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MULHERES

E FEMINISMO
HISTÓRIA E DESAFIOS

Daniele de Andrade Ferrazza


Hilusca Alves Leite
(Org.)
A proposta deste livro é
trazer diferentes temá-
ticas e reflexões que
afetam a luta feminista,
cotejando desde os
enfrentamentos históri-
cos que dão às mulhe-
res o protagonismo na
condução e decisão da
própria existência,
passando pelas discus-
sões que remetem a
necessidade de se
entender o machismo e
o patriarcado pelo viés
da estrutura racista e
homofóbica que
também o sustenta,
culminando com a
necessidade de enten-
dermos a saúde mental
das mulheres como um
aspecto intrinsecamen-
te relacionado ao modo
de vida que lhes é
possibilitado. Espera-
mos que os trabalhos,
que aqui se apresen-
tam, sirvam de inspira-
ção para que esta luta
cresça mais e mais.
MULHERES
E FEMINISMO
HISTÓRIA E DESAFIOS
Conselho Editorial
Presidente - José Artur Molina
Ângela Soligo
Gisele Mendes de Carvalho
João Paulo Marin
Leonor Dias Paini
Luis Guilherme Coelho Buchianeri
Luiz Fernando Gomes Corazza
Marco Antônio Rotta Teixeira
Marcos Leandro Klipan
Marcos Paulo Shiozaki
Maria Nadeje Pereira
Mariana Moran Barroso
Meyre Eiras
Rogério Toshiro Passos Okawa
Vinícius Romagnolli Gomes
Willian Antonio Borges
MULHERES
E FEMINISMO
HISTÓRIA E DESAFIOS
Daniele de Andrade Ferrazza
Hilusca Alves Leite
(Org.)

Maringá / 2022
MULHERES E FEMINISMO: história e desafios

ISBN 978-65-994871-9-4 (impresso)


ISBN 978-65-84922-00-6 (e-book)
DOI https://doi.org/10.33872/edufatecie.mulheresefeminismo

Copyright© 2022 by
Daniele de Andrade Ferraza
Hilusca Alves Leite

Todos os direitos para a língua portuguesa reservados pela editora. Qualquer parte desta publicação
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Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Direção Geral
Maria Goreti Sposito

Editor
José Artur Molina

Diretor Editorial
Marcelo Costa

Diagramação
Lorena Gonzalez Donadon Leal

Obra da capa
Faifi
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Mulheres e feminismo : história e desafios /


organização Daniele de Andrade Ferrazza ,
Hilusca Alves Leite. -- 1. ed. -- Maringá, PR :
Perfil Consultoria, 2022.

Bibliografia.
ISBN 978-65-994871-9-4

1. Empoderamento 2. Feminismo 3. Mulheres -


Aspectos sociais 4. Mulheres - Aspectos
psicológicos 5. Mulheres - Direitos 6. Saúde da
mulher I. Ferrazza, Daniele de Andrade. II. Leite,
Hilusca Alves.

22-112988 CDD-305.42
Índices para catálogo sistemático:

1. Mulheres : Aspectos sociais : Sociologia 305.42

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129


Perfil Editora Ltda.
CNPJ 35.411.993/0001-79
Avenida João Paulino Vieira Filho, 672, 3o andar, sala 306 - Zona 1
CEP 87.020-015 / Maringá-PR
contato@iperfileditora.com.br
Com esta história eu vou me sensibilizar,
e bem sei que cada dia é um dia roubado da morte.
Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo.
E o que escrevo é uma névoa úmida.
As palavras são sons transfundidos de sombras
que se entrecruzam desiguais, estalactites,
renda, música transfigurada de órgão.
Mal ouso clamar palavras a essa rede
vibrante e rica, mórbida e obscura
tendo como contrato o baixo grosso da dor.
Alegro com brio. Tentarei tirar ouro do carvão.
Sei que estou adiando a história
e que brinco de bola sem a bola.
O fato é um ato?
Juro que este livro é feito sem palavras.
É uma fotografia muda.
Este livro é um silêncio.
Este livro é uma pergunta.

Clarice Lispector, A Hora da Estrela


Sumário

Apresentação 8

CAPÍTULO 1 14
ENÕRÃIRÕ KUÑA HÁICHA. SOMOS MAIS QUANDO
ESTAMOS TODAS
Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini

CAPÍTULO 2 28
FEMINISMO EM SEUS MOVIMENTOS DE LUTA E
RESISTÊNCIA CONTRA A NORMALIZAÇÃO DO CORPO
FEMININO E A DESIGUALDADE DE GÊNERO
Daniele de Andrade Ferrazza

CAPÍTULO 3 57
FEMINISMO MARXISTA: UTILIZANDO O MATERIALISMO
HISTÓRICO PARA ANALISAR AS MÚLTIPLAS
ESPOLIAÇÕES PELAS QUAIS PASSAM AS MULHERES
Bianca Valoski

CAPÍTULO 4 92
MULHERES NA REVOLUÇÃO RUSSA: O FEMINISMO
MARXISTA E A LUTA PELA EMANCIPAÇÃO
Nataly Batista de Jesus
CAPÍTULO 5 110
RELAÇÃO SAÚDE DOENÇA NO CONTEXTO CAPITALISTA:
UMA LEITURA DE GÊNERO
Tamires Lombardi Mezzon
Hilusca Alves Leite

CAPÍTULO 6 132
PSIQUIATRIZAÇÃO DO CORPO DA MULHER E
A RESISTÊNCIA FEMINISTA NA LUTA PELO CUIDADO
EM SAÚDE MENTAL
Daniele de Andrade Ferrazza
Mariana Frediani Sant’Ana

CAPÍTULO 7 155
AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DAS MULHERES
NA MÍDIA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DOS ANOS
2000 A 2018
Débora Nicolau de Oliveira
Deborah Karolina Perez

SOBRE AS AUTORAS 177


Apresentação

Eles combinaram de nos matar,


mas nós combinamos de não morrer.
Conceição Evaristo

O presente livro é fruto de discussões que se iniciaram em 2019,


nos encontros do grupo de estudos e pesquisas Feminismo, Saúde
Mental e Gênero do Departamento de Psicologia da Universidade Es-
tadual de Maringá (UEM). A partir do desejo de debater temas diversos
relacionados ao feminismo, organizamos um curso de extensão que
reuniu pesquisadoras convidadas a promoverem reflexões junto a ou-
tras mulheres participantes, interessadas nos estudos feministas. A
necessidade de realização desse tipo de atividade no formato on-line
no difícil ano pandêmico de 2020, por um lado, impossibilitou o con-
tato físico, a troca de ideias de maneira mais próxima e direta; porém,
por outro, possibilitou que o evento contasse com participantes dos
mais diversos cantos do país. Saber da possibilidade de compartilhar
saberes com tantas pessoas vindas de tantos lugares e com tantas
expectativas diferentes, certamente serviu de estímulo para a organi-
zação do trabalho que ora apresentamos. Este livro, portanto, é fruto
de um trabalho tecido a várias mãos, e surge no contexto do isola-
mento social, necessário à contenção da proliferação do coronavírus
que nos obrigou ao distanciamento físico, mas nos proporcionou, no
espaço virtual, aproximações em encontros afetuosos, permeados por
debates calorosos sobre os desafios e enfrentamentos feministas.
Mulheres e feminismo: história e desafios

Trata-se, portanto, de um momento no qual as mobilizações de


lutas por direitos se fazem ainda mais importantes na atualidade bra-
sileira, marcada por um governo ultraconservador que tem deixado
marcas explícitas de descaso para com a classe trabalhadora, além
de fomentar discursos de ódio e violência contra populações oprimi-
das. Em outras palavras, ainda que a conquista de direitos, alcançados
por meio de inúmeros movimentos de resistência, tenham se consti-
tuído como importante marco no contexto brasileiro, principalmente
no período após os anos sombrios de ditadura militar no país (Cecí-
lia COIMBRA; Maria Lívia NASCIMENTO, 2009)1, práticas normativas e
ações discriminatórias e excludentes, caracterizadas pela violação de
direitos humanos, não são exceções nas relações interpessoais e nos
contextos político-institucionais (COIMBRA et. al., 2008). Mais espe-
cificamente, as ameaças governamentais aos direitos de trabalhado-
ras e trabalhadores e o desmonte de importantes políticas públicas no
campo da saúde, assistência social e educação são características da
atualidade governamental, que tem culminado na intensificação das
desigualdades sociais e na maior miserabilidade da população bra-
sileira (Victoria DAMASCENO, 2021). Além disso, o conservadorismo
que fundamenta tais políticas impede a expansão de debates sobre
os direitos das mulheres, e os retrocessos marcam a dificuldade de
implementação e financiamento de diversas políticas públicas dire-
cionadas à população feminina e, mais especificamente, ao combate
da violência de gênero (Flávia BIROLI, 2019).
Na vanguarda dos retrocessos, o Brasil, em aliança com outros
poucos países, causou indignação no Conselho de Direitos Humanos
da Organização das Nações Unidas (ONU) no ano de 2021. Na reunião
de março, mês de alusão ao Dia Internacional da Mulher, representan-
tes brasileiros deixaram de assinar o documento que prevê garantias
de direitos das mulheres e propõe avanços na igualdade de gênero. A
declaração, que foi assinada por mais de 60 países, apresentava pro-

1 Por se tratar de uma obra sobre os Estudos Feministas, optou-se por utilizar o nome por
completo das autoras sempre que for a primeira vez em que aparecem nos respectivos
capítulos desta obra. Com esta prática intentamos dar visibilidades às mulheres autoras/
pesquisadoras.

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Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

postas que vão desde o combate à violência contra a mulher aos en-
frentamentos quanto aos retrocessos de direitos sobre a saúde sexual
e reprodutiva de mulheres e meninas, principalmente no contexto pan-
dêmico mundial. Evidenciando o conservadorismo machista e misógi-
no arraigado no governo de Jair Bolsonaro, o Ministério das Relações
Exteriores, em nota, alegou que expressões consideradas “ambíguas”,
como direitos sexuais e reprodutivos, impediram o apoio brasileiro à
declaração da ONU (CHADE, 2021). Distanciando-se de outros países
do mundo, representantes governamentais brasileiros seguem com as
estratégias contrárias a apoiar compromissos internacionais que vi-
sam à garantia de direitos femininos, preocupações recentes da ONU
Mulher (2020), sob a alegação de que os termos direitos sexuais e re-
produtivos estão relacionados ao apoio a práticas abortivas. Estamos
vivenciando a terceira década do terceiro milênio, e ser mulher neste
país significa não ter, portanto, liberdade de escolha sobre seu próprio
corpo, sobre suas próprias vontades. Essas são as características de
um governo de direita no país, que desde 2018 prolifera discursos e
práticas antifeministas marcadas por declarações que apresentam vi-
sões estereotipadas do feminismo e das feministas, mostram a dimi-
nuição das lutas e defesas pelos direitos das mulheres e apresentam,
em diversos enunciados discursivos, uma compreensão distorcida
sobre a noção de gênero (Bruna AGUIAR; PEREIRA, 2019).
Nesse contexto, o livro Mulheres e feminismo: história e de-
safios se propõe a apresentar, nas diferentes perspectivas adotadas
pelas autoras, discussões sobre as movimentações feministas de
suas trajetórias históricas aos debates contemporâneos. Pretende,
também, sensibilizar e mobilizar mulheres em diferentes contextos
para uma única luta relacionada aos enfrentamentos contra relações
patriarcais, machistas e falocêntricas que reproduzem violências de
gênero e impedem a igualdade de direitos de mulheres na contempo-
raneidade brasileira (Margareth RAGO; PELEGRINI, 2019).
Assim, o primeiro capítulo, escrito por Bárbara Cossettin Costa
Beber Brunini, intitulado ENÕRÃIRÕ KUÑA HÁICHA: somos mais quan-
do estamos todas, é uma carta-convite a aventurar-se pelos debates

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Mulheres e feminismo: história e desafios

feministas, no reconhecimento da potência das narrativas na inter-


seccionalidade decolonial e propondo linhas de fuga às maquinarias
que aniquilam a existência feminina.
Na sequência, o segundo capítulo Feminismo em seus movi-
mentos de luta e resistência contra a normalização do corpo feminino
e a desigualdade de gênero, Daniele de Andrade Ferrazza propõe uma
análise histórica da constituição dos processos de controle e norma-
lização do corpo da mulher. Além disso, destaca os atuais desafios
das mobilizações feministas interseccionais e decoloniais de luta pela
igualdade de gênero e pela possibilidade de produção de novas for-
mas de subjetivação feminina.
No terceiro capítulo, Feminismo marxista: utilizando o mate-
rialismo histórico para analisar as múltiplas espoliações pelas quais
passam as mulheres, Bianca Valoski salienta que, apesar das inúme-
ras discussões atuais sobre o feminismo, a condição da mulher se
deteriora nos últimos anos, devido aos ajustes econômicos. E recor-
re ao feminismo marxista para tratar da acumulação originária sobre
corpos femininos explorados no trabalho produtivo e reprodutivo.
Seguindo a linha de discussão na perspectiva marxista, Nataly
Batista de Jesus explora, no capítulo intitulado Mulheres na Revolu-
ção Russa: o feminismo marxista e a luta pela emancipação, o papel
das mulheres russas no período pré-revolucionário, para compreen-
der o processo de emancipação e conquistas de direitos das mulheres
revolucionárias.
Pautadas no materialismo histórico de constituição e desenvol-
vimento de sujeitos, expresso pela Psicologia Histórico-Cultural, Tami-
res Lombardi Mezzon e Hilusca Alves Leite abordam a noção de saúde/
doença do corpo feminino. No trabalho realizado pelas autoras, Relação
saúde-doença no contexto capitalista: uma leitura de gênero, enfatiza-
-se como a sobrecarga do trabalho produtivo e reprodutivo impacta a
constituição subjetiva de mulheres, o que pode implicar sofrimentos fí-
sicos e psíquicos e culminar na determinação de diagnósticos médicos
e intervenções medicamentosas.
Na esteira desse debate, Daniele de Andrade Ferrazza e Mariana

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Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

Frediani Sant’Ana, em Psiquiatrização do corpo da mulher e a resis-


tência feminista na luta pelo cuidado em saúde mental, analisam o
fenômeno de psiquiatrização do corpo feminino em sua constituição
histórica. As pesquisadoras apresentam reflexões sobre a resistência
feminista em suas intersecções de raça, classe social e gênero, para
o enfrentamento dos processos de medicalização da vida e promoção
de cuidado e atenção para com a Saúde Mental de mulheres.
Finalizamos com a apresentação do sétimo capítulo, de autoria
de Débora Nicolau de Oliveira e Deborah Karolina Perez, que discutem
As representações sociais das mulheres na mídia brasileira: uma aná-
lise dos anos 2000 e 2018. Atentas ao movimento feminista brasileiro
e latino-americano, as autoras discutem como as revistas brasileiras
Manequim, Vogue Brasil e Marie Claire construíram representações so-
ciais da mulher brasileira e influenciaram as mulheres no século XXI.
Esperamos, com a proposta de coletânea que aqui apresenta-
mos, somar forças a outras produções acadêmicas sobre os estudos
feministas e influenciar reflexões entre leitoras e leitores dispostos a
compor conosco a constituição de enfrentamentos ao massacre de
direitos que vivenciamos nestes tempos sombrios. Momento no qual
forças de direita e ultradireita, não só no Brasil, mas em outros países
no mundo, atrasam debates favoráveis à elaboração e implementação
de políticas pela garantia da igualdade de gênero. Enfim, organizar este
livro significa rememorar lutas históricas feministas e acreditar na tes-
situra de um novo horizonte mais justo, igualitário e libertário.

Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite

Referências

AGUIAR, Bruna Soares de; PEREIRA, Matheus Ribeiro. O antifemi-


nismo como backlash nos discursos do governo Bolsonaro. Agenda
Política, [S. l.], v. 7, n. 3, p. 8-35, 2019. Disponível em: https://www.
agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/271.
Acesso em: 6 abr. 2021.

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Mulheres e feminismo: história e desafios

BIROLI, Flavia. Gênero e desigualdade: limites da democracia no Bra-


sil. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.
CHADE, Jamil. Brasil não adere a ato de 60 democracias na ONU pela
defesa das mulheres. UOL. Disponível em: //noticias.uol.com.br/
colunas/jamil-chade/2021/03/08/brasil-nao-adere-a-ato-de-60-de-
mocracias-na-onu-pela-defesa-das-mulheres.htm?cmpid=copiae-
colahttps://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/03/08/
brasil-nao-adere-a-ato-de-60-democracias-na-onu-pela-defe-
sa-das-mulheres.htm. Acesso em: 22 de março de 2021.
COIMBRA, Cecília Maria Bouças; NASCIMENTO, Maria Lívia. Movi-
mentos sociais e sociedade de controle. In: TEDESCO, S.; NASCIMEN-
TO, M. L. (org.). Ética e subjetividade: novos impasses no contempo-
râneo. [S. l.] Sulina, 2009.
COIMBRA, Cecília Maria Bouças, LOBO, Lilia Ferreira & NASCIMENTO,
Maria Lívia. Por uma invenção ética para os Direitos Humanos. Psi-
cologia clínica. [online], v. 20, n. 2, 2008, p.89-102.
DASMASCENO, Victoria. Fome atinge 19 milhões de brasileiros durante
a pandemia em 2020. Folha de São Paulo, 05 de abril de 2021.
ONU Mulheres. Organização das Nações Unidas. Mulheres e meninas
devem estar no centro dos esforços de resposta à COVID-19. Publica-
do em 26 de maio de 2020. Disponível em: https://nacoesunidas.org/
mulheres-e-meninas-devem-estar-no-centro-dos-esforcos-de-res-
posta-a-covid-19/. Acesso em: 08 de junho de 2020.
RAGO, Margareth; PELEGRINI, Mauricio. (org.) Neoliberalismo, Femi-
nismos e Contracondutas: perspectivas foucaultianas. São Paulo:
Intermeios, 2019. Coleção Entregêneros.

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https://doi.org/10.33872/edufatecie.mulheresefeminismo.cap1

CAPÍTULO 1
ENÕRÃIRÕ KUÑA HÁICHA.
SOMOS MAIS QUANDO
ESTAMOS TODAS

Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini

Escrevo, mas o projeto é de, quiçá um dia, estar com você, lei-
tora, debaixo de um pé de árvore, sobre uma porteira, na barranca do
rio em que você pesca, nas ruas nas quais transita, nas salas de aula,
no meio da roça, sob as lonas do assentamento, vivenciando seu co-
tidiano na aldeia, dirigindo um trator... onde você desejar estar. Sou
admiradora de encontros, acredito demais nos afetos vindos desses
acontecimentos. Por isso, este capítulo se apresenta como uma car-
ta, que você poderá ler quando tiver tempo e vontade, retomar suas
linhas, passear comigo entre os parágrafos e permitir-se afetar por
estas contações de histórias.
Histórias com “H”, como indica a ortografia, ao fazer referência
à importância das vivências de todas nós, mulheres múltiplas em suas
singularidades, convidadas a tencionar o instituído sobre o gênero fe-
minino, o corpo, o gesto, o estar mulher. Esta é uma carta-convite,
para o estar entre, para o estar com, para o estar coletivos que movem
nossas existências e comemoram nossas conquistas, reconhecendo
Mulheres e feminismo: história e desafios

a potência das narrativas, quando contadas em várias línguas, em vá-


rios sons, em inúmeros dialetos.
Cara amiga leitora, o convite para escrever um capítulo deste
livro, emergiu como compromisso afetivo entre mulheres que, durante
algumas semanas, estiveram em conversação sobre nós mesmas, e
nós todas, nestes momentos tão necessários, de um distanciamento
social, do perigo pandêmico, de propostas sobre o desmonte de políti-
cas de saúde para a mulher, de aumento das notificações de violência
de gênero e feminicídios, da autorização de discursos de ódio...
Peço sua licença para escrever como sugere Glória Anzaldúa
(2000), em forma de carta, para compartilhar, com a intimidade neces-
sária, diálogos e escrevivências (Conceição EVARISTO, 2006) sobre a
vida em todos lugares que ela acontece. Para mim, é um conforto pen-
sar que existem esses espaços, onde, mesmo em isolamento físico,
não nos mantêm em isolamento social e afetivo.
Em tempos tão ácidos, propor um livro de contações feminis-
tas é um ato de rebeldia, de sobrevivência em um contexto político,
histórico, pandêmico e social funesto e letal. Desse modo, a proposta
deste capítulo não objetiva a discussão de teorias, de expressões aca-
demicistas ou comerciais/capitalistas, mas sim um espaço de convite
ao falatorium, um ato de combustão de nossa voz, intervenções, co-
letivos, assembleias, as quais por tanto tempo foram subalternizadas,
negligenciadas, ignoradas, silenciadas.
Esse falatório é o ato expresso de certos movimentos políticos
de resistência e transformação do devir da mulher militante, por ou-
tras e todas nós. Os encontros/capítulos desse local, dão folego às
nossas lutas, principalmente frente a esse desgoverno, que autoriza e
incentiva discursos de ódio, que dão vazão a essas violências, ainda
mais quando falamos sobre os corpos que são tão importantes para
os diálogos nos feminismos interseccionais e decoloniais. Seguindo
nessa resistência, somos capazes de criar mecanismos contra a ex-
clusão, de denunciar toda forma de invisibilidade sistematicamente
organizada pelo ordenamento social que dociliza, disciplinariza e va-
loriza o cinismo da vida em algumas formas de sociedade capitalista,

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Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

heteronormativa, machista, discriminatória, desigual, misógina.


Pode parecer até utopia, mas quando leio sobre aquelas mulhe-
res que lutaram antes de nós, principalmente as protagonistas dos fe-
minismos negros, revisito a urgência de pensar e fazer outros planos,
novas histórias, de onde verte potência para e na vida. Compreender
que estar na condição de mulheres, no contexto latino-americano, é
reconhecer a marca social multiplamente subalterna que possuímos.
Marcadores sociais que evidenciam a condição da existência de corpos
em espaços distintos aos corpos latinos.
Ao convidar outras línguas para o encontro neste texto, con-
tinuo esta conversação com reflexões sobre a coragem de falar so-
bre o medo, sugerida em um artigo de Audre Lorde (1977, p. 51-54)
apresentado em Chicago, no ano de 1977, intitulado Transformação
do silêncio em linguagem e em ação, texto que me conforta, acolhe e
fortalece. Ela escreve:
Passei a acreditar, com uma convicção ainda maior, que o que
me é mais importante deve ser dito, verbalizado e comparti-
lhado, mesmo que eu corra o risco de ser magoada ou incom-
preendida. A fala me recompensa, para além de quaisquer
outras consequências [...] comecei a reconhecer dentro de
mim um poder cuja fonte é a compreensão de que, por mais
desejável que seja não ter medo, aprender a vê-lo de maneira
objetiva me deu uma força enorme [...] Quais são as palavras
que você ainda não tem? O que você precisa dizer? Quais são
as tiranias que você engole dia após dia e tenta tomar para si,
até adoecer e morrer por causa delas, ainda em silêncio? [...]
Em nome do silêncio, cada uma de nós evoca a expressão de
seu próprio medo – o medo do desprezo, da censura ou de
algum julgamento, do reconhecimento, do desafio, da aniqui-
lação. Mas acima de tudo, penso que tememos a visibilidade
sem a qual não vivemos verdadeiramente [...] essa visibilidade
que nos torna mais vulneráveis é também a fonte de nossa
maior força. Porque a máquina vai tentar nos reduzir a pó
de qualquer maneira, quer falemos, quer não. Podemos ficar
eternamente caladas pelos cantos enquanto nossas irmãs e
nós somos diminuídas, enquanto nossos filhos são corrompi-
dos e destruídos, enquanto nossa terra é envenenada; pode-
mos ficar caladas a salvo nos nossos cantos, de bico fechado,
e ainda assim nosso medo não será menor.

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Mulheres e feminismo: história e desafios

A escrita de Lorde, em forma de desabafo, poética, localiza-


da, encoraja os movimentos de coletivos feministas, todos os movi-
mentos e suas interseccionalidades, amplia a cumplicidade e instiga
nossa inclinação para o blasfêmico, como apresenta Donna Haraway
(1995). Para falar sobre os feminismos interseccionais, que tanto me
interessam e afetam, antes de trazer teorias, estudiosos, antes de ir
atrás de toda informação sobre o assunto ou de aventurar-se a parti-
cipar de grandes grupos de pesquisas, temos que retomar a pergunta
espinoseana: O que o corpo pode?
Pergunto mais: quais corpos podem? Reflitamos, aqui, sobre a
crítica de Sueli Carneiro acerca de quais mulheres estamos falando.
Ao propor essa reflexão, retomo imediatamente à fala potente de So-
journer Truth (1843), mulher negra que eu entendo ser a primeira a
apresentar a definição de interseccionalidade (antes mesmo da pers-
pectiva teórica ricamente descrita por Kimberlé Crenshaw em 1989,
quando discursa: E eu não sou uma mulher?).
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de aju-
da para subir em carruagens, e devem ser carregadas para
atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer
que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carrua-
gens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me oferece-
ram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para
mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a
colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha
frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e
comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse
oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não
sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser
vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha
dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou
uma mulher? Daí eles falam dessa coisa na cabeça; como
eles chamam isso… alguém da audiência sussurra, “intelec-
to”. É isso, querido. O que é que isso tem a ver com os direitos
das mulheres e dos negros? Se o meu copo não tem mais que
um quarto, e o seu está cheio, porque você me impediria de
completar a minha medida? Daí aquele homenzinho de preto
ali disse que a mulher não pode ter os mesmos direitos que
o homem porque Cristo não era mulher! De onde o seu Cristo
veio? De onde o seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O
homem não teve nada a ver com isso. Se a primeira mulher

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Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo de ca-
beça para baixo por sua própria conta, todas estas mulheres
juntas aqui devem ser capazes de consertá-lo, colocando-o
do jeito certo novamente. E agora que elas estão exigindo fa-
zer isso, é melhor que os homens as deixem fazer o que elas
querem. Agradecida a vocês por me escutarem, e agora a ve-
lha Sojourner não tem mais nada a dizer.

Questiono mais: o que o corpo deseja? Pergunto por que me


incomodo com a não potência dada ao desejo do corpo já captura-
do pelo dinamismo do capitalismo e dos feminismos de perfumaria,
tão vendidos no neofeminismo, atitudes perigosamente contagiosas
para a produção daquelas subjetividades que deslumbram a liberda-
de como criação e conquista constante. Escrevo sobre o que o corpo
pode porque não acredito que podemos escrever sobre feminismos
quando não vivemos esse acontecimento como política de vida, con-
templado no cotidiano, defendido como militância e ética em uma
eterna luta a favor de direitos já conquistados, porém negligenciados
para tantas mulheres.
Os feminismos interseccionais estão interessados nos tensio-
namentos das subjetividades e nos sistemas de opressão, de domi-
nação e discriminação, de apagamento de vidas quando apresentadas
as diferentes categorias de gênero, raça, classe, desejo, idade e tantos
outros eixos que interagem quando apresentados como lócus de in-
justiça, de exclusão e desigualdade social. É uma perspectiva que flui
em zonas de passagem, transmuta o desejo de pensar e fazer sempre
na coletividade; são da ordem do acontecimento, da aliança, do existir
em devir. Feminismos que desejam produzir conhecimento situado,
como propõe Haraway (1995), ou encarnado, como sugere Suely Mes-
seder (2020) quando descreve acontecimentos que nos tiram do lugar
colonizado e fazem do corpo meio errante e mutante de existir.
Ao estudar os feminismos interseccionais, aqueles que buscam
conversações que englobam questões múltiplas da vida, é necessário
cuidado para não cair na falácia de, em vez de conhecer a experiência
de vidas vividas e vivíveis, buscar no saber/poder essas informações,
aproximando-nos do projeto colonizador que tanto criticamos por

18
Mulheres e feminismo: história e desafios

seus projetos sequestradores de nós mesmas. Assim, somos captu-


radas pelo lugar de saber, e a potência da proposta sobre uma mili-
tância e ciência colaborativa é interrompida; ela se fará colonizadora,
desbravadora, agregando valores disciplinatórios ao nos oferecer sta-
tus de estudiosas.
Corremos o risco de mergulhar no perigoso jogo de saber/poder
que é descrito por Michel Foucault (1979) e visualizado por nós mulhe-
res em diversas relações do dia a dia, nos jogos de verdade presentes
na academia, na Medicina, nos estabelecimentos judiciais, educacio-
nais, religiosos e na própria Psicologia. Relações e saberes cúmplices
de uma inclusão excludente (Bader Burihan SAWAIA, 2010), que, nova-
mente, ignoram umas e anunciam o direito de falar e existir de outras.
Habita nesse espaço mais um perigo para as militâncias feministas:
muito saber com pouco daquele conhecimento vivido no chão de fá-
brica, no fazer, na intervenção coletiva. Não existe interseccionalidade
sem o corpo no mundo e com o mundo, no território de TODAS.
Leitoras, é difícil nos enunciar feministas sem possuir o cor-
po da contravenção, sem militar a favor dos grupos minoritários ou
subalternos, como corpos dissidentes. Não há como defender a in-
terseccionalidade sem acreditar que a luta contra esses grandes mar-
cadores sociais que limitam e dividem corpos, que violam suas exis-
tências, deverá ser constante. Somos agentes da defesa dos direitos,
umas das outras, diante de toda forma de opressão, de discriminação,
de violência. É preciso ouvir Lorde (2019) quando a escritora nos aler-
ta: “não existe hierarquia de opressão”.
Nesse caminho, nada pronto, mas em construção coletiva e per-
manente proposto pelos feminismos interseccional e decolonial, em
que a vida do sul global emerge considerando e respeitando a história,
a cultura e a ancestralidade do povo latino; os corpos se mantêm mu-
tantes, deslocantes, como nos sugere Mafessoli (2001), atraído pela
aventura do criar-se no desejo de estar juntas, dispostas a escutar e
desejar outros espaços inventivos e vivíveis.
Não desejo, em coletivos, conquistar este mundo que aqui
está. Acredito que temos que criar outros mundos possíveis, em as-

19
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

sembleias, com a força criativa de sujeitos que, em aliança, sempre


tiveram que encontrar linhas de fuga para escapar das capturas do
patriarcado e de toda força opressora de subjetividades colonizadas.
Trata-se de um movimento de recalcitrância, de teimosia perante o
oferecido pelo ordenamento social; trata-se também de desobediên-
cia epistêmica, quando ousamos estar em lugares como os das pági-
nas deste livro, aprendendo a transgredir. De acordo com bell hooks,
pseudônimo da ativista Gloria Jean Watkins (2013), somos vidas polí-
ticas arrebatadoras, desejamos uma vida mutante que não pede res-
postas, pois são da ordem dos acontecimentos, das “ensinagens do
cotidiano” (MESSEDER, 2020).
Caras leitoras, a vida inventiva é aquela que questiona o pron-
to, as verdades dadas por uma cultura que inviabiliza a diversidade.
Ela busca vias de negociação para promover diálogos distantes da-
queles que silenciaram a potência reflexiva e contestadora, as nossas
matrizes culturais, a raça, a cosmovisão favorecida por perspectivas
intersecionais. Vejo o quanto de incômodo é causado na sociedade
“cisheteronormativa” por essas vidas escandalosamente libertas (e
vibro com isso), aquelas que buscam novos significados ao nosso co-
tidiano e exalam força produtiva na multiplicidade de corpos.
Como escreve Paul Beatriz Preciado (2011), SOMOS MULTIDÃO!
A perspectiva interseccional e decolonial promove o pensamento
como força criativa, representa a necessidade de fazer parte de uma
“zona de contestação” (Donna HARAWAY, 1995), desfrutando do risco
do acaso e declarando a impossibilidade de uma ciência apolítica.
Mulheres, os feminismos são encontros da pluralidade e cum-
plicidade, que se ocupam dos espaços de onde a fala e a escrita cons-
troem outros fazeres e superam o campo de possibilidades episte-
mológicas, hegemônicas e europeias. São escritas que pretendem
atravessar os muros acadêmicos e alcançar não apenas as vidas
onde elas acontecem, mas também o fato de estarem presentes, ética,
estética e politicamente, engendradas na ciência como revolução.
É importante lembrar que o espaço da mulher na academia não
é um local a ser conquistado; deve ser transformado, quase invadido

20
Mulheres e feminismo: história e desafios

na inviolabilidade dos discursos de poder/saber; é território de eman-


cipação, um cenário alternativo para novas criações e estilísticas de
vida. A produção do conhecimento deixa de ser a experiência local
e individual para ser o que se produz no diálogo entre os diferentes
grupos guiados pelo compromisso com a transformação social, com
a emancipação da mulher e o fortalecimento de seus encontros.
Escrever para e com mulheres implica, uma revisão do processo
de socialização e de vidas transbordantes das fronteiras do dentro,
por isso, convido mais uma língua – a voz e a escrita de Glória An-
zaldúa – para compartilhar estes parágrafos e para diminuir a minha
angústia sobre escrever para e com vocês. Anzaldúa (2000, p. 232)
nos faz refletir desta forma:
Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva
da complacência que me amedronta. Porque não tenho es-
colha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta
e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na es-
crita compensa o que o mundo real não me dá. No escrever
coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder
segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e
minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam
quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre
mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mes-
ma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-
-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou
uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para me
convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer
não é um monte de merda. Para mostrar que eu posso e que
eu escreverei, sem me importar com as advertências con-
trárias. Escreverei sobre o não dito, sem me importar com o
suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente, es-
crevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo
maior de não escrever.

Em seu artigo Rebeldes, escritoras e abolicionistas, Norma Tel-


les (1989, p. 75) escreve:
Para a mulher escrever dentro de uma cultura que define a cria-
ção como dom exclusivamente masculino, e propaga o precei-
to segundo o qual, para a mulher, “o melhor livro é a almofada e
o bastidor” é necessário rebeldia e desobediência aos códigos
culturais vigentes.

21
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

Por isso estou hoje aqui, em curto-circuito de tudo o que foi im-
posto ao meu corpo de mulher pesquisadora. Nestas páginas escrevo
sobre afetos em tempos áridos, ousadias tecidas no cotidiano, po-
tência transgressora de um devir minoritário desterritorializador dos
regimes de poder/saber que desenvolvo nos nossos encontros.
Na condição de mulher, mãe, trabalhadora, docente e militante
em que estou, emergente de aventuras científicas em férteis territó-
rios de onde extraio forças para deslocar o olhar do mesmo, univer-
sos vigentes tornam-se obsoletos e o novo dá passagem à exposição
de subjetividades estéticas contadoras das nossas histórias (Suely
ROLNIK, 1989), principalmente quando sinalizam a necessidade de
alteração política e de vida. Também, quando exigem do olhar certo
deslocamento para outros continentes e uma escrita correlata à des-
colonização das práticas eurocêntricas, liberta da pretensão do co-
nhecimento descrito como produtor de verdades absolutas.
Aceitei a sugestão de Anzaldúa (2000, p. 235): ‘[...] escrevam
sobre o que mais nos liga a vida, a sensação do corpo, a imagem vista,
a expansão da psique em tranquilidade; momento de alta intensidade,
seus movimentos, sons, pensamentos’, desse modo, sinto-me mais
próxima de TODAS e pertencente aos movimentos feministas inter-
seccionais e decoloniais.
É importante falar que optar por certo fazer contrário a muito do
que a prática acadêmica teima em insistir, não significa perder a ética,
o rigor ou a perspectiva teórica de uma atividade profissional; é des-
territorializar não só o corpo, mas o saber institucionalizado por uma
prática ainda sinalizada pela razão do saber colonizado.
A dificuldade em apropriar-se de novos fazeres e permitir-se
transitar por outras formas de atuação limitam a reflexão e a criticida-
de, provocando a domesticação da atividade frente à demanda eleva-
da e à escassez de diálogos sobre a importância de lugares de fala so-
bre os corpos visibilizados pela perspectiva interseccional, que é um
convite ao fazer subversivo, abusado e comprometido, contestador de
práticas e discursos fabricantes de corpos e que estão presentes em
todas as instituições, relações, tempos e acontecimentos.

22
Mulheres e feminismo: história e desafios

Leio em Carla Akotirene (2019) sobre as diásporas, a separação


geográfica dos corpos, especialmente quando a teórica apresenta o
conceito das águas do Atlântico, que Conceição Evaristo (2014) traz
de forma tão poética na sua obra Olhos d’Água. Essas leituras reme-
tem a outras formas de entender a interseccionalidade, a outras ma-
neiras de sentir a interseccionalidade, menos acadêmicas; não que
sejam desnecessárias as escritas acadêmicas de todas nós, mulheres
de todas as raças, de todos espaços, de toda forma de experimentar o
corpo, de toda forma de desejo.
Conversações igualmente importantes sobre os feminismos in-
terseccionais são as reflexões sobre o lugar de fala, expressão que
ficou muito popularizada aqui no Brasil por meio do livro de Djamila
Ribeiro (2017) na coleção Feminismos Plurais. A obra concorda com o
significado desse lugar que fala na prática, compartilhando a proble-
matização proposta por Spivak (2010), quando questiona se pode um
subalterno falar. É de importância vital que essas mulheres estejam
escrevendo, estejam na academia, porém, é apenas quando trans-
formamos essa atitude em política de vida, que conseguimos espa-
lhar tal prática para um maior número de mulheres, como propõe bell
hooks (2013).
Tais discursos quando atravessados pela raça, pelo gênero,
classe, etnia, desejo, parecem restritos a algumas pessoas; outras
acreditam que só podemos falar sobre nós mesmas. Todavia, acredito
que nós devemos falar no mundo, nós devemos saber que lugar de
fala é todo lugar do qual podemos participar de forma coletiva, um
lugar onde vozes estão colocadas para serem escutadas, frisando que
não é possível intervir separadamente sobre pessoas que sofrem du-
plas ou triplas experiências de discriminação e opressão marcadas
pelo gênero, classe e raça (Patricia Hill COLLINS, 2003).
Para terminar o meu falatório deslizante nestas linhas, queria
chamar cada uma de vocês leitoras para um compromisso com todas,
provocá-las com a voz de Lorde (2019, p.178):
Recusar-se a participar da construção de nosso futuro é o
mesmo que desistir. Não deixem que uma falsa sensação de
segurança (isso não me afeta) ou o desespero (não há que

23
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

possamos fazer) os levem à passividade. Cada um de nós


deve descobrir qual trabalho nos cabe e colocá-lo em prática.
Militância não significa portar armas em plena luz do dia, se
é que algum dia foi isso. Significa trabalhar ativamente pela
mudança, às vezes sem nenhuma garantia de que ela esteja
a caminho.

Sonho com o comprometimento de todas com este mundo


novo a ser feito, na construção de multidões possíveis e agradeço a
todas por estarem lendo meus sonhos e compartilhando seu tempo
com estes diálogos. Sendo mulher recalcitrante, isso é, como sou tei-
mosa, quero sobreviver, com vocês, da melhor forma possível, a todos
estes acontecimentos da contemporaneidade, violências, catástrofes,
feminicídios, pandemias, negligências dos nossos direitos. Hoje, re-
conheço que existem espaços onde podemos falar francamente, certo
que estaremos sendo ouvidas, este livro é um destes espaços, é ter-
ritório afetivo.
Faço apenas um último pedido: ENÕRÃIRÕ KUÑA HÁICHA (Lute
como uma garota, em guarani); que encontrem linhas de fuga e so-
brevivam às maquinarias que aniquilam nossa existência; que se per-
mitam participar efetivamente em assembleias, sempre umas com as
outras, para expor e dar vazão a todas as histórias… Assim eu chamo
para nossa luta:
A Eva, senhora do pecado original – presente.
As Bruxas, apagadas pelo fogo – presentes.
As loucas, discriminadas pela potência e liberdade – presentes.
As putas, donas de seus desejos – presentes.
As pretas, mulheres que iniciaram o pensamento interseccional
– presentes.
As trans, as da coragem e do corpo em mutação - presentes.
As Marieles, do corpo político e implicado – presentes.
As Magôs, da dança na vida – presentes.
As Lauras, filhas descritas como “acidente” pelo inominável
presidente do Brasil apenas por ser mulher – presentes.

24
Mulheres e feminismo: história e desafios

Todas nós, mulheres militantes de outros mundos possíveis –


presentes.
Queridas, já com saudade, me despeço.
Um grande e carinhoso abraço.
Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini.

