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CONSTITUCIONALISMO

feminista
Expressão das políticas públicas
voltadas à igualdade de gênero
ORGANIZAÇÃO C O O RDE NAÇÃO
Bruna Nowak Christine Oliveira Peter da Silva
Estefânia Maria de Queiroz Barboza
Melina Girardi Fachin

AUTORES
ALESSANDRA GOTTI • AMÉLIA SAMPAIO ROSSI • ANA CARLA HARMATIUK MATOS • CAROLINA FREITAS GOMIDE
• CHRISTINE OLIVEIRA PETER DA SILVA • DESDÊMONA TENÓRIO DE BRITO TOLEDO ARRUDA
• ERIKA CARVALHO FERREIRA • FERNANDA DE CARVALHO LAGE • HELOISA FERNANDES CÂMARA
• HUMBERTO SIERRA OLIVIERI • LAURA CLÉRICO • LÍGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA • LILIANA RONCONI
• MARÍA DE LOS ÁNGELES RAMALLO • MARIA ELIZABETH GUIMARÃES TEIXEIRA ROCHA • MARÍA LUISA
RODRÍGUEZ PEÑARANDA • MARIE-CHRISTINE FUCHS • MELINA GIRARDI FACHIN • NICOLE GONDIM PORCARO
• PATRÍCIA PACHECO RODRIGUES • POLIANNA PEREIRA DOS SANTOS • ROBERTA CAMINEIRO BAGGIO
• SAMANTHA RIBEIRO MEYER-PFLUG MARQUES • SARAH F. M. WEIMER • VITÓRIA PEREIRA ROSA

CONSTITUCIONALISMO
feminista
Expressão das políticas públicas
voltadas à igualdade de gênero

PR E FÁCI O
Dra. Marie Christine Fuchs


edição

2020
Rua Território Rio Branco, 87 – Pituba – CEP: 41830-530 – Salvador – Bahia
Tel: (71) 3045.9051
• Contato: https://www.editorajuspodivm.com.br/sac

Copyright: Edições JusPODIVM

Conselho Editorial: Eduardo Viana Portela Neves, Dirley da Cunha Jr., Leonardo de Medeiros Garcia, Fredie Didier
Jr., José Henrique Mouta, José Marcelo Vigliar, Marcos Ehrhardt Júnior, Nestor Távora, Robério Nunes Filho, Roberval
Rocha Ferreira Filho, Rodolfo Pamplona Filho, Rodrigo Reis Mazzei e Rogério Sanches Cunha.

Capa: Ana Caquetti

Diagramação: Cendi Coelho (cendicoelho@gmail.com)

Todos os direitos desta edição reservados à Edições JusPODIVM.


É terminantemente proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou processo, sem a
expressa autorização do autor e da Edições JusPODIVM. A violação dos direitos autorais caracteriza crime descrito
na legislação em vigor, sem prejuízo das sanções civis cabíveis.
PREFACIO
Perspectiva de gênero:
um desafio necessário e urgente para
a Consolidação do Estado de direito nas Américas

A partir da visão do Programa Estado de direito para a América La-


tina da Fundação Konrad Adenauer tenho orgulho de introduzir o se-
gundo tomo sobre Constitucionalismo Feminista que reflete e aprofunda
sobre o tema de gênero desde o olhar constitucional. Em primeiro lugar,
gostaria de felicitar as editoras desta obra por seu excelente trabalho e
seu compromisso com esta temática que é de vital importância para o
futuro igualitário na América Latina.
Historicamente, mulheres e homens não têm usufruído dos mesmos
direitos. É suficiente referir-se à Declaração da Independência dos Esta-
dos Unidos da América de 1776 e à Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão de 1789, as quais se omitem em fazer referência às mulheres
e destacam os direitos, no primeiro caso, de homens anglo-saxões de
pele branca, protestantes e burgueses; e no segundo caso, de homens
burgueses que incluíam o clero e a nobreza.
Em reação a isso, lembramos a luta da ativista francesa Olympe de
Gouges, que no ano de 1791 promoveu a não reconhecida Declaração
dos Direitos da Mulher e da Cidadania, onde reforçou que a mulher nas-
ce livre e permanece igual ao homem em direitos. Assim como aqueles
acontecimentos posteriores, entre eles, as manifestações de mulheres
trabalhadoras em Nova York no ano de 1857, e a lamentável morte de
146 trabalhadoras depois do incêndio na fábrica Triangle Shirtwaist em
Nova York, no dia 25 de março de 1911, as quais lutavam por melhores
condições de trabalho.
+++
Esta desigualdade histórica e estrutural persiste até a atualidade.
Vê-se refletida desde a diferença de tratamento entre mulheres e ho-
mens no acesso a serviços básicos, trabalho formal, segurança cidadã, e
até na própria estrutura e formação do direito. Soma-se a isso a diferen-
ça de tratamento para com as mulheres por sua condição social, econô-
mica, étnica, entre outras.

5
CONSTITUCIONALISMO FEMINISTA

O Observatório de Igualdade de Gênero da América Latina e do Ca-


ribe da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL)
identificou que a proporção do trabalho remunerado de mulheres na
América Latina é menor em relação a dos homens. Tanto é assim que,
no ano de 2017, no Brasil, os homens que desenvolviam trabalho re-
munerado representavam 28,6%, diferentemente das mulheres que só
alcançavam 16,8%. Por outro lado, na Guatemala a desproporção é ain-
da maior, pois as mulheres que desenvolvem um trabalho remunerado
representam somente 15,9% em relação aos homens que são 43,1%.
Da mesma forma, durante este ano, a CEPAL, identificou que na atu-
alidade nas Américas e no Caribe, somente 29,5% dos representantes
dos legislativos locais são mulheres. Também, por meio de pesquisas
realizadas entre os anos de 2013 e 2016, a CEPAL reconheceu que a por-
centagem de mulheres com acesso à internet na Bolívia, Colômbia, Chile,
Costa Rica, Equador, El Salvador, México, Peru e Uruguai é menor em
relação ao acesso que tem os homens.
Levando em consideração esta realidade de desigualdade entre mu-
lheres e homens que ainda persistem em nossas realidades, é necessário
refletir sobre os desafios de como combater tais diferenças de tratamento.
À parte de uma mudança profunda e tão necessária de uma cultura ainda
machista neste continente, desde a perspectiva do direito, tudo começa e
termina com o fortalecimento do Estado de direito, como um princípio de
governo democrático que é fundamental para quebrar essa desigualdade
de gênero. Neste sentido, podemos depreender de políticas públicas e leis,
incluindo nossos textos constitucionais. E é necessário assegurar que es-
tas leis, inclusive as constitucionais, sejam cumpridas.
À parte do requisito imprescindível de contar com constituições que
permitem a proteção especial de grupos cujos direitos historicamente
tem sido violados, em um Estado de Direito todos os atores da socieda-
de, no que estão incluídas as pessoas, instituições, entidades públicas e
privadas e o Estado, estão submetidas às leis que devem ser cumpridas
de forma igual para todas e todos. Desta maneira, a igualdade e não a
discriminação entre mulheres e homens constituem pilares fundamen-
tais, no que todas as normas, que formam parte do seu ordenamento ju-
rídico interno, devem ser justas e eficientes e responder às necessidades
de ambos os gêneros.
Para conseguir tal igualdade de gênero o marco normativo vigen-
te deve ser acompanhado pela adoção de determinadas ações em nível
estatal que incorporem uma perspectiva de gênero. A inclusão de tal

6
PREFACIO

perspectiva nas políticas públicas implica considerá-las preocupações


tanto de mulheres como de homens na elaboração, aplicação, supervi-
são e avaliação das políticas e programas públicos em todas as esferas
políticas, econômicas e sociais. Considerar tal perspectiva, nos ajudará a
conhecer o impacto diferenciado que estas políticas públicas terão para
mulheres e homens, e evitar situações de discriminação em sua elabo-
ração e execução.
A respeito, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
em seu relatório recente sobre “Políticas Públicas com enfoque de di-
reitos humanos” tem sido enfática ao assinalar que as políticas públicas
devem incorporar uma perspectiva de gênero, considerando a discrimi-
nação histórica e os estereótipos de gênero que tem afetado às mulhe-
res, meninas e adolescentes.
Isso implica a que, no marco de um Estado de direito, se reconheça
que tais políticas públicas devem garantir o pleno respeito e garantia
dos direitos humanos, com o qual se garante a segurança das mulheres,
a proteção de seus direitos e alcançar uma paz equitativa. Ao não o fazer
trairia como consequência um impacto discriminatório contra as mulhe-
res, o mesmo que também é considerado um ato de violência de gênero.
Para conseguir superar os desafios de equidade de gênero em um
Estado democrático de direito, é necessário contar com instituições pú-
blicas suficientemente sólidas para criar ou modificar estas políticas
públicas ou leis. Do contrário, sem sombra de dúvidas, estaria a porta
aberta à impunidade e a aplicação desigual da lei.
Do mesmo modo, buscamos juízas e juízes em nossas sociedades
consentidos da perspectiva de gênero na aplicação do direito e do im-
pacto diferenciado que pode ter a lei e a execução da mesma diante de
mulheres e homens. Precisamos procuradores que entendam que um
crime cometido contra uma mulher por sua condição de ser mulher me-
rece uma persecução especial e preferencial para combater a violência
de gênero de maneira efetiva.
E finalmente, precisamos modelos, políticos tanto de juízes mulhe-
res, assim como de homens, que vivem e representam esta perspectiva
em seu dia a dia de trabalho chegando inclusive ao âmbito pessoal.
***
Por outro lado, um desafio ainda maior, mas essencial em sua su-
peração, é a implementação das leis e o cumprimento das sentenças a

7
CONSTITUCIONALISMO FEMINISTA

partir de uma perspectiva de gênero. Leis que foram forjadas desde a


gênesis da elaboração das cartas constitucionais, que são o cimento de
um conjunto de andaimes jurídicos dos países latino-americanos.
Diante desta situação, o constitucionalismo feminista se conver-
te em um aliado importante para fortalecer o Estado de direito, ao ter
como finalidade aproximar o direito à realidade social congregando e in-
teragindo com as necessidades daqueles que formam a metade da popu-
lação historicamente excluída. Da mesma maneira, rompe estereótipos
de gênero no mundo jurídico e permite reconhecer a individualidade e
igualdade da mulher a partir dos textos legais.
Com isso, o constitucionalismo feminista busca que tais relações de
gênero não sejam somente superadas, senão que também coexista uma
convivência pacífica entre mulheres e homens em uma sociedade em de-
mocracia. Um texto constitucional que ignora e não menciona a metade
da população, que não reflete a sociedade que pretende organizar e or-
denar, dificilmente poderá alcançar eficácia.
***
Desta maneira, o segundo volume deste livro “Constitucionalismo
Feminista”, que congrega a contribuição de importantes acadêmicas jus-
publicistas de todo o continente, constitui uma peça sumamente valio-
sa para o fortalecimento do Estado constitucional de direito em nossa
região latino-americana. Aplicar o enfoque de gênero no direito e nas
políticas públicas é chave para romper desigualdades historicamente
herdadas, além de que com segurança dará uma voz aquelas que duran-
te séculos não foram escutadas.
Uma vez mais gostaria de felicitar as e os autores e as editoras desta
maravilhosa obra. Como Diretora do Programa Estado de direito para
América Latina da Fundação Konrad Adenauer e na qualidade de mulher
trabalhando na América Latina me sinto muito orgulhosa de ter a possi-
bilidade de poder apoiar e participar neste tipo de iniciativas. Nos meus
mais de três anos de trabalho na região experimentei e constatei que
ainda existem muitos estereótipos tradicionais, também no mundo dos
advogados e que as vezes requer legitimidade e força para conseguir ser
escutada e reconhecida no âmbito profissional na região. Por consequ-
ência, para mim é de especial importância e um profundo desejo poder
fazer uma humilde contribuição para que o trabalho de tantas mulheres
inteligentes e valentes na região seja promovido e valorizado tal como
elas merecem.

8
Esperamos que a presente obra possa abrir espaços de debate entre
todos os atores sociais, não somente entre as mulheres, para alcançar
mudanças estruturais nas nossas leis, na execução das mesmas e des-
ta maneira nas sociedades para assegurar assim o respeito irrestrito da
dignidade de mulheres e homens. Esperamos então que a América La-
tina das futuras gerações seja um lugar mais igualitário, um lugar no
qual as vozes de todas e todas sejam escutadas de maneira igual e com
o mesmo volume.
Dra. Marie Christine Fuchs
Diretora do Programa Estado de direito
para América Latina -
Fundação Konrad Adenauer

9
SUMÁRIO

PREFACIO............................................................................................................... 5
Perspectiva de gênero: um desafio necessário e urgente
para a Consolidação do Estado de direito nas Américas............................................... 5

1
CONSTITUCIONALISTAS CONSTITUINTES:
UMA AGENDA PARA O BRASIL.............................................................................. 17
Christine Oliveira Peter da Silva
e Carolina Freitas Gomide
1. Introito.................................................................................................................. 17
2. Uma teoria da Constituição ‘de’ e ‘para’ Mulheres.............................................. 20
3. Mulheres Constituintes........................................................................................ 24
3.1 Mulheres e o constitucionalismo brasileiro................................................ 24
3.2. Mulheres no processo constituinte de 1987/1988........................ 28
3.2.1. Processo constituinte: Comissões e Subcomissões........................ 28
3.2.2. As Constituintes: quem eram?...................................................... 30
3.2.2.1. Abigail Feitosa................................................................ 30
3.2.2.2. Anna Maria Rattes......................................................... 31
3.2.2.3. Benedita da Silva............................................................ 31
3.2.2.4. Bete Mendes.................................................................. 32
3.2.2.5. Beth Azize...................................................................... 32
3.2.2.6. Cristina Tavares.............................................................. 33
3.2.2.7. Dirce Tutu Quadros........................................................ 34
3.2.2.8. Eunice Michiles.............................................................. 34
3.2.2.9. Irma Passoni................................................................... 35
3.2.2.10. Lídice Da Mata............................................................... 35
3.2.2.11. Lúcia Braga..................................................................... 36
3.2.2.12. Lúcia Vânia..................................................................... 37
3.2.2.13. Márcia Kubitschek.......................................................... 37
3.2.2.14. Maria de Lourdes Abadia............................................... 38
3.2.2.15. Maria Lúcia.................................................................... 38
3.2.2.16. Marluce Pinto................................................................. 39
3.2.2.17. Moema São Thiago........................................................ 39

11
CONSTITUCIONALISMO FEMINISTA

3.2.2.18. Myriam Portella............................................................. 39


3.2.2.19. Raquel Cândido.............................................................. 40
3.2.2.20. Raquel Capiberibe.......................................................... 40
3.2.2.21. Rita Camata.................................................................... 41
3.2.2.22. Rita Furtado................................................................... 41
3.2.2.23. Rose de Freitas............................................................... 42
3.2.2.24. Sadie Hauache............................................................... 43
3.2.2.25. Sandra Cavalcanti........................................................... 43
3.2.2.26. Wilma Maia.................................................................... 44
4. Constituintes Difusas: decisões constitucionais ‘de’ e ‘para’ mulheres................ 44
5. Considerações finais............................................................................................. 52
6. Referências Bibliográficas..................................................................................... 54

2
CULTURA DA IGUALDADE DE GÊNERO NO BRASIL – UMA LEITURA A PARTIR
DE RAEWYN CONNELL........................................................................................... 57
Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda
1. Introdução............................................................................................................ 57
2. Igualdade de gênero: formal e material............................................................... 58
3. Construção da cultura da igualdade de gênero: uma tarefa
de homens e mulheres......................................................................................... 62
4. Razões para a mudança........................................................................................ 74
5. Conclusões............................................................................................................ 76
6. Referências Bibliográficas..................................................................................... 77

3
QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO............................. 79
Heloisa Fernandes Câmara
1. Democracia liberal e seu declínio......................................................................... 80
2. Autoritarismos e gênero....................................................................................... 85
3. Brasil e o retrocesso às pautas feministas e de diversidade................................. 94
4. Considerações Finais............................................................................................ 100
5. Referências .......................................................................................................... 101

4
DERECHO CONSTITUCIONAL Y DERECHOS HUMANOS: HACIENDO
MANEJABLE EL ANÁLISIS DE ESTEREOTIPOS........................................................ 107
Laura Clérico
1. Introducción......................................................................................................... 107

12
PREFACIO

2. Sobre los estereotipos.......................................................................................... 112


3. Sobre el análisis de estereotipos.......................................................................... 115
4. Caminos para detectar estereotipos..................................................................... 119
5. Consideraciones finales........................................................................................ 135
6. Referencias bibliográficas .................................................................................... 137

5
GÉNERO Y DERECHO PÚBLICO LOCAL.
UN ANÁLISIS DE LA SITUACIÓN EN ARGENTINA.................................................. 141
María de los Ángeles Ramallo
y Liliana Ronconi
1. Introducción......................................................................................................... 141
2. El derecho público con perspectiva de género..................................................... 143
3. El derecho público local con perspectiva de género............................................. 146
4. Análisis de cuestiones de derecho público local................................................... 148
5. A modo de cierre.................................................................................................. 164
6. Referencias bibliográficas .................................................................................... 165

6
CONSTITUCIONALISMO E GÊNERO
EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL.................................................................... 169
Amélia Sampaio Rossi
e Erika Carvalho Ferreira
1. Introdução............................................................................................................ 169
2. Modernidade, Colonialidade e Direitos................................................................ 170
3. Gênero e Colonialidade........................................................................................ 178
4. Constitucionalismo, gênero e colonialidade......................................................... 183
5. Considerações finais............................................................................................. 189
6. Referências bibliográficas .................................................................................... 190

7
MULHER E PODER NO BRASIL .............................................................................. 193
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marques
e Patrícia Pacheco Rodrigues
1. Introdução............................................................................................................ 193
2. O princípio da igualdade na Constituição de 1988............................................... 195
3. Igualdade entre homens e mulheres.................................................................... 196
4. Considerações finais ............................................................................................ 211
5. Referências bibliográficas .................................................................................... 213

13
CONSTITUCIONALISMO FEMINISTA

8
A MULHER E O PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL.................................................... 215
Fernanda de Carvalho Lage
e Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha
1. Introdução............................................................................................................ 215
2. A inserção da mulher no mundo do trabalho....................................................... 218
3. Teorias feministas e a busca pela igualdade de gênero........................................ 220
4. A realidade da presença das mulheres nos Tribunais no Brasil............................ 227
5. A mulher na magistratura Militar......................................................................... 229
6. Uma proposta para ampliar o número de desembargadoras e ministras............ 231
7. Considerações finais............................................................................................. 234
8. Referências........................................................................................................... 236

9
EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA....................... 239
María Luisa Rodríguez Peñaranda
1. Introducción......................................................................................................... 239
2. El andamiaje del debido proceso y la igualdad ante la ley................................ 242
3. Debido proceso con enfoque de género.............................................................. 247
3.1. El Principio de debida diligencia................................................................. 256
3.2. La garantía de un recurso judicial efectivo................................................. 258
3.3. Obligación de investigar.............................................................................. 259
3.4. Obligación de juzgar, castigar y reparar...................................................... 259
4. El método feminista del posicionamiento de Bartlett.......................................... 261
5. Conclusión............................................................................................................ 265
6. Bibliografía............................................................................................................ 266

10
EL PAPEL DE LA JURISPRUDENCIA CONSTITUCIONAL
EN LA PROMOCIÓN DE LA TEMÁTICA DE “GÉNERO” EN LATINOAMÉRICA.
REFLEXIONES INÍCIALES CON ÉNFASIS EN LA JURISPRUDENCIA
DE LA CORTE CONSTITUCIONAL COLOMBIANA................................................... 269
Marie-Christine Fuchs
y Humberto Sierra Olivieri
1. Introducción......................................................................................................... 269
2. Tipificación de la jurisprudencia constitucional respecto
al tema de “género”............................................................................................. 273
3. Conclusión y análisis final..................................................................................... 279
4. Bibliografía............................................................................................................ 281

14
PREFACIO

11
A IMPORTÂNCIA DA IGUALDADE DE GÊNERO E DOS INSTRUMENTOS
PARA A SUA EFETIVAÇÃO NA DEMOCRACIA: ANÁLISE SOBRE
O FINANCIAMENTO E REPRESENTAÇÃO FEMININA NO BRASIL..................................... 285
Polianna Pereira dos Santos
e Nicole Gondim Porcaro
1. Introdução............................................................................................................ 285
2. Democracia e questões de gênero....................................................................... 288
3. Democracia de gênero no ordenamento jurídico brasileiro................................. 293
4. A política de cotas na legislação eleitoral brasileira............................................. 296
5. Financiamento de campanha............................................................................... 299
7. Democracia de gênero e os instrumentos para sua implementação.................... 302
8. Referências bibliográficas..................................................................................... 303

12
DIREITO À EDUCAÇÃO DAS MULHERES................................................................ 307
Alessandra Gotti
1. Uma breve retrospectiva da concepção contemporânea
dos direitos humanos .......................................................................................... 308
2. O direito à educação à luz do direito internacional ............................................. 311
3. O direito à educação e a igualdade de gênero à luz
da Constituição de 1988....................................................................................... 316
4. O direito à educação das mulheres e seus desafios ............................................ 318
5. Conclusões............................................................................................................ 327
6. Referências bibliográficas .................................................................................... 328

13
O LEGADO DE MALALA NO BRASIL ATUAL:
O CENÁRIO DO DIREITO À EDUCAÇÃO DAS MENINAS
E MULHERES A PARTIR DO CONSTITUCIONALISMO FEMINISTA.......................... 329
Melina Girardi Fachin
e Vitória Pereira Rosa
1. Introdução............................................................................................................ 329
2. Constitucionalismo feminista e a construção histórica dos direitos
das mulheres na Constituição de 1988................................................................. 333
3. Educação como direito humano e movimentos pela escolaridade feminina....... 338
4. Conclusões............................................................................................................ 348
5. Referências........................................................................................................... 349

15
CONSTITUCIONALISMO FEMINISTA

14
A EQUIDADE DE GÊNERO NO PROGRAMA
CONSTITUCIONAL DAS RELAÇÕES FAMILIARES.................................................... 353
Ana Carla Harmatiuk Matos
e Lígia Ziggiotti de Oliveira
1. Introdução............................................................................................................ 353
2. Atmosfera constituinte, movimentos sociais de mulheres
e os direitos das famílias....................................................................................... 354
3. Igualdade de gênero em famílias conjugais e parentais....................................... 357
4. A relevância da previsão constitucional da união estável..................................... 359
5. A relevância da previsão constitucional da monoparentalidade.......................... 361
6. Entidades familiares constitucionalizadas: um movimento de interpretação
contínua................................................................................................................ 364
6. Proteção constitucional da criança, do adolescente e da pessoa idosa:
propostas a partir da igualdade de gênero........................................................... 367
7. Conclusão............................................................................................................. 368
8. Referências bibliográficas..................................................................................... 369

15
CIDADÃS DE SEGUNDA CLASSE:
AS LUTAS POR RECONHECIMENTO
DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS NO BRASIL................................................. 371
Roberta Camineiro Baggio
e Sarah F. M. Weimer
1. Considerações iniciais........................................................................................... 371
2. Formações constitucionais a serviço da (manutenção da)
ordem na América Latina..................................................................................... 373
2.1. Os (des)caminhos do constitucionalismo no Brasil: breves notas ............. 375
2.2. A narrativa constitucional de 1988: sobre sujeitos e cidadãos................... 377
3. A luta pelo direito a ter direitos............................................................................ 381
3.1. Serviço doméstico: que cara tem?.............................................................. 381
3.2. Os percursos legislativos............................................................................. 384
4. Integração social e igualdade legislativa: por que as lutas
por reconhecimento devem continuar para as trabalhadoras domésticas?........ 388
4.1. A Sociologia do Reconhecimento de Axel Honneth.................................... 388
4.2. O (não) reconhecimento das trabalhadoras domésticas
sob o prisma da solidariedade.................................................................... 391
5. Considerações finais............................................................................................. 393
6. Referências........................................................................................................... 394

16
1

CONSTITUCIONALISTAS
CONSTITUINTES: UMA AGENDA
PARA O BRASIL
Christine Oliveira Peter da Silva1
e Carolina Freitas Gomide2

Sumário: 1. Introito; 2. Uma teoria da Constituição ‘de’ e ‘para’ Mulheres;


3. Mulheres Constituintes; 3.1 Mulheres e o constitucionalismo brasileiro;
3.2. Mulheres no processo constituinte de 1987/1988; 3.2.1. Processo
constituinte: Comissões e Subcomissões; 3.2.2. As Constituintes: quem eram?;
4. Constituintes Difusas: decisões constitucionais ‘de’ e ‘para’ mulheres; 5.
Considerações finais; 6. Referências Bibliográficas.

1. INTROITO

A busca pelas mulheres no constitucionalismo tem nos conduzido


para tempos e lugares inusitados e, a maioria das vezes, muito interes-
santes: desde a França do século XV, com Christine de Pizan3, até Israel,

1. Doutora e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB; Professora Associada do Mes-
trado e Doutorado em Direito das Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília
(UniCeub); Pesquisadora do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais ICPD/UniCeub; As-
sessora de Ministro do Supremo Tribunal Federal.
2. Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub); Discente pesquisa-
dora do Núcleo de Estudos Constitucionais (NEC/UniCeub).
3. PIZAN, Christine. La Cités des Dames. Texte traduit et presenté par Therese Moreau et Eric
Hicks. 4. ed. Paris: Stock, 2000. Vide também: CALADO, Luciana Eleonoura de Freitas. A cidade
das damas: a construção da memória feminina no imaginário utópico de Christine de Pizan.
371 f. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) – Universidade Federal de Pernambuco, Re-
cife, 2006.

17
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

de nossos dias, com Daphne Barak-Erez4, encontramos mulheres que se


aproximam entre si pela disponibilidade de ser, estar e pensar como mu-
lheres.
As pesquisas do constitucionalismo feminista, no âmbito da episte-
mologia e da teoria constitucionais, tanto quanto na seara da metodolo-
gia e da dogmática constitucionais, estão nos surpreendendo em todas
as suas etapas, pois, quando começamos a empreitada, jamais imaginá-
vamos a riqueza do que ficou escondido, nestes mais de cinco séculos de
invisibilidade das mulheres no cenário e história do constitucionalismo
mundial.
A expressão constitucionalismo feminista tem sido usada tanto no
Brasil5, quanto em outros países6, por autoras que defendem a perspec-
tiva de gênero como um método integral que indica e dá destaque para
aspectos que o Direito Constitucional Contemporâneo sombreia; exclui;
e, em situações-limite,até marginaliza. Trata-se, portanto, de uma postu-
ra hermenêutica do constitucionalismo inclusivo, ou seja, de um modo
de lidar com os problemas jurídico-constitucionais a partir de uma visão
plural, aberta e tolerante, a qual tem como vetor axiológico a igualdade
como respeito à diferença.
A reflexão que será trazida, neste trabalho, tem sido construída a
partir de um olhar epistêmico que relaciona feminismo e constitucio-
nalismo, ambos vetoriados pela onda humanista, terceira dimensão dos
direitos fundamentais. O objetivo é apresentar uma narrativa dos encon-
tros e desencontros desses movimentos, tanto no plano teórico quanto
prático, tendo como contexto de análise, para os objetivos aqui perse-
guidos, a experiência constituinte e constitucional brasileira de 1988 até
nossos dias.

4. BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist Constitutionalism: Global


Perspectives. New York : Cambridge University Press, 2012.
5. Por todas vide: SILVA, Cristina Telles de Araújo. Por um constitucionalismo feminista: reflexões
sobre o direito à igualdade de gênero. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Es-
tadual do Rio de Janeiro , Rio de Janeiro, 2016.
6. Consulte-se o trabalho de MONTAÑEZ, Nilda Garay. Constitucionalismo feminista: evolución
de los derechos fundamentales en el constitucionalismo oficial. En: Igualdad y democracia:
el género como categoría de análisis jurídico. Estudios en homenaje a la profesora Julia Sevi-
lia Merino. Espanã: Corts Valenciales, 2014. Disponível em: <https://rua.ua.es/dspace/bits-
tream/10045/42723/1/2014_Garay_Constitucionalismo-feminista.pdf>. Aceso en: 17 set.
2019. Aqui também vale compulsar: BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi.
Feminist Constitutionalism: Global Perspectives. New York: Cambridge University Press, 2012.

