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DOIS IRMÃOS, Milton Hatoum

Dois Irmãos, romance de Milton Hatoum, narra história de ódio familiar. Escrito em estilo enxuto e ao mesmo tempo repleto de
sutilezas, a obra vale-se das frases curtas, ligeiras, com pouca fantasia ou adjetivação, imprimindo clareza e sobriedade. O vocabulário é
comum, condizendo com a literatura contemporânea. Isso garante inteira identidade entre o autor e o leitor.
Nessa obra, Hatoum demonstra grande domínio da técnica da ficção, num estilo mais enxuto que o da primeira obra e, ao mesmo
tempo, repleto de nuanças e sutilezas.
A trama gira em torno da tumultuada relação entre dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, em uma família de origem libanesa que vive
em Manaus. O ambiente que forma o pano de fundo da história é o de imigrantes que se dedicam ao comércio, numa cidade que vê
aprofundar-se sua decadência, após o período de grande efervescência econômica e cultural vivido no início do século XX.
O título da obra faz referência às duas personagens principais, Yaqub e Omar, irmãos gêmeos, idênticos no físico, mas opostos nas
atitudes e no caráter. Movidos pela rivalidade, vão destruindo as relações pessoais e familiares, semeando discórdia, inveja, vingança e
ódio.

ESCOLA LITERÁRIA: LITERATURA CONTEMPORÂNEA

Dois irmãos foi publicado em 2000; pertence, pois, ao Modernismo brasileiro. É obra da literatura contemporânea, do Pós-
Modernismo como querem alguns, seguindo a linha da literatura que valoriza a linguagem simples, mas com elevado grau de arte e de
correção gramatical.

TEMÁTICA:
CASA DEMOLIDA - O tema principal do romance é o drama familiar demolindo as vidas e, por consequência, o lar. O enredo é
centrado na história de dois irmãos gêmeos -Yaqub e Omar - e suas relações com a mãe, o pai e a irmã. Moram na mesma casa
Domingas, empregada da família, e o filho dela (que, mais tarde, se descobre ser o narrador), um menino cuja infância é moldada
justamente por esta condição: ser o filho da empregada.

AMOR INCESTUOSO -Apesar de não está escrito com todas as letras, deduz-se que o amor doentio da mãe (Zana) pelo filho mais
novo (Omar) tem muito de incesto: ela o quer só para si, ignorando, a partir de certo momento, a relação com o próprio marido. Na
mesma linha, classifica-se o amor de Rânia pelos irmãos gêmeos. Mas não se pode esquecer que a relação sexual entre Rânia e Nael
também é um incesto, uma vez que ela pode ser a tia dele, já que se desconfia que ele seja filho de um dos gêmeos.

Vocabulário:
Manauara – referente a Manaus (nascido em Manaus)
Cunhatã : termo indígena para o diminutiva de mulher.
Arak – bebida alcoólica de origem árabe, destilada da tâmara ou uva, aromatizada com anis dentre outras especiarias. Parecida com
licor e consumida após as refeições)
Narguilé – cachimbo de água utilizado para fumar.
Maná – o livro bíblico de Êxodo o descreve como um alimento produzido milagrosamente, sendo fornecido por Deus ao povo hebreu,
liberado por Moisés, durante sua estada no deserto rumo à terra prometida.
Gazais – gênero de poesia amorosa árabe, cuja tradução é “conversando com as mulheres”
Paxá – denominação dada entre os turcos,aos títulos dos governadores de províncias do Império Otomano.
Sufi – termo árabe, que se refere aos praticantes de uma corrente mística e contemplativa do Islã, onde se procura uma conexão direta
com Deus através dos Cânticos
Ramêni – órgão genital masculino, em árabe.
Curumim – palavra de origem tupi que designa as crianças indígenas
Nheengatu – também conhecido como nhengatu, língua geral da Amazônia, ou ainda pelo nome latino lingua brasílica, é uma língua do
Tronco tupi, da família Tupi-Guarani. É a língua materna de parte da população cabocla do interior amazônico, além de manter o
caráter de língua de comunicação entre índios e não-[índios, ou entre índios de diferentes línguas.

FOCO NARRATIVO

NARRADOR-PERSONAGEM- A história é narrada na primeira pessoa, mas o narrador não é o herói principal. Nael (o nome só é
revelado quase no fim da história -9º. capítulo) valeu-se do que viu, do que ouviu e, principalmente, do que lhe contaram sobre a
família de que fez parte. A função do narrador é olhar para o passado e tentar juntar pedaços do que lhe foram contando até formar a
história como um todo.
Nael, o narrador de Dois Irmãos, encaixa-se na superação da perspectiva tradicional, uma vez que é praticamente um membro da
família, já que mora logo atrás da casa onde a maioria dos conflitos do romance se desenvolve – e sabemos que é filho de um dos
gêmeos – tendo, assim, uma perspectiva mais próxima do que ocorre, assim como algumas informações que recebe por parte de sua
mãe: “Isso Domingas me contou. Mas muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi, porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo.
Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui observador desse jogo e presenciei muitas cartadas, até o lance final.” (HATOUM, 2006, p.
23).
Outras informações, Nael recebe das inúmeras vezes em que Halim, que descobrimos ser seu avô, lhe conta suas aventuras, coisa
que nunca fez com os filhos, o que não significa que trata o narrador melhor do que seus filhos, ele apenas trata-o como o filho de
Domingas.

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Novamente tomando como base de análise a figura do narrador, é preciso salientar que além de um narrador próximo da família, na
definição de Rosenfeld - microscópico, o modo pelo qual ele se utiliza para contar a história assume grande importância, tanto que é
justamente um dos tópicos mais explorados acerca de Hatoum: a memória.
Nael utiliza-se dos pequenos detalhes que presenciou para contar a história, desde quando lembra que, “a partida de Yaqub foi
providencial para mim. Além dos livros usados, ele deixou roupas velhas, que anos depois me serviriam” (HATOUM, 2006, p.30), até
mesmo quando retrata suas desconfianças sem saber ao certo o desfecho da situação: “Ela [Rânia] se empetecou como nunca, e
parecia que toda a sua sensualidade, represada por tanto tempo, jorrava de uma só vez sobre o irmão visitante. [...]. Ainda chovia
muito quando a vi subir a escada, de mãos dadas com Yaqub; entraram no quarto dela, alguém fechou porta e nesse momento minha
imaginação correu solta. Só desceram para comer.” (HATOUM, 2006, p.87-88).
Ainda assim, faz uso das memórias de outros personagens ao retratar suas vidas, como o já citado episódio do casamento de Halim e
as origens de sua mãe: “a mãe dela... Domingas não se lembrava, mas o pai dizia: tua mãe nasceu em Santa Isabel, era bonita, dava
risadas alegres” (HATOUM, 2006, p.55).

O ROMANCE MODERNO EM DOIS IRMÃOS (literatura contemporânea)

No romance memorialístico de Hatoum o tempo sustenta a narração, com suas idas e vindas cronológicas. Uma narrativa
dramática que está sempre a anunciar a tragédia que virá e o anúncio do segredo que tanto atormenta Nael: a identidade paterna.
Busca do pai/ da identidade (característica da literatura contemporânea) É preciso também lembrar que durante a narrativa
Nael busca saber a identidade de seu pai, tendo certeza de que se trata de um dos gêmeos, justificando a afirmação de Freire ao
comentar sobre a posição desse narrador diante dos acontecimentos da casa: “posição privilegiada – mas não distanciada demais, pois
ele narra uma relação de constante competição entre dois seres e um deles pode ser seu pai – (...) sendo sua narrativa também uma
busca por espaço e identidade” (2006, p.181).
Através das lembranças deste narrador-testemunha, sem nome (só no capítulo 9 é que se revela esse nome), com raízes incertas,
sem pai, tentando ajuntar os retalhos de outras histórias para chegar a sua, busca-se definir uma identidade onde já não restam muitas
coisas: estão quase todos mortos.
Através da epígrafe da obra (“A casa foi vendida com todas as lembranças/ todos os pesadelos/ todos os pecados cometidos ou
em vias de cometer/ a casa foi vendida com seu bater de portas/ com seu vento encanado sua vista do mundo/ seus
imponderáveis...”Carlos Drummond de Andrade) já antevemos um futuro nada glorioso, o retrato de um mundo degradado: Domingas
era “a cunhatã mirrada, meio escrava, meio ama”, “louca para ser livre”. Nunca teve coragem de ser livre, enfeitiçada pela família e
pelos gêmeos. A relação com Yaqub foi mais forte, um amor maternal, se preocupava com ele, mas sofria com os desamparos de Omar.
Um pouco antes da morte, Domingas revelou que foi violentada por Omar: “ com o Omar eu não queria.. uma noite ele entrou no
meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... Ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão” (p.180)
Com Omar ela não queria, e com Yaqub? Sim. Mas nunca fica claro se algum contato com Yaqub aconteceu. Domingas acaba
sendo enterrada no jazigo da família por desejo do filho.