Referências

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Pólen, 2019.
ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres
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BRAIDOTTI, Rose. Diferença, Diversidade e Subjetividade Nômade.
Tradução: Roberta Barbo. Labrys, Estudos Feministas, n. 1, v.2, julho/
dezembro 2002.
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da
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zação Brasileira, 2003.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para
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2018.
COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significa-
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CRENSHAW, Kimberlé W., Demarginalizing the intersection of race
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DELEUZE, Guilles. Conversações. Tradução. de Peter Pál Pelbart. Rio
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EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação

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EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Belo Horizonte: Mazza,
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HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o
feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5,
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LORDE, Audre. Irmã Ousider. Ensaios e Conferências. Tradução de
Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-mo-
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MESSEDER, Suely Aldir. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque (org.).
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2020.
PRECIADO, Paul Beatriz. Multidões Queer: notas para uma política
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SAWAIA, Bader B. Artimanhas da exclusão: análise psicossocial e
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26
Mulheres e feminismo: história e desafios

SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva.


Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de
Sandra R. Goulart Almeida; Marcos Feitosa; André Feitosa. Belo Hori-
zonte: Editora UFMG, 2010.
TELLES, Norma. Rebeldes, escritoras e abolicionistas. R. História, São
Paulo, 120, p. 73-83, jan./jul. 1989.

27
https://doi.org/10.33872/edufatecie.mulheresefeminismo.cap2

CAPÍTULO 2
FEMINISMO EM SEUS
MOVIMENTOS DE LUTA
E RESISTÊNCIA CONTRA A
NORMALIZAÇÃO DO CORPO
FEMININO E A DESIGUALDADE
DE GÊNERO

Daniele de Andrade Ferrazza

Os patriarcas brancos nos disseram: “Penso, logo existo”.


A mãe negra dentro de cada uma de nós – a poeta –
sussurra em nossos sonhos: “Sinto, logo posso ser livre”.
A poesia cria a linguagem para expressar e
registrar essa demanda revolucionária,
a implementação da liberdade.
Audre Lorde. Irmã Outsider.

O feminismo é um movimento profundamente plural e diversifi-


cado e, em suas várias vertentes, combina a luta contra as desigual-
dades de gênero com questionamentos sobre a reprodução do poder
masculino no processo de submissão e assujeitamento de mulheres
Mulheres e feminismo: história e desafios

a modelos de feminilidade atravessados por discursos e práticas nor-


mativas e machistas (Margareth RAGO, 2019, Martha NARVAZ & Silvia
KOLLER, 2006).
As primeiras mobilizações feministas, que tiveram seu início no
século XIX, com demandas exclusivamente relacionadas às melho-
rias das condições de trabalho, à luta pelo direito ao voto feminino e
pela igualdade salarial entre homens e mulheres nas fábricas, poste-
riormente se constituiriam em novos discursos de diversas tendên-
cias com características singulares de reivindicação marcadas pela
época e pelo contexto social. Inúmeras foram as conquistas dos mo-
vimentos de mulheres ao longo do século XX. Entretanto, ainda são
diversos os desafios a serem alcançados, com destaque para alguns
importantes pontos do feminismo na interseccionalidade entre raça,
classe e gênero: a superação da desigualdade salarial entre homens
e mulheres; o enfrentamento das altas taxas de violência de gênero e
os inúmeros assassinatos de mulheres, crime denominado de femini-
cídio; a luta contra a baixa representatividade das mulheres no âmbito
político; a garantia da distribuição gratuita nos serviços de saúde de
métodos contraceptivos e contra a transmissão de infecções sexu-
almente transmissíveis; a viabilização de informações sobre a sexu-
alidade feminina, masturbação e prazer orgástico da mulher; a luta
contra a “cultura do estupro” disseminada em diversos âmbitos so-
ciais; os enfrentamentos contra discursos e práticas lesbofóbicas; e a
elaboração de debates e políticas para a descriminalização do aborto
no Brasil (Flávia BIROLI, 2019; MIGUEL; BIROLI, 2014; Adrienne RICH,
2010; Elizabeth GROSZ, 2002; Maria Lucia ROCHA-COUTINHO, 2004;
Chyntia SARTI, 2004). Esses são alguns dos diversos aspectos im-
portantes ainda de enfrentamento no âmbito das lutas travadas pelo
movimento feminista no país.
Distantes de tentar contemplar todos os desafios que perpas-
sam as lutas e as mobilizações feministas atuais, o presente capítulo
tem o objetivo de refletir sobre os processos de controle e normali-
zação dos corpos femininos que oprimem diversas mulheres carac-
terizadas por marcadores sociais de raça/etnia, classe, performance

29
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

sexual e faixa etária. Além disso, pretende-se também destacar a his-


tória e os desafios atuais do movimento feminista na luta contra a
desigualdade de gênero e no fortalecimento dos processos pelo em-
poderamento feminino.
Sustentado pelos estudos feministas e fundamentado em al-
guns conceitos-ferramentas da obra de Michel Foucault (1977), este
trabalho está organizado em dois movimentos. No primeiro movimen-
to, analisam-se os processos históricos de normalização e controle
dos corpos femininos, a fim de apontar elementos que possam ser
significativos para a compreensão da constituição, ao longo dos sé-
culos, de discursos e práticas de gestão da sexualidade e que serão
incorporadas e impostas às mulheres ocidentais. Mais especifica-
mente, pretende-se localizar o nascimento de discursos que foram
naturalizados, com o intuito de pensar no engendramento de estraté-
gias de enfrentamento e resistência feminista. No segundo movimen-
to, a proposta é de traçar brevemente alguns apontamentos sobre a
constituição histórica das mobilizações feministas2, do final do sécu-
lo XIX às atualidades do século XXI, com destaque para o feminismo
decolonial e para os debates interseccionais de raça, classe e gênero,
que, em suas estratégias de resistência, podem culminar na consti-
tuição de contracondutas (FOUCAULT, 2008) e na produção de novas
formas de subjetivação feminina (Margareth RAGO, 2019).
Para o debate sobre a história do movimento feminista e a luta
contra a violência patriarcal que ainda hoje promove a opressão de
corpos femininos, é interessante compreender a configuração históri-
ca e social de discursos e práticas que irão constituir a subjetividade
de mulheres e homens. Dessa forma, a noção de dispositivo, proposta
por Foucault (1977; 1982), nos permite analisar como se estabelece-
ram papéis sociais femininos e masculinos particularizados por dis-
cursos e práticas patriarcais, machistas e misóginas. Foucault (1982,
p. 244) compreende o dispositivo como

2 Estudiosas propõem a periodização das mobilizações feministas e as classificam em:


primeira, segunda e terceira ondas do feminismo (NARVAZ; KOLLER, 2006). Contudo, res-
salte-se que não há um consenso sobre essa divisão, e algumas autoras (Marlise MATOS,
2010) trabalham com a ideia da existência de uma quarta onda do movimento feminista.

30
Mulheres e feminismo: história e desafios

uma espécie – digamos – de formação que, num momen-


to histórico dado, teve por função maior responder a uma
urgência. O dispositivo teve então uma função estratégica
dominante […] e se inscreve num jogo de poder […] O que eu
tento localizar sob este nome é, primeiramente, um conjunto
resolutamente heterogêneo comportando discursos, institui-
ções, instalações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos, pro-
posições filosóficas, morais, filantrópicas, em suma: do dito
tanto quanto do não-dito, eis os elementos do dispositivo. O
dispositivo, ele mesmo, é a rede que podemos estabelecer en-
tre esses elementos.

Dessa forma, o dispositivo é um conceito-ferramenta que auxi-


lia na compreensão da maneira pelas quais as instituições casamento
e maternidade se estabeleceram como importantes para a produção
de subjetividades femininas normatizadas, de acordo com processos
de subalternização. E que permite compreensões de que “ser mulher”,
conforme comenta Rosi Braidotti (2000), não estão relacionadas a uma
essência biológica predeterminada, mas a uma identidade construída
social e culturalmente pelas práticas e discursos dos saberes discipli-
nares que estabelecem sexualidades adequadas e “corpos produtivos,
úteis e dóceis” (FOUCAULT, 1999).

2.1 Apontamentos históricos sobre o processo de controle e normali-


zação do corpo feminino

O controle do corpo feminino, a desigualdade e a violência de gê-


nero, a perseguição, execução e assassinato são processos que marca-
ram a história e a vida das mulheres no mundo. As denúncias da domi-
nação masculina e da violência contra mulheres atravessam séculos.
É possível encontrá-las na Grécia Antiga, com a história de Hipátia de
Alexandria, estudiosa da astronomia, filosofia e matemática na Antigui-
dade Clássica, brutalmente assassinada por um grupo de cristãos en-
furecidos que a apedrejariam até a morte, por ela ser mulher e defender
o livre pensamento (Rosa FONSECA, 2013). Mas histórias semelhantes
não deixaram de ocorrer na Europa Medieval e na América Pré-Colonial,

31
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

em que a perseguição e extermínio de mulheres se evidenciaram por


meio do movimento de caça às bruxas, quando as mulheres eram tor-
turadas e queimadas nas fogueiras (Silvia FEDERICI, 2018).
Mais especificamente, quando os estudos são relacionados ao
tema do movimento de caça às bruxas identificam-se também marcas
da tentativa de controle da sexualidade e do prazer feminino. Bruxas
e feiticeiras eram parteiras, curandeiras e produziam substâncias psi-
coativas que apaziguavam as dores, curavam doenças e promoviam
prazer. Mas, além disso, a psicoatividade de suas poções e unguentos
apresenta elementos que explicariam “seus voos ou suas viagens ca-
valgando vassouras” (SANCHES, 2010, p. 37). O relato de inquisidores
do século XII aponta que aquelas mulheres besuntavam um bastão ou
cabo de uma vassoura o que supostamente lhe permitia:
[...] perambular e galopar por sobre todos os obstáculos, por
onde e como ela quisesse. O unguento não tornava a vassou-
ra alada, os “voos” e “viagens” não eram da ordem do sobre-
natural, mas da ordem do carnal. Pois, ao roçar o unguento
na genitália com o auxílio da vassoura, aquela mulher atingia
o orgasmo o que lhe possibilitava ir “aonde quisessem” (SAN-
CHES, 2010, p. 38).

Federici (2018, p. 30), em seu belíssimo livro Calibã e a Bruxa,


nos diz que a perseguição às mulheres denominadas bruxas está di-
retamente relacionada à tentativa de controle dos corpos femininos
e da gestão da função reprodutiva com intuito de “preparar o terreno
para o desenvolvimento do regime patriarcal mais opressor” do siste-
ma capitalista. Para Federici (2018), o movimento de caça às bruxas,
o ataque genocida àquelas mulheres, está diretamente ligado à tran-
sição para o capitalismo, momento de apropriação e gerenciamento
do corpo feminino para adaptá-lo aos interesses do capital na acu-
mulação e reprodução da força de trabalho do proletariado, em um
processo de administração do crescimento populacional.
Aquele seria um período de Inquisição em que a Igreja, entre os
séculos XII e XVIII, determinava que as mulheres eram a “forma do mal
sobre a terra” e descreviam-nas como “superlativo de podridão” (Mary
DEL PRIORE, 1999, p. 180). O corpo feminino era considerado como

32
Mulheres e feminismo: história e desafios

fundamentalmente impuro, indecente, abjeto (RAGO, 2019). E as mulhe-


res eram consideradas frívolas, sensuais e pecadoras, tratadas como
traiçoeira à imagem de Eva, que no cristianismo é culpabilizada pelo
pecado original, acusada por introduzir o sacrilégio na terra e respon-
sável pela queda da humanidade. “O homem procurava uma responsá-
vel pelo sofrimento, o fracasso, o desaparecimento do paraíso terrestre
e encontrou a mulher”, na representação da figura bíblica de Eva (DEL
PRIORE, 1999, p. 180).
Na consolidação do sistema capitalista e advento do Estado
Moderno, já em fins do século XVIII e princípios do século XIX, a hi-
pócrita burguesia conservadora, como comenta Foucault (1977) em
seu livro História da Sexualidade I, impõe uma verdade sobre o sexo
e as práticas sexuais. Define-se que a sexualidade normal e adequa-
da é aquela praticada somente por casais heterossexuais em enla-
ces matrimoniais e que tenha como objetivo a reprodução para gerar
herdeiros e filhos. A sexualidade deixou de ser um aspecto comum e
indiferenciado na vida de mulheres e homens para ser transformada
em um dispositivo de controle biopolítico submetido aos discursos e
práticas de saberes disciplinares.
Os dispositivos de normatização das práticas sexuais seriam
engendrados pelas ciências da sexualidade, que, conforme Foucault
(1977), definem quatro grandes conjuntos estratégicos de controle e
gerenciamento de corpos: a “histerização do corpo da mulher”, a “pe-
dagogização do sexo das crianças”, a “socialização das práticas repro-
dutivas” e a “psiquiatrização do prazer perverso”. Aqui, serão utilizados
esses quatro elementos como analisadores estratégicos para discutir
a constituição de processos normativos que submetem mulheres ao
ideal machista, misógino, falocêntrico e patriarcal.
Primeiramente, a “histerização do corpo da mulher” pode ser
compreendida como um processo pelo qual o corpo da mulher, tido
como desprovido de desejo sexual, será reduzido ao objetivo da re-
produção e do oferecimento de prazer ao homem (FOUCAULT, 1977).
A mulher branca, na sociedade burguesa patriarcal, estará relaciona-
da essencialmente ao espaço familiar, aos cuidados e à organização

33
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

da vida doméstica, à educação e ao cuidado das crianças. E deverá


permanecer sempre vigilante na estruturação da família nuclear mo-
nogâmica, ou seja, diante de qualquer eventual deslize divergente de
relações familiares heteronormativas, a mulher deve ser responsabi-
lizada pela sua suposta incompetência como gerenciadora de uma
família considerada saudável e sã.
Nessa perspectiva, o corpo da mulher passou a ser administrado
e regulamentado por princípios prescritos por uma medicina higienista
que se apropria de concepções morais e cristãs e as transforma em
preceitos supostamente científicos (Judith BUTLER, 2003). Pensadores
e intelectuais do século XIX irão tecer explicações sobre a inferioridade
física, moral e intelectual das mulheres em relação aos homens e afir-
mar categoricamente a suposta incompetência feminina de participar
da esfera pública, devendo permanecer retidas nos espaços privados e
familiares (RAGO, 2001).
Discursos e práticas higienistas que influenciaram e reforçaram
concepções de um modelo feminino ideal adequado para a família pa-
triarcal burguesa branca colonialista que seria: a mulher mãe dedicada,
dona de casa, provedora do lar, esposa, submissa, “feminina e sensível”,
despossuída de desejo e/ou prazer sexual, impossibilitada de adminis-
trar uma vida só e desacompanhada, e incapaz de decidir sobre o seu
próprio corpo. São esses enunciados ora científicos, ora não científicos,
que irão compor o denominado dispositivo da maternidade, o qual es-
tabelecerá que ser mãe é essencial e instintivo para toda a mulher e que
a maternidade é um acontecimento natural (Valeska ZANELLO, 2018).
Dispositivo materno atravessado pela figura cristã da Virgem Maria –
representação da mãe na religião, mulher submissa, assexuada, virgem,
maternal por natureza, exemplo a ser seguido por todas as mulheres.
O segundo analisador estratégico, denominado pelo processo
de “pedagogização do sexo da criança”, está relacionado à necessi-
dade de atenção aos movimentos que pudessem denunciar a erotiza-
ção dos corpos, o auto-toque masturbatório, além de possíveis con-
tatos afetivos entre crianças e que deverão ser impedidos pelos pais,
educadores e, posteriormente, por médicos, psicólogos e pedagogos

34
Mulheres e feminismo: história e desafios

(FOUCAULT, 1977). Encarregados continuamente do controle disci-


plinar e regulatório, de acordo com as propostas heteronormativas e
falocêntricas, serão disseminados discursos e práticas normativas
acerca de um suposto padrão de sexualidade sadia destinada à repro-
dução no âmbito da família nuclear monogâmica (Daniele FERRAZZA;
PERES, 2016).
Nessa perspectiva, a contemporaneidade brasileira, ainda pauta-
da em ideais machistas, misóginos e patriarcais, impõe não só às mu-
lheres, mas também aos educadores, médicos, pedagogos e psicólogos
o formato adequado para a constituição de práticas educativas de me-
ninas e meninos: para as meninas, os brinquedos devem ser bonecas/
bebês, fogões/panelinhas e ferros de passar roupa, e as histórias são de
princesas que aguardam pacientemente a chegada de um príncipe que
supostamente a salvará de todos os males, para que eles sejam eterna-
mente felizes; para os meninos, os brinquedos são carros/caminhões,
as histórias são de heróis e aventureiros que pretendem desbravar o
mundo e viajar por lugares inóspitos e distantes (Valeska ZANELLO,
2018). Aqui, evidentemente, já é possível traçarmos as diferenças de
concepções sobre o que deve desejar uma mulher e o que deve desejar
um homem: à mulher cabe o espaço privado, os cuidados do lar e dos
filhos; aos homens, é destinado o espaço público, com suas possibili-
dades de mobilidade, descobertas e aventuras. Nessa perspectiva, per-
cebe-se que a “pedagogização do sexo das crianças” também passa
por essas estratégias educativas, eurocêntricas, colonialistas e racistas
sobre o que é ser mulher e o que é ser homem.
No terceiro analisador, as estratégias de “socialização das con-
dutas de procriação” estão relacionadas com as práticas de incentivo
ou controle das relações sexuais com fins reprodutivos dos casais he-
terossexuais (FOUCAULT, 1977). Um controle biopolítico que pretende
gerenciar populações com o objetivo de regulamentar práticas sexu-
ais para a procriação de filhas e filhos saudáveis, no âmbito do sexo
reprodutivo cristão (FERRAZZA; PERES, 2016).
Dessa maneira, o dispositivo casamento é considerado um me-
canismo de extrema importância para a manutenção dos controles

35
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

reprodutivos. Assim, instituem-se preceitos para a organização e ins-


titucionalização do casamento, em que, conforme consta nos discur-
sos religiosos cristãos: a “mulher deve prometer ser submissa ao seu
próprio marido [...] porque o marido é a cabeça da mulher […]”. Aqui, é
necessária uma explicação sobre a palavra submissão, que no dicio-
nário significa “subordinação, obediência, servilismo e ação ou efeito
de se submeter” (HOUAISS, 2013), e que pode ser complementada pe-
las explicações utilizadas pelo cristianismo, as quais definem submis-
são como “estar abaixo da missão de outra pessoa”. Ou seja, para a
mulher desejosa de casar não há escapatória: ela deve ser submissa e
submetida aos dizeres e mandos de seu marido e/ou estar aquém ou
abaixo da missão e trajetória traçada por seu cônjuge.
Além disso, a necessidade histórica da preservação da pro-
priedade privada e de bens pela família nuclear burguesa colonialista
branca (composta por pai-mãe-filhos), constituída no século XVIII,
leva à determinação da monogamia e da valorização da virgindade da
mulher, pois se acreditava que o marido somente poderia ter certeza
da paternidade do filho primogênito (Silvia LANE, 1986). Deve-se des-
tacar, aqui, a valorização da virgindade apenas da mulher; do homem
esperavam-se experiência e desenvoltura sexual (RAGO, 2002). E, em
relação à monogamia, percebe-se claramente a demanda para que a
mulher tenha apenas um parceiro, afinal as mulheres sempre foram
consideradas desprovidas de desejo e/ou prazer sexual (RAGO, 2002).
Já ao homem sempre foi justificável, com discursos médicos e cien-
tíficos traçados até princípios do sec. XX, que sua condição biológica
era determinada por instintos sexuais que levavam à parte ativa da
relação (DEL PRIORE, 2019). Se não bastassem os discursos médicos
higienistas, pautados em ideais machistas e misóginos, muito aquém
de análises científicas, com argumentos sobre as diferenças de desejo
sexual entre mulheres e homens, ainda se justificava que a ausên-
cia de desejo e prazer sexual feminino devia-se à maternidade. Para
aqueles homens da ciência: “as mulheres tinham um desejo sexual
muito menor do que o dos homens, aliás, quase inexistente, já que
sua energia sexual era canalizada para a realização de sua essência:
o desejo de ser mãe” (RAGO, 2002, p. 187). Mais especificamente, no
36
Mulheres e feminismo: história e desafios

Brasil do século XIX, médicos higienistas influenciados pelas teorias e


concepções do criminologista italiano Cesare Lombroso (1835-1909)
insistiam na ausência de instinto sexual e prazer nas “mulheres cas-
tas”, que deveriam ter relações sexuais apenas para fins reprodutivos
(RAGO, 2002).
Chama atenção como o corpo da mulher apropriado pelos dis-
cursos e práticas médicas será submetido a um processo de “desse-
xualização”. Não se espera que a mulher tenha desejo sexual, tam-
pouco prazer sexual ou orgasmo. O modelo de família higienizada, de
princípios do século XX, e que influenciará na formação e constituição
subjetiva de mulheres brasileiras (COSTA, 1983), fez com que o or-
gasmo feminino e o clitóris fossem totalmente ignorados e, frequen-
temente, relacionados à lesbianidade e à anormalidade (RAGO, 2002).
Ainda que o clitóris tenha sido descoberto em 1559, pelo médico ita-
liano anatomista Mateo Colon (1516-1559) e compreendido como o
pênis feminino naquela época, o órgão do aparelho genital feminino
seria totalmente esquecido durante séculos. Conforme Rago (2002),
somente na década de 1970, com a publicação de reportagens sobre o
orgasmo feminino clitoriano em uma revista destinada às mulheres de
classe média branca urbana brasileira, isso mudará e novas discus-
sões, em diversos âmbitos sociais, começarão a proliferar.
Contudo, as dificuldades sobre a relação da mulher com o seu
corpo continuam. Esse aspecto, demarcado por pesquisas recentes,
mostra que, apesar do incentivo e da distribuição de camisinhas fe-
mininas no Brasil, impulsionados pelo Ministério da Saúde, as mulhe-
res não usam o preservativo pela falta de intimidade com seu próprio
corpo (Regina BARBOSA; Angela DONINI, 2011). Outra pesquisa, rea-
lizada em 2016, pela estudiosa Carmita Abdo, da Universidade de São
Paulo (USP), mostra que 40% das mulheres brasileiras não se mas-
turbam (Ana Carolina SOARES, 2017). As mulheres não se tocam e
não conhecem seu corpo, e um dos fatores está relacionado com as
características da sociedade brasileira, extremamente misógina.
O quarto analisador estratégico, denominado “psiquiatrização do
prazer perverso”, pode ser compreendido como um processo relaciona-

37
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

do à normalização de comportamentos, condutas e atitudes considera-


das desviantes do modelo heterossexual e reprodutivo, e que deveriam
ser submetidas às estratégias de controle, regulação e intervenções
médicas, psiquiátricas e psicológicas (FOUCAULT, 1977). Dessa forma,
relações afetivas, amorosas e sexuais entre corpos iguais expressariam
o desajuste, o desvio, a inadequação e, consequentemente, deveriam
ser psiquiatrizadas e manicomializadas (FERRAZZA; PERES, 2016). No
âmbito feminino, esse processo não se daria de forma diferente e as
mulheres lésbicas seriam perseguidas e enquadradas como perversas,
desviantes, doentes e anormais. Como comenta Adrienne Rich (2010),
o estupro com fins supostamente corretivos, a punição, inclusive com
o assassinato de mulheres lésbicas, ocorre como estratégia do poder
masculino para tentar controlá-las e confiná-las.
Butler (2003), em Problemas de gênero: feminismo e subversão
da identidade, alerta sobre tal sistema que define sexo/gênero/práti-
cas sexuais/desejo como um arcabouço de discursos baseados em
premissas médicas e religiosas que determinam como as mulheres,
em especial, devem utilizar seu corpo, destinado à gestação e à ma-
ternidade, essencialmente. Nesse sentido, nos anos 1960, ainda que
os movimentos feministas de luta contra desigualdades, discrimina-
ção e opressão machista tenham conquistado espaço na descons-
trução de concepções sobre a maternidade como fenômeno natural
do corpo feminino, o feminismo lésbico continuou sendo silenciado.
A experiência feminina da homossexualidade continuou sendo rene-
gada pelas feministas com o propósito de que aquelas discussões
não deveriam desviar as atenções das reivindicações feitas, naquele
momento, por mulheres principalmente brancas e da classe média.
Somente a partir da década de 1970 o feminismo lésbico começa a
ganhar espaço nas discussões das lutas feministas. Contudo, confor-
me comenta a feminista Rich (2010), a institucionalização da “hete-
rossexualidade compulsória” apaga as existências lésbicas, além de
prejudicar as possibilidades de as mulheres vivenciarem experiências
de identificação entre si e vivenciarem a lesbianidade.
Pode-se perceber que o processo de medicalização do corpo da

38
Mulheres e feminismo: história e desafios

mulher, originado no final do século XVIII, ainda apresenta característi-


cas atuais de controle e regulação biopolítica. Contudo, as estratégias
de controle do corpo feminino na contemporaneidade se estabelecem
de forma diferente da dos séculos anteriores, mas ainda são inúmeras
as formas de gerenciamento do corpo da mulher presentes na reali-
dade brasileira, a saber: a imposição de um padrão de beleza femini-
na como condição de aceitação social; a dificuldade de veiculação de
informações sobre sexualidade feminina e prazer sexual da mulher; o
controle das funções reprodutivas com restrições para a realização
do aborto diante de uma gravidez indesejada; as investidas da mídia
de massa que exacerbam a “cultura do estupro”; os altos índices de
violência doméstica e de feminicídio no país, principalmente de mu-
lheres negras. Essas normas concretizam as iniquidades de gênero
em um viés machista e misógino, que precisam ser enfrentadas pelas
movimentações feministas que se estabelecem em diferentes frentes
de luta e vertentes teóricas.

2.2 Movimento feminista e a resistência ao heteropatriarcado racista

Os movimentos de enfrentamento ao controle do corpo femi-


nino e de luta contra as desigualdades de gênero não são recentes.
Tomam evidência no final do século XIX, quando em diversos países
do mundo, inclusive no Brasil, se organizam movimentos feministas
que reivindicam direitos e demarcam os processos de luta e resistên-
cia política e social (RAGO, 2004). Quando o tema tratado é a história
das mobilizações feministas, algumas pesquisadoras dividem esses
movimentos em três momentos históricos ou em três ondas.
O feminismo como movimento político e intelectual nasce no
final do século XVIII, em meio à Revolução Francesa, época em que se
publica a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Trata-se da
denominada primeira onda do feminismo e representa o nascimento
do movimento, constituído pela luta das mulheres para conquistar o
direito à educação, ao voto e à igualdade de casamento. Esse movi-
mento ganha outros matizes no século XIX, com demandas relacio-

39
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

nadas às melhorias das condições de trabalho, à luta pela igualdade


salarial entre mulheres e homens nas fábricas e ao direito ao voto fe-
minino encabeçado pelo movimento sufragista. É também o momento
de constituição de um tipo de feminismo socialista (MIGUEL; BIRO-
LI, 2014), marcado pelas ilustres Emma Goldman (1869-1940), para
quem o feminismo burguês e o sufragismo não seriam capazes de
libertar as mulheres da opressão, e Alexandra Kolontai (1872-1952),
militante da Revolução Russa de 1917 e autora do livro A nova mulher
e a moral sexual, que critica as estruturas opressivas da família e do
casamento e defende o amor livre e a responsabilidade coletiva da
educação e cuidado das crianças (KOLONTAI, 2011).
Os objetivos do movimento feminista, naquela época, eram o
combate à discriminação imposta pelo patriarcado e a luta pela ga-
rantia de direitos, inclusive do direito ao voto, obtido pelas mulheres
de alguns países na primeira metade do século XX. Além do direito
ao voto, aquelas mobilizações de mulheres também promoveram a
conquista do direito ao divórcio, de outros espaços no mercado de tra-
balho, da possibilidade de estudar e exercer uma profissão e da repre-
sentatividade nos espaços políticos e sociais, entre outros aspectos.
A segunda fase do feminismo surge na metade do século XX, em
especial nos Estados Unidos e na França, momento no qual há um im-
pulsionamento para que questões vistas e tratadas como do espaço
privado fossem trazidas para o âmbito da discussão política, o que po-
deria proporcionar a dissolução da dicotomia público-privado. Enquan-
to as feministas americanas enfatizavam a denúncia da opressão mas-
culina e a busca da igualdade, as francesas postulavam a necessidade
de serem valorizadas as diferenças entre homens e mulheres, dando
visibilidade, principalmente, à especificidade da experiência feminina,
geralmente negligenciada (NARVAZ; KOLLER, 2006).
Livros como o Segundo Sexo, publicado no ano de 1949, por
Simone de Beauvoir (1908-1986), e a Mística Feminina, publicado em
1963, por Betty Friedman (1921-2006), se transformaram em manu-
ais das feministas francesas e norte-americanas, que em coletivos
discutiam sobre liberdade sexual, masturbação e orgasmo feminino.

40
Mulheres e feminismo: história e desafios

Foi igualmente o momento da sintetização e veiculação da pílula anti-


concepcional, no início da década de 1960, e que proporcionaria a tão
sonhada liberdade sexual feminina no bojo dos movimentos hippie, da
contracultura, do amor livre e do Maio de 68. “É possível dizer que esse
foi o momento de maior repercussão do pensamento feminista – e a
atual ofensiva antifeminista, tão presente no discurso da mídia e de um
certo senso comum” (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 29). No Brasil, Bertha
Lutz (1894-1976) impulsionava a reflexão feminista a partir dos anos
1960, época na qual Heleieth Saffioti (1934-2010) também defendia, em
1967, sua tese de livre-docência, com discussões marxistas significa-
tivas sobre classe social e gênero. Constituiu-se uma época na qual a
luta contra a ditadura militar no país instigava as militantes ao combate
e à resistência, o que também culminou, posteriormente, em denúncias
impactantes sobre as violências, sofridas nos porões da ditadura, pelas
mulheres que tinham seus corpos violados, de formas atrozes, por tor-
turadores insanos (SARTI, 2004).
Contudo, as mobilizações feministas daquele período não in-
cluiriam as especificidades das demandas das mulheres negras e lés-
bicas, o que ocasionou inúmeras críticas. Percebia-se, como comenta
bell hooks (2018), que, no movimento negro, a luta contra o racismo
estrutural não incluía discussões e demandas específicas das mulhe-
res negras que participavam das mobilizações. No movimento socia-
lista, a luta contra a sociedade de classes não dava voz às reivindica-
ções relacionadas ao gênero feminino e, no movimento feminista, o
domínio de mulheres brancas de classe média impossibilitava que as
exigências das mulheres negras, lésbicas e pobres fossem ouvidas.
Na década de 1980, a crítica pós-modernista da ciência ociden-
tal introduz o paradigma da incerteza no campo do conhecimento. É o
momento de constituição da chamada terceira fase ou terceira onda
do feminismo. As feministas francesas, influenciadas pelo pensamento
pós-estruturalista que predominava na França, especialmente por in-
fluência do pensamento de Michel Foucault, enfatizavam a questão da
diferença dos sujeitos e da singularidade das experiências, concebendo
que as subjetividades são construídas pelos discursos, em um campo

41
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

que é sempre dialógico e intersubjetivo. É igualmente o período no qual


os debates feministas englobam os estudos Queer, a luta antirracista e
as perspectivas decoloniais (NARVAZ; KOLLER, 2006). Nessa terceira
fase do movimento feminista, observa-se intensamente a intersecção
entre a mobilização de luta das mulheres e a academia, em que come-
çam a ser criados nas universidades, inclusive em algumas universida-
des brasileiras, centros de estudos sobre mulher, gênero e feminismo.
Na contemporaneidade, autoras como Marlise Matos (2010) e
Jacilene Silva (2019) apresentam a possibilidade de pensar na cons-
tituição de uma quarta onda do movimento feminista. Trata-se do
momento no qual mulheres latino-americanas, ao vivenciarem novos
interesses nos debates feministas veiculados nas plataformas de re-
des sociais e mídias digitais, tendem a incluir nas mobilizações atuais
debates sobre as intersecções entre raça, classe social, faixa etária
e performance sexual, além de abarcar tentativas de articulações de
uma atuação feminista decolonial e de luta anticapitalista.
Em vista disso, pode-se perceber que as diferentes fases ou
momentos do feminismo se estabeleceram em épocas distintas, his-
toricamente construídas conforme as necessidades políticas, o con-
texto social e as possibilidades pré-discursivas de cada tempo. Se-
gundo Narvaz e Koller (2011, p. 649), “não há, na atualidade, um só
feminismo, unívoco e totalizante, mas vários feminismos”.
No entanto, como comenta Ochy Curiel (2020, p. 134), ao investir
no pensamento sobre qual feminismo “impulsionar, viver, experimen-
tar”, como proposta de transformação das relações que não sejam ma-
chistas, racistas, heterossexistas nem classistas, é preciso dar desta-
que às mobilizações atuais do feminismo interseccional e decolonial.
De acordo com Heloísa Buarque de Holanda (2020), a crise do capita-
lismo global na atualidade, o desgaste da democracia representativa e
a ascensão de uma direita conservadora com discursos neofascistas,
tem levado feministas a elaborarem estratégias de enfrentamento e re-
sistência, as quais tendem a interpelar as epistemologias heteronorma-
tivas coloniais e propõem a construção de políticas feministas decolo-
niais e interseccionais.

42
Mulheres e feminismo: história e desafios

Nessa perspectiva, Carla Akotirene (2018, p. 14) define a inter-


seccionalidade como um processo que
[...] visa dar instrumentalidade teórica-metodológica à inse-
parabilidade estrutural do racismo, do capitalismo e do cishe-
teropatriarcado, onde mulheres negras são repetidas vezes
atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e
classe nos modernos aparatos coloniais.

Da mesma forma, Patrícia Hill Collis (2019), feminista negra es-


tadunidense, compreende a interseccionalidade como um sistema de
opressão interligado. Assim, a noção de interseccionalidade, constitu-
ída no âmbito do movimento feminista negro, foi criada por Kimberlé
Crenshaw, intelectual norte-americana, que, em 1989 publica, pela pri-
meira vez, o termo interseccionalidade para denunciar a marginaliza-
ção estrutural e a violência sofrida por mulheres negras. Porém, antes
de Crenshaw, Sojourner Truth (1797-1883), militante afro-americana
abolicionista, já indagava em seu memorável discurso Não sou eu uma
mulher?, proferido na Convenção das Mulheres ocorrida em 1851, sobre
articulações entre raça e classe social.
Na mesma perspectiva de intersecção, a filósofa Angela Davis
(2016), no início dos anos 1980, em sua obra Mulheres, raça e clas-
se, retoma esse debate sobre as relações entre raça, classe e gênero.
Apesar de não se utilizar do termo interseccionalidade, já discutia em
seu livro o racismo estrutural e o machismo da sociedade patriarcal
capitalista estadunidense, que oprime as mulheres negras. Davis, em
sua história pessoal de luta contra o sistema capitalista e de enfrenta-
mento ao machismo, que pode ser acompanhado no bonito documen-
tário Libertem Angela Davis (LYNCH, 2012), tem marcas da persegui-
ção e prisão por contestar a lógica que atravessa as questões de raça,
classe e gênero. Assim, a autora também denuncia, por meio de uma
reconstituição histórica, o processo de opressão e violência vivido pe-
las mulheres negras, que, desde o período da escravidão norte-ame-
ricana até a contemporaneidade, ainda são submetidas ao racismo,
ao machismo e ao processo de pauperização e/ou vulnerabilização
promovidos pelo Estado. Assim como Davis, bell hooks (2018) explica
que o movimento negro não incluía as pautas das mulheres e o movi-

43
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

mento feminista, ao longo do século XX, deixava de lado as demandas


e especificidades do feminismo negro.
Nesse contexto, Akotirene (2018, p. 52) nos convida a cruzar o
Atlântico para descolonizar as perspectivas sobre interseccionalidade e
para compreender a história forçada da migração compulsória de afri-
canas e africanos, transformados em escravos na América: “[...] em uma
memória salgada de escravismo” e que se consumou em uma “língua
amordaçada politicamente”. Del Priore (2020), no livro Sobreviventes e
Guerreiras, nos mostra que as mulheres negras submetidas ao proces-
so de escravidão no período colonial eram frequentemente torturadas
e estupradas por seus senhores, que as viam como sua propriedade
privada. Além disso, até mesmo os filhos resultantes da violação das
mulheres negras por seus patrões eram tidos como objeto e eram ven-
didos e escravizados.
A condição de subalternização dos corpos negros pouco se
transformou após a abolição da escravatura. Mesmo durante o século
XX, o processo de exploração e opressão de mulheres negras brasilei-
ras quase não se modificou. Como afirma bell hooks (2018), as mulhe-
res negras sempre foram trabalhadoras nas casas das mulheres bran-
cas que saíam para reivindicar direitos civis e políticos no movimento
feminista das décadas de 1960 e 1970. Mais especificamente, quando o
tema são as condições de trabalho das mulheres negras no Brasil atual,
Djamila Ribeiro (2017), intelectual negra feminista, apresenta os dados
do IBGE publicados em 2015, os quais mostram que mulheres brancas
ganham 30% a menos que homens brancos, homens negros ganham
menos que mulheres brancas e mulheres negras ganham menos que
todos. Complementado essas informações, dados do Instituto de Pes-
quisa Econômica Aplicada (IPEA), publicados no ano de 2016, demons-
tram que mulheres negras são mais suscetíveis ao desemprego (10%).
No tocante à precarização do trabalho, as informações obtidas apon-
tam que 39% das mulheres negras estão subjugadas a relações muito
insatisfatórias de trabalho, seguidas dos homens negros (32%).
Além disso, quando se debatem questões relacionadas à vio-
lência contra a mulher, o recorte de raça também se faz significati-

44
Mulheres e feminismo: história e desafios

vo. Dados referentes ao Brasil mostram que somos o quinto país com
maior índice de feminicídio no mundo. Ainda segundo esses dados,
uma mulher é assassinada a cada duas horas, sendo que 61% dessas
mulheres são negras e 88,8% dos autores dos casos de feminicídio
são seus companheiros ou ex-companheiros (RELATÓRIO DE SEGU-
RANÇA PÚBLICA, 2019).
Nessa perspectiva, conforme comenta Akotirene (2018, p. 16),
a estarrecedora violência cometida por racistas e o alto índice de as-
sassinatos de jovens negros no Brasil, que alguns definem como ge-
nocídio da população negra, permitem reflexões sobre a condição das
mulheres negras brasileiras, as quais, ainda na atualidade, “temem en-
terrar seus filhos vitimados pelas necropolíticas”, ou seja, aquilo que
Mbembe (2018), filósofo negro camaronense inspirado no conceito
de biopolítica de Foucault, define como estratégia do Estado escolher
quem deve viver e quem deve morrer. É o Estado Moderno engendran-
do métodos de controle populacional e determinando o extermínio de
determinadas camadas da população. É o Estado que adota a política
da morte, o uso da força e do aniquilamento de pessoas considera-
das abjetas (MBEMBE, 2018), como o que ocorre com o extermínio de
pessoas negras e pobres nas favelas e periferias das grandes cidades
brasileiras, onde a polícia mata nos lugares em que parece haver uma
“licença para matar” (Mariana FERRARI, 2019). Dados do Relatório de
Segurança Pública (2019) indicam que 75% dos jovens mortos pela
polícia no Brasil são negros.
Nessa conjuntura, o feminismo interseccional pode ser com-
preendido como um movimento que se propõe a enfrentar de forma
dialógica o racismo estrutural, as explorações do modo de produção
capitalista e as imposições de discursos e práticas do “cishetero-
patriarcado”, que submete e atravessa corpos normatizados de mu-
lheres, ignorando a diversidade de gênero, de sexualidade, de perfor-
mances corporais e de tipos de corpos (gordos ou magros) dessas
mulheres. Esse feminismo se propõe a tratar, em um mesmo pata-
mar de igualdade analítica, raça, classe e gênero (AKOTIRENE, 2018).
De acordo com Audre Lorde (2019, p.139) “não existe hierarquia de

45
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

opressão”, porque para ela não é possível lutar contra uma única for-
ma de opressão.
Não obstante, no contexto latino-americano e, mais especifica-
mente brasileiro, a interseccionalidade dos estudos feministas parece
não contemplar significativas ponderações e debates decoloniais. A
proposta da descolonização feminista oferece, como afirma a afro-
-domenicana Ochy Curiel (2020), um pensamento crítico para ques-
tionar a historiografia oficial eurocêntrica e imperialista. Além do mais,
critica o feminismo hegemônico branco, que ignora a complexa rela-
ção de entrelaçamento entre raça, classe, idade, performance sexual e
corporal. O feminismo decolonial, termo proposto por Maria Lugones
(2018), intelectual feminista argentina, propicia a valorização da po-
tência metodológica das epistemes latino-afro-caribenhas, vistas, em
diversas ocasiões, pelo feminismo europeu e estadunidense como um
mero ativismo improdutivo (AKOTIRENE, 2018).
Assim, a subalternidade do feminismo latino-americano e afri-
cano se dá por meio de atravessamentos de discursos e práticas es-
tabelecidos historicamente pelos processos de colonização. Segundo
Lugones (2020), a proposta de um feminismo decolonial nos serve para
pensar nas políticas interseccionais de gênero, classe, nação e sexua-
lidade, até mesmo compreendendo a produção dessas diferenças no
âmbito do capitalismo colonial para enfrentar o androcentrismo euro-
peu de padrão hétero-branco hebraico-cristão.
Segundo essa lógica, as mobilizações de um feminismo deco-
lonial aparecem para denunciar que a experiência masculina eurocên-
trica tem sido privilegiada ao longo da história, enquanto a feminina,
negligenciada e desvalorizada. O feminismo decolonial entende o gê-
nero como elemento estruturante do processo de colonização viven-
ciado pelas mulheres africanas, caribenhas e latino-americanas; e
denuncia a imbricação entre heteronormatividade, classificação racial
e capitalismo, propondo estratégias de enfrentamento da exclusão ra-
cial e do capitalismo colonial.