18
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

É premissa da pesquisa que constitucionalismo e feminismo são


movimentos que se alimentam das mesmas fontes históricas e culturais,
bem como de que tais movimentos são desafiados pelos mesmos inter-
locutores e argumentos. Muito embora a pauta do constitucionalismo
humanista seja naturalmente mais abrangente do que a pauta feminista,
em termos mais estreitos de pontuação histórica, a luta desses movi-
mentos, nos últimos dois séculos, atesta muito mais interseções do que
oposições, muito mais perpendiculares do que paralelos.7
Considerando que uma das evidentes contribuições do femi-
nismo emerge da ação de denunciar a insuficiência dos paradigmas
contemporâneos,explicando que tal insuficiência decorre das exclusões
e clivagens do patriarcado, que pretende colocar o homem branco, cis-
gênero e heterossexual como referência de universalidade, é urgente
a conscientização dos cidadãos e cidadãs de que a igualdade somente
poderá ser uma realidade, como categoria constitucional, diante da ex-
periência do reconhecimento dos outros como livres, diferentes e igual-
mente merecedores de respeito e consideração.
Está-se a falar, pois, do feminismo como movimento que estimula o
contraditório, como necessidade mais visível da reivindicação por igual-
dade entre homens e mulheres, igualdade esta que, na complexa tessi-
tura das relações sociais, postula por tratamentos diferenciados e iso-
nômicos, bem como pela valorização de especificidades inexoráveis de
cada ser, cada um em suas respectivas realidades. Igualdade e diferença,
nesse contexto, clamam pela mesma ação, qual seja, o respeito. Respeito
à igualdade como medida intrínseca do respeito à diferença.8
Nesse contexto, o objetivo central do presente trabalho é apresen-
tar a agenda brasileira do constitucionalismo feminista, ou seja, anali-
sar quem foram e quem são as mulheres envolvidas e comprometidas
com suas histórias, suas participações e seus registros no constitucio-
nalismo democrático experimentado no Brasil, especialmente, a partir
e após 1988.

7. Tal premissa também pode ser encontrada em: SILVA, Christine Oliveira Peter da. Substanti-
vo feminino: Constituição significa mulheres no poder. Revista Eletrônica Consultor Jurídico,
24 jun. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jun-24/observatorio-cons-
titucional-substantivo-feminino-constituicao-significa-mulheres-poder>. Acesso em: 10 set.
2019.
8. Ideia semelhante pode ser encontrada em: JELIN, Elizabeth. Os direitos humanos. Que Direi-
tos? De quem? Mulheres e Direitos humanos. Estudos Feministas, v. 117, n. 01/94, p. 125.

19
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

Para que se alcance tal desiderato, optou-se pela metodologia de re-


visão bibliográfica e consulta a documentos históricos, a maioria deles
disponível na rede virtual, e das decisões constitucionais, especialmente
aquelas do acervo do Supremo Tribunal Federal. Não se pode deixar de
mencionar também, a inafastável presença da hermenêutica feminista,
como eixo metodológico de compreensão e interpretação do Direito e
da Constituição, que consiste em: identificar e desafiar os elementos da
dogmática jurídica que discriminam por gênero, raciocinar a partir de
um referencial teórico segundo o qual as normas jurídicas e constitu-
cionais são respostas pragmáticas para dilemas concretos das mulheres
reais, e, não, escolhas estáticas entre sujeitos opostos ou pensamentos
divergentes.
Assim sendo, o presente trabalho será composto por três partes: na
primeira, tem-se o esboço de uma teoria feminina da Constituição; na
segunda, vai-se apresentar a história do constitucionalismo na visão das
mulheres constituintes; por fim, a terceira parte compõe-se de uma nar-
rativa, ainda que incompleta, sobre o trabalho das constitucionalistas
que, há trinta anos, em número muito reduzido, e com pouca visibilida-
de, seguem constituindo a Constituição brasileira de 1988.

2. UMA TEORIA DA CONSTITUIÇÃO ‘DE’ E ‘PARA’ MULHERES


A pergunta feita por Donna Greschner é intrigante e, ao mesmo tem-
po, preocupante: ‘as Constituições também são feitas para as mulheres?’9
A resposta afirmativa, automática e solene,vai ficando cada vez mais
esmaecida,à medida em que a comparação constitucional anuncia os da-
dos acerca da participação das mulheres nos processos constituintes,
nos parlamentos nacionais e nas supremas cortes dos diversos países.10
É preciso conscientizar-se de que a Constituição que nós temos de-
pende da Constituição que constituímos, da Constituição que fazemos e
da Constituição que somos.11Tal assertiva interpela ativistas, advogadas,

9. GRESCHNER, Donna. Can Constitutions be for Women too? In: CURRIE, Dawn Currie; MA-
CLEAN, B. (Ed.). The Administration of Justice. Saskatoon: University of Saskatchewan Social
Research Unit, 1986, p. 20.
10. Não há estudos comparativos com dados conclusivos, mas, por uma amostragem, vale a lei-
tura de: BAINES, Beverley; RUBIO-MARIN, Ruth. The gender of constitutional jurisprudence.
Cambridge University Press, 2010.
11. PITKIN, Hanna Fenichel. The idea of Constitution apud BAINES, Beverley; RUBIO-MARIN,
Ruth. Toward a Feminist Constitutional Agenda. In: _______. The gender of constitutional juris-
prudence, Cambridge University Press, 2010, p. 2.

20
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

juízas e acadêmicas para unirem-se, cada vez mais, diante da imensa


tarefa de jogar luzes sobre o que está em jogo: não podemos mais nos
perguntar se as constituições podem ser para as mulheres, mas, antes,
quando e como garantir que os textos constitucionais reconheçam e pro-
movam os direitos das mulheres.
O feminismo cultural12 indica uma ideologia da natureza ou essência
feminina que busca deslocar a luta feminista para além dos ambientes
estritamente politizados, ressaltando aspectos do feminino cotidiano
como alternativas para a vida em sociedade. É uma corrente de pensa-
mento, desenvolvida a partir de meados da década de 1970, que pre-
coniza o lado emocional e intuitivo das mulheres como trunfos para a
identificação e expressão do feminino em todos os ambientes habitados
pelas mulheres, sejam eles públicos ou privados.
A ideia do coletivo feminino, concretizado em teorias feitas por mu-
lheres e para mulheres, chamam a atenção para os valores femininos,
apresentados como vias legítimas para as vivências na estrutura política
e social. O feminismo cultural aponta a ética do cuidado, dos afetos e
da fraternidade como alternativas aos paradigmas da competitividade,
agressividade e individualismo. Mas, por razões óbvias, o feminismo cul-
tural não se contém nisso.
Nesse contexto, exsurge como um desafio para todas as mulheres,
mas especialmente para aquelas que atuam, mediata ou imediatamen-
te, no cenário político-constitucional brasileiro, o de passarem a dire-
cionar seus olhares, naturalmente vertidos à ética do homem, para a
ética da mulher. Isso significa, já como um primeiro passo da metodo-
logia aqui proposta, o hábito de perguntar-se onde estão, o que estão
fazendo e qual a contribuição das mulheres em cada um dos espaços
sociais e políticos.
A partir desse redirecionamento de olhares, o passo seguinte é o
compartilhamento, em cada um dos círculos de atuação pessoal, social
e política, das experiências das mulheres, com ênfase para aquelas atua-
ções em que as mulheres são sujeitos e protagonistas das suas próprias
experiências constitucionais.
Assim, para dar início ao que eu espero seja um ciclo virtuoso, diante tal
desafio, ocupo meu lugar de professora e pesquisadora constitucionalista,

12. Sobre feminismo cultural vide: ALCOFF, Linda. Feminismo cultural vs. Post-estructuralismo:
la crisis de identidad de la teoría feminista. Revista Debats, n. 76, p. 3-7, 2002.

21
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

para compartilhar com a comunidade jurídica interessada os primeiros


resultados de pesquisa realizada, com a ajuda de uma aluna pesquisado-
ra de iniciação científica, sobre os desafios constituintes das mulheres
brasileiras, a partir de uma perspectiva da hermenêutica constitucional
feminina13,no contexto do processo constituinte de 1988.
A Constituição, vista sob a perspectiva da hermenêutica constitu-
cional feminina, é um texto normativo complexo, plural e aberto, o qual
apesar de não guardar racionalidade cartesiana estrita, em seu conjunto,
apresenta-se como um todo sistematicamente coordenado para permi-
tir convivência e acomodações necessárias para a harmonia entre suas
partes contraditórias.14
Daí porque, na ética da mulher, a complexidade, a pluralidade e a
abertura do texto constitucional não são desafios indesejáveis, nem in-
transponíveis, mas, sim, elementos naturais de um corpo que só se re-
vela, sempre provisória e parcialmente, quando concretizado em suas
múltiplas dimensões.15
A República, analisada sob a perspectiva feminina, é um atributo da
organização política sustentado por três pilares fundamentais: efemeri-
dade, aleatoriedade e responsabilidade. O devir é a regra histórica mais
óbvia, de modo que o exercício do poder não pode contrariar essa expec-
tativa tão natural, quanto desejável, em uma sociedade culturalmente re-
publicana. A igualdade de chances impõe o alcance da lógica da aleatorie-
dade, pois não pode haver pré-concepções, nem pré-compreensões, nas
escolhas republicanas. Por fim, a regra de causas e efeitos impõe que para
toda ação republicana esteja prevista uma reação igual e proporcional, o
que, na teoria constitucional, ganhou a alcunha de responsabilidade.

13. Todas e todos querem saber: por que usar o adjetivo feminina e, não, feminista?! Muito em-
bora tenha a convicção de que a hermenêutica constitucional feminina é, porque não poderia
deixar de ser, uma metodologia feminista, optei por usar o termo feminina para designar um
olhar bem específico do meu lugar de fala. A explicação pode ser encontrada em: SILVA, Chris-
tine Oliveira Peter da. Por uma teoria feminina da Constituição. In: LEITE, George S; NOVE-
LINO, Marcelo; ROCHA, Lilian Rose Lemos. Liberdade e Fraternidade: a contribuição de Ayres
Britto para o Direito. Salvador: Juspodium, 2017, p. 655-677.
14. SILVA, Christine Oliveira Peter da. Por uma teoria feminina da Constituição, in LEITE, George
S; NOVELINO, Marcelo; ROCHA, Lilian Rose Lemos. Liberdade e Fraternidade: a contribuição
de Ayres Britto para o Direito. Salvador: Juspodium, 2017, p. 655-677.
15. SILVA, Christine Oliveira Peter da. Substantivo feminino: Constituição significa mulheres
no poder. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 24 jun. 2017. Disponível em: <https://www.
conjur.com.br/2017-jun-24/observatorio-constitucional-substantivo-feminino-constituicao-
-significa-mulheres-poder>. Acesso em: 10 set. 2019.

22
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

Por Federação, na visão da hermenêutica constitucional feminina,


entenda-se o pacto firmado com alicerce na cooperação para o enfren-
tamento dos desafios comuns. Não é possível conceber o federalismo
sem o compartilhamento, sempre tenso e conflituoso, de poder. Porém,
também não há fórmula mais adequada para enfrentar os problemas do
federalismo do que a partilha cooperativa – concorrente, subsidiária ou
solidária, de competências, deveres e obrigações constitucionalmente
destinadas.
Também a Corte Constitucional, como uma instituição no feminino,
é a pessoa jurídica do Estado Constitucional que reúne, no rol de suas
competências, atribuições para resolver, sempre de forma definitiva, po-
rém provisória, as contradições constitucionais, bem como para harmo-
nizar paradoxos gerados pelas naturais tensões entre normas constitu-
cionais construídas por diversos atores sociais.
Os problemas constitucionais brasileiros estão a requerer e a mere-
cer as opiniões das mulheres que vivem e pensam a Constituição e o Bra-
sil em igualdade de condições com os homens. É, portanto, ‘de’ e ‘para’
as mulheres eleitoralistas, mulheres tributaristas, mulheres jus labora-
listas, mulheres previdenciaristas, e todas as outras, que nós, mulheres
constitucionalistas, estamos convidando para povoar fraternalmente os
espaços institucionais de poder que nos são próprios, sejam eles am-
bientes públicos ou privados.
E diante desse convite, compartilhamos três vetores hermenêuticos,
já disponíveis na doutrina especializada, para serem por nós testados: i)
a dialogicidade constitucional; ii) as dependências recíprocas constitu-
cionais; iii) a sustentabilidade constitucional.16
A ideia de dialogicidade constitucional é a que já está mais avança-
da, permeando, principalmente, os debates sobre a construção de con-
sensos constitucionais – consensos esses que são provisórios, mas que
têm pretensão de definitividade –; sobre as vicissitudes da argumenta-
ção constitucional dialética; e sobre o enfrentamento de tensões e con-
flitos entre instituições, institutos e normas constitucionais.

16. Sobre estes vetores vide ideias anteriormente apresentadas em: SILVA, Christine Oliveira
Peter da. Substantivo feminino: Constituição significa mulheres no poder. Revista Eletrônica
Consultor Jurídico, 24 jun. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jun-24/
observatorio-constitucional-substantivo-feminino-constituicao-significa-mulheres-poder>.
Acesso em: 10 set. 2019.

23
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

As dependências recíprocas implicam reconhecer necessárias


cooperações e parcerias para o pleno exercício de capacidades insti-
tucionais quanto à concretização das normas constitucionais. Não há
um guardião único, nem muito menos uma instituição preferida para
a tarefa de concretizar a Constituição, pois as normas constitucionais
exigem competências compartilhadas por dependências recíprocas.
Por fim, a sustentabilidade como vetor da hermenêutica constitucio-
nal feminina tem como ideia mestra a preservação do máximo potencial
de todas e cada uma das normas constitucionais, mesmo as mais com-
plexas e paradoxais. A Constituição, sob essa perspectiva, apresenta-se
como uma totalidade que só se sustenta quando todos os seus elemen-
tos têm o seu máximo potencial preservado.
Tais vetores hermenêuticos femininos foram concebidos e sistema-
tizados a partir de valores que fazem parte do paradigma do feminismo
cultural, no sentido de conjunto de valores femininos à disposição da
sociedade, os quais muitas vezes são considerados utópicos, marginais
e até indesejáveis.
Somente se e quando as pautas constitucionais puderem contem-
plar também as outras visões de mundo, que não somente aquelas que
prevaleceram e prevalecem no ambiente homegeinizador das estrutu-
ras patriarcais, teremos a chance de consolidar uma resposta afirmativa
sustentável para a pergunta feita no início deste tópico.
Assim, para que as Constituições sejam textos normativos também
destinados às mulheres, o primeiro passo é conhecer as mulheres que
fizeram as Constituições, as mulheres que interpretam as Constitui-
ções, as mulheres que fazem das Constituições o seu instrumento de
trabalho e de luta por seus direitos fundamentais, nas sociedades con-
temporâneas.
Para elas voltamos nossos olhares e atenção: as constitucionalistas
constituintes.

3. MULHERES CONSTITUINTES
3.1 Mulheres e o constitucionalismo brasileiro
A participação das mulheres da Assembleia Constituinte de 1988
foi um recorde para a história constitucional brasileira: dos 559 par-
lamentares da Constituinte, 26 eram mulheres. A representação femi-
nina na Câmara Federal ficou abaixo de 2% até 1986, de forma que a

24
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

representação feminina na Constituinte, apesar de ainda muito aquém


do que seria razoável, quase triplicou, chegando a 5% dos parlamen-
tares.17
O Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM) foi criado atra-
vés da Lei nº 7.353, de 29 de agosto de 198518. Sob a presidência de Ruth
Escobar, sua primeira direção tomou posse em 11 de setembro de 1985,
com uma composição plural de tendências, de partidos e de movimentos
de mulheres. O Conselho foi criado com autonomia administrativa e fi-
nanceira, vinculado ao Ministério da Justiça, com status de “Ministério”.19
O Conselho Nacional de Direitos da Mulher destacou-se por atuar de
forma imediata em três linhas: creches, violência e constituinte. Não se
pode deixar de anotar que tal Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
também elaborou projetos para intervir nas áreas da saúde, do traba-
lho, da educação e da cultura, exercendo papel relevante no processo de

17. SCHLOTTFELDT, Shana; COSTA, Alexandre Araújo. Em Busca Do Poder: A Evolução da Partici-
pação Política da Mulher na Câmara dos Deputados Brasileira. E-legis, Brasília, n. 21, p. 100-
126, set./dez. 2016. Parte desse avanço é atribuído ao movimento realizado pelo Conselho
Nacional dos Direitos das Mulheres, visto como a primeira experiência de institucionalização
das reivindicações dos movimentos feministas no Brasil.
18. BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei nº 7.353/1985. Cria o Conselho dos Direitos da Mulher
– CNDM e dá outras providências. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/
lei/1980-1987/lei-7353-29-agosto-1985-356957-normaatualizada-pl.html>. Acesso em: 12
set. 2019. Vide as suas competências: Art. 4º Compete ao Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher: a) formular diretrizes e promover políticas em todos os níveis da administração pú-
blica direta e indireta, visando à eliminação das discriminações que atingem a mulher; b)
prestar assessoria ao Poder Executivo, emitindo pareceres e acompanhando a elaboração e
execução de programas de Governo no âmbito federal, estadual e municipal, nas questões que
atingem a mulher, com vistas à defesa de suas necessidades e de seus direitos; c) estimular,
apoiar e desenvolver o estudo e o debate da condição da mulher brasileira, bem como propor
medidas de Governo, objetivando eliminar todas as formas de discriminação identificadas;
d) sugerir ao Presidente da República a elaboração de projetos de lei que visem a assegurar
os direitos da mulher, assim como a eliminar a legislação de conteúdo discriminatório; e)
fiscalizar e exigir o cumprimento da legislação que assegura os direitos da mulher; f) pro-
mover intercâmbio e firmar convênios com organismos nacionais e estrangeiros, públicos
ou particulares, com o objetivo de implementar políticas e programas do Conselho; g) rece-
ber e examinar denúncias relativas à discriminação da mulher e encaminhá-las aos órgãos
competentes, exigindo providências efetivas; h) manter canais permanentes de relação com o
movimento de mulheres, apoiando o desenvolvimento das atividades dos grupos autônomos,
sem interferir no conteúdo e orientação de suas atividades; i) desenvolver programas e pro-
jetos em diferentes áreas de atuação, no sentido de eliminar a discriminação, incentivando a
participação social e política da mulher.
19. PONTES, Denyse. DAMASCENO, Patrícia. As políticas públicas para mulheres no Brasil: avan-
ços, conquistas e desafios contemporâneos. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 &
13th Women’s World’s Congress, Florianópolis, 2017.

25
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

redemocratização do país, uma vez que garantiu que grande parte das
reivindicações dos movimentos de mulheres fosse incluída na Constitui-
ção de 1988.20
A campanha pela constituinte foi marcada por slogans como “Consti-
tuinte para valer tem que ter palavra de mulher”, “Constituinte para valer
tem que ter direitos da mulher” e “Constituinte sem mulher fica pela me-
tade”. A campanha ‘Mulher e Constituinte’ era uma resposta à baixa re-
presentação feminina na política institucional, especialmente no Poder
Legislativo nacional.21
O movimento nacional ‘Mulher e Constituinte’ reuniu mulheres de
diversos setores da sociedade para debater quais direitos fundamentais
das mulheres a Constituição deveria contemplar. Jacqueline Pitanguy re-
cordou que o Conselho Nacional de Direitos da Mulher fez um trabalho
ininterrupto de 1985, antes da eleição para a Assembleia Constituinte,
até a promulgação da Constituição, em outubro de 1988.22
O Conselho Nacional de Direitos da Mulher, as Constituintes e as ati-
vistas feministas se juntaram em um movimento político que ficou co-
nhecido como ‘Lobby do Batom’, cujo principal objetivo era proporcionar
a participação das mulheres na elaboração da Constituição de 1988, e,
assim, garantir que suas demandas fossem contempladas na nova Cons-
tituição brasileira.23
A origem do termo ‘Lobby do Batom’ foi explicado por Jaqueline:
“Alguns congressistas tentaram nos diminuir e diziam pejorativamen-
te ‘lá vem as mulheres de batom’. Então decidimos assumir o título
de ‘Lobby do Batom’ como uma estratégia de luta pelos direitos das

20. PONTES, Denyse. DAMASCENO, Patrícia. As políticas públicas para mulheres no brasil: avan-
ços, conquistas e desafios contemporâneos. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 &
13th Women’s World’s Congress, Florianópolis, 2017.
21. MODELLI, Laís. Constituição de 1988 foi avanço nos direitos das mulheres. Deutsche Welle,
05 out. 2018. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/constitui%C3%A7%C3%A3o-de-
1988-foi-avan%C3%A7o-nos-direitos-das-mulheres/a-45746107>. Acesso em: 12 set. 2019.
22. Apud MODELLI, Laís. Constituição de 1988 foi avanço nos direitos das mulheres. Deutsche Wel-
le, 05 out. 2018. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/constitui%C3%A7%C3%A3o-
de-1988-foi-avan%C3%A7o-nos-direitos-das-mulheres/a-45746107>. Acesso em: 12 set.
2019.
23. MODELLI, Laís. Constituição de 1988 foi avanço nos direitos das mulheres. Deutsche Welle,
05 out. 2018. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/constitui%C3%A7%C3%A3o-de-
1988-foi-avan%C3%A7o-nos-direitos-das-mulheres/a-45746107>. Acesso em: 12 set. 2019.

26
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

mulheres e começamos a usar esse nome nos nossos materiais, campa-


nha e publicações.”24.
O ‘Lobby do Batom’ era uma forma simbólica de as mulheres se iden-
tificarem fora da Câmara dos Deputados. Dentro da Câmara, a pauta das
mulheres era representada pelas deputadas, conhecidas como Bancada
Feminina. Por vinte meses, o Conselho pediu a mulheres de todo o país
que enviassem propostas que gostariam de ver na Constituição. “Numa
época sem internet, recebemos milhares de cartas e telegramas”, lembra
a feminista. Com a ajuda de juristas, o conselho transformou essas pro-
postas na ‘Carta das Mulheres Brasileiras’ aos Constituintes, que serviu
de base para o trabalho dos constituintes.25
Em março de 1987, as deputadas constituintes entregaram a ‘Carta
das Mulheres Brasileiras’ ao presidente da Assembleia Nacional Consti-
tuinte, o deputado Ulysses Guimarães. Era um manifesto na qual expri-
miam sua preocupação com o futuro do País e apresentavam suas pro-
postas para a nova Constituição. Nas palavras da deputada constituinte
Benedita da Silva: “o conteúdo desta Carta representa o esforço comum de
nós mulheres, donas de casa, filhas, companheiras de luta do dia-a-dia de
cada um.”26
A Carta se inicia com uma citação de Abigail Adams, que ainda no
século XIX afirmara: “Se não for dada a devida atenção às mulheres, es-
tamos decididas a fomentar uma rebelião e não nos sentiremos obrigadas
a cumprir leis para as quais não tivemos nem voz nem representação.”27
Esta Carta foi um dos documentos mais importantes e abrangentes
produzido pelas mulheres, estando dividido em duas partes, as quais
demonstram que as mulheres tinham uma pauta muito mais ampla do

24. Apud MODELLI, Laís. Constituição de 1988 foi avanço nos direitos das mulheres. Deutsche Wel-
le, 05 out. 2018. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/constitui%C3%A7%C3%A3o-
de-1988-foi-avan%C3%A7o-nos-direitos-das-mulheres/a-45746107>. Acesso em: 12 set.
2019.
25. MONTEIRO, Ester. Lobby do batom: marco histórico no combate às discriminações. Sena-
do Notícias, 06 mar. 2018. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/mate-
rias/2018/03/06/lobby-do-batom-marco-historico-no-combate-a-discriminacoes>. Acesso:
em 08 set. 2019.
26. MODELLI, Laís. Constituição de 1988 foi avanço nos direitos das mulheres. Deutsche Welle,
05 out. 2018. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/constitui%C3%A7%C3%A3o-de-
1988-foi-avan%C3%A7o-nos-direitos-das-mulheres/a-45746107>. Acesso em: 12 set. 2019.
27. Carta de Abgail Adams a seu esposo, John Adams, em 31.03.1776, durante o processo consti-
tuinte que conduziu à aprovação da Constituição norte-americana apud MARINELA, Fernan-
da. Vade mécum: direitos das mulheres. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2015, p. 105.

27
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

que a defesa dos direitos das mulheres em si, uma vez que cuidava de
justiça social, da criação do Sistema Único de Saúde, defendia o ensino
público e gratuito em todos os níveis, também a reforma agrária, entre
outras propostas. Chamava também a atenção dos Constituintes para as
demandas em relação aos direitos das mulheres no que se referia à fa-
mília, trabalho, saúde, educação e cultura, violência e questões nacionais
e internacionais.28
Durante todo o período de trabalho em torno da Constituinte, o mo-
vimento feminista foi o que mais se destacou por trabalhar diretamente
no trato com os parlamentares, de modo a convencê-los da necessidade
de serem atendidas as demandas formuladas por mulheres. Essa atua-
ção conseguiu aprovar em torno de oitenta por cento das reivindicações,
constituindo-se o setor organizado da sociedade civil que mais vitórias
conquistou29. Para a historiadora Celi Pinto, o movimento das mulheres
em 1987 e 1988 em torno da Constituinte havia sido a maior mobiliza-
ção feminina na história do Brasil até agora.30

3.2. Mulheres no processo constituinte de 1987/1988


3.2.1. Processo constituinte: Comissões e Subcomissões
A Assembleia Constituinte de 1987 foi organizada em oito Comis-
sões Temáticas, cada uma com três subcomissões, dedicadas a discutir o
novo texto da Constituição a partir de temas.31
A primeira era a Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias
do Homem e da Mulher que possuía como subcomissões: a da Nacio-
nalidade, da Soberania e das Relações Internacionais; A dos Direitos

28. MIRANDA, Cynthia Mara. Os movimentos feministas e a construção de espaços institucionais


para a garantia dos direitos das mulheres no Brasil. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/
nucleomulher/arquivos/os%20movimentos%20feminismtas_cyntia.pdf> Acesso em: 12
set. 2019.
29. MIRANDA, Cynthia Mara. Os movimentos feministas e a construção de espaços institucionais
para a garantia dos direitos das mulheres no Brasil. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/
nucleomulher/arquivos/os%20movimentos%20feminismtas_cyntia.pdf> Acesso em: 12
set. 2019.
30. Ou seja, até 2018, data da afirmativa. Vide: MODELLI, Laís. Constituição de 1988 foi avan-
ço nos direitos das mulheres. Deutsche Welle, 05 out. 2018. Disponível em: <https://www.
dw.com/pt-br/constitui%C3%A7%C3%A3o-de-1988-foi-avan%C3%A7o-nos-direitos-das-
mulheres/a-45746107>. Acesso em: 12 set. 2019.
31. BRASIL. Câmara dos Deputados. A construção do artigo 5º da Constituição de 1988. Brasília:
Centro de Documentação e Informação, Edições Câmara, 2013, p. 14-16.

28
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

Políticos, dos Direitos Coletivos e das Garantias; e a dos Direitos e Ga-


rantias Individuais.32
A segunda comissão era a “Comissão da Organização do Estado” que
contemplava: a Subcomissão da União, Distrito Federal e Territórios; a
Subcomissão dos Estados e a Subcomissão dos Municípios e Regiões. 33
A terceira era a Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de
Governo, que possuía como subcomissão: a do Poder Legislativo; a do
Poder Executivo e a do Poder Judiciário e do Ministério Público.34
A quarta era a Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Ga-
rantia das Instituições, que se dividia nas subcomissões do Sistema Elei-
toral e Partidos Políticos; de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua
Segurança e a de Garantia da Constituição, Reformas e Emendas.35
A quinta constituía-se a Comissão do Sistema Tributário, Orçamento
e Finanças se dividia em: uma Subcomissão de Tributos, Participação e
Distribuição das Receitas,uma Subcomissão de Orçamento e Fiscaliza-
ção Financeira e, por último, uma Subcomissão do Sistema Financeiro.36
A sexta subcomissão, por sua vez, foi chamada de “Comissão da Or-
dem Econômica” e se subdividiu em três subcomissões, sendo elas: a
Subcomissão de Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da
Propriedade do Subsolo e da Atividade Econômica; a Subcomissão da
Questão Urbana e Transporte e Subcomissão da Política Agrícola e Fun-
diária e da Reforma Agrária.37
A penúltima Comissão foi a da Ordem Social que concentrou três
subcomissões, quais sejam: a Subcomissão dos Direitos dos Trabalha-
dores e Servidores Públicos; a Subcomissão de Saúde, Seguridade e do

32. BRASIL. Câmara dos Deputados. A construção do artigo 5º da Constituição de 1988. Brasília:
Centro de Documentação e Informação, Edições Câmara, 2013, p. 14-16.
33. BRASIL. Câmara dos Deputados. A construção do artigo 5º da Constituição de 1988. Brasília:
Centro de Documentação e Informação, Edições Câmara, 2013, p. 14-16.
34. BRASIL. Câmara dos Deputados. A construção do artigo 5º da Constituição de 1988. Brasília:
Centro de Documentação e Informação, Edições Câmara, 2013, p. 14-16.
35. BRASIL. Câmara dos Deputados. A construção do artigo 5º da Constituição de 1988. Brasília:
Centro de Documentação e Informação, Edições Câmara, 2013, p. 14-16.
36. BRASIL. Câmara dos Deputados. A construção do artigo 5º da Constituição de 1988. Brasília:
Centro de Documentação e Informação, Edições Câmara, 2013, p. 14-16.
37. BRASIL. Câmara dos Deputados. A construção do artigo 5º da Constituição de 1988. Brasília:
Centro de Documentação e Informação, Edições Câmara, 2013, p. 14-16.

