Auxílio moral


Auxílio moral significa que houve um favorecimento ou fortalecimento do autor na sua
decisão, por parte do cúmplice. Cabem aqui os casos de instigação que não constituem
determinação no sentido do art.26º, 4ª alternativa.

Qual a medida mínima de favorecimento que deve ainda ser punida como cumplicidade?
Medidas de aconselhamento técnico, como também a da transmissão de informações
sobre hábitos e horários da vítima, sobre a utilização de instrumentos ou sobre alarmes e
outras instalações de segurança, sendo que em qualquer destes casos estamos perante
actos efectivos que aumentam o risco e favorecem a prática do facto133.

Em que medida comportamentos quotidianos em princípio valorativamente neutros do


ponto de vista geral da sua relevância criminal podem apresentar-se como auxílios
integrantes de cumplicidade sempre que eles, no caso concreto, facilitaram o
cometimento de um crime134. O critério geral é o de que tal como a acção constitutiva do
ilícito-típico, também a prestação de auxílio deve traduzir-se na criação ou potenciação
de um risco não permitido que ultrapasse a medida do admissível.

Mesmo em caso de conhecimento da decisão, nem toda e qualquer acção quotidiana


deverá integrar a cumplicidade, mas só aquela que revele uma relação de sentido
delituosa.135

7.3.7. Punição do cúmplice

131
Encontra-se aqui a diferença estrutural mais importante entre cumplicidade e co-autoria.
132
Ex: A entrega a B (assaltante) uma chave para que este possa penetrar no espaço fechado, mas B encontra
a porta aberta.
133
Não é assim porém, se o pretenso auxílio psíquico se traduzir apenas em revelar compreensão ou até
mesmo aceitação face às confidências do autor sobre aquilo que se propõe fazer.
134
Ex: Venda de produtos da vida quotidiana (pimenta, que pode servir como instrumento de ataque) ou
produtos que em si são perigosos mas que não acarretam propriamente perigo criminal (armas de caça,
instrumentos para trabalhos manuais, etc).
135
Ex: A, dono de uma casa de ferragens, que na sua actividade normal vende a B um machado sabendo
que este vai provavelmente utilizá-lo para matar a mulher.

73
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
Como previsto no art.27º/2, a pena do cúmplice é determinada em função da pena
aplicável ao autor do facto, especialmente atenuada (segundo o modelo dos arts.72º e
73º). Isto não significa que, em termos de medida concreta da pena, aquela que é cabida
ao cúmplice não possa ser igual (ou até superior) à que caberá ao autor, no caso de
relativamente a este último se verificarem factores poderosos de atenuação da
responsabilidade que se não verificam relativamente ao cúmplice ou/e se relativamente
ao cúmplice se verificarem motivos poderosos de agravação da sua responsabilidade que
não tenham lugar relativamente ao autor.136

7.4. Cumplicidade e tentativa


Se no caso existiu cumplicidade, mas o facto do autor se fica pelo estádio da tentativa
punível e constituindo esta já em si um ilícito-típico, a participação nele, segundo o
principio da acessoriedade limitada é também punível.

7.4.1. Tentativa de cumplicidade (cumplicidade falhada ou sem êxito)


A tentativa de cumplicidade tem a ver com casos em que alguém tenta prestar auxílio à
prática por outro de um facto ilícito-típico, todavia “baldadamente”, porque o favorecido
ou recusa o auxílio ou acaba por se não decidir pelo facto. Esta cumplicidade não é
punível: ou porque o auxílio acaba por não se verificar, não se podendo aqui falar em
cumplicidade, ou porque o facto ilícito-típico do autor não chega a concretizar-se sequer
sob a forma de início de execução e por isso segundo o principio da acessoriedade,
qualquer participação (tentada) não pode ser punível.137

NOTAS FINAIS
- O Nuno Salpico resumiu a matéria da acção (1.), omissão (2.), imputação objectiva (3.),
imputação subjectiva (4.), comparticipação (7.)

136
A atenuação especial por cumplicidade pode eventualmente concorrer com outra determinada por
motivos diferentes (p.e. se o facto principal ficar pelo estádio da tentativa).
137
Não se compreenderia por que razão haveria a participação falhada de ser punível quando a própria
tentativa de autoria mediata, de co-autoria ou de instigação só o é se o homem-de-trás, o co-autor ou o
homem-da-frente praticarem eles próprios actos de execução no sentido do art. 22º. Por outro lado, na
punibilidade da participação falhada trata-se de uma punibilidade autonoma de determinadas formas de
preparação do crime sob comparticipação de vários. Em terceiro lugar, a lei consagraria para além da
punição de puros actos preparatórios, uma punibilidade do campo prévio cuja criminalização deve ser
evitada até ao limite, sendo apenas usada em casos especialmente graves e previstos (criminalidade
altamente organizada). Em quarto lugar, tal punibilidade aproximar-se-ia da punição de meras intenções.
Por fim, a circunstancia da tentativa falhada de cumplicidade não ser punível nada permite concluir sobre
a punibilidade ou não da instigação ou mesmo da cumplicidade em cadeia.

74
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho
- O Tiago Mouzinho resumiu a matéria da ilicitude (5.), da culpa (6.)

- Obtivemos a ajuda do Massacotus na falta de consciência de ilícito na culpa;

- Os pontos da instigação, consentimento do lesado, outras causas justificação e toda a matéria da


culpa encontram-se por rever.

75
Nuno Salpico e colaboração de Tiago Mouzinho

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