46
Mulheres e feminismo: história e desafios

2.3 À guisa de conclusão propõe-se estratégias de resistência


feminista

Na diversidade de mobilizações feministas, é necessário dar


destaque à luta comum dos vários feminismos pelo enfrentamento ao
controle e normalização biopolítica e disciplinar do corpo da mulher, es-
pecialmente pela garantia da igualdade de gênero. Trata-se de pensar
nas mobilizações de resistência feminista contra discursos e práticas
normativas que submetem as mulheres e sujeitam a sexualidade e a
diversidade de gênero aos moldes fixos de subjetividades formatadas.
Assim, na tentativa de analisar o movimento feminista como uma es-
tratégia de resistência, Foucault (1982/1995, p. 239) nos direciona ex-
plicitando que um dos objetivos de resistir é “promover novas formas de
subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos
foi imposta há vários séculos”.
Nessa perspectiva, as possibilidades de resistência estão inte-
gradas às estratégias de poder e parecem indicar não apenas denún-
cias da ordem moral ou reivindicações feitas unicamente por direitos,
mas devem ser entendidas no âmbito das estratégicas e das lutas. É
preciso, dessa maneira, entender os aspectos comuns dessas lutas:
(1) as resistências são “transversais”, pois não ocorrem em um único
lugar ou país (isso significa que não estão direcionadas a um enfren-
tamento específico de uma forma política e econômica de um gover-
no); (2) o objetivo da formação das lutas contemporâneas decorre do
poder sobre corpos e subjetividades; (3) as resistências às estratégias
de poder devem ser entendidas como embates imediatos, por critica-
rem, de um lado, os mecanismos de poder próximos ou os “inimigos
imediatos” e, de outro, por não aguardarem soluções para um futu-
ro revolucionário; (4) as resistências se constituem como movimen-
tos que enfatizam o direito à diferença e reivindicam a valorização
da singularidade da existência humana; (5) as resistências são lutas
sociais contra os efeitos do saber-poder sobre mulheres e homens,
que, submetidos aos discursos e práticas normativas, se opõem aos
“privilégios do saber” produtor de verdades universais, a-históricas e

47
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

absolutas sobre o humano; (6) as resistências são enfrentamentos


contra violências econômicas e ideológicas que desconsideram a plu-
ralidade humana e investem em pesquisas científicas para determinar
“quem somos” (FOUCAULT, 1995).
Dessa forma, os movimentos de luta e resistência feminista não
constituem somente enfrentamentos dirigidos necessariamente a uma
instituição de poder específica ou à classe econômica dominante, mas
também ataques e tentativas cuja finalidade é escapar das tecnologias
e dos efeitos de poder que submetem e subjugam as mulheres à socie-
dade normativa. Nas palavras de Foucault (1995, p. 236):
[...] atualmente, a luta contra as formas de sujeição – contra
a submissão da subjetividade – está se tornando cada vez
mais importante, a despeito de as lutas contra as formas de
dominação e exploração não terem desaparecido. Muito pelo
contrário.

Nesse contexto, o movimento feminista, na condição de es-


tratégia de resistência, também engendra, direta ou indiretamente,
tecnologias para resistir aos processos de “histerização do corpo da
mulher”, de “pedagogização do sexo das crianças”, de “socialização
das práticas reprodutivas” e de “psiquiatrização do prazer perverso”
(FOUCAULT, 1977).
No movimento de resistir à “histerização do corpo da mulher”,
luta-se contra discursos e práticas disciplinares e biopolíticas que ten-
tam adaptar o corpo feminino a uma perspectiva histórica da classe
burguesa branca, europeia e colonialista que subalternizou e assujeitou
mulheres ao dispositivo da maternidade. Sobretudo, luta-se contra a
ideia da naturalização da maternidade compulsória e inerente à exis-
tência da mulher – o que permite, na atualidade, o direito de as mulhe-
res optarem pela não maternidade. Entretanto, para além de suas várias
lutas, é necessário que as movimentações feministas também consi-
gam garantir os direitos sexuais e reprodutivos, com a distribuição gra-
tuita de métodos anticonceptivos, além do fortalecimento dos debates
e discussões sobre a descriminalização e legalização do aborto, o que
permitirá às mulheres a interrupção de uma gravidez indesejada, com o
apoio de toda uma equipe especializada em serviços de saúde pública

48
Mulheres e feminismo: história e desafios

quando necessário (Beatriz GALLI, 2020).


A resistência aos processos de “pedagogização do sexo das
crianças” pode estimular a educação e a formação de crianças fe-
ministas (Chimamanda ADICHIE, 2017) e representar o rompimento
com as noções de que a mulher deve ocupar exclusivamente espaços
privados e ser a única e exclusiva responsável pelos cuidados para
com os filhos e afazeres domésticos. São modificações que poderão
culminar em mulheres assumindo outras posições nos espaços políti-
co-sociais e no mundo do trabalho, aumentando a representatividade
feminina no campo político-democrático. Tal resistência pode resultar
em outras possibilidades de educação infantil que proporcionem, por
exemplo, o rompimento com subjetividades masculinas forjadas em
concepções de virilidade sexual e laborativa (ZANELLO, 2018). Con-
sequentemente, isso poderá significar, entre outras relações sociais,
a não perpetuação de violências psicológicas, patrimoniais, morais,
sexuais e físicas contra mulheres. Além de poder representar passos
importantes na desconstrução da “cultura do estupro”, disseminada
em diversas esferas sociais brasileiras.
Resistir aos discursos e práticas de “socialização das condutas
reprodutivas” pode indicar o rompimento da submissão das mulheres
ao domínio masculino no enlace matrimonial e representar outra rela-
ção da mulher com seu corpo, sua sexualidade e seu prazer orgástico.
Para tanto, viabilizar espaços diversos de discussões e debates com
informações sobre a sexualidade feminina, desmistificando até mes-
mo saberes médico-higienistas reproduzidos sob outras roupagens
na contemporaneidade, poderá proporcionar outras relações das mu-
lheres com seu corpo e o prazer sexual (RAGO, 2002).
O movimento de resistência à “psiquiatrização do prazer per-
verso” poderá constituir enfrentamentos aos discursos e práticas so-
ciais que culminam em lesbofobia, perseguição e violência às mulhe-
res que desejam e rompem com a “heterossexualidade compulsória”.
Tal perspectiva pode proporcionar a superação do falocentrismo, que
ainda se encontra presente nas relações afetivas e sociais de mulhe-
res e homens, e que, sobretudo, significou durante décadas rotulações

49
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

psiquiátricas e medicalização manicomial e psicofarmacológica do


corpo feminino considerado anormal e desajustado.
Sob tal ponto de vista, as estratégias de resistência possibili-
tam uma série de contracondutas que significam, como afirma Fou-
cault (2008, p. 256), “movimentos que têm como objetivo outra con-
duta”, o que, em outras palavras, pode fundamentar formas inventivas
de se colocar no mundo, e embasar novas maneiras de relacionar-se
consigo e com os outros; enfim, que pode representar “novas oportu-
nidades de constituição de subjetividades” (RAGO; PELEGRINI, 2019,
p. 10-11).
Conforme comenta Donna Haraway (2000), não é possível con-
ceber uma noção de mulher universal, a-histórica, pois são os dis-
cursos científicos sobre a sexualidade e outras práticas sociais que
determinam a diversidade de subjetividades femininas e a pluralidade
de mulheres na contemporaneidade. Nesse sentido, as subjetividades
femininas precisam ser compreendidas nas complexidades que defi-
nem mulheres de acordo com os marcadores sociais que impõem e
gerenciam escalas desiguais de direitos, nas suas intersecções com
classe, raça/cor, gênero, idade, estado civil, escolaridade, capacitismo,
performances sexuais. São aspectos que participam dos processos
de subjetivação e autorizam práticas que tanto emancipam quanto
aprisionam os corpos, os prazeres, os desejos, os pensamentos, e que
podem estar restritos aos regimes de verdades que se materializam
na identidade mulher.
Apesar das conquistas feministas, os desafios são grandes em
lutas diárias e cotidianas contrárias ao conservadorismo político, so-
cial, cultural e familiar, do mundo do trabalho e dos espaços científicos
e acadêmicos. Por essa razão, surge a defesa de um feminismo inter-
seccional decolonial, que enfatiza a resistência aos diferentes modos
de opressão de gênero, raça e classe, operando contra os processos
de colonização capitalista que ainda nos permeiam como mulheres
latino-americanas.
Para concluir esta reflexão é preciso apontar que o feminismo,
em suas múltiplas vertentes, é um movimento de esquerda, crítico do

50
Mulheres e feminismo: história e desafios

capitalismo colonial, e que deve tratar, principalmente, da luta contra


a opressão e em favor do empoderamento feminino. Para tanto, é ne-
cessário manter a atenção redobrada com relação aos discursos indi-
vidualizantes de um feminismo neoliberal que tende a capturar pautas
feministas para dizer que as mulheres devem ser empresárias de si
mesmas, empreendedoras de seu corpo como capital humano a fim
de alavancar carreiras profissionais. O discurso da meritocracia neo-
liberal tende a determinar padrões de beleza/corpo a serem seguidos,
mercadorias a serem consumidas e objetos a serem conquistados
de forma individual, se supostamente essas mulheres estiverem per-
seguindo seus próprios interesses e investindo em si mesmas. Esse
movimento que chamam de feminismo está distante das pautas es-
senciais para a resistência feminista atual, que exige a “coragem da
verdade” e o posicionamento contrário a todas as formas de explora-
ção e opressão, compreendendo que as contracondutas atravessam
a constituição subjetiva de novas mulheres feministas que não sejam
marcadas pela ideia de “empresárias de si mesmas”, nem promovam
a sociabilidade competitiva como forma única de convivência” (PELE-
GRINI, 2019, p. 210). Como nos mostra Rago (2019), é preciso compre-
ender que o feminismo é um movimento de esquerda, anticapitalista,
e que propõe a construção de um mundo mais solidário, humano e
filógino.

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CAPÍTULO 3
FEMINISMO MARXISTA:
UTILIZANDO O MATERIALISMO
HISTÓRICO PARA ANALISAR AS
MÚLTIPLAS ESPOLIAÇÕES PELAS
QUAIS PASSAM AS MULHERES

Bianca Valoski

Fazer junção entre feminismo e marxismo consiste em colocar


as lentes do materialismo histórico para analisar a sociedade – neste
caso, evidenciando a situação da mulher. Isso significa entender toda
a construção social, no seu sentido objetivo, material, sobre a qual o
feminino foi colocado ao longo da história. Significa compreender, nos
processos e relações, a posição de desvantagem ocupada pelas mu-
lheres em geral, particularmente as que unem sua condição de gênero à
étnica, à de classe e à região em que vivem. Tendo em vista que o modo
de produção capitalista gera um sistema de relações sociais muito par-
ticular e determinado, no qual toda a humanidade se relaciona por in-
termédio da mercadoria e do dinheiro, essas relações se expressam e
se coisificam em preços.
É necessário ter em mente que o modelo civilizatório capitalista,
com a sua lógica de acumulação, está desenhado para que se incorpo-
rem pessoas que não têm que cuidar de nada; os horários e as modali-
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

dades são pensados para quem deve dar uma dedicação exclusiva. As
necessidades produtivas organizam o tempo social, sem ter em conta
o tempo necessário para a reprodução da vida. Dessa forma, nas posi-
ções sociais que trabalham para a reprodução da vida, manifestam-se
a desigualdade e a hierarquia do atual modelo civilizatório. O cuidado
da vida, que implica a cotidiana alimentação, a higiene do habitat, aten-
ção especial e frequente às crianças, aos idosos e outros dependentes,
cuidados com a saúde, companhia e afeto, revela a divisão sexual do
trabalho e as derivadas injustiças (Alba CAROSIO, 2010).
Soma-se a isso o fato de que as sucessivas políticas de ajuste
econômico tiveram um grande impacto social, aumentando a pobre-
za e o desemprego. Esse impacto foi muito maior para as mulheres,
que passaram a sofrer significativamente a pobreza, a sobrecarga de
trabalho e a piora das condições de saúde, educação e moradia (Mag-
dalena VALDIVIESO, 2010). Diversos fatores inseriram as mulheres em
uma posição mais crítica em tempos de crise, entre eles: taxas de em-
prego mais baixas, menor acesso à propriedade e aos recursos, con-
centração em empregos informais e com salários mais baixos, menor
proteção social e responsabilidade quase exclusiva pelo trabalho do-
méstico. Se, em tempos de expansão capitalista a equidade de gêne-
ro não foi alcançada, em tempos de crise, a inequidade se acentuou
(VALDIVIESO, 2010). Os dados recentes sobre o Brasil confirmam isso.
Nos impactos com relação a gênero, a taxa de desocupação do
Brasil, no 1º trimestre de 2020, foi de 12,2% da população. Entre as
mulheres era de 14,5%, e entre os homens, 10,4% (EBC, 2020). Entre
as mulheres, quanto à força de trabalho potencial – ou seja, as que
estavam disponíveis para trabalhar, mas não procuraram trabalho –,
um motivo aparece com destaque, segundo o IBGE (2019). De acor-
do com esses dados, 19,7% das mulheres afirmaram não ter buscado
trabalho por precisarem cuidar dos afazeres domésticos, dos filhos ou
de outro parente. O mesmo motivo representou, em 2018 apenas 2,2%
das respostas dos homens. Na análise por grupo de atividade econô-
mica, observou-se que as atividades que mais concentraram pessoas
em ocupações informais foram os serviços domésticos (72,2%) e a

58
Mulheres e feminismo: história e desafios

agropecuária (66,9%). O recorte por sexo revelou que as taxas mais


elevadas de informalidade no mercado de trabalho entre as mulheres
ocorrem justamente em tais atividades, sendo que na primeira elas
representam 73,1% e, na segunda, 74,6% dos ocupados no mesmo ano
de referência. Sobre os salários, no balanço geral em 2018, os brancos
ganhavam em média 73,9% mais do que pretos ou pardos, e os ho-
mens ganhavam, em média, 27,1% mais que as mulheres.
A fusão entre o neoliberalismo e a reestruturação produtiva,
dentro de um universo conduzido pelo capitalismo financeiro, gerou
profundas transformações no mundo do trabalho, marcadas pela in-
formalidade, flexibilização e terceirização, sentidas de forma ainda
mais drástica pelo contingente feminino da força de trabalho. O neo-
liberalismo é uma doutrina que promete a liberdade de escolha, mas
na verdade a tal liberdade de escolha encobre a falta de alternativas
(Laura CARVALHO, 2018).3 Assim, justamente sob um discurso de que
não havia qualquer outra saída para o Brasil, a não ser a da austerida-
de, o governo promoveu, a partir de 2015, o maior contingenciamento
na autorização orçamentária, desde o início da Lei de Responsabili-
dade Fiscal.
Entre 2004 e 2015, houve um aumento constante da participação
dos salários no PIB, o que significa uma melhora na distribuição funcio-
nal da renda em favor dos salários, em detrimento das demais rendas
(em especial, as do capital). Também foi constatada uma importante
redistribuição do rendimento secundário associada aos gastos sociais,
tanto ao nível do rendimento disponível quanto pelo efeito indireto do
acesso aos serviços sociais (Esther DWECK, SILVEIRA & ROSSI, 2018).
Essa última medida é particularmente importante para o cenário de de-
sigualdades brasileiro: ajuda a compensar o sistema tributário, devido
a sua lógica regressiva, mas à custa dos mais pobres.
Porém, mediante diversos tipos de pressões, em 2016 foi apro-
vada a Emenda Constitucional 95/2016 (EC - 5-Teto dos Gastos), que

3 TINA é o acrônimo do inglês para there is no alternative, slogan político cuja criação é
usualmente atribuída a Margaret Thatcher, quando ela era a primeira-ministra do Reino
Unido. É utilizado com o sentido de que não há alternativa às leis do mercado, ao capita-
lismo, ao neoliberalismo e à globalização.

59
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

instituiu regras para as despesas primárias do Governo Federal, com


duração de vinte anos. Com relação a isso, é importante destacar que
nenhum país do mundo estabeleceu uma regra para gastos públicos
como essa, a qual, em síntese, institui uma austeridade permanente.
O não crescimento real das despesas totais do Governo Federal resul-
tará em uma redução do gasto público relativamente ao PIB (Produto
Interno Bruto) per capita (devido ao crescimento da população ao lon-
go dos anos). Se o PIB brasileiro crescer nos próximos vinte anos no
ritmo dos anos 1980 e 1990, a EC do teto de gastos, se mantida, levará
o país de um percentual de gastos públicos em relação ao PIB da or-
dem de 40% para 25%, patamar semelhante ao verificado em Burkina
Faso ou no Afeganistão (CARVALHO, 2018). E, como não poderia ser
diferente, a mulher é a mais prejudicada em relação ao impacto que tal
emenda constitucional ocasiona. Marilane Teixeira (2018, p. 285) bem
elucida tal situação nesta passagem:
[...] dados de previsão orçamentária para 2018 indicam os
programas com maior impacto, na comparação com 2014
medidos em valores reais: políticas de enfrentamento à vio-
lência (-83,0%); promoção da igualdade racial (-71,3%); pro-
moção dos direitos a juventude (-95,6%); promoção e defesa
dos direitos humanos de crianças e adolescentes (- 83,2%);
promoção e defesa dos direitos humanos (-47,4%); reforma
agrária e governança fundiária (-86,5%); segurança alimentar
e nutricional (-97,7%); programa bolsa família (-16,0%). Em
2014 a verba destinada as políticas para as mulheres com
objetivo de promover a autonomia e combate à violência che-
gava a R$ 147 milhões e caiu para R$ 24 milhões em 2018,
queda de 83% no orçamento. De acordo com o INESC, entre
2014 e 2017, em torno de 164 serviços especializados, como
abrigos, centros de atendimento, delegacias e varas, foram
fechados em todo o país.

Esta introdução evidencia que a condição da mulher, mediante


os ajustes econômicos ocorridos nos últimos anos, tem se deteriora-
do, ainda que, o debate sobre feminismo esteja bastante em alta nos
últimos anos. Logo, a questão que se apresenta é entender o porquê
dessa situação. Para que isso ocorra, o feminismo marxista torna-se
ferramenta fundamental. Assim, a próxima seção tratará de expor a
acumulação originária sobre os corpos femininos; a seguinte aborda-

60
Mulheres e feminismo: história e desafios

rá o trabalho produtivo e reprodutivo, a fim de adentrar as considera-


ções finais.

3.1 Acumulação originária sobre os corpos femininos

A acumulação originária do capital abrange um conjunto de


processos não capitalistas que prepararam e aceleraram o surgimen-
to do modo de produção capitalista, uma época com destacado uso
da violência. Marx (1985a) elenca quais são os processos (no contex-
to europeu) que ele entende como método para tal: i) os cercamentos
de terra, que expulsaram os camponeses dos lugares em onde viviam,
fato que os torna despossuídos e faz com que surja o trabalhador
moderno; ii) o confisco de terras da Igreja Católica e sua distribuição
entre aristocratas e burgueses rurais; iii) o sistema de dívida públi-
ca; iv) o sistema tributário e protecionista; v) o colonialismo da épo-
ca mercantilista, com o comércio ultramarino baseado na exploração
dos recursos naturais das Américas, por meio do aniquilamento da
população nativa e da escravização de africanos. Na passagem a se-
guir, Marx (1985ª, p. 285 e 286) faz estas importantes considerações:
Tais métodos, como, por exemplo, o sistema colonial, ba-
seiam-se, em parte, na violência mais brutal. Todos eles,
porém, lançaram mão do poder do Estado, da violência con-
centrada e organizada da sociedade, para impulsionar artifi-
cialmente o processo de transformação do modo de produ-
ção feudal em capitalista e abreviar a transição de um para
o outro. A violência é a parteira de toda sociedade velha que
está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma po-
tência econômica.

A reestruturação social e econômica iniciada pela classe do-


minante europeia demonstra que: i) o capitalismo não poderia ter se
desenvolvido sem uma concentração prévia de capital e trabalho; ii)
a dissociação entre trabalhadores e meios de produção, não a abs-
tinência dos ricos, é a fonte de riqueza. Pois o sistema capitalista
pressupõe a destruição dos meios autônomos de vida, basicamente
na expropriação da terra e dos instrumentos produtivos. Passa en-

61
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

tão a produzir o que antes trabalhadores independentes realizavam


para prover sua própria subsistência, criando mercadorias que serão
consumidas mediante o salário ganho com a venda de sua força de
trabalho. Entender a acumulação primitiva é necessário, uma vez que
tal conceito conecta a queda do feudalismo ao desenvolvimento de
uma economia capitalista, além de identificar as condições históricas
e lógicas para o desenvolvimento do sistema capitalista, em que “pri-
mitiva” (“originária”) indica tanto uma precondição para a existência
de relações capitalistas quanto um evento específico no tempo (Silvia
FEDERICI, 2017).
Entretanto, não é como se tal conceito estivesse livre de dis-
cussões acerca da sua dimensão. Há vários debates entre estudiosos
marxistas que tratam, por exemplo, da necessidade de o capitalismo
precisar, ainda atualmente, de mercados externos para fazer circular
sua produção (Rosa LUXEMBURGO, 1985), mecanismo que opera na
forma de imperialismo moderno,4 que também não abre mão da vio-
lência para fazê-lo; ou, ainda, nos seus modos mais contemporâne-
os de expropriar terras de forma brutal, tal como a periferia é retirada
de suas moradias em razão da especulação imobiliária; as florestas
derrubadas com o fim de plantar grãos; populações indígenas e ri-
beirinhas retiradas de suas terras para a construção de barragens
destinadas a usinas hidroelétricas… A esses processos Harvey (2005)
chamou de acumulação por espoliação.
Todas essas ponderações são importantes e demonstram que
realmente há muito o que se pensar sobre as diferenças entre acumu-
lação originária/primitiva/por espoliação e a acumulação ordinária do
capital. Entretanto, há uma diferença em específico, conforme afirma
Federici (2017): Marx não menciona em seu trabalho as profundas
transformações que o capitalismo introduziu na reprodução da força
de trabalho e na posição social das mulheres, no que tange à “grande
caça às bruxas” dos séculos XVI e XVII, fundamental para a derrota
do campesinato europeu, por facilitar sua expulsão das terras ante-
riormente comunais. Trata-se da acumulação originária/primitiva/

4 O que submete a América Latina a um capitalismo de tipo dependente.

62
Mulheres e feminismo: história e desafios

por espoliação sobre os corpos femininos, que Federici (2017, p. 119)


identifica do seguinte modo:
i) as formas apontadas originalmente por Marx para a acumu-
lação primitiva, não foram os únicos meios para tal; ii) este pro-
cesso demandou a transformação do corpo em uma máquina
de trabalho e a sujeição das mulheres para a reprodução da
força de trabalho. Principalmente, exigiu a destruição do poder
das mulheres, que, tanto na Europa como na América, foi al-
cançada por meio do extermínio das “bruxas”; iii) a acumulação
primitiva não foi simplesmente uma acumulação e concentra-
ção de trabalhadores exploráveis e de capital, foi também uma
acumulação de diferenças e divisões dentro da classe traba-
lhadora, em que as hierarquias construídas sobre gênero, as-
sim como sobre a “raça” e a idades, se tornaram constitutivas
da dominação de classe e da formação do proletariado moder-
no; iv) e que, portanto, não se pode identificar a acumulação
capitalista como libertação do trabalhador, mulher ou homem,
ou ver a chegada do capitalismo como um momento de pro-
gresso histórico, pelo contrário, o capitalismo criou formas de
escravidão mais brutais e traiçoeiras, na medida em que im-
plementou no corpo do proletariado divisões profundas que
servem para intensificar e para ocultar a exploração.

Federici (2017) afirma também que a privatização da terra e a


comercialização da agricultura não aumentaram a quantidade de ali-
mentos disponíveis para as pessoas comuns, embora tenha aumen-
tado a disponibilidade de comida para o mercado e a exportação. Para
os trabalhadores, isso representou a fome. Ainda atualmente, mesmo
nas áreas mais férteis da África, Ásia e da América Latina, a desnu-
trição é endêmica, devido à destruição da posse comum da terra e à
política de “exportação ou morte” imposta pelos programas de ajustes
do Banco Mundial. A autora diz que o sistema de agricultura de cam-
pos abertos protegia os camponeses do fracasso de uma colheita, em
decorrência da faixa de terra a que uma família tinha acesso, o que
também permitia um planejamento manejável do trabalho e promo-
via uma forma de vida democrática, construída sobre a base do au-
togoverno e da autossuficiência, já que todas as decisões – quando
plantar, quando colher, quando drenar os pântanos, quantos animais
seriam permitidos nos campos comuns – eram tomadas pelos cam-
poneses em assembleia:

63
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

Além de incentivar as tomadas de decisão coletivas e a coo-


peração no trabalho, as terras comunais eram a base material
sobre a qual podia crescer a solidariedade e a sociabilidade
campesina. Todos os festivais, os jogos e as reuniões da co-
munidade camponesa eram realizados nessas terras. A função
social das terras comunais era especialmente importante para
as mulheres, que, tendo menos direitos sobre a terra e menos
poder social, eram mais dependentes das terras comunais
para a subsistência, a autonomia e a sociabilidade (FEDERICI,
2017, p. 138).

Assim, nas sociedades pré-capitalistas, embora em diversas


esferas (jurídica, social e política) a mulher fosse colocada em posição
inferior a do homem, ela participava do sistema produtivo e desempe-
nhava, portanto, um relevante papel econômico (Heleieth SAFFIOTI,
2013). Logo, faz jus à reflexão de que as mulheres foram as que mais
sofreram quando a terra foi perdida e o vilarejo comunitário se desin-
tegrou, e que isso se deu, em parte, ao fato de que, para elas, era muito
mais difícil tornar-se “vagabundas” ou trabalhadoras migrantes, pois
uma vida nômade as submetia à violência masculina, especialmente
num momento em que a misoginia estava crescendo. Nesse sentido
Federici (2017, p. 144) destaca:
As mulheres também tinham mobilidade reduzida devido à
gravidez e ao cuidado dos filhos. As mulheres tampouco po-
diam se tornar soldados pagos, apesar de algumas terem se
unido aos exércitos como cozinheiras, lavadeiras, prostitutas
e esposas, porém, essa opção também desapareceu no sé-
culo XVII à medida que, progressivamente, os exércitos foram
sendo regulamentados e as multidões de mulheres que cos-
tumavam segui-los foram expulsas dos campos de batalha.

Com o desaparecimento da economia de subsistência que ha-


via predominado na Europa pré-capitalista, a unidade entre produção
e reprodução, típica de todas as sociedades baseadas na produção-
-para-o-uso, chegou ao fim conforme essas atividades foram se tor-
nando portadoras de outras relações sociais que forçavam a divisão
sexual do trabalho. Sob o então novo regime monetário, somente a
produção destinada ao mercado estava definida como atividade cria-
dora de valor, ao passo que a reprodução do trabalhador começou a
ser considerada como algo sem valor do ponto de vista econômico e,
64
Mulheres e feminismo: história e desafios

inclusive, deixou de ser tida como trabalho. O trabalho reprodutivo só


foi pago, ainda que em valores inferiores, quando realizado para se-
nhores ou fora do lar. Assim, a importância econômica da reprodução
da força de trabalho realizada no âmbito doméstico e sua função na
acumulação de capital se tornaram invisíveis, o que, como bem indi-
ca Federici (2017, p. 145), as tornou “mistificadas como uma vocação
natural e designadas como ‘trabalho de mulheres’”. Acrescente-se a
isso o fato de que as mulheres foram excluídas de muitas ocupações
assalariadas e; quando trabalhavam em troca de pagamento, ganha-
vam (e ainda ganham) muito menos do salário masculino médio. É por
isso que Federici (2017, p. 146) afirma:
A separação entre produção e reprodução criou uma classe
de mulheres proletárias que estavam tão despossuídas como
os homens, mas que, diferentemente deles, quase não tinham
acesso aos salários. Em uma sociedade que estava cada vez
mais monetizada, acabaram sendo forçadas à condição de
pobreza crônica, à dependência econômica e à invisibilidade
como trabalhadoras.

Com base nisso, torna-se impraticável dizer que a separação


entre trabalhador e terra, e o advento da economia monetária forma-
ram o auge da luta travada pelos trabalhadores medievais para se li-
bertarem da servidão. Pois não foram os trabalhadores – mulheres ou
homens – que foram libertados pela privatização da terra. O que de
fato se tornou livre foi o capital, já que a terra agora estava disponível
para funcionar como meio de acumulação e exploração, e não mais
como meio de subsistência do campesinato. Libertados estavam os
proprietários de terra, que, a partir de então, puderam remanejar os
custos de reprodução dos trabalhadores, dando-lhes meios de sub-
sistência apenas quando estavam diretamente empregados. Assim:
A separação entre os trabalhadores e seus meios de subsis-
tência, assim como sua nova dependência das relações mo-
netárias, significou também que o salário real agora podia ser
reduzido, ao mesmo tempo que o trabalho feminino podia ser
mais desvalorizado com relação ao masculino por meio da
manipulação monetária (FEDERICI, 2017, p. 147).

Inicia-se o processo de dessocialização ou descoletivização da


reprodução da força de trabalho, bem como a tentativa de impor um
65
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

uso mais produtivo do tempo livre, movimento que acontece por meio
do cerceamento físico operado pela privatização da terra, bem como o
social: a reprodução dos trabalhadores converte-se em campo aber-
to para o lar, da comunidade para a família, do espaço público (a terra
comunal, a Igreja) para o privado (FEDERICI, 2017). Além do mais, isso
se deu com a introdução da assistência pública do Estado, que passa
a reivindicar a “propriedade” da mão de obra, ao mesmo tempo em que
instituía uma “divisão do trabalho” capitalista dentro da própria clas-
se dominante. Essa divisão permitia que os empregadores renuncias-
sem a qualquer responsabilidade na reprodução dos trabalhadores. Por
meio dessa inovação, houve um salto na administração da reprodução
social, resultando na introdução de registros demográficos (organiza-
ção de censos, registro das taxas de mortalidade e de natalidade e dos
casamentos) e na aplicação da contabilidade nas relações sociais (FE-
DERICI, 2017).
A crise populacional dos séculos XVI e XVII intensifica a perse-
guição às mulheres. Novos métodos disciplinares são adotados pelo
Estado no período, com a finalidade de regular a procriação e quebrar
o controle feminino sobre a reprodução. Percebe-se aí a origem da
vigilância sobre a escolha da maternidade, persistente até hoje. Sobre
os fatores para isso acontecer, segundo Federici (2017), devem-se in-
cluir a crescente privatização da propriedade e as relações econômi-
cas que, dentro da burguesia, geraram uma nova ansiedade com rela-
ção à paternidade e à conduta das mulheres. Federici (2017) também
diz que, na França e na Inglaterra, o Estado adotou um conjunto de
medidas pró-natalistas, que, combinadas com a assistência pública,
formaram o embrião de uma política reprodutiva capitalista. Foi dada
uma nova importância à família como instituição chave que assegura-
va a transmissão da propriedade e a reprodução da força de trabalho.
Lança-se então uma verdadeira guerra contra as mulheres, cla-
ramente orientada para quebrar o controle que elas haviam exercido
sobre seus corpos e sua reprodução. Adotaram-se se novas formas
de vigilância, a fim de assegurar que as mulheres não interrompessem
a gravidez, bem como a entrada de médicos e homens na sala de par-

66
Mulheres e feminismo: história e desafios

tos (por uma suposta suspeita sobre a índole das parteiras). As auto-
ridades tinham medo do infanticídio, daí esse comportamento. Com a
marginalização das parteiras, começa o processo pelo qual as mulhe-
res perderam o controle que haviam exercido sobre a procriação, sen-
do reduzidas a um papel passivo no parto, enquanto médicos homens
passaram a ser considerados “aqueles que realmente davam a vida”
(FEDERICI, 2017, p. 177). Com essa mudança, também teve início o
predomínio de uma nova prática médica que, em caso de emergência,
priorizava a vida do feto em detrimento da vida da mãe; para que isso
ocorresse, a comunidade de mulheres que se reunia em torno da cama
da futura mãe teve que ser expulsa da sala de partos, condição que
Federici (2017, p. 178) assim explica nesta passagem:
Enquanto na Idade Média as mulheres podiam usar métodos
contraceptivos e haviam exercido um controle indiscutível so-
bre o parto, a partir de agora seus úteros se transformaram em
território político, controlados pelos homens e pelo Estado: a
procriação foi colocada diretamente a serviço da acumulação
capitalista.

O corpo feminino torna-se instrumento para a reprodução e


expansão da força de trabalho, limitado a ser uma máquina natural
de criação, funcionando de acordo com ritmos que estavam fora do
controle das mulheres. Com base nisso, Federici (2017, p. 179) faz o
seguinte questionamento, o qual certamente qualquer pesquisa que
lança mão do materialismo histórico deve fazer: “por que a procriação
deveria ser um “fato da natureza” e não uma atividade historicamente
determinada, carregada de interesse e relações de poder diversas?”.
As mudanças na procriação e na população estão longe de ser au-
tomáticas ou “naturais”, pois, em todas as fases do desenvolvimento
capitalista, o Estado teve de recorrer à regulação e à coerção para ex-
pandir ou reduzir a força de trabalho, de forma que, até o presente, não
foram poupados esforços na tentativa de arrancar das mãos femini-
nas o controle da reprodução e da determinação sobre onde, quando
ou em que quantidade as crianças deveriam nascer. O resultado não
poderia ser outro: mulheres forçadas a procriar, “experimentando uma
alienação de seus corpos, de seu “trabalho” e até mesmo de seus fi-
lhos, mais profunda que a experimentada por qualquer outro trabalha-
67
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

dor” (FEDERICI, 2017, p. 180).


A autora então salienta que um aspecto complementar dessa
situação há pouco descrita foi a redução das mulheres a não traba-
lhadoras, pois, nessa época, as mulheres haviam perdido espaço nos
empregos que haviam tradicionalmente ocupado, como a fabricação
de cerveja e a realização de partos. As proletárias encontraram dificul-
dades para obter qualquer ocupação além daqueles com status mais
baixo: empregadas domésticas, trabalhadoras rurais, fiandeiras, tece-
lãs, bordadeiras, vendedoras ambulantes ou amas de leite, de modo que
[...] se uma mulher costurava roupas, tratava-se de “trabalho
doméstico” ou de “tarefas de dona de casa”, mesmo se as
roupas não eram para a família, enquanto, quando um ho-
mem fazia o mesmo trabalho, se considerava produtivo (FE-
DERICI, 2017, p. 182).

Uma indagação bastante pertinente é feita por Federici (2017,


p. 187):
O que pode explicar o ataque tão drástico contra as trabalha-
doras? E de que maneira a exclusão das mulheres da esfera
do trabalho socialmente reconhecido e das relações mone-
tárias se relaciona com a imposição da maternidade forçada
e com a simultânea massificação da caça às bruxas? [grifo
nosso]

Sobre isso, a estudiosa desenvolve o ponto de vista segundo


o qual a discriminação sofrida pelas mulheres como mão de obra re-
munerada esteve diretamente relacionada à sua função como traba-
lhadoras não assalariadas no lar. Dessa forma, pode-se relacionar a
proibição da prostituição e a expulsão das mulheres do espaço de tra-
balho organizado com a aparição da figura da dona de casa e da rede-
finição da família como lugar para a produção da força de trabalho. Ela
aponta que, sob a perspectiva de um ponto de vista teórico e político,
“a questão fundamental está nas condições que tornaram possível tal
degradação e as forças sociais que a promoveram ou que dela foram
cúmplices” [grifo nosso] (FEDERICI, 2017, p. 188).
Forja-se uma nova divisão sexual do trabalho, que define as
mulheres nos seguintes termos: mães, esposas, filhas, viúvas –, que
oculta sua condição de trabalhadora e que dava aos homens livre
68
Mulheres e feminismo: história e desafios

acesso a seus corpos, a seu trabalho e ao cuidado com os filhos. As-


sim, nessa nova organização do trabalho:
[...] todas as mulheres (exceto as que haviam sido privatiza-
das pelos homens burgueses) tornaram-se bens comuns,
pois uma vez que as atividades das mulheres foram definidas
como não trabalho, o trabalho das mulheres começou a se
parecer com um recurso natural, disponível para todos, assim
como o ar que respiramos e a água que bebemos (FEDERICI,
2017, p. 191).

Trata-se, então, de uma derrota histórica para as mulheres. Com


sua expulsão dos ofícios e a desvalorização do trabalho reprodutivo,
a pobreza foi feminilizada (o que persiste até hoje). De tal modo que,
para realizar-se a espoliação dos homens sobre o trabalho feminino,
foi construída uma “nova ordem patriarcal, reduzindo as mulheres a
uma dupla dependência: de seus empregadores e dos homens” (FE-
DERICI, 2017, p. 191). A família se torna um complemento do merca-
do, instrumento para a privatização das relações sociais e, sobretudo,
para a propagação da disciplina capitalista e da dominação patriar-
cal. O marido converte-se em representante do Estado, o encarregado
de disciplinar e supervisionar as “classes subordinadas” (FEDERICI,
2017), uma categoria que, para os teóricos políticos dos séculos XVI
e XVII, incluía a esposa e os filhos, como bem retrata Carole Pateman,
em sua crítica feminista à teoria da democracia (Alicia del ÁGUILA,
2014). Saffioti (2013, p. 63) complementa esse entendimento:
A felicidade pessoal da mulher, tal como era então entendida,
incluía necessariamente o casamento. Através dele é que se
consolidava sua posição social e se garantia sua estabilida-
de ou prosperidade econômica. [...] Sendo a família a unidade
econômica por excelência nas sociedades pré-capitalistas, a
atividade trabalho é também desempenhada pelas mulheres
das camadas menos privilegiadas. Embora não se possa falar
em independência econômica da mulher (esta é uma noção
individualista que nasce com o capitalismo).

Além disso, a nova divisão sexual do trabalho reconfigurou as


relações entre homens e mulheres, de forma que, na classe alta, a mu-
lher era propriedade e dava ao marido poder sobre sua esposa e os
filhos; e entre o proletariado era o recebimento do salário que dava aos

69
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

trabalhadores um poder semelhante sobre suas companheiras (FEDE-


RICI, 2017). Passa-se, também, a uma redefinição ideológica das re-
lações de gênero na transição para o capitalismo, o que fez surgir um
novo modelo de feminilidade: a mulher como esposa ideal – passiva,
obediente, parcimoniosa, casta, de poucas palavras e sempre ocupa-
da com as suas tarefas. Isso desencadeia uma maior desvalorização
econômica e social, na qual o ser feminino é submetido a um processo
de infantilização legal, vide a impossibilidade de votar, fazer contratos
e representar a si mesma nos tribunais, a que, por séculos, foram sub-
metidas. Federici (2017, p. 203) faz uma interessante analogia nesse
sentido:
a demonização dos povos indígenas americanos serviu para
justificar sua escravização e o saque dos seus recursos. Na
Europa, o ataque contra as mulheres justificou a apropriação
de seu trabalho pelos homens e a criminalização de seu con-
trole sobre a reprodução.