PERSONAGENS:
Os personagens masculinos emergem quase como dependentes do clã feminino, no sentido de parecerem mais frágeis que estes
personagens: Halim, que sem as atenções de Zana perde o ânimo; Omar, que sempre foi cercado do amor materno e dependente
financeiramente, e Yaqub, que é marcado pela preferência da mãe pelo Caçula. Mas, mesmo as figuras femininas sendo dotadas de mais
força, estão à mercê dos conflitos entre os irmãos. Com o diferencial de Nael, o narrador, que se mostra dependente apenas de sua
dúvida.
As personagens criadas por Milton Hatoum, em Dois irmãos, são todas PLANAS, LINEARES ou estereotipadas, isto é, não
evoluem psicologicamente nem mudam de caráter ou de personalidade.
GALERIA - Vamos à galeria de personagens do livro com suas respectivas características e/ou atuação:

Zana -Mãe dos gêmeos Yaqub e Omar; esposa de Halim. O romance começa com a descrição da morte de Zana. Era filha de Galib,
dono do restaurante Biblos. À medida que a história evolui, ela vai-se mostrando dominadora, moldando o destino do marido e
dos filhos.
Halim -Pai dos gêmeos Yaqub e Omar; esposo de Zana. Quando jovem, era mascate nas ruas de Manaus. Melhorou de vida ao casar-se
com Zana. Aos poucos, foi perdendo o amor da esposa para o Caçula (Omar), o gêmeo que nasceu logo depois de Yaqub.
Yaqub -É um dos heróis da história. Rapaz vistoso e alto, rosto anguloso, olhos castanhos e graúdos, cabelo ondulado e preto. Aos treze
anos, foi mandado para o sul do Líbano, tentativa dos pais de separá-lo de Omar, seu irmão gêmeo. Voltou para o Brasil, tornou-
se engenheiro e casou-se com Lívia.
Omar -O outro herói da história. Tem os mesmos traços físicos do irmão, mas caráter e comportamento opostos. Desde criança,
mostrava-se mais arrojado e corajoso. Com o excesso de proteção da mãe, tornou-se vadio e arqui-rival do pai e do irmão
gêmeo. Lívia -Moça que provocou a primeira briga séria entre os gêmeos. Por causa dela, Omar cortou a face de Yaqub com
uma garrafa quebrada. Lívia foi embora para São Paulo e, às escondidas, casou-se com Yaqub.
Galib -Pai de Zana. Tinha um restaurante no térreo da própria casa. Quando a filha se casou com Halim, voltou para o Líbano e lá
morreu.
Abbas -Poeta boêmio que ajudou Halim, por meio de versos, a conquistar Zana.
Domingas -Órfã que veio do interior trazida por uma freira. Enfrentou dois anos de orfanato. Depois, foi morar na casa de Halim e
Zana, tornando-se empregada. Mãe de Nael, o narrador da história. O próprio narrador diz que Domingas não teve a liberdade de
escolher nada na vida.
Irmã Damasceno -Alta, carrancuda, toda de preto, palmatória na mão, amedrontava a todos no orfanato. Foi quem doou Domingas ao
casal Halim e Zana.

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Estelita -Estilista rica, vizinha de Halim, esposa de Abelardo. De vez em quando, batia no marido por causa da irmã dela. Atazanava a
vida do narrador, arranjando coisas para ele fazer, embora tivesse um batalhão de serventes.
Abelardo -Esposo de Estelita. Quando era castigado pela esposa, ficava no aposento dos macacos, fora de casa.
Talib -Vizinho e amigo de Halim e Zana. Tinha duas filhas muito bonitas: Zahia e Nahda. Quando era flagrado em cenas libidinosas
com alguma caboclinha, apanhava das filhas.
Dália -Dançarina que conquistou o coração de Omar. Zana, por intermédio do narrador, fez que ela desaparecesse.
Zanuri -Ganhava dinheiro para vigiar e delatar casais apaixonados. Trabalhou para Zana, vigiando Omar.
Adamor, o Perna-de-Sapo -Tinha faro especial para encontrar coisas (e pessoas) perdidas. Foi quem localizou Omar quando este sumiu
com a Pau-Mulato.
Pau-Mulato -Mulher alta, forte, bem escura, por quem Omar se apaixonou e com quem fugiu de casa. O romance foi desfeito por Zana,
e o Caçula voltou a ser mimado pela mãe e pela irmã.
Prof. Antenor Laval -Professor de Francês no Liceu Rui Barbosa (Galinheiro dos Vândalos). Foi preso em praça pública pelos soldados
do Exército e morto dois dias depois. Além de professor, era poeta e crítico ferrenho da política.
Nael -Narrador-personagem. Filho de Domingas, empregada da família. O nome aparece quase no fim da história. Ele próprio não tem
certeza, mas tudo indica que o pai dele é Yaqub.
Bolislau - Professor do colégio dos padres que Omar agrediu com um soco no queixo e um chute no saco.

ESPAÇO (AMBIENTE - CENÁRIO)

Em sua obra, Milton Hatoum aborda os vários conflitos familiares, tais como o confronto entre pai e filho, a figura materna como
o símbolo de acolhimento e ternura, a figura da irmã solitária e abandonada, além de fazer um retrato representativo de suas memórias
pessoais da infância em Manaus e um belo retrato das tradições amazonenses no pós-guerra.
A partir desse pressuposto, é necessário dividir a topoanálise da obra de Milton Hatoum em duas: a análise da casa (microcosmo)
como cenário importante para o desenvolvimento do enredo e de todos os conflitos psicológicos e familiares das personagens e a forma
como o autor retrata o espaço da cidade de Manaus (macrocosmo), suas ruas, assim como a presença constante do rio Amazonas na
obra.
No segundo momento da topoanálise de Dois Irmãos, será observada a relação das personagens com o ambiente externo, a
Manaus do pós-guerra e suas transformações (macrocosmo). Não podemos esquecer o fato de as personagens do núcleo familiar central
da trama serem imigrantes libaneses, que tentam melhorar de vida durante o ciclo da borracha em Manaus, durante o final do século 19.
Estes personagens, ao mesmo tempo que tentam valorizar a sua cultura, sua tradição, sua religião, deparam-se com um novo universo,
um mundo degradante, selvagem, exótico, fazendo com que a memória e a referência ao exílio, aos países de origem e ao isolamento
sejam constantes nos relatos das personagens da obra, principalmente por parte de Zana e Halim.
Outro elemento reincidente dentro do espaço manauara da obra de Hatoum que não pode deixar de ser analisado é a presença
constante do rio Amazonas como uma espécie de personagem atuante dentro do enredo. O rio Amazonas aparece representativamente
durante as descrições de todo o ambiente e de todo o progresso social e econômico de Manaus. Este fato está reforçado, principalmente,
no momento em que Omar mostra-se desiludido com a instituição família. O filho, em uma espécie de histeria, foge ao longo do rio já
mencionado, dando, assim, um novo rumo à trama, reiterando ainda mais o declínio da casa de Zana e Halim.
Há uma forte simbologia do rio Amazonas, representando a fonte da vida, o fluir de tudo, a mudança de ciclos, muito presente
dentro da obra. Como é perceptível, o lado psicológico, a memória, o tempo estão plenamente subordinados aos espaços da obra.
MANAUS - O cenário principal do livro é a cidade de Manaus, valorizando o porto dos Remédios, o Centro, os bairros e as praças
mais antigos, com especial destaque para as atividades do comércio.
LÍBANO - O autor faz referência ao sul do Líbano, de onde provieram os chefes de família e para onde foi Yaqub contra sua
vontade.
SÃO PAULO - A cidade de São Paulo também é cenário de referência: lá, Yakub formou-se em Engenharia, constituiu família e
fixou residência.
Na medida em que a cidade de Manaus vai assumindo contornos novos, os personagens também se vêem envolvidos nessa
mudança, que os atinge e influencia no seu caráter, como na passagem em que as tias de Dália, um dos casos de Omar, acabam
aceitando dinheiro enviado por Zana em troca de informações, pois “as encomendas de doces e vestidos rareavam àquela época. A outra
extremidade do Brasil crescia vertiginosamente, como Yaqub queria. No marasmo de Manaus, dinheiro dado era maná enviado do céu”
(HATOUM, 2006, p.78).
A relação historiográfica que o romance desenvolve com os personagens, vista também como tendência no romance
contemporâneo, se mostra na citação de acontecimentos fatuais como a inauguração de Brasília: “Noites de blecaute ao norte, enquanto
a nova capital do país estava sendo inaugurada. A euforia, que vinha de um Brasil tão distante, chegava a Manaus como um sopro
amornado” (HATOUM, 2006, p.96).

AVANÇOS E RECUOS NO TEMPO

PRESENTE x PASSADO - A narrativa começa na década de 1920 e, aos saltos, chega aos anos 60. A história começa pelo fim:
narra-se, antes do primeiro capítulo, a morte de Zana, mãe dos gêmeos. O narrador viveu, viu e ouviu todos os acontecimentos. Uns
trinta anos depois, resolveu pôr no papel os fragmentos que lhe vinham à memória. A oscilação entre presente e passado é recurso
comum na narrativa.
A narrativa apresenta avanços e recuos no tempo, sem uma cronologia linear. Os problemas vão sendo revelados ao leitor aos
poucos, conforme o narrador rememora fatos esclarecedores e os encadeia para solucionar (ou deixar em suspensão) os enigmas da
história.
Uma breve introdução narra a morte de Zana, em situação de enorme angústia. Na cena descrita, o silêncio que responde
negativamente à última pergunta da mulher (“Meus filhos já fizeram as pazes?”) coincide com o fim do dia.