29
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

Meio Ambiente e a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pes-


soas Deficientes e Minorias.38
Por fim, a última Comissão da constituinte foi a da Família, da Edu-
cação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, que
abarcava a Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes; a da Ciência e
Tecnologia e da Comunicação e a da Família, do Menor e do Idoso.39

3.2.2. As Constituintes: quem eram?40

3.2.2.1. Abigail Feitosa


Abigail Feitosa foi uma deputada representante do estado da Bahia
pelo PMDBe médica. Antes de ser deputada constituinte, Abigail foi de-
putada estadual na Bahia pelo PMDB, no período de 1983 a 1987. Além
disso, foi Vice-Presidente da associação Baiana de Medicina e Coordena-
dora-Geral do Movimento de Unidade Popular-MUP, 1985.41
Abigail participou da Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio
Ambiente, da Comissão da Ordem Social, como Suplente, e da Comissão
de Sistematização como Titular. Propôs 166 emendas e teve 29 apro-
vadas. Abigail apresentou 20 sugestões, destacando-se como as mais
importantes: a prestação de serviços de saúde à população seja dever
do estado e direito do cidadão; a criação de norma que assegurasse a
transformação da aposentadoria em pensão, em favor da viúva ou do

38. BRASIL. Câmara dos Deputados. A construção do artigo 5º da Constituição de 1988. Brasília:
Centro de Documentação e Informação, Edições Câmara, 2013, p. 14-16.
39. BRASIL. Câmara dos Deputados. A construção do artigo 5º da Constituição de 1988. Brasília:
Centro de Documentação e Informação, Edições Câmara, 2013, p. 14-16.
40. Com a finalidade de apresentar subsídios para futuras pesquisas, mais verticalizadas sobre as
Constituintes e suas pautas na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, optou-se por
apresentar este resumo da biografia e das principais sugestões temáticas apresentadas por
cada uma das mulheres constituintes. A Biografia completa pode ser consultada no ‘Portal da
Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Disponível em
<https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso: em 10 set. 2019. Os dados so-
bre as sugestões e comissões das constituintes foram consultados em: bases de dados histó-
ricas do Senado Federal – SGCO (Sugestão dos Constituintes à Constituinte de 1988) e APEm
(Anteprojeto, Projetos e Emendas), que contêm os projetos, anteprojetos e substitutivos ela-
borados pelos relatores e as emendas apresentadas pelos constituintes, com os respectivos
pareceres. Disponível em: <http://www6g.senado.gov.br/apem/search?smode=advanced>.
Acesso em: 10 set. 2019.
41. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

30
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

viúvo, em caso de morte do cônjuge aposentado; estipulação de pena de


cinco a dez anos de reclusão para os crimes de estupro, aumentada em
dobro se o delito fosse praticado em grupo; legalização do aborto nos
casos de má-formação grave do feto, distúrbios psíquicos e patológicos,
que importassem risco à vida da mãe.

3.2.2.2. Anna Maria Rattes


Foi deputada federal constituinte de, 1987-1991 pelo Rio de Janei-
ro, filiada ao partido PMDB. Anna Maria Rattes era advogada. Antes de
ser deputada, Anna Maria Rattes foi Diretora de Secretaria do Tribunal
Regional do Trabalho, da 6ª Junta de Conciliação e Julgamento no Rio de
Janeiro, da 54ª Junta de Conciliação e Julgamento.42
Participou da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do
Homem e da Mulher: Segunda-Vice-Presidente, PMDB, 1987; da Subco-
missão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias, da Co-
missão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher:
Titular, PMDB, 1987 e da Subcomissão dos Negros, Populações Indíge-
nas, Pessoas Deficientes e Minorias, da Comissão da Ordem Social: Su-
plente, PMDB, 1987.
Foi a deputada que mais propôs (468) e aprovou (120) emendas.
Apresentou 8 sugestões, dentre as quais destacam-se: inviolabilidade
da integridade física e moral dos brasileiros; que o estado assegure
a igualdade entre todos os brasileiros, sem distinção de sexo, raça,
trabalho, língua, credo religioso, convicções políticas ou ideológicas,
instrução, situação econômica ou condição social; que se garanta ao
trabalhador, no Brasil, o direito de participar, nas formas e nos limites
fixados em lei, da gestão das empresas públicas e privadas e nos lucros
das mesmas.

3.2.2.3. Benedita da Silva


Deputada pelo PT do RJ, Benedita da Silva era auxiliar de enferma-
gem. A história política de Benedita da Silva contempla os cargos de Ve-
readora do Rio de Janeiro de 1983 a 1986; foi Professora na Escolinha
Comunitária da Favela Chapéu Mangueira; Empregada Doméstica; Ven-
dedora Ambulante; Ministra de Desenvolvimento Social e Secretária de

42. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

31
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do governo do Rio de


Janeiro.43
Na Assembleia Nacional Constituinte, participou como suplente da
Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias Homem e Mulher e
como titular da Subcomissão dos Negros, População Indígena, Deficien-
tes e Minorias e da Comissão da Ordem Social. Foi suplente, também, na
Mesa da Assembleia Constituinte.
Benedita da Silva propôs 93 emendas e teve 25 aprovadas. Apresen-
tou 18 sugestões na Assembleia Constituinte. Sugeriu, entre outras, que
fosse inserida a proibição de o Brasil manter relações diplomáticas bem
como firmar acordos e convênios com países que desrespeitam os direi-
tos humanos; que fosse proibida a atividade das empresas desses países
no território nacional; que fosse resgatada a importância das massas
escravizadas para história do país; que homens e mulheres tivessem ga-
rantidos iguais direitos ao pleno exercício da cidadania; e que educação
fosse um direito de todos e dever do estado.

3.2.2.4. Bete Mendes


Bete mendes foi atriz e deputada eleita pelo PMDB no estado de São
Paulo e foi uma das constituintes que haviam sido reeleitas. Em sua le-
gislatura anterior a da assembleia constituinte, Bete Mendes foi Tercei-
ra-Suplente de Secretário de 1985-1986 e participou da: Comissão de
Transportes e da Comissão de Comunicação, foi suplente na Comissão
de Relações Exteriores e na de Esporte e Turismo.44
Licenciou-se do mandato de Deputado Federal Constituinte na legis-
latura 1987-1991, para exercer o cargo de Secretária da Cultura do Estado
de São Paulo, de 15 de março de 1987 a 21 de dezembro de 1988, ficando
nesse período o Dep. Hélio Rosas. Dessa forma, não chegou a fazer suges-
tões e nem propor emendas na Assembleia Constituinte de 1988.

3.2.2.5. Beth Azize


Advogada, Beth Azize foi eleita deputada pelo PSB no estado do
Amazonas. Foi Juíza de Direito de 1966-1970 e Procuradora Jurídica de

43. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.
44. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

32
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

Manaus de 1971-1976. Em 1976 iniciou sua trajetória política que en-


globou os cargos de Deputada Federal (1991-1995), Vereadora (1977
a 1978), Deputada Estadual (1979 a 1983) e (1983 a 1987.) Liderou o
MDB de 1979 a 1982 e foi Fundadora e Presidente do PSB, em 1985.45
Durante a Assembleia Constituinte Beth Azize foi, em 1987, titular
da Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos,
da Comissão da Ordem Social e, de 1987 a 1988 foi suplente da Comis-
são de Sistematização.
Durante a Assembleia, Beth propôs 43 emendas e aprovou 12. Apre-
sentou nove sugestões. Entre elas, sugeriu a criação de normas que dis-
ciplinassem os casos de inelegibilidade e prazos de sua duração, e tor-
nassem facultativos o alistamento e o voto; que a propriedade familiar
agrária fosse direito e garantia individual e, também, que fosse criado o
conselho de defesa e desenvolvimento da Amazônia.

3.2.2.6. Cristina Tavares


Deputada do PSDB pelo estado dePernambuco, Cristina Tavares foi
jornalista e política brasileira. Elegeu mandatos na Câmara dos deputa-
dos de 1979 a 1991, portanto, assim como Bete Mendes, aquela não foi a
primeira vez de Cristina no Congresso Nacional.46
Na Assembleia Nacional Constituinte, foi suplente da Comissão da
Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais, da Comis-
são da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher; foi
relatora da Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, da
Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tec-
nologia e da Comunicação e titular da Comissão de Sistematização.
Apresentou 227 emendas e teve 95 aprovadas. Apresentou 44 su-
gestões na assembleia constituinte, entre elas, que fosse dever do Estado
assegurar ao trabalhador urbano e rural assistência à maternidade e à
paternidade; que fosse responsabilidade do Estado assegurar educação
gratuita, em todos os níveis, a ambos os sexos, respeitando a cultura dos
grupos étnico; que as creches fossem destinadas a crianças de zero a
seis anos de idade; que o Estado protegesse e assegurasse assistência à

45. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.
46. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

33
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

família; que homens e mulheres tivessem iguais direitos e deveres em


tudo o que diz respeito à sociedade conjugal e aos filhos. Sugeriu tam-
bém que a seguridade social seja um dever do estado e um direito de
todos; que o subsolo e suas riquezas fossem propriedades do povo brasi-
leiro e só pudessem ser explorados em forma de concessão por cidadãos
ou empresas brasileiras.

3.2.2.7. Dirce Tutu Quadros


Dirce Tutu Quadros foi pesquisadora eleita pelo PSC de SP.47 Na As-
sembleia Constituinte, foi titular da Subcomissão dos Direitos e Garan-
tias Individuais e da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do
Homem e da Mulher. Dirce não fez sugestões para o texto, sua participa-
ção na Constituinte contou com a propositura de emendas, que totaliza-
ram 56, das quais9 foram aprovadas.

3.2.2.8. Eunice Michiles


Eleita pelo PFL no estado do Amazonas, a professora Eunice Michi-
les apresentou 193 emendas e teve 54 aprovadas. Foi membra da Suco-
missão da Família, do Menor e do Idoso e da Comissão da Família, Edu-
cação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia da Comunicação.
Foi Deputada Estadual de 1975 a 1979 e Senadora de 1979 a 1987.
Presidiu o Movimento da Mulher Democrática Social – MMDS e Liderou
o Movimento das Mulheres Pró-Paulo Maluf48. Durante a Assembléia,
Eunice Michiles apresentou 45 sugestões, entre elas: que os recursos
públicos destinados ao ensino fossem aplicados, prioritariamente, no
ensino fundamental obrigatório e no pré-escolar; que ficasse a cargo do
Estado assegurar, além do ensino básico obrigatório e gratuito, o ensino
dos rudimentos de botânica, zoologia e tratos do solo, e de conhecimen-
tos gerais sobre agricultura e agropecuária; que se vedasse a veiculação
de propaganda de bebidas alcoólicas e de cigarros em qualquer meio de
comunicação.
Sugeriu também que fosse assegurada suplementação alimentar,
além da fornecida na escola, às crianças oriundas de famílias que perce-
biam menos de três salários mínimos; que se assegurasse à família, com

47. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.
48. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

34
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

renda inferior a três salários mínimos, o recebimento gratuito de medi-


camentos básicos necessários; e sugeriu que pelo menos 4% das verbas
de pesquisas no campo de saúde fossem destinadas a estudos relativos
à reprodução humana.

3.2.2.9. Irma Passoni

Irma Passoni foi eleita pelo PT no estado de SP. Foi professora e po-
lítica. Tornou-se Freira do Instituto Beatíssima Virgem Maria de 1965-
1971 e deputada estadual de 1979 a 1983. Entre os cargos que assumiu
estão o de Deputada Federal entre 1983 e 1987, deputada constituinte
e, na legislatura seguinte, deputada de 1991-1995. Foi Secretária da Co-
missão Executiva Estadual e do Diretório Regional do PT.49

Foi Membra da Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e da


Reforma Agrária e da Comissão da Ordem. Foi também suplente da Sub-
comissão de Tributos, Participação e Distribuição das Receitas, da Co-
missão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças.

Irma propôs 226 emendas e teve 71 aprovadas, apresentou 12 su-


gestões para a Assembleia Constituinte. Entre elas, sugeriu fossem con-
templadas normas reguladoras da prestação ou concessão de explora-
ção do serviço de transporte urbano coletivo; considerar-se como tarefa
econômica aquela realizada no recesso do lar; assegurar-se assistência
à maternidade, à infância, à adolescência, aos idosos e aos deficientes,
cabendo ao Estado promover criação de rede nacional de assistência
materno-infantil e rede nacional de creches. Sugeriu ainda que a família,
instituída civil ou naturalmente, tivesse direito à proteção do Estado e
à efetivação de condições que permitam a realização pessoal dos seus
membros, cabendo ao estado assegurar assistência à família e criar me-
canismos para coibir a violência nas relações familiares.

3.2.2.10. Lídice Da Mata


Economista, Lídice da Mata foi deputada constituinte do PC do B
pelo estado da Bahia. Voltou ao congresso de 2007 a 2011 e é deputa-
da na atual legislatura (2019-2023). Foi vereadora na Bahia de 1983 a

49. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

35
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

1987; Prefeita de Salvador de 1993 a 1996; Deputada Estadual de 1999


a 2007 e Senadora de 2011 a 2019.50
Na Assembléia Nacional Constituinte foi titular da Subcomissão do
Sistema Eleitoral e Partidos Políticos e da Comissão da Organização Elei-
toral, Partidária e Garantia das Instituições e suplente da Comissão de
Sistematização. Lídice apresentou 196 emendas e teve 32 aprovadas.
Foi autora de quatro sugestões para Assembléia Nacional Consti-
tuinte, sendo elas: que fossem assegurados à mulher direitos iguais ao
do homem, em todos os setores da vida econômica, política, social, cul-
tural e familiar; que partidos políticos com representação na Assembléia
Nacional Constituinte tivessem seus registros automaticamente deferi-
dos pelo Tribunal Superior Eleitoral, independentemente de quaisquer
exigências da lei; que fosse assegurada liberdade de organização parti-
dária e atividade política dos partidos; que fosse aprovada norma sobre
o sistema eleitoral, nas condições que especificava.

3.2.2.11. Lúcia Braga


Assistente social, Lúcia Braga foi eleita pelo PFL pelo estado da Pa-
raíba. Foi deputada constituinte e do congresso revisor. Retornou à câ-
mara em 2003 onde exerceu mandato até 2007.51
Na Assembléia Nacional Constituinte foi Primeira-Vice-Presidente
da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, da Comissão da
Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, tendo
apresentado 117 emendas e teve 32 aprovadas, realizou 13 sugestões
para a assembleia, destacando-se entre elas: estabilidade no emprego
para a mulher, antes e após o parto; fossem assegurados à mulher tra-
balhadora rural todos os benefícios concedidos pela previdência social
à trabalhadora urbana; que à união coubesse manter incentivos fiscais
e financeiros para privilegiar os estados menos desenvolvidos; direito
dos trabalhadores, homens e mulheres, à aposentadoria voluntária por
tempo de serviço; livre manifestação de pensamento, convicção política
e filosófica; que a mulher trabalhadora rural tivesse direito ao mesmo
salário que o homem, quando no exercício da mesma atividade.

50. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.
51. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

36
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

3.2.2.12. Lúcia Vânia


Lúcia Vânia foi uma jornalista eleita pelo PMDB no estado de Goiás.
Também foi deputada federal de 1991-1995 e de 1999-2003. No proces-
so constituinte que gerou a Constituição de 1988 foi titular da Subcomis-
são dos Direitos e Garantias Individuais, da Comissão da Soberania e dos
Direitos e Garantias do Homem e da Mulher e suplente da Subcomissão
dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, da
Comissão da Ordem Social.52
Apresentou 143 emendas e teve 48 aprovadas. Algumas de suas
sugestões foram o reconhecimento de direito à aposentadoria para a
trabalhadora do lar como direito fundamental e a criação do estado do
Tocantins.

3.2.2.13. Márcia Kubitschek


Márcia Kubitschek foi eleita pelo PMDB do Distrito Federal. Renun-
ciou ao mandato de Deputada Federal, na Legislatura de 1987-1991,
para assumir o mandato de Vice-Governadora do Distrito Federal, em
01 de janeiro de 1991.
Na Assembleia Nacional Constituinte, participou da Subcomissão da
Educação, Cultura e Esportes, da Comissão da Família, da Educação, Cul-
tura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação: Titular, 1987;
foi suplente na Subcomissão da União, Distrito Federal e Territórios, da
Comissão da Organização do Estado.
Márcia apresentou 42 emendas e teve 17 aprovadas. Realizou 8
sugestões a assembleia constituinte, dentre as quais destacamos: que
a união garantisse a existência dos corpos de bombeiros militares com
competências definidas e subordinadas diretamente às secretarias de
segurança pública; a criação, no âmbito do Ministério da cultura, de um
órgão destinado ao ensino profissionalizante das artes, à formação téc-
nica e orientação do artista brasileiro e a difusão da cultura em todos os
seus aspectos; fosse assegurada, aos contribuintes do imposto de renda,
a dedução integral das despesas de natureza cultural ou educacional;
fosse vedado à união, aos estados, ao distrito federal e aos municípios
instituir imposto sobre o livro, o jornal e os periódicos e sobre o papel

52. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

37
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

destinado à sua impressão; previsão de norma que garantisse direitos


do consumidor.

3.2.2.14. Maria de Lourdes Abadia


Maria de Lourdes Abadia era professora e foi eleita pelo PFL no
Distrito Federal. Apresentou 70 emendas e teve 21 aprovadas. Foi se-
gunda vice-presidente da Subcomissão da Saúde, Seguridade e do Meio-
Ambiente e membra da Comissão da Ordem Social.53
Entre as sugestões que apresentou estão: previsão de normas que
assegurassem aos homens e mulheres igualdade de direitos ao pleno
exercício da cidadania; fosse garantido aos menores o direito à prote-
ção do Estado, da família e da sociedade; fossem aprovados dispositivos
sobre a seguridade social, a saúde e o meio ambiente; sugestão de que
o ensino religioso constituísse disciplina dos currículos das escolas ofi-
ciais de primeiro e segundo graus.

3.2.2.15. Maria Lúcia


Maria Lúcia era professora e foi eleita pelo PMDB no estado do Acre.
Foi deputada federal de 1967 a 1969, antes de compor a constituinte.
Ocupou o cargo de titular da Subcomissão da Família, do Menor e do
Idoso: da Comissão da Família, Educação, Cultura e Esportes da Comis-
são de Ciência e Tecnologia e da Comissão de Comunicação. Foi suplente
da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da
Mulher.
Teve seu Mandato de Deputada Federal cassado e os direitos políti-
cos suspensos por dez anos, na legislatura 1967-1971, em face do dis-
posto no art. 4 do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968.
Maria Lúcia propôs onze emendas e teve duas aprovadas. Apresen-
tou 6 sugestões para a Assembleia Constituinte, destacando-se dentre
elas: que a União aplicasse, anualmente, no mínimo 30 % do valor to-
tal do orçamento na manutenção da rede de ensino público; a não-de-
sapropriação, mesmo para efeito de reforma agrária, de propriedades
que constituam cooperativas de produção, terras de posseiros ou terras

53. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

38
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

cultivadas por trabalhadores; normas de proteção à família; e que fos-


sem estabelecidos direitos iguais aos filhos nascidos fora do casamento.

3.2.2.16. Marluce Pinto


Marluce Pinto foi eleita pelo PTB no estado da Roraima. Foi Sena-
dora por roraima de 1991 a 1994.54Assim como Dirce Tutu Quadros, o
trabalho de Marluce Pinto começou na fase de emendas, que resultou
em 53 emendas propostas e teve 16 aprovadas.
Na Assembléia Constituinte foi titular da Subcomissão da União,
Distrito Federal e Territórios, da Comissão da Organização do Estado e
suplente da Subcomissão do Poder Executivo, da Comissão da Organiza-
ção dos Poderes e Sistema de Governo. Não foi autora de sugestões.

3.2.2.17. Moema São Thiago


Moema São Thiagoera advogada e foi eleita pelo PDT do Ceará.55
Na Assembléia Nacional Constituinte, participou da Subcomissão de
Garantia da Constituição, Reformas e Emendas, da Comissão da Organi-
zação Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições e da Subcomissão
do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos, da Comissão da Organização
Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, nesta como Suplente.
Propôs 98 emendas e aprovou 30. Apresentou 26 sugestões para as-
sembleia, dentre as quais destacamos: fosse assegurado a todo cidadão o
direito à assistência integral à saúde; competência da justiça do trabalho
para conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empre-
gados e empregadores; fossem destinados dez por cento do orçamento
global e anual da união para programas especiais de desenvolvimento
da região nordeste, por um período de vinte anos; direitos especiais da
mulher funcionária pública; competência concorrente e supletiva para
estados e municípios legislarem sobre recursos ambientais.

3.2.2.18. Myriam Portella


Myriam Portella foi eleita pelo PDS no estado do Piauí. Foi suplen-
te da Comissão Executiva Nacional do PSDB e Membra do Diretório

54. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.
55. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

39
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

Nacional do PSDB. Foi presidente da Federação das Bandeirantes do


Brasil em Teresina.56
Na Assembléia Nacional Constituinte foi titular da Subcomissão da
Questão Urbana e Transporte, da Comissão da Ordem Econômica e su-
plente da Subcomissão do Poder Legislativo, da Comissão da Organiza-
ção dos Poderes e Sistema de Governo. Apresentou 174 emendas e teve
53 aprovadas. Não foi autora de sugestões.

3.2.2.19. Raquel Cândido


Foi eleita pelo PMDB de Roraima. Foi deputada na Assembléia Cons-
tituinte e na legislatura seguinte (1991-1994). Foi vereadora por Rorai-
ma de 1983 a 1987.57
Na Assembleia Nacional Constituinte foi titular da Subcomissão de
Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da Propriedade do
Subsolo e da Atividade Econômica, da Comissão da Ordem Econômica e
suplente da Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, da
Comissão da Ordem Social.
Propôs 75 emendas e teve 23 aprovadas. Apresentou dez sugestões
para Constituinte, dentre as quais anotamos: que lei complementar as-
segurasse aposentadoria a todos os trabalhadores, incluídas as donas-
-de-casa e as trabalhadoras rurais; e fosse incluído entre os bens da
união os recursos minerais do subsolo.

3.2.2.20. Raquel Capiberibe


Raquel Capiberibe foi eleita pelo PMDB do Amapá. Além de Consti-
tuinte, foi deputada federal entre 1995-1999. Renunciou, em 1986, ao
mandato de Vice-Prefeita de Macapá, para assumir o mandato de Depu-
tada Federal Constituinte.58
Na Assembléia Nacional Constituinte foi suplente da Comissão
dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos, da Comissão da

56. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.
57. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.
58. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

40
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

Ordem Social e titular da Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e


da Reforma Agrária, da Comissão da Ordem Econômica.
Apresentou 133 emendas e teve 44 aprovadas. Foi autora de 12 Su-
gestões, dentre elas, as mais relevantes foram: disposições sobre o sis-
tema único de saúde; normas e princípios que garantiam o respeito, a
igualdade e a proteção aos direitos do homem e da mulher; normas e
princípios sobre a família, a igualdade dos direitos e deveres dos côn-
juges, a filiação e a concepção; dispositivos sobre a reforma agrária; e
normas que assegurassem aos povos indígenas os mesmos direitos con-
cedidos aos demais grupos étnicos.

3.2.2.21. Rita Camata


Foi eleita deputada constituinte pelo PMDB no estado do Espírito
Santo. Após a constituinte, exerceu mandato de 1991 a 2003 e, depois,
de 2007-2011.59
Na Assembléia Constituinte participou como titular da Subcomissão
da Família, do Menor e do Idoso e da Comissão da Família, da Educação,
Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. Foi su-
plente da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais e da Comis-
são da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher.
Apresentou 218 emendas e teve 66 aprovadas. Foi autora de 71 su-
gestões, merecendo destaque as seguintes: norma sobre a instituição do
voto distrital para a Câmara dos Deputados; uniformidade de tratamen-
to, no trabalho, a homens, mulheres e menores, bem como mecanismos
de proteção à mãe que trabalha fora; que o congresso nacional, no prazo
máximo de um ano da promulgação da Constituição, votasse um Código
do Consumidor; normas de controle das experiências realizadas na área
de biotecnologia em território nacional.

3.2.2.22. Rita Furtado


Rita Furtado foi eleita pelo PFL no estado de Rondônia e, antes de
ser constituinte, foi eleita Deputada Federal de 1983-1987.60

59. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.
60. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

41
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

Participou da Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Co-


letivos e Garantias, da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garan-
tias do Homem e da Mulher como Suplente e Subcomissão da Ciência
e Tecnologia e da Comunicação, da Comissão da Família, da Educação,
Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação como
titular.

Propôs 66 emendas e teve 19 aprovadas. Foi autora de 17 suges-


tões, dentre elas: que o exercício das atividades de imprensa indepen-
dam de licença ou controle de qualquer autoridade; que a propriedade,
a administração, o controle e a orientação intelectual das empresas de
radiodifusão e jornalismo fossem vedados a estrangeiros e a brasileiros
naturalizados há menos de 7 anos; que a intervenção estatal no domínio
econômico e no monopólio de qualquer atividade produtiva ou de ser-
viço só seja admitida para organizar setor inviável à iniciativa privada;
igualdade entre o homem e a mulher na sociedade conjugal, especial-
mente quanto ao exercício do pátrio poder; fim da censura e que a lei es-
tabeleça sistemas de classificação dos espetáculos de diversão pública e
condições especiais para apresentação de programas de entretenimento
nos meios de comunicação de massa; limites ao veto do Presidente da
República; inviolabilidade do lar.

3.2.2.23. Rose de Freitas

Rose de Freitas foi eleita pelo PMDB no Espírito Santo. Foi deputada
estadual de 1983 a 1987. Participou da Assembleia Constituinte e do
congresso revisor. Voltou para câmara em 2001 e exerceu mandato até
2015.61

Na Assembleia, participou da Comissão de Sistematização como su-


plente e Subcomissão do Sistema Financeiro, da Comissão do Sistema
Tributário, Orçamento e Finanças como Titular. Apresentou 87 emendas
e teve 13 aprovadas. Foi autora de 22 sugestões, entre elas: a previsão
constitucional de idade mínima de quatorze anos para a admissão do
menor no trabalho; e a inserção de capítulo sobre assistência e proteção
especial à criança, ao adolescente, ao menor abandonado e ao deficiente
mental.

61. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

42
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

3.2.2.24. Sadie Hauache


Sadie Hauache foi eleita pelo PFL no estado do Amazonas, era jor-
nalista e política.62 Foi membra da Subcomissão da Defesa do Estado, da
Sociedade e de sua Segurança e da Comissão da Organização Eleitoral
Partidária e Garantias das Instituições. Apresentou 132 emendas e teve
51 aprovadas. Apresentou 13 sugestões, dentre as quais destacamos:
fosse assegurada à mulher aposentadoria com salário integral aos vinte
e cinco anos de trabalho ou, por velhice, aos cinquenta anos de idade;
disposições especiais sobre o Conselho de Segurança Nacional, sua de-
finição e composição; normas dispondo sobre a justiça militar, sua com-
posição e competências; normas sobre as polícias militares e os corpos
de bombeiros considerados forças auxiliares reservas do exército, com-
petindo à União legislar sobre os mesmos; concessão de ‘habeas – cor-
pus’, quando houver ameaça à liberdade de locomoção, ilegalidade ou
abuso de poder; norma sobre alistamento e elegibilidade dos militares.

3.2.2.25. Sandra Cavalcanti


Foi uma professora eleita pelo PFL do estado do Rio de Janeiro e,
além da Constituinte, participou da Câmara dos Deputados na legis-
latura seguinte.63 Na Assembléia Nacional Constituinte participou da
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, da Comissão da Família,
da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comuni-
cação como Suplente, tendo sido também titular da Comissão de Sis-
tematização.
Apresentou 214 emendas e teve 64 aprovadas. Sandra apresentou
23 sugestões para Assembleia Nacional Constituinte, dentre as quais
destacaram-se: direito de todos de participar das decisões do Estado e
do aperfeiçoamento de suas instituições; direito do trabalhador à apo-
sentadoria após trinta anos de serviço; direito do trabalhador à apo-
sentadoria por invalidez, com renda mensal fixada por lei; proibição
de distinção, para fins de dependência, entre marido e esposa, compa-
nheiro e companheira; proibição de que nenhuma lei pudesse reduzir
ou cancelar os direitos ou vantagens adquiridas pelo trabalhador para
fins de aposentadoria e pensões; direito de que nenhum provento de

62. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.
63. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.

43
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

aposentadoria e de pensões fosse inferior ao maior salário mínimo vi-


gente no país; direito de aposentadoria do trabalhador por velhice.

3.2.2.26. Wilma Maia


Foi eleita pelo PDS no Rio Grande do Norte. Renunciou ao mandato
de Deputada Federal na legislatura 1987-1991 para assumir a Prefeitura
de Natal, em 1º de janeiro de 1989.64
Participou da Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Ser-
vidores Públicos, da Comissão da Ordem Social como titular e da Sub-
comissão da Família, do Menor e do Idoso, da Comissão da Família, da
Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação
como suplente.
Apresentou 82 emendas e teve 26 aprovadas. Wilma realizou 6 su-
gestões, entre elas: dispositivos sobre educação, integrando a pesquisa
científica ao processo educacional; que as donas-de-casa e camponesas
tivessem direito à aposentadoria; competência da união legislar sobre
direito civil e comercial; que fossem destinados 5% do imposto de renda
para a execução da política do menor.