É muito importante enfatizar que, no contexto das plantations


na América, a situação era muito diferente, pois a divisão sexual do
trabalho era ditada pelas demandas de trabalho dos fazendeiros e
pelo preço das mercadorias produzidas pelos escravizados no mer-
cado internacional. Os fazendeiros achavam mais lucrativo fazer os
escravos trabalharem até a morte do que estimular sua reprodução;
logo, nem a divisão sexual do trabalho, nem as hierarquias sexuais
eram, então, pronunciadas:
Os homens africanos não podiam decidir nada sobre o desti-
no de suas companheiras e familiares, enquanto para as mu-
lheres, longe de terem uma consideração especial, esperava-
-se que trabalhassem nos campos assim como os homens,
especialmente quando a demanda de açúcar e trabalho era
alta. [...] Contudo, nunca foram tratadas de forma igual. Dava-
-se menos comida às mulheres; diferentemente dos homens,
elas eram vulneráveis aos ataques sexuais de seus senhores;
e eram-lhes infligidos castigos mais cruéis, já que, além da
agonia física, tinham de suportar a humilhação sexual [...] (FE-
DERICI, 2017, p. 223).

Cabem aqui algumas considerações sobre esse processo na


sociedade brasileira. O Brasil Colônia existia para render lucros ao

70
Mulheres e feminismo: história e desafios

capitalismo comercial; assim, a estrutura social brasileira do perío-


do escravocrata, sobretudo da época colonial, se apresentaria como
uma configuração exótica, com alguns traços das estruturas feudais
europeias em desintegração, combinados com a nascente estrutura
patrimonialista favorecedora do comércio externo e com a exploração
da força de trabalho escravizada. As relações de produção predomi-
nantes na ordem escravocrata-senhorial e as inconsistências cultu-
rais, que Heleieth Saffioti (2013) vem a definir como um sistema de
castas, apresentavam-se como elementos decisivos dos papéis que
as mulheres, de uma e de outra casta, desempenhariam na sociedade
brasileira de então. Logo:
Do ângulo desses dois fatores, o papel representado pela mu-
lher negra tinha um caráter corrosivo. Com efeito, a afirmação
de Florestan Fernandes de que “a alienação social da pessoa
do negro se processou inicialmente como alienação social da
pessoa do escravo” deve ser esmiuçada quando referida espe-
cificamente ao elemento feminino da escravidão. Como às di-
ferenças de posição econômica dos indivíduos correspondiam
diferenças de posição social, justificada esta em termos de
raça e de cor, a condição de escravo significava, para o negro,
ser instrumento de trabalho sem direitos de nenhuma espécie,
ser, enfim, socialmente, uma coisa. [...] cabia à escrava, além de
uma função no sistema produtivo de bens e serviços, um papel
sexual, via de uma maior reificação e, simultaneamente, linha
condutora do desvendamento do verdadeiro fundamento da
sociedade de castas (SAFFIOTI, 2013, p. 234, 235- 236).

Saffioti (2013) também destaca a dupla escravização pela


qual passa a mulher negra, na medida em que é explorada economi-
camente como trabalhadora e como mulher. Além de desempenhar
sua função de reprodutora da força de trabalho, soma-se o fato de
que, em razão do seu sexo, o senhor branco relegou à escrava o papel
de prestação de serviços sexuais. O estupro era visto naturalmente,
como parte dos favores que deveriam oferecer a seus proprietários.
Essa forma de exploração foi objeto de dois estudos recém-concluí-
dos pelos geneticistas Sérgio Danilo Pena e Maria Cátira Bortolini, da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul (UFRGS) respectivamente, onde compara-
ram o padrão de alterações genéticas compartilhado por africanos e
71
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

brasileiros. A análise feita do material genético demonstrou que 85%


dos pretos brasileiros têm uma ancestral africana, mas os homens
africanos estão representados em apenas 47% dos pretos; o restan-
te tem ancestrais europeus em sua linhagem paterna (REVISTA DA
FAPESP, 2020).
Sobre o papel das mulheres brancas na época escravocra-
ta brasileira, elas, segundo Saffioti (2013), casavam-se, via de regra,
muito jovens, sendo normal que aos 15 anos a mulher já estivesse
casada e com um filho, além de haver muitas que se tornavam mães
aos 13 anos. Educadas em ambiente rigorosamente patriarcal, essas
meninas-mães escapavam ao domínio do pai para, com o casamen-
to, caírem na esfera de domínio do marido. E raramente as mulheres
da camada dominante saíam à rua; praticamente só deixavam a casa
para irem à igreja, o que nunca faziam desacompanhadas. De acordo
com a autora, foi a mulher o elemento mais afastado das correntes de
transformações sociais e políticas, devido à atitude masculina fran-
camente hostil à participação da mulher em toda e qualquer atividade
que extravasasse os limites da família.
Além disso, como a propriedade territorial se constituía, a prin-
cípio, na única fonte de direitos políticos, e as mulheres eram excluí-
das desse privilégio, elas igualam-se, sob este ângulo, aos escravos.
Devido a todas essas constatações, Saffioti (2013) alega que a so-
ciedade colonial do Brasil aliou à divisão da população em castas a
estratificação social na linha do sexo, criando um rígido sistema de
constrangimento físico e moral do elemento feminino, gerado e man-
tido pelo androcentrismo da família patriarcal, o que viria a marcar
profundamente a vida e a mentalidade da mulher brasileira. A abolição
da escravidão vai, portanto, apresentar significados diversos para a
mulher negra e para a branca. De acordo com Saffioti (2013, p. 253):
[...] em virtude das mudanças operadas no sistema de estra-
tificação em castas não serem acompanhadas, no mesmo
grau, por mudanças na estratificação à base do sexo. Com
efeito, a mulher negra ganha, com a deterioração da socieda-
de de castas, pelo menos à liberdade formal que lhe era nega-
da anteriormente. Ascende, neste sentido, tanto quanto o ex-
-escravo. Situa-se abaixo deste, entretanto, do mesmo modo

72
Mulheres e feminismo: história e desafios

que a mulher branca em virtude de não atingir, pelo processo


de emancipação das “raças negras”, a plenitude dos direitos
de pessoa humana. O ex-escravo seria, no novo regime, con-
siderado cidadão brasileiro para efeitos eleitorais, enquanto
que a mulher, tanto branca quanto negra, seria marginaliza-
da da escolha dos representantes do povo no governo. Neste
sentido, se a abolição constituiu uma emancipação precária e
incompleta para a mulher de cor, representou, para a branca,
uma descensão relativamente ao homem negro.

Tal situação de aparente descenso relativamente ao homem ne-


gro após a abolição da escravatura tem diversos impactos, muitas ve-
zes reacionários, sobre os movimentos sufragistas feministas. Nesse
sentido é interessante trazer as considerações de Angela Davis (2016)
sobre as lutas de emancipação dos movimentos feminista e de negri-
tude nos Estados Unidos, onde destaca o papel das irmãs Sarah e An-
gelina Grimké, abolicionistas, ativistas políticas, defensoras dos direitos
da mulher e do voto feminino. Foram reconhecidas como as únicas mu-
lheres brancas do sul que trabalharam pela libertação da escravatura,
aliando a pauta da libertação negra com a libertação feminina. Davis
(2016) destaca que a conduta que Angelina (conhecida por fazer bons
discursos) lucidamente conduziu a sua época, de unir as lutas demo-
cráticas, se enreda com o que diz Marx (1985a, p. 237): “o trabalhador
de pele branca não pode emancipar-se onde o trabalhador de pele ne-
gra é marcado com ferro em brasa”. E ainda, conforme destaca Davis
(2016, p. 85): “Embora as correntes da escravidão tivessem sido rompi-
das, a população negra ainda sofria as dores da privação econômica e
enfrentava a violência terrorista de gangues racistas, cuja intensidade
não se comparava nem mesmo à da escravidão”.
Exposta a posição da mulher na gênese do capitalismo, com-
preende-se que “assim como a divisão internacional do trabalho, a
divisão sexual foi, sobretudo, uma relação de poder, uma divisão den-
tro da força de trabalho, ao mesmo tempo que um imenso impulso à
acumulação capitalista” (FEDERICI, 2017, p. 232). A diferença de poder
entre mulheres e homens e o ocultamento do trabalho não remunera-
do das mulheres por trás do disfarce de inferioridade natural permiti-
ram ao capitalismo ampliar imensamente a parte não remunerada do

73
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

dia do trabalho, isto é, a mais valia, e usar o salário (masculino) para


acumular trabalho feminino. De tal forma que, “[...] a acumulação pri-
mitiva foi, sobretudo, uma acumulação de diferenças, desigualdades,
hierarquias e divisões que separam os trabalhadores entre si e, inclu-
sive, alienaram a eles mesmos” [grifo nosso] (FEDERICI, 2017, p. 232).
Desse modo, a elaboração social do fator natural sexo, assu-
me então, na sociedade capitalista, uma feição inédita e determinada
pelo sistema de produção social. O intenso processo de urbanização,
iniciado pela revolução industrial, tira do campo imensas massas de
trabalhadores rurais e arruína as bases da fabricação doméstica e do
artesanato independente, o que solidifica um profundo abismo entre o
trabalho e a posse dos instrumentos de trabalho, promovendo o assala-
riamento de crescentes massas humanas provenientes de uma econo-
mia campesina ou de burgo (SAFFIOTI, 2013). É dessas consequências
do processo de assalariamento que tratará a próxima seção.

3.2 Trabalho produtivo e reprodutivo: a posição da mulher na socie-


dade capitalista

Marx (1985a), em suas críticas a Feuerbach, diz que este trata o


homem como um ser genérico natural, supra-histórico, e não um ser
social determinado pela história das relações sociais por ele próprio
criadas. A seção anterior pretendeu demonstrar a quais determina-
ções históricas foram submetidas às mulheres. Isso para entender o
porquê de elas estarem na posição na qual se encontram hoje. Cabe,
porém, avançar no sentido da inclusão da mulher na classe trabalha-
dora e nas discussões que vêm sendo feitas sobre a temática, de for-
ma que se possa verificar o modo específico pelo qual esse processo
se desenvolve para representantes de um e de outro sexo, bem como
a intensificação dessas contradições no trabalho feminino e suas
repercussões nas diferentes subestruturas da sociedade. Os fatores
dinâmicos das transformações sociais devem ser buscados no de-
senvolvimento das forças produtivas, nas relações que os seres hu-
manos estabelecem entre si quando empregam as forças produtivas

74
Mulheres e feminismo: história e desafios

por eles acumuladas, a fim de satisfazer suas necessidades materiais


(MARX, 1985a). Nota-se que o uso das forças produtivas acumuladas
sob o capitalismo possui uma dinâmica que, primeiro, não satisfaz as
necessidades materiais de toda a sociedade, vide a pobreza e con-
centração de riqueza no mundo, ontem e hoje; segundo, joga a re-
produção social para a esfera privada, sobre as costas das mulheres.
Trata-se do trabalho produtivo e reprodutivo.
Uma das grandes diferenciações introduzidas pelo capitalis-
mo é o fato de o trabalhador não mais produzir diretamente para seu
consumo, mas sim, artigos cuja existência independe das necessi-
dades de seu produtor (o trabalhador5). Entre a atividade trabalho e
os produtos aptos a satisfazerem as necessidades do trabalhador, ou
seja, entre a produção e o consumo, existem outros dois processos de
natureza também social: a distribuição e a troca, o que faz com que
o trabalhador participe do mercado não apenas como comprador de
mercadorias, mas também, e mais importante, primeiramente como
vendedor da sua força de trabalho. Assim, é como livre possuidora
de sua força de trabalho que, primordialmente, a classe trabalhadora
participa do mercado e dessa forma, como ressalta Saffioti (2013, p.
54): “A liberdade de que cada homem goza na situação de mercado
leva à ilusão de que as realizações de cada um variam em razão direta
de suas capacidades individuais”.
O sistema capitalista opera ainda sob a lógica do valor de uso
e do valor de troca sobre as mercadorias que produz. Uma coisa pode
ter valor de uso, sem, entretanto, ter valor de troca. Um dos casos
acontece quando a sua utilidade para a sociedade não é mediada por
trabalho, tal como o ar, o solo virgem, os gramados naturais, as ma-
tas não cultivadas etc. Outro caso ocorre quando uma coisa pode ser
útil e produto do trabalho humano, sem ser mercadoria. Quem, com
seu produto, satisfaz sua própria necessidade ou de outro, sem ven-
der, cria valor de uso, não de mercadoria. Para produzir mercadoria, é

5 Por exemplo, uma pessoa que trabalha em uma fábrica de tecidos, não precisa exata-
mente de todo o tecido que vai produzir para sobreviver, assim receberá um salário que
a permitirá adquirir os bens e serviços para sua existência. Diferente do período feudal,
onde produzia suas roupas, suas ferramentas, cultivava suas plantações para seu próprio
consumo, e uma parte destinava ao senhorio.

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Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

necessário não apenas produzir valor de uso, mas valor de uso para
outros (valor de uso social); então, para tornar-se mercadoria, é preci-
so que o produto seja transferido a quem vai servir como valor de uso
por meio do seu valor de troca (MARX, 1985a). O modo de produção
capitalista caracteriza-se pelo fato de que “o valor de troca penetra
todos ou a maioria dos artigos produzidos, estes se determinam como
e enquanto mercadorias, e a própria força de trabalho ganha a mesma
determinação” (SAFFIOTI, 2013, p. 53). Assim:
Se o trabalhador originalmente vendeu sua força de trabalho
ao capital, por lhe faltarem os meios materiais para produção
de uma mercadoria, agora sua força individual de trabalho
deixa de cumprir seu serviço se não estiver vendida ao capi-
tal. Ela apenas funciona numa conexão que existe somente
depois de sua venda, na oficina capitalista. Incapacitado em
sua qualidade natural de fazer algo autônomo, o trabalhador
manufatureiro só desenvolve atividade produtiva como aces-
sório da oficina capitalista (MARX, 1985a, p. 283).

O trabalho é o uso da força de trabalho, que consiste nas apti-


dões físicas e intelectuais de quem as detêm e as usa. O salário não
paga o valor do trabalho, mas o valor da força de trabalho, cujo uso, no
processo produtivo, cria um valor maior do que o contido no salário.
Isso acontece porque seu valor, como o de qualquer outra mercado-
ria, é determinado pelo tempo de trabalho necessário à sua produção
(MARX, 1985a). Se, por exemplo, para reproduzir o valor recebido por
sua venda da força de trabalho (no caso, o salário, que supostamente
deveria garantir os meios de subsistência médios diários do traba-
lhador) necessita-se de 4 horas, então seria necessário trabalhar 4
horas por dia. Entretanto, a jornada de trabalho total de toda pessoa
da esfera produtiva, é maior que esse tempo de trabalho necessário
para recriar seu salário. Dessa maneira, a grandeza do mais trabalho
obtém-se da diferença da jornada de trabalho total o tempo de traba-
lho necessário.
Tal processo cria o ponto central do capitalismo, no qual a mer-
cadoria trabalho distingue-se da variedade das outras mercadorias
pelo fato de que seu consumo cria valor e valor maior do que ela mes-
ma custa, sendo “a proporção tempo de mais trabalho dividida pelo

76
Mulheres e feminismo: história e desafios

tempo de trabalho necessário que determina a taxa de mais valia”


(MARX, 1985a, p. 187). Adicione-se a isso o fato de que a remunera-
ção do trabalho em dinheiro, isto é, sob a forma de salário, disfarça a
apropriação, por parte do capitalista do trabalho excedente do produ-
tor imediato, pois oculta a relação mais profunda na sociedade, de-
terminada pela distribuição dos instrumentos de trabalho, o que, vale
dizer, pela produção.
Só o trabalho produtivo, ou seja, aquele vinculado ao capital
produtivo, cria valor e mais-valia. Por capital produtivo, entende-se de
forma mais imediata o capital industrial, admitindo-se o capital agrí-
cola como uma das suas modalidades. O capital comercial e o capital
bancário representam, então, especializações funcionais improduti-
vas do capital social total, indispensáveis, porém, à sua circulação e
rotação sob forma de mercadoria específica e sob forma de dinheiro.
Jacob Gorender, na apresentação de O Capital (MARX, 1985a, p. XLII
e XLIII) explica:
Uma parte da mais-valia criada na esfera do capital industrial
passa às esferas do comércio e dos negócios bancários –-
assumindo as formas particulares de lucro comercial e juros
–, com ela se pagando o lucro de comerciantes e banqueiros,
bem como o salário dos seus empregados. Mas há atividades
que não produzem bens materiais e, contudo, são necessá-
rias ao processo de produção ou o prolongam na esfera da
circulação, devendo ser consideradas produtivas e, portanto,
criadoras de valor e mais-valia. Este é o caso do transporte,
armazenagem e distribuição de mercadorias. Uma vez que
as mercadorias são valores de uso destinados à satisfação
de necessidades (como bens de produção ou como bens de
consumo), é evidente que transportá-las, conservá-las em lo-
cais apropriados e distribuí-las constituem tarefas produtivas,
ainda que nada acrescentem à substância ou à conformação
física das mercadorias. Por consequência, uma parte das ati-
vidades abrangidas pela rubrica do comércio tem natureza de
trabalho produtivo. São somente improdutivas aquelas ativi-
dades comerciais que derivam das características mercantis
das relações de produção capitalistas, dizendo respeito aos
gastos com as operações de compra e venda e com suas im-
plicações especulativas.

É importante assinalar que há inúmeras discussões sobre o que

77
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

é trabalho produtivo e improdutivo, não sendo possível definir os limites


entre um e outro com tanta clareza, principalmente nos dias de hoje, em
que o setor de serviços assumiu um peso muito importante na econo-
mia mundial. Entretanto, a questão que se pretende apresentar agora é
a seguinte: se somente o trabalho produtivo é que gera mais-valia, se
somente importa ao capitalismo aquilo que se converte em mercadoria
(seja fruto de trabalho produtivo ou improdutivo), isto é, que possui va-
lor de uso e de troca, o que acontece com os trabalhos (ou coisas que
possuem) que são úteis, mas não são mercadoria? Poderiam ser lista-
das nessa categoria o ar, o solo virgem, a água, as florestas (úteis e não
criados pelo trabalho humano) e as atividades de reprodução social,
produto direto do trabalho humano, tal como a criação de crianças, o
cuidado com idosos e doentes, o trabalho doméstico de limpeza e con-
servação do lar, chegando até mesmo à construção e à organização de
moradias e locais para, quando se trata daquelas feitas pelas próprias
pessoas para sua sobrevivência, algo muito comum nas periferias, fruto
da espoliação urbana (KOWARICK, 1979).
Passa-se então para a análise acerca do trabalho útil, porém
não gerador de mais-valia, que é o da reprodução social, principal-
mente no que tange àqueles realizados pelas mulheres, os que com-
põem a grande maioria. Cinzia Arruza (2017, p. 40- 41) diz que:
[...] a reprodução social refere-se ao domínio mais específico
da renovação e da manutenção da vida e das instituições e
o trabalho necessário aí envolvido. Isso deve ser entendido
como abrangendo três elementos fundamentais: “a reprodu-
ção biológica da espécie”, “a reprodução da força de trabalho”
e a “reprodução das necessidades de aprovisionamento e de
cuidado”.

Contudo o papel das mulheres na reprodução biológica da espé-


cie não pode ser confundido com a questão historicamente específica,
de seus papéis na reprodução da força de trabalho e na manutenção
das relações de dominação e de subordinação da produção capitalista.
As relações de classe colocam os limites nos quais a reprodução social
ocorre e, portanto, no interior dos quais a reprodução biológica tam-
bém é organizada. Também precisam ser considerados os processos
de produção ideológica que atribuem significados inerentes ao sexo,
78
Mulheres e feminismo: história e desafios

sexualidade, reprodução geracional e diferença sexual, de modo que


a diferença biológica não sinaliza nada mais do que o fato de que as
mulheres partejam – acontecimento que, por si, não tem nenhum sig-
nificado social ou cultural. Estes surgem porque o traço biológico da
reprodução e o da diferença sexual estabelecem-se no interior dos mo-
dos de reprodução societal e social, que têm características especiais
(ARRUZA, 2017).
Frigga Haug (2007, p. 357) propõe que se deve falar de relações
de gênero como relações de produção em uma forma tripla:
como um nível no qual os cidadãos estão especificamente e
historicamente posicionados em organizar e produzir suas vi-
das; –como um momento decisivo na produção dos meios de
vida e sua relação de produção e manutenção da própria vida;
e como um campo com contradições nele e entre os modos
de produção.

Assim, o conjunto total de trabalho necessário para a reprodu-


ção da sociedade, tanto como a distribuição desse trabalho entre os
gêneros e o apoio para o acordo em relação à lei, à moral, à política e
à ideologia, são necessárias análises sobre a inclusão da mulher no
processo de assalariamento, isto é, a maneira como o trabalho reali-
zado dentro da família se relaciona à totalidade do trabalho e à repro-
dução da sociedade, tendo em vista o emprego de relações de gênero
no nível do conjunto total como um fundamento de acumulação capi-
talista. Dessa forma é possível que se entenda a função da divisão do
trabalho entre o lar e a indústria e, com isso, o papel das relações de
gênero para a reprodução da sociedade capitalista.
Um importante elemento da lógica capitalista de produção é a
jornada de trabalho, em que o desenvolvimento da força produtiva do
trabalho tem por finalidade diminuir a parte da jornada durante a qual
o trabalhador tem de trabalhar para si mesmo (trabalho necessário),
para então prolongar a outra parte da jornada, na qual trabalha gratuita-
mente para o capitalista (mais trabalho que se converte em mais-valia)
(MARX, 1985a). O expediente de labor é um dos itens que caracteriza o
capitalismo dependente latino-americano, o qual, acrescido dos salá-
rios degradados, configuram a superexploração do trabalho dentro de

79
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

um padrão industrial subordinado. Mas a questão que, de fato, quer se


destacar aqui é: e a jornada de trabalho feminina? As economias, seja
a dos países do capitalismo central, seja a dos dependentes, são cons-
truídas sobre centenas de milhões de horas de trabalho necessário e
gratuito: cuidar de crianças, idosos e doentes, lavar, limpar, cozinhar,
buscar água e lenha...
Visivelmente, a maior parte desse trabalho gratuito é feita por
mulheres e meninas – resultado tanto do modelo econômico quan-
to das relações de gênero que se estabeleceram. Segundo a OXFAM
(2020, p. 6), “o valor monetário global do trabalho de cuidado não re-
munerado prestado por adolescentes e mulheres na faixa etária dos
15 anos ou mais é de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano – três
vezes mais alto que o estimado para o setor de tecnologia do mundo”.
Entre 2016 e 2017, no Brasil, o percentual de pessoas que realizavam
afazeres domésticos e cuidados de pessoas cresceu de 82,7% para
86,0%, chegando a 145 milhões de pessoas. Porém, enquanto a taxa
de realização foi de 92,6% para as mulheres, entre os homens foi de
78,7%. Além disso, as mulheres dedicavam a essas atividades quase
o dobro do tempo, com uma média de horas semanais de 20,9 horas,
enquanto entre os homens a média foi 10,8 horas por semana (IBGE,
2018). O trabalho de cuidado (uma parte do trabalho necessário) se
configurou, com o advento do capitalismo, como pertencente à esfera
privada, adequado à relação familiar, o que impõe à mulher trabalha-
dora uma dupla jornada de trabalho. Utilizam-se muito mais horas
do seu dia ocupando sua força produtiva para a reprodução social;
assim, a falta de tempo livre agregada às questões culturais e ide-
ológicas (conforme demonstraram Federici e Saffioti), apresenta-se,
para a maioria das mulheres, como um impedimento para estarem em
espaços públicos e políticos.
Desse modo, se por um lado o trabalho nas fábricas, nas lo-
jas, nos escritórios etc. rompeu o isolamento no qual viviam parte das
mulheres, minando o sistema de segregação sexual e de reclusão aos
quais elas estavam submetidas, e permitindo que decrescessem as
diferenças de participação cultural dos elementos femininos e mas-

80
Mulheres e feminismo: história e desafios

culinos, por outro lado, isso institui um duplo expediente de trabalho,


no qual a parte de trabalho necessário executada pela mulher se es-
tende de forma muito maior dentro do ambiente familiar. Exatamente
sobre esse ponto surge uma discussão interessante e longe de estar
resolvida no âmbito no feminismo marxista: o apoderamento desse
trabalho necessário realizado a mais pela mulher é apropriado pelo
capital ou pelo homem no núcleo doméstico? Apesar de ser uma te-
mática bastante instigante, não será aqui tratada, mas certamente é
um bom conteúdo a ser estudado. O tópico que realmente se pretende
focar agora, e que, como já foi exposto por Federici (2017), é onde
existe controle do capital, a moderação sobre o número de nascimen-
tos. Caminha-se então à fundamentação.
Marx (1985b) expõe um ponto sobre a acumulação ordinária do
capitalismo, no que tange à reprodução simples desse sistema, que é
a necessidade permanente de que existam pessoas desempregadas,
pois o efeito disciplinador e rebaixador do valor do salário que o de-
semprego tem é algo amplamente sentido. Ele explica:
[...] as necessidades da acumulação do capital podem superar
o crescimento da força de trabalho ou do número de trabalha-
dores, a demanda de trabalhadores pode se tornar maior que
a sua oferta e por isso os salários se elevam. Assim como a
reprodução simples reproduz continuamente a própria relação
capital, capitalistas de um lado, assalariados de outro, também
a reprodução em escala ampliada ou a acumulação reproduz
a relação capital em escala ampliada, mais capitalistas ou ca-
pitalistas maiores neste pólo, mais assalariados naquele. Acu-
mulação do capital é, portanto, multiplicação do proletariado.
(MARX, 1985b, p. 188).

Com base nisso, Marx (1985b) explica a utilidade da existência


de uma massa de pessoas que não esteja ocupada; expõe então o
conceito de exército industrial de reserva ou superpopulação relativa,
demonstrando que uma população trabalhadora excedente é produ-
to necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza com
base no capitalismo, pois se torna a alavanca da acumulação capita-
lista, e até uma condição de existência desse modo de produção, de
forma que todo trabalhador ou trabalhadora faz parte dela durante o

81
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

tempo em que está desocupado parcial ou inteiramente. Aprofunda-


-se, assim, a explanação de que tal fenômeno é uma lei populacional
peculiar ao capitalismo, assim como cada modo de produção histó-
rico tem suas leis populacionais particulares e historicamente váli-
das, de forma que “uma lei populacional abstrata só existe para planta
e animal, à medida que o ser humano não interfere historicamente”.
Marx (1985b, p. 200) sintetiza bem a ideia nesta passagem:
Grosso modo, os movimentos gerais do salário são exclusi-
vamente regulados pela expansão e contração do exército
industrial de reserva, que correspondem à mudança periódi-
ca do ciclo industrial. Não são, portanto, determinados pelo
movimento do número absoluto da população trabalhadora,
mas pela proporção variável em que a classe trabalhadora se
divide em exército ativo e exército de reserva, pelo acréscimo
e decréscimo da dimensão relativa da superpopulação, pelo
grau em que ela é absorvida, ora liberada. [...] Com salário em
baixa, a população trabalhadora é mais dizimada, de modo
que em relação a ela e o capital a ficar excessivo, ou, também
como outros explicam, o salário em baixa e a correspondente
exploração mais elevada do trabalhador novamente acelera
a acumulação, enquanto, ao mesmo tempo, o salário baixo
mantém o crescimento da classe trabalhadora em xeque.
(MARX, 1985b, p. 204).

Retornando à questão da mulher: ora, se uma lei populacional


não é algo abstrato na sociedade humana, mas determinado, como en-
tão não considerar historicamente determinada a reprodução social e o
papel da mulher como ser biológico que gesta a vida humana? Nesse
sentido, Federici (2017) parece ter conseguido esclarecer em que mo-
mento inicia-se a demarcação do processo de controle sobre os nas-
cimentos e a população (a “caça às bruxas”), período no qual a mu-
lher sistematicamente vai perdendo o controle sobre seu corpo e sua
caracterização social, sendo impelida a adentrar nesse novo modo de
produção social e reprodução societal, tanto pela via do novo modelo
econômico imposto, quanto pelas novas relações de gênero que se ins-
tituem, conforme ressaltam Silvia Federici (2017) e Frigga Haug (2017)
em seus trabalhos.
É essencial compreender de maneira mais específica a condi-
ção da mulher negra como pertencente à classe trabalhadora, como
82
Mulheres e feminismo: história e desafios

ser biológico feminino na reprodução social e sujeita nas relações de


gênero. O movimento feminista foi capaz de demonstrar o caráter po-
lítico do mundo privado, proporcionou todo um debate público no qual
foram pautadas questões completamente novas, como sexualidade,
violência, direitos reprodutivos etc., que se revelaram articulados às
relações tradicionais de dominação/submissão (Lélia GONZALEZ,
2011). Mas, apesar das suas contribuições fundamentais para a dis-
cussão da discriminação pela orientação sexual, não aconteceu o
mesmo com outros tipos de discriminação, tão graves como a sofrida
pela mulher: a de caráter racial, pois o eurocentrismo e seu efeito ne-
ocolonialista também são formas alienadas de uma teoria e de uma
prática que se percebem como liberadora (GONZALEZ, 2011). Lélia
Gonzalez (2011, p. 15) expõe a questão:
O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para
manter negros e indígenas na condição de segmentos subor-
dinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua
forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento,
tão bem analisada por cientistas brasileiros. Transmitida pelos
meios de comunicação de massa e pelos sistemas ideológi-
cos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as
classificações e os valores da cultura ocidental branca são os
únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito
da superioridade branca comprova a sua eficácia e os efeitos
de desintegração violenta, de fragmentação da identidade étni-
ca por ele produzidos, o desejo de embranquecer (de “limpar o
sangue” como se diz no Brasil), é internalizado com a conse-
quente negação da própria raça e da própria cultura.

Se a igualdade de todos perante a lei, por muitos séculos sig-


nificou a igualdade entre homens brancos com posses, baseada na
suposta incapacidade feminina, o silêncio ruidoso sobre as contradi-
ções raciais se fundamenta, modernamente, num dos mais eficazes
mitos de dominação ideológica: o mito da democracia racial (GON-
ZALEZ, 1984). Assim, o quadro das profundas desigualdades raciais
existentes na América Latina se junta, de forma muito bem articulada,
à desigualdade sexual, o que Lélia Gonzalez (2011, p. 17), mais uma
vez define de forma muito contundente:
Trata-se de uma discriminação em dobro para com as mulhe-
res não-brancas da região: as amefricanas e as ameríndias.

83
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

O duplo caráter da sua condição biológica – racial e sexu-


al – faz com que elas sejam as mulheres mais oprimidas e
exploradas de uma região de capitalismo patriarcal-racista
dependente [grifo nosso]. Justamente porque este sistema
transforma as diferenças em desigualdades, a discriminação
que elas sofrem assume um caráter triplo, dada sua posição de
classe, ameríndias e amefricanas fazem parte, na sua grande
maioria, do proletariado afrolatinoamericano.

Lélia acrescenta que um dito popular brasileiro sintetiza essa


situação ao afirmar: “branca para casar, mulata para fornicar, negra
para trabalhar”, de modo que os papéis atribuídos às amefricanas
(preta e mulata) retiram sua humanidade, são vistas como corpos
animalizados” (GONZALEZ, 2011, p.19). Expõe ainda que a função da
mucama nunca foi esquecida, pois a mulher negra naturalmente é co-
zinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta, e nova-
mente revela que, como todo mito, o da democracia racial oculta algo
para além daquilo que mostra:
Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua
violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra.
Pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no
cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura
na empregada doméstica. É por aí que a culpabilidade engen-
drada pelo seu endeusamento se exerce com fortes cargas de
agressividade. É por aí, também, que se constata que os ter-
mos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujei-
to. A nomeação vai depender da situação em que somos vista.
(GONZALEZ, 1984, p. 228).

E nesse sentido, a estudiosa destaca esta consideração:


Mas é justamente aquela negra anônima, habitante da peri-
feria, nas baixadas da vida, quem sofre mais tragicamente os
efeitos da terrível culpabilidade branca. Exatamente porque é
ela que sobrevive na base da prestação de serviços, seguran-
do a barra familiar praticamente sozinha. Isto porque seu ho-
mem, seus irmãos ou seus filhos são objeto de perseguição
policial sistemática (esquadrões da morte, mãos brancas es-
tão aí matando negros à vontade; observe-se que são negros
jovens, com menos de trinta anos. Por outro lado, que se veja
quem é a maioria da população carcerária deste país) (GON-
ZALEZ, 1984 p. 231).

As condições de existência material da comunidade negra reme-


84
Mulheres e feminismo: história e desafios

tem a condicionamentos ideológicos e sociais que precisam ser ataca-


dos e desmascarados. Os diferentes índices de dominação das diferen-
tes formas de produção econômica existentes no Brasil, América Latina
e nos EUA reforçam isso diariamente. É nesse sentido que as feministas
negras norte-americanas desenvolvem a categoria interseccionalidade,
para estudar as múltiplas conexões que se dão por intermédio do gêne-
ro, da raça e da classe. Barbara Machado (2017, p. 2) afirma que:
Embora o conceito de interseccionalidade seja creditado à
jurista norteamericana Kimberlé Crenshaw (CRENSHAW,
1989, 1993), o entendimento de que gênero, classe, raça e
sexualidade não devem ser entendidos de maneira separa-
da, mas entrelaçada e articulada, remonta aos movimentos
de mulheres negras e mulheres de cor norte-americanas da
década de 1970. O coletivo de mulheres negras Combahee
River Colective, em manifesto datado de 1977, já afirmava
um compromisso de “lutar contra a opressão racial, sexual,
heterossexual e classista”, tendo como tarefa “o desenvolvi-
mento de uma análise e uma prática integradas, baseadas no
fato de que os maiores sistemas de opressão se encadeiam”,
configurando uma “síntese dessas opressões [que] criam as
condições de nossas vidas” [tradução da autora citada]. (LA
COLECTIVA DEL RIO COMBAHEE, 1988, p. 172).

O feminismo negro teve, portanto, papel primordial na elabo-


ração do que viria a ser sistematizado como interseccionalidade, de-
nunciando o caráter branco, burguês e liberal que debilitava o poten-
cial transformador do feminismo, já que o movimento se concentrava
predominantemente nas experiências de mulheres brancas privilegia-
das, ora consideradas universais a todas as mulheres, ora prioritárias,
algo bastante destacado por Angela Davis (2016), desde o primórdio
dos movimentos por direitos das mulheres nos EUA. Dessa maneira, é
importante a seguinte afirmação de Machado (2017, p. 16):
[...] pode-se considerar que a análise interseccional que con-
sidera racismo e sexismo, mas que não desenvolve uma
crítica do capitalismo, não representa uma ameaça real aos
sistemas integrados que produzem desigualdade, já que as
demandas individuais podem ser tragadas por ele sem cus-
tos significativos, mas as lutas coletivas exigem sua deses-
truturação.

Entretanto, não se pode perder de vista o que Davis (1997, s.p.)


85
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

expõe nesta passagem:


As organizações de esquerda têm argumentado dentro de
uma visão marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais
importante. Claro que classe é importante. É preciso com-
preender que classe informa a raça. Mas raça, também, in-
forma a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira
como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a ma-
neira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante
para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero,
de forma a perceber que entre essas categorias existem re-
lações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém
pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras.

Assim, para concluir esta seção, não se poderia deixar de re-


lacionar o entendimento de Angela Davis com o princípio levantado
por August Bebel (1923, p. 6 apud ANDRADE, 2010, p. 16) de que “não
pode haver emancipação humana sem a independência social e a
igualdade entre os sexos”. Bebel foi um dos líderes e fundadores do
Partido Social-Democrata Alemão, tendo contribuído inegavelmente
para o fortalecimento da atuação política das mulheres no âmbito do
movimento operário e para o reconhecimento de sua importância.

3.3 Considerações finais

Assim, encaminhando-se para o fim desta exposição, que pre-


tendeu investigar as determinações de um feminismo que usa as
lentes do materialismo histórico, cabem as considerações de Clara
Zetkin (alemã que veio a fundar o 08 de março como Dia Internacio-
nal da Mulher) Ela ressalta que Marx não se ocupou da questão femi-
nina como tal e em si mesma, mas sua contribuição é insubstituível
e essencial na luta levada pelas mulheres para conquistar seus direi-
tos. Em suas obras acumula-se uma profusão de fatos, de ideias e
de sugestões sobre a questão do trabalho feminino, sobre a situação
das trabalhadoras, sobre a justificação da proteção legal do trabalho,
sobre as condições que deram origem às formas atuais da família,
sobre essas instituições e a influência das relações econômicas e de
propriedade que estão relacionadas a elas. O que ensina não se limita

86
Mulheres e feminismo: história e desafios

apenas a julgar corretamente a posição das mulheres no passado, mas


também compreender as posições sociais, legais e constitucionais do
sexo feminino hoje. “É um arsenal intelectual inesgotável para nossa
luta, tanto para as nossas reivindicações imediatas como para nosso
objetivo socialista” (ZETKIN, 1903, s.p.). Zetkin segue evidenciando
que a partir da análise das contradições de classe na sociedade atual
e suas raízes, Marx abre os olhos das mulheres para as diferenças de
interesse que as separam em diferentes classes, uma vez que, quando
se usa o materialismo histórico, a ideia de que haja uma irmandade
que envolva mulheres burgueses e proletária, se dissipa, pois
Marx forjou e nos ensinou a usar a espada que cortou a cone-
xão entre o movimento proletário e o movimento burguês das
mulheres. Mas ele também forjou a corrente de discernimen-
to pela qual o primeiro está inextricavelmente ligado ao movi-
mento operário socialista e à luta revolucionária das classes
do proletariado (ZETKIN, 1903, s.p.).

É interessante perceber como esse comentário de Clara se in-


terliga com aquele feito pelas feministas negras norte americanas, dé-
cadas depois, sobre a necessidade de transcender o feminismo liberal
e branco. Continuando a observar a questão através das lentes do ma-
terialismo histórico, acrescentam-se a luta de classe, a luta feminista
e a luta antirracista, tendo em vista que as necessidades produtivas
organizam o tempo social, sem ter em conta o tempo necessário para
a reprodução da vida. Esse movimento constituiu a diferença sexual
como uma diferença política e a diferença entre a liberdade natural
dos homens e da sujeição “natural” das mulheres, tudo isso ainda
mais acentuado quando se trata de uma mulher negra ou indígena.
Patriarcado, racismo e capitalismo são sistemas que se alimentam
mutuamente, nos quais a contribuição econômica da mulher à família
se tornou indispensável para o capitalismo avançado, tal como a su-
perexploração da mão de obra negra. Características de ordem natural
são tornadas problemas sociais pela civilização; então, é nesse nível
que suas soluções devem ser encontradas. Assim, uma perspectiva
crítica, feminista, antirracista e socialista não é, de maneira nenhu-
ma, utópica, no sentido de inatingível, impossível, mas, segundo Davis
(1997, s.p.):
87
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

[...] utopia é quando a gente se move em novas direções e


visões. Utopia no sentido de que necessitamos de visões para
nos inspirar e ir para frente. Isso tem que ser global. Preci-
samos achar um modo de dar conta e saber como vamos
interligar nossas lutas e visões e chegar a algumas conclu-
sões sobre como desenvolver novos valores revolucionários
e, principalmente, como desatrelar valores capitalistas de va-
lores democráticos.

Espera-se que, com toda esta explanação, tenha sido possível


deixar claro o fato de que a análise da dominação sobre as mulhe-
res não pode ser isolada da totalidade sistêmica, uma vez que cada
momento histórico e social possui suas próprias condições de pro-
dução e seu próprio código moral. Felizmente, instituições, como a
família, não são estáticas e naturalizadas. Tal qual muitos segmen-
tos difundem, de modo que a construção de novas posições para a
mulher dentro do organismo social é possível até mesmo dentro do
capitalismo, como foi afirmado por Zetkin e Davis. Entretanto, apenas
mediante a elaboração de novas maneiras de organização e ação que
objetivem a redefinição radical de poder nos espaços público e priva-
do, como parte de um projeto de refundação da sociedade, constituído
na emancipação da classe trabalhadora, é que podem de fato eliminar
a opressão e superar as relações sociais hierarquizadas, construídas
historicamente, e típicas da sociedade patriarcal capitalista.

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Mulheres e feminismo: história e desafios

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91
https://doi.org/10.33872/edufatecie.mulheresefeminismo.cap4

CAPÍTULO 4
MULHERES NA
REVOLUÇÃO RUSSA:
O FEMINISMO MARXISTA E A LUTA
PELA EMANCIPAÇÃO

Nataly Batista de Jesus

[…] sob o regime do capitalismo, nós éramos


escravas, traficava-se conosco no matrimô-
nio e fora dele. Sob o reino do poder soviético,
somos as primeiras em livrarmo-nos do nos-
so pesado fardo, em nos sentirmos livres.
(Inessa Armand, 1920).