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O primeiro capítulo começa com a volta do jovem Yaqub de uma viagem forçada ao Líbano. Pode-se concluir que essa ação se
passa em 1945, no fim da II Guerra Mundial, pois o porto do Rio de Janeiro está “apinhado de parentes de pracinhas e oficiais que
regressavam da Itália”.
O motivo da viagem ao Líbano é esclarecido em mais um recuo cronológico: a tentativa de separar os gêmeos e evitar o conflito
entre eles. As diferenças entre os personagens, que parecem vir do berço ou ter começado em sua mais remota infância, tornam-se cada
vez mais acentuadas.

INTERTEXTUALIDADE

O diálogo com o presente e o passado fez-nos resgatar histórias bíblicas, histórias clássicas e contemporâneas para mostrar que
seus temas são tão antigos, como atuais, eternos como a própria impossibilidade de harmonia terrena.
A história da família de Dois Irmãos intertextualiza, inicialmente, a de duas famílias bíblicas: a de Adão e Eva e a de Isaac e
Rebeca, ambas extraídas do Gênesis, livro primeiro da Bíblia Sagrada. A primeira história de rivalidade entre irmãos se dá com Caim e
Abel. Caim, o irmão mais velho, é lavrador; Abel é pastor de ovelhas. O despeito entre um e outro se dá quando Deus não aceita a
oferta de Caim, que Lhe oferece produtos de sua lavoura e aceita a de Abel que lhe oferece uma ovelhinha. Não adianta dizer-lhe que o
sacrifício deve ser feito com a morte de um animal. Caim não confiava em Deus como o irmão, e não acreditou em suas palavras:
´Assim como as folhas de figo não puderam cobrir o pecado de Adão e Eva, um sacrifício feito com plantas e legumes, sem sangue,
também não podia perdoar os pecados´. Caim afastou-se de Deus e acabou cometendo o primeiro assassinato: tirou a vida do próprio
irmão e tornou-se um amaldiçoado.
Já Esaú e Jacó, filhos de Isaac e Rebeca nascem a pedido do pai que clama a Deus a dádiva dos filhos, já que a esposa era estéril.
Ainda na barriga, as duas crianças brigam e Rebeca tem a revelação, pela boca de Javé, de que eles representam a briga entre duas
nações que se separam em suas entranhas. Um povo vencerá o outro, e o mais velho servirá ao mais novo (p.38). Esaú se tornou um
caçador e Jacó preferia a tranqüilidade, vivendo sob tendas. Isaac se identificava com Esaú; Rebeca preferia Jacó. Jacó ambicionava ser
o primogênito, direito que dava a Esaú, como o primeiro a sair da barriga da mãe, ter a autoridade patriarcal sobre os irmãos. Esaú,
voltando do campo esgotado de fome, só recebe a comida de Jacó quando lhe concede o direito à primogenitura.
Zana parece a recriação de Rebeca que, ao privilegiar o filho Jacó, em detrimento do outro filho, Esaú, faze-os inimigos
irreconciliáveis. Quando Zana escolhe mandar Yakub para o Líbano e fica com Omar, só acentua a rivalidade entre os dois.
Já o romance Esaú e Jacó, Machado de Assis deixa clara, a partir do título, a intertextualidade com o Gênesis, quando já carrega
no próprio título o nome dos gêmeos bíblicos. Pedro e Paulo, filhos tão desejados como os de Isaac e Rebeca, são também gêmeos, têm
personalidades diferentes e desenvolvem, desde cedo, uma rivalidade sem explicação. Quando Natividade vai à ´Cabocla´ para saber
sobre o destino deles, ela pergunta se eles brigaram em seu ventre. A mãe então lembra que não teve uma gestação sossegada, tinha
movimentos extraordinários, repetidos, e dores, e insônias... (p.19). Segundo o narrador, o Conselheiro Aires, os dois irmãos
representavam os dois lados da verdade. Paulo é extremamente impulsivo, age sempre de forma arrebatada; já Pedro é dissimulado e
tem uma mente conservadora. Quando se tornam adultos, assumem posições políticas diferentes: Paulo é republicano e Pedro
monarquista. A mãe e o pai sofrem com a constante competição, mas não conseguem aplacar o desejo que um tem de contrariar o outro.
Os dois se apaixonam pela mesma mulher, uma moça retraída, simples, de nome Flora. Ela, não conseguindo encontrar em um só deles
a completude do seu desejo, deixa entrever que um completaria o outro. Na impossibilidade de ter os dois, ela morre. Eles juram
reconciliação junto ao túmulo dela, mas, ao elegerem-se deputados, continuam a brigar na tribuna. Novo juramento de paz é feito no
leito de morte da mãe.
Zana igualmente sonhou morrer vendo os filhos, Yakub e Omar, reconciliados; sua última tentativa de uni-los no projeto do Hotel
a ser construído em Manaus, resultou no estopim da intriga: Yakub exclui o irmão, e este, revoltado, o agride fisicamente. Após a morte
da mãe, Yakub vinga-se das agressões que recebeu, mandando-o para a prisão. Na verdade, vinga-se de toda uma vida de preterição por
parte da mãe. Halim sentia a possibilidade de um desfecho trágico e advertia a mulher: Dá um pouco de atenção ao outro filho. Faz anos
que não vemos o Yakub (113). Zana morreu aflita, perguntado: meus filhos já fizeram as pazes? (p.12). Como Esaú e Jacó, os dois
também nasceram perdidos (P.237). Como Caim e Abel, eles ficaram vulneráveis ao desejo de que um não vivesse; numa carta à mãe,
Yakub escreve Oxalá seja resolvido com civilidade; se houver violência, será uma cena bíblica (p.228). Não há assassinato, é certo, mas
há violência e plano sórdido de vingança. Há destruição de vidas pelo ódio.
Publicados com um intervalo temporal de quase um século, os dois romances exploram a problemática do duplo, por meio do mito
bíblico da discórdia entre dois irmãos. A menção de Hatoum a Esaú e Jacó ultrapassa, contudo, o âmbito da escolha temática. Segundo
sustentaremos, o autor manauara também acompanha Machado na crítica que este faz à história do nosso país e na forma como esta
crítica é enunciada, por meio da criação de alegorias para o Brasil e para os antagonismos que o dividem. Porém, se Machado trabalha
alegoricamente a passagem da Monarquia para a República, Hatoum focaliza um outro acontecimento político, pertencente ao seu
tempo: o regime militar instaurado em 1964. Desse modo, ao examinarmos aqui os dois títulos, propomos também a análise das
alegorias criadas por ambos os autores e as críticas enunciadas por meio destas figurações.

REGIONALISMO

Milton Hatoum, em entrevista ao Jornal Folha de S. Paulo, faz a seguinte afirmação em relação ao regionalismo literário: A
literatura regionalista esgotou-se há muito tempo. O regionalismo é uma visão muito estreita da geografia do lugar, da linguagem. É
uma camisa de força que encerra valores locais. Minha ideia é penetrar em questões locais, em dramas familiares, e dar um alcance
universal para eles. (2005, p. 12)
Hatoum parece refletir sobre o regionalismo na literatura brasileira na época em que este era associado à falta de universalidade, ou
seja, na fase de pré-consciência de atraso, nos termos de Candido. Entretanto, Dois irmãos configura-se como uma obra universal, mas
sem deixar de ser regionalista, já que Hatoum consegue situar o drama familiar narrado na cidade de Manaus e, dessa forma, consegue
aproximar o leitor (independentemente de sua naturalidade) do mundo amazonense.
Esse regionalismo revisitado de Hatoum consiste, portanto, numa mescla de elementos que brotam de todos os matizes de uma
matéria dada por uma região específica, com outros advindos de matrizes narrativas de inspiração europeia e urbana, formadoras da
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nossa literatura, tudo filtrado por um olhar que contém horizontes perdidos num certo oriente e num outro tempo. Com isso, o autor
revitaliza o gênero, num momento da história da ficção brasileira em que ele parecia aos poucos estar se esgotando. (2004, p. 129)
Dessa forma, observa-se que o regionalismo, apesar de ser ter sido considerado por muitos como uma tendência morta e redutiva da
literatura, reaparece, contemporaneamente na obra Dois irmãos. Hatoum trabalha o regionalismo de maneira própria e coloca a cidade
de Manaus e suas particularidades como cenário onde acontecem os fatos narrados.
Hatoum contribui para a quebra do mito de que a obra regionalista é algo pasteurizado e redutivo. Dessa maneira, apesar de ter
recorrido à intertextualidade, ou seja, de ter escrito uma história acerca do difícil relacionamento entre gêmeos, tema já antes explorado
em outras narrativas clássicas, consegue inovar e compor uma narrativa interessante situando-a em sua terra natal, a qual o autor tem
toda propriedade para abordar.