4. CONSTITUINTES DIFUSAS: DECISÕES CONSTITUCIONAIS ‘DE’ E


‘PARA’ MULHERES
A pesquisa empírica aqui apresentada é apenas parcialmente inédi-
ta65. Como tem sido a metodologia que venho desenvolvendo, no âmbito
da hermenêutica constitucional feminista, algumas considerações das
análises pretéritas foram suprimidas e outras acrescentadas, com cada
vez maior ênfase para uma visão particular dos discursos das Ministras
do Supremo Tribunal Federal, atuais e aposentada.

64. ‘Portal da Constituição Cidadã da Câmara dos Deputados/ Biografias dos constituintes’. Dis-
ponível em <https://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa>. Acesso em: 10 set. 2019.
65. Esses resultados foram parcialmente apresentados em: SILVA, Christine Peter da. Entre laços
e nós são tecidos os direitos fundamentais da mulher. Revista Consultor Jurídico, 18 jun. 2016.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jun-18/observatorio-constitucional-en-
tre-lacos-sao-tecidos-supremo-direitos-mulher>. Acesso em: 30 jul. 2017; e numa segunda
versão em: SILVA, Christine Oliveira Peter da. Por uma teoria feminina da Constituição. In:
LEITE, George S; NOVELINO, Marcelo; ROCHA, Lilian Rose Lemos. Liberdade e Fraternidade:
a contribuição de Ayres Britto para o Direito. Salvador: Juspodium, 2017, p. 655-677. Aqui
se apresenta, portanto, uma terceira versão da lista de precedentes das mulheres, aqui com
algum destaque para as constituintes difusas que atuam ou atuaram como Ministras do Su-
premo Tribunal Federal.

44
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

O primeiro julgado que resultou da pesquisa, sobre os direitos das


mulheres, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, data de
1986. Trata-se do Recurso Extraordinário 108.008/RS, em que foi reco-
nhecido, pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, o direito da
mulher à preservação do nome do marido, mesmo após a separação ju-
dicial, em razão da permanência da obrigação de o marido pagar pensão
e da honorabilidade reconhecida em favor do cônjuge-mulher.
Da leitura da ementa do referido julgado, é possível perceber cla-
ramente que uma das principais referências para o reconhecimento do
direito da mulher ao uso do nome do marido é a permanência da sua
relação com o cônjuge-varão, diante da sua condição de pensionista.
Nenhum indício, neste caso julgado pela Corte, ainda na década de
80, da hermenêutica constitucional feminina, pois não há qualquer refe-
rência à mulher na argumentação. Aqui também é importante registrar
que ainda não havia mulheres na composição da Suprema Corte brasi-
leira, de modo que não é possível avaliar o discurso de uma magistrada
do sexo feminino neste julgado. Trata-se de um julgado referência, pois
é o ponto de partida de uma jurisprudência que cuidou de direitos das
mulheres.
A partir do termo ‘mulher’ combinado com o filtro dos nomes das
ministras da Suprema Corte brasileira, na base de acórdãos disponíveis
no sítio do Supremo Tribunal Federal, escolhemos alguns deles consi-
derados mais relevantes para fazer uma análise crítica da concretização
dos direitos das mulheres pelo olhar das Ministras. Mas a estes prece-
dentes, também acrescentamos outros, que não são da relatoria das Mi-
nistras, mas que podem contribuir para o debate que nos propusemos a
fazer neste trabalho.
Em 2003, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 953/DF, o Ple-
nário da Corte declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 417/1993 do
Distrito Federal que criava regras e previa sanções para coibir atos dis-
criminatórios contra a mulher nas relações de trabalho, por entender
que tal era matéria de competência privativa da União, nos termos do
art. 21, XXIV, da Constituição da República.
A Ministra Ellen Gracie, como relatora, foi acompanhada à unani-
midade pelos seus pares neste processo, pela inconstitucionalidade da
lei protetiva, mas teceu relevantes considerações acerca da iniciativa le-
gislativa local em editar normas com o objetivo de erradicar a discrimi-
nação no ambiente de trabalho, especialmente, a discriminação sexual

45
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

contra a mulher, que segundo afirmou a Ministra Ellen:“impelida pela


escassez das oportunidades de emprego e pelas necessidades de subsis-
tência própria e da família, submetem-se a trabalhos precários e a salá-
rios ainda mais baixos que os dos homens.”
Em 2004, a questão do aborto foi discutida no Habeas Corpus
84.025/RJ, caso que envolvia uma jovem de 18 anos, a qual pediu auto-
rização judicial para a realização de aborto, em virtude da constatação
médica de que seu filho, em gestação, era portador de grave anomalia
(anencefalia, ou seja, ausência da calota craniana e cérebro rudimentar).
O voto do Ministro Joaquim Barbosa, relator, fundou-se na contraposi-
ção entre o direito à vida, num sentido amplo, e o direito à liberdade, à
intimidade e à autonomia privada da mulher, num sentido estrito.
A figura da mãe foi exaltada pelo Ministro Joaquim Barbosa, que, em
seu voto, considerou o sofrimento pessoal da mulher e o seu direito de
escolha. Entretanto, o voto do Ministro Joaquim Barbosa entrou para a
história dos monólogos da Suprema Corte, pois não teve eco, uma vez
que o Plenário da Corte optou pela perda do objeto do referido habeas
corpus, em face do nascimento da criança e seu falecimento 7 minutos
após o parto. Neste caso, desperdiçou-se a oportunidade de enfrentar a
discussão do aborto nos casos de anencefalia, tema com o qual o Supre-
mo Tribunal Federal encontrou-se anos depois.
Em 2008, no Habeas Corpus nº 86.367/RO, a Segunda Turma afir-
mou o não cabimento do writ, refutando o requerimento de anulação
do processo porque o corpo de jurados era composto exclusivamente
por mulheres, sob o argumento de que as irregularidades ocorridas
durante o procedimento do júri deveriam ser arguidas em momento
processual oportuno. Não houve debates nem considerações quanto
ao argumento de gênero, que passou praticamente despercebido no
voto condutor do feito.
Também no ano de 2008, a Ação Direta de Inconstitucionalidade
3.510/DF foi julgada pelo Plenário do Supremo, consubstanciando-se em
caso notório da jurisprudência da Corte. A linguagem da hermenêutica
do feminino tem neste importante precedente a sua primeira manifes-
tação mais evidente, pois o Ministro Carlos Ayres Britto incorporou, já
na ementa do julgado, as premissas do constitucionalismo fraternal até
então estranhas ao universo discursivo do Supremo Tribunal Federal.
São elementos de destaque no voto e ementa da ADI 3.510 o reco-
nhecimento de valor constitucional do princípio da solidariedade em

46
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

benefício da saúde, bem como a comunhão de vida e a reverência ao


sofrimento e desespero das criaturas humanas como categorias jurídi-
co-constitucionais de uma teoria constitucional humanista. Um trecho
da conclusão da ementa da ADI 3.510 é elucidadora da linguagem da
hermenêutica feminina presente na Corte, neste feito expressa na voz
do Ministro Celso de Mello: “Inexistência de ofensas ao direito à vida
e da dignidade da pessoa humana, pois a pesquisa com células-tronco
embrionárias (inviáveis biologicamente ou para os fins a que se desti-
nam) significa a celebração solidária da vida e alento aos que se acham
à margem do exercício concreto e inalienável dos direitos à felicidade e
do viver com dignidade.”
Em 2010, também sob a relatoria da Ministra Ellen Gracie, o Recur-
so Extraordinário 563.953/RS, julgado pela Segunda Turma, entendeu
que afrontava o princípio constitucional da isonomia lei que exigia do
marido comprovação de invalidez, como requisito essencial para recebi-
mento de pensão por morte da sua mulher. Mais uma vez, com uma sim-
ples referência à jurisprudência consolidada da Corte, o voto condutor
da relatora não registrou argumentos específicos em relação à equidade
de gênero aqui trazida à debate.
Em 2011, no Agravo de Instrumento nº 669.472/RS, desta vez sob
a relatoria da Ministra Carmen Lúcia, julgou-se, na Primeira Turma da
Corte, a questão da isonomia no pagamento de complementação de apo-
sentadoria para homens e mulheres. Confirmou-se, pela jurisprudência
obstativa consolidada na Corte, que norma regulamentar, ao estipular
percentual inferior para o benefício de complementação de aposentado-
ria em razão do sexo dos beneficiários, afronta o art. 5º, I, da Constitui-
ção da República.
O Plenário da Suprema Corte, neste mesmo ano de 2011, julgou,
conjuntamente, a ADPF 132 e a ADI 4.277 construindo um dos prece-
dentes mais polêmicos e mais interessantes do exercício da jurisdição
constitucional exercida pelo STF, em toda a sua história republicana. A
decisão é amada e odiada por muitos, revelando sua natureza instigante
e intrigante, tendo recebido prêmios internacionais.
A hermenêutica feminina não prevaleceu em todos os votos pro-
feridos na decisão colegiada tomada por uma unanimidade não mui-
to convincente, mas não há dúvidas de que o seu produto representa
a manifestação mais ousada, em termos de metódica da hermenêutica
feminina, da Suprema Corte brasileira. É o precedente que melhor ex-
prime a hermenêutica do feminino como pressuposto hermenêutico da

47
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

linguagem, cuidando-se de cada um dos elementos textuais aptos a com-


por a normação constitucional referida aos estereótipos existenciais
homem e mulher, com especial deferência para a voz do feminino na
relação. Disse o Ministro Carlos Ayres Britto: “Focado propósito consti-
tucional de estabelecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia
entre as duas tipologias do gênero humano.”
Em 2012, a Corte julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 54, voltando, finalmente, ao tema do aborto de feto anen-
céfalo, desta vez enfrentando o seu mérito para afirmar que a conduta
de interromper a gravidez, na situação em que há comprovação médica
da anencefalia, não constitui crime, nos termos da Constituição de 1988.
Trata-se de precedente histórico que formatado em mais de 430 páginas
de texto contém discursos que tentam encontrar os mais criativos ata-
lhos à discussão principal do aborto, tema sempre envolvido em diver-
sas camadas de cuidados e pré-compreensões.
Lendo com atenção os votos dos integrantes da Corte neste proces-
so, imagino que nem toda a dimensão do infinito consegue tangenciar a
experiência da gestação de uma vida. Todos os argumentos que deram
vozes a muitas e diferentes teorias, narrativas, histórias e suposições
não foram confrontados com um voto sequer da mulher gestante de um
feto anencéfalo em primeira pessoa. E talvez o Direito diga que isso nem
seria útil, correto, adequado ou bom.
Apesar do resultado favorável à descriminalização da conduta de
antecipar o parto do feto diagnosticado com anencefalia, a decisão no
seu conjunto não mereceu abordagem da hermenêutica feminina. As vo-
zes, as dores, os gritos e as angústias das mulheres não foram ecoadas
nas razões de decidir que, apesar de brilhantes e cultas, passaram longe
da concretização dos direitos fundamentais que deveriam ser reconhe-
cidos às mulheres-mães e seus filhos condenados à morte por uma do-
ença covarde.
No Recurso Extraordinário 528.684/MS, julgado em 2013, a Supre-
ma Corte declarou a inconstitucionalidade de edital de concurso que
previa a possibilidade de participantes apenas do sexo masculino em
prova para ingresso na carreira de policial militar. A violação do princí-
pio da isonomia foi reconhecida à unanimidade pelos integrantes da Se-
gunda Turma, firmes no argumento de que naquele caso não houve jus-
tificativa razoável para a discriminação imposta. O precedente formado
neste recurso não é complexo, nem os argumentos trazidos demonstram
familiariedade com a hermenêutica feminina, mas, na simplicidade do

48
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

caso, mais um passo na direção do reconhecimento da isonomia entre


homens e mulheres foi dado pelo STF.
Em 2014, uma vez mais, a Suprema Corte, tanto pela voz da Primeira
quanto da Segunda Turma, no Recurso Extraordinário 630.455/BA, re-
latoria da Ministra Rosa Weber, e no Recurso Extraordinário com Agravo
804.140/CE, relatoria da Ministra Cármen Lúcia, entendeu que a ques-
tão da exigência editalícia de submissão a teste de barra fixa dinâmica
para candidatas mulheres a cargos da carreira policial, bem como a dis-
criminação por sexo no que diz respeito ao número de vagas do edital,
não se tratavam de questões a serem submetidas ao crivo do Supremo
Tribunal Federal, por óbices processuais. A isonomia, sob a perspectiva
de gênero, não foi enfrentada pela Suprema Corte, a qual optou pela apli-
cação de sua notória jurisprudência obstativa.
Em 2015, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº
28/SP, de relatoria da Ministra Carmen Lúcia, o Plenário do Supremo
Tribunal afirmou não haver omissão inconstitucional pela existência de
norma federal a suprir a necessidade de lei específica para disciplinar a
aposentadoria especial para policiais mulheres. O pedido de elaboração
de lei complementar estadual sobre os critérios diferenciados de apo-
sentadorias para policiais civis e militares do sexo feminino não ganhou
destaque na argumentação do voto condutor, o qual não se ocupou da
diferenciação de gênero proposta ao debate.
Ainda no ano de 2015, a Corte demonstrou que há mais nós que
laços na tessitura da história dos direitos fundamentais da mulher. No
julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.165/SP, o Plená-
rio julgou inconstitucional uma lei estadual que previa punição para as
empresas daquele estado que exigiam a realização de teste de gravidez
ou a apresentação de atestado de laqueadura no momento de admissão
de mulheres no trabalho. A discussão dos ministros da Corte enveredou
pela seara das competências constitucionais para o tratamento da ques-
tão, reafirmando a vetusta jurisprudência da competência privativa da
União para legislar sobre direito do trabalho.
A invisibilidade dos direitos fundamentais da mulher, presente na
maioria das discussões e os argumentos falaciosos de que a legislação
federal protetiva já coibia os atos também coibidos pela legislação esta-
dual, foi o caminho argumentativo escolhido pelos ministros para dei-
xar o problema da discriminação de gênero para um segundo plano. A
leitura do acórdão vale como antítese da hermenêutica feminina, com a
devida ressalva dos dois votos vencidos, é claro.

49
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

Em 2016, o Habeas Corpus 131.219, da relatoria da Ministra Rosa


Weber, foi julgado pela Primeira Turma, no sentido de que se o crime é
cometido com violência contra a mulher, e por haver o reconhecimento
de que a violência nesses casos, em geral, não é simplesmente circuns-
tancial, mas instrumental para coibir práticas discriminatórias contra a
mulher, não se pode substituir a pena privativa de liberdade por restriti-
va de direitos. A Ministra Rosa Weber afirmou textualmente: “Inobstante
a pena privativa de liberdade aplicada tenha sido inferior a 4 (quatro)
anos, a violência engendrada pelo paciente contra a vítima, no contexto
das relações domésticas, obstaculiza a concessão do benefício do art. 44
do Código Penal.”
Também data de 2016, foi julgado o Recurso Extraordinário
778.889/PE, com repercussão geral – Tema 782, para reconhecer a in-
constitucionalidade da distinção entre os períodos de licença-materni-
dade da mãe biológica e da mãe por adoção. No Plenário do Supremo
Tribunal Federal, a discussão não empolgou nem surpreendeu, manten-
do o tom neutro de uma Corte que se mantém ainda distante do paradig-
ma de uma hermenêutica constitucional feminina.
Em 2018, na ADI 4.275/DF, o Supremo Tribunal Federal discutiu o
direito de indivíduos transgêneros, que assim o desejassem, à substi-
tuição do prenome e sexo diretamente no registro civil, independente-
mente da cirurgia de transgenitalização ou da realização de tratamentos
hormonais ou patologizantes. A decisão autorizou a alteração do regis-
tro civil de pessoa transgênero diretamente pela via administrativa, sem
qualquer condição prévia. Esta decisão foi confirmada no julgamento do
recurso extraordinário 670.422, com repercussão geral, firmando-se a
seguinte tese:
“1 – O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu
prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exi-
gindo para tanto nada além da manifestação de vontade do indivíduo,
o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como direta-
mente pela via administrativa. 2 – Essa alteração deve ser averbada à
margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo “trans-
gênero”. 3 – Nas certidões do registro não constará nenhuma observa-
ção sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro
teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação
judicial. 4 – Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao
magistrado determinar, de ofício ou a requerimento do interessado, a
expedição de mandados específicos para a alteração dos demais regis-
tros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão pre-
servar o sigilo sobre a origem dos atos.”

50
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

Ainda em 2018, importante dar notoriedade ao julgamento da ADI


5.617/DF, a decisão sobre a obrigatoriedade de aplicar-se no mínimo
30% dos recursos do fundo partidário no financiamento das campanhas
eleitorais das mulheres foi também tomada por maioria. Os argumentos
do voto vencedor foram principalmente no sentido de que os recursos
públicos devem ser aplicados de forma a não reforçar uma discrimina-
ção histórica sofrida pelas mulheres nas disputas eleitorais.
Afirmou-se que não eram consentâneos com a Constituição da Re-
pública de 1988 os limites e os prazos estabelecidos pela legislação elei-
toral, relembrando o dever e o compromisso dos partidos políticos com
a participação política das mulheres para a consolidação da democracia
brasileira. Assim ficou expresso na ementa do julgado: “A autonomia par-
tidária não consagra regra que exima o partido do respeito incondicional
aos direitos fundamentais, pois é precisamente na artificiosa segmentação
entre o público e o privado que reside a principal forma de discriminação
das mulheres.”
Finalmente, o recurso extraordinário 1.058.333, também julgado
em 2018, permitiu ao Supremo Tribunal declarar o direito das mulhe-
res candidatas gestantes de remarcarem a prova de aptidão física nos
certames de que participa, independentemente de previsão expressa no
respectivo edital. O relator do feito, Ministro Luiz Fux, afirmou que
“Por ter o constituinte estabelecido expressamente a proteção à mater-
nidade, à família e ao planejamento familiar, a condição de gestante goza
de proteção constitucional reforçada. Em razão deste amparo constitu-
cional específico, a gravidez não pode causar prejuízo às candidatas,
sob pena de malferir os princípios da isonomia e da razoabilidade. (...)
Instituído expressamente como um direito social, a proteção à materni-
dade impede que a gravidez seja motivo para fundamentar qualquer ato
administrativo contrário ao interesse da gestante, ainda mais quando
tal ato impõe-lhe grave prejuízo”.
Em 2019, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade
6.938 trouxe questionamento sobre a possibilidade, ou não, de mulhe-
res gestantes e lactantes, mediante avaliação pericial médica, trabalha-
rem em locais insalubres. A norma impugnada admitia o trabalho das
empregadas gestantes e lactantes em atividades consideradas insalu-
bres, em grau médio ou mínimo, a não ser que apresentassem atestado
de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, recomendando o
afastamento durante a gestação e lactação.
No voto da Ministra Rosa Weber ela classificou como retrocesso so-
cial a norma impugnada, defendendo que a Justiça do Trabalho, diante da

51
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

reforma trabalhista levada a curso, em alguns aspectos tem desprotegido


o trabalhador e a trabalhadora. “Atualmente, em muitos sentidos, se nós
formos aplicar o nosso Código Civil, teremos uma proteção mais efetiva
ao trabalhador do que se aplicarmos a CLT com a reforma trabalhista”.
Importante aqui sobrelevar também a participação institucional da
Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, na discussão sobre a in-
constitucionalidade da norma trabalhista, tendo ela afirmado, em seu
parecer que “assegurar trabalho em ambiente salubre as gestantes e lac-
tantes é medida concretizadora dos direitos fundamentais ao trabalho,
a proteção do mercado de trabalho das mulheres, a redução dos riscos
laborais e ao meio ambiente de trabalho saudável”.
Verifica-se, pois, a partir dessa amostra de precedentes que o debate
sobre os direitos das mulheres e a igualdade de gênero encontra-se pre-
sente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, porém, ainda, não
apresenta consistência quanto à metodologia feminista. Os discursos
apresentados nos votos das ministras e dos ministros da Suprema Corte
brasileira não demonstram plena consciência de que há uma cultura de
igualdade, respeito e consideração com a figura feminina no Estado, nem
muito menos, com a importância da mulher na sociedade brasileira.
Por outro lado, não se pode negar que há um caminho já percorri-
do, o qual deve ser sedimentado pela experiência de ser e estar mulher
na Suprema Corte brasileira. A cada ano, nota-se, uma mais qualitativa
presença das mulheres no Plenário do Supremo Tribunal Federal, o que
indica a subida dos degraus em direção à consciência de gênero e da
importância de respeitar-se a Constituição brasileira de 1988 que asse-
gurou, como fruto principal dos trabalhos das Constituintes, igualdade
plena entre homens e mulheres e proibição de qualquer forma de dis-
criminação, especialmente aquelas por motivo de sexo e opção sexual.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta da hermenêutica constitucional feminina desafia-nos
para visões e experiências tanto de mulheres quanto de homens, con-
juntamente engajados e comprometidos com um novo caminho66.
Não há, portanto, pré-compreensões dogmáticas ou estáticas
nesse universo em movimento. A igualdade, respeito às diferenças e

66. BARTLETT, Katharine T. Feminist Legal Methods. Harvard Law Review, v. 103, p. 833, 1990.

52
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

consideração recíprocas passam a ser as condições de possibilidade de


todas as formas de pensar e de agir, de ser e de estar no mundo67, mundo
este expandido para além do binarismo do sexo biológico: feminino e
masculino.68
Muitas e todas igualmente relevantes são as teorias feministas. A
preferência por uma ou outra depende mais dos contextos complexos
em que estamos inseridas do que de reduções simplistas acerca das di-
ferenças, muitas vezes sutis e acessórias, das diversas concepções ideo-
lógicas ou imanentes a cada uma delas.
O trabalho aqui apresentado é fruto da pergunta que deve mover
as pesquisas sob o paradigma da hermenêutica constitucional femini-
na: quais são as mulheres e suas contribuições para a história consti-
tucional? Na presente oportunidade, a pergunta era ainda mais especí-
fica: quem foram e no que contribuíram as constituintes brasileiras de
1987/1988?
A resposta foi encontrada nos sites oficiais das Casas Legislativas
do Congresso Nacional, apresentando-se como vasto e rico material de
pesquisa para a história constitucional brasileira.
Se a proposta é associar a dialogicidade e alteridade como catego-
rias constitucionais; associar as dependências recíprocas aos valores da
solidariedade e cooperação como categorias constitucionais; e, também,
associar a sustentabilidade aos valores da segurança e longevidade,
como elementos da dinâmica constitucional brasileira;as informações
aqui apresentadas não se esgotam em si mesmas, mas convidam a uma
análise crítica acerca das pautas que as mulheres constituintes escolhe-
ram para constituir a Constituição de 1988, e como isso tem reverbera-
do nas instituições de nossos dias.
Para afirmar-se que as Constituições constituem a comunidade so-
cial nacional voltada também para as mulheres, é imprescindível conhe-
cer as mulheres que fizeram parte, de forma ativa e atuante, do processo

67. Importante aqui aproveitar a oportunidade para indicar leitura do texto: DINIZ, Débora. Fe-
minismo: modos de ver e mover-se. O que é feminismo? Cadernos de Ciências Sociais. Lisboa:
Escolar Editora, 2015.
68. Essa ideia também pode ser encontrada em trabalho anterior: SILVA, Christine Oliveira Pe-
ter da. Substantivo feminino: Constituição significa mulheres no poder. Revista Eletrônica
Consultor Jurídico, 24 jun. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jun-24/
observatorio-constitucional-substantivo-feminino-constituicao-significa-mulheres-poder>.
Acesso em: 10 set. 2019.

53
Christine Oliveira Peter da Silvae Carolina Freitas Gomide

constituinte, bem como as mulheres que interpretam as Constituições,


ou seja, as mulheres que fazem da Constituição o seu caminho laborioso
para uma cidadania plena e, verdadeiramente, democrática.
Assim sendo, deixamos aqui mais um capítulo de nossa contribui-
ção para que as mulheres de ontem, de hoje e do futuro possam estar
mais seguras e legitimamente amparadas pela consciência coletiva que
as mulheres já fazem parte desse processo constituinte, desde o seu
início, em 1987/1988, até os dias atuais. Mas o caminho, não obstante
aberto para nós, é longo e tortuoso, de forma que somente juntas será
possível realizar a travessia.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALCOFF, Linda. Feminismo cultural vs. Post-estructuralismo: la crisis de identidad de la
teoría feminista. Revista Debats, n. 76, p. 3-7, 2002.
BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist Constitutionalism:
Global Perspectives. New York: Cambridge University Press, 2012.
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BARTLETT, Katharine T. Feminist Legal Methods. Harvard Law Review, v. 103, 1990.
BRASIL. Câmara dos Deputados. A construção do artigo 5º da Constituição de 1988.
Brasília: Centro de Documentação e Informação, Edições Câmara, 2013.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei nº 7.353/1985. Cria o Conselho dos Direitos da
Mulher – CNDM e dá outras providências. Disponível em: <https://www2.camara.
leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-7353-29-agosto-1985-356957-normaatuali-
zada-pl.html>. Acesso em: 12 set. 2019.
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avanços, conquistas e desafios contemporâneos. Seminário Internacional Fazen-
do Gênero 11 & 13th Women’s World’s Congress, Florianópolis, 2017.
CALADO, Luciana Eleonoura de Freitas. A cidade das damas: a construção da memória
feminina no imaginário utópico de Christine de Pizan. 371 f. Tese (Doutorado em
Teoria da Literatura) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006.
DINIZ, Débora. Feminismo: modos de ver e mover-se. O que é feminismo? Cadernos de
Ciências Sociais. Lisboa: Escolar Editora, 2015.
GRESCHNER, Donna. Can Constitutions be for Women too? In: CURRIE, Dawn Currie;
MACLEAN, B. (Ed.). The Administration of Justice. Saskatoon: University of
Saskatchewan Social Research Unit, 1986.
JELIN, Elizabeth. Os direitos humanos. Que Direitos? De quem? Mulheres e Direitos hu-
manos. Estudos Feministas, v. 117, n. 01/94.
MARINELA, Fernanda. Vade mécum: direitos das mulheres. Belo Horizonte: Editora
Fórum, 2015.

54
Cap. 1 • Constitucionalistas Constituintes: uma agenda para o Brasil

MIRANDA, Cynthia Mara. Os movimentos feministas e a construção de espaços ins-


titucionais para a garantia dos direitos das mulheres no Brasil. Disponível em:
<http://www.ufrgs.br/nucleomulher/arquivos/os%20movimentos%20feminis-
mtas_cyntia.pdf> Acesso em: 12 set. 2019.
MODELLI, Laís. Constituição de 1988 foi avanço nos direitos das mulheres. Deuts-
che Welle, 05 out. 2018. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/
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SILVA, Cristina Telles de Araújo. Por um constitucionalismo feminista: reflexões sobre
o direito à igualdade de gênero. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade
Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

55
2
CULTURA DA IGUALDADE
DE GÊNERO NO BRASIL –
UMA LEITURA A PARTIR
DE RAEWYN CONNELL
Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda1

Sumário: 1. Introdução; 2. Igualdade de gênero: formal e material; 3. Construção


da cultura da igualdade de gênero: uma tarefa de homens e mulheres; 4. Razões
para a mudança; 5. Conclusões; 6. Referências Bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO
O escopo do presente estudo, a partir das contribuições de Raewyn
Connell, é propor caminhos para a efetivação de uma verdadeira cultura
da igualdade de gênero no Brasil. Para isso, parte-se da constatação de
que já se conquistou a igualdade formal entre homens e mulheres, como
evidenciam diversas leis, tratados e a própria Constituição de 1988.
A igualdade material, contudo, ainda revela inúmeros desafios. Perqui-
re-se, nesse contexto, o papel não apenas das mulheres, mas também de
homens e de meninos nesta tarefa. Indaga-se como podem ser realiza-
das transformações culturais de modo a engajá-los no desenho de polí-
ticas públicas e na alteração de posturas individuais e coletivas de modo
a contribuir para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária
(CRFB, art. 3º, I).

1. Especialista em Direito Público, Máster em Seguridade Social pela Universidade de Alcalá/


OISS, é assessora de Ministro do Supremo Tribunal Federal e membro do Columbia Women´s
Network in Brazil, Cohort 2019/20.