A Revolução Russa de 1917 é um momento histórico marcado


pela ascensão da classe trabalhadora ao poder, visando à construção
de uma nova sociedade sem explorações e opressões. Com essa his-
tória marcante e regada de lições importantes para a luta e busca pela
emancipação humana, temos alguns nomes de dirigentes e militan-
tes que “sobreviveram” ao tempo no que tange à história da Rússia.
Mas, afinal, as mulheres também compuseram a Revolução Russa? Se
sim (e já adiantamos que a resposta é afirmativa), quem foram elas e
como se organizaram?
Mulheres e feminismo: história e desafios

Neste capítulo abordamos o papel das mulheres na revolução,


perpassando brevemente o período pré-revolucionário, a fim de en-
tender não apenas a conquista do poder em outubro, mas o proces-
so que o antecedeu. Também são enfocadas, as principais pautas e
conquistas das mulheres, incluindo limites e perspectivas baseada no
marxismo.

4.1 Breve contextualização da Rússia

A Rússia pré-revolucionária foi governada por czares, ou seja,


por uma monarquia, até fevereiro6 de 1917. É importante apontar que o
desenvolvimento da sociedade não ocorre por etapas, ou melhor, que
algumas características perduram por um longo período de tempo,
enquanto outras são substituídas. Podem-se, por exemplo, no caso
da Rússia, combinar monarquia, processo de industrialização (com a
ascensão de novas classes sociais como o operariado), enquanto se
mantêm algumas relações feudais. Cabe ressaltar aqui que o feuda-
lismo teve seu “fim” por um decreto em 1861, sem nenhuma reparação
histórica, levando todos aqueles antigos servos para fora das terras.
O “fim” da servidão russa, assim como outras abolições na his-
tória da humanidade, não aconteceu de forma bondosa ou por hu-
manismo/clemência de um indivíduo. Pelo contrário, isso se deu para
alavancar a situação econômica na Rússia e para aumentar a produ-
ção agrícola, o desenvolvimento das manufaturas e a exportação do
trigo. Foram essas algumas reformas impostas, a partir de 1840, pelas
classes dominantes, ou seja, pelo Czar Alexandre II.
Em resposta a esse último elemento mencionado, a criação de
organizações – fossem revolucionárias, partidárias ou não – foi ne-
cessária. Isso inclui, por exemplo, os Narodniks, o Vontade do Povo,
Partilha Negra, e Terra e Liberdade. Cada uma à sua maneira, bus-

6 Faz-se relevante destacar que o calendário empregado na Rússia nesse período era o
juliano, e por isso há uma diferença de treze dias se comparado ao calendário gregoriano
(nosso atual). Para a exposição neste capítulo nos ancoramos no calendário da época,
tradicionalmente utilizado por escritores clássicos.

93
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

cavam a organização dos camponeses e a repartição equitativa de


terras, isto é, um socialismo rural. Essas organizações tinham táticas
diferentes para alcançar seus objetivos: por exemplo, a morte do czar
– efetivada em 1881 pela organização Vontade do Povo –, ou outras
formas mais “pacíficas”. O movimento marxista que surgiu posterior-
mente, com o papel fundamental de Vera Zasulich, era crítico em rela-
ção à morte dos czares, pois acreditava que “czar morto é czar posto”,
pois, mesmo matando Alexandre II, Nicolau II logo foi nomeado (Da-
niele SILVA, 2018; REIS, 2017).
O regime czarista, em sua defesa, agia brutalmente contra todos
os possíveis levantes das trabalhadoras e trabalhadores que ameaças-
sem o poder vigente, mesmo que estivessem famélicos ou reivindican-
do emprego7. Em linhas gerais, a Rússia passou por uma sucessão de
guerras imperialistas em busca da expansão de território e do aumento
de riqueza e poder. Isso resultou em derrotas e na intensificação da mi-
séria dos trabalhadores. Temos, como exemplo, a guerra russo-japo-
nesa de 1904-1905 (em que a Rússia foi derrotada) e a Primeira Guerra
Mundial em 1914, contra a Alemanha.
Quando um país entra em guerra, intensifica-se o cenário caóti-
co, pois milhares de trabalhadores são enviados ao front para morrer,
e os subsídios, escassos, são destinados ao armamento, dentre ou-
tras variáveis. Ademais, tais soldados eram, em sua maioria, campo-
neses. Dito de outra forma, a guerra retira trabalhadores do campo,
sobrecarregando aqueles que permanecem em território russo, sendo,
neste caso, majoritariamente mulheres. Na Rússia, em 1914, não foi
diferente. As trabalhadoras e os trabalhadores, camponeses ou ope-
rários queriam o fim da guerra, tanto pelas mortes, quanto pelo au-
mento da miséria e da fome.
Nos primeiros anos da guerra, a repressão comandada pelo
czar era intensa, de modo que nesse período houve um crescente nú-
mero de pessoas presas e exiladas. Toda e qualquer manifestação era
violentamente reprimida. Alexandra Kollontai (1914/2017, p. 164) afir-
7 Sugestão de leitura: A Revolução de 1905, escrito por Leon Trotsky. Esse livro narra,
com profundidade, tanto o episódio do “domingo sangrento” quanto as inúmeras greves e
manifestações no decorrer daquele ano.

94
Mulheres e feminismo: história e desafios

ma que “as organizações trabalhadoras foram derrotadas. Os líderes


encheram as prisões ou buscaram asilo do outro lado da fronteira…
Não restou um único jornal socialista, nenhuma possibilidade de reu-
nir forças”. A vida da classe trabalhadora estava em risco: o trabalho,
que já era pesado, tinha em média de 12 a 16 horas diárias; o salário
era cada vez menor e o acesso à comida, mais escasso. Esse fardo era
ainda mais pesado para as mulheres da classe trabalhadora, mas, ao
contrário do estereótipo de “passivas”, “amorosas” e “clementes”, as
mulheres iam às ruas protestar.

4.2 Dia Internacional da Mulher Trabalhadora

O Dia Internacional da Mulher, atualmente, é comemorado com


flores e homenagens pelos papéis que as mulheres exercem na socie-
dade, ou seja, reafirma-se o quanto as mulheres são (ou deveriam ser)
carinhosas e amorosas, além de boas mães, esposas etc. Entretanto,
a apropriação dessa data pelo capitalismo só exerce uma função mer-
cantil, excluindo sua verdadeira história. Segundo a autora Ana Isabel
A. González (2010) há pelo menos três versões que compõem a ori-
gem desse dia8. A história à qual damos destaque neste ponto, é a ori-
gem do Dia Internacional da Mulher Trabalhadora, definida em 1910,
na 2ª Conferência Internacional da Mulher Socialista e promovido pela
II Internacional Socialista, em Copenhague, na Dinamarca. A proposta
de tal data é marcada pela crescente necessidade de greves, motins
e manifestações por melhores condições de vida. E por que mulheres
trabalhadoras, e não mulheres de todas as classes?
Há um ponto central no marxismo que é a luta de classes. Não
estamos defendendo que as mulheres burguesas, aristocratas ou de
outras classes dominantes não sofram opressões das mais diversas,
mas sabemos que uma mulher da classe trabalhadora sofre as opres-
sões e a exploração das classes dominantes. Sendo mais objetiva,
uma mulher burguesa terceiriza as tarefas domésticas e explora uma
8 Para ler mais, recomendamos o livro As origens e comemoração do Dia Internacional
das Mulheres, escrito por Ana Isabel A. González (2010).

95
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

mulher trabalhadora, mesmo que ambas tenham os mesmos “direi-


tos”. Nesse sentido:
[…] o problema da opressão da mulher, apesar de ter um pé
no gênero, ou melhor, na imagem que se construiu dela ou,
ainda, na imagem que se construiu do homem como o opres-
sor, não tem aí sua raiz. Mais: o gênero está determinado pela
classe. Ele se expressa da forma distinta na mulher burguesa
e na mulher proletária, e se é negra, sente também a discri-
minação racial. A pobreza, o emprego precário, a mortalidade
materna, a marginalidade são manifestações de uma con-
dição de classe, e uma mulher nessas condições vivencia o
feminino de forma diferente da mulher que vive num bairro
burguês, é proprietária ou mulher de banqueiro, vai todos os
dias ao cabeleireiro e tem empregada doméstica (Cecilia TO-
LEDO, 2017, p.173).

Por esse motivo, a organização e manifestação do Dia da Mulher


tem cunho de classe social. Dessa maneira, a primeira manifestação do
Dia Internacional da Mulher Trabalhadora foi concretizada em 1913, na
Rússia, três anos após a 2ª Conferência de Mulheres Socialistas. Ape-
sar de ser proposta para ocorrer anualmente, Kollontai (1914) afirma
que a repressão czarista impossibilitou qualquer tipo de organização
nas ruas nos anos anteriores. Ademais:
O primeiro dia da mulher na Rússia foi um acontecimento
político. Todos os partidos e classes sociais se expressaram
em relação a ele: uns com ódio e desprezo, outros com dú-
vidas quanto a se as trabalhadoras marchavam de braços
dados com organizações femininas liberais e burguesas. O
resultado dessa impressionante primeira experiência das
trabalhadoras russas em declarar publicamente suas exigên-
cias foram detenções e condenações à prisão (KOLLONTAI,
1914/2017, p.165).

O Dia Internacional da Mulher Trabalhadora aconteceu em 23


de fevereiro (calendário juliano), na Rússia, e marcou o início de uma
série de manifestações. Desse modo, em 1917, mediante a organiza-
ção das mulheres nas ruas e greves no bairro de Vyborg, deu-se início
à Revolução de Fevereiro (TROTSKY, 1930/2017).
No primeiro dia, mulheres camponesas e operárias foram às
ruas, convocando homens da classe trabalhadora a esse ato unificado.

96
Mulheres e feminismo: história e desafios

Nessa ocasião, havia aproximadamente 90 mil trabalhadores. A data foi


marcada por um crescente movimento de greves, passeatas e reuniões,
e, a cada dia, mais trabalhadores e trabalhadoras aderiram ao movi-
mento. As principais palavras de ordem eram “Pão e paz”, exatamente
pela falta de alimento e pela necessidade de findar a guerra, pois isso
atingia a todos, principalmente as mulheres.
Com as crescentes greves, as fábricas e os comércios fecharam
e os bondes pararam. A Revolução Russa iniciada com o Dia Interna-
cional da Mulher possibilitou, após cinco dias, a abdicação do czar.
Aquele momento iniciou uma nova história na Rússia. Apesar dessa
conquista, a luta continuava, pois em seguida dois poderes foram
instaurados: o Governo Provisório (GP) e os Conselhos de Delegados
Operários e Soldados (Sovietes)9.

4.3 Conquistas e pautas durante o duplo poder

Com a queda do czar, a Rússia começava a ser governada por


dois poderes antagônicos: um, formado pela burguesia e pela aristo-
cracia, e outro, constituído por trabalhadores e soldados que deseja-
vam o fim da guerra e das explorações. Vale ressaltar que, entre os
sovietes havia mulheres delegadas10. Nesse processo, as principais
pautas eram: a) jornada de trabalho de oito horas; b) fim da guerra; c)
reforma agrária.
Os(as) trabalhadores(as), em geral, tinham uma carga horária
de trabalho entre doze e dezesseis horas diárias, no campo ou na fá-
brica; para as mulheres, a jornada se estendia no ambiente doméstico,
intensificando ainda mais a opressão e a exploração que a sociedade
9 Apesar de não nos debruçarmos sobre os dois poderes na Rússia é de extrema im-
portância compreender esse processo, pois demarca as divergências entre explorados e
exploradores e como seus interesses são distintos. Nesse sentido, sugerimos a leitura de
História da Revolução Russa, escrito por Leon Trotsky.
10 Ser delegado(a) nos sovietes significava que um indivíduo seria eleito em fábricas,
bairros ou províncias por outros trabalhadores. Esse método garantia que as decisões
fossem discutidas entre os membros de um grupo e que esse(a) delegado(a) representas-
se o interesse da maioria durante os congressos. Tanto homens quanto mulheres podiam
e foram eleitas delegadas, apesar de haver homens majoritariamente nessas eleições.

97
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

já exercia. O fim da guerra era um dos pontos centrais para alterar a


situação da população russa, cansada de sofrer com a fome, com o
aumento das mortes de soldados etc. A reforma agrária também era
extremamente importante para a classe trabalhadora, pois desde o
fim da servidão não houve nenhuma divisão de terras ou reparação,
como mencionado no início deste texto.
Esses três pontos centrais das pautas dos sovietes eram radi-
calmente contrários aos interesses do GP, que, em sua maioria, enten-
dia o processo revolucionário sob um viés burguês, e pela composição
do governo, defendia a continuidade da guerra para ampliar suas ri-
quezas, território e poder. E coube a eles tentar esmagar toda a classe
trabalhadora em suas organizações, exatamente porque tinham inte-
resses que não podiam convergir.
Dando foco às mulheres, Danielle J. Silva (2018) afirma que
desde o início da guerra as mulheres participaram ativamente do
Comitê de Refugiados, da União das Cidades, da Cruz Vermelha, da
União dos Zemstvos11 e como motoristas do exército, ainda que em
proporções menores em comparação aos homens. Talvez essas
medidas tenham contribuído para o crescente apoio de mulheres de
diferentes classes sociais à guerra, principalmente da burguesia e
aristocracia.
Em maio de 1917, foi formado um batalhão de mulheres para ir
aos fronts durante a guerra. Essa organização ficou conhecida como
Batalhão da Morte, pois julgavam que só sairiam dos fronts diante
da morte, seja de si mesmas, seja do inimigo. Esse batalhão esteve
presente também na revolução de outubro, defendendo o Palácio de
Inverno, protegendo o GP e tentando impedir a entrada dos sovietes e
bolcheviques no poder (SILVA, 2018).
Mesmo diante dessa dualidade de poder, as lutas continuavam
no que tange aos direitos das mulheres. Por exemplo, há mais de uma
década, várias organizações de diferentes vieses (radicais, liberais,
11 Instância administrativa limitada às questões econômicas locais (organização dos
hospitais, construção de estradas, estatísticas, seguros). Informação extraída do dicioná-
rio político Marxists Internet Archive. Disponível em: https://marxists.catbull.com/portu-
gues/dicionario/verbetes/z/zemstvo.htm. Acesso em: set/2020.

98
Mulheres e feminismo: história e desafios

marxistas)12 lutavam por conquistas, fosse para mulheres de uma de-


terminada classe social, fosse para mulheres policlassistas, ou, ainda,
para a classe trabalhadora em geral, com destaque as mulheres.
Durante o GP, foram conquistados o sufrágio universal em julho
de 1917, a proposta de reforma no ensino superior das mulheres e a
equiparação de salários em cargos do serviço civil, aumentando as-
sim a quantidade de mulheres no ramo e no apoio ao GP. De acordo
com Silva (2018, p.45), “as mulheres graduadas em direito receberam
o direito de advogar e em agosto os salários, títulos e benefícios dos
cargos no serviço civil são equiparados entre homens e mulheres”.
Essas conquistas, por mais progressistas que tenham sido,
atingiram substancialmente determinadas classes sociais: aristocra-
tas e burguesas. Relativamente às explorações, não houve qualquer
mudança para as trabalhadoras, de modo que a fome, a extensa carga
horária de trabalho, as tarefas domésticas e os cuidados com os filhos
permaneceram intocáveis. Outro ponto importante é que, na Rússia,
grande parcela da classe trabalhadora era analfabeta e tinha condi-
ções insalubres de moradia e trabalho, ou seja, nenhuma das conquis-
tas atingia todos integralmente.
Vários ataques aos trabalhadores permaneceram vigentes du-
rante o GP, incluindo a continuação na guerra, a alta inflação e a es-
cassez dos alimentos. As inúmeras tentativas de institucionalizar os
sovietes e desmoralizar o partido bolchevique, como também todas
as possíveis organizações dos trabalhadores, foram cada vez mais
frequentes. Esse processo enfraquecia os sovietes e precisava ser
combatido13.
Era necessário preparar a classe trabalhadora para a tomada
do poder e para destituir o GP, pois nem esse governo, nem o regime
czarista representavam as trabalhadoras e trabalhadores, fossem do
campo ou da cidade. Entre fevereiro e outubro, aconteceram vários
episódios, entre eles: calúnias ao partido bolchevique, tentativa de
12 Para ler mais a respeito, recomendamos o artigo O papel das organizações de mu-
lheres e partidos na Rússia pré-revolucionária, escrito por Nataly Jesus e Silvana Tuleski
(2020).
13 Para ler mais, vide As teses de abril, de Vladimir Lenin (1917).

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Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

golpe militar, tentativa de institucionalização dos sovietes etc. De for-


ma concomitante aos passos reacionários do GP e de outras organi-
zações apoiadoras desse governo, aumentavam os trabalhos de agi-
tação e propaganda revolucionária, cuja palavra de ordem era “Todo o
poder aos sovietes!”.

4.4 Pós-revolução de Outubro14

A tomada de poder aconteceu em 25 de outubro de 1917, quan-


do finalmente os trabalhadores governariam a sociedade russa, cons-
truindo uma nova forma de sociabilidade, apropriação da produção
e poderiam decidir coletivamente as necessidades e demandas. No-
toriamente, as condições não mudaram da noite para o dia. Houve a
necessidade de construir uma série de mecanismos para articular as
necessidades em diferentes fábricas, bairros, províncias etc. Entre as
instâncias criadas estavam: o Comissariado de saúde, o Comissaria-
do de educação, de bem-estar social, da justiça (nos moldes proletá-
rios, não no antigo regime burguês), entre vários outros que surgiam,
com base nas necessidades e na deliberação conjunta.
Era importante que as mulheres adentrassem ao máximo nes-
ses espaços, inclusive fazendo parte do grupo de delegados dos so-
vietes, do partido, dos comitês de fábricas, dos comissariados, entre
outros. Mas a participação feminina ainda era limitada, visto que as
mulheres, majoritariamente, estavam despreparadas politicamente
para ocupar esses lugares. Não necessariamente por desinteresse,
mas pela privação de debates públicos e políticos ao longo de déca-
das. Mas, afinal, não houve nenhuma organização política que bus-
casse despertar a consciência de classe e busca por emancipação
feminina antes de 1917?
Há registros de organizações feministas burguesas e mulheres
marxistas em partidos desde o século XIX na Rússia, marcado por di-
vergências políticas e compreensões diferentes sobre opressões. Os
14 Não nos debruçaremos aqui sobre o processo da tomada de poder em si, mas às pau-
tas, conquistas e limites pós-revolução de outubro.

100
Mulheres e feminismo: história e desafios

debates sobre as origens das opressões e as possíveis saídas são dis-


tintas, de acordo com as vertentes, além de existir uma composição
variável de seus membros (JESUS; TULESKI, 2020).
Em linhas gerais, as pautas eram as mais diversas nas orga-
nizações, desde o acesso básico à educação dos mais pobres, o di-
reito ao passaporte, o direito ao ensino superior, o direito à herança
(apenas homens tinham esse direito), entre outras reivindicações. A
grande divergência entre os movimentos feministas e socialistas se
deu no Primeiro Congresso de Mulheres de Toda a Rússia, em 1908, no
qual as mulheres marxistas denunciaram as organizações feministas
burguesas de se aproveitarem da classe trabalhadora a fim de trans-
formá-las em massa de manobra para atingir seus interesses. Não era
à toa que a maioria das pautas, como as citadas acima, não atingiam
as mulheres trabalhadoras15.
Uma das alternativas de trabalho revolucionário por meio do
Partido Social Democrata Russo (POSDR) e, posteriormente, do Parti-
do Bolchevique16 – ambos vinculados à II Internacional – era, por meio
de agitação e propaganda da imprensa operária e de militantes den-
tro e fora de seus espaços de trabalho. Jornais como Iskra (Faísca),
Pravda (A Verdade) e Rabotnitsa (A Trabalhadora), entre outros, eram
meios de levar a política do partido a denúncias sobre exploração e
opressões, tanto da classe trabalhadora quanto das mulheres dessa
classe também, especificamente.
Levando em consideração que o partido era vinculado a uma
Internacional Socialista17, a política discutida era de âmbito mun-
dial. Dito de outra forma, todos os partidos, nos diferentes países que
compunham a Internacional, discutiam em congressos, táticas e es-
tratégias importantes para o processo revolucionário. Muitos jornais
proletários foram criados, no decorrer da luta de classes, como uma
necessidade da organização.
15 Ainda que houvesse feministas burguesas que colocavam os interesses das mulheres
proletárias na pauta, estas primeiras se davam por satisfeitas, mesmo sem atingir nenhu-
ma conquista à outra classe.
16 Para saber mais, leia O Partido Bolchevique, escrito por Pierre Broue (1963/2014).
17 Leia mais em A internacional: um permanente combate entre o oportunismo e o secta-
rismo, escrito por Alicia Sagra (2010).

101
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

O jornal Rabotnitsa, na Rússia, assim como o A igualdade, na


Alemanha, eram destinados exclusivamente à pauta das mulheres.
Dessa maneira, concentravam informações sobre denúncias na com-
paração de salários, em que se podia constatar, por exemplo, que as
mulheres recebiam 1/3 dos salários dos homens nas fábricas; esse
jornal denunciava também as opressões e os assédios que elas so-
friam nos locais de trabalho. Além disso, buscava-se reunir outras
matérias que incluíssem o cenário mundial da luta de classes, ou seja,
quais fábricas, indústrias e cidades estavam em greve ou manifes-
tações nas ruas. Esses elementos contribuíam para entender que a
consciência de classe é um processo a ser desenvolvido, e que as
opressões e explorações, apesar de suas singularidades e diferenças
de acordo com o país e o regime instaurado, atingiam todos que ne-
cessitavam vender sua força de trabalho para sobreviver.
Esse processo, brevemente abordado aqui, demonstra como a
disputa pela consciência de classe, assim como a inserção de mulhe-
res nas discussões políticas ocorriam, antes da revolução em si. E o
desafio de inseri-las, majoritariamente, nas fileiras do partido e das
instâncias soviéticas era um desafio.
Após a tomada de poder, algumas listas ainda permaneciam vi-
gentes e precisavam urgentemente ser combatidas para emancipar as
mulheres de suas opressões seculares. Elas incluíam: direito ao abor-
to seguro, creches comunitárias, restaurantes comunitários, direito ao
divórcio, fim da prostituição e educação para todos.
Aos poucos, as pautas mencionadas acima começavam a ser
debatidas pelos conselhos populares. Um dos primeiros decretos ins-
taurados pelos sovietes flexibilizava o divórcio, para que os casais pu-
dessem se separar tranquilamente, (Código completo do Casamento,
da Família e da Tutela, de 1918). Durante o regime czarista, somente
três situações eram passíveis de divórcio e necessitavam do aval do
representante da Igreja Ortodoxa da Rússia ou de outro templo reli-
gioso reconhecido pelo regime, mas eram raras as vezes em que o
divórcio era concedido.
Era quase impossível divorciar-se na Rússia pré-revolucio-

102
Mulheres e feminismo: história e desafios

nária. A Igreja Ortodoxa considerava o casamento um sacra-


mento sagrado que poucas circunstâncias podiam dissolver.
Era permitido o divórcio somente em casos de adultério (tes-
temunhado por pelo menos duas pessoas), impotência, exílio
prolongado/inexplicada ausência de um cônjuge. Em casos
de adultério ou impotência, a parte responsável era perma-
nentemente proibida de se casar novamente (Wendy GOLD-
MAN, 2014, p.71).

Nesse sentido, não só a criação de um decreto era suficiente,


mas a discussão e a formação humana para combater os dogmas
religiosos que impediam as mulheres de solicitarem os divórcios.
Outra conquista foi a legalização do aborto, instaurada em 1920,
cuja descriminalização reconhecia a importância de realizar esse pro-
cedimento em hospitais e com equipes amparadas pelo estado soviéti-
co, e de modo não burocratizado. Além de buscar a segurança durante o
aborto, descriminalizava esse procedimento médico. Durante o regime
czarista, era considerado crime de assassinato e os envolvidos podiam
ser presos caso fossem identificados. Destaca-se também que, com
esse decreto soviético, as parteiras que realizavam os procedimentos
abortivos em outras mulheres foram proibidas de exercer essa função,
exatamente para forçá-las a procurarem os hospitais.
No que se referem às tarefas domésticas, alguns passos fo-
ram importantes na Rússia; porém, dadas as condições precárias
decorrentes da guerra (que perduraram até 1918, com o tratado de
Brest-Litovski), os recursos coletivos eram insatisfatórios e escas-
sos. Também foram criadas creches comunitárias para as crianças
permanecerem durante o horário de trabalho de suas mães. Os res-
taurantes comunitários foram criados a partir de 1919, em mais de
49 províncias, chegando a alimentar mais de 4,5 milhões de pessoas
gratuitamente. Havia lugares, como em Petrogrado, que alimentavam
mais de 80% da população (GOLDMAN, 2014).
Apesar dessas conquistas e muitas outras mudanças no Esta-
do Soviético após a Revolução de Outubro, é importante lembrarmos
que a Rússia achava-se destruída pelas sucessivas guerras, empo-
brecida pela incapacidade de produção, e isolada, pela diminuição de

103
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

exportações e importações sob o regime dos trabalhadores. Assim,


expandir uma revolução era importante para a Rússia não ser esma-
gada pelos países capitalistas. É claro que uma revolução iniciada por
um país não pode se desenvolver e emancipar a classe trabalhadora
se não for expandida, daí a necessidade de uma organização mundial
e revolucionária por parte dos trabalhadores.
Durante todo o processo de construção de uma nova sociedade,
e diante das inúmeras dificuldades que surgiram ao longo dos anos,
muitas medidas foram tomadas para a participação das mulheres.
Elas ocupavam postos de delegadas, eram soldadas do Exército Ver-
melho, enfermeiras, trabalhadoras da Inspeção Operária e Campesina,
membros dos sovietes, dirigentes da Imprensa Proletária, dirigentes
dos Comissariados e participantes de uma série de outras instâncias
soviéticas. Assim mesmo, sua participação era pequena, se compara-
da à quantidade de homens nesses mesmos espaços.
Para reverter este quadro, o partido bolchevique discutiu a ne-
cessidade de criar, em 1919, o Jenotdel (Seção de Mulheres do Partido
Bolchevique), cujas preocupações constituíam exatamente táticas para
incorporar as mulheres nas diferentes camadas soviéticas, em todos os
espaços possíveis e para que sua representação nesses espaços fosse
cada vez maior. Com tal objetivo, uma parcela do partido procurava es-
treitar relações com as mulheres, fosse por meio de congressos, fosse
diretamente nas fábricas ou nos campos, nos jornais etc.
Cabe enfatizar que não há socialismo enquanto houver opres-
são ou exploração de um sobre o outro. Dessa maneira, a emancipa-
ção da mulher era um termômetro da revolução russa, e constatava-
-se a necessidade de aprofundar no combate às opressões e expandir
a revolução para outros países.

4.5 Afinal, quem eram as mulheres revolucionárias?

Apesar de falar genericamente sobre as organizações e neces-


sidades para a emancipação da classe trabalhadora em geral, e das

104
Mulheres e feminismo: história e desafios

mulheres especificamente, o leitor deve estar perguntando-se: “Afinal,


quem foram essas mulheres?”. Nesse sentido, convido as leitoras e lei-
tores a conhecerem grandes nomes de revolucionárias, algumas mais
conhecidas, outras menos.
A militante Inessa Armand era do partido bolchevique, desde
1913 aproximadamente. Foi responsável pela formação revolucioná-
ria de vários militantes, exerceu atividades ilegais, estava na tomada
de poder, compunha o editorial do jornal Rabotnitsa e foi dirigente do
Jenotdel18.
Alexandra Kollontai foi umas militantes responsáveis pela de-
núncia de manipulação no Primeiro Congresso de Mulheres de Toda a
Rússia em 1908; além disso, se debruçou sobre estudos e formações
sobre a sexualidade de uma nova mulher, cuja relação denominou
“amor-camarada”. Também vale ressaltar que Kollontai foi a primeira
responsável pelo Comissariado do Povo para o Bem-Estar Social19.
Nadeska Krúpskaia, militante do POSDR desde 1902, foi uma
das pioneiras a discutir na Rússia a importância de incorporar as
mulheres no partido, ancorando-se principalmente nos estudos de
August Bebel e Frederich Engels. Ademais, foi responsável pelo Co-
missariado do Povo para a Educação, após a revolução de 1917, bus-
cando a construção conjunta de uma nova pedagogia socialista20.
Vera Zasulich, uma das primeiras marxistas na Rússia, fundou,
junto a Plekhanov, a organização Emancipação do trabalho, que deu
origem ao POSDR. É possível encontrar cartas de Zasulich endereça-
das a Karl Marx21.
18 Para ler mais sobre Inessa Armand, recomendamos o texto Inessa: 101 anos de sua
morte (2021) disponível em: https://litci.org/pt/inessa-101-anos-de-sua-morte/ e a bio-
grafia Inessa Armand: revolucionaria y feminista (2018).
19 Para ler mais sobre Alexandra Kollontai, recomendamos Autobiografia de uma mulher
comunista sexualmente emancipada (1926/2007).
20 É lamentável ter que explicar, mas as pessoas costumam se referir a Krúpskaia como
“companheira de Lenin”. Por isso, reafirmamos que suas contribuições foram muito maio-
res que um mero relacionamento com um importante dirigente revolucionário. Ou seja,
antes de ser “companheira de alguém”, Krúpskaia foi uma militante revolucionária e seu
papel em todo processo não se deu por causa de Lenin, mas sim pela compreensão e
leitura da realidade opressora e exploradora da luta de classes.
21 Para ler mais, sugere-se a obra Lutas de classes na Rússia, de Marx e Engels (2013),
organizado pela editora Boitempo.

105
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

Clara Zetkin, apesar de não estar diretamente na Rússia, foi uma


militante do Partido Social Democrata da Alemanha (SPD)22, vinculado
à II Internacional. Teve um papel importante na organização do parti-
do e das mulheres dentro do partido mundial. Foi até mesmo respon-
sável pela tarefa do jornal A Igualdade23.
Rosa Luxemburgo também não estava presente na Rússia dire-
tamente. Era militante do SPD e tinhas tarefas importantes na cons-
trução do partido. Assim, vale apontar que foi responsável pela for-
mação marxista de centenas de trabalhadores ao longo de sua vida24.
Todas as militantes citadas acima, dentre dezenas de outras não
mencionadas aqui (Korkordia Samoilova, Praskovia Kudelli, Liudmila
Stal, Larissa Reissner, Aleksandra Artyukina e outras), foram presas e
exiladas em algum momento de suas vidas, principalmente por busca-
rem organizar a classe trabalhadora em direção às revoluções, mani-
festações, greves etc. As “heroínas anônimas”, como se referia Kollontai
a essas mulheres militantes, foram responsáveis por grandes decisões
coletivas e encaminhamentos que visavam à emancipação humana.

4.6 Primeiro a revolução; depois, o combate às opressões?

Há quem acredite que, para os marxistas, somente com uma


revolução tudo será resolvido e que, antes disso, não é necessário nos
preocuparmos com as opressões. Essa afirmação é mentirosa! Opres-
sões e explorações não devem e não podem ser entendidas separada-
mente. A sociedade de classes utiliza os mais diversos mecanismos
para aumentar sua taxa de riqueza e, para isso, as opressões possibi-
litam intensificar as explorações.
Assim como se deve lutar para que a classe trabalhadora em
geral desenvolva consciência de classe, é preciso lutar conjuntamen-
te, a fim de que as opressões sejam sempre combatidas, ou seja, de

22 SPD é a sigla em alemão para Sozialdemokratische Partei Deutschlands.


23 Para ler mais sobre Clara Zetkin, recomendamos Clara Zetkin: Vida e Obra (2003).
24 Para ler mais sobre Rosa, recomendamos Rosa Luxemburgo: biografia, escrita por Paul
Frölich (1949/2019).

106
Mulheres e feminismo: história e desafios

que são lutas permanentes. Da mesma forma que um raio não cai em
dia de céu azul, o fim das opressões também não virá dessa maneira.
Não é uma etapa, não é espontâneo, requer reeducação da classe tra-
balhadora, e para isso devemos combater o machismo, o racismo e a
LGBTfobia25 para unir as classes.
Aliás, os trabalhadores mais explorados são as mulheres, os ne-
gros e negras, e LGBTs, os quais estão nas condições mais precárias
de trabalho, na informalidade ou desempregados. Não há como pensar
a luta de classes sem um combate permanente às opressões. Não há
sociedade igualitária enquanto houver alguém sendo oprimido.
Dessa maneira, nem o capitalismo no país mais desenvolvido
proporcionou ou proporcionará a emancipação humana e seu desen-
volvimento pleno. Por essa razão, defendemos que a revolução é ne-
cessária para emancipar os explorados e oprimidos, mas essa cons-
trução é permanente no processo pré e pós-revolucionário. Em outras
palavras, não é possível reformar o sistema capitalista para que ele se
torne igualitário, pois o capitalismo já está podre e precisa ser substi-
tuído em sua totalidade.
A Revolução Russa apresenta inúmeras lições, entre as quais
a de que ainda estamos lutando sobre as mesmas questões de apro-
ximadamente cem anos atrás (e outras mais recentes). Outra dessas
lições é que, sob o capitalismo, por mais que conquistemos direitos de
igualdade, esta sociedade de classes engendrada sobre as opressões,
jamais emancipará a classe trabalhadora, as mulheres, os negros e
negras, os LGBTs e os povos originários.

4.7 Considerações finais

A revolução russa, em 1917, teve dois momentos centrais: a

25 LGBT é a sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Travestis. Quando a palavra é
seguida do sufixo fobia significa medo, aversão, ódio ao que antecede a palavra. Ou seja,
LGBTfobia é manifestada pelo ódio às LGBTs, que no capitalismo é intensificada e refor-
çada ainda mais pelas desigualdades. Recomendamos a leitura do livro Homossexuali-
dade: da opressão à Libertação (2015), escrito por Hiro Okita, para introdução ao debate.

107
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

queda do czar, em fevereiro, cujo processo revolucionário foi inicia-


do pelas mulheres no Dia Internacional da Mulher Trabalhadora, e a
tomada do poder, em outubro, pelas trabalhadoras e trabalhadores.
Nenhum dos momentos foi marcado pela passividade; pelo contrário,
foi uma luta incessante para organizar os trabalhadores contra as re-
galias das classes dominantes, que buscavam manter seus interesses
e privilégios.
A participação das mulheres era de extrema relevância para a
revolução ser vitoriosa de fato, daí as preocupações em incorporá-
-las nas instâncias soviéticas, de forma permanente. Diante disso, as
discussões e a busca pela emancipação das mulheres atravessaram
os decretos e novas formações políticas. Isso incluiu as mulheres no
Exército Vermelho (como soldadas, propagandistas e enfermeiras),
nos sovietes, no partido bolchevique, na imprensa operária e em de-
mais instâncias.
As conquistas na Rússia, mesmo com os limites de um país
destruído pela guerra e pela miséria, foram mais amplas e mais
emancipadoras para as mulheres do que as de outros países mais
desenvolvidos sob o capitalismo. Como visto no decorrer deste texto,
a legalização do aborto, as creches comunitárias, os restaurantes co-
munitários, o direito ao divórcio etc. foram algumas das conquistas no
estado soviético (ARMAND, 1920).
Em suma, a emancipação das mulheres não se dará pela reforma
da sociedade burguesa; não será integralmente aplicada por meio de
políticas públicas (por mais progressistas que sejam). A emancipação
se construirá mediante uma nova sociedade – a socialista –, ou melhor,
por intermédio de uma revolução permanente contra todo e qualquer
tipo de opressão e exploração. É por este motivo que, a história da revo-
lução russa e o papel que as mulheres desempenharam nesse processo
é fundamental para extrairmos lições valiosas para nossa luta atual.
Conhecer em qual lado das trincheiras devemos ocupar e declarar guer-
ra às classes (dominantes) que faturam milhões todos os dias sob nos-
sas costas e sangue.

108
Mulheres e feminismo: história e desafios

Referências

ARMAND, Inessa. A trabalhadora na Rússia soviética. Texto original-


mente publicado em 1920. Disponível em: https://teoriaerevolucao.
pstu.org.br/a-trabalhadora-na-russia-sovietica/. Acesso em: 02 ago.
de 2020.
GOLDMAN, Wendy. Mulher, estado e revolução: política familiar e vida
social soviéticas, 1917-1936. São Paulo: Boitempo; Iskra, 2014.
GONZÁLEZ, Ana Isabel Álvarez. As origens e comemoração do Dia Inter-
nacional das Mulheres. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
JESUS, Nataly B; TULESKI, Silvana C. O papel das organizações de
mulheres e partidos na Rússia pré-revolucionária. In: Revista Germi-
nal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 12, n. 1, p. 24-36,
abr. 2020.
KOLLONTAI, Alexandra. [1914]. Na Rússia também haverá um dia da
mulher! In: SCHNEIDER, G. (org.). A revolução das mulheres: emanci-
pação feminina na Rússia soviética. São Paulo: Boitempo, 2017.
REIS, Daniel Aarão. A revolução que mudou o mundo: Rússia, 1917.
São Paulo: Companhia das letras, 2017.
SERGE, Victor [1930]. O ano I da Revolução Russa. São Paulo: Boi-
tempo, 2007.
SILVA, Danielle Jardins. Avanços e limites da contribuição soviética
para a libertação das mulheres: apontamentos a partir do pensa-
mento de Alexandra Kollontai. Dissertação (mestrado). Universidade
Federal Fluminense. Niterói, 2018.
TOLEDO. Cecília. Gênero e Classe. São Paulo: Sundermann, 2017.
TROTSKY, Leon [1930]. História da Revolução Russa – Tomo I. São
Paulo: Editora Sundermann, 2017.

109
https://doi.org/10.33872/edufatecie.mulheresefeminismo.cap5

CAPÍTULO 5
RELAÇÃO SAÚDE DOENÇA
NO CONTEXTO CAPITALISTA:
UMA LEITURA DE GÊNERO

Tamires Lombardi Mezzon


Hilusca Alves Leite

O presente texto pretende abordar, ainda que de forma introdu-


tória, a noção de saúde/doença do corpo feminino, tendo como escopo
teórico a concepção materialista histórica de constituição e desenvolvi-
mento dos sujeitos expressa pelos autores da Psicologia Histórico-Cul-
tural e pela socióloga catalã Maria Jesus Izquierdo. Para tanto, faremos
um breve resgate histórico do papel do saber científico na identificação
de doenças, sejam elas de ordem física ou mental, e o impacto das di-
ferentes concepções de corpo e saúde ao longo da história na vida das
mulheres. Nossa intenção é problematizar que a forma de produzir a
vida, por sobrecarregar duplamente as mulheres com exigências do tra-
balho produtivo e reprodutivo26, impacta sobremaneira a constituição

26 Partimos da definição proposta por Marx e Engels (2008) de que as relações sociais
se estabelecem por meio das formas de produzir e reproduzir a vida. Assim, diferentes
momentos da história da humanidade trazem a hegemonia de uma forma de produção. O
momento atual é marcado pela venda da força de trabalho por parte daqueles que não são
donos dos meios de produção, ou seja, o avanço e manutenção daquilo que é produzido
para permitir o desenvolvimento social advém da capacidade produtiva de trabalhadores
e trabalhadoras. No entanto, nesta forma de produção social, ocorre também uma divi-
Mulheres e feminismo: história e desafios

subjetiva feminina, o que por vezes implica diagnósticos de adoecimen-


to físico e psíquico, quando se identifica que elas “não dão conta” das
demandas impostas.
Tomar como base teórica o viés materialista e histórico de
constituição dos sujeitos parece-nos importante nesta breve incur-
são de escrita, pois ainda são escassos os trabalhos que refletem
questões afetas ao feminismo, vinculando tal discussão ao desenvol-
vimento humano a partir da teoria mencionada.27 Dessa forma, vale
destacar que não há intenção alguma de esgotarmos o assunto, mas,
sim, de sistematizarmos algumas reflexões iniciais que possam con-
tribuir para a realização de pesquisas futuras.
Feitos esses apontamentos introdutórios, observamos que
nosso percurso propõe discutir o papel da medicina no entendimento
e padronização de questões que atravessam o gênero feminino, como
a maternidade e as noções de cuidado. Discorreremos ainda sobre o
desenvolvimento humano e a importância da categoria vivência como
unidade de análise da constituição afetivo-cognitiva dos sujeitos, para
então a situação atual da mulher neste modo de produção da vida que
não apenas provoca seus processos de adoecimento, mas também os
acentua, quando os interpreta como algo localizado individualmente.
Por fim, assinalamos a necessidade de leituras e discussões feminis-
tas que sejam calcadas no materialismo histórico, para superarmos
tais questões.