A DIVISÃO DA OBRA(resumo):

12 CAPÍTULOS - Dois irmãos é romance dividido em 12 capítulos (sem títulos), com um pequeno preâmbulo que, aguçando a
curiosidade do leitor, relata cenas do fim da história.

Preâmbulo
A MORTE DE ZANA -O romance começa com alguém descrevendo a morte de Zana. Antes de morrer, ela delirava pela casa, chegava
a ver o marido e o pai andando pela casa: "Eles andam por aqui, meu pai e Halim vieram me visitar... eles estão nesta casa". Acreditava
também que o filho caçula iria voltar: "Sei que um dia ele vai voltar". O narrador não quis vê-la morrer. Mas contaram-lhe que ela,
antes da morte, ergueu a cabeça e perguntou em árabe: "Meus filhos já fizeram as pazes?"

Capítulo 1

A VOLTA DE YAQUB -Yaqub chegou do Líbano. O pai foi buscá-lo no Rio de Janeiro. Não era mais o menino, mas o rapaz que
passara cinco dos seus dezoito anos no sul do Líbano.
O encontro de pai e filho foi emocionante. O pai falou da penúria em Manaus por causa da guerra. No farnel do filho, não havia roupa,
nem presente. Em plena Cinelândia, Halim viu o filho virar-se para uma parede e mijar. O pai reclamou, mas Yaqub não entendeu, ou
fingiu que não entendeu.
A SEPARAÇÃO -Yaqub e Omar eram gêmeos idênticos. Omar nasceu um pouquinho depois. Até treze anos, viveram na mesma casa.
A idéia de Halim era mandar os dois filhos para o sul do Líbano, mas a esposa, Zana, persuadiu o marido a mandar apenas Yaqub.
Assim, durante anos, Omar foi tratado como filho único.
VIAGEM E SERMÃO - Na viagem de volta a Manaus, Halim fez um longo sermão sobre educação doméstica: que não se deve mijar
na rua, nem comer como uma anta, nem cuspir no chão. O filho concordava, a cabeça baixa, vomitando de vez em quando.
REENCONTRO COM A MÃE -No aeroporto de Manaus, o reencontro com a mãe chamou a atenção de todos. Era como se a mãe
recuperasse uma parte da própria vida: "o gêmeo que se ausentara por capricho ou teimosia de Halim."
LEMBRANÇAS DE YAQUB -No caminho do aeroporto para casa, Yaqub dava asas às lembranças. "Ele e o irmão entravam correndo
na casa, zigue-zagueavam pelo quintal, caçavam calangos com uma baladeira. Quando chovia, os dois trepavam na seringueira do
quintal da casa, e o Caçula trepava mais alto, se arriscava, mangava do irmão, que se equilibrava no meio da árvore, escondido na
folhagem, agarrado ao galho mais grosso, tremendo de medo, temendo perder o equilíbrio."
IGUAIS E DIFERENTES -Yaqub vai relembrando a infância. Ele e Omar, embora tivessem o mesmo físico, eram bem diferentes. O
caçula era corajoso, brigão, audacioso. Corria descalço, sem medo de queimar os pés, saltava para pegar a linha ou a rabiola de um
papagaio, soltando um grito de guerra e mostrando as mãos estriadas. "Yaqub recuava ao ver as mãos do irmão cheias de sangue,
cortadas pelo vidro do cerol."
CARNAVAL E TRAGÉDIA -Veio à lembrança de Yaqub o baile de Carnaval no casarão de Sultana Benemou. "Seria a primeira noite
de Lívia na festa dos adultos, a primeira noite que ele, Yaqub, viu-a com os lábios pintados". Yaqub tinha treze anos. Lívia, da mesma
idade, já parecia adulta. Quando ia aproximar-se dela, Zana ordenou: "Leva tua irmã para casa. Podes voltar depois". Ele obedeceu.
Quando Zânia dormiu, "voltou correndo ao casarão dos Benemou." A cena que viu deixou-o trêmulo: Lívia e Omar dançavam num
canto da sala. "Dançavam quietos, enroscados, movidos por um ritmo só deles, que não era carnavalesco." Dois meses depois, ele e o
irmão estavam separados. Nunca entendeu "por que ele, e não o irmão, viajou para o Líbano dois meses depois."
CHEGADA AO LAR -Já em casa, Yaqub abraçou longamente a irmã, agora moça completa, e dedicou uma atenção especial a
Domingas. "Ele observou os desenhos de sua infância colados na parede: as casas, os edifícios e as pontes coloridas, e viu o lápis de sua
primeira caligrafia e
o caderno amarelado que Domingas guardara e agora lhe entregava como se ela fosse sua mãe e não a empregada."
FACE A FACE COM O IRMÃO -A recepção entre os gêmeos foi fria. Omar chegou quase à meia-noite. Apesar do incentivo, os dois
trocaram apenas um tímido aperto de mãos.
A HISTÓRIA DA CICATRIZ -Um narrador ainda não identificado fala da cicatriz no rosto de Yaqub. "Foi Domingas quem me contou
a história da cicatriz". Depois do Carnaval, os gêmeos foram com Domingas à casa dos Reinoso: iam passar a tarde lá, atraídos pela
notícia de um cinematógrafo ambulante. Lívia dava confiança aos dois, e Omar ficou enciumado. Depois do baile de Carnaval, o Caçula
achava que Lívia estava comprometida com ele. Quando o filme ia começar, Yaqub reservou uma cadeira para Lívia. Omar desaprovou
o gesto polido com o olhar. A sala ficou escura, e as cenas em preto-e-branco surgiram da escuridão. Uns vinte minutos depois, a
projeção foi interrompida. Quando alguém abriu uma janela, "a platéia viu os lábios de Lívia grudados no rosto de Yaqub. Depois, o
barulho de cadeiras atiradas no chão e o estouro de uma garrafa estilhaçada, e a estocada certeira, rápida e furiosa do Caçula. O silêncio
durou uns segundos. E então o grito de pânico de Lívia ao olhar o rosto rasgado de Yaqub. O Caçula, apoiado na parede branca,
ofegava, o caco de vidro escuro na mão direita, o olhar aceso no rosto ensanguentado do irmão." Vieram, depois, os apelidos: "Cara de
lacrau", "bochecha de foice." Yaqub engolia os insultos, não reagia. "Então Halim decidiu: a viagem, a separação. A distância que
promete apagar o ódio, o ciúme e o ato que os engendrou."

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ADAPTAÇÃO -Depois de voltar do Líbano, Yaqub tentou recuperar o tempo perdido. Era tímido, tinha vergonha de falar (trocava o pê
pelo bê), era alvo de chacota dos colegas e de certos mestres que o tinham como um rapaz rude, esquisito: vaso mal moldado.
OLHAR SEDUTOR -Yaqub despertava desejo nas mulheres. Tinha olhar de conquistador. Domingas também se deixava encantar por
aquele olhar. Dizia: "Esse gêmeo tem olhão de boto; se deixar, ele leva todo mundo para o fundo do rio".
UM MATEMÁTICO -Na escola, Yaqub sobressaía-se em Matemática. "O que lhe faltava no manejo do idioma sobrava-lhe no poder
de abstrair, calcular, operar com números." Logo ganhou gosto pelo jogo de xadrez.
JUVENTUDE ESQUISITA -Yaqub passava "dias e noites no quarto, em total isolamento. A mãe e o pai não entendiam por que ele
renunciava à juventude, ao barulhofestivo e às serenatas que povoavam de sons as noites de Manaus.
ATITUDES OPOSTAS -Enquanto Yaqub ganhava fama de estudioso e esquisitão, Omar "gazeava lições de latim, subornava porteiros
sisudos do colégio dos padres e saía para a noite, fardado, transgressor dos pés ao gogó, rondando os salões da Maloca dos Barés, do
Acapulco, do Cheik Clube, do Shangri-Lá."
LUTA VÃ -O pai não sabia o que fazer diante de um filho que chegava, todas as noites, ébrio. Ameaça castigo, dava o exemplo do
outro filho, mas nada adiantava. Omar foi reprovado dois anos seguidos no colégio dos padres.
EXPULSO DO COLÉGIO - No dia em que foi expulso, Omar "gritou várias vezes na presença do pai, desafiando-o, rasgando a farda
azul, a voz impertinente dizendo: "Acertei em cheio o professor de matemática, o mestre do teu filho querido, o que só tem cabeça".
GALINHEIRO DOS VÂNDALOS -"O Caçula, expulso pelos padres, só encontrou abrigo numa escola de Manaus onde eu estudaria
anos depois. O nome do colégio era pomposo -Liceu Rui Barbosa, o Águia de Haia -, mas o apelido era bem menos edificante:
Galinheiro dos Vândalos."
SOCO NO QUEIXO E CHUTE NO SACO - No Galinheiro dos Vândalos, "o Caçula não escondia de ninguém a versão verdadeira: o
padre polonês que o humilhou só podia tomar sopa, nunca mais ia mastigar comida." Chamava-se Bolislau, gigante de tez vermelha,
carnadura atlética, olhos de castigador que procura cobaia. Fez uma pergunta dificílima para Omar, e em resposta ao silêncio do aluno,
zombou. "O Caçula se levantou, caminhou para o quadro-negro, parou cabisbaixo diante do gigante Bolislau, deu-lhe um soco no
queixo e um chute no saco".
IDENTIDADE DO NARRADOR -Aqui, o narrador começa a aparecer mais nitidamente. "Quando ele (Yaqub) viajou para São Paulo,
eu tinha uns quatro anos de idade, mas a roupa dele me esperou crescer e foi se ajustando ao meu corpo; as calças, frouxas, pareciam
sacos; e os sapatos, que mais tarde ficaram um pouco apertados, entravam meio na marra nos pés: em parte por teimosia, e muito por
necessidade."
PARTIDA PARA SÃO PAULO -Terminados os estudos no colégio dos padres, Yaqub decidiu: ia embora para São Paulo, seguir sua
vocação para os números. O colégio preparou-lhe homenagens.
LÍVIA REAPARECE -No dia da partida, Lívia reapareceu. Arrastou Yaqub para o quintal, depois os dois sumiram no mato. Como
demorassem, Domingas foi atrás. "Estavam espichados no mato, e Yaqub acariciava o ventre e os seios da mulher, adiando a
despedida."
MARCAS DO AMOR -Depois do encontro com Lívia, "Yaqub entrou sozinho na sala, o pescoço com arranhões e marcas de mordidas,
a expressão ainda incendiada. Viajou assim mesmo: a roupa amarrotada, o rosto úmido, o cabelo aninhando talos, folhinhas e fios de
cabelo amarelados. Viajou calado. Deixou na casa a lembrança forte de duas cenas ousadas: o desfile com farda de gala e o encontro
com a mulher que ele amava."