57
Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda

2. IGUALDADE DE GÊNERO: FORMAL E MATERIAL


O princípio da igualdade entre homens e mulheres não se apresenta
como novidade nos ordenamentos jurídicos. A Declaração Universal dos
Direitos Humanos já o consagrava, em 1945. Outro não foi o caminho
trilhado pela Constituição de 1988, que o afirma no inciso I do artigo
5º: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição”.
Para além da Declaração Universal, diversos tratados traduziram a
preocupação internacional acerca da igualdade entre homens e mulhe-
res em direitos e garantias. O debate vem ganhando relevo, como regis-
tram Flávia Piovesan e Melina Girardi Fachin, com respaldo de instru-
mentos internacionais desde a década de 60 do século XX2. Afinal, ainda
que se possa apontar, desde a criação da Comissão Interamericana de
Mulheres (CIM), em 1928, a existência de organismos intergovernamen-
tais cujo escopo são os direitos da mulher, foi a partir dos anos 1960 que
o debate se robusteceu. A CIM foi criada ainda no âmbito da União Pan-
-Americana, extinta em 1948, quando passou a ser incorporada pela Or-
ganização dos Estados Americanos (OEA) enquanto órgão permanente.
Nesta esteira, as Convenções Interamericanas sobre a Concessão
de Direitos Civis (1948) e Políticos (1952) à Mulher outorgaram às mu-
lheres os mesmos direitos civis e políticos de que goza o homem. Ain-
da, deve-se citar também a Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Contra a Mulher – CEDAW (1979). Merecem
referência, ademais, a Declaração de Pequim adotada pela IV Conferên-
cia Mundial sobre as Mulheres (1995) e a Convenção de Belém do Pará
(Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Contra a Mulher) (1994).
Como se vê, são abundantes os instrumentos legislativos interna-
cionais que exigem a igualdade entre homens e mulheres e a efetivação
dos direitos fundamentais das mulheres. O reconhecimento formal e o
compromisso dos Estados ao assinarem tais tratados é indispensável à
efetivação dos direitos humanos nos planos internos e externo. Trata-se
de uma etapa fundamental e sempre em construção e aperfeiçoamento,

2. PIOVESAN, Flávia. FACHIN, Melina Girardi. Diálogos sobre o feminino: a proteção dos direitos
humanos das mulheres no Brasil à luz do impacto do sistema interamericano. In: FACHIN,
Melina Girardi; BARBOZA, Estefânia Maria Queiroz; SILVA, Christine Oliveira Peter (Coord.).
Constitucionalismo Feminista. 1. ed. Salvador: Juspodium, 2018, p. 169.

58
Cap. 2 • Cultura da Igualdade de Gênero no Brasil …

sem a qual não há possibilidade de trabalhar pela implementação da


equidade de gênero por meio de leis e políticas públicas3.
Contudo, também é relevante e necessário constatar que, uma vez
firmados tais compromissos, cristalizados em instrumentos que se tor-
nam fontes formais de direitos e obrigações para pessoas e Estados na-
cionais, a igualdade formal entre homens e mulheres resta afirmada,
reafirmada e assegurada.
A igualdade material, contudo, ainda é um devir. Essa compreensão
fica mais nítida a partir da análise de elementos práticos. Pode-se ci-
tar o grave exemplo da diferença de salário entre os gêneros. Embora
a Convenção nº 100 da Organização Internacional do Trabalho (1951)4
e o art. 7º da Constituição de 1988 proíbam a diferença de salários por
motivo de sexo, dados do Fórum Econômico Mundial de 20185 situam o
Brasil na lamentável 132ª posição dentre 149 países analisados quanto
à igualdade de pagamento para trabalhos semelhantes entre homens e
mulheres.
Já no âmbito da representação eleitoral, dados da Inter-Parlia-
mentary Union6 (IPU) divulgados em 2018 demonstram que o Brasil
figura na 152ª posição na comparação com 190 países acerca do nú-
mero de mulheres componentes das casas legislativas baixas. Na le-
gislatura 2019/2022, 77 deputadas se elegeram, representando 15%

3. Hoje se pode falar inclusive de constitucionalismo feminista, fio condutor da presente obra
coletiva, enquanto, na feliz definição de Christine Peter, “meio e possibilidade da hermenêu-
tica feminista de compreender e interpretar o Direito e a Constituição, do lugar de fala do
feminino, em toda a sua mais ampla acepção, que consiste em identificar e desafiar os elemen-
tos da dogmática jurídica que discriminam por gênero, raciocinar a partir de um referencial
teórico segundo o qual as normas jurídicas e constitucionais são respostas pragmáticas para
dilemas concretos das mulheres reais, mais do que escolhas estáticas entre sujeitos opostos
ou pensamentos divergentes”. SILVA, Christine Oliveira Peter. Constitucionalismo Feminista
ressoa no Supremo Tribunal Federal. Consultor Jurídico, 29 dez. de 2018. Disponível em <ht-
tps://www.conjur.com.br/2018-dez-29/observatorio-constitucional-constitucionalismo-
-feminista-ressoa-supremo-tribunal-federal>. Acesso em 29 ago. 2019.
4. Convenção concernente à Igualdade de Remuneração para a Mão de Obra Masculina e a Mão
de Obra Feminina por um Trabalho de Igual Valor, adotada pela Conferência em sua Trigésima
Quarta Sessão, em Genebra, a 29 de junho de 1951. Internalizada no Brasil pelo Decreto n.º
41.721/1957.
5. WORLD ECONOMIC FORUM. Global Gender Gap Report 2018: Brazil. <http://reports.wefo-
rum.org/global-gender-gap-report-2018/data-explorer/#economy=BRA>. Acesso em: 29
ago. 2019.
6. INTER-PARLIAMENTARY UNION. Women in national parliaments: situation as of 1st February
2019. Disponível em: <http://archive.ipu.org/wmn-e/classif.htm>. Acesso em: 29 ago. 2019.

59
Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda

do total de 513 vagas da Câmara dos Deputados. Trata-se do maior


percentual já alcançado pelas mulheres que, em 2014, eram 10% da
Casa, com 51 parlamentares e, em 1998, 6%, somando 29 deputadas.
Os números, porém, na comparação internacional, ainda são muito
baixos, a despeito das iniciativas legislativas para assegurar mínimo
de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo, nos ter-
mos do art. 10, § 3º, da Lei n.º 9.504/97 e do art. 20, § 2º da Resolução
n.º 23.548/2017 do Tribunal Superior Eleitoral. Assim como na desi-
gualdade de salários, portanto, constata-se que os avanços no campo
eleitoral são lentos.
A desigualdade entre homens e mulheres também tem sido tema
de debate no âmbito legislativo, em razão das tratativas a respeito da
Reforma da Previdência (PEC n.º 6/2019). Os dados estatísticos do IBGE
citados na exposição de motivos da proposta de emenda7 evidenciam
que as mulheres vivem mais do que os homens: a expectativa de vida
atingiu 79,6 anos em 2017, sendo que a dos homens está em 72,5 anos.
Discute-se, então, se seria justo manter a idade mínima para aposenta-
doria das mulheres em patamar inferior ao dos homens mesmo diante
da expectativa de sobrevida maior. O tratamento desigual, para os que
o defendem, justifica-se a partir do reconhecimento do fato de que as
mulheres dedicam mais tempo às tarefas domésticas do que os homens.
Apesar de cada vez mais integradas ao mercado de trabalho, as mulhe-
res ainda dedicam em média 10 horas a mais por semana do que os ho-
mens à execução de tarefas domésticas.8 As regras atuais possibilitam à
mulher se aposentar com menor idade e menor tempo de contribuição,
já que a divisão do trabalho doméstico as onera mais do que aos homens.
No entanto, o debate legislativo acerca das novas regras da previdência
aponta que tal constatação não leva necessariamente à conclusão de que
as mulheres devem manter o direito de obterem aposentadoria com me-
nor idade e tempo de contribuição. A reforma ainda não foi aprovada,
mas caminha-se para um consenso no sentido de que igualdade, nesse
caso, significaria implementar regras iguais para aposentadoria, sem
distinção de gênero.

7. BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC 6/2019. Disponível em <https://www.camara.leg.br/


proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2192459#>. Acesso em 29 ago. 2019.
8. OLIVEIRA, Guilherme. Divisão de tarefas domésticas ainda é desigual no Brasil. Senado No-
tícias: Especial Cidadania, 08 maio 2018. Disponível em <https://www12.senado.leg.br/
noticias/especiais/especial-cidadania/divisao-de-tarefas-domesticas-ainda-e-desigual-no-
-brasil/divisao-de-tarefas-domesticas-ainda-e-desigual-no-brasil>. Acesso em: 29 ago. 2019.

60
Cap. 2 • Cultura da Igualdade de Gênero no Brasil …

Nesse sentido, pode-se afirmar que tanto a desigualdade salarial


entre homens e mulheres, como a baixa representatividade feminina na
política e, por fim, as regras distintas para aposentação entre gêneros
são evidências do fato de que apenas assegurar a igualdade formal não
basta para efetivar a isonomia.
Se a dificuldade não está na escassez de instrumentos, questiona-se
quais outras medidas poderiam ser tomadas para efetivar a equanimida-
de entre os gêneros. Poder-se-ia afirmar que os tratados internacionais,
as Constituições e as leis apenas asseguram direitos no plano abstra-
to. No entanto, para além das diversas regras concretas9 estipuladas na
Constituição e em instrumentos infraconstitucionais, é preciso pensar
em ações e programas que concentrem esforços em torno da efetivação
da igualdade entre os gêneros.
Essa preocupação vem consubstanciada no parágrafo 25 da Decla-
ração de Pequim (1995), o qual conclama os Estados signatários a enco-
rajar os homens a participarem plenamente de todos os atos favoráveis à
igualdade. O papel de homens e meninos, como anota Raewyn Connell10,
em relação à igualdade de gênero emergiu com um tema nas discussões
internacionais desde os anos 1990 e foi cristalizado no citado parágrafo
da citada convenção. A pesquisadora e cientista social australiana tem
se dedicado ao tema dos estudos de gênero e das masculinidades desde
a década de 1970 e sua perspectiva pode ser muito útil ao cenário brasi-
leiro contemporâneo.
Pode-se constatar, portanto que, mesmo que a afirmação da igualda-
de entre homens e mulheres, em sentido formal, em importantes instru-
mentos de direitos humanos, seja antiga e remonte à primeira metade
do século XX, o pensamento acerca do papel a ser desempenhado em
relação à igualdade de gênero por meninos e homens é recente.
Nesse sentido, Raewyn Connell anota que foi a pressão das mulhe-
res que levou o tema da igualdade de gênero a emergir na agenda de

9. A Constituição de 1988, para além da igualdade formal consagrada no art. 5º, protege o mer-
cado de trabalho da mulher, mediante incentivos nos termos da lei (art. 7º, XX); estipula re-
gras distintas para aposentadoria tanto no setor público como privado (art. 40 e art. 201);
bem como assegura a igualdade na condução da sociedade conjugal (art. 226, § 5º). Instru-
mentos infraconstitucionais também podem ser citados, como a Lei Maria da Penha (Lei n.º
11.340/2006), a Lei que criou o tipo penal do feminicídio (Lei n.º 13.04/2015) ou a Lei da
Importunação Sexual (Lei n.º 13.718/2018).
10. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality
in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1806, Spring 2005.

61
Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda

políticas públicas. O motivo para isso é evidente: uma vez que são as
mulheres elas mesmas as pessoas mais impactadas pelo padrão de desi-
gualdade, cabe a elas o pedido de ações concretas e reformas para alcan-
çar maior patamar de igualdade.
Diante deste contexto, a reflexão que ora se propõe é quanto à defe-
sa da importância do envolvimento dos homens para que haja mudan-
ças institucionais profundas e alterações em condutas pessoais rumo à
equidade. Ou seja, não é possível falar em igualdade sem apoio e envol-
vimento significativo de homens e meninos11.
O tema será explorado no próximo tópico, em que examinaremos
as conveniências, oportunidades e também as desvantagens, sob a pers-
pectiva masculina, de se envolver na construção de uma sociedade mais
justa do ponto de vista feminino.

3. CONSTRUÇÃO DA CULTURA DA IGUALDADE DE GÊNERO: UMA


TAREFA DE HOMENS E MULHERES
A Constituição de 1988 assegura, no art. 205, o direito à educação,
enquanto um dever do Estado e da família, mas que deve ser promovido
e incentivado com a colaboração de toda a sociedade. Não é possível, por
evidente, exigir que apenas o Estado se responsabilize pela educação. A
tarefa é de tal porte que as políticas públicas isoladas seriam inúteis se
não houvesse a família e a comunidade a apoiar a concreção do projeto.
Trata-se de evolução que se desenrola de maneira muito peculiar para
cada indivíduo, além de demandar tempo, persistência e um conjunto
de infindáveis pequenos atos e compromissos que vão se somando para
possibilitar a formação de um cidadão. Não é possível pensar na imple-
mentação da equidade de gênero de outra forma. Trata-se de uma tarefa
que demanda não apenas a implementação de políticas públicas, mas
também esforço individual, alteração de posturas e mudanças culturais,
a serem colocados em prática nas mais diversas organizações, sejam do
setor público ou privado, enfrentando resistências, avanços e retroces-
sos, eis que se trata de um projeto de fôlego, cujos resultados por vezes
uma geração não será suficiente para alcançar.

11. Tradução livre de: “Moving toward a gender-equal society involves profound institutional
change as well as change in everyday life and personal conduct. To move far in this direction
requires widespread social support, including significant support from men and boys”. CON-
NELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality in the
Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1802, Spring 2005.

62
Cap. 2 • Cultura da Igualdade de Gênero no Brasil …

Releva também destacar que ocupar espaços de poder faz presumir


que há disputa. Se uma mulher passa a ocupar um espaço de poder, isso
significa que um homem deixou de exercer seu protagonismo naquela
esfera. Isso significa que inevitavelmente haverá resistência por parte
dos homens – embora alguns possam colaborar também. Essa é a razão
pela qual Raewyn Connell afirma que as desigualdades de gênero, que
podem ser observadas nos recursos econômicos, no poder político ou
na autoridade cultural, bem como nos meios de coerção, significam, em
última análise, que os homens controlam os recursos requeridos para
implementar as reinvindicações femininas12. É por isso que a autora cha-
ma os homens e meninos de “porteiros” (gatekeepers) da igualdade de
gênero. Eles são os guardiões da diferença entre os gêneros. Mas, como
porteiros, eles tanto podem criar empecilhos e dificultar o desenrolar
das mudanças, como também podem ser catalizadores de tais transfor-
mações. Essa cooperação é o que se almeja atingir. Homens e mulheres
precisam caminhar juntos, não apenas para uma sociedade mais igual,
mas também mais justa, plural e solidária.
Nesse sentido, a reflexão sobre a construção de uma cultura de
igualdade de gênero deve ser travada em diversos planos. Afinal, os de-
bates hoje são internacionais e a velocidade da comunicação via inter-
net faz com que movimentos como #Metoo13ou #Timesup14rapidamente
se tornem globais. É importante não perder de vista que as relações de
gênero têm uma dimensão internacional, mas que as mudanças que le-
varão à cultura da igualdade são construídas dia-a-dia, desde alterações

12. Tradução livre de: “The very gender inequalities in economic assets, political power, and cul-
tural authority, as well as the means of coertion, that gender reforms intend to change, cur-
rently mean that men (often specific groups of men) control mosto f the resources required to
implement women’s claims for justice”. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers:
Men, Masculinities and Gender Equality in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1802, Spring
2005.
13. O movimento #MeToo ganhou relevo nas redes sociais em 2017, quando diversas persona-
lidades do setor artístico dos Estados Unidos denunciaram episódios de assédio sofridos. A
repercussão foi tamanha que a revista Time escolheu o movimento como a “personalidade”
daquele ano.
14. Decorrência do movimento #MeToo e de outras iniciativas (Ask Her More e HeforShe, por
exemplo), o #Timesup congregou iniciativas concretas para combater casos de violência
sexual e discriminação de gênero no ambiente de trabalho na indústria de entretenimento
norte-americana. Evidentemente, a utilização mercadológica de tais pautas identitárias pode
ser discutida, mas o enfoque aqui está em demonstrar como a interlocução entre países via
internet possibilitou a disseminação de um movimento bastante específico rapidamente ao
redor do mundo todo, com repercussões no cenário nacional e denúncias feitas também no
setor artístico brasileiro.

63
Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda

de posturas individuais até alterações culturais, legislativas, de políticas


públicas, entre outras. Conforme ressalta Raewyn Connell, as mudanças
nas relações de gênero ocorrem numa escala global, embora nem sem-
pre na mesma direção ou no mesmo ritmo15.
Analisar, com base no enfoque proposto por Raewyn Connell, as
perspectivas culturais com o intuito de promover alterações sociais que
proporcionem um ambiente mais favorável à igualdade perpassa por
reconhecer que tanto o imperialismo como a globalização alteram as
condições de existência para as ordens de gênero16. Em suas palavras,
“o colonialismo por si só frequentemente confronta o patriarcado local
com o patriarcado colonizador, causando um conflito turbulento e, às
vezes, muito violento17”.
As relações de gênero nesse contexto devem ser enfocadas de acor-
do com as transformações contemporâneas. O surgimento de novas are-
nas de relações sociais leva a novos padrões de relações de gênero. Isso
significa que a existência de empresas que realizam seus negócios em
escala transnacional, bem como o já referido sistema de comunicação
internacional, que considera não apenas a mídia de massa, mas cada vez
mais e especialmente a internet, somados aos organismos internacio-
nais, como blocos econômicos ou grandes organizações como a ONU im-
pactam também as relações desiguais entre homens e mulheres.
É inevitável, nesse contexto, que os conflitos sejam travados na are-
na global. Afinal, conforme alerta Raewyn Connell, “ordens de gênero lo-
cais atualmente relacionam-se não apenas com outras sociedades locais,
mas também com a ordem de gênero da arena global18”.

15. Tradução livre de: “Change in gender relations occurs on a world scale, though not always in
the same direction or at the same pace”. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers:
Men, Masculinities and Gender Equality in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1804, Spring
2005.
16. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality
in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1804, Spring 2005.
17. Tradução livre de: “Colonialism itself often confronted local patriarchies with colonizing pa-
triarchies, producing a turbulent and sometimes very violent aftermath.” CONNELL, Raewyn.
Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality in the Global Arena.
Signs, v. 30, n. 3, p. 1804, Spring 2005.
18. Tradução livre de: “Local gender orders now interact not only with the gender orders of other
local societies but also with the gender order of the global arena.” CONNELL, Raewyn. Change
among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality in the Global Arena. Signs, v.
30, n. 3, p. 1804, Spring 2005.

64
Cap. 2 • Cultura da Igualdade de Gênero no Brasil …

As transformações sociais e culturais são rápidas, a geração de in-


formação é veloz. Movimentos sociais nascidos nos Estados Unidos ge-
ram impacto no Brasil em questão de poucos dias ou horas. São explica-
ções possíveis para a falta de efetividade de instrumentos meramente
legislativos. Alterar as condições no plano abstrato (normativo, legal)
nem sempre traz reflexos concretos para a realidade prática, embora
seja uma condição sine qua non de transformações efetivas.
Além de considerar tal perspectiva, a análise das relações de gênero
também demanda o enfoque da discussão política. Uma vez que sejam
apenas tratadas como questões das mulheres e, consequentemente, de
pouco interesse para homens e meninos, as discussões de gênero per-
dem relevo.
As mulheres precisam caminhar junto com os homens de modo a
convencê-los da importância de seus debates para que os assuntos que
tocam a desigualdade sejam debatido com a mesma importância de to-
dos os outros.
Afinal, em razão da forma como surgiram na agenda de debates pú-
blicos, as questões de gênero foram largamente relacionadas como de
interesse das mulheres e de pouca preocupação de homens e meninos.
Falar em questão de gênero hoje ainda significa a adoção de uma pers-
pectiva exclusivamente feminina, dirigindo a atuação aos interesses das
mulheres. No entanto, forjar um cenário de igualdade beneficiará mu-
lheres, mas também homens.
É importante, assim, desvelar o cenário arraigado por trás dos ins-
trumentos legislativos dirigidos à igualdade de gênero. Nesse sentido:
Nos tratados e leis direcionados à igualdade de gênero, mulheres são
os sujeitos do discurso. Nas agências ou encontros que formulam, im-
plementam ou monitoram políticas de gênero em geral há mulheres fa-
lando para mulheres, como Department for Women, Women’s Equity Bu-
reau, Prefectural Women’s Centre ou Comission on the Status of Women.
Tais órgãos tem um mandato para agir em nome das mulheres. Eles não
têm um mandato igualmente claro para atuar em relação aos homens19.

19. Tradução livre de: “In both national and international policy documents concerned with gen-
der equality, women are the subjects of the policy discourse. The agencies or meetings that
formulate, implement, or monitor gender policies usually have names referring to women,
such as Department for Women, Women’s Equity Bureau, Prefectural Women’s Centre, or
Commission on the Status of Women. Such bodies have a clear mandate to act for women.
They do not have an equally clear mandate to act with respect to men.” CONNELL, Raewyn.
Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality in the Global Arena.
Signs, v. 30, n. 3, p. 1805, Spring 2005.

65
Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda

Embora não se refiram diretamente aos homens enquanto grupo e


não os tratem em termos concretos, tais tratados envolvem a participa-
ção masculina, ainda que de forma tácita. Os homens compõem, afinal,
o pano de fundo que leva à necessidade da própria existência de tais
instrumentos normativos. No entanto, conquanto sejam parte do pano
de fundo, paradoxalmente são os homens os protagonistas. Quer-se com
isso dizer que o grupo privilegiado na comparação com as mulheres são
os homens. A mera necessidade da existência de um tratado que concla-
me Estados a agirem de modo a favorecer a igualdade de gênero eviden-
cia que há um protagonismo masculino em esferas de poder. Esclarece
Raewyn Connell que, nas discussões sobre violência doméstica, os ho-
mens são apontados como os perpetradores. Já quando se trata de deba-
tes a respeito de gênero e HIV/AIDS, os homens são comumente apon-
tados como os agentes de infecção. Nas tratativas a respeito de exclusão
das mulheres de espaços de poder e de tomada de decisões, homens são,
ainda que implicitamente, tomados como os detentores de poder20.
Embora seja relevante analisar o papel dos homens em várias situ-
ações que colocam as mulheres em desvantagem, há uma dificuldade
adicional. É que a partir do momento em que se considera a presença
masculina a partir da única perspectiva de causador do problema, tor-
na-se mais difícil levantar questões sobre os interesses, problemas ou
diferenças de homens e meninos. Essa dinâmica tem por consequência
impedir ou dificultar o envolvimento deles na execução de práticas que
sejam mais propícias ao fomento de uma cultura de igualdade.
Como resultado, surgem oportunidades para políticas anti-femi-
nistas. A estrutura das políticas por igualdade de gênero, ao privilegiar
um enfoque das mulheres, paradoxalmente, cria um cenário favorável
aos oponentes do feminismo. Esse fenômeno foi apontado nos Estados
Unidos por Raewyn Connell21, mas também é facilmente verificável no
Brasil.

20. Tradução livre de: “However, men are present as background throughout these documents.
In every statement about women’s disadvantages, there is an implied comparison with men
as the advantaged group. In the discussions of violence against women, men are implied, and
sometimes named, as the perpetrators. In discussions of gender and HIV/AIDS, men are com-
monly construed as being “the problem,” the agents of infection. In discussions of women’s
exclusion from power and decision making, men are implicitly present as the power holders.”
CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality
in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1805, Spring 2005.
21. “O resultado disso foi que a estrutura das políticas por igualdade de gênero criou oportu-
nidades para políticas anti-feministas. Oponentes do feminismo descobriram que assuntos

66
Cap. 2 • Cultura da Igualdade de Gênero no Brasil …

A titular do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Huma-


nos, no Brasil, já anunciou como prioridade a preocupação com as co-
res que meninos e meninas vestem22, ou que solução para violência do-
méstica seria ensinar meninos a se portarem como príncipes e meninas
como princesas. A despeito da narrativa subjacente a tais manifestações,
quer se trate de posturas meramente retóricas ou não, não se pode dizer
que seriam políticas com enfoque à construção de uma cultura de igual-
dade, na medida em que reforçam estereótipos e não alteram posturas
individuais ou governamentais.
Outros projetos que podem ser classificados como contrários aos
interesses das mulheres com consequências não apenas retóricas tam-
bém encontram espaço. Exemplo disso é o PL 12.256/2019, em trâmite
no Congresso Nacional, cujo escopo é acabar com as cotas de candida-
turas nas eleições proporcionais de acordo com o sexo. Alega-se como
motivo a pouca eficácia das cotas, já mencionadas no presente estudo.
Argumenta-se que a política não significa reserva para as mulheres, mas
determina piso mínimo de 30% e máximo de 70% para cada gênero,
sendo possível, portanto, que, com a extinção da obrigação, qualquer
partido político ou coligação apresente candidaturas 100% femininas.
Trata-se de argumento falacioso. É evidente que as cotas foram criadas
enfocando a maior participação feminina na política, diante do histórico
déficit de participação. Afinal, as mulheres representam pouco mais da
metade da população e menos de 20% de representantes no Parlamen-
to, como também já referido. No entanto, diante do aparente privilégio

relativos a meninos e meninas podem ser um terreno fértil.” Tradução livre de: “The structure
of gender-equality policy, therefore, created an opportunity for antifeminist politics. Oppo-
nents of feminism have now found issues about boys and men to be fertile ground.” CONNELL,
Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality in the Glo-
bal Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1806, Spring 2005.
22. A fala da Ministra Damares Alves a respeito de meninas vestirem rosa e meninos azul repercu-
tiu no julgamento da ADO 26, a respeito da criminalização da homofobia, levado a efeito pelo
Supremo Tribunal Federal em junho de 2019. Cita-se, a respeito, trecho de voto proferido pelo
Relator, Ministro Celso de Mello: “Essa visão de mundo, Senhores Ministros, fundada na ideia,
artificialmente construída, de que as diferenças biológicas entre o homem e a mulher devem
determinar os seus papéis sociais (“meninos vestem azul e meninas vestem rosa”), impõe,
notadamente em face dos integrantes da comunidade LGBT, uma inaceitável restrição às suas
liberdades fundamentais, submetendo tais pessoas a um padrão existencial heteronormativo,
incompatível com a diversidade e o pluralismo que caracterizam uma sociedade democráti-
ca, impondo-lhes, ainda, a observância de valores que, além de conflitarem com sua própria
vocação afetiva, conduzem à frustração de seus projetos pessoais de vida.” (BRASIL. Supre-
mo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, Rel. Min. Celso de
Mello, julgado em 13 set. 2019, acórdão ainda não publicado).

67
Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda

que se confere às mulheres ao se criar essa reserva, abre-se espaço para


que os ataques daqueles contrários à cota aparentem ter por objetivo a
igualdade quando, em verdade, buscam manter a isonomia masculina
no protagonismo das esferas de poder. Reitera-se: para que uma mulher
seja alçada a uma posição de destaque, necessariamente um homem dei-
xará de ocupá-la. Os revezes e resistências são inevitáveis. Mas envol-
ver os homens e meninos no desenho de tais políticas e fazer com que
possam antever os potenciais benefícios da cultura da igualdade pode
aumentar as chances de sucesso dessas medidas.
Uma vez evidenciada a importância de envolver meninos e homens
em esforços para a construção de uma verdadeira cultura da igualdade,
indaga-se qual seria o papel masculino nesse contexto. Raewyn Connell
rememora que o papel dos homens e dos meninos em relação à igualda-
de de gênero emergiu como uma questão nas discussões internacionais
durante os anos 1990. O desenvolvimento se cristalizou na já menciona-
da Declaração de Pequim, de 1995, adotada pela IV Conferência Mundial
sobre as Mulheres23.
O parágrafo quarto da Declaração de Pequim exorta os Estados
participantes a “encorajar os homens a participar de todas as ações em
busca da igualdade”. A Plataforma de Ação decorrente da Declaração es-
pecificou as áreas em que as ações dos homens e meninos era necessá-
ria e possível: educação, socialização de crianças, cuidado da casa e dos
filhos, educação sexual, violência com base no gênero, equilíbrio entre
responsabilidades para com o trabalho e a família.
No mesmo sentido, é relevante destacar que a Declaração decorren-
te da Assembleia Geral da ONU de 2000 chegou a um enunciado ain-
da mais contundente a respeito da responsabilidade dos homens: “[os
Estados-membro da ONU] enfatizam que os homens devem se envolver
e responsabilizar-se conjuntamente com as mulheres para a promoção
da igualdade de gênero”.
Embora não haja um paralelo semelhante em instrumento norma-
tivo interno, ou seja, o Brasil não disponha de uma lei para conclamar

23. Tradução livre de: “The role of men and boys in relation to gender equality emerged as an
issue in international discussions during the 1990s. This development crystallized at the
Fourth World Conference on Women, held in Beijing in 1995. Paragraph 25 of the Beijing
Declaration committed participating governments to “encourage men to participate fully in
all actions towards equality” (United Nations 2001)”. CONNELL, Raewyn. Change among the
gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p.
1807, Spring 2005.