5.1 A mulher na modernidade: quando a produção do “feminino”


representa a reprodução de um modo de vida

Assim como a vida e os modos de viver vão se transforman-

são do trabalho que é marcada pelo sexo dos indivíduos, em que, cabem às figuras do
sexo feminino reprodução de uma forma de trabalho considerada “mais simples” que são
as atividades domésticas (cuidados com lar e da prole) (Cinzia ARRUZA, Tithi BHATTA-
CHARYA & Nancy FRASER, 2019).
27 Aos leitores interessados em discussões a partir desse viés metodológico recomenda-
mos a leitura de duas pesquisas recentes: Luana G. Corbelo (2019) e Letícia de S. Ribeiro
(2020).

111
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

do ao longo do percurso histórico construído por homens e mulheres


desde os tempos mais remotos, as concepções e ideais sobre os mais
variados fenômenos também acompanham tais transformações. Não
é diferente, portanto, quando se fala sobre o entendimento a respeito
de ser/estar saudável versus ser/estar doente. De acordo com Gomes
(2020), a concepção de saúde como ausência de doenças está vin-
culada às transformações sociais, em especial àquelas provocadas
pela consolidação do capitalismo, que, se assentando sobre as trocas
de mercadorias de maneira mais ampla e generalizada, e requerendo,
portanto, aumento da produtividade, bem como exploração e venda
da força de trabalho, necessariamente precisará valorar o corpo e seu
potencial produtivo. De acordo com o autor, ainda que a valorização
do corpo e seu potencial para o trabalho também fosse discussão em
modelos anteriores de produzir a vida, é no sistema capitalista que
essa preocupação extrapola o âmbito individual. O cuidado e a “ma-
nutenção” daqueles que garantem a produção não é mais individual
(do senhor de escravos ou do senhor feudal, por exemplo), mas sim
uma questão social.
Acrescenta-se a esse entendimento de saúde como ausência
de doença o próprio desenvolvimento científico que permeia a conso-
lidação do modo de produção capitalista. A revolução científica mo-
derna, de acordo com Gomes (2020), traz desdobramentos para as ci-
ências da saúde, pois desenvolve e aprofunda estudos e intervenções
sobre o corpo humano. O predomínio da visão antropocêntrica cola-
borou para a superação da compreensão do corpo como morada da
alma, passando a ser visto e entendido como um “agregado de órgãos
e sistemas passível de manipulação técnica” (GOMES, 2020, p. 151).
Desse modo, as ciências biológicas encontram caminho aberto para
desenvolverem-se amparadas nos estudos anatômicos e fisiológicos
e seu funcionamento “normal”.
Elizabeth Vieira (2002) atesta essa mesma concepção naturali-
zada a respeito do estudo do corpo, dado a partir de uma articulação
entre a medicina e a sociedade em que a produção das ideias é envie-
sada pelos projetos sociais. Assim, de acordo com a autora, o estudo

112
Mulheres e feminismo: história e desafios

da fisiologia apresenta-se como instrumento que, no final do sécu-


lo XVIII, sofre sua configuração, construindo uma nova racionalidade
científica, concebendo ideias sobre o corpo, a saúde e a doença como
objeto, e se propondo a deduzir leis universais da ocorrência de fenô-
menos, por meio da observação neutra. A autora, no entanto, atém-se
ao estudo ao corpo feminino e salienta que o estudo da fisiologia se
apresenta como instrumento que vai desvendar, a partir do século XIX,
os mistérios que até então envolviam esse corpo, tomando o feminino
como um objeto de estudo e reduzindo-o à sua condição biológica.
Nesse aspecto, justificam-se, por meio da biologia, situações
de origem social, servindo a propósitos econômicos. Por exemplo, de
acordo com Valeska Zanello (2018), o enrijecimento entre o espaço
público e o privado se consolidou com a instituição indissolúvel do
casamento, como fundamento da família, validado pela Igreja Católica
Apostólica Romana. Assim, o espaço de vida pública das relações e
do trabalho28 passa a ser marcado pela identidade masculina, já o es-
paço privado, tido como destinado naturalmente, é definido como “es-
sencialmente feminino”, pelo fato de a mulher dispor de um útero, ou
seja, da capacidade de procriação. Desse modo, a autora afirma que
se instaura uma divisão sexual do trabalho pelo contrato do casamen-
to, que confere à mulher a função, passível de reconhecimento social,
da maternidade como meta do próprio casamento. Nesse período,
assistimos então à naturalização do sentimento materno, nomeado
de “instinto” e socializado através das gerações, garantindo assim a
reprodução humana incontestável pelo corpo feminino.
Para entender a quais projetos sociais servia a medicina do sé-
culo XVIII, a filósofa e historiadora Elizabeth Badinter (1980) explica
que o controle do corpo feminino, nessa época, aparece como estra-
tégia demográfica. Do final do século XVIII até o início do século XX,
o problema da sobrevivência das crianças na Europa ocidental esteve
na ordem do dia, pois, com o aumento da taxa de mortalidade infantil,
o Estado precisou intervir para a manutenção da vida das crianças e
das mulheres, que tinham o dever de reproduzir e cuidar de seus filhos,
28 Mais adiante abordaremos as questões pertinentes à categoria trabalho, trazendo a
discussão para o âmbito da reflexão marxista.

113
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

garantindo sua sobrevivência.


Nota-se, portanto, que a lógica que norteia a atribuição de saú-
de ou de doença ao corpo da mulher acompanha pari passu a lógica
de produção da vida. Num contexto no qual a produção industrial es-
tava em franca expansão, convinha que as mulheres estivessem sau-
dáveis do ponto de vista reprodutivo, para gerar e cuidar da futura mão
de obra que manteria em funcionamento (e mesmo em expansão) o
sistema produtivo vigente.
Vieira (2002) explicita que, desse modo, padroniza-se o corpo
da mulher, trazendo a ideia de uma “natureza feminina” sob a ótica da
construção de um conhecimento que vai criar padrões de normalidade
científica e disciplina que sustentam a legitimidade da identidade, a ser-
viço de uma sociedade que acredita no poder de uma nação na medida
em que é povoado, “não só porque produz riquezas, mas também por-
que é uma garantia de seu poderio militar” (BADINTER, 1980, p. 108). De
acordo com essa suposta normalidade, ditavam-se regras de compor-
tamento, implicando, por exemplo, que as mulheres só poderiam atingir
uma vida saudável se estivessem sexualmente ligadas em matrimônio,
com finalidade reprodutiva, e que relações sexuais extraconjugais indi-
cavam distúrbios femininos, assim como a masturbação e a prostitui-
ção (VIEIRA, 2002). O conceito de histeria é um clássico exemplo dessa
visão médica, na qual, segundo Vieira (2002), durante seiscentos anos
as mulheres foram estudadas como sérios casos de perturbação men-
tal decorrente de suas decisões contrárias às visões sociais, que suge-
riam como tratamento o casamento e a concepção, ou seja, o retorno
ao desempenho do papel designado às mulheres.
Andrade (2011) ainda afirma que, para a ciência do século XIX,
tais características, herdadas geneticamente, seriam suficientes para
determinar o lugar social de cada indivíduo (homem e mulher). Nas
palavras do autor:
Estas ideias apontam que diferentes habilidades “inatas”,
biologicamente determinadas, limitariam a igualdade de
condições nas disputas por espaço social. A herdabilidade
destas habilidades contribuiria para que houvesse uma ma-
nutenção do status social nas gerações descendentes. Ou

114
Mulheres e feminismo: história e desafios

seja, a constituição biológica herdável humana seria sufi-


ciente para justificar a segmentação e hierarquização social
(ANDRADE, 2011, p.69).

Como se observa, o saber científico ratifica, cada vez mais, as


diferenças entre os sexos masculino e feminino, relegando a este
último papel secundário na ordem social. E o entendimento que ex-
plica esse caráter secundário das mulheres em relação aos homens
está direcionado para explicações de ordem biológica, construindo,
até mesmo, concepções a respeito dos gêneros femininos e mascu-
linos que são tomadas como naturais. Maria Jesús Izquierdo (2013)
desmistifica a construção social do gênero quando separa o natural
do social, e confronta a ideia de que a causa da desigualdade entre
homens e mulheres é natural, questionando o determinismo bioló-
gico. Segundo Lambert (1978 apud IZQUIERDO, 2013), denomina-se
“determinismo biológico” a noção de que o comportamento humano
seria determinado pelos genes e hormônios, posicionando o biológico
como inflexível e pré-programado.
Rechaçando essa proposta, é na divisão sexual do trabalho que
a autora encontra o critério explicativo que distinguiu a participação
dos sujeitos na esfera material da vida, conforme seu sexo biológico,
solicitando, assim, que cada um atuasse conforme o gênero ao qual
pertence (IZQUIERDO, 2013). Conforme a autora, o organismo é resul-
tado de sua relação com o meio. Características físicas, níveis hormo-
nais, ou mesmo a configuração dos circuitos neuronais, por exemplo,
são ao mesmo tempo biológicos e sociais, não um ou outro. A pecu-
liaridade que temos como seres humanos, é a capacidade de produzir
o meio em que vivemos e, portanto, as condições que nos configuram
como tais.
Essa reflexão assinala a possibilidade de transformação dos in-
divíduos e das relações, bem como a condição para a busca de uma
igualdade social; também denuncia a responsabilidade na produção
histórica das desigualdades (no caso deste estudo, entre homens e
mulheres). Para dar sequência às reflexões deste capítulo, abordamos
a seguir aspectos do desenvolvimento humano e da subjetivação das

115
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

características de gênero que nos são apresentadas ao longo da on-


togênese.

5.2 Nada está dado no nosso desenvolvimento: nascer fêmea


e tornar-se mulher

Assim como a autora supracitada, os autores fundadores da


Psicologia Histórico-Cultural29 descrevem que o desenvolvimento dos
sujeitos humanos se dá na unidade entre os fatores biológicos e cul-
turais (VYGOTSKI, 2000). Ou seja, o processo para que nos tornemos
sujeitos singulares e humanizados deve passar, necessariamente,
pela apropriação individual da cultura, dada socialmente nas relações,
produzidas historicamente.
Nesse movimento de apropriação de tais produções, é mobili-
zado e reorganizado nosso funcionamento psicofísico. Dessa forma,
podemos pensar que nosso funcionamento psíquico e aquilo que em-
basa nossa forma de ser e estar no mundo é de natureza social – por-
tanto, de uma base material. Ou seja, está absolutamente vinculado
às condições materiais e objetivas nas quais nosso desenvolvimento
transcorre.
A partir do que se expõe aqui, abre-se o questionamento a res-
peito de como o social influencia na nossa constituição, ou melhor,
como aquilo que é experienciado e apropriado nas relações sociais se
torna um aspecto individual dos sujeitos e expresso por meio da sua
personalidade. Para responder a esse questionamento, recorremos a
Vigotski (2018), pois, para o autor, além de conhecer e considerar o
meio como um determinante do desenvolvimento, importava enten-
der como esse meio é subjetivado pelo sujeito, considerando este um
processo que ocorre de maneira indireta. Ou seja, a constituição sub-
jetiva, apesar de estar absolutamente vinculada ao meio, se dá pela

29 A teoria Histórico-Cultural tem entre seus principais fundadores a figura de L.S. Vygot-
sky (1896-1934). A.R. Luria (1902-1977) e A.N. Leontiev (1903-1979). Existem variações
nas grafias para o nome do primeiro autor (Vigotski, Vygotski, Vygotsky, etc), utilizaremos
a grafia de acordo com a obra consultada.

116
Mulheres e feminismo: história e desafios

mediação da vivência do sujeito em relação a esse entorno. Nas pa-


lavras do autor:
Vivência é uma unidade na qual se representa, de modo indi-
visível, por um lado, o meio, o que se vivencia [...] e, por outro
lado, como eu vivencio isso. Ou seja, as especificidades da
personalidade e do meio estão representadas na vivência: o
que foi selecionado do meio, os momentos que têm relação
com determinada personalidade e foram selecionados desta,
os traços do caráter, os traços constitutivos que têm relação
com certo acontecimento. Dessa forma, sempre lidamos com
uma unidade indivisível das particularidades da personalida-
de e das particularidades da situação representada na vivên-
cia [grifos do autor] (VIGOTSKI, 2018, p. 78).

Ligia M. Martins (2020), pautando-se nos conceitos da Teoria


Histórico-Cultural, explica que aquilo que é experienciado pelo sujeito
em diferentes momentos do seu desenvolvimento, resultando numa
representação psíquica na forma de imagem subjetiva, podemos cha-
mar de vivência. Porém, de acordo com a autora, mais do que uma
experiência direta do sujeito com o seu objeto, a vivência é o resultado
de reações do sujeito em face ao objeto. Tais reações ocorrem por
meio da mobilização de todo o sistema psíquico (sensações, percep-
ções, memória, atenção, afeto etc.), daí a formação de uma imagem
subjetiva no psiquismo do sujeito.
O que irá sustentar a vivência, possibilitando que seja criada
uma imagem subjetiva daquilo que o sujeito experiencia externamen-
te, é a atividade do sujeito e os sentidos e significados que a orientam
(MARTINS, 2020). Cabe explicar aqui, ainda que de forma sucinta, para
não fugirmos aos objetivos deste texto, o conceito de atividade pro-
posto pelos autores da teoria em questão.
Posto que nossa constituição individual está encerrada pela
sociabilidade, será a atividade do sujeito a condição para que o so-
cial seja internalizado como um aspecto individual. Ao longo de nosso
desenvolvimento, em decorrência das mais diversas necessidades,
entramos em atividade com o meio e, em diferentes momentos da
nossa vida, predominam atividades capazes de transformar nosso
psiquismo, por requisitarem nova ordem de funcionamento das nos-

117
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

sas funções psicológicas. Atividade, segundo Leontiev (1978), não é


necessariamente aquilo que o sujeito mais realiza na sua relação com
o meio externo, mas aquilo que é capaz de mobilizar seu psiquismo
na obtenção de um dado resultado. O sujeito em atividade, apresenta,
portanto, mudanças no seu tono reativo que, por sua vez, decorrem de
[...] uma vasta gama de fatores, como situação imediata de
confronto com o objeto, seu significado, motivos e fins que
o envolvem,30 exigências que o próprio sujeito se coloca na
atividade, implicações de seu resultado na vida da pessoa
(MARTINS, 2020, p. 42).

Partindo desse pressuposto – de que é a atividade externa que


irá configurar a organização interna do sujeito, circunscrevendo sua
personalidade –, é preciso considerar que isso acontece em dada
condição objetiva, isto é, atravessada pelas condições materiais, in-
telectuais e afetivas, disponibilizadas ao sujeito em desenvolvimento.
Dessa forma, podemos dizer que, sim, nossa humanidade é pautada
na apropriação dos bens materiais produzidos historicamente e dis-
ponibilizados dentro de uma universalidade como conquistas humano
genéricas; porém, esse movimento está também mediado pelas par-
ticularidades citadas acima, que darão a dimensão da constituição
singular de cada sujeito. Complementemos tal reflexão com Martins
(2020, p. 43), que reitera;
[...] o conceito de vivência proposto por Vygotski expressa as
articulações dialéticas entre a singularidade da persona e sua
instituição em face da genericidade humana, articulações es-
tas que se objetivam e ganham ‘forma’ sob condições parti-
culares de vida. Em última instância, o conceito de vivência
confere centralidade à relação entre o indivíduo e as condi-
ções sociais de sua formação. Portanto, para compreendê-la
há que se deslindar as mediações que sustentam a pertença
da pessoa como ser humano genérico.

30 Ao apresentar a atividade como essencial para o desenvolvimento psíquico, Leontiev


(2004; 1978) desenvolve também a estrutura desse conceito. De forma breve, podemos
dizer que, para o autor, toda atividade está vinculada a uma necessidade e orienta-se a um
objeto. Desse encontro do sujeito com o objeto, emergem os motivos (ao qual ou a quem
a atividade se orienta). Os motivos são marcados por significados (sociais) apreendidos
pelo sujeito ao desempenhar a atividade, gerando sentidos (pessoais). Portanto, signifi-
cados e sentidos passam a compor a compreensão do indivíduo em relação aos diversos
motivos que compõem as atividades que realizam.

118
Mulheres e feminismo: história e desafios

Em face do exposto, podemos pensar que a constituição daqui-


lo que consideramos aspectos pertinentes ao ser feminino é delimita-
da socialmente e, portanto, está vinculada a um dado tempo histórico
e a uma dada forma de produzir a vida. Além disso, são inúmeras as
vivências pelas quais passa uma criança do sexo feminino que irão
corroborar no sentido de delimitar uma dada forma de vestir, de agir,
de falar, até que ela se reconheça como pertencente ao gênero femi-
nino. Ou como analisa Corbelo (2019), o meio nos apresenta formas
ideais (finais) a serem alcançadas e é para elas que o desenvolvimen-
to do psiquismo se orienta. Assim, afirma Corbelo (2019, p. 119):
[...] no meio ao qual estamos atualmente submetidos o siste-
ma sexo/gênero é característica tão importante para conduzir
a vida das pessoas, há que se averiguar as formas ideias que
estarão disponíveis para a criança de acordo com o gênero a
ela atribuído. Se o meio está permeado pela socialização de
gêneros, as vivências da criança também o serão e, por conse-
guinte, a formação de sua personalidade também estará sus-
cetível ao sexismo.31

Para compreender como a ideia de gênero é uma criação hu-


mana e historicamente determinada, Corbelo (2019) considera a rele-
vância do entendimento do vínculo entre gênero e sociedade de clas-
ses que acaba por determinar a vivência dos sujeitos, pois é sobre a
vida concreta dos indivíduos que incidem as premissas de ser mulher
ou homem na sociedade. De acordo com Izquierdo (1992), o sistema
sexo/gênero faz referência à forma como a sociedade se organiza, às
expectativas dessa sociedade em relação aos indivíduos à distribui-
ção desigual de poder, aos espaços sociais ocupados e proibições em
função do sexo e se fundamenta em duas bases materiais: a biologia
e a divisão sexual do trabalho.
Masculinidade e feminilidade não são, portanto, categorias na-
turais, dadas junto ao sexo macho e fêmea, mas são marcado-
res da divisão sexual do trabalho que entende como femininas

31 Trazemos aqui a definição de Carla C. Garcia (2018) a respeito desse termo. Segundo a
autora, o sexismo pode ser entendido como o conjunto de mecanismos empregados em
todos os âmbitos da vida e das relações humanas para manter em situação de domina-
ção o sexo feminino. Trata-se de uma ideologia que defende a inferioridade, subordinação
e exploração das mulheres, e todos os métodos utilizados para a sustentação dessa de-
sigualdade.

119
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

as atividades de reprodução da vida e masculinas as tarefas da


produção (CORBELO, 2019, p. 29).

Entendemos, portanto, a partir dos escritos de Corbelo (2019),


que sexo e gênero pertencem a esferas ontogênicas distintas. Mas-
culinidade e feminilidade são construções de gênero que pertencem
à dimensão social da vida; enquanto sexo (caracterizado como fêmea
e macho) existe na dimensão orgânica da vida; logo, as palavras “ho-
mem” e “mulher”, vão muito além da categoria biológica.
Assim, o problema dessa questão é conceitual. O corpo é en-
tendido como anterior à história, porém, como as concepções sobre
ele são produzidas historicamente, nós já nascemos determinados a
distintos papéis sociais de acordo com a corporalidade construída no
entendimento social e transmitida pela mediação do conhecimento de
forma geracional. De acordo com Izquierdo (2013), as mulheres não
são objeto de discriminação, mas sim seu produto, em que as condi-
ções nas quais se desenvolvem como organismos vivos são efeitos
do sexismo, que confere a tal gênero a premissa da inferioridade em
relação ao gênero masculino. Esse modo de produzir a vida confere às
mulheres condições desiguais e precárias de vivência e sobrevivência
na sociedade.
Dessa forma, para falarmos da existência feminina na socieda-
de capitalista, dos seus processos de saúde ou adoecimento, não po-
demos perder de vista o que esse modo de produzir a vida proporciona
em termos de subjetivação para tal constituição. Para entender, sob
a ótica do materialismo, como esses conceitos se estruturam, há que
se retomar a centralidade da categoria trabalho destacada por Marx.
O autor caracteriza o trabalho como “[...] atividade orientada a um fim
para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer a
necessidades humanas [...].” (MARX, 1985, p. 153). No atual modo de
produção, em que para garantir a sobrevivência é necessária a venda
da força de trabalho, este se torna uma fonte de exploração e, segun-
do Corbelo (2019), essa lógica, aplicada a todas as esferas da vida,
não exime a sexualidade, a qual teve seu significado transformado e
condicionado – por exemplo, a forma como tratamos os indivíduos

120
Mulheres e feminismo: história e desafios

a partir dos gêneros. Isso se aplica também ao tipo de trabalho que


cada indivíduo será destinado a performar. O trabalho das mulheres,
por muito tempo esteve voltado primordialmente ao casamento, à ma-
ternidade e aos cuidados com a casa, conforme podemos observar
nos escritos de Badinter (1980, p. 31):
Para fazer um bom casamento, era preciso encontrar uma
noiva que tivesse uma idade adequada à do pretendente,
um bom dote segundo seu nível social, e que fosse virtuosa.
Quanto mais se descia na escala social, mais a aptidão para o
trabalho se tornava necessária. Se todos esses critérios esti-
vessem satisfeitos, passava-se imediatamente da assinatura
do contrato ao casamento.

Izquierdo (2013) explica que a posição feminina na divisão do


trabalho confere às mulheres uma forma de subjetividade em que se
torna primordial a valorização e o sentir-se aceita por meio das ativi-
dades realizadas.
Conectada com o outro, receptiva às suas necessidades,
relacionando seu valor social com a capacidade de cuidar
dos demais, tem dificuldades para enfrentar os conflitos, as
oposições de interesses, os desentendimentos, como tam-
bém para reconhecer o valor do que faz [tradução nossa] (IZ-
QUIERDO, 2013, p. 21).

Mas como podemos afirmar que haverá diferentes apropria-


ções, em um mesmo contexto? Izquierdo (2013) aponta que distintas
posições em face de uma mesma atividade podem resultar em dife-
rentes experiências (como o trabalho doméstico para uma dona de
casa, para um/uma profissional e para um homem) e têm importân-
cias distintas.
Pois a experiência não é anterior à ideologia, mas sim, um pro-
duto ideológico. Quando fixamos nossa atenção nas coisas,
fazemos mediadas por uma linguagem e significados já exis-
tentes, e com esse material construímos os novos significados
(IZQUIERDO, 2013, p.4).

Em outras palavras, o fato de nascer com o sexo feminino, na


particularidade histórica em que vivemos, possibilita vivências muito
diferentes em relação ao conceito de cuidados, por exemplo. Desde
muito cedo, já nas brincadeiras infantis, as meninas são ensinadas a

121
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

cuidar e, posteriormente, carregam consigo uma expectativa de que os


cuidados do lar, a maternidade, a educação da prole sejam de sua res-
ponsabilidade, pelo fato de serem do sexo feminino.
O meio, incluindo a relação familiar, escolar, entre outras, se
relacionará com a criança de modo distinto, pois é permeado
de significados e sentidos particulares para cada gênero –
construídos ao longo da história da divisão sexual do traba-
lho. Como “esperar”, então, que meninas e meninos se portem
da mesma maneira afetivo-cognitiva em situações de mesmo
conteúdo objetivo, se ao longo da ontogênese são ensinados
para a vida desigualmente? Os estados vivenciais são marca-
dos pelo gênero (CORBELO, 2019, p. 120).

É possível compreender, então, que a forma como compreen-


demos, interagimos e nos afirmamos no mundo está dada primeira-
mente num plano externo a nós, e que somente com a apropriação das
produções humano-genéricas é que passam a existir dentro de nós.
Tal apropriação é marcada pelo sistema sexo/gênero. Dito de outra
maneira, o desenvolvimento conceitual que nos permite estabelecer
relações entre as coisas, criar representações sobre elas e também
sobre nós mesmos, como afirma Vygotski (2000), acontece de for-
mas muito diferentes, desde muito cedo, conforme o sexo biológico
que carregamos. Essas marcas constitutivas atravessam nosso de-
senvolvimento e nos acompanham ao longo da nossa existência, de
acordo com Corbelo (2019, p. 123):
O sistema sexo/gênero corresponde, assim, a uma particu-
laridade na humanização dos indivíduos. “Por sua própria
qualidade de atividade alienada, esta divisão das atividades
em sua organização oculta e naturaliza a desigualdade nas
condições de desenvolvimento dos sexos”.

5.3 Adoecimento das mulheres no contexto produtivo capitalista:


nossas forças físicas e psíquicas sendo consumidas

Vimos até o momento que nosso desenvolvimento é marcado


pela divisão sexo/gênero, e que essa divisão, por sua vez, está ab-
solutamente vinculada à produção e reprodução da vida. Portanto, é

122
Mulheres e feminismo: história e desafios

razoável pensar que, no atual momento de desenvolvimento das for-


ças produtivas, é necessário que se venda a força de trabalho para ga-
rantir a sobrevivência, o que coloca como necessidade a muitas mu-
lheres, o ingresso no mercado de trabalho. Se nos restringirmos aos
cenários brasileiro e latino-americano, temos, de acordo com Ribeiro
(2020), uma formação econômica baseada na superexploração dos
trabalhadores como garantia da dinâmica de organização internacio-
nal do capital. Isso traz como implicação que as mulheres enfrentam
mais dificuldades para ter acesso ao mundo do trabalho e nele perma-
necer, mesmo aquelas que têm mais instrução. Quando têm acesso
a esse mercado e nele permanecem, seguem em condição desigual,
com salários cerca de trinta por cento menores que os dos homens
(IBGE, 2021). Dado que a necessidade de sobrevivência abrange a to-
dos e que, no Brasil, é grande o contingente de mães que arcam sozi-
nhas com os cuidados dos filhos e o sustento da família (IBGE, 2021),
parece razoável inferir que as mulheres são as primeiras candidatas
à informalidade.
Notavelmente esse é um cenário que não favorece em nada a
mulher e que, em última instância, deixa explícito que, em tal modelo
de produzir a vida, nós mulheres somos objetificadas e temos papéis
delimitados, como os que enumeramos a seguir: 1) de arcar com o
trabalho reprodutivo mantendo as condições para que o trabalho pro-
dutivo continue existindo, ou seja, a fim de que o trabalhador siga ven-
dendo sua força de trabalho. 2) de servir de mão de obra descartável
ou mais facilmente explorada e/ou precarizada; 3) de gestar a nova
força de trabalho, que, de tempos em tempos, será mais ou menos
requisitada pelo capital.
Cabe considerar, portanto, o quão padecedor é esse cenário para
uma parcela significativa das mulheres, pois, além de gerar sobrecarga
de trabalho, provoca um sentimento de insuficiência diante das inúme-
ras demandas que não são atendidas na sua integralidade (ou na sua
idealização?). O trabalho, nesse cenário que se apresenta como adoe-
cedor, o é porque explora todas as nossas forças físicas e mentais. As-
sim, muitas vezes o que nos adoece é a impossibilidade de reconhecer

123
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

essa situação e de compreendê-la. Portanto, tomando para si a respon-


sabilidade pela falha, naturaliza-se o sofrimento psíquico.
Podemos depreender, do que analisamos, que o sentimento
de impotência ou de insuficiência pode ser tomado como um dado
comum que acomete a grande maioria das mulheres; porém, em si-
tuações extremas alguns quadros se agravam. Veremos situações
concretas da vida em que, na falta de condições para lidar com tan-
tas demandas, surgem sintomas como os de ansiedade, depressão,
pânico, doenças autoimunes etc. Esse segundo cenário apresenta-se
inclusive como uma boa oportunidade de mercado. A medicina e a far-
macologia já trataram de sanar essas questões e a medicalização de
tais problemas é algo a ser considerado. Pesquisas da área da saúde32
que discorrem sobre o uso de psicotrópicos no país indicam que não
apenas esse consumo tem crescido nas últimas décadas, no cenário
brasileiro, mas que também são as mulheres as principais consumi-
doras de tais medicamentos. Podemos também extrapolar a análise
desse consumo para além dos medicamentos psiquiátricos, visto que
o consumo de analgésicos, anti-hipertensivos, antiinflamatórios tam-
bém é maior entre as mulheres (BARROS et al., 2019). Ou seja, tal-
vez seja razoável pensar que nos medicamos mais para estarmos em
condições de suportar as demandas que nos são impostas.
Cria-se então, o estereótipo da mulher multifunções/guerreira,
que, na verdade, é a mulher sobrecarregada. O sofrimento psíquico,
resultante da desvalorização do seu trabalho, da limitação de suas
escolhas de vida e da violência sofrida pela objetificação de seus cor-
pos, ganhou status de doença mental, em uma leitura biológica, ligada
a hormônios, que permitia que o controle fosse novamente exercido
sobre seu corpo, na busca de determinar seus caminhos de vida que
servissem a um projeto social. É o que ocorre, como explicam Ioneide
Campos e Valeska Zanello (2016), quando afirmam que a medicina
ainda falha ao buscar as verdadeiras causas do sofrimento feminino e
aposta em justificativas simples, apenas biológicas. A explicação pa-
32 Paula A. Silva, Leticia Almeida e Jacqueline Souza (2019), Ana Rosa Souza, Emérita
Opaleye & Ana Regina Noto (2013), Borges et al (2013) são exemplos de estudos que
ilustram esta afirmação.

124
Mulheres e feminismo: história e desafios

drão é que, por sofrerem com mais alterações hormonais, gravidez e


menopausa, as mulheres acabariam mais suscetíveis, por exemplo, a
episódios depressivos. Além disso, a lógica biomédica ainda assom-
bra as relações em saúde, quando se observa que as mesmas con-
cepções criadas pela medicina no século XVIII sobre a ideia de mulher
ainda pairam sobre o diagnóstico e o tratamento em saúde, segundo
a autora. Para ilustrar essa questão, Fabiane Guimarães (2018) traz o
apontamento da psiquiatra Kyola Vale sobre os prontuários do maior
hospital psiquiátrico do país, o Juquery, onde é possível encontrar
anotações do final do século XIX acerca de jovens internadas por de-
sobediência, contestadas por falarem muito alto, por terem comporta-
mentos atípicos. Tanto tempo depois, não é diferente; são as mulheres
que mais sofrem de depressão e ansiedade, e são consideradas mais
suscetíveis a transtornos mentais, conforme a OMS (2002).
Nesse cenário podemos visualizar a desigualdade sobre a qual
o feminismo discorre há tantos séculos. A nossa realidade se estrutu-
ra mediante o trabalho feminino não assalariado, além da dominação
masculina sobre os corpos femininos e feminilizados. Essa é a pauta
comum na luta contra o machismo e sua política de controle, em que,
além de seus trabalhos, vivências e vidas femininas, valem menos.

5.4 Considerações finais

Até aqui vimos, com o debate a respeito da condição de desen-


volvimento da mulher, que ela é marcada pelo sistema sexo/gênero,
o que traz implicações desde o seu nascimento até sua vida adulta.
À constituição das mulheres fica imputada a categoria do cuidar de
forma mais marcante que a dos demais sujeitos, colocando-a nessa
posição tanto no âmbito público quanto privado.
Para acrescentar à discussão e compreender o fardo que car-
regam os indivíduos do sexo feminino, a escritora norte-americana
Phyllis Chesler (1972) salienta que, além de receberem salários meno-
res, as mulheres estão sobrecarregadas. Ocupando cargos mais bem
pagos ou aqueles com menor remuneração, sempre terão um trabalho
125
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

interminável, pois, ao chegarem a casa, a maioria ainda vai ter que


cozinhar o jantar, lavar a louça, as roupas e cuidar da casa. Segundo a
autora, só isso já pode deprimir alguém.
Tendo como pressuposto a Psicologia Histórico-Cultural na
busca de compreender a realidade a que estamos submetidas na ló-
gica da desigualdade de gênero, faz-se necessário enfatizar a impor-
tância do movimento feminista e seus alcances sociais e políticos. Ao
longo da história da sociedade ocidental, muitos discursos de legiti-
mação da desigualdade entre homens e mulheres foram produzidos.
De acordo com as observações de Carla C. Garcia (2018), a mitologia
e as religiões, a ciência e a filosofia também cumprem essa tarefa. A
tomada de consciência feminista, portanto, transforma a vida das mu-
lheres que se aproximam do movimento, como destaca a autora, pois
a consciência da discriminação propõe uma postura diferente diante
das mentiras contadas para alicerçar os projetos sociais. Esse movi-
mento de consciência é o que chamamos de caminho para a emanci-
pação humana.
Nisso consiste a capacidade emancipadora do feminismo. Ele
é como um motor que vai transformando as relações entre ho-
mens e mulheres e seu impacto é sentido em todas as áreas
do conhecimento. O feminismo é uma consciência crítica que
ressalta as tensões e contradições que encerram todos esses
discursos que intencionalmente confundem o masculino com
o universal (GARCIA, 2018, p. 10).

Vygotsky (1927/2004) postula a emancipação humana como


um dos princípios fundamentais para o desenvolvimento da teoria, as-
sim como a superação e a cooperação. Segundo Vera Lucia T. Souza
e Paula Costa Andrada (2013), esses três princípios dizem respeito à
necessidade de superarmos os limites atuais do nosso modo de viver
e ser, em direção ao que podemos ser ou alcançar; no entanto, essa
superação exige condições materiais e concretas para sua realização,
e a principal condição seria a cooperação entre as pessoas. Desse
modo, as autoras afirmam que a superação viabilizada pela coope-
ração é que levaria o ser humano à emancipação como conquista da
liberdade de pensamento e ação, exercida no coletivo, com o coletivo
e pelo coletivo.
126
Mulheres e feminismo: história e desafios

Podemos trazer essa reflexão para destacar a importância do fe-


minismo como movimento coletivo, que hoje alcança milhões de mulhe-
res espalhadas pelo mundo e representa suas várias formas de pensar e
reivindicar direitos. Esses grupos proporcionam a cooperação, o compar-
tilhamento de histórias, a percepção das violências e a projeção de es-
tratégias de enfrentamento dessas violências e a da política que controla
nossos corpos.
Maria B. Ávila e Verônica Ferreira (2021) apresentam o movimen-
to feminista como uma grande pluralidade de práticas, de lutas, de ar-
ticulações e perspectivas teóricas, e indicam o feminismo materialista
como referência fundamental para a interpretação da realidade social
e histórica e sustentação de projetos de transformação social. Nesse
campo específico, no qual se encontram as teóricas marxistas, o pri-
meiro aporte, segundo Falquet (2016 apud AVILA; FERREIRA 2021, p.
121), é “a desnaturalização das relações sociais, de sexo, mas também
de raça, e de classe, assim como a colocação em perspectiva histórica
do trabalho de reprodução social.” O marco desse pensamento, segun-
do as autoras, é a concepção de que a exploração, a dominação e a
apropriação das mulheres têm base material, e é estruturada na divisão
sexual e racial do trabalho e na relação entre corpo, produção/reprodu-
ção e sexualidade.
Retomamos aqui os apontamentos iniciais do texto, quando dis-
semos que iríamos apresentar as noções introdutórias da temática,
não o esgotamento do tema. Pelo contrário, pois compreender que a
desigualdade de gênero produz diferentes méritos, e que o meio não
é neutro nem igual para todas as pessoas, mas organizado em função
das relações de poder, e que, nessa perspectiva, as mulheres são su-
bordinadas – é motivo para mais desconforto. É esse desconforto que
buscamos causar: o que provoque mais movimentação, mais discus-
sões acerca do tema e que possa avançar nas conquistas, como esse
movimento vem fazendo há séculos. Destacar a função do coletivo fe-
minista é entender que discutir violência de gênero é uma responsabi-
lidade social importante para a emancipação de todas as mulheres, e
nós temos papel fundamental nessa participação, como mostram Avila

127
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

e Ferreira (2021, p.120):


Como pesquisadoras e ativistas feministas, a inserção em
coletivos do movimento feminista é uma base primordial de
interpelação e inspiração a partir da qual emergem as ques-
tões que para nós desafiam e exigem a produção do pensa-
mento crítico.

Finalizamos ressaltando a importância de trazer para o âmbito


da Psicologia, independentemente da área de atuação, discussões de
gênero que apresentem uma leitura crítica feminista, visando com-
preender, como reitera Corbelo (2019), que a emancipação humana e
a emancipação das mulheres são pautas indissociáveis na transfor-
mação social.

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Mulheres e feminismo: história e desafios

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Mulheres e feminismo: história e desafios

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CAPÍTULO 6
PSIQUIATRIZAÇÃO DO COR-
PO DA MULHER E A RE-
SISTÊNCIA FEMINISTA NA
LUTA PELO CUIDADO EM
SAÚDE MENTAL

Daniele de Andrade Ferrazza


Mariana Frediani Sant’Ana

Uma mulher incomoda


é interditada
levada para o depósito
das mulheres que incomodam
loucas louquinhas
tantãs da cabeça
ataduras banhos frios
descargas elétricas
são porcas permanentes
mas como descobrem os maridos
enriquecidos subitamente
as porcas loucas trancafiadas
são muito convenientes
interna, enterra
Angélica Freitas. Um útero é do tamanho de um punho, 2017.
Mulheres e feminismo: história e desafios

O tema da Saúde Mental e Gênero tem levado pesquisadoras e


estudiosas feministas a problematizarem os diversos fenômenos so-
ciais relacionados à desigualdade de gênero que culminam em situa-
ções atravessadas por sofrimentos psíquicos e mal-estares subjetivos.
Compreende-se que o sistema patriarcal, em seus discursos e práticas,
influencia na produção de subjetividades femininas e produz sofrimen-
tos cotidianos provocados pela opressão e violência de gênero.
Na atual conjuntura, afetada pela disseminação da doença CO-
VID-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2 (denominado de Coronaví-
rus), a Organização das Nações Unidas (ONU MULHERES, 2020), emi-
tiu um alerta para tentar garantir a igualdade de gênero e o direito de
mulheres, considerando esses aspectos também significativos para a
superação da pandemia. Dentre as principais áreas de destaque apre-
sentadas pela ONU está o enfrentamento ao aumento da violência do-
méstica provocada pelo isolamento social (ONU MULHERES, 2020).
No Brasil, o Fórum de Segurança Pública (2020) divulgou dados
relevantes sobre a violência doméstica no primeiro trimestre da pan-
demia de COVID-19. Esses dados mostram a redução dos registros de
boletins de ocorrência de violência doméstica e sexual na maioria dos
estados brasileiros, na comparação de março de 2020 com o mesmo
mês de 2019. Contudo, ainda que os registros administrativos aparen-
temente indiquem redução da violência de gênero, os dados revelam
um aumento de 22,2% dos crimes de feminicídio. Tal aumento foi ve-
rificado nos meses de março e abril de 2020, quando comparado ao
mesmo período de 2019, o que pode indicar que a violência doméstica
está em ascensão no país. A quantidade de denúncias de violência
contra a mulher recebidas pelo canal Ligue 180 cresceu 40%, quan-
do se compara o mês de abril de 2019 com o mesmo mês de 2020,
segundo dados apresentados pelo Ministério da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos (MMFDH, 2020). Infelizmente, dividir a casa
com o agressor é uma realidade de inúmeras mulheres, drama que se
acentua nas periferias, favelas e comunidades pobres brasileiras. As
dificuldades econômicas e sociais indubitavelmente agravam ainda
mais a situação das vítimas de violência, principalmente no contexto

133
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

de isolamento e quarentena.
Silvia Federici (2020), ao analisar o contexto pandêmico, co-
menta que as mulheres sempre sofrem mais por estarem na linha de
frente do trabalho assistencial e sanitário precarizado, por assumirem
uma carga maior de trabalho em casa, ao cuidar de filhos em tempo
integral, e por serem responsáveis pelos afazeres domésticos. O le-
vantamento realizado pelo IBGE no ano de 2017 mostra que as mu-
lheres brasileiras dedicam o dobro de horas em tarefas domésticas e
cuidados de pessoas (crianças, idosos, deficientes). Isso representa
cerca de 21,3 horas; já os homens dedicam 10,9 horas às mesmas ati-
vidades (IBGE, 2018). Além disso, conforme informações divulgadas
pelo IBGE no ano de 2012, “94,85% das mulheres exerciam dupla jor-
nada de trabalho (trabalhavam fora e dentro de casa), contra somente
5,2% dos homens” (Valeska ZANELLO, 2018, p. 140). A ONU Mulheres
também enfatiza os investimentos na melhoria das condições de tra-
balho das mulheres, que representam 70% da mão de obra no setor
da saúde e assumem cargos de nível e salário inferiores (ONU, 2020).
Nesse contexto, é inevitável pensar que a sobrecarga de trabalho
feminino estabelecida nas duplas e triplas jornadas, além das situações
de violência moral, psicológica, patrimonial, física, sexual, relacionadas
às situações marcadas pelo machismo, são fatores que, cotidianamen-
te, acarretam o sofrimento psíquico e o adoecimento subjetivo de mu-
lheres. Dessa forma, pode-se compreender que diversos elementos que
compõem a desigualdade de gênero e marcam a sociedade patriarcal
brasileira influenciam a constituição subjetiva e a condição da Saúde
Mental de mulheres que vivenciam sofrimentos psíquicos e mal-estares
subjetivos, muitas vezes interpretados e compreendidos pelos saberes
clínicos, como a psiquiatria e ginecologia, como problemas exclusiva-
mente individuais, de ordem neuroquímica, por exemplo, e que devem
ser tratados exclusivamente com medicações psicofarmacológicas.
Nessa perspectiva, o objetivo do presente trabalho é analisar
os discursos e práticas médicas e psiquiátricas que determinam es-
tratégias de controle e normalização do corpo feminino. Mais espe-
cificamente, pretendemos examinar os processos históricos de psi-

134
Mulheres e feminismo: história e desafios

quiatrização do corpo feminino, assim como apontar elementos da


resistência feminista interseccional que se fazem relevantes para o
cuidado e a atenção para com a Saúde Mental de mulheres na luta
contra os processos de medicalização do feminino.