Capítulo 2

HALIM E GALIB - O pai de Zana, Galib, inaugurou o restaurante Biblos no térreo da própria casa. O próprio Galib, ajudado pela filha,
levava comida à mesa dos fregueses: mascateiros, comandantes de embarcação, regatões, trabalhadores do Manaus Harbour; imigrantes
libaneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a rodeavam. Halim
começou a frequentar o restaurante menos pela comida e mais para apreciar a beleza de Zana. "Passou meses assim: sozinho num canto
da sala, agitado ao ver a filha de Galib, acompanhando com o olhar os passos da gazela."
O EFEITO DOS GAZAIS -Halim estava apaixonado por Zana, mas era tímido, não tinha coragem de lhe fazer uma declaração de
amor. Pediu ajuda a Abbas, um poeta boêmio. Nasceu, então, a idéia de conquistá-la com um poema. Abbas compôs um gazal, espécie
de poema amoroso, e Halim, encharcado de vinho, recitou-o a Zana dentro do restaurante cheio de gente. Dois meses depois, estavam
casados. Tudo isso Halim contou ao narrador.
INTRIGAS -Houve muitas intrigas para atrapalhar o namoro de Zana e Halim. Galib não se intrometia, e Zana ganhava liberdade para
decidir sozinha. Terminaram casando-se na Igreja dos Remédios.
SOB O COMANDO DE ZANA - Depois de casados, Zana dava as ordens, tomava as decisões. Halim vivia para satisfazê-la, para
adorá-la, para fazê-la feliz. Ele parecia passivo, "mas era um demônio na cama e na rede. Ele me contou cenas de amor com a maior
naturalidade, a voz pastosa, pausada, a expressão libidinosa no rosto estriado, molhado de suor".
A MORTE DE GALIB -Logo depois de casados, Zana sugeriu ao pai "que viajasse para o Líbano, revisse os parentes, a terra, tudo. Era
o que Galib queria ouvir. E partiu, a bordo do Hildebrand, um colosso de navio que tantos imigrantes trouxe para a Amazônia." Em
Biblos, dormindo na casa perto do mar, Galib morreu. Quando Zana soube, trancou-se no quarto do pai. Depois balbuciou para o
esposo: "Agora sou órfã de pai e mãe. Quero filhos, pelo menos três".

Capítulo 3

CARTA DE YAQUB -No fim de cada mês, Halim e Zana recebiam uma carta de Yaqub. Para espantar a tristeza, "Halim convidava os
vizinhos e a leitura era pretexto para um jantar festivo. Sem festa, Zana ficaria deprimida, pensando no frio que o filho sentia".
YAQUB PROFESSOR -Seis meses depois, Yaqub tornou-se professor de Matemática em São Paulo. Tempos depois, informou seu
ingresso na Universidade de São Paulo: ia ser engenheiro. "Os pais mandaram-lhe dinheiro e um telegrama; ele agradeceu as belas
palavras e devolveu o dinheiro. Entenderam que o filho nunca mais precisaria de um vintém. Mesmo se precisasse, não lhes pediria."

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YAQUB OFICIAL DO EXÉRCITO - "Cresci vendo as fotos de Yaqub e ouvindo a mãe dele ler suas cartas. Numa das fotos, posou
com a farda do Exército; outra vez uma espada, só que agora a arma de dois gumes dava mais poder ao corpo do oficial da reserva.
Durante anos, essa imagem do galã fardado me impressionou. Um oficial do Exército, e futuro engenheiro da Escola Politécnica..."
A SITUAÇÃO DE OMAR -Omar levava a vida "entre a inércia da ressaca e a euforia da farra noturna." Não participava da leitura das
cartas mandadas pelo irmão, ignorava o oficial da reserva e futuro politécnico.
COMO SURGIU DOMINGAS -Antes dos filhos, Halim e Zana receberam de uma freira uma indiazinha. Parecia uma menina de boas
maneiras e bom humor: nem melancólica, nem apresentada. Durante um tempinho, ela nos deu um trabalho danado, mas Zana gostou
dela. As duas rezavam juntas as orações que uma aprendeu em Biblos e a outra no orfanato das freiras, aqui em Manaus."
O NASCIMENTO DOS GÊMEOS -Halim não queria filhos. Temia que eles atrapalhassem a tara que sentia por Zana. "Yaqub e Omar
nasceram dois anos depois da chegada de Domingas à casa." Daí em diante, acabou-se o sossego de Halim: à medida que os meninos
cresciam, ia perdendo terreno no coração da esposa.
O NASCIMENTO DE RÂNIA -Quando Rânia nasceu, Halim já se tinha conformado com a intromissão dos filhos na sua vida íntima.
Fez o papel de pai: brincou com eles, levou-os para passeios. Mas nunca aprovou o excesso de mimo que Zana dispensava ao caçula.