68
Cap. 2 • Cultura da Igualdade de Gênero no Brasil …

os homens a se envolverem e a se responsabilizarem ao lado das mu-


lheres na promoção de uma cultura de igualdade, é possível pensar em
medidas concretas a esse respeito, a partir da normativa internacional.
Indaga-se o que impediria os homens de agirem nesse sentido e o que
pode ser feito para convencê-los a se engajarem em posturas individuais
e coletivas mais equânimes da perspectiva de gênero.
A importância de tais medidas tornou-se muito evidente e inegável
quando o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
passou a divulgar, desde 2003, em seu relatório anual sobre desenvol-
vimento humano, estatísticas a respeito de índices de desenvolvimento
relativo a gênero e medida de empoderamento de gênero. As alterações,
segundo Raewyn Connell, foram dramáticas, já que trouxe à tona a evi-
dência de que diversos países estão muito distantes da igualdade: “Ficou
claro que, globalmente, os homens têm muito a perder se perseguirem
a equidade de gênero porque os homens, coletivamente, continuam a
receber muitos dividendos do patriarcado24.”
Embora colham muitas vantagens do patriarcado, é importante re-
conhecer que os homens também são impactados por suas desvanta-
gens. E nesse olhar é que está a originalidade do pensamento de Ra-
ewyn Connell e da importância de refletirmos, no Brasil, a respeito dessa
perspectiva. Como a autora aponta, para cada uma das sub-estruturas de
gênero, há um padrão de vantagens para homens, mas há também um
padrão de toxicidade ou desvantagens25.
Para exemplificar as desvantagens, Raewyn Connell26 cita que, em
relação à divisão social do trabalho, é evidente que os homens, vistos
como um grupo, recebem a maior parte do rendimento econômico e es-
tão presentes, em maioria, nas posições de comando. Ao mesmo tempo,
contudo, os homens também providenciam a maior parte do contingente

24. Tradução livre de: “This produces a dramatic outcome, a league table of countries ranked in
terms of gender equality, which shows most countries in the world to be far from gender-
-equal. It is clear that, globally, men have a lot to lose from pursuing gender equality becau-
se men, collectively, continue to receive a patriarchal dividend.” CONNELL, Raewyn. Change
among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality in the Global Arena. Signs, v.
30, n. 3, p. 1808, Spring 2005.
25. Tradução livre de: “If we look separately at each of the substructures of gender, we find a pat-
tern of advantages for men but also a linked pattern of disadvantages or toxicity”. CONNELL,
Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality in the Glo-
bal Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1808, Spring 2005.
26. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality
in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1808, Spring 2005.

69
Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda

disposto a executar tarefas perigosas. São eles, também, as maiores víti-


mas dos acidentes de trabalho27, bem como os que pagam a maior parte
dos impostos e são defrontados cotidianamente com maior pressão para
se manterem empregados.
Quando se trata de poder, os homens também estão no controle das
instituições de repressão, bem como dos meios de violência, mas são
eles também as vítimas mais suscetíveis da própria violência – seja mi-
litar ou de crimes. No Brasil, tal realidade em relação aos envolvidos nas
estatísticas de segurança pública é evidente. Ainda, muito mais homens
do que mulheres compõem o conjunto da população encarcerada28. Nos
países que admitem pena de morte, os homens também são maioria en-
tre os executados29. Embora a autoridade masculina tenha maior pres-
tígio social, contudo, ainda de acordo com Raewyn Connel, homens e
meninos estão sub-representados em estudos humanísticos e em expe-
riências que enfocam as relações humanas bem como aquelas que envol-
vem crianças de tenra idade30.
É interessante notar, contudo, que as desvantagens causadas pela
desigualdade de gênero que atingem os homens são também, de uma
maneira geral, as condições que propiciam as vantagens. Nesse sentido,
Raewyn Connell aponta que, para citar um exemplo, não há como os ho-
mens deterem o poder estatal sem que alguns deles se tornem agentes
da violência, assumindo, por exemplo, as funções de policiais31.
Na mesma esteira, a autora também observa que não há outra forma
para que os homens sejam os maiores beneficiários do trabalho domés-
tico feminino e da “carga mental” que elas assumem sem que muitos

27. No Brasil, dados do IBGE de 2013 mostram que 3.5 milhões de homens acima de 18 anos se
acidentaram no trabalho, enquanto, no mesmo período de um ano, 1.5 milhão de mulheres
sofreram acidentes.
28. No Brasil, dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, controlado pelo Conselho
Nacional de Justiça mostram que, em 2018, os homens eram 95% do contingente de cerca de
800 mil presos.
29. Dados da Anistia Internacional, de 2014, revelam que, das 35 execuções levadas a efeito na-
quele ano nos Estados Unidos, apenas 2 foram de mulheres.
30. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality
in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1809, Spring 2005.
31. Tradução livre de: “The disadvantages listed above are, broadly speaking, the conditions of
the advantages. For instance, men cannot hold state power without some men becoming the
agents of violence”. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities
and Gender Equality in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1809, Spring 2005.

70
Cap. 2 • Cultura da Igualdade de Gênero no Brasil …

deles percam as conexões mais próximas, por exemplo, com os filhos em


idade muito tenra32.
A perspectiva de Raewyn Connell, portanto, demonstra que os ho-
mens colhem muitas vantagens da desigualdade de gênero e muitos
dividendos do patriarcado. É inegável. No entanto, e nisso reside o in-
teresse do presente estudo, ao mesmo tempo em que há vantagens, há
desvantagens, as quais nem sempre são mencionadas ou colocadas em
destaque. Para convencer e engajar corações e mentes de homens e me-
ninos a construírem uma verdadeira cultura de igualdade, evidenciar as
desvantagens é um ponto-chave.
Nesse sentido, contudo, faz-se necessário ressaltar que nem sempre
os homens que recebem a maior parte dos benefícios da desigualdade
de gênero e aqueles que contribuem com parcela considerável de sacri-
fício e desvantagem são os mesmos indivíduos. Daí o alerta de Raewyn
Connell33:
Numa escala global, os homens beneficiários da riqueza corporativa,
proteção física e seguro saúde caro são um grupo muito diferente da-
queles homens que abastecem a força de trabalho dos países em desen-
volvimento. Classe social, raça, origem nacional e regional, bem como
diferenças geracionais dividem a categoria “homens”, espalhando os
benefícios e os custos das relações de gênero de forma bastante dis-
tinta entre os homens. Há muitas situações em que os grupos de ho-
mens veem seus interesses como mais alinhados aos das mulheres de
sua comunidade do que com os demais homens. Não surpreende que os
homens respondam de maneira muito diversa às políticas de igualdade
de gênero.
O que se pretende, com essa análise, é utilizar tais fatores em favor
da construção da igualdade. Essa perspectiva não pode ser descurada

32. Tradução livre de: “Men cannot be the beneficiaries of women’s domestic labor and “emotion
work” without many of them losing intimate connections, for instance, with young children”.
CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality
in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1809, Spring 2005.
33. Tradução livre de: “On a global scale, the men who benefit from corporate wealth, physical
security, and expensive health care are a very different group from the men who provide the
workforce of developing countries. Class, race, national, regional, and generational differen-
ces cross-cut the category “men,” spreading the gains and costs of gender relations very une-
venly among men. There are many situations where groups of men may see their interest
as more closely aligned with the women in their communities than with other men. It is not
surprising that men respond very diversely to gender-equality politics.” CONNELL, Raewyn.
Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality in the Global Arena.
Signs, v. 30, n. 3, p. 1809, Spring 2005.

71
Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda

quando do desenho de políticas públicas, da formação de instrumentos


legislativos nacionais ou internacionais e nem mesmo da definição de
posturas individuais e coletivas no cotidiano.
Assim, Raewyn Connell aponta que grande parte dos ganhos históri-
cos que as mulheres obtiveram só foram possíveis em razão de alianças
formadas com homens que detinham autoridade política ou mesmo o
controle de organizações34.
Existe, de fato, uma história considerável de apoio para a igualdade
de gênero feita pelos homens. Pode-se falar, inclusive, em uma tradição
de advocacy nesse campo feita por intelectuais homens. Para citar três
exemplos, Raewyn Connell35 se vale do caso de John Stuart Mill, que, em
1912, estabeleceu a presunção de direitos iguais. Henrik Ibsen, na “Casa
de Bonecas”, de 1923, também tornou a opressão de gênero masculina
um tema cultural importante. Na geração seguinte, o psicanalista Alfred
Adler reforçou o argumento pela igualdade de gênero.
No Brasil, desde meados do século XIX houve ações isoladas de
apoios de homens em relação ao feminismo e, contemporaneamente, já
se pode falar em homens que se definem como aliados do feminismo. Há
iniciativas como o Instituto Papai, sediado em Recife, que desde 1997
promove ações e educação com vistas à igualdade de gêneros. Na déca-
da de 1970 pesquisadores já se apresentavam como contrários à pers-
pectiva separatista entre homens e mulheres, percebendo a importância
de esforços conjuntos36. Assim, embora resistências e retrocessos sejam
percebidos, a escala de apoio também vem se fortalecendo já há algumas
décadas.

34. Tradução livre de: “Many of the historic gains by women’s advocates have been won in allian-
ce with men who held organizational or political authority at the 1810 ❙ Connell time.” CON-
NELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality in the
Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1810, Spring 2005.
35. Tradução livre de: “John Stuart Mill published “The Subjection of Women” (1912), which esta-
blished the presumption of equal rights; and the Norwegian dramatist Henrik Ibsen, in plays
like A Doll’s House ([1923] 1995), made gender oppression an important cultural theme. In
the following generation, the pioneering Austrian psychoanalyst Alfred Adler established a
powerful psychological argument for gender equality (Connell 1995).” CONNELL, Raewyn.
Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality in the Global Arena.
Signs, v. 30, n. 3, p. 1809, Spring 2005.
36. AZEVEDO, Mariana; MEDRADO, Benedito; LYRA, Jorge. Homens e o Movimento Feminista
no Brasil: rastros em fragmentos de memória. Cadernos Pagu, n. 54, 2018. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332018000300504&ln
g=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 31 ago. 2019.

72
Cap. 2 • Cultura da Igualdade de Gênero no Brasil …

Raewyn Connell evidencia que por vezes há um padrão de um ter-


ço/um terço/um terço, ou seja, aproximadamente um terço dos homens
apoiam mudanças em direção à igualdade, um terço em oposição e um
terço indecisos ou intermediários. Mesmo assim, estudos nos EUA, Ale-
manha e Japão mostram que, a longo prazo, o grupo de apoio às mudan-
ças se amplia, especialmente entre os membros da nova geração37.
Embora seja observável que alguns homens e grupos de homens
aceitam a mudança, eis que adotam princípios democráticos e de igual-
dade, e entendem que os espaços de poder podem e devem ser compar-
tilhados, na prática ainda agem de modo a favorecer a dominação mas-
culina dos espaços públicos e atribuem as tarefas doméstica e o cuidado
com os filhos às mulheres.
Raewyn Connell inclui, dentre as razões para a resistência dos ho-
mens às mudanças, os dividendos do patriarcado e ameaças à identida-
de que ocorrem. Afinal, se as definições sociais de masculinidade estão
intrinsecamente ligadas a ser o chefe de família ou, na expressão em in-
glês, ser o “breadwinner”, então há um risco inerente de que os homens
se ofendam com o progresso profissional feminino, porque ele pode fa-
zer parecer que os homens sejam menos dignos de respeito. As diversas
formas de resistência podem também refletir uma espécie de defesa ide-
ológica da supremacia masculina. Nesse sentido38,
[…] pesquisas sobre violência doméstica sugerem que homens agresso-
res frequentemente têm visões conservadoras sobre o papel das mulhe-
res na família. Em muitas partes do mundo, vigoram ideologias que jus-
tificam a supremacia nos terrenos da religião, biologia, tradição cultural
ou organizacionais, como no exército. É um equívoco pensar que essas
ideias estão em desuso.

Como se vê, embora as ideias que fomentam a resistência masculina


às transformações rumo à igualdade de gênero ainda vicejem, é possível
encontrar razões para acreditar que cada vez mais os homens apoiam e
apoiarão uma sociedade mais justa com enfoque na perspectiva de gêne-
ro. Esse é o tema a ser explorado no próximo tópico.

37. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality
in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1810, Spring 2005.
38. Tradução livre de: “In many parts of the world, there exist ideologies that justify men’s su-
premacy on grounds of religion, biology, cultural tradition, or organizational mission (e.g., in
the military). It is a mistake to regard these ideas as simply outmoded.” CONNELL, Raewyn.
Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality in the Global Arena.
Signs, v. 30, n. 3, p. 1812, Spring 2005.

73
Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda

4. RAZÕES PARA A MUDANÇA


Reformas ou políticas que suportem a igualdade de gênero devem
ser bem desenhadas e, preferencialmente, ser dirigidas a um processo
cultural de mudança em andamento. Quando esses dois requisitos são
preenchidos, tem-se como resultado o incremento do apoio ativo dos
homens para atingir o status de igualdade. Como visto, há razões para
crer que muitos grupos de homens estão conscientes e têm capacidade
de implementar mudanças individuais e coletivas para a igualdade de
gênero. Nesse contexto, Raewyn Connell indaga: quais razões para a mu-
dança são mais prováveis que os homens percebam?
A autora aponta que, em primeiro lugar, os homens não são ilhas, ou
seja, não são indivíduos isolados. Vivem em sociedade. Homens e meni-
nos, afinal, travam inúmeras relações sociais, muitas delas com meninas
e mulheres, sejam esposas, parceiras, mães, tias, filhas, sobrinhas, ami-
gas, colegas de sala, de trabalho, vizinhas e assim por diante. É possível
concluir, portanto, que a qualidade da vida de cada homem depende em
grande escala da qualidade de tais relacionamentos. Pode-se então afir-
mar que há um evidente interesse da parte dos homens na equidade de
gênero da perspectiva relacional39.
Por exemplo, um grande número de homens é pai e, estatisticamen-
te, cerca de metade de sua prole é formada por meninas. Alguns homens
exercem a função de pais sozinhos, ou seja, sem o apoio de mães ou par-
ceiros. Logo, estão profundamente envolvidos com o cuidado. Mesmo
para casais com a presença mulheres, verifica-se que muitos homens
desenvolvem relações próximas com seus filhos e filhas e estudos psi-
cológicos reforçam a importância de tais relacionamentos, não apenas
para as crianças. Cada vez mais jovens homens estão mais engajados na
paternidade, ao redor de todo o mundo. Proporcionar o crescimento de
suas filhas em um ambiente que ofereça às mulheres segurança, liberda-
de e oportunidade para desenvolver seus talentos é uma razão poderosa
para que os homens apoiem a equidade de gênero40.
Em segundo lugar, Raewyn Connell aponta que os homens podem
querer se afastar dos efeitos tóxicos que o padrão de gênero tem para

39. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality
in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1813-1814, Spring 2005.
40. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality
in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1814, Spring 2005.

74
Cap. 2 • Cultura da Igualdade de Gênero no Brasil …

eles, como morte precoce por acidente, homicídio e suicídio, doenças do


trabalho, níveis mais elevados de abuso de drogas, e uma relativa resis-
tência em buscar cuidado médico mesmo quando necessário41.
Em terceiro lugar, ainda de acordo com a autora, os homens podem
encontrar boas razões para apoiar mudanças e construir a igualdade de
gênero ao perceberem a relevância para o bem-estar da comunidade.
Afinal, em situações de pobreza e precárias condições de emprego, fle-
xibilidade na divisão do trabalho doméstico pode se tornar crucial para
um lar que requeira que tanto o homem como a mulher tenham renda.
As condições de segurança podem também se beneficiar de uma re-
dução na rigidez das masculinidades. A violência está fortemente asso-
ciada com padrões dominantes de masculinidade e com desigualdade de
gênero. Mover-se para longe de tais poderes é mais fácil se os homens
adotarem estilos historicamente tidos por “femininos” de resolução de
conflitos e formas de negociação não violentas42.
Por último, os homens podem apoiar reformas de gênero porque a
igualdade é coerente com seus princípios éticos ou políticos. Tais prin-
cípios podem ser religiosos, socialistas ou crenças largamente democrá-
ticas, não importa. O pensamento já referido de John Stuart Mill já conta
mais de 150 anos e os princípios clássicos liberais por ele defendidos,
bem como a ideia de direitos humanos iguais ainda atraem muitos gru-
pos de homens43.
Para construir uma sociedade mais justa e plural, em que homens e
mulheres possam caminhar juntos rumo à igualdade, é necessário, por-
tanto, reconhecer que o estado constitui relações de gênero em várias
formas e todas suas políticas de gênero afetam os homens. Muitas polí-
ticas públicas são sobre os homens sem reconhecerem esse fato, como
as de segurança, por exemplo. Os espaços de poder são masculinizados,

41. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality
in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1814, Spring 2005.
42. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality
in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1814, Spring 2005.
43. Tradução livre de: “Finally, men may support gender reform because gender equality follows
from their political or ethical principles. These may be religious, socialist, or broad democra-
tic beliefs. Mill argued a case based on classical liberal principles a century and a half ago, and
the idea of equal human rights still has purchase among large groups of men”. CONNELL, Ra-
ewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality in the Global
Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1814, Spring 2005.

75
Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda

sejam agências do setor público, corporações privadas ou sindicatos44.


Em cada um desses espaços de poder, porém, podem ser encontrados
homens como um compromisso em relação à igualdade de gênero45. Não
há outra forma de trabalhar em direção à equidade. Afinal, nem os ho-
mens podem viver como ilhas, muito menos as mulheres. Buscar resul-
tados efetivos que levem à igualdade de gênero necessita do amparo dos
homens no topo das organizações. Raewyn Connell aponta a direção:
Convidar os homens a encerrar seus privilégios e a reconstruir as mas-
culinidades de modo a sustentar a equidade de gênero choca muitas
pessoas como um projeto estranho ou utópico. No entanto, este projeto
já está em andamento. Muitos homens ao redor do mundo estão enga-
jados em reformas de gênero, pelas boas discussões expostas acima.46

5. CONCLUSÕES
Diante das evidências expostas acerca das razões para homens con-
tribuírem na implementação de uma sociedade mais justa para as mu-
lheres sob o enfoque de gênero e da necessidade de trabalho contínuo
e cooperativo entre homens e mulheres rumo a este objetivo comum,
conclui-se que para desenho de políticas públicas de igualdade não há
como descurar do desempenho de tarefas pelos homens. Compreender
que colocar em prática leis e direitos que determinam a igualdade de
salário levará os homens a perceber que meninos também serão benefi-
ciados por essa prática, já que suas mães terão seus direitos respeitados.
Meninas filhas dos homens que se envolverem nessa prática também
poderão ser beneficiadas, quando atingirem a idade para se tornarem
profissionais. No mesmo sentido, respeitar a legislação a respeito da
cota para mulheres nas candidaturas levará paulatinamente a mais mu-
lheres eleitas representantes e à aprovação de cada vez mais instrumen-
tos normativos que consideram a perspectiva da igualdade. Essa prática

44. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality
in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1816, Spring 2005.
45. “In each of these sites, some men can be found with a commitment to gender equality, but in
each case that is an embattled position.” CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers:
Men, Masculinities and Gender Equality in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1816, Spring
2005.
46. Tradução livre de: “Inviting men to end men’s privileges, and to remake masculinities to sus-
tain gender equality, strikes many people as a strange or utopian project. Yet this project is
already under way. Many men around the world are engaged in gender reforms, for the good
reasons discussed above.” CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculi-
nities and Gender Equality in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1817, Spring 2005.

76
Cap. 2 • Cultura da Igualdade de Gênero no Brasil …

não apenas alçará mulheres a espaços de tomada de decisões e de poder,


mas também ampliará as oportunidades de igualdade para cidadãos em
um ambiente mais plural e diverso que também poderá contribuir para
uma sociedade menos violenta, o que, como exposto, afeta mais os ho-
mens. Em relação à previdência, sabedores de que são os beneficiários
da divisão injusta do trabalho doméstico, da “carga mental” e do fato
de serem as mulheres “caregivers”, há maiores chances de os homens
entenderem que, ao menos durante uma transição, é justo que mulheres
tenham requisitos para concessão de benefícios previdenciários menos
rigorosos, eis que boa parte do trabalho doméstico e informal não remu-
nerado está ao seu encargo.
É evidente que, diante do amplo espectro das masculinidades, se-
ria ingênuo esperar consenso pela igualdade de gênero no mundo todo.
No entanto, Raewyn Connell nos aponta que é possível esperar é que o
apoio para a igualdade de gênero se torne ao menos hegemônico dentre
os homens47.
O momento clama por uma consciência bastante difundida no sen-
tido de que a transformação é algo que os homens podem compartilhar
numa perspectiva prática. Somente com esta consciência é que podere-
mos cumprir o objetivo do desenvolvimento sustentável n.º 5 da Agenda
2030 em andamento pela Organização das Nações Unidas: igualdade de
gênero. A responsabilidade conjunta entre homens e mulheres, reconhe-
cida desde a Declaração de Pequim, de 1995, adotada pela IV Conferên-
cia Mundial sobre as Mulheres e as lições de Raewyn Connell são pres-
supostos necessários para que os homens e meninos continuem sendo
gatekeepers, contudo de uma sociedade mais justa, inclusiva e solidária,
contra todas as formas de discriminação, especialmente a de gênero.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Mariana; MEDRADO, Benedito; LYRA, Jorge. Homens e o Movimento Femi-
nista no Brasil: rastros em fragmentos de memória. Cadernos Pagu, n. 54, 2018.
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
-83332018000300504&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 31 ago. 2019.
BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC 6/2019. Disponível em <https://www.camara.
leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2192459#>. Acesso em
29 ago. 2019.

47. CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender Equality
in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, p. 1818, Spring 2005.

77
Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omis-


são 26, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 13 set. 2019, acórdão ainda não pu-
blicado.
CONNELL, Raewyn. Change among the gatekeepers: Men, Masculinities and Gender
Equality in the Global Arena. Signs, v. 30, n. 3, Spring 2005.
INTER-PARLIAMENTARY UNION. Women in national parliaments: situation as of 1st
February 2019. Disponível em: <http://archive.ipu.org/wmn-e/classif.htm>. Aces-
so em: 29 ago. 2019.
OLIVEIRA, Guilherme. Divisão de tarefas domésticas ainda é desigual no Brasil. Senado
Notícias: Especial Cidadania, 08 maio 2018. Disponível em <https://www12.sena-
do.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/divisao-de-tarefas-domesticas-
-ainda-e-desigual-no-brasil/divisao-de-tarefas-domesticas-ainda-e-desigual-no-
-brasil>. Acesso em: 29 ago. 2019.
PIOVESAN, Flávia. FACHIN, Melina Girardi. Diálogos sobre o feminino: a proteção dos
direitos humanos das mulheres no Brasil à luz do impacto do sistema interameri-
cano. In: FACHIN, Melina Girardi; BARBOZA, Estefânia Maria Queiroz; SILVA, Chris-
tine Oliveira Peter (Coord.). Constitucionalismo Feminista. 1. ed. Salvador: Juspo-
dium, 2018, p. 169.
SILVA, Christine Oliveira Peter. Constitucionalismo Feminista ressoa no Supremo Tribu-
nal Federal. Consultor Jurídico, 29 dez. de 2018. Disponível em <https://www.
conjur.com.br/2018-dez-29/observatorio-constitucional-constitucionalismo-fe-
minista-ressoa-supremo-tribunal-federal>. Acesso em 29 ago. 2019.
WORLD ECONOMIC FORUM. Global Gender Gap Report 2018: Brazil. <http://reports.
weforum.org/global-gender-gap-report-2018/data-explorer/#economy=BRA>.
Acesso em: 29 ago. 2019.

78
3
QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO
DEMOCRÁTICO E GÊNERO
Heloisa Fernandes Câmara

Sumário: 1. Democracia liberal e seu declínio; 2. Autoritarismos e gênero; 3.


Brasil e o retrocesso às pautas feministas e de diversidade; 4. Considerações
finais; 5. Referências.

Nos últimos anos assiste-se ao processo de declínio da democracia


liberal. O fenômeno tem sido tratado em diferentes perspectivas e por
diversos autores. Como exemplo, temos os conceitos de recessão demo-
crática (Larry Diamond), decadência democrática (Tom Gerald Daly),
autoritarismo competitivo (Levitsky e Way), populismo constitucional
(Paul Blokker), legalismo autocrático (Kim Schappele), decomposição
constitucional (Jack Balkin), crise constitucional (Jack Balkin e Stan-
dford Levinson).
Diante de cenários distintos, chamaremos este processo de declínio
democrático ou ressurgimento de autoritarismos. A variedade de termos
não é estética, ela ressalta diferenças na forma como o fenômeno tem
ocorrido nos países de acordo com situações políticas e jurídicas espe-
cíficas. Parte da literatura que trata de queda da democracia liberal sob
o viés de gênero o faz tendo por análise países populistas, autoritários e
a queda democrática decorrentes de sistema neoliberal, situações nota-
damente diversas. Não se trata, portanto, de equivaler tais experiências,
mas estruturar como aspecto comum a apropriação da retórica acerca
de gênero diante da queda democrática. Neste tocante os regimes tem se
apropriado de visão de gênero atrelada ao papel tradicional de mãe den-
tro da estrutura familiar, além de manifestações abertamente misóginas
das principais lideranças partidárias de forma que o antifeminismo em

79
Heloisa Fernandes Câmara

suas diversas vertentes tem sido a cola ou articulação que tem mantido
a articulação entre vários partidos com os de extrema direita1. Este pro-
cesso tem levado a retrocessos tanto em direitos sexuais e reprodutivos
quanto em proteção de gênero em sentido amplo.
Para tratar da relação entre gênero e queda democrática este artigo
está dividido em três partes. Na primeira serão delineadas característi-
cas do processo de declínio democrático atual. Será revisada parte da
literatura atual sobre a relação entre declínio democrático e constitucio-
nalismo. Também nessa parte será brevemente apresentada a relação
entre igualdade de gênero e democracia. Em sequência trato de como
estes movimentos autoritários tem tratado questões relacionadas à gê-
nero. Essa relação se dá na dupla perspectiva de que tais movimentos
ancoram-se em discursos antifeministas e anti-LGBT, em defesa dos pa-
péis sociais tradicionalmente estabelecidos. A segunda forma de com-
preender essa relação se dá pelos efeitos, ou seja, como países em que
há declínio democrático tem alterado políticas públicas relacionadas à
igualdade de gênero. Na última parte trato da situação brasileira atual e
das ameaças às políticas públicas e direitos relacionados à gênero.
É fundamental estabelecer que o antifeminismo não é um movimen-
to novo, mas que ganha impulso nos novos governos populistas e de ex-
trema direita, retroalimentando tais discursos. Pela limitação de espaço
não foi possível aprofundar a análise e alcance dos movimentos antife-
ministas, mas devido à importância do tema é importante que esteja na
agenda de pesquisas tanto sobre direitos relacionados à gênero quanto
no estudo sobre os novos autoritarismos.

1. DEMOCRACIA LIBERAL E SEU DECLÍNIO


Após os processos políticos ocorridos na década de 1970 no sul da
Europa e América Latina iniciou-se na Ciência Política linhas de estudo
que pretendiam compreender o processo de transição para e consolida-
ção da democracia2. As linhas chamadas de transitologia e consolidologia

1. VON BARGEN, Henning, Unmüßig, Barbara. Anti-feminism: the hinge connecting the right-
-wing periphery and the centre. Heinrich Böll Stiftung: Gunda Werenr Institute – Femi-
nism and Gender Democracy, 11 maio 2018. Disponível em: <https://www.gwi-boell.de/
en/2018/05/11/anti-feminism-hinge-connecting-right-wing-periphery-and-centre>. Aces-
so em: 16 set. 2019.
2. Segundo Mainwaring et al, para ser democrático deve-se avaliar quatro dimensões: a – o che-
fe do Executivo e o Legislativo devem ser escolhidos em eleições competitivas e livres, b – o
direito de voto deve ser extensivo à grande maioria da população adulta, c – a proteção de

80
Cap. 3 • QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO

tinham por objeto central compreender quais elementos favorecem ou


dificultam a criação e manutenção de um regime democrático. A univer-
salização da democracia após a queda do muro de Berlim foi considera-
do por Fukuyama como o “fim da história”, ou seja, o triunfo do modelo
democrático liberal3.
Apesar das tentativas de estabelecimento de critérios confiáveis de
mensuração e avaliação, a democracia é variável, sujeita a mudanças de
critérios e funcionamento. De forma que um dos sentidos que devemos
enfrentar é o de democracia constitucional.
Bruce Ackerman4 ressalta que nos últimos 50 anos houve a ascen-
são global do constitucionalismo com constituições escritas, controle de
constitucionalidade e separação dos poderes, tornando o constituciona-
lismo liberal como modelo disseminado pelos países. Democracia cons-
titucional pode ser definida a partir de suas instituições principais: leis,
estruturas estáveis, forma de governo e práticas oficiais que propiciam o
funcionamento democrático, considerando democracia a partir de três
requisitos: eleições livres e justas; direitos de associação e expressão, e,
estado de direito5.
Após o aparente consenso democrático, quando países com demo-
cracia consolidada que nunca passaram por autoritarismos, como os
Estados Unidos, e recentemente consolidadas, como a Polônia, enfren-
taram ameaças aos critérios democráticos básicos gerou-se intensa pre-
ocupação nos analistas políticos. O processo de declínio tem ocorrido
tanto em países de democracia consolidada, quanto tem havido piora na

direitos políticos e liberdades, d – as autoridades eleitas devem ter o poder concreto de gover-
nar. Democráticos são os regimes que não violam nenhum dos quatro critérios expostos aci-
ma, é autoritário se apresentar uma ou mais violações substanciais aos critérios ou semide-
mocrático se apresentam apenas falhas parciais em uma ou mais categorias. MAINWARING,
Scott, BRINKS, Daniel, PÉREZ-LIÑÁN, Aníbal. Classifying Political Regimes in Latin America,
1945-2004. In: MUNCK, Gerardo L. (Ed.). Regimes and Democracy in Latin America. Theories
and Methods. Oxford University Press, New York, p. 123-160, 2007, p. 137.
3. Embora os conceitos de democracia e constitucionalismo estejam sendo usados com relativa
sobreposição, cite-se o livro “O Povo contra a Democracia”, de Yascha Mounk, cujo argumento
central é justamente a separação de ambos, de forma a poder ser identificadas “democracia
iliberal” e “liberalismo antidemocrático”.
4. ACKERMAN, Bruce. The Rise of World Constitutionalism. Faculty Scholarship Series. Paper
129, 1997. Disponível em: <http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/129>. Acesso
em: 16 set. 2019.
5. GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. How to Save a Constitutional Democracy. University of Chicago
Press, 2018, p. 8.