6.1 Apontamentos breves sobre os processos históricos de normali-


zação e controle do corpo feminino

O processo de medicalização do corpo feminino se iniciou em


fins do século XVIII, momento em que a medicina se apropria dos fe-
nômenos relacionados à existência humana e os transforma em ob-
jetos de ordem médica, submetidos a processos de normalização dos
corpos e de controle das práticas sociais e sexuais, assim como de
seus prazeres (FOUCAULT, 2010). Como comenta o filósofo francês
Foucault (1926-1984), a medicalização das sexualidades e, mais es-
pecificamente, do corpo feminino é um processo pelo qual a medicina,
por meio de inúmeras tecnologias e estratégias, irá interferir na cons-
trução de costumes, normas, conceitos, regras de higiene e comporta-
mentos sexuais e sociais prescritos para governar a vida de mulheres
(FOUCAULT, 1977).
Nesse movimento de medicalização do corpo feminino, que se
estabelece no momento de constituição do Estado Moderno e conso-
lidação do sistema capitalista, o controle do corpo da mulher, parti-
cularmente o controle da reprodução feminina, será algo estratégico
para a governamentalidade e o gerenciamento de populações, proces-
so denominado por Foucault (2002) de biopolítica. Diante das exigên-
cias do capital, há investimentos governamentais para a ampliação
da mão de obra barata, destinada aos primeiros empreendimentos
fabris. Dessa forma, as alianças estatais e disciplinares implicarão a
constituição de uma medicina higienista, que investe em discursos e
práticas endereçados às mulheres, destinadas a parir sujeitos, poste-
riormente formatados em corpos produtivos e úteis à sociedade capi-
talista, assujeitados e disciplinados para serem explorados. O Estado
controla o corpo feminino e a medicina gerencia essas estratégias por

135
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

meio de intervenções em processos como a reprodução, contracep-


ção, maternidade, parto, menstruação, sexualidade feminina, com dis-
cursos e práticas principalmente misóginas.
De acordo com Elisabeth Vieira (2002), em seu livro A medica-
lização do corpo feminino, a medicina do século XIX engendra estra-
tégias de controle do corpo feminino e determina normas a serem se-
guidas por mulheres, que devem se adaptar e se adequar aos padrões
estabelecidos pela burguesia branca colonialista. Assim, a mulher só
poderia ser saudável e feliz desempenhando seu estrito e restritivo
papel, considerado naturalmente feminino, de mãe e esposa (VIEIRA,
2002). A concepção de felicidade atribuída à mulher do século XIX
resumia-se ao casamento, o que significava consolidar uma posição
social e obter uma estabilidade econômica (DEL PRIORE, 2019). Es-
critores, pensadores e cientistas do movimento higienista brasileiro
investiam em argumentos que tentavam justificar a incompatibilidade
da mulher com o trabalho físico e intelectual. Defendiam também que
as reivindicações feministas do século XIX representavam uma ame-
aça à ordem social.
Das mulheres das camadas mais pobres da população, impe-
lidas a trabalhar para manter o sustento da família, esperavam-se
comportamentos submissos, dependentes e que contribuíssem para
a vigilância tutelada de maridos e, eventualmente, condutas assedian-
tes de patrões (Margareth RAGO, 2014).
Segundo Del Priore (2019), o século XIX foi o momento no qual
a medicina se apropria de discursos religiosos sobre o matrimônio e
determina práticas sexuais com fins reprodutivos, para tentar com-
provar a universalização da maternidade com o argumento de que ge-
rar filhos constituía um fenômeno de natureza estritamente feminina.
Conforme explica Ana Paula Martins (2004, p. 32), em seu livro sobre
o tema da medicalização do corpo da mulher nos séculos XIX e XX:
As representações do esqueleto feminino produzidas nessa
época e no início do século XIX eram objetivações, isto é, ma-
terializações dos conceitos de feminilidade, como a fragilida-
de física, a beleza e a delicadeza na figura de esqueletos com
crânios pequenos, ossos mais finos e pélvis bastante largas,

136
Mulheres e feminismo: história e desafios

para evidenciar a ‘natural’ função da mulher: a maternidade


(MARTINS, 2004, p. 32).

Assim, o corpo feminino seria esmiuçado e desdobrado em


busca de diferenças anatômicas e fisiológicas que demonstrassem
a inferioridade da mulher e naturalizassem o domínio masculino. A
medicina higienista investia em estudos e pesquisas que pretendiam
evidenciar que o ciclo menstrual presente nos corpos femininos seria
o fator gerador de transformações físicas e psíquicas que suposta-
mente levariam as mulheres a cometerem delitos ou suicídios. Além
disso, por meio de tais argumentos, tratou-se de alienar a mulher do
conhecimento, do controle e do respeito de seu próprio corpo, criando
compreensões de vergonha e nojo.
Magali Engel (2018), no texto Psiquiatria e feminilidade, expõe
que aquela medicina do século XIX irá constituir uma ideia de femini-
lidade baseada em uma imagem da mulher como naturalmente frágil,
sensível, doce e submissa. Dessa forma, todos os gestos, atitudes e
comportamentos das mulheres que se distanciassem desse padrão
seriam considerados antinaturais e anormais. Percebe-se, claramente,
que a medicina irá instituir uma norma, um modelo padrão de atitudes
e comportamentos a serem seguidos, o que permitirá a identificação e
determinação de mulheres capazes de se conformarem a essa norma
(consideradas, então, normais), e daquelas que, incapazes de se ade-
quar à norma, serão definidas como anormais, inaptas e incapazes.
Identificar o normal e o anormal a partir da norma estabelecida
significa decompor todos os elementos característicos da figura fe-
minina, considerada, em muitas ocasiões, como um ser contraditório,
ambíguo, misterioso e imprevisível (ENGEL, 2018). Dois grandes con-
juntos categóricos seriam constituídos em torno dessa lógica binária
com tendência universalista: o primeiro grupo seria composto por mu-
lheres consideradas produtivas e úteis para as exigências da sociedade
patriarcal: saudáveis, sãs e boas, assim como dóceis e submissas ao
biopoder; o segundo grupo seria constituído por mulheres improdutivas
e nocivas, caracterizadas como doentes, loucas e criminosas, conforme
comenta Judith Butler (2017), mulheres consideradas dissidentes do

137
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais, distantes da heteronor-


matividade.
Nesse contexto, o corpo e a sexualidade feminina inspiraram
grandes investimentos de médicos e psiquiatras alienistas do século
XIX, que criam procedimentos regulatórios e intervenções normaliza-
doras para as mulheres consideradas distantes da norma. Como afir-
ma Martins (2004, p. 41):
[...] se a mulher não controlasse seus desejos e se entregasse
ao mundanismo e ao desregramento, facilmente ultrapassa-
ria a tênue fronteira entre a normalidade e a patologia, como
tão incansavelmente os médicos vão alertar ao abordar te-
mas como masturbação e prostituição.

Processo relacionado ao adestramento e controle permanente


de corpos femininos por meio dos dispositivos do casamento (FOU-
CAULT, 1977) e da maternidade que ainda influenciam a constituição
subjetiva de mulheres (ZANELLO, 2018). Assim, para as dissidentes
do padrão criam-se tecnologias de vigilância e controle por meio da
psicopatologização, medicamentalização, exclusão e encarceramento
manicomial.

6.2 Mulheres e loucura: sobre processos de psiquiatrização


do feminino

O movimento de psiquiatrização do corpo feminino não é recen-


te e a reconstituição da história das disciplinas médicas, psiquiátricas,
psicológicas e psicanalíticas demonstra que os manuais de psicopa-
tologia, desde o século XIX, já discorriam sobre um certo “orgânico
louco das mulheres” (Melissa PEREIRA; Rachel PASSOS, 2017) que in-
cluía temáticas sobre menstruação e alienação mental, maternidade e
loucura, sexualidade feminina e histeria (ENGEL, 2018).
O nascimento da psiquiatria em fins do século XVIII e suas trans-
formações ao longo dos séculos não distanciaram a mulher dos obje-
tivos de busca pela manutenção de uma moralidade social, de acordo
com um padrão de família, de empenho e desempenho produtivo e de

138
Mulheres e feminismo: história e desafios

adequação a comportamentos considerados normais para a sociedade


burguesa, colonialista, branca e androcêntrica.
Quando a psiquiatria constrói o conceito de doença mental e
transforma o louco em sujeito paciente e objeto a ser estudado, cria
também dispositivos significativos para a determinação do tratamen-
to médico: o denominado manicômio (FOUCAULT, 1978). De acordo
com Maria Cunha (1986, p. 14), que pesquisou a construção da do-
ença mental no interior de uma instituição psiquiátrica: “Mais que en-
tendê-los e defini-los, a sociedade burguesa tratará de aprisioná-los,
anulá-los, transformá-los em objeto de saber, criar espaços próprios
para sua reclusão — os hospícios”, sendo o único lugar social da pes-
soa considerada louca.
Ao não encontrar uma causalidade objetiva e orgânica para os
sofrimentos da alma, a psiquiatria caracterizou-se por práticas des-
critivas e classificatórias pautadas sobretudo em valores morais e re-
ligiosos. Conforme explicita Zanello (2018, p. 29),
[...] os transtornos mentais podem ser compreendidos de
maneira crítica como criações culturais que possuem efei-
tos performativos: prescrevem formas de sofrimento que são
passíveis de serem reconhecidas, validadas e amenizadas
com terapêuticas também culturais.

Por isso, considera-se que as práticas psiquiátricas são estig-


matizadoras e silenciadoras, que marginalizam e excluem.
O médico psiquiatra assume o saber-poder de avaliar a condu-
ta moral da mulher e de erigir o padrão adequado ao feminino, o que
implicará o silenciamento das vozes femininas; frequentemente, são
homens falando de mulheres consideradas loucas. Assim, a loucura
passa a ser uma experiência simbolicamente feminina, e a psiquiatria
ditará, por meio dos diagnósticos, uma norma e uma forma de ser mu-
lher. Para a medicina psiquiátrica, ciência reguladora de normativida-
des, quaisquer desvios de uma suposta natureza feminina, como a re-
cusa da maternidade ou o investimento no prazer sexual, serão vistos
como anormalidades, degeneração moral, loucura, doença mental ou
crime, que necessitarão de intervenção e “cura”. Em outras palavras,
trata-se de situações que exigirão intervenções médico-psiquiátricas
139
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

relacionadas à observação, classificação diagnóstica e intervenção


terapêutica.
Quando o tema é loucura e classificação diagnóstica, Engel
(2018) aponta que, enquanto as situações que conduzem às mulheres
a serem submetidas aos diagnósticos psiquiátricos estão relaciona-
das a uma suposta natureza feminina desvirtuada, sobretudo vincula-
da a sua sexualidade anormal, a loucura masculina está relacionada à
sua incapacidade de desempenhar papéis sociais atribuídos aos ho-
mens – de trabalhador e provedor. Sem dúvida, as exigências sociais
de desempenho dos papéis masculinos e femininos tanto interferem
na produção de subjetividades e influenciam no sofrimento psíquico,
como também resultam em diferenças na constituição de categorias
diagnósticas. Como afirma Zanello (2018), o gênero é um importante
elemento de configuração de certos sintomas psicopatológicos de-
terminados pela psiquiatria atual. Zanello e Silva (2012) mostram, a
partir de uma pesquisa com prontuários de pacientes de hospitais
psiquiátricos, que os principais sintomas descritos sobre os homens
são “falta de libido” e “impotência”, e que, em relação às mulheres,
os sintomas mais comuns são “falta de prazer nas tarefas domésti-
cas”, “poliqueixosa” e “choro fácil”. Dessa forma, o que é considerado
sintoma são aspectos conflitantes com os scripts sociais calcados
em valores de gênero. Scripts sociais que impõem um ideal de mulher
caracterizada por ser naturalmente frágil, submissa, doce, sedutora,
recatada, cuidadora, maternal, que se doa ao outro emocionalmente e
que renuncia ao sexo publicamente. Portanto, aquelas que se rebelam
contra os ideais de feminilidade e rompem com as normas de gênero
são diagnosticadas como loucas.
Na contemporaneidade, estabelece-se o transtorno mental com
base nos sintomas definidos e destacados pelo psiquiatra, o que terá
ocorrências diferentes para homens e para mulheres. Contudo, dife-
rentemente de outras especialidades médicas nas quais testes e exa-
mes laboratoriais conseguem identificar os elementos causais que
levariam ao aparecimento dos sintomas e do adoecimento, a biopsi-
quiatria continua carente de um marcador biológico específico e re-

140
Mulheres e feminismo: história e desafios

conhecível para aquilo que é considerado como “transtorno mental”


(FERRAZZA, 2013).
De acordo com Zanello (2018), o transtorno mental é uma inven-
ção cultural para determinar categorias diagnósticas e, consequente-
mente, tratamentos psiquiátricos. Assim, ao analisarmos a imbrica-
ção entre gênero e diagnósticos psiquiátricos é possível observar que
os transtornos mentais estabelecidos para homens são diferentes
dos determinados para mulheres. Dados epidemiológicos sobre ocor-
rência de transtornos mentais em seu recorte de gênero mostram uma
maior ocorrência de depressão e transtornos de ansiedade entre as
mulheres; por outro lado, vê-se uma prevalência do uso de substân-
cias psicoativas e comportamentos antissociais e de transtornos do
controle de impulsos entre os homens (Laura ANDRADE, Maria VIANA,
Camila SILVEIRA, 2006). O que é considerado sintoma são aspectos
conflitantes com os scripts sociais calcados nos valores de gênero, e
a prescrição é enviesada e construída por valores morais do próprio
médico, pois a queixa é interpretada por este (ZANELLO, 2018).
Nesse contexto, a psiquiatria, como disciplinadora de gênero,
estabelece diagnósticos psiquiátricos marcados pelos constructos
culturais: mulheres supostamente sofrem mais de depressão, diag-
nóstico relacionado à fraqueza e à fragilidade, com sintomas de choro;
já os homens recebem mais diagnósticos antissociais e transtornos
de controle de impulsos, diagnósticos relacionados à força, virilidade
e agressividade (Valeka ZANELLO, 2018). Conforme exemplifica Cunha
(1986, p. 143) ao analisar as internações em um hospital psiquiátrico
do século XIX:
[…] ao contrário dos homens, as mulheres são quase sem-
pre internadas no Juquery por alegados distúrbios relativos
sobretudo ao espaço que lhes coube na definição de papéis
sexuais e sociais — a esfera privada. Na verdade, as regras
do comportamento das mulheres estiveram, desde um am-
plo processo de elaboração de uma imagem feminina ideal,
apenas relacionadas à esfera corporal e familiar: boas mães,
boas filhas, boas esposas. Se há um espaço social menor a
ser ocupado, em função do estrito arcabouço de normas que
lhes foram impostas, há, para as mulheres, menores ocasiões
e oportunidades de transgressão. Neste sentido, a relação do

141
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

distúrbio psíquico com a rigidez das regras de comportamen-


to socialmente impostas é, na condição feminina, talvez mais
evidente. Assim, no caso das mulheres, a busca ao “estranho”
é sensivelmente mais refinada e incisiva.

Considerando as diferenças de classe, de instrução e de níveis


de opressão, todas aquelas internas no manicômio brasileiro do sécu-
lo XIX tinham em comum o fato de terem nascido mulheres e de que
esse evento (o de nascer com o sexo feminino), em alguns contextos
históricos, já ser considerado uma deficiência.
Na retomada da história das instituições manicomiais no Brasil,
pode-se observar que as mulheres foram mais submetidas à inter-
nação manicomial do que os homens. De acordo com Thaiga Silva e
Garcia (2019), em fins do século XIX, houve um crescimento do nú-
mero de mulheres internadas em manicômios, quando comparado ao
quantitativo de internações masculinas, aspectos relacionados aos
discursos de que as mulheres estariam “sempre na iminência de um
ataque de nervos”. Os motivos das internações manicomiais também
estavam relacionados ao gênero, de acordo com as observações de
Eliane Brum (2013), ao analisar as internações do hospício de Barba-
cena em Minas Gerais: “eram meninas grávidas, violentadas por seus
patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar
com a amante, eram filhas de fazendeiros que perderam a virginda-
de antes do casamento”. O manicômio funcionava como ferramenta
punitiva àquelas que escapavam de comportamentos esperados na
sociedade brasileira da época (ZANELLO, 2018).
E, segundo Engel (2018), inúmeros procedimentos determina-
dos às mulheres consideradas loucas e internadas em hospícios se
assemelhavam mais a cruéis métodos de tortura do que a práticas de
tratamento, com destaque para as cirurgias de extirpação do clitóris, a
introdução de gelo na vagina, além de outras intervenções ginecológi-
cas relacionadas à retirada do útero, do ovário, não menos dolorosas
ou cruéis.
Além disso, no Brasil houve um predomínio de internações
psiquiátricas de mulheres pobres e negras (ZANELLO; SILVA, 2012).

142
Mulheres e feminismo: história e desafios

Segundo Cunha (1986), a diferenciação nosológica e de cuidados de


acordo com a raça e classe social era fator preponderante no ma-
nicômio brasileiro, local de abandono e aniquilamento de mulheres
negras e pobres submetidas à internação psiquiátrica. Neuza Santos
Souza (1983), em seu livro Tornar-se negro, afirma que a mulher ne-
gra e pobre carrega a estigmatização e discriminação social desde o
passado colonial até os dias de hoje, o que consequentemente acar-
reta concepções de um corpo ora compreendido como objeto sexual,
ora destinado exclusivamente ao trabalho doméstico, favorecendo a
institucionalização precoce e incluindo também a manicomialização
(SILVA; GARCIA, 2019).
No Brasil a manicomialização de mulheres negras e pobres
guarda ainda as trágicas experimentações de uma medicina eugenis-
ta que defendia a esterilização compulsória como forma de manuten-
ção dos ideais higienistas de progresso da nação. Na década de 1930,
as propostas de esterilização involuntária ganhariam força no interior
das discussões eugenistas e, em alguns casos, tais medidas já eram
colocadas em prática. De acordo com Reis (2003), o psiquiatra Juliano
Moreira (1873-1933) já vinha praticando a esterilização de mulheres
negras manicomializadas e consideradas degeneradas no início do
século XX. Procedimento que ocorria e era defendido pelos homens
da ciência, mesmo diante de casos de pacientes mulheres que, mais
tarde, foram consideradas passíveis de cura e de alta hospitalar. As
argumentações daqueles que realizavam a esterilização, a qual já era
praticada em países como Estados Unidos e Alemanha, estavam fun-
damentadas nos pressupostos do nazifascismo, que defendia a ma-
nutenção de uma suposta saúde racial da população.
Angela Davis (2018), em Mulheres, raça e classe, denuncia o
histórico processo de esterilização involuntária de pobres, em sua
maioria mulheres negras e latinas. Tal procedimento era impulsionado
pelo Estado norte-americano, ao longo da primeira metade do século
XX, como estratégia para o gerenciamento racial e populacional na
disseminação de um tipo de controle de natalidade essencialmente
racista. No Brasil, essa história não seria diferente, e o gerenciamento

143
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

do corpo de mulheres negras e pobres também seria reduzido a deci-


sões de médicos engajados no movimento eugenista brasileiro.
Se essas considerações históricas nos parecem distantes e
superadas, a realidade brasileira nos mostra um cenário bastante
semelhante aos descritos por esses apontamentos. No ano de 2018,
ganhou destaque da mídia brasileira o caso de Janaína, mulher negra
de 36 anos, em situação de rua, que, após o parto de seu filho, foi sub-
metida à esterilização forçada e determinada judicialmente. O caso de
Janaína não é o único e marca a trágica história de inúmeras mulheres
pobres e negras que relatam que só descobriram a esterilização com-
pulsória realizada no momento do parto, quando tentaram ter outro
filho (Rute PINA, 2018).
E a psiquiatria, com promessas de aliviar sofrimentos psíquicos
e mal-estares emocionais, além da clássica intervenção manicomial,
adota também intervenções medicamentosas, forjadas a partir da se-
gunda metade do século XX. Os psicofármacos e os manuais descri-
tores de diagnósticos, como o Manual de Diagnósticos Psiquiátricos
(DSM) e o Código Internacional de Doenças (CID-10), surgem como
novas ferramentas de controle, que supõe novas práticas de adap-
tação, contenção e estigmatização. Assim, a busca por um diagnós-
tico torna-se uma nova construção de identidade possível, na qual a
pessoa pode se identificar com categorias diagnósticas que supos-
tamente explicariam sofrimentos e adoecimentos psíquicos. Nessa
perspectiva, para cada rotulação diagnóstica imposta a mulheres e
homens se estabelecem tratamentos e prescrições medicamentosas.
Nessa conjuntura, pesquisas mostram que mulheres são as maiores
consumidoras de psicofármacos (CARLINI, 2006), sendo que para elas
são prescritas duas vezes mais medicações ansiolíticas do que para
os homens (Ionara RABELO, 2011).
Atualmente, as mulheres que se rebelam contra os ideais de fe-
minilidade e que rompem com as normas de gênero – negras, lésbi-
cas, transexuais, gordas, além daquelas que, estafadas, não consegui-
ram cumprir o ideário social – são diagnosticadas como loucas. É na
contenção institucional ou química que se buscará adaptá-las a uma

144
Mulheres e feminismo: história e desafios

suposta normalidade na cíclica marginalização por meio da constante


institucionalização das mulheres consideradas indesejadas.
Ressalta-se que uma compreensão do sofrimento psíquico que
se oponha à biopsiquiatria atual não desconsidera os aspectos biológi-
cos, mas compreende-os na interação com o social, com o psicológico,
com a trajetória de uma vida humana, enxergando a cultura como uma
teia de significados tecidas historicamente e passível de ser compre-
endida. O que é exigido de desempenho para um homem e para uma
mulher interfere na experiência subjetiva e influencia no episódio do
adoecimento psíquico. No caso da mulher, a desigualdade de gênero,
o trabalho informal ou pouco valorizado, as cobranças no campo pri-
vado familiar como mãe e esposa, além da violência doméstica, podem
ser compreendidos como elementos significativos para a produção de
existências-sofrimentos.

6.3 Gerenciamento da vida de mulheres e o controle de corpos femi-


ninos em processos de medicalização da sexualidade

A impossibilidade de a mulher ter controle sobre seu próprio


corpo, sobre sua sexualidade e sobre a tomada de decisões relaciona-
das ao controle reprodutivo ainda é temática polêmica, até mesmo no
movimento feminista. De acordo com Davis (2018, p. 147), o desejo da
mulher pelo controle de seu “sistema reprodutivo é tão antigo quanto
a história da humanidade”. Mais especificamente, foi a partir do sécu-
lo XVIII que os saberes disciplinares médicos e jurídicos se apropria-
ram do corpo feminino e o transformaram em objeto de intervenção.
Momento de medicalização de corpos e de domínio da sexualidade
feminina em nome da suposta garantia da saúde dos filhos, da solidez
da instituição familiar e, consequentemente, da salvação da socieda-
de (FOUCAULT, 1977). Margareth McLaren (2016, p. 62), à luz da obra
de Foucault, afirma que os processos de normalização do corpo rela-
cionam-se com
[...] os discursos da sexualidade que criou novas categorias de
depravado e perverso, enquanto, simultaneamente, invadia a

145
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

esfera da vida privada exercendo controle sobre a família e se


inserindo em nossas psiques mudando nossa concepção de
nós mesmos para objetos sexuais.

Nesse contexto de normalização do corpo e de controle da sexu-


alidade, previa-se a manutenção da ordem, da saúde e de um suposto
bem-estar, com ações medicalizantes na qual se definem os limites do
normal e do anormal, em que não há mais espaço para descrever as ex-
periências do corpo humano que já não perpassem pelos olhares pers-
crutadores do saber médico. Trata-se da construção de uma relação
inversamente proporcional: quanto mais medicalizado um indivíduo ou
a sociedade, menor sua liberdade individual e maior o controle social ao
qual estará submetido (Rafaela ZORZANELLI, ORTEGA & BEZERRA JU-
NIOR, 2014). A medicina vai adquirindo, então, a função de reguladora
das práticas sociais – antes somente ocupada pelos discursos religio-
sos e jurídicos – e adquire um novo espaço de detenção da verdade e de
avaliação moral pautada no pressuposto de neutralidade e objetividade
da ciência.
Assim, a sexualidade feminina, transformada em objeto de ava-
liação e análise do saber-poder médico, será explorada, compreendi-
da e traduzida em um sentido unicamente fisiológico, que terá a fina-
lidade única da reprodução. À vista disso, decidir sobre sexualidade
feminina, prazer sexual, contracepção, reprodução e interrupção da
gravidez ainda atualmente não depende da mulher, mas sim de ho-
mens que dominam e controlam os espaços médicos, legislativos e
estatais.
O slogan “pelo direito de decidir” é até hoje emblemático e re-
presentativo do movimento feminista, mas ainda muito distante de ser
conquistado pelas mulheres brasileiras. O recente caso de uma criança
de 10 anos estuprada pelo tio desde os 6 anos de idade chocou o país
e dividiu opiniões entre os favoráveis à interrupção da gravidez e os
denominados “defensores” da vida (SAKAMOTO, 2020). Embora o caso
tenha sido tratado como algo inédito, dados oficiais mostram que no
Brasil ocorrem, em média, seis internações diárias para a realização
do procedimento de aborto envolvendo crianças de 10 a 14 anos que

146
Mulheres e feminismo: história e desafios

engravidaram após serem estupradas. Se o número parece alto, ele é


pequeno perto da quantidade de estupros de crianças e adolescentes
que ocorrem no país diariamente; quando, a cada hora, quatro meninas
de até 13 anos são estupradas, segundo dados do Anuário Brasileiro de
Segurança Pública (2019).
A legislação brasileira determina que o aborto é considerado
crime contra a vida, salvo três exceções previstas pela lei penal: a
primeira resulta da gravidez em decorrência de estupro; a segunda
refere-se aos casos de riscos de vida da mulher grávida e a terceira
relaciona-se à malformação fetal incompatível com a vida extrauteri-
na (TORRES, 2012). Aqui, é preciso dar destaque ao fato de que aquela
criança de 10 anos de idade conseguiu a garantia judicial do proce-
dimento do aborto, tanto pela gravidez decorrente de estupro quanto
pelos riscos de perder a vida. Contudo, um grupo de cristãos enfure-
cidos e incentivados pela atual Ministra do Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, tentaram impedir que
o procedimento ocorresse. Nesse contexto, residem ideais religiosos
que influenciam valores, crenças e concepções da sociedade brasi-
leira, ao definir a prática do aborto como de ordem pecaminosa e de
desvalorização da vida, inspirando posicionamentos médicos e jurí-
dicos legitimados pelo Estado, que deveria ser laico, mas criminaliza
o aborto no país. Além disso, a presença de valores e protagonistas
religiosos na esfera pública e política no Brasil, principalmente da de-
nominada “bancada evangélica”, dificulta os debates sobre o tema da
descriminalização do aborto e incentiva os processos de criminali-
zação, encobrindo a realidade de centenas ou milhares de mulheres
mortas em decorrência do descaso do Estado, que não reconhece a
gravidade e a urgência de políticas de proteção e defesa da vida des-
sas pessoas (FERRAZZA; PERES, 2006). É preciso frisar que muitos
dos aspectos morais que envolvem os discursos de defesa ao aborto
como crime e como pecado tiveram sua origem nesse processo de
medicalização do corpo da mulher, sob forte influência dos discur-
sos morais cristãos. O corpo feminino, o corpo daquela criança de 10
anos, e de tantas outras crianças, adolescentes e mulheres vítimas
de uma gravidez indesejada, é de controle do Estado, que gerencia a
147
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

sexualidade feminina e a vida de brasileiras que, historicamente, têm


sido tolhidas em seu direito de decidirem pelo seu próprio corpo.

6.4 Considerações finais: resistência feminista aos processos


de medicalização e psiquiatrização do corpo de mulheres

O processo de medicalização do corpo feminino é marcado por


discursos e práticas machistas, misóginas e sexistas, que compreen-
dem as questões da saúde física e da saúde mental das mulheres bra-
sileiras como problemáticas de um corpo biológico individual que não
funciona de forma adequada e que supostamente precisaria ser re-
gulado, normatizado, gerenciado. Nesse contexto, é necessário cons-
truirmos estratégias de resistência aos processos de medicalização
e psiquiatrização do corpo feminino, os quais submetem mulheres a
uma lógica normativa e a processos de normalização. As mobiliza-
ções antimanicomiais e feministas precisam fazer frente aos segmen-
tos reacionários da sociedade civil para superar retrocessos e lutar
pelo reconhecimento dos direitos e pela garantia de oportunidades.
Somente assim mulheres e pessoas em intenso sofrimento psíquico
poderão ter autonomia para decidir sobre suas vidas e seus corpos.
É preciso investir na criação de estratégias para resistir aos dis-
cursos e práticas de saberes disciplinares da medicina, da psiquiatria,
da psicologia normativa, que impõem um conceito de identidade uni-
ficada, relacionada a uma verdade universal e a-histórica que oprime,
culpabiliza, violenta e mata mulheres. Para tanto, resistir às normas
patriarcais significa, primeiramente, reconhecê-las e identificá-las
como “potencialmente perigosas”, até mesmo para enfrentá-las cole-
tivamente (MCLAREN, 2016).
Constituir uma resistência feminista aos processos de medicali-
zação do feminino é investir em uma luta contra os discursos e práticas
normativas que submetem mulheres, negras, loucas, gordas, deficien-
tes, lésbicas, bissexuais, sujeitando-as aos moldes fixos de subjetivi-
dades formatadas. Resistir à normalização é um processo tanto ético
quanto político, em um movimento não individual, mas coletivo (MCLA-
148
Mulheres e feminismo: história e desafios

REN, 2016). Contudo, é preciso esclarecer que a noção de resistência


proposta por Foucault (1995) não pode ser compreendida como mera
reação às normas estabelecidas pela sociedade. As estratégias de re-
sistência precisam ser compreendidas como possibilidades para a in-
venção de processos inéditos de vida, de invenção de novos valores,
diferentes daqueles que estão determinados e impostos como ade-
quados no âmbito das normas de gênero. Como nos ensina Friedrich
Nietzsche (1844-1900), é transvalorar e construir outras formas de re-
sistir e existir. Nas palavras de Foucault (1995, p. 239), a proposta é de
“promover novas formas de subjetividades através da recusa deste tipo
de individualidade que nos foi imposto há vários séculos”. Assim, para
McLaren (2016), a recusa das feministas em se manterem na condição
de assujeitadas às normas de gênero propiciaria a constituição de no-
vas possibilidades de constituição de subjetividades femininas.
Com efeito, não podemos mais admitir que nosso corpo seja
gerido e controlado pelos denominados “homens da ciência”, mé-
dicos, juristas, legisladores, que impõem uma verdade universal e
a-histórica do corpo feminino, pautada em concepções morais e re-
ligiosas, machistas e misóginas. Não podemos mais concordar que
a psiquiatria rotule e medique mulheres que vivenciam sofrimentos
psíquicos ocasionados, na realidade, por sobrecarga de trabalho, por
agressões machistas e violências sexistas. Não podemos mais tole-
rar que mulheres sejam internadas em manicômios ou comunidades
terapêuticas como forma de vigilância e controle punitivo. Não pode-
mos mais suportar que psiquiatras, psicólogos e psicanalistas, nor-
teados por saberes racistas eurocêntricos, normativos, definam mo-
dos padronizados da existência feminina. Não podemos mais acatar
que mulheres negras e pobres sejam esterilizadas compulsoriamente.
Não podemos mais permitir que crianças e adolescentes mulheres
sejam estupradas, que tenham o direito ao aborto negado ou sejam
impelidas por moralistas religiosos a não interromperem a gravidez
indesejada. Por fim, é necessário seguirmos juntas na constituição
de coletivos de empoderamento feminino que lutem pela constituição
de estratégias de atenção e cuidado feminista e antimanicomial nos
diferentes âmbitos sociais e políticos.
149
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

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154
https://doi.org/10.33872/edufatecie.mulheresefeminismo.cap7

CAPÍTULO 7
AS REPRESENTAÇÕES
SOCIAIS DAS MULHERES NA
MÍDIA BRASILEIRA:
UMA ANÁLISE DOS ANOS
2000 A 2018

Débora Nicolau de Oliveira


Deborah Karolina Perez

Esta investigação teve como objetivo compreender a influência


das revistas Manequim, Vogue Brasil e Marie Claire na construção das
representações sociais da mulher brasileira, e as modificações pelas
quais o movimento feminista brasileiro passou nesse percurso.33 Para
tanto, realizou-se uma revisão bibliográfica acerca do movimento fe-
minista brasileiro e as influências latino-americanas. Também foi re-
alizada a pesquisa documental nas revistas supracitadas.
Pesquisas como esta somam-se ao arcabouço científico que
está sendo construído a respeito da temática em questão, cuja finalida-
de é lançar luz sobre a realidade das mulheres brasileiras, descrevendo
e criticando sua construção e condição, para, assim, questionar a ima-
33 O presente manuscrito é resultado de uma pesquisa de iniciação científica com bolsa
de estudos do Programa Institucional de Bolsas Iniciação Científica (PIBIC), vinculado ao
NuPE (Núcleo de Pesquisa e Extensão).
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

gem de docilidade feminina, bem como o universo de responsabilidades


acerca do cuidado do lar e dos filhos. Constitui, igualmente, objeto de
questionamento a ideia de que a mulher é uma espécie de propriedade
dos homens: primeiro de seu pai e, depois, do marido, ou seja, elemen-
tos da vida da mulher construídos como inerentes ao feminino. Tais
naturalizações manifestam-se, muitas vezes, em exacerbada violência
contra a mulher,34 que ocorre de diversas maneiras, ou então, por meio
da desvalorização de sua força produtiva, uma vez que o salário pago
às mulheres ainda é menor do que a remuneração paga aos homens
para o mesmo cargo.35
A realização do presente trabalho deu-se por meio de pesquisa
qualitativa, mediante revisão bibliográfica em livros, revistas científi-
cas e artigos em bases de dados, como Lilacs, Scielo e BVsalut, en-
tre outros. Para isso, utilizamos como palavras-chaves os seguintes
termos: feminismo; ondas feministas; feminismo e América Latina;
feminismo e Brasil; mídia; revistas femininas; representação social.
Empreendeu-se, ainda, uma pesquisa documental em vinte e cinco
revistas: revista Manequim, da editora Abril,36 das edições de junho
e dezembro de 1999, setembro de 2000, janeiro, março e junho 2001
e as edições de agosto, setembro e outubro 2018. Revista Vogue, da
editora Globo, edição de junho 2007, janeiro, março, abril, novembro e
dezembro de 2008, e as edições de janeiro, setembro e dezembro de
2018. Por fim, foram analisadas as edições de janeiro, fevereiro, maio,
abril, setembro, outubro e novembro da revista Marie Claire, da editora

34 Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2015, a cada 11 mi-


nutos ocorre 1 estupro; porém calcula-se que tais dados correspondam a apenas 10% do
número de casos. Cerca de 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes, e
quem geralmente comete o crime são homens próximos às vítimas. Ocorrem, em média,
10 estupros coletivos todos os dias, notificados no sistema de saúde do país. Somente
15,7% dos acusados por estupro foram presos. No metrô de São Paulo, registraram-se 4
casos de assédio sexual por semana. A cada 7,2 segundos uma mulher é vítima de violên-
cia física. Em 2013, morreram 13 mulheres todos os dias, vítimas de feminicídio, 30% das
quais mortas por seus parceiros ou ex- companheiros/maridos (Nana SOARES, 2017).
35 De acordo com uma pesquisa realizada pela Catho, as mulheres ganham menos que
os homens em todos os cargos, e em alguns essa diferença chega a 62,5% (Pâmela KO-
METANI, 2017).
36 A revista Manequim mudou de editora depois dos anos 2000, passando da editora Abril
para a editora Escala.

156
Mulheres e feminismo: história e desafios

Globo, do ano de 2018.


As revistas foram selecionadas por terem o público feminino
como alvo e por abordarem temas como moda, beleza, mercado de
trabalho, decoração, culinária, artesanato, horóscopo, filhos, sexo e
outros. Elas têm circulação nacional e publicação mensal. Além des-
ses critérios, foram selecionadas por existirem há mais de dez anos e
pela facilidade de serem encontradas em sebos.
O marco teórico da pesquisa é a Teoria das Representações So-
ciais (TRS), que considera impossível à pesquisadora manter uma po-
sição neutra, pois seu potencial está na pluralidade de discursos por
intermédio da construção de sua realidade e do objeto estudado. Para
examinar os dados coletados, recorreu-se à Análise de Discurso, a qual
configura uma corrente metodológica que integra a Teoria das Repre-
sentações Sociais. De acordo com Mary Jane Spink e Frezza (2013), a
Análise do Discurso não pode ser compreendida somente no âmbito da
linguagem, da sintaxe e da semântica, mas para além dessas instân-
cias, pois um discurso é determinado por suas condições de produção
e por um conjunto linguístico. Por essa razão, a Análise do Discurso tem
como escopo a problematização e crítica da comunicação, dos princí-
pios de suas condições de produção, suas ideias e suas implicações
sociais, levando em consideração fundamentos exteriores, como os as-
pectos históricos e sociais no quais os documentos são elaborados e
difundidos (ORLANDI, 1990 apud RANGEL, 1998).

7.1 As revistas femininas e o mito da beleza

Nesta seção, discute-se o papel da revista feminina como ve-


ículo de cultura e modelo de comunicação, além de sua participação
na construção de um mito da beleza (Naomi WOLF, 1992), o qual deno-
ta o aprisionamento das mulheres em uma norma que sempre muda
conforme os gostos dos anunciantes e do governo.
Wolf (1992) observa que as revistas femininas são um dos pou-
cos meios de comunicação dos quais as mulheres dispõem, já que

157
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

quase tudo na cultura é destinado ao homem. Monteserrat Miguel e


Ana de Boix (2013) afirmam que culturalmente o homem representa o
ser humano neutro, sendo o protagonista de tudo o que existe, seja na
cultura, seja na política, restando às mulheres o papel de seres especí-
ficos. Dessa maneira, as revistas femininas feitas por e para mulheres
constituem um espaço muito interessante para elas.
Wolf (1992) ressalta que as revistas femininas, além de refle-
tir o movimento da história, determinam como e por quais caminhos
transformações irão ocorrer, por meio dos desejos dos anunciantes
ou, então, da política da época. Outro ponto estudado pela autora é o
modo como o feminismo influenciou a cultura de massa, consideran-
do então que tais revistas vêm construindo um papel social e dinâmico
para a mulher. Wolf (1992) aponta que, na década de 1950, nos Esta-
dos Unidos, as revistas femininas tratavam de como a mulher deveria
ser perfeita em desempenhar seus dons como dona de casa, cuidar
dos filhos e ser uma boa esposa. Com a chegada da Primeira Guerra
Mundial, as revistas investiam no papel da mulher em suprir a mão de
obra, já que os homens estavam ausentes, lutando na guerra. Com o
fim da guerra, o papel comercializado era de a mulher retornar à sua
“verdadeira essência”, de ser a feliz dona de casa e satisfeita esposa,
que cuida dos filhos, a fim de fazer com que as mulheres voltassem
a seus lares, deixando de receber os baixos salários e abandonando
seus cargos para cuidar de seus maridos.
Com a segunda onda feminista37 nos Estados Unidos e a cres-
cente presença das mulheres em postos de trabalho, os anúncios das
revistas femininas mudaram seu foco. A mulher, antes alocada na vida
privada, passava agora a ocupar o espaço público, exclusivo aos ho-
mens. Essa mudança recaiu sobre a imagem que a mulher expunha,
por isso o olhar das revistas passou das roupas e das tarefas domés-
ticas para o corpo feminino, o qual deveria ser cada vez mais magro,
37 O feminismo, compreendido como movimento de mulheres, teve seu início nas últi-
mas décadas do século XIX, propagando-se a partir dos ideais iluministas. Foi irradiado
por toda Europa, seguindo para os Estados Unidos, e logo depois difundiu-se na América
Latina. O movimento feminista é dividido por historiadoras em três fases distintas, deno-
minadas Ondas Feministas; atualmente, porém, várias estudiosas começaram a falar de
uma quarta onda feminista (BARBOSA, 2015; Cély PINTO, 2010).