Capítulo 4

ANGÚSTIAS DO NARRADOR -Neste capítulo, o narrador questiona o seu próprio passado. Fica-se sabendo que ele é filho de
Domingas. E o pai? "Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando eu tocava no assunto; deixava-
me cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade. Eu sofria com o silêncio dela".
ORIGENS DE DOMINGAS -Domingas era órfã. Por isso, foi trazida do interior por uma freira para um orfanato de Manaus. Ali
aprendeu a rezar e a escrever, experimentando a palmatória da irmã Damasceno. Saiu do internato para viver na casa de Zana e Halim.
"Viu os gêmeos nascerem, cuidou do Yaqub, brincaram juntinhos...
VIAGEM A ACAJATUBA -O narrador e Domingas fizeram uma única viagem de barco juntos: foram a Acajatuba, vila natal de
Domingas. Na volta, um temporal provocou pânico e vômitos, aumentando a tristeza dela. Por alguma razão, ela não falava nos
gêmeos, muito menos em Yaqub. E isso aumentava as desconfianças do narrador.
MENINO DE RECADOS - O narrador tinha total liberdade na casa de Halim e Zana. Dificilmente se sentava à mesa com os donos da
casa, mas alimentava-se da mesma comida, andava por todos os ambientes, eles não se importavam. Os vizinhos, por meio de Zana,
pediam-lhe favores: que fosse ali, acolá, ele ia. Às vezes, nem agradeciam nem davam dinheiro para o transporte.
A PIOR VIZINHA -A pior vizinha do narrador era Estelita Reinoso. Vivia pedindo a Zana que mandasse o filho da Domingas fazer
isso ou aquilo. Demorou, mas um dia o narrador deu o seu grito de independência: não serviria mais de mensageiro para Estelita.
Halim concordou com ele.
AS FILHAS DE TALIB -Eram duas, cada uma mais bonita que a outra: Zahia e Nahda, a primeira mais assanhada que a segunda. O
narrador, quando ia à casa de Talib, faltava engolir Zahia com os olhos. "Talib me tacava uma cacholeta: "Queres engolir minha filha,
seu safado?" Eu ficava acabrunhado, Zahia dava uma risada. Não perdia uma noite em que elas dançavam em casa, onde eram rivais de
Rânia e rebolavam como nunca."
SURRA NO PAI -Certa vez, as filhas de Talib flagraram-no com uma cunhatã atrás do balcão da Taberna Flores do Minho. Ele não
esperava por isso, não acreditava que as filhas voltariam mais cedo da escola. "Deram uma sova no pai, nós ouvíamos os urros do viúvo
ecoando no quarteirão, e quando me aproximei da casa eu o vi deitado na sala, escorjado sob os braços roliços e rijos das filhas, a voz
de súplica repetindo: "Só estava me divertindo um pouquinho, filhas...".
ATRITOS COM OMAR -Omar discriminava o narrador. "Um dia, eu estava almoçando quando ele se aproximou e deu a ordem: que
eu saísse, fosse comer na cozinha. Halim estava por perto, me disse: "Não, come aí mesmo, essa mesa é de todos nós". O Caçula
bufava, depois se vingava de mim.
VONTADE DE FUGIR - As pressões sobre o narrador eram muitas. Omar, quando chegava bêbado, desrespeitava Domingas. O
narrador pulava sobre ele e levava safanões e pesadas. Halim defendia-o, mas Zana ficava do lado do filho e contra o filho da
empregada. A ideia de fugir não lhe saía da cabeça.
ALÉM DOS LIMITES -Omar chegava bêbado todas as noites e dava trabalho para a mãe e para Domingas. Certa noite entrou em casa
com uma moça do cortiço da rua dos fundos, irmã do Calisto. Fizeram uma festinha a dois. De manhãzinha, Halim viu o filho e a moça,
nus, dormindo no sofá cinzento. Depois que a moça se vestiu e saiu, ele "se aproximou do filho, que fingia dormir, ergueu-o pelo
cabelo, arrastou-o até a borda da mesa e então eu vi o Omar , já homem feito, levar uma bofetada, uma só, a mãozona do pai girando e
caindo pesada como um remo no rosto do filho."
YAQUB CASADO -Yaqub, quando foi casar-se, noticiou o evento apenas com um telegrama. Não revelou o nome da mulher. "Zana
mordeu os lábios. Para ela, um filho casado era um filho perdido ou sequestrado. Fingiu-se desinteressada do nome da nora e cercou
ainda mais o Caçula, que ela atraía para si como um imenso ímã atrai limalhas."
RÂNIA -Rânia, aos poucos, tornou-se arredia, retraída, enclausurada. Depois das oito horas da noite, resguardava-se do mundo. Não
saía: não ia ao cinema, às praças, às casas vizinhas. Ninguém sabia por quê. Com o tempo, tornou-se ótima negociante, uma vendedora
arguta. Rasgava as cartas de todos os pretendentes. Só se mostrava numa única noite do ano: no aniversário da mãe.
OMAR E DÁLIA -Tudo aconteceu no aniversário de Zana. Omar apareceu com uma mulher nunca vista por ali. Chamava-se Dália e
tinha uma beleza incomum. Tão logo a viram, mãe, filha e as duas Talib ficaram enciumadas. Rânia, humilhada, nem esperou o
momento do parabéns: retirou-se para o quarto sem os costumeiros elogios de outros anos. As Talib dançaram, mas tiveram os
movimentos sensuais obscurecidos pela dança inesperada de Dália, com direito a beijo teatral de Omar no final. Zana não quis
parabéns, não se importou com o bolo. Todos se retiraram, e as duas rivais começaram a recolher as coisas da mesa. Omar estava
deitado na rede, lá fora. De repente, Zana cochichou alguma coisa no ouvido de Dália. Foi a gota d`água. Ela se retirou batendo a porta,
e Omar foi atrás dela.
PLANO DE ZANA -Para separa Omar de Dália, Zana tentou convencer o filho doutor a hospedar o filho farrista. "Ele quer se
enganchar com uma sirigaita da Maloca, uma dançarina que se exibiu na noite do meu aniversário. Se ele não passar um tempo em São
Paulo, vai abandonar tudo: os estudos, a casa, a família", escreveu ao engenheiro. Mas Yaqub negou abrigo ao irmão: não ia permitir
que o irmão dormisse sob o seu teto. "Que ele encontre o caminho dele, mas longe de mim, muito longe da minha seara."
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VINGANÇA DE ZANA - Por intermédio do narrador, Zana ofertou dinheiro às tias de Dália, e a moça desapareceu de Manaus. "Dália
sumiu da Maloca dos Barés, da casa na Vila Saturnino, da cidade. Só assim o caçula retornou ao lar: sem camisa e bêbado.
VIAGEM PARA SÃO PAULO -Omar foi obrigado a viajar para São Paulo. "Ele viajou dando coices no ar, rebelde, enraivecido.
Foram seis meses de quietude na casa, de alívio para Halim. Os livros do Caçula, romances e poemas que ele lia na rede, caíram nas
minhas mãos. Os livros, os cadernos, as canetas, tudo, menos o quarto, que era só dele, só para ele."
DOMINGAS SAUDOSA -Domingas, todos os dias, limpava os quartos vazios dos gêmeos. Detinha-se em ambos, admirando o
excesso de trastes de um e a falta de objetos supérfluos de outro. O narrador achava que a mãe admirava aquele contraste.
O NARRADOR NO GALINHEIRO -Graças à ajuda de Halim, o narrador ingressou no Galinheiro dos Vândalos. "No liceu havia
vestígios do Caçula: ex-namoradas, histórias de algazarra, de cenas heróicas, duelos, desafios. Nas paredes do banheiro havia inscrições
de sua autoria. Por onde passava, deixava um gesto ousado, de valentia, ou um epigrama qualquer, palavras de humor e ironia."
OMAR SUMIU? -Este capítulo termina com o desaparecimento de Omar da pensão onde morava, em São Paulo. Depois de comprovar
que o irmão desaparecera misteriosamente, Yaqub decidiu não informar logo os familiares de Manaus. Havia a esperança de que ele
reaparecesse de repente.

Capítulo 5

VISITA DE YAQUB - Pela primeira vez, desde que se fora para São Paulo, Yaqub vinha visitar a família. Quando o narrador soube
que ele ia chegar, sentiu uma coisa estranha. Se ele fosse seu pai, então seria filho de um homem quase perfeito. Foram quatro dias de
visita que aumentaram as dúvidas do narrador. Ele e Yaqub passearam pela cidade, visitaram lugares que acendiam a memória do
visitante, mas ele nada de substancial revelou sobre o relacionamento com Domingas.
A VERDADE SOBRE OMAR - Yaqub não contou a verdade para todos. Contou-a só para o pai, sentados à mesa de um boteco. "O
Caçula enviou o primeiro cartão-postal de Miami; depois enviou outros, de Tampa, Mobile e Nova Orleans, contando suas farras e
peripécias em cada cidade. Yaqub rasgara todos os postais menos um, que entregou ao pai: "Queridos mano e cunhada, Louisiana é a
América em estado bruto e mesmo brutal, e o Mississipi é o Amazonas desta paragem. Por que não dão uma voltinha por aqui? Mesmo
selvagem, Louisiana é mais civilizada que vocês dois juntos. Se vierem, tratem de pintar o cabelo de loiro, assim vão ser superiores em
tudo. Mano, a tua mulher, que já foi bonita, pode rejuvenescer com o cabelo dourado. E tu podes enriquecer muito, aqui na América.
Abraços do mano e cunhado Omar".
FUGA ESPETACULAR -Omar roubara o passaporte do irmão, roupas e algum dinheiro (oitocentos e vinte dólares) e partira para os
Estados Unidos. Quem facilitou a entrada do irmão em casa foi a empregada. Mais ainda: Omar descobriu que a esposa secreta do
irmão era Lívia, aquela que provocara a primeira briga séria entre os gêmeos. Aproveitou a ausência do irmão e desenhou obscenidades
no álbum de casamento.
A AJUDA DE YAQUB -Em São Paulo, as coisas melhoraram muito para Yaqub. Ele mandou móveis novos para os pais e dinheiro
para reformar a casa e a loja. O narrador e Rânia participaram ativamente das reformas, trabalhando de verdade. "Depois da reforma,
Rânia tomou mais gosto pela loja. Mandava e desmandava, cuidava do caixa, do estoque e das dívidas dos caloteiros. Acabou de vez
com a venda a fiado, "uma filantropia que não combina com o comércio".
INDIFERENÇA DE OMAR -Omar mostrava-se indiferente à revolução que o dinheiro do irmão vinha operando na casa e nos negócios
dos pais. Continuava boêmio e malandro, tendo a ajuda velada da mãe.
MUDANÇA BRUSCA - Omar, misteriosamente, mudou de vida: dormia regularmente, acordava cedo e ia trabalhar. Bem vestido,
ganhou ares de executivo. A mudança provocou comentários e desconfianças em casa e fora ela. Alguns apostavam em amor novo. A
mãe dele não acreditava na hipótese. O Caçula dizia que estava trabalhando num banco britânico.
MÃE-DETETIVE -Zana, desconfiada do comportamento de Omar, partiu para a pesquisa. O emprego no banco era uma farsa. O inglês
com quem o filho andava, um contrabandista. E havia uma mulher. Com a ajuda de Zanuri, a mãe descobriu tudo. Ela tinha o apelido de
Pau-Mulato porque era grande e escura.
DESPEDIDA GROSSEIRA -Omar preparou-se para deixar a casa dos pais e viver com a Pau-Mulato. A despedida foi agressiva: "A
senhora tem o outro filho, que só dá gosto e tem bom posto. Agora é a minha vez de viver... Eu e a minha mulher, longe da senhora..."
Ergueu a cabeça e gritou para o pai: "Longe do senhor também, longe dessa casa... de todos. Não venham atrás de mim, não adianta...".