81
Heloisa Fernandes Câmara

qualidade da democracia em países não completamente democráticos6.


Portanto, o viés de que os países estariam necessariamente em processo
de democratização é falso, ou ao menos parcial7.

Entretanto, as ameaças atuais não são iguais às ocorridas em déca-


das anteriores. Ao invés de golpes de estado dados por militares, com
posterior suspensão da lei e da constituição, as ameaças atuais ocorrem
a partir de líderes eleitos que usam a ordem jurídica de forma a dis-
torcê-la, fragilizando as instituições e o próprio direito. Assim, não há
uma atuação tipicamente ilegal ou inconstitucional, mas a utilização e
deturpação do próprio direito. Isso implica dizer que o direito é usado,
alterado e manipulado de maneira a estrangular as limitações do poder
e propiciar que o governante subverta as ferramentas que o impedem de
concentrar o poder.

Com distinções significativas, este processo tem ocorrido nos Esta-


dos Unidos8, Polônia, Hungria, Turquia e mais recentemente no Brasil9.
A eleição de presidentes populistas10 com fraco comprometimento com
a democracia liberal tem sido o estopim para o uso do direito de forma
não liberal. Os líderes aproveitam-se do apoio obtido e modificam as leis
e a constituição, diminuindo as barreiras relacionadas à separação das
funções de estado, possibilitando a perpetuação no poder.

6. Como exemplos: The Democracy Project, 2018, que aponta desafios democráticos e queda
de confiança nas instituições. O relatório Nations in Transit (2018) que avalia 29 países do
Leste Europeu registro a maior queda nos índices democráticos na história do projeto. O pro-
jeto DEM-DEC tem por objetivo central avaliar a fragilização da democracia no mundo (www.
democratic-decay.org).
7. Entre 1974 e 2014 29% de todas as democracias do mundo colapsaram. Desde 2000, houve
25 colapsos. Destes, somente 8 foram resultados de intervenções militares; 13 ocorreram
através de do fortalecimento do executivo levado à cabo por executivos eleitos. DIAMOND,
Larry. Facing Up to the Democratic Recession. Jornal of Democracy, v. 26, n. 1, p. 141-155,
2015, p. 147.
8. Dentre outros LEVITSKY, Steven, ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Rio de Janei-
ro: Zahar, 2018; SUNSTEIN, Cass (Ed.). Can it Happen Here? Authoritarianism in America. New
York: Harper Collins Publishers, 2018.
9. HUNTER, Wendy; POWER, Timothy J. Bolsonaro and Brazil’s Illiberal Backlash. Journal of De-
mocracy, v. 30, n. 1, 2019.
10. Embora o termo permita sentidos bastante amplos, utiliza-se aqui para designar líderes com
baixa adesão às regras do jogo e instituições, e que afirmam representar de forma direta “o
povo”, entendido como um todo uniforme no qual as minorias e críticos são apresentados
como inimigos.

82
Cap. 3 • QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO

Levitsky e Ziblat11, Runciman12 analisaram como democracias con-


solidadas, especialmente a norte-americana tem enfrentado ameaças à
democracia. Mark Tushnet partiu do conceito de autoritarismo competi-
tivo para tratar de alguns regimes como Cingapura como constituciona-
lismo autoritário13.David Landau trabalha o conceito constitucionalismo
abusivo para descrever o processo de utilização das regras constitucio-
nais de mudança para erodir a ordem democrática14.
Está-se diante de processo no qual apesar da manutenção da cons-
tituição e de processo eleitoral competitivo, fragilizam-se os mecanis-
mos de controle. Javier Corrales nomeia esta situação como legalismo
autoritário15, o qual se pauta em três elementos “o uso, abuso e não uso
do direito em benefício do poder executivo”. Kim Scheppele utiliza-se
do conceito para descrever “o fenômeno de uso de mandatos eleitorais
e mudanças constitucionais e legais para promover uma agenda não
liberal”16.
A fragilização da democracia liberal leva também à ameaças na pro-
teção dos direitos humanos17. É consenso que a proteção efetiva a esses

11. LEVITSKY, Steven, ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem.


12. RUNCIMAN, David. Como a Democracia Chega ao Fim. São Paulo: Todavia, 2018.
13. Segundo Tushnet no constitucionalismo autoritário: 1 – o partido toma todas as decisões, é o
que faz o regime autoritário, 2 – não prende oponentes arbitrariamente, embora possa esta-
belecer sanções, 3 – ainda que tenham sido sancionados, há possibilidade de crítica, 4 – o re-
gime opera eleições relativamente livres e justas, 5 – o partido dominante é sensível à opinião
pública e altera suas políticas, 6 – podem ser desenvolvidos mecanismos para garantir que
a oposição não ultrapasse o nível desejado, 7 – os tribunais são razoavelmente independen-
tes e também aplicam a ruleof law. TUSHNET, Mark. Authoritarian Constitutionalism: some
conceptual issues. In: GINSBURG, Tom; SIMPSER, Albert. Constitutions in Authoritarian Regi-
mes. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, e também TUSHNET, Mark. Authoritarian
Constitutionalism. Cornell Law Review, v. 100, n. 2, 2015.
14. LANDAU, David. Abusive Constitutionalism. University of California, Davis, v. 47, 2013, p. 189.
15. CORRALES, Javier. Autocratic Legalism in Venezuela. Journal of Democracy, v. 37, p. 38-45,
2015.
16. SCHEPPELE, Kim Lane. Autocratic Legalism. The University of Chicago Law Review, v. 85, n.
2, p. 548, 2018. Disponível em: <https://lawreview.uchicago.edu/volume-85-issue-2-mar-
ch-2018-239–608>. Acesso em: 16 set. 2019.
17. “Com os líderes populistas alimentando o nacionalismo e violando os direitos básicos de
grupos vulneráveis, como as minorias religiosas e raciais no Norte e no Sul, a eficácia e le-
gitimidade limitadas das estratégias de nomeação e vergonha focadas nos centros de poder
tradicionais foram corroídas. Além disso, a proliferação de democracias iliberais coloca uma
pressão considerável nas faltas e pontos cegos da arquitetura contemporânea do campo dos
direitos humanos.” Tradução livre. RODRIGUEZ-GARAVITO, César; GOMEZ, Krizna (Ed.). Ri-
sing to the Populist Chalenge: a new playbook for human rights actors. Bogotá: Dejusticia,
2018, p. 12.

83
Heloisa Fernandes Câmara

direitos demanda a existência de estado de direito e democracia. Assim


a fragilização dos pactos relacionados à participação e proteção de direi-
tos tem como efeito a fragilização da cultura de direitos humanos, com a
consequente perda de efetividade dos mecanismos de proteção. A retó-
rica dos movimentos autoritários é contrária aos direitos humanos, que
de acordo com o país pode ser visto como universalizante e contrário ao
sentimento nacional, ou direitos que amparam o “inimigo”.
Democracia e igualdade de gênero18 são interdependentes, de forma
que quanto maior a igualdade de gênero, mais impulso democrático e
quanto mais consolidada uma democracia, maior a igualdade de gêne-
ro. Conforme o Pacto Internacional de Progresso Social “A democracia é
uma aliada do projeto feminista e uma necessidade condição para o seu
sucesso”19. Segundo Inglehart et al20 países que estão no topo do ranking
de direitos civis e liberdades políticas, tem proporção maior de mulhe-
res no parlamento, um dos aspectos de avaliação de igualdade de gêne-
ro. A relação entre democracia e igualdade de gênero ocorre porque po-
líticas democráticas possibilitam a maior liberdade da sociedade o que
aumenta a influência de organizações de mulheres no estado, e as lutas
feministas contribuem para democratizar o espaço político21.
Um dos aspectos da abordagem feminista da democracia refere-se à
representatividade nas arenas democráticas22,considerando que a inclu-
sividade é condição fundamental para a existência de regime democrá-
ticos. Na análise da qualidade da democracia podem ser observados os
aspectos procedimentais e substanciais. O aspecto procedimental inclui
o rule of law e a accountability. Do ponto de vista substancial, avalia-se

18. O conceito de gênero é aberto, dificultando o trabalho de delimitação. Podemos considerar


que as relações de gênero, tradicionalmente vistas como relações entre masculino e feminino,
são marcadas por hierarquias e desigualdades de poder. Entretanto, as relações entre mascu-
lino e feminino tem sido ampliadas para pensar também sexualidades, e gênero em perspec-
tiva mais ampla como transexuais, pessoas que não se identificam a nenhum gênero. Por isso
que ao usar gênero neste trabalho pretendo acentuar tanto as perspectivas feministas, objeto
central do artigo, mas também incluir gays e transexuais.
19. Apud ALONSO, Alba; LOMBARDO, Emanuela. Gender equality and de-democratization proces-
ses: The case of Spain. Politics and Governance, v. 6, n. 3, p. 78-89, 2018, p. 78.
20. INGLEHART, Ronald; NORRIS, Pippa; WELZEL, Christian. Gender equality and democracy.
Comparative sociology, v. 1, n. 3-4, p. 321-345, 2002.
21. ALONSO, Alba, LOMBARDO, Emanuela. Gender Equality and De-Democratization Processes:
The Case of Spain, p. 79.
22. CORNWALL, Andrea; GOETZ, Anne Marie. Democratizing democracy: Feminist perspectives.
Democratisation, v. 12, n. 5, p. 783-800, 2005.

84
Cap. 3 • QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO

a resposta às demandas dos cidadãos, respeito integral e expansão dos


direitos de liberdade e igualdade material23. Isso quer dizer que consi-
derando a desigualdade estrutural envolvendo gêneros, quanto maior a
qualidade democrática, maior a possibilidade de luta por direitos afetos
à gênero.
Portanto a deterioração democrática afeta diretamente a pauta de
igualdade de gênero24, tanto porque compromete a representatividade
ao reforçar estereótipos de gênero, reduz políticas públicas direciona-
das à igualdade,cerceia o espaço de contestação, e ainda ameaça a luta
e concretização de direitos relacionados à igualdade. Assim, podemos
considerar que o processo de declínio democrático afeta de forma des-
proporcional as demandas relacionadas à gênero, porque além dos mo-
tivos indicados acima, ainda relaciona os grupos “divergentes” como
mulheres e grupos LGBT à construção de inimigo interno que ameaça
a existência e saúde da nação, como será apresentado no próximo item.

2. AUTORITARISMOS E GÊNERO
Mudde e Kaltwasser consideram que não há específica relação entre
populismo e gênero25, entretanto a apreensão destes temas por regimes
autoritários não somente tem ocorrido em diversos regimes como tem
importantes precedentes históricos. O regime nazista notabilizou-se por
utilizar-se em sua mitologia de povo a definição estrita de papéis sociais
em que cabia às mulheres serem as mães da nação, enquanto que aos
homens seria o provedor heróico. A própria nação dependia da família,
que por sua vez teria o esteio no cuidado executado por mulheres. A de-
turpação dos papéis, portanto, levaria à destruição da nação. Da mesma
forma, a noção idealizada e normatizada das masculinidades implica em
desconsideração e perseguição de grupos LGBT inclusive com envio aos
campos de concentração.
A própria figura de liderança autoritária populista é comumente
identificado com a figura masculina, adotando retórica explicitamente

23. MORILINO apud ALONSO, Alba; LOMBARDO, Emanuela. Gender Equality and De-Democrati-
zation Processes: The Case of Spain, p. 79-80.
24. ALONSO, Alba; LOMBARDO, Emanuela. Gender Equality and De-Democratization Processes:
The Case of Spain, 2018.
25. MUDDE, Cas; KALTWASSER, Cristóbal Rovira. Vox Populi or Vox Masculini? Populism and
gender in Northern Europe and South America. Patterns of Prejudice, v. 49, n. 1-2, 16-36,
2015, p. 16.

85
Heloisa Fernandes Câmara

calcada em papel de gênero identificado à masculinidade. Neste sentido


reforça este uso o fato de que grande parte dos líderes e dos partidos
associados a este movimento terem baixa representação de mulheres
e gays em seus quadros. Há notáveis exceções à figura do líder populis-
ta masculino. A principal é Marine Le Pen, líder do partido francês de
extrema direita Frente Nacional, que foi a responsável por quase qua-
druplicar o número de membros do partido26. Podem ser citadas tam-
bém Yingluck Shinawatra, na Tailândia, Pauline Hanson, fundadora do
Partido uma Nação (ONP, do nome em inglês) na Austrália, Pia Kjser-
sgaard, antiga líder do Partido Povo Dinamarquês; Frauke Petry, líder
do Partido Alternativa para a Alemanha (AfD); Siv Jensenlíder do Parti-
do Progressista Norueguês; e Sarah Palin, ex-governadora do Alaska27.
Mas mesmo sendo figuras importantes da política, as líderes populistas
usam seu gênero como forma de construção da condição de outsider da
política, além de ressaltar o estereótipo de “boa mulher” relacionado à
figura de mães e esposas como forma de se conectar com seu eleitorado.
Assim Palin se referia como “mãe do hockey” (hockey mom)28e Hanson
manifestou-se como a “mãe da Austrália”29.
A liderança partidária não é o único fator a ser avaliado na relação
entre autoritarismo e gênero. Este tópico pode ser analisado de duas
formas: a primeira pelo uso de linguagem calcada em estereótipos como
forma de criação de coesão política. Ou seja, o gênero como fator de aglu-
tinação de grupos, notadamente alinhadas em torno de pautas de extre-
ma-direita. A segunda maneira é analisar como os regimes autoritários
implementam políticas relacionadas ao gênero. Embora ambas as pers-
pectivas estejam relacionadas, afinal se a hipótese defendida neste arti-
go de que as “guerras culturais” tem papel central no surgimento destes
regimes, é esperado que como forma de reforço de sua base de apoio ha-
verá implementação/alteração de políticas relacionadas ao gênero. En-
tretanto, é igualmente relevante a análise da segunda forma (implemen-
tação de políticas). Pretende-se aqui verificar como as políticas de gênero

26. De 22.000 para 83.000 desde que sucedeu seu pai. MUDDE, Cas; KALTWASSER, Cristóbal Ro-
vira. Populism: A very short introduction. Oxford University Press, 2017, p. 53.
27. MUDDE, Cas; KALTWASSER, Cristóbal Rovira. Populism: A very short introduction, p. 69.
28. O termo dialoga com a expressão tradicional “soccer mom” (mãe do futebol) que designa
mulheres casadas, em geral moram em subúrbios e tem como atividades centrais acompa-
nhar seus filhos e filhas em atividades esportivas, levando aos treinos, arrecadando recursos
e assistindo os jogos. Em síntese, a expressão refere-se à mulheres cuja principal atividade é
acompanhar os filhos e não sentem falta de carreira profissional.
29. MUDDE, Cas; KALTWASSER, Cristóbal Rovira. Populism: A very short introduction, p. 70.

86
Cap. 3 • QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO

são impactadas no processo de queda democrática. Por serem processos


recentes ainda há limitações na literatura, por isso a apresentação de me-
didas adotadas foi feita com amplas referências jornalísticas.
De maneira geral os regimes populistas autoritários têm promovido
retrocessos que afetam direitos sexuais e reprodutivos, além de reforça-
rem estereótipos e destruírem políticas públicas deisonomia. Este pro-
cesso não ocorre da mesma maneira em todos os países, dentre outros
motivos porque depende do grau de igualdade de gênero previamente
existente na sociedade, bem como a estrutura do discurso de exclusão.
Muddle e Kaltwasser30demostram que enquanto na América Latina a
retórica é amplamente machista, no caso do Norte da Europa utilizou-
-se o discurso de proteção às mulheres para criar uma oposição entre
valores “europeus” e islâmicos, com a finalidade de limitar a migração e
identificar o migrante a comportamentos machistas e no limite à agres-
são sexual.A criação de medo de agressão das mulheres faz parte do que
Jason Stanley chamou de ansiedade sexual31 e serve como justificativa
para reforçar a política de “nós” versus “eles”, ampliando a separação
de grupos em que um deles é apontado como inimigo e grande ameaça
do outro. A exploração midiática e política do ataque sexual realizado
no Ano Novo de 201632 em Colônia, Alemanha, ilustra a retórica de que
os países europeus devem se proteger dos imigrantes assediadores sob
pena de arriscar a segurança das mulheres.
O meio de cultura dos novos regimes autoritários é a guerra cul-
tural33, a moralização do debate público e a centralidade de temas mo-

30. MUDDE, Cas; KALTWASSER, Cristóbal Rovira. Vox Populi or Vox Masculini? Populism and gen-
der in Northern Europe and South America.
31. “A propaganda fascista amplia esse medo ao sexualizar a ameaça do outro. Como a política
fascista tem, na sua base, a tradicional família patriarcal, ela é naturalmente acompanhada
de pânico sobre os desvios dessa família patriarcal. Transgêneros e homossexuais são usados
para aumentar a ansiedade e o pânico sobre a ameaça aos papéis masculinos tradicionais”.
STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: A política do “nós” e “eles”. L&PM Pocket, 2018.
32. Na passagem de 2015 para 2016 foram reportados ataques sexuais e assaltos cometidos por
cerca de mil homens perto da estação central de Colônia, Alemanha.
33. O termo se popularizou em livro de 1991 publicado pelo sociólogo James Hunter. No livro há
diagnóstico dos Estados Unidos dos anos de 1980 em que houve processo de polarização po-
lítica em torno de temas como aborto, casamento de pessoas do mesmo sexo, família, enfim,
de temas relacionados à moralidade e vida privada. Estes conflitos indicariam mais do que
divergência política, guerra em torno de culturas e distintas visões de mundo. Um dos pontos
nevrálgicos desta guerra é justamente o conceito de família. A oposição entre modelo familiar
tradicional e a pluralidade de concepções familiares reflete também o papel a ser desempe-
nhado por homens e mulheres, além do reconhecimento de famílias gays.

87
Heloisa Fernandes Câmara

rais na agenda política (aborto, identidade de gênero, políticas LGBT)34.


A percepção de que os Estados Unidos dos anos 1980 viviam a morali-
zação do espaço público é corroborada por Rosalind Pollack Petchesky,
quem em 1981 publicou o artigo “Antiabortion, Antifeminism, and the
Rise of the New Right”35, no qual avaliou que após a eleição de Reagan,
oque o que dava coerência organizacional e legitimidade ideológica à
“nova” direita era o foco em questões reprodutivas e sexuais. Juntamente
com o tema de família estiveram no centro do programa político, não so-
mente como manipulação, mas como núcleo substantivo de política que
juntamente com o tema de aborto tornou possível a chegada ao poder da
extrema direita36.
Esther Solano Gallego afirma que: “Em contexto de intensas cri-
ses econômicas e políticas, o campo neoconservador utiliza-se da re-
tórica do medo para retomar os valores da família tradicional: ordem,
hierarquia e autoridade moral frente à suposta libertinagem do campo
progressista”37. Seguindo Freitas38:
Nas guerras culturais, essa visão de mundo punitiva se volta contra
aqueles que de alguma forma desrespeitam os preceitos da autoridade
moral do discurso conservador: feministas, defensores do aborto, ho-
mossexuais, travestis, transgêneros, presidiários e defensores dos direi-
tos humanos (tachados como “defensores de bandidos”). Volta-se tam-
bém contra os pobres, por vê-los como displicentes e indisciplinados
(“que merecem ser punidos com a pobreza pela falta de industriosida-
de, capacidade de poupança e empreendedorismo”, escreve Ortellado),
e, pelo mesmo motivo, contra as políticas públicas de combate à desi-
gualdade, como programas de transferência de renda e cotas raciais. No
limite, volta-se contra o discurso progressista, que seria complacente
com tudo isso, e o acusa de ingenuidade política, ineficácia econômica
e/ou corrupção moral.

34. GALLEGO, Esther Solano. La bolsonarización de Brasil. Documentos de trabajo – IELAT, Institu-
to Universitario de Investigación en Estudios Latinoamericanos, n. 121, p. 1-42, 2019, p. 7.
35. POLLACK PETCHESKY. Rosalind. Antiabortion, antifeminism, and the rise of the new right.
Feminist Studies, v. 7, p. 206-246, 1981.
36. POLLACK PETCHESKY, Rosalind. Antiabortion, antifeminism, and the rise of the new right, p.
207.
37. GALLEGO, Esther Solano. La Bolsonarización de Brasil, p. 9.
38. FREITAS, Guilherme. A sociedade como campo de batalha. Revista Serrote, 2017. Disponível
em: <https://www.revistaserrote.com.br/2017/03/a-sociedade-como-campo-de-batalha-
-por-guilherme-freitas/>. Acesso em: 20 ago. 2019.

88
Cap. 3 • QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO

O laboratório dos novos autoritarismos é o governo de Viktor Orbán


na Hungria. Líder do partido Fidesz, de extrema direita39, está no po-
der desde 2010, com grande ajuda de lei eleitoral aprovada que dificulta
a vitória da oposição. Orbán tem entre suas pautas o fechamento das
fronteiras aos migrantes, a valorização da religiosidade húngara, a eli-
minação de estudos relacionados à gênero. Nessa teia de pautas o fio
condutor é a criação de discursos em que se alega que o povo húngaro
está ameaçado pelos migrantes que querem destruir a religião, e pelos
investimentos internacionais. O enlace se dá pela referência ao passado
místico de grandeza da Hungria. O cenário antiglobalista amparado pela
criação de medo alimenta políticas cada vez mais restritivas de direitos.
Orbán defende o modelo familiar tradicional, entendida como fa-
mília heterossexual com filhos, ou mais especificamente, patriarcal.
A constituição estabelece que a família é a base da sobrevivência da
nação. Foi estabelecida política fiscal de dedução de imposto de acor-
do com o número de filhos, entretanto o valor é o mesmo, independen-
temente da renda familiar, produzindo benefícios para as mais ricas40.
Há marcada política demográfica de incentivo de nascimento direcio-
nada às mulheres. Em 2017 o vice-presidente do Fidesz conclamou as
mulheres húngaras a “dar a luz pelo país” para “produzir crescimento
populacional”41reforçando que a função feminina seria relacionada aos
aspectos domésticos e familiares.
Todavia a política húngara mais reverberada internacionalmente foi
a proibição estudos de gêneros em universidades húngaras em 2018,
feita através de decreto. A alegação dada foi que ninguém contrataria
“generologistas” e que, portanto, não haveria necessidade de treiná-los.
Também se fundamentou com a ideia de gênero como construção so-
cial é absurda. A medida afetou não somente universidade pública, mas

39. Para Levitsky e Ziblatt o caso húngaro demonstra o enfraquecimento paulatino da democra-
cia liberal por atores considerados não extremistas. Os autores notam que “Orbán e o seu par-
tido Fidesz começaram como democratas liberais no final dos anos 1980; e em seu mandato
como primeiro-ministro, entre 1998 e 2002, Orbán governou democraticamente. Sua guinada
autoritária depois de retornar ao poder em 2010 foi uma genuína surpresa”. LEVITSKY, Ste-
ven, ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem, p. 31.
40. PIVARNYIK, Balász. Family and gender in Orbán’s Hungary. Heinrich Böll Stiftung: The Green
Polital Foundation, 04 jul. 2018. Disponível em: <https://perma.cc/XG2A-2TWR>. Acesso em:
10 ago. 2019.
41. VERSECK, Keno. Hungary’s university ban on gender studies heats up culture war. Deutsche
Welle, 18 out. 2018. Disponível em: <https://www.dw.com/en/hungarys-university-ban-on-
-gender-studies-heats-up-culture-war/a-45944422>. Acesso em: 10 ago. 2019.

89
Heloisa Fernandes Câmara

também a Central European University (CEU), universidade mantida


pela fundação de George Soros. O banimento está inserido na lógica de
guerra contra as supostas ameaças à civilização ocidental, pois os estu-
dos de gênero seriam parte da decadência da civilização que ameaça a
Europa e a Hungria42.A proibição segue a retórica governamental de que
a Hungria rejeita a “loucura de gênero”43.
Mesmo em países não autoritários o tema de gênero tem sido explo-
rado como forma de produção de pânico social, ou para usar a expressão
de Gayle Rubin, “pânico moral”4445. Joan Scott46 informou que a produção
de material didático para estudantes de ciências biológicas em 2011 foi
objeto de críticas de políticos católicos, pais e educadores. O material
tinha uma unidade com o título “tornar-se homem ou mulher” e com fo-
tos de casais hétero e homossexuais na legenda dizia que “parecia fácil,
quando se caminhava pela rua, saber qual sexo era qual, mas verdadeira-
mente, o que significava ser uma mulher ou um homem?” Acompanhado
de informações médicas, biológicas e sociológicas para analisar o tema.
Apesar de a palavra gênero ter sido trazida uma vez em trinta páginas,
foi em torno do termo que se concentraram as críticas, com políticos
criticando a “teoria de gênero” como ideologia que negaria a diferença
entre homens e mulheres47. Foi feita petição assinada por mais de cem
deputados e senadores exigindo a retratação do manual, campanha on-
-line em defesa da liberdade de consciência religiosa e com condenação
ao ensino que seria corruptor de jovens. Também na França em 2013
houve manifestação contrária à aprovação de lei que estabeleceu a pos-
sibilidade de casamento gay. O slogan era a defesa da infância48.

42. VERSECK, Keno. Hungary’s university ban on gender studies heats up culture war. Deutsche
Welle, 18 out. 2018.
43. No inglês “gender madness”.
44. Apud DE ASSIS CÉSAR, Maria Rita; DE MACEDO DUARTE, André. Governamento e pânico mo-
ral: corpo, gênero e diversidade sexual em tempos sombrios. Educar em Revista, n. 66, p. 141-
155, 2017.
45. Seguindo o conceito de Jeffrey Weeks, “pânicos morais são o “momento político” do sexo, em
que atitudes difusas são canalizadas em ação política e a partir disso em mudança social”. RU-
BIN, Gayle. Pensando o sexo: notas para uma teoria radical das políticas da sexualidade. Trad.:
Felipe Bruno Martins Fernandes. Rev.: Miriam Pillar Grossi, 1984. Disponível em: <http://
www.miriamgrossi.cfh.prof.ufsc. br/pdf/gaylerubin.pdf>. Acesso em: 16 set. 2019.
46. SCOTT, Joan W. Os usos e abusos do gênero. Projeto História: Revista do Programa de Estudos
Pós-Graduados de História, v. 45, 2012.
47. SCOTT, Joan W. Os usos e abusos do gênero, p. 329.
48. DE ASSIS CÉSAR, Maria Rita; DE MACEDO DUARTE, André. Governamento e pânico moral:
corpo, gênero e diversidade sexual em tempos sombrios, p. 144.