158
Mulheres e feminismo: história e desafios

obedecendo aos anúncios de alimentos dietéticos; não deveria en-


velhecer, seguindo os anúncios de cremes milagrosos antirrugas; ou
seja, deveria ser sempre belo e jovem, de acordo com a ótica imposta
por esses anunciantes. Para conter o avanço dos ideais feministas
e o medo que ele causava, a imagem da feminista feia, assexuada e
masculinizada foi propagada por toda a mídia. Dessa forma, quanto
mais os ideais feministas avançavam, mais pesado o mito da beleza
era propagado sobre as mulheres.
O mito da beleza, conforme Wolf (1992), foi criado para con-
trolar as mulheres que tiveram sua liberdade conquistada com a se-
gunda onda do feminismo. Porém, ele é mais eficaz, na medida em
que faz da beleza um sistema monetário, determinado pela política,
consistindo em um conjunto de crenças que tem por intuito manter o
domínio masculino intacto. Isso ocorre ao atribuir valor à beleza em
uma hierarquia que faz com que as próprias mulheres disputem entre
si. Corrompe-se a ideia de beleza, que se torna universal, imutável, e
baseada naquilo que homens desejam dos comportamentos femini-
nos, como a juventude e a virgindade, que simbolizam a ignorância
sexual e a falta de experiência, fazendo com que o poder esteja com
as instituições masculinas (WOLF, 1992).
De acordo com Wolf (1992), são as revistas femininas os maio-
res difusores do feminismo para as mulheres; são elas que levam a
sério as questões que permeiam a vivência das mulheres e as auxi-
liam na busca de uma profissão. Porém, elas também promovem a
difusão do mito da beleza, que é pago pelos anunciantes e serve a
uma sociedade machista, que necessita da mulher como mão de obra
barata, desvalorizada e presa a um ideal cada vez mais inalcançável.
Isso para que a mulher, já cansada de seu trabalho exaustivo e de sua
rotina de beleza cada dia mais cheia de passos, não tenha força sufi-
ciente para se dar conta das injustiças a sua volta e reivindicar seus
direitos, ou, então, para perceber que esse ideal de beleza não passa
de um mito, o qual serve para cansá-la e usufruir de seu dinheiro.
Na contemporaneidade, a relação das leitoras com suas re-
vistas foi modificada devido ao advento da internet, que trouxe para

159
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

as mulheres uma maior variedade de mídias, oferecendo-lhes mais


modelos, que podem ser encontrados em mídias digitais como o Fa-
cebook, o Instagram e blogs. No entanto, esses modelos, na maioria
das vezes, acabam sendo “mais do mesmo” modelo já veiculado pelas
revistas.

7.2 O papel das mídias na construção das representações sociais

Neste segmento do trabalho, analisa-se o papel das mídias na


construção das representações sociais a partir do entendimento de
que produzem e legitimam realidades universais, as quais influenciam
a construção das subjetividades dos sujeitos, uma vez que estão for-
temente presentes na vida cotidiana das pessoas.
Guareschi (2007) pontua que a sociedade atual é uma socieda-
de midiada, pois está cercada pelas ideias, imagens e sons veiculados
pelas mídias. Para ele, não existe um aspecto da vida em que as mí-
dias não interfiram, seja na economia, política, educação ou religião,
construindo a realidade presente. Dessa maneira, é possível constatar
que as representações sociais se engendram por meio das mídias, na
relação desses dispositivos com as pessoas, seja individualmente,
seja coletivamente. A sociedade contemporânea não mais se funda-
menta em crenças ou na sua relação com o trabalho; é a mídia que
toma esse lugar, com a comunicação e a criação de conhecimento por
meio da informação. Em outras palavras, é a comunicação quem cria
o novo ambiente social. E, como também é a mídia quem constrói a
realidade,38 ela tem o poder de escolher o que deve existir, ou seja, é a
mídia quem delimita os assuntos que devem ser discutidos, vistos –
que devem existir – e também é ela quem exclui os assuntos que não
devem ser vistos, falados – que não devem existir. Além disso, a mídia
atribui conotação moral e valorativa ao que é veiculado, sendo, as-
sim, naturalizada a ideia de que a realidade transmitida pelas mídias é
sempre boa e verdadeira, a não ser que se diga expressamente que ela
38 Entende-se por realidade aquilo que existe, que tem valor, que traz respostas, legitima
e constrói o cotidiano da população.

160
Mulheres e feminismo: história e desafios

não o é (GUARESCHI, 2007).


A mídia torna-se, ainda, o outro personagem dentro das casas,
principalmente quando se leva em consideração que a média diária de
exposição à televisão do brasileiro é de quatro horas, chegando até a
nove horas em alguns contextos. Dado que o ser humano se constitui
a partir das relações que estabelece, esse outro personagem, a mídia
televisiva, será um dispositivo com o qual o sujeito se relaciona. O ser
humano, entretanto, é o único que fala e que traz respostas, estabele-
cendo uma relação vertical com tais sujeitos.

7.3 Movimento feminista no Brasil e na América Latina e as aproxi-


mações com a mídia impressa

Esta parte da pesquisa abordou brevemente a maneira pela qual


ocorreu o movimento de mulheres entendido como feminismo, dando
ênfase ao seu surgimento no Brasil e na América Latina. Também se
analisou como as revistas femininas, no Brasil, foram precursoras do
feminismo, embora seu papel e foco na atualidade tenham mudado.
A primeira onda feminista emergiu no final do século XIX e se
estendeu até meados do século XX pelo mundo. Esse momento foi ca-
racterizado pela busca da igualdade de direitos civis, políticos e edu-
cativos, aos quais somente os homens tinham acesso (PINTO, 2010).
No Brasil, como em vários países latino-americanos, as mani-
festações do feminismo apareceram na primeira metade do século
XIX, a partir da imprensa conduzida por mulheres. Em tal conjuntura, o
movimento foi marcado pela luta pelo direito ao voto das mulheres, li-
derada pela bióloga Berta Lutz e conquistado em 1932, e também, por
organizações de operárias de ideologia anarquista, que tinham como
objetivo a conquista de direitos que garantissem a igualdade também
no trabalho, já que, seus salários eram menores do que dos homens e
sofriam constantes abusos e discriminações (Martha NARVAZ; Sílvia
KOLLER, 2006; PINTO, 2010).
A segunda onda do movimento feminista manifestou-se na

161
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

Europa e nos Estados Unidos em 1960 e foi precedida por diversos


acontecimentos, como a contracultura hippie, que trouxe ideias que
contrariavam os valores norte-americanos e os ideais da economia
capitalista, assim como o movimento conhecido como “Maio de 68”,
ocorrido na França, que expôs a insatisfação dos estudantes com re-
lação ao sistema educacional e o descontentamento dos operários
com o governo da época, ocasionando várias greves pela Europa (PIN-
TO, 2010). O movimento feminista retornou, então, mais audacioso:
problematizou a questão de poder entre os gêneros e denunciou a
dominação patriarcal sobre as mulheres em todos os âmbitos, aden-
trando a vida pública e privada. Assim, utilizou a expressão “o pessoal
é político” para representar os ideais buscados nesse segundo mo-
mento (Ana COSTA, 2005).
No Brasil, o fenômeno ocorreu de maneira singular em refe-
rência ao restante do mundo, sendo que no início da década de 1960
ocorreu o golpe militar, ou seja, uma situação de total repressão, en-
quanto em diversos outros países a conjuntura era propícia para o
surgimento de movimentos emancipatórios. Porém, em meio a esse
contexto, em 1970 ocorreram as primeiras manifestações da segunda
onda feminista no país. No período aconteceu uma semana de deba-
tes denominada O papel e o comportamento da mulher na realidade
brasileira, patrocinado pela ONU, além do lançamento do Movimento
Feminino pela Anistia, promovido por Therezinha Zerbini (1928-2015).
Também ocorreram a organização das primeiras manifestações de
mulheres no Brasil e a aproximação das exiladas com o feminismo
europeu (PINTO, 2010).
Com o fim da ditadura militar, na década de 1980, o feminismo
brasileiro ganhou reconhecimento e gerou grande efervescência no
cenário político, ocorrendo a criação de muitos grupos e coletivos em
todas as regiões. Essas associações tratavam de diversos temas re-
lativos à vivência da mulher, como a “violência, sexualidade, direito ao
trabalho, igualdade no casamento, direito à terra, direito à saúde ma-
terno-infantil, luta contra o racismo, opções sexuais” (PINTO, 2010, p.
17). Tais coletivos organizavam-se muito próximos dos movimentos

162
Mulheres e feminismo: história e desafios

populares de mulheres, o que permitiu uma ampliação da discussão fe-


minista brasileira, a qual se iniciara como um movimento de classe mé-
dia e expandiu-se entre as classes populares, aumentando assim suas
ações, bem como seus horizontes de discussão e luta (PINTO, 2010).
A terceira onda feminista teve seu início a partir dos anos 1980
e foi disposta com base na multiplicidade e difusão do feminismo pelo
mundo como filosofia política, pela “definição heterogênea das opres-
sões e das identidades das mulheres, institucionalização e forte produ-
ção acadêmica” (TOMAZETTI; Liliane BRIGNOL, 2015, p. 33). Passou-se
a repensar aspectos teóricos que ainda não haviam sido resolvidos;
destacou-se o diverso e múltiplo mundo das mulheres; desmitificaram-
-se as diferenças de gênero como não sendo de origem natural, mas
sim de uma construção social, de modo que também houve a parti-
cipação de feministas junto aos governos e órgãos internacionais na
criação de políticas públicas e campanhas para a conscientização da
população, assim como a diferenciação teórica de diversos feminismos
(TOMAZETTI; BRIGNOL, 2015).
A quarta onda feminista começou a se organizar a partir dos
anos 2000, tendo como características a institucionalização das de-
mandas femininas por meio da elaboração e implementação de polí-
ticas públicas; a criação de novos mecanismos e órgãos executivos
de coordenação e gestão dessas políticas públicas nos âmbitos mu-
nicipal, estadual e federal; a criação de organizações governamentais
e não governamentais oriundas da institucionalização, como fóruns e
redes feministas; esforços para a construção de um feminismo hori-
zontalizado e uma tentativa de integralização com outros movimentos
sociais (Marlene MATOS, 2010).
Olívia Perez e Arlene Ricoldi (2018) veem na quarta onda fe-
minista brasileira três traços principais: a mobilização construída e
difundida na internet, a interseccionalidade e a atuação por meio de
coletivos. Dito de outra forma, a disseminação do acesso à internet
viabilizou a construção e a divulgação de diversos feminismos que
combatem o machismo, o racismo e a LGBTfobia. Despontou, des-
sa maneira, uma nova vertente do feminismo, o cyberfeminismo, que

163
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

é articulado em rede e consegue atingir diferentes mulheres, dando-


-lhes voz e protagonismo. O feminismo interseccional englobou todas
essas segmentações, tornando-se uma das vertentes mais importan-
tes. Desse modo, os coletivos protagonizam a discussão e a atuação
em prol dos feminismos.
A trajetória do movimento feminista no Brasil lançou mão de
diferentes meios para atingir as mulheres, e um deles foi a revista im-
pressa, além dos jornais e da literatura em geral, pois, desde as primei-
ras ondas, eram alguns dos meios de comunicação mais acessíveis e
populares. Constância Duarte (2003) organiza tais ondas de maneira
singular, utilizando a literatura escrita por mulheres como marco prin-
cipal e estanque das ondas.
Em meados do século XIX, começam a surgir jornais dirigidos
por mulheres. Anteriormente, elas tiveram que lutar pelo direito à al-
fabetização, pelo direito às escolas que fossem além dos ensinos do-
mésticos e pelo direito de ingressar na vida pública, reservada somen-
te aos homens. Tais jornais foram considerados pelos críticos, todos
homens, como uma imprensa secundária, inconsciente e supérflua,
por serem, segundo eles, jornais destinados ao “segundo sexo”.
Mesmo com tais empecilhos, as páginas dos jornais avançaram
na construção da identidade feminina e, em 1852, no Rio de Janeiro,
surgiu o Jornal das Senhoras, dirigido pela jornalista argentina Juana
Paula Manso de Noronha (1819-1875), com o propósito de incenti-
var as mulheres a se instruírem e a buscarem uma melhora social e
a emancipação moral. Juana Manso de Noronha acreditava na inte-
ligência feminina e que Deus havia dado à mulher uma alma e a fez
igual ao homem. Ela ainda acusava os homens de serem egoístas por
considerarem suas mulheres como “crianças mimadas”, “sua proprie-
dade” ou “bonecas” disponíveis ao prazer masculino.
Outro jornal dessa época foi O belo sexo, de Júlia de Albuquer-
que Sandy Aguiar. Publicado em 1862, pautou seus escritos na crença
da intelectualidade da mulher. O que diferenciava tal jornal dos demais
era o fato de suas colaboradoras assinarem as publicações, saindo do
anonimato, e participarem da escolha dos temas a serem publicados

164
Mulheres e feminismo: história e desafios

(DUARTE, 2003).
Em 1870, Francisca Senhorinha da Mota Diniz (?-1910) publi-
cou o jornal O segundo sexo, com um alerta segundo o qual o grande
inimigo das mulheres era não saber de seus direitos, algo que os ho-
mens se encarregavam de manter. Em seu jornal, Francisca Senhori-
nha afirmava que somente por meio dos estudos era possível vencer
tal inimigo. Ela também defendeu o direito aos estudos e ao trabalho,
e denunciou a educação miserável oferecida às meninas. Alguns jor-
nais que antes se restringiam a dar conselhos sobre a vida doméstica,
trazer receitas e novidades da moda, também passaram a produzir
artigos reivindicando o ensino superior e o trabalho remunerado para
as mulheres (DUARTE, 2003).
Outra jornalista destacada por Duarte (2003) é Josefina Álvares
de Azevedo (1851-1913), que questionou com mais veemência a cons-
trução ideológica do gênero feminino e exigiu mudanças radicais na
sociedade, por meio de seu jornal, A família, o qual também se sobres-
saiu ao lutar em prol da emancipação feminina, ao questionar a tutela
masculina, ao denunciar a opressão em protestos contra o egoísmo
dos homens em não reconhecer o direito da mulher ao ensino superior,
ao divórcio, ao trabalho remunerado e ao voto. Publicou o livro O voto
feminino e o encenou no Teatro Recreio. Josefina Álvares foi, portanto,
uma das pioneiras a defender o direito ao voto feminino e à cidada-
nia. Ela também viajou pelo país, divulgando seu jornal e lançando uma
campanha nacional em favor do sufrágio universal.
Com tantos jornais dirigidos por mulheres surgindo e ganhando
notabilidade, a literatura, o teatro e a imprensa desenvolvida por ho-
mens começaram a se manifestar, ridicularizando e menosprezando
as jornalistas e escritoras, sob a alegação de que seria impossível à
mulher manter um casamento, cuidar dos filhos e exercer qualquer
profissão. A ridicularização era dirigida à reivindicação das mulheres
das camadas sociais alta e média que desejavam se profissionalizar.
Para os homens que faziam tais sátiras, as mulheres deviam dedi-
car-se inteira e exclusivamente ao lar e à família; porém, para as que
eram pobres, não havia empecilhos para se dedicarem ao trabalho nas

165
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

fábricas e nos serviços domésticos nas casas as classes média e alta


(DUARTE, 2003).
Em 1975, surgiu o jornal Brasil mulher, que se tornou o porta-
-voz do Movimento Feminino pela Anistia. Em 1976, nasceu o perió-
dico Nós mulheres, que se declarou feminista e circulou por cerca de
três anos. Os dois jornais foram responsáveis por enfrentar as ques-
tões polêmicas da época, como a anistia, o aborto, a mortalidade ma-
terna, as mulheres na política, o trabalho feminino, a dupla jornada e
a prostituição. Trataram, ainda, da sexualidade, do preconceito racial,
da inserção da mulher no teatro, na literatura e no cinema. A primeira
edição de Nós mulheres foi financiada pela cantora Elis Regina (DU-
ARTE, 2003)
Em 1981, nasceu o jornal Mulherio, em São Paulo, criado por
feministas ligadas à Fundação Carlos Chagas. Suas publicações ga-
nharam importante prestígio nos meios universitários, contando com
mais de três mil assinaturas em sua terceira publicação. As edições
abordavam denúncias de violência, a discriminação contra a mulher
negra, bem como assuntos ligados à política do corpo, à amamenta-
ção, ao trabalho feminino, à vida das operárias e das moradoras de
áreas periféricas. Algumas de suas publicações transformaram-se
em documentos da trajetória da mulher na construção de uma cons-
ciência feminista, sendo esse periódico essencial para a conscientiza-
ção da cidadania e do progresso das conquistas sociais da mulher no
Brasil (DUARTE, 2003).
Entretanto, o movimento da história nunca é linear e não conta
com apenas uma narrativa, mas com múltiplos acontecimentos que
se entrecruzam e coexistem. Por isso ressalta-se que, de acordo com
Amanda Nascimento (2016), em 1959 surge no Brasil a Revista Ma-
nequim, com o intuito de trazer referências de moda da Europa e dis-
cutir as relações femininas no âmbito privado, dando conselhos sobre
relacionamentos, comportamentos, e trazendo dicas de decoração e
receitas culinárias.
Essa revista chegou em um movimento contrário ao que a con-
juntura da época proporcionava, ou melhor, ia ao encontro dos desejos

166
Mulheres e feminismo: história e desafios

masculinos de alocar a mulher no âmbito privado, afastando toda dis-


cussão acerca da emancipação feminina, a qual não existia na reali-
dade propagada pela publicação.

7.4 Análise de discursos das revistas Manequim e Vogue

Para constituir a presente seção, foram analisadas seis edições


dos anos de 1999, 2000 e 2001 da revista Manequim e as edições de
2007 e 2008 da revista Vogue, a fim de encontrar em suas publicações
discursos que compõem as representações sociais da mulher difun-
didas na época para seu público, e que ajudaram a tecer a imagem da
mulher, bem como o papel que lhe era imposto pelo senso comum.
De acordo com Nascimento (2016), a Revista Manequim nasceu
em 1959, organizada por Sylvana Civita, esposa do fundador da Editora
Abril. Sylvana contou que o surgimento da Revista Manequim foi ideia
de seu marido, pois na época não existiam revistas de moda no Brasil. A
Revista Manequim foi lançada no país quando se importavam modelos
de roupas da Europa; depois, na década de 1960 começou a adequar os
modelos ao clima quente brasileiro.
Os exemplares da Manequim analisadas apresentam, como
padrão a ser alcançado e normalizado,39 a figura da mulher branca,
magra, alta, loura de cabelos sem volume e compridos, sem celulite
nem estrias, dona de casa, que cuida sozinha dos filhos e ainda dis-
pende tempo para o cuidado do marido. Isso fica evidente ao anali-
sar o enunciado da capa da revista de dezembro de 1999: “escolha as
roupas, decore a casa, prepare a ceia”, ou quando, em seis edições,
apareceram somente treze mulheres negras, nenhuma delas como
protagonistas da capa da revista. Tais discursos e figuras fomentam

39 Da biopolítica advém o poder disciplinar, que, por meio da criação de saberes legítimos,
produz discursos de verdades sobre as maneiras de viver. Essas disciplinas produzem e
veiculam um discurso que será o da regra; não uma regra jurídica, mas uma regra tida
como “natural”, a qual se torna um código, uma lei da normalização, que define como se
deve viver, como ser; que define a verdade sobre tudo, pois é através dessa norma que
os sujeitos são julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e
destinados a uma certa maneira de viver ou morrer (FOUCAULT, 1979).

167
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

representações sociais de mulheres que não condizem com a reali-


dade do país. O Brasil é composto por 53,6% de pessoas negras, se-
gundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE,
2010). Outro exemplo é a figura escolhida e desenhada para vestir os
moldes de roupas que a revista veicula: branca, magra, alta e loura.
A mulher gorda aparece somente em matérias específicas, nas
quais são utilizadas roupas largas que, na maioria das vezes, enco-
brem o corpo dessas modelos. Quando uma leitora pede sugestão de
roupa para si e diz que é “gordinha” ou “cheinha”, a modelo usada é
sempre magra e alta, e, em algumas vezes, neste mesmo modelo pe-
dido pela leitora, vem uma legenda abaixo da foto afirmando que as
“mais cheinhas devem evitar esse modelo”.
Com muita frequência aparecem frases sugestivas como: “deve
ser evitada pelas mulheres de quadris largos, com pouca cintura e
barriguinha”, “evitado pelas gordinhas”, “perfeito, desde que você não
tenha barriguinha e quadris largos”, “ a única restrição é não ter bar-
riguinha”, “disfarçar barriguinhas e quadris largos”, “quem pode usar:
quadris estreitos ou jovens de temperamento descontraído que es-
tejam em paz com a balança”, “não se aperte, use roupas largas se
você está acima do peso”, “pede barriguinha em forma”, “afinar a si-
lhueta”; “perfeita para disfarçar coxas grossas”. Portanto, é possível
entender que o controle dos corpos das mulheres é sempre abusivo
e excessivo; para elas é um “pecado” ou um “desvio moral” ser gorda
ou ter estrias e celulite, já que os corpos femininos não pertencem às
mulheres, mas aos homens, sejam eles seus pais ou maridos, sejam
eles desconhecidos.
Daniela Brizola (2015) relata que a Vogue foi lançada nos Esta-
dos Unidos da América, em 1892. Em 1909, passou a ser internacional,
ao ser publicada em diversos países. Ela chegou ao Brasil em 1975,
propondo algo novo ao jornalismo de moda. Traduzia o espírito da
época, expendendo trabalho e preocupação com o design gráfico e
com as fotografias. Sua tiragem alcançou 66 mil cópias e, mensal-
mente, 490 mil leitoras. Seu público é composto por 81% das classes
A e B, 78%, mulheres, das quais 56% com idades entre 25 e 54 anos.

168
Mulheres e feminismo: história e desafios

Ao estudar os exemplares da Vogue que constituíram esta pes-


quisa, foi possível encontrar um discurso elitista, o qual apresenta
marcas de diferença de classe entre as leitoras da revista: as repre-
sentações sociais criadas nessa revista são generalistas e negam
as diferenças, o que o feminismo vai questionar posteriormente. Os
discursos veiculados pela Vogue são, por vezes, sutis e, em outras,
explícitos. Um exemplo é a edição de janeiro, em uma matéria sobre
viagens, que falava de como Búzios já foi o “paraíso”, mas quando se
popularizou os “farofeiros” a invadiram; na mesma matéria, a revista
ressalta que Angra do Reis é diferente, pois lá é um lugar em que “só
pode curtir quem tem muito dinheiro”.
As representações sociais da mulher difundidas por essa revis-
ta podem ser sintetizadas pela legenda de uma foto da edição de de-
zembro de 2008, que diz: “Alô, boneca! Deixe a realidade da crise para
a competência masculina e brinque de boneca e de dona de casa”. Tal
discurso pode ser percebido também nas mulheres convidadas para
dar entrevistas à revista, todas brancas e magras, que contam como
é a decoração de suas casas, quais as peças de que mais gostam em
seu guarda-roupa, ou falam sobre algum negócio que abriram com a
ajuda financeira do pai ou do marido.
Ao todo foram encontradas vinte e uma mulheres negras, sen-
do que nenhuma protagonizou uma capa. O controle sobre o corpo
feminino também apareceu nos anúncios de produtos de beleza ou
matérias, como: “tiros contra a flacidez”, “a saída para quem ainda
não está pronta para o biquíni requer fôlego de atleta e disposição de
leão”, “a nova dieta promete perda de até oito quilos por mês”, “existe
um segredo para ter a pele jovem”, “menos rugas e olheiras: seu olhar
mais atraente”. Essas são apenas algumas frases presentes em todas
as seis edições analisadas.

7.5 Análise dos discursos das revistas Marie Claire, Vogue


e Manequim do ano de 2018

A revista Marie Claire, assim como a Vogue, é uma revista de


169
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

circulação internacional que surgiu na França, em 1937, e é publicada


em noventa países atualmente. Veio para o Brasil em 1991, e suas
publicações alcançam 1.069.000 leitoras, 92% delas mulheres, 69%
pertencentes às classes A e B e 65% com faixa etária de 18 a 49 anos
(Denise ARAUJO; Maria Clara BONADIO, 2015; NASCIMENTO, 2016).
Ao analisar as revistas Marie Claire, foi possível encontrar várias
expressões e conceitos advindos do movimento feminista, os quais
são explorados, compõem capas e dão nome às matérias, isto é, o dis-
curso dessa revista é todo permeado e influenciado pelo feminismo.
Como exemplo, a capa do mês de abril, composta por cinco atrizes
declaradas ativistas feministas. O texto em questão utiliza a expres-
são: “o feminismo do futuro”. As matérias tratam de legalização do
aborto, sexualidade e prazer, ejaculação feminina (com passos para
a leitora se masturbar), feminicídio, racismo, transfobia, igualdade de
gêneros, representatividade na política, empoderamento, prostituição,
legalização da maconha, violência doméstica, direitos humanos, falta
de moradias e outros.
Apareceram cento e quarenta e oito mulheres negras em sete
edições, das quais quarenta sete ganharam destaque (protagonizan-
do entrevistas ou citadas em matérias). A revista também destacou
três mulheres plus size, quatro mulheres transexuais, uma mulher in-
dígena e uma modelo acima dos cinquenta anos.
Dessa maneira, com a análise dos discursos da revista, foi pos-
sível encontrar representações sociais que fomentam a ideia de uma
mulher que pode ser branca ou negra, magra ou gorda, jovem ou não,
que trabalha etc. Em outras palavras, discute temas socialmente rele-
vantes, repleto de questões advindas das ondas femininas. Entre to-
das as mudanças, a única que permanece é a ideia de um corpo magro
como padrão; isso é reforçado na escolha das modelos que aparecem
em ensaios de moda, que vestem os modelos; sempre que aparece
uma modelo plus size, sua barriga nunca é evidenciada, e os olhares
são direcionados para seus seios, coxas e glúteos, ou seja, ainda um
olhar fora da realidade e que hiperssexualiza a mulher.
As revistas Vogue de 2018, por sua vez, apresentaram algumas

170
Mulheres e feminismo: história e desafios

diferenças importantes em relação às dos anos anteriores; por exem-


plo, uma modelo negra como protagonista da capa da revista na edi-
ção de junho; a utilização de frases originárias do movimento feminista,
como: “yes, we can”40, alguns artigos que citam a fluidez de gênero na
arte, outros que fazem referência à arte feminista e outros que falam
de amor livre, ativismo, empoderamento, masturbação feminina. Nas
seis edições estudadas apareceram cerca de setenta e uma mulheres
negras, com destaque para vinte e uma (que apareceram em alguma
entrevista ou foram citadas em matérias).
Entretanto, o discurso elitista ainda permanece, embora implí-
cito. Ele pode ser observado na escolha das entrevistadas, em sua
maioria mulheres brancas que estão lançando sua própria marca de
roupa, ou então, as chamadas “fashionistas”, mulheres ricas que fa-
lam de seu vestuário ou, então, como em uma reportagem sobre três
mulheres que mostram seu “bom gosto” na escolha de bolsas, as
quais chegam ao valor de 170 mil reais. Outra questão interessante é
que as expressões e os conceitos derivados dos movimentos feminis-
tas são apenas citados, mas nunca aprofundados e explicados.
O ideal de mulher continua sendo o da mulher branca, magra,
alta, loura, de cabelo liso e rica, sendo que ao todo apareceu somente
uma modelo plus size; os anúncios de produtos de beleza e os edito-
riais das matérias prosseguem com as frases: “beleza: lipo com efeito
tanquinho”, “lifting de bumbum sem cirurgia”, “aparelho que detona
gordura”, “os protocolos prometem remodelação corporal e facial,
com mais colágeno e menos gordura”. Até a área íntima da mulher
tem um ideal a ser seguido; para atingi-lo, são anunciados clareado-
res e até cirurgias plásticas: “rejuvenescimento íntimo”, “cosméticos
para embelezar e clarear vulva, vagina e virilha”, “desodorante para
mascarar o odor”.

40 “Sim, nós podemos”. Essa frase deriva do termo “We Can Do It!” e pode ser traduzi-
da como: “nós podemos fazer isso!”. Foi usada durante a década de 1980, nos Estados
Unidos da América, como slogan do movimento feminista e com o objetivo de divulgar o
feminismo para a população. O “isso” da frase tem o intuito de dizer que as mulheres po-
dem fazer as atividades que, tradicionalmente, são próprias do sexo masculino. Portanto,
a frase questiona as diferenças de gênero e desconstrói a ideia machista de que a mulher
é o sexo frágil (Lisandra SOUZA, 2015).

171
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

Já os exemplares de 2018 da Manequim não mudaram muita


coisa ao longo dos seus mais de dezoito anos. Continuam as legendas
com frases de controle de corpos, como as seguintes: “prefira estampa
listrada na vertical se você estiver um pouco acima do peso”, “deve ser
evitado pelas cheinhas”, “em excelente forma, a atriz pode usar o que
quiser”, “bons aliados para quem está acima do peso”, “a peça favorece
quem tem barriga ou estômago saliente”. Das três edições analisadas
nenhuma era protagonizada por uma mulher negra; as mulheres negras
apareceram apenas sete vezes em outras matérias.

7. 6 Discussão

Ao analisar as revistas dos anos de 1999, 2000, 2001, 2007 e


2008 foi possível perceber discursos que fornecem a representação
social das mulheres como brancas, magras, louras, com cabelos li-
sos, sem estrias e celulites, que se preocupam com suas roupas e
procuram estar bem vestidas; além disso, a maioria é jovem; dona de
casa ou tem algum trabalho relacionado a moda ou decoração; ca-
sadas ou prestes a se casar; com filhos; que dispendem tempo para
cuidar dos afazeres de casa, dos filhos e do marido. Isso foi depreen-
dido das propagandas nas revistas e que falavam sobre alimentos;
materiais de limpeza; utensílios culinários; produtos dietéticos; rou-
pas e brinquedos para crianças; produtos estéticos emagrecedores;
cosméticos antirrugas… Também ainda há seções que abordam as-
suntos como beleza, que falam dos novos cosméticos, os quais, em
sua maioria, prometem uma pele mais jovem; novas modalidades de
exercícios físicos que prometem o emagrecimento rápido e o fortale-
cimento dos glúteos e coxas; dicas de dietas; de maquiagens, sempre
com ênfase no ideal de beleza da mulher. Em outro segmento da re-
vista, encontram-se dicas de comportamento, como: maneiras de a
mulher se comportar em diversos ambientes, de como agradar seu
marido e como deve agradecer aos presentes do aniversário do filho,
de quais roupas deve evitar. A seção de decoração traz dicas sobre
maneiras de manter a casa linda, elegante e limpa, enquanto a seção

172
Mulheres e feminismo: história e desafios

de culinária fala sobre receitas saborosas para a família e que não


engordam a leitora.
A palavra feminismo apareceu somente uma vez na revista Ma-
nequim, em uma propaganda do leite condensado Moça, que dizia que
o feminismo tornou as mulheres chefes de cozinha; também não se
encontraram outros termos que derivem do movimento feminista. Dito
de outra forma, ainda é destinada à mulher a permanência no âmbito
dos afazeres domésticos.
Já as revistas de 2018 apresentam uma mudança significativa
nos discursos que promovem a difusão das representações sociais
da mulher. A figura da mulher não é mais necessariamente branca.
Outros aspectos são adicionados ao chamado “universo feminino”,
como o mercado de trabalho e a sexualidade, questões que, ou eram
tidas como inexistentes, ou eram tratadas de maneira superficial e
estereotipada. Os anúncios de produtos alimentícios e de culinária
aparecem com menor frequência; os anúncios de cosméticos conti-
nuam, mas agora aparecem em uma nova versão, como o anúncio da
empresa de cosméticos Natura, o qual diz: “todo corpo está preparado
para o verão”.
Conceitos provenientes do movimento feminista estão presentes
em todas as edições e trazem novos assuntos para reflexão, como o
aborto, que é mais de quatro vezes discutido na revista Marie Claire. O
tema sobre representatividade e igualdade política apareceu em pelo
menos duas edições da revista. No caso da revista Vogue, mesmo que
os conceitos do feminismo não sejam elucidados, compõem a revista e
permeiam seu discurso. Já a revista Manequim continua a propagar as
mesmas representações sociais de mais de dezoito anos atrás.
Infelizmente, o controle sobre os corpos das mulheres perma-
nece tão intenso como em 1999, no qual a figura de mulher apregoada
como normal pelas revistas é ainda a da mulher delgada. As modelos
escolhidas para vestir as roupas de grife, fazer editoriais de fotos e es-
tampar as capas continuam sendo magras. Quando uma modelo gorda
aparece, é sempre em seções que falam sobre peças de roupas plus
size, não ultrapassando esse universo. Outra questão, é que as modelos

173
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

plus size não representam a mulher gorda brasileira, pois tais modelos
apresentam cintura sem barriga aparente, conseguidas à custa de ci-
rurgias plásticas, ou seja, um modelo irreal. As partes do corpo explora-
das e fotografadas ainda são sempre fartos seios, coxas grossas e um
glúteo volumoso, figura que acaba hiperssexualizando a mulher.
Assim, é possível pensar em como os discursos vindos dos mo-
vimentos feministas, acabam sendo despojados de seus significados,
tornando-se mercadorias dentro do movimento capitalista. Termos
e conceitos provenientes do movimento feminista acabaram tornan-
do-se palavras esvaziadas, como o conceito de empoderamento, que
agora se transformou em tema para a venda de diversos produtos.
Conclui-se assim que, no decorrer do tempo, as revistas ende-
reçadas às mulheres mudaram bastante com relação às dirigidas ao
público feminino do século XIX, embora algumas dessas revistas já
tivessem traços revolucionários e interesse em divulgar o feminismo.
A apropriação das mídias pelo mercado capitalista, como as revistas
aqui estudadas, veicula a apresentação de modelos femininos irreais
às mulheres, a fim de aprisioná-las e subjugá-las, levando-as a não
aceitar seus corpos, principalmente. É possível que tais revistas se
renovem, como é o caso das revistas Marie Claire e da Vogue, que pas-
saram por uma transformação perceptível ao longo dos anos. Mesmo
ainda apregoando modelos femininos distantes da realidade, prin-
cipalmente corpos magros, as revistas femininas deram um grande
passo e podem continuar avançando na propagação de representa-
ções sociais de mulheres reais e na ampliação de temas de discussão,
com problemáticas realmente necessárias para serem discutidas.
As mudanças aqui observadas possibilitam a seu público uma
maior representatividade, ao permitir que outras formas de ser mulher
sejam vistas como possíveis e passem a integrar o múltiplo universo
feminino, lembrando que há diversas maneiras para isso. Essas mo-
dificações afetam também as representações sociais da mulher na
contemporaneidade, ao começar a oferecer ao imaginário social ou-
tros modos femininos de ser.

174
Mulheres e feminismo: história e desafios

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SOBRE AS AUTORAS

Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini


Psicóloga graduada pela Universidade Paranaense – UNIPAR. Espe-
cialista em adolescência pela Pontifícia Universidade Católica, PUC-
-PR. Especialista em Programa Saúde da Família pela Universidade
Gama Filho. Mestre em Ciências da Educação pela UTCD- Py. Mestre
em Psicologia e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho, UNESP-Assis/SP. Doutoranda em Psicologia pela
Universidade Estadual de Maringá, UEM/PR. Docente da graduação
e pós-graduação da Universidade Paranaense/UNIPAR. Organizadora
do livro Família: Psicologia e Direito. Membro do Deverso – Grupo de
pesquisa em sexualidade, saúde e política da Universidade Estadual
de Maringá, UEM. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Femi-
nismo, Saúde Mental e Gênero, da Universidade Estadual de Maringá,
UEM. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2793-1994. Contato: bar-
brunini@prof.unipar.br.

Bianca Valoski
Assessora Técnica das Comissões Parlamentares da Câmara Munici-
pal de São José dos Pinhais e Educadora Popular da Rede Emancipa.
Doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Para-
ná. Membro do Núcleo de Estudos em Economia Social e Demografia
Econômica – NESDE. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6537-5175.
Contato: biancavaloski@gmail.com.
Daniele de Andrade Ferrazza e Hilusca Alves Leite (Org.)

Daniele de Andrade Ferrazza


Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de
Maringá (UEM) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia – PPI/
UEM. Doutora e mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Pau-
lista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Assis/SP). Coordenadora do Grupo
de Estudos e Pesquisas “Feminismo, Saúde Mental e Gênero”. ORCID: ht-
tps://orcid.org/0000-0003-0912-9559. Contato: daferrazza@uem.br.

Deborah Karolina Perez


Docente do Departamento de Psicologia da Universidade de Taubaté
(UNITAU) e do curso de Psicologia do Centro Universitário das Faculda-
des Integradas de Ourinhos (UNIFIO). Doutora e Mestre em Psicologia
pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp-As-
sis). Psicóloga clínica autônoma. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-
4876-0212. Contato: deborahkarolina@yahoo.com.br.

Débora Nicolau de Oliveira


Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário de Ourinhos – UNI-
FIO. Pós-graduada em Avaliação Psicológica e Psicodiagnóstico pelo
Instituto Brasileiro de Formação – UNIBF. Pós-graduada em Geronto-
logia e Saúde Mental pelo Instituto Brasileiro de Formação – UNIBF.
Pós-graduada em Psicologia Infantil pelo Instituto Brasileiro de For-
mação – UNIBF. Psicóloga clínica na Fundação Hospitalar de Saúde
de Ibaiti. ORCID: https://orcid.org/0000-0001 - 9369-1223. Contato:
nicolaudeb@gmail.com

Hilusca Alves Leite


Psicóloga e mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Marin-
gá. Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo no programa
de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Atualmente é do-
cente no Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Ma-
ringá. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-8954-4252. Contato: hilusca.
leite@yahoo.com.br
180
Mulheres e feminismo: história e desafios

Mariana Frediani Sant’Ana


Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Uni-
versidade Estadual de Maringá, PPI/UEM; Especialista em Atenção
Integral à Saúde Mental – UEM. Integrante do Grupo de Estudos e
Pesquisas “Feminismo, Saúde Mental e Gênero”. Profissional de Saú-
de Mental do SUS desde 2016. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-
1558-0215. Contato: marianafs.psico@gmail.com.

Nataly Batista de Jesus


Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Univer-
sidade Estadual de Maringá - PPI/UEM. Psicóloga pela Universidade
Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS/Paranaíba. Militante da Liga In-
ternacional dos Trabalhadores - LIT-QI. ORCID: https://orcid.org/0000-
0001-5447-3258. Contato: nataly.bj@hotmail.com.

Tamires Lombardi Mezzon


Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia – PPI/UEM.
Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Psicóloga clínica pela abordagem da Psicologia Histórico-Cultural. OR-
CID: https://orcid.org/0000-0002-6628-238. Contato: p.tamireslom-
bardi@gmail.com.

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Daniele de Andrade Ferrazza
é docente do Departamento
de Psicologia da Universida-
de Estadual de Maringá
(UEM) e do Programa de
Pós-Graduação em Psicolo-
gia – PPI/UEM. Doutora e
mestre em Psicologia pela
Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita
Filho (UNESP-Assis/SP).
Coordenadora do Grupo de
Estudos e Pesquisas “Femi-
nismo, Saúde Mental e
Gênero”.

Hilusca Alves Leite


é psicóloga e mestre em
psicologia pela Universidade
Estadual de Maringá (UEM).
Doutora em psicologia pela
Universidade de São Paulo.
Atualmente atua como
docente no Departamento de
Psicologia da UEM.
Pensando na amplitude das pautas feministas no século XXI e
também na visibilidade que esta tem ganhado, elaboramos
este material diversificado que explora temáticas variadas
dentro das discussões que afetam este campo de luta. Nossa
intenção é chamar a atenção para a centralidade do debate a
respeito da existência/resistência feminina ao longo da histó-
ria se pretendemos construir algo diferente e melhor do que
temos feito até o momento. Se este trabalho colaborar para
que tenhamos mais unidade na luta, seguramente terá cum-
prido seu propósito.

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