Capítulo 6

HALIM x AZAZ - Azaz, um desocupado, andou espalhando calúnias sobre Halim: que ele tinha filhos com as índias, com a de casa
(referia-se a Domingas) e com outras. Halim marcou um duelo em praça pública -era moda na época. A luta foi sangrenta: Azaz com
uma navalha, Halim com uma corrente. Os dois saíram feridos, mas Halim venceu.
BUSCA INCESSANTE -Omar e a Pau-Mulato sumiram de vez. Primeiro, a procura da mãe; depois, de Halim. Todos os esforços
fracassaram. O casal desapareceu. O faro do Perna-de-Sapo desfez o mistério. Os dois moravam em um barquinho, no porto da
Escadaria, viviam da pesca e dos donativos dos ribeirinhos. "Ela, a Pau-Mulato, dando uma de cartomante, lendo a mão calosa dos
ribeirinhos, recebendo farinha e moedas em troca de destinos fantasiosos."
FÚRIA DE OMAR -Quando Omar descobriu que o pai, por meio do Perna-de-Sapo, conseguiu localizá-lo, ficou furioso. Com uma
corrente nas mãos, destruiu espelhos, quebrou móveis, rasgou fotografias. Acusava o pai e mãe de culpados. Halim não estava em casa.
Omar xingou a mãe, a irmã, o narrador (filho duma égua, interesseiro, puxa-saco de Halim). O narrador, já adulto, preparou-se para
uma briga de vida ou morte, mas Omar foi amolecendo até ser totalmente dominado por Zana.
DESABAFO DE HALIM -Halim desabafou todas as mágoas ao narrador. Punha a culpa de tudo que aconteceu à esposa. Zana, aos
poucos, foi dominando Omar, sugando-lhe alma e coração, deixando-o dependente dela. Até o amor pelo marido e os momentos de
prazer foram substituídos por essa atenção doentia dedicada ao Caçula. Omar tornara-se, com o passar do tempo, o arqui-rival de
Halim.

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Capítulo 7

PRISÃO E MORTE DE LAVAL -O professor Laval (poeta cujos versos estavam espalhados pelas mãos dos alunos do Liceu Rui
Barbosa) foi preso por soldados do Exército em plena praça pública. "Foi humilhado no centro da praça das Acácias, esbofeteado como
se fosse um cão vadio à mercê da sanha de uma gangue feroz". Dois dias depois, o professor estava morto.
O RETORNO INESPERADO DE YAQUB -Sem prévio aviso, Yaqub retornou a Manaus. Domingas foi acolhê-lo e, na visão do
narrador, o abraço entre os dois foi o mais demorado daquela casa. Ele estava expansivo, cheio de intimidades com Domingas, e várias
vezes pronunciou o nome do narrador.
DOIS DOENTES: ATENÇÕES DIVIDIDAS -Omar e o narrador adoeceram a um só tempo por causa da morte do professor Laval.
Zana dedicou atenções ao Caçula; Domingas, Yaqub e Halim ficaram à cabeceira do narrador que, naquela época, alcançava a
maioridade. Quando a doença cedeu, Yaqub já tinha viajado para São Paulo.
RÂNIA E O NARRADOR -Certo sábado, Rânia convocou o narrador para uma faxina geral no depósito da loja. Ele atendeu
prontamente. Coisas velhas pertencentes ao pai foram jogadas fora. "Ela agia com uma determinação feroz, consciente de que estava
enterrando um passado." Já era tarde da noite, e os dois continuavam trabalhando. "Quando Rânia se curvou para abrir uma caixa de
lençóis, vi os seios dela, morenos e suados, soltos na blusa branca sem mangas. Rânia demorou nessa posição, e eu fiquei paralisado ao
vê-Ia assim, recurvada, os ombros, os seios e os braços nus. Quando ela se ergueu, me olhou por uns segundos. Os lábios se moveram e
a voz manhosa sussurrou, lentamente: "Vamos parar?". Ela ofegava. E não se esquivou do meu corpo nem evitou meu abraço, meus
afagos, os beijos que eu desejava fazia tanto tempo. Pediu que eu apagasse a luz, e passamos horas juntos naquele suadouro. Aquela
noite foi uma das mais desejadas da minha vida."
OMAR COM GONORRÉIA - O caçula agora demonstrava traços de sandice. Passava os dias no quintal, catando folhas e frutas podres,
podando galhos de árvores, arrancando ervas-daninhas. Certa vez, quando foi urinar, soltou urros aterradores. Descobriram que estava
com gonorréia.
OS PASSEIOS DE HALIM -Halim saía por aí, sem rumo certo, andando de rua em rua, de bar em bar, e o narrador tinha que lhe seguir
os passos a pedido de Zana. Halim não se escondia: queria apenas andar. Quando voltava, contava histórias desencontradas: confundia
quem se mudara com quem já morrera.
A MORTE DE HALIM -Os passeios eram rotineiros, mas Halim sempre voltava para casa. Numa noite de dezembro, véspera de Natal,
ele sumiu de verdade. O narrador esgotou todas as opções para encontrá-lo e voltou sozinho. Naquela noite, ninguém dormiu, todos
preocupados com o sumiço de Halim. De manhã cedo, ele estava no sofá da sala, "calado, para sempre". A reação mais estranha diante
do morto foi de Omar. Gritava com o pai, queria enfrentá-lo, humilhava-o com palavras, o dedo em riste apontado para o rosto do
morto. O narrador teve que arrastar o filho possesso para o quintal.

Capítulo 8

O APARECIMENTO DE ROCHIRAM -Omar apareceu em casa com um indiano. Chamava-se Rochiram. Dizia-se construtor de hotéis
pelo mundo. Domingas antipatizou com ele à primeira vista. Zana, aos poucos, foi ficando íntima do amigo do filho.
CARTA PEDINDO PERDÃO -Zana viu no indiano a oportunidade de aproximar os dois gêmeos. Era o que ela mais queria na vida.
Rochiram ia construir um hotel, Yaqub podia participar do projeto e Omar ajudá-lo-ia. Por intermédio do narrador, fez uma carta para o
filho de São Paulo: pedia-lhe perdão e compreensão. Queria que ele fizesse as pazes com Omar. A resposta veio, mas não deixou Zana
animada. Yaqub interessou-se pela construção do hotel, mas não se mostrou interessado em fazer as pazes com Omar. Quando o caçula
soube do plano, ficou colérico.
A AGRESSÃO DE OMAR -Yaqub retornou a Manaus, mas ficou hospedado em um hotel. Certo dia, foi a casa rever Domingas e o
narrador. Omar voltou de repente e, sem aviso, começou a esmurrar o rosto de Yaqub e a dar-lhe chutes. O narrador interveio, mas não
conseguiu evitar a agressão. Antes de sair, Omar rasgou o projeto que o irmão deixou sobre a mesa.
O ESTRAGO DA AGRESSÃO -Domingas acompanhou Yaqub até o hospital. "Disse que o estado de Yaqub não era grave: a mão
esquerda, sim, em frangalhos, dois dedos fraturados. Ia perder uns três dentes, o rosto estava irreconhecível, ele sentia dores terríveis
nas costas e nos ombros. Pedira a Domingas que calasse o bico, que inventasse, dissesse a Zana: "O teu filho teve de viajar às pressas
para São Paulo".

Capítulo 9

CENAS DO PASSADO - Domingas resolve contar ao narrador detalhes do nascimento dele. "Quando tu nasceste", ela disse, "seu
Halim me ajudou, não quis me tirar da casa... Me prometeu que ias estudar. Tu eras neto dele, não ia te deixar na rua. Ele foi ao teu
batismo, só ele me acompanhou. E ainda me pediu para escolher teu nome. Nael, ele me disse, o nome do pai dele. Eu achava um nome
estranho, mas ele queria muito, eu deixei..." Domingas revelou ao filho que, numa determinada noite, Omar chegara bêbado, entrara no
quarto dela e estuprara-a.
A SEMIDEMÊNCIA DE ZANA -Depois que Omar sumiu, Zana passou a confundir as coisas. Vivia uma semidemência de dar tristeza.
Desafiava os amigos, incitava-os a ir procurar o seu Caçula.
A MORTE DE DOMINGAS -Certa vez, a mãe do narrador não estava no quarto. Ele foi encontrá-la no quarto de Omar, embrulhada
com a própria rede. "Vi o corpo que oscilava lentamente, comecei a chorar. Sentei no chão ao lado dela e fiquei ali, aturdido, sufocado.
Durante o tempo que a contemplei, no vaivém da rede, rememorei as noites que dormimos abraçados no mesmo quartinho que fedia a
barata." O corpo de Domingas foi enterrado ao lado do de Halim, no jazigo da família.

Capítulo 10

O AMOR PELA CASA -Rânia comprou um bangalô em um dos bairros ao norte de Manaus. Zana resistiu: "nunca sairia da casa dela,
nem morta deixaria as plantas, a sala com o altar da santa, o passeio matutino pelo quintal. Não queria abandonar o bairro, a rua, a

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paisagem que contemplava do balcão do quarto. Quando Rânia chegava da loja, a mãe se precipitava em dizer: "Podes ir para o teu
bangalô, eu não arredo pé daqui".
MUDANÇA DEFINITIVA -Um dia, Rânia partiu, "deixou a casa e seu quarto. Toda manhã, a caminho da rua dos Barés, visitava a
mãe. Dizia-lhe: "O bangalô está um brinco, mama. O teu quarto é o mais espaçoso, tem um quintalzinho para os animais, as plantas, e
uma varandinha para estender a rede...".
AS CONFISSÕES DE ZANA -Agora, moravam no casarão apenas o narrador e Zana. Ela, aos poucos, foi-lhe confidenciando segredos
que poucos sabiam. Antes de vir para o Brasil, o nome dela era Zeina. Às vezes, delirava, falando do filho ausente: "Por que essa
demora, querido? Por quê? Os outros já foram embora, agora só estamos nós em casa, nós dois...".
A PERDA DA CASA -Rochiram reapareceu e fez a proposta final: "a dívida dos dois irmãos em troca da casa de Zana. No entanto,
surpreendeu-se quando ele acrescentou: "Seu irmão, o engenheiro, está plenamente de acordo". As coisas foram tiradas, e a casa ficou
vazia. Zana mudou-se para o bangalô da filha, e o narrador ficou sozinho.
ADEUS TRISTE -Zana, braço engessado, voltou à casa vazia onde restava apenas o narrador. A filha trouxe-a, pedindo a Nael que
cuidasse dela na sua ausência. Nael distraiu-se, e Zana sumiu. Encontraram-na deitada no galinheiro, o braço doente meio arroxeado.
Foi uma luta para colocá-la num carro: não queria abandonar a casa. "Ela chorou, como se sentisse uma dor terrível. Nunca mais voltou.
Deitou-se em outro quarto, longe do porto, no lar que não era para ela."
MORTE DE ZANA -"Depois eu soube da hemorragia interna, e ainda a visitei numa clínica no bairro de Rânia. Ela me reconheceu,
ficou me olhando. Então soprou nomes e palavras em árabe que eu conhecia: a vida, Halim, meus filhos, Omar. Notei no seu rosto o
esforço, a força para murmurar uma frase em português, como se a partir daquele momento apenas a língua materna fosse sobreviver.
Mas quando Zana procurou minhas mãos, conseguiu balbuciar: Nael... querido..."

Capítulo 11

CASA ROCHIRAM -O casarão foi reformado e descaracterizado. A noite de inauguração da Casa Rochiram "foi uma festa de
estrondo, e na rua uma fila de carros pretos despejava políticos e militares de alta patente. Diz que veio gente importante de Brasília e
de outras cidades, íntimos de Rochiram."
HERANÇA PARA NAEL -"No projeto da reforma, o arquiteto deixou uma passagem lateral, um corredorzinho que conduz aos fundos
da casa. A área que me coube, pequena, colada ao cortiço, é este quadrado no quintal. `Tua herança`, murmurou Rânia."
PERSEGUIÇÃO A OMAR -"Rânia, aos poucos, foi descobrindo que o irmão distante havia calculado o momento adequado para agir.
Yaqub esperou a mãe morrer. Então, com truz de pantera, atacou." Omar tentava fugir ao cerco da justiça e ia contraindo dívidas para a
irmã pagar. Até que sumiu de vez.

Capítulo 12

REENCONTRO COM OMAR -Depois de muitas buscas vãs, Rânia avistou Omar na praça das Acácias. "Ficou paralisada. Estava
magro, meio amarelão, barba de uma semana, o cabelo crespo com jeito de juba. Os braços cheios de arranhões, a testa avolumada por
calombos. Os olhos fundos e acesos davam a impressão de um ser à deriva, mesmo sem ter perdido totalmente a vontade ou a força de
recuperar uma coisa perdida."
PRISÃO VIOLENTA -"Rânia não teve tempo de se aproximar dele." Ouviu estampidos, viu pessoas correrem: eram três policiais, e
logo cinco, muitos. Uma caçada. Viu o Caçula levar uma coronhada no rosto, cair de costas e ser arrastado até a viatura. "Rânia correu
ao encontro do irmão, viu no rosto dele um fio vermelho e grosso que a água não apagava. Discutiu com os policiais, quis saber aonde
iam levá-lo, foi repelida brutalmente. No presídio, ele passou algumas semanas incomunicável."
A CONDENAÇÃO -"Omar foi condenado a dois anos e sete meses de reclusão. Não podia sair, não teve direito à liberdade
condicional. "Só osso e pelanca... Meu irmão não parece humano", contou Rânia, chorando.
ROMPIMENTO COM YAQUB -Rânia escreveu a Yaqub para dizer-lhe o que ninguém ousara dizer. "Lembrou-lhe que a vingança é
mais patética do que o perdão. Já não se vingara ao soterrar o sonho da mãe? Escreveu que ele, Yaqub, o ressentido, o rejeitado, era
também o mais bruto, o mais violento, e por isso podia ser julgado. Ameaçou desprezá-lo para sempre, queimar todas as suas
fotografias e devolver as jóias e roupas que ganhara, caso ele não renunciasse à perseguição de Omar. Cumpriu à risca as ameaças,
porque Yaqub calculou que o silêncio seria mais eficaz do que uma resposta escrita."
NAEL SOZINHO -O narrador afastou-se de Rânia. "Eu não queria. Gostava dela, era atraído pelo contraste de uma mulher assim, tão
humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa ao mesmo tempo. As lembranças da noite que passamos juntos, o ardor daquele
encontro ainda me davam arrepios. Mas ela se ressentiu de mim, ofendeu-se com a minha omissão, com o meu desprezo pelo irmão
encarcerado. No fundo, sabia o que eu remoia, o que me comia por dentro. Devia ter conhecimento do que Omar fizera com a minha
mãe, de todos os agravos a nós dois. Parei de trabalhar com ela, nunca mais escrevi cartas comerciais, nem saí correndo para limpar
boca-de-lobo, empilhar caixas, vender coisas de porta em porta. Me distanciei do mundo das mercadorias, que não era o meu, nunca
tinha sido."
OMAR LIVRE -"Omar deixou o presídio um pouco antes de cumprir a pena. Saiu à custa dos níqueis acumulados por Rânia. Talib o
encontrou uma vez, e diz que só falava na mãe. Chorou, com desespero, quando o viúvo quis acompanhá-lo até o cemitério para visitar
o túmulo de Zana."
TENTATIVAS INÚTEIS - Rânia fez de tudo para se aproximar de Omar, mas ele fugia da irmã e de todos os vizinhos. "Durante uns
meses ainda foi visto aqui e ali, perambulando à noite pela cidade. Os malabarismos que Rânia fez para enviar-lhe dinheiro, tentando
atraí-lo, reconquistá-lo. Sonhava com a presença do irmão em sua casa, o quarto onde a mãe dormira seria destinado a ele."
AS CARTAS DE YAQUB PARA NAEL -As cartas de Yaqub nunca falavam de Omar e de Rânia. Cobravam a visita de Nael a São
Paulo. "Por mais de vinte anos adiei a visita. Não quis ver o mar tão prometido. Lembrava -ainda me lembro -dos poucos momentos em
que eu e Yaqub estivemos juntos, da presença dele no meu quarto, quando adoeci. Mas bem antes de sua morte, há uns cinco ou seis
anos, a vontade de me distanciar dos dois irmãos foi muito mais forte do que essas lembranças."

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PATERNIDADE -"Hoje, penso: sou e não sou filho de Yaqub, e talvez ele tenha compartilhado comigo essa dúvida. O que Halim
havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos. Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os
pesadelos pertencem a nós mesmos."
ÚLTIMO ENCONTRO -Depois que Omar saiu do presídio, houve um último encontro entre ele e Nael, o narrador. O Caçula foi
procurá-lo no quartinho, o mesmo quarto dos fundos da casa de outrora. "Omar veio avançando, os pés descalços no aguaçal. Um
homem de meia-idade, o Caçula. E já quase velho. Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse a desonra, a humilhação.
Uma palavra bastava, uma só. O perdão." "Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a
chuva e a janela, para além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi
embora."

BIBLIOGRAFIA:
Katrym Aline Bordinhão dos Santos (PG - UFPR) - O romance moderno em dois irmãos de Milton Hatoum
Juliane Vargas Welter – A terceira Margem (ou a vingança de Nael): aspectos do romance “Dois irmãos”, de Milton Hatoum. (Porto
Alegre, 2007. UFRS)
Júlio Cezar Pereira de Assis – A casa libanesa e o universo manaura: uma leitura topoanalítica da obra dois irmãos, de Milton Hatoum.
Daniela Birman - Irmãos inimigos: duplos em Machado e Hatoum -
Aíla Sampaio, do Curso de Letras da Unifor. - Dois Irmãos: incesto, rejeição e rivalidade
Eneile Santos Saraiva - O regionalismo e suas faces: uma análise de Vidas secas e Dois irmãos.
http://guiadoestudante.abril.com.br/estude/literatura/materia_419529.shtml

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