90
Cap. 3 • QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO

Conforme expõem Maria Rita de Assis César e André de Macedo


Duarte:
O gênero, a sexualidade e a diversidade sexual foram transformados em
armas de uma guerra político-moral no contexto da chamada ‘ideologia
de gênero’, bem como dos esforços narrativos visando uma “re-natura-
lização” do corpo, do sexo e do desejo. Tais esforços se embasam em
leituras e interpretações de textos religiosos ora precárias, ora franca-
mente interessadas, e visam disseminar um preconceito reativo contra
conquistas importantes das mulheres e da população LGBTI49.
Uma das chaves de leitura do combate aos temas relacionados à
igualdade de gênero é justamente como backlash50 de conquistas de di-
reitos, o que afetou seja de forma concreta ou simbólica a auto percep-
ção de determinados grupos sociais que se sentiram como perdendo o
poder51 e com isso seu papel. Somado às de crises políticas e econômicas
o reestabelecimento de relações vistas como naturais, ou seja, patriar-
cal, ganha adesão.
A eleição de Donaldo Trump EUA fez surgir questões acerca do de-
clínio democrático em democracias consolidadas. Do ponto de vista de
gênero, Trump normalizou a misoginia no espaço público através de di-
versas declarações em que minimizava as denúncias de assédio a mulhe-
res, as desqualificava com base em critérios estéticos, além de ataques
diretos aos direitos sexuais e reprodutivos.
O ataque a estes direitos está no centro do debate porque represen-
tam de forma mais direta o processo de maior poder e autonomia das
mulheres. Sonia Correa e Rosalind Petchesky definem direitos sexuais e
reprodutivos “em termos de poder e recursos: poder de tomar decisões
com base em informações seguras sobre a própria fecundidade, gravi-
dez, educação dos filhos, saúde ginecológica e atividade sexual; e recur-
sos para levar a cabo tais decisões de forma segura”52. O reconhecimento

49. DE ASSIS CÉSAR, Maria Rita; DE MACEDO DUARTE, André. Governamento e pânico moral:
corpo, gênero e diversidade sexual em tempos sombrios, p. 144.
50. O termo é utilizado para descrever reações sociais e institucionais à determinadas medidas,
especialmente judiciais.
51. “A mensagem evidente é que o patriarcado é uma prática virtuosa do passado, cuja protectão
em relação ao liberalism deve ser consagrada na lei fundamental do país. Na política fascista,
mitos de um passado patriarchal, ameaçados pela invasão de ideais liberais e tudo o que eles
significam, atuam para criar uma sensação de pânico frente à perda do status hierárquico,
tanto para himens quanto para a capacidade do grupo dominante de proteger sua pureza e
status da invasão estrangeira”. STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo.
52. CORRÊA, Sonia; PETCHESKY, Rosalind. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva femi-
nista. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 6, p. 147-177, 1996, p. 149.

91
Heloisa Fernandes Câmara

destes direitos implica, portanto, no reconhecimento da autonomia da


mulher para definir aspectos íntimos e fundamentais de sua existência,
reduzindo a ingerência externa. Daí o desacordo fundamental envolven-
do tais direitos com grupos que pretendem submeter as escolhas femi-
ninas ao que seria sua função natural: o de ser responsável pela existên-
cia e cuidado da família.
Por isso é sintomático que a primeira ordem executiva de Trump,
em 2017, tenha estabelecido corte de fundos para organizações não go-
vernamentais que façam ou promovam abortos53 no exterior. Como a or-
dem usou o termo “coercivo”, a interpretação inicialmente foi a de que
se referia a procedimentos feitos contra a vontade da mulher, mas houve
alertas de que o ponto central era o congelamento dos recursos54. Em
fevereiro de 2019, houve ampliação das restrições e foi anunciado corte
de financiamento federal para organizações que fornecem o serviço de
aborto legal, e a verba foi direcionada para grupos religiosos antiaborto.
Em abril de 2019 a norma foi suspensa por juiz federal.
A retórica presidencial contra aborto utiliza-se de fatos completa-
mente falsos, como o de que as leis atuais autorizariam o infanticídio e
que mulheres e médicos estariam matando bebês no momento do par-
to55. Como é de se esperar em cenários altamente polarizados alegações
como esta reforçam a oposição ao produzir inimigo moral, identificando
os grupos pró-escolha a figuras monstruosas defensoras de homicídio
de bebês.
Este é o panorama do atual processo de alteração legislativa sobre
aborto. A atuação contra direitos sexuais e reprodutivos não se concen-
tra no âmbito do governo federal. No modelo federalista americano di-
versas definições envolvendo direito penal são de competência dos es-
tados. É neste sentido que os debates travados nos estados reverberam

53. MOGHISSI, Haideh. Right-wing Western and Islamic populism: Reconsidering justice, demo-
cracy and equity. In: FITZI, Gregor, MACKERT, Jürgen; TURNER, Brian S. (Ed.). Populism and
the Crisis of Democracy: Migration, Gender and Religion. London, New York: Routledge, 2019.
v. 3, p. 78-93, p. 88.
54. LIMA, Juliana Domingos de. Por que o direito ao aborto está em xeque nos Estados Uni-
dos. Nexo Jornal, 14 maio 2019. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expres-
so/2019/05/14/Por-que-o-direito-ao-aborto-est%C3%A1-em-xeque-nos-Estados-Unidos>.
Acesso em: 16 set. 2019.
55. NORTH, Anna. What’s missing from the conversation about later abortions, explained by a
doctor. Vox, 29 abril 2019. Disponível em:<https://www.vox.com/2019/3/11/18246702/
trump-abortion-ralph-northam-virginia-green-bay>. Acesso em 21 ago. 2019.

92
Cap. 3 • QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO

os debates nacionais. Em 2019 os estados de Ohio, Kentucky, Mississippi


e Georgia aprovaram leis que tornam mais difícil a interrupção da gra-
videz. O critério utilizado é que a interrupção somente é permitida até
a detecção de batimentos cardíacos, o que ocorre em torno da sexta se-
mana de gestação, praticamente inviabilizando sua ocorrência. No Ala-
bama a nova lei estabelece que o aborto é permitido somente em caso
de risco à saúde da mãe. Missouri e Louisiana também estão debatendo
leis mais restritivas sobre o tema56. Todas estas leis contrariam a histó-
rica de decisão da Suprema Corte no caso Roe vs. Wade de 1973. Nesta
decisão o tribunal definiu que a mulher tem o direito à privacidade, e
que juntamente com o direito do devido processo legal cabe a ela decidir
sobre a manutenção ou não da gestação. Com a decisão estabeleceu-se
a necessidade de adequar as leis penais aos parâmetros estabelecidos
pela corte.
O discurso pró família patriarcal também afeta os direitos LGBT. Em
memorando do Ministério da Justiça estabeleceu-se que identidade de
gênero não faz parte de direitos civis e políticos57.Dessa consideração
houve sucessões de medidas administrativas com resultados diretos em
relação a estes direitos. Relatório demonstrou que estudantes que ale-
gam discriminação com base em sua orientação sexual ou identidade de
gênero tem suas denúncias menos investigadas no governo Trump do
que no Obama58.
Há, portanto, rápido backlash nos Estados Unidos acerca de prote-
ção relacionado à gênero. Os discursos de campanha efetivamente vão
sendo traduzidos em alterações de direitos e políticas.
No caso brasileiro o material de análise é menor, especialmente por-
que é recente o governo de extrema-direita no país. Entretanto nestes
poucos meses já é possível perceber o retrocesso no tema.

56. LIMA, Juliana Domingos de. Por que o direito ao aborto está em xeque nos Estados Unidos.
Nexo Jornal, 14 maio 2019.
57. A questão apresentada é se a proibição da discriminação no trabalho por motivo de sexo in-
clui identidade sexual. Contrariando parecer de 2014 que conclui de forma positiva, o parecer
de 04 de outubro de 2017 considera que sexo, conforme o texto da lei, refere-se à definição
ordinária que significa homem ou mulher. Documento pode ser encontrado em: <https://
www.justice.gov/ag/page/file/1006981/download>.
58. GREEN, Erica L. L.G.B.T.Q. Rights Cases Stall Under DeVos, Report Finds. The New York Ti-
mes, 29 jul. 2019. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2019/07/29/us/politics/gay-
-transgender-rights-devos.html?searchResultPosition=1>. Acesso em: 22 ago. 2019.

93
Heloisa Fernandes Câmara

3. BRASIL E O RETROCESSO ÀS PAUTAS FEMINISTAS E DE DIVERSI-


DADE
O Brasil é um país com intensa desigualdade entre homens e mu-
lheres. Diferenças de salário59, violência sistêmica60, trabalho não remu-
nerado de cuidado61, sub-representação política, dentre outros indica-
dores, demonstram os motivos pelos quais o país é o 95º no ranking de
igualdade de gênero62, dentre os 149 países analisados.
Apesar da histórica desigualdade, De Assis César e Duarte mostram
que desde o início da década de 2000 ações estatais para reconhecimen-
to dos direitos das mulheres e população LGBTI63. Apesar de resultados
incompletos, as medidas de promoção da isonomia foram ao mesmo
tempo resultado e catalizadora de lutas dos movimentos sociais.
Em um cenário tradicionalmente hostil às pautas feministas, a vitó-
ria de Jair Bolsonaro, político de extrema direita com grande influência
do trumpismo, tem assumido cruzada a favor da família patriarcal e con-
tra o que descreve como “ideologia de gênero”.
A eleição foi marcada por temas moralizantes e entrelaçamento
de notícias falsas disseminadas por via de aplicativos, especialmente o
WhatsApp, tratando de gênero. Foram compartilhadas críticas ao que
ficou conhecido como “kit gay” que segundo defensores do então can-
didato seria material que incentivaria a homossexualidade e teria sido

59. CAVALLINI, Marta. Mulheres ganham menos que os homens em todos os cargos e áreas, diz
pesquisa. G1, 07 mar. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/concursos-e-
-emprego/noticia/mulheres-ganham-menos-que-os-homens-em-todos-os-cargos-e-areas-
-diz-pesquisa.ghtml>. Acesso em: 16 set. 2019.
60. Em 2018 foram 4.254 mulheres mortas, o que representa queda em relação ao ano de 2017,
mas ainda é 74% superior à media global, conforme dados do UNODC (Escritório das Nações
Unidas para Crime e Drogas). BUENO, Samira; LIMA, Renato Sérgio de. Dados de violência con-
tra a mulher são a evidência da desigualdade de gênero no Brasil. G1, 08 mar. 2019. <https://
g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/03/08/dados-de-violencia-contra-a-mu-
lher-sao-a-evidencia-da-desigualdade-de-genero-no-brasil.ghtml>. Acesso em: 16 set. 2019.
61. Em média mulheres trabalham 72% a mais do que homens em serviço doméstico no Brasil.
CALEGARI, Luiza. Mulheres trabalham 72% a mais do que homens em tarefas domésticas.
Exame, 08 mar. 2018. Disponível em:<https://exame.abril.com.br/brasil/mulheres-traba-
lham-73-a-mais-do-que-homens-em-tarefas-domesticas/>. Acesso em: 16 set. 2019.
62. WORLD ECONOMIC FORUM. Global Gender Gap Report 2018: Results and Analysis. Disponível
em:< http://reports.weforum.org/global-gender-gap-report-2018/results-and-analysis/?doing_
wp_cron=1566334075.5277979373931884765625>. Acesso em: 16 set. 2019.
63. DE ASSIS CÉSAR, Maria Rita; DE MACEDO DUARTE, André. Governamento e pânico moral:
corpo, gênero e diversidade sexual em tempos sombrios, p. 145.

94
Cap. 3 • QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO

distribuído nas escolas64. Na verdade, nunca houve a distribuição do ma-


terial mencionado, o que não impediu que pais, especialmente religio-
sos, considerassem um risco às crianças e jovens.
Mesmo a existência de uma manifestação não partidária sem pre-
cedentes, chamada de “Ele Não”65, em que se refutavam as diversas ma-
nifestações machistas e homofóbicas, foi transmitida em grupos com
fotos de outros eventos em que se identificava feminismo à escatologia
e destruição de símbolos religiosos. A identificação do movimento femi-
nista com o “feio” é feita também em parte dos eleitores do candidato.
Segundo Rosana Pinheiro-Machado “Há um permanente terror de que a
ditadura do proletariado se torne a ditadura da baranga”66. Na pesquisa
feita em grupos de apoiadoras do então candidato Pinheiro- Machado
descreve que as participantes veem mulheres feministas como menos
femininas, sujas, pobres e sem educação, gerando afastamento e repul-
sa à estas pautas. Entretanto, a campanha do Bolsonaro abraçou parte
da pauta considerada feminista ao tratar de violência contra a mulher,
família e filhos. Sua postura punitivista foi utilizada como argumento
de que seria o único candidato a defender a mulher da violência, o que
como mostra o estudo de Pinheiro-Machado67 foi responsável pelo apoio
de parte das mulheres ao candidato.
Após a eleição Bolsonaro e seu governo mantiveram o padrão de
ataques a todos os assuntos identificados à gênero. A ofensiva deu-se
com a mobilização das instituições e principalmente com declarações do
presidente, itens que se retroalimentam.

64. CHARLEAUX, João Paulo. O conteúdo do livro atacado por Bolsonaro, segundo sua editora. Nexo
Jornal, 29 ago. 2018. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/08/29/
O-conteúdo-do-livro-atacado-por-Bolsonaro-segundo-sua-editora>. Acesso em 15 ago. 2019.
65. Depois da criação de movimento virtual #elenão, em 29 de setembro de 2018, duas semanas
antes do primeiro turno das eleições, saíram às ruas cerca de 1 milhão de mulheres em diver-
sas cidades do Brasil. Sem identificação partidária específica, a manifestação buscava opor-se
às falas machistas e homofóbicas do então candidato. No dia seguinte foi chamado o “Ele Sim”,
manifestação favorável à Bolsonaro. Embora diferença expressiva no número de manifestan-
tes, nos noticiários foi dada a mesma ênfase aos dois eventos, como se ambos tivessem o
mesmo potencial político e mesma mobilização. Ver: TOLEDO, José Roberto de. Um Protesto
Histórico, menos na tevê. Revista Piauí, 29 set. 2018. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.
com.br/um-protesto-historico-menos-na-teve/>. Acesso em: 30 ago. 2019.
66. PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Mulheres Pró-Bolsonaro: grupo no Facebook revela medo da
ditadura da baranga. Instituto Humanitas Unisinos, 03 out. 2018. Disponível em: <http://www.
ihu.unisinos.br/78-noticias/583329-mulheres-pro-bolsonaro-grupo-no-facebook-revela-
-medo-da-ditadura-da-baranga>. Acesso em: 16 set. 2018.
67. PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Mulheres Pró-Bolsonaro: grupo no Facebook revela medo da
ditadura da baranga. Instituto Humanitas Unisinos, 03 out. 2018.

95
Heloisa Fernandes Câmara

Do ponto de vista institucional foi significativa a mudança do Minis-


tério de Direitos Humanos para Ministério da Mulher, Família e Direitos
Humanos. A mudança no ministério incluiu a extinção dos comitês de
Gênero e de Diversidade e Inclusão. A modificação da estrutura adminis-
trativa teve como resultado o enfraquecimento na proteção de direitos
humanos em geral, como pode ser visto pela extinção ou esvaziamento
de conselhos e órgãos como o de combate à Tortura, que teve 11 cargos
extintos.
No campo da saúde o Ministério da Saúde em ofício vetou o termo
“violência obstétrica” de seus documentos oficiais e comunicações, em
contrariedade ao que estabelece a Organização Mundial da Saúde (OMS).
A política externa brasileira foi brutalmente alterada após a posse
de Bolsonaro. Foi amplamente noticiado que a diplomacia tem se ma-
nifestado em fóruns da Organização das Nações Unidas (ONU) contra o
uso do termo gênero em documentos internacionais de direitos huma-
nos. Esta postura tem produzido isolamento internacional, com apoio de
países notoriamente contra a pauta de igualdade, como Arábia Saudita,
Rússia e Paquistão68. A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bisse-
xuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) solicitou acesso aos
documentos que orientaram os diplomatas brasileiros e teve seu pedi-
do negado. O argumento é que o tema é “sensível para a condução de
negociações internacionais do país”, e que as informações consideradas
imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado podem ser clas-
sificadas, impedindo acesso público69.
Esta postura também ocorreu em assembleia da OMS em que o Bra-
sil aliou-se ao grupo conservador em tema de saúde reprodutiva. Junta-
mente com os representantes dos Estados Unidos, Oriente Médio e al-
guns países africanos, o Brasil defendeu que o foco no tema deve ser em
aspectos consensuais entre os países, como evitar doenças sexuais. Foi
noticiado que o governo Trump considerou que as políticas de promo-
ção da saúde sexual e reprodutiva atuais facilitam o aborto e sexo antes

68. CHADE, Jamil. Brasil veta termo “gênero” em resoluções da ONU e cria mal-estar. UOL, Jamil
Chade, 27 jun. 2019. Disponível em: <https://jamilchade.blogosfera.uol.com.br/2019/06/27/
brasil-veta-termo-genero-em-resolucoes-da-onu-e-cria-mal-estar/?cmpid=copiaecola>.
Acesso em: 20 ago. 2019.
69. BERGAMO, Monica. Itamaraty nega informação sobre política de gênero a associação LGBT.
Folha de S. Paulo: Colunas e Blogs, ago. 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.
br/colunas/monicabergamo/2019/08/itamaraty-nega-informacao-sobre-politica-de-gene-
ro-a-associacao-lgbt.shtml>. Acesso em: 16 set. 2019.

96
Cap. 3 • QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO

do casamento70. A retórica do governo Trump sobre temas relacionados


à gênero influenciam de forma direta o tratamento dado pelo governo
brasileiro, de forma que além do alinhamento em termos de política ex-
terna, tem havido influências em política interna, especialmente pelo
uso do discurso de que políticas de gênero trariam destruição da família.
Discursivamente há reiteração de sua posição de religioso e pró-
-família, ao mesmo tempo em que se utiliza de escândalos construídos
como forma de mobilização de seus apoiadores. Em discurso dado na
Marcha para Jesus, pela Família e pelo Brasil ele disse que “ideologia de
gênero é coisa do capeta” e que família é “coisa de homem e de mulher”71.
No carnaval foi notícia internacional ao compartilhar no Twitter vídeo
com cenas obscenas72. A dimensão do escândalo e da afronta moral é um
componente precioso como forma de mobilização, pois agrega rejeição
à práticas discursivamente identificadas ao outro, que é o outro feminis-
ta, gay e progressista. Ao invés sobre temas políticos, a esfera pública é
posta em movimento pelo apelo ao sentimento de nojo em uma guerra
moral contínua, mesmo que em termos contraditórios ao modelo fami-
liar defendido73.
Mesmo em temas que aparentemente não são relacionados ao gêne-
ro, o uso da estratégia repete-se. Uma das áreas mais afetadas é a educa-
ção, a qual tem passado por sucessivas investidas motivadas pelo discur-
so de que as instituições propiciam “doutrinação” dos alunos e “balbúr-
dia”. Através da formação de pânico moral os ambientes de ensino são
apresentados como criadores e perpetuadores da desordem, destruindo
os valores tradicionais da família e religião.

70. MOREIRA, Assis. Brasil integra grupo conservador na OMS sobre saúde reprodutiva. Valor
Econômico, 29 maio 2019. Disponível em:<https://www.valor.com.br/brasil/6281489/bra-
sil-integra-grupo-conservador-na-oms-sobre-saude-reprodutiva>. Acesso em: 16 set. 2019.
71. CONGRESSO EM FOCO. Ideologia de Gênero é coisa do capeta, diz Bolsonaro. UOL: Congresso
em Foco, 10 ago. 2019. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/direitos-huma-
nos/ideologia-de-genero-e-coisa-do-capeta-diz-bolsonaro/>. Acesso em: 16 set. 2019.
72. PHILLIPS, Tom. Brazil’s Bolsonaro ridiculed after tweeting explicit carnival video. The Guar-
dian, 06 mar. 2019. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2019/mar/06/
bolsonaro-carnival-pornographic-tweet-ridiculed>. Acesso em 30 ago. 2019.
73. Em café da manhã com jornalistas Bolsonaro disse que “quiser vir aqui fazer sexo com uma
mulher, fique à vontade”. “O Brasil não pode ser um país do mundo gay, de turismo gay.
Temos famílias”, o que foi entendido no Brasil e exterior como incentivo ao turismo sexu-
al e objetificação das mulheres brasileiras. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/
ultimas-noticias/ansa/2019/04/25/brasil-nao-pode-ser-pais-do-mundo-gay-diz-bolsonaro.
htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em: 16 set. 2019.

97
Heloisa Fernandes Câmara

Em 2019 houve massivo corte de recursos para a educação superior,


a justificativa dada pelo ministro da educação foi a existência de “balbúr-
dia” nestas instituições. A refutação de que as instituições públicas são
as principais responsáveis pela pesquisa no país não conseguiu demo-
ver o clima de oposição às universidades públicas. Começou a circular
em grupos fotos falsas de supostos alunos seminus e consumindo dro-
gas como forma de tentar comprovar o alegado pelo ministro.
Mas a ligação do ensino com a produção de desordem é anterior à
eleição de Bolsonaro. O movimento “Escola sem Partido” pretendia que
fossem adotadas leis em todos os âmbitos federativos em que se esta-
belecesse que os professores não podem fazer “doutrinação” em sala,
usando sua posição superior como forma de induzir os alunos e as alu-
nas a adotarem ideologias dos profissionais. Um ponto central no debate
era justamente a chamada “ideologia de gênero” como se vê nas razões
indicadas pelo movimento. O projeto de lei 246/2019, apresentando por
parlamentares do PSL, NOVO e DEM, traz expressamente a preocupação
com educação sexual e gênero como possíveis de “doutrinar” as crianças
e adolescentes. Em seu artigo segundo estabelece que: “O Poder Público
não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem
permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na aborda-
gem das questões de gênero”. O projeto igualmente enfatiza que os pro-
fessores não podem desrespeitar a educação dada pelos pais segundo
suas concepções morais e religiosas, o que pode significar a imposição
de discurso descomprometido com igualdade de gênero e tolerância. Es-
tes pânicos são explicitados na justificativa do projeto:
É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se uti-
lizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos
estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas, bem como
para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta
moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes
são ensinados por seus pais ou responsáveis74.

O trecho acima escancara tanto o pânico moral quanto a concepção


de que o professor e a escola produzem instabilidades ao supostamen-
te impor comportamentos desordeiros. Esta relação está presente não
apenas nas manifestações presidenciais, mas acompanha o pensamento

74. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 246/19. Disponível em: <https://www.camara.
leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=FCE54C2078AAB1609D8B126C9
9D4C589.proposicoesWebExterno1?codteor=1707037&filename=PL+246/2019>. Acesso
em: 16 set. 2019.

98
Cap. 3 • QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO

de parte de seu eleitorado, especialmente aquele que identifica as difi-


culdades sociais e políticas atuais à deturpação da família.
O mesmo combate foi direcionado à esfera da comunicação e arte.
Exemplo marcante da formação do pânico moral no campo da arte foi a
exposição Queermuseu, ocorrida em Porto Alegre em 2018. A exposição
foi considerada obscena e suscitou protestos por supostamente “incen-
tivar a pedofilia”, as críticas foram tão violentas que foi o encerramento
antecipado da exposição75. A conclusão de que a crítica não procedia não
foi suficiente para que o episódio deixasse de ser usado como arma em
que os defensores da liberdade de expressão eram identificados como
coniventes ao abuso infantil. Em 2019 o controle do aparato estatal con-
tra assuntos com viés de gênero ficaram claro através do cancelamento
de edital de 2018 da Agência Nacional do Cinema (Ancine) que tinha pré
selecionado obras com temática LGBT76. Anteriormente, o Presidente da
República já havia vetado campanha publicitária do Banco do Brasil por
trazer representações de diversidade. Após o veto da campanha as es-
tatais foram notificadas que campanhas publicitárias devem ser previa-
mente aprovadas pela Secretaria de Comunicação (Secom)77.
Na pesquisa “O Conservadorismo e Questões Sociais”78foram entre-
vistados “brasileiros médios, não radicais, de classe média”em quatro
capitais. O resultado é que para estas pessoas a busca da ordem no mun-
do e nas relações é preocupação central, sendo a ordem vista como a
existência do modelo familiar tradicional, com papéis de cuidado centra-
dos nas mulheres. Assim, a ida da mulher ao mercado de trabalho, ainda
que represente igualdade, teve como resultado a falta de proximidade e
cuidado com os filhos, o que estaria na base dos problemas socialmente
enfrentados.

75. CARNEIRO, Júlia Dias. “Queermuseu”, a exposição mais debatida e menos vista dos últimos
tempos, reabre no Rio. BBC News, 16 ago. 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/por-
tuguese/brasil-45191250>. Acesso em: 16 set. 2019.
76. ESTADÃO. Ministro suspende edital com séries LGBT, após críticas de Bolsonaro. Exame, 21
ago. 2019. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/ministro-suspende-edital-
-com-series-lgbt-apos-criticas-de-bolsonaro/>. Acesso em: 16 set. 2019.
77. ÁLVARES, Débora. Bolsonaro diz que veto à propaganda do Banco do Brasil foi “respeito com a
população”. UOL: Congresso em Foco, 04 maio 2019. Disponível em: <https://congressoemfo-
co.uol.com.br/especial/noticias/bolsonaro-diz-que-veto-a-propaganda-do-banco-do-brasil-
-foi-respeito-com-a-populacao-veja-video/>. Acesso em: 16 set. 2019.
78. FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. O Conservadorismo e as Questões Sociais. São Paulo, 2019. Dispo-
nível em: <https://conteudo.fundacaotidesetubal.org.br/ downloadconservadorismo>. Aces-
so em: 27 ago. 2019.

99
Heloisa Fernandes Câmara

Os valores mais importantes para as pessoas entrevistadas estão orga-


nizados em torno de um eixo central: ordem. Há uma percepção com-
partilhada de que faltaria ordem dentro das famílias, das escolas, no
espaço público e na política, e isso estaria relacionado com: a existência
de uma decadência moral generalizada; o aumento da criminalidade;
a violência; e a corrupção e a impunidade na política nacional. Para os
entrevistados, a falta de estrutura dentro das famílias e de disciplina
dentro das escolas faz com que as crianças e jovens, na ausência de re-
ferências morais sólidas, “mandem” em pais e professores, sejam isola-
dos e pouco afetuosos, bebam e pratiquem sexo mais precocemente (…)
As mudanças na vida familiar teriam sido causadas, em grande medi-
da, pela necessidade de as mulheres entrarem no mercado de trabalho.
Com as mães for a de casa por mais tempo, as famílias teriam perdido a
figura responsável pelo cultivo da união e pela transmissão de valores79.
Neste sentido parte dos entrevistados identifica os movimentos fe-
ministas como movimentos que buscam chocar as pessoas ao defende-
rem a supremacia das mulheres em relação ao homens80, e apesar de
defesa em igualdade de homens e mulheres no mercado de trabalho, os
entrevistados não expressam concordância com feminismo.
Temos, portanto, cenário em que a incompreensão dos movimen-
tos e pautas feministas fomentam a exploração populista de maneira a
desacredita-los e minar os recentes avanços em termos de igualdade.
Com o cenário de presidente de extrema-direita, além das medidas já
adotadas nos poucos meses de governo, são esperados mais ataques,
inclusive como forma de mobilização contínua de seu eleitorado. Neste
panorama é fundamental pautar nas instituições os temas de igualdade
como forma de resistência aos retrocessos anunciados.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os discursos antifeministas estão no centro dos movimentos popu-
listas e de extrema-direita que tem levado à queda democrática.
Considerações contrárias à igualdade de gênero em prol de discurso dito
“pró-família” p movimento tem sido catalisador dos sentimentos de ódio
e ansiedade, bem como serve como amálgama de movimentos políticos

79. FUNDAÇÃO TIDE SETÚBAL. O Conservadorismo e as Questões Sociais, p. 19-21.


80. “Entre esses homens mais velhos e com opiniões, em geral, mais conservadoras apareceu a
ideia de que, na atualidade, as mulheres estariam mais agressivas no âmbito do trabalho, mais
impositivas na esfera doméstica e mais “depravadas” no espaço público. Tendo isso em vista,
afirmaram que as mulheres podem ser CEOs de empresas importantes desde que mantenham
o decoro na hora de agir e não queiram ser feministas, ou seja, “superiores aos homens”. FUN-
DAÇÃO TIDE SETÚBAL. O Conservadorismo e as Questões Sociais, p. 69.

100
Cap. 3 • QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO

distintos, ainda que tenham prevalecido os de extrema-direita. Mesmo


que o discurso antifeminista e anti-diversidade não sejam novos, tem
sido remoldados nos tempos atuais para caber no restante das ideias
defendidas pelos movimentos populista: nacionalismo, família “ideal”,
anti cientificismo e xenofobia.
Este processo tem ocorrido em diversos países do mundo e tem
desencadeado movimentos importantes de resistência. Nesta categoria
podem ser colocadas a já citada manifestação do “ele não” no Brasil, a
Women’s March nos Estados Unidos, marcha das mulheres polonesas
contra a proibição total do aborto81. A mobilização contínua sobre direi-
tos e políticas públicas é central em momentos de retrocesso.
Mas não é suficiente. Uma das arenas que deve ser enfrentada é a
da comunicação, que tem sido dificultada pela propagação de notícias
falsas, vídeos e fotos escandalosas como forma de produzir sentimentos
de asco e propiciar a narrativa de afronta à moralidade. Retomando a
já citada pesquisa “O conservadorismo e as questões sociais”, embora
haja público claramente contrário a pautas de gênero, uma parte impor-
tante daqueles que se consideram contra o feminismo não compreende
adequadamente o termo, identificando-o como contrário aos valores
religiosos e morais. Esse é um campo que deve ser disputado, e a comu-
nicação clara, ligando a importância desses movimentos na proteção de
direitos com a vida concreta é essencial para que se altere o caminho
atual de menosprezo e fragilização da igualdade de gênero. Do ponto
de vista acadêmico o estudo dos movimentos e discursos antifeministas
deve fazer parte da agenda de pesquisa, sob pena de não compreender-
mos um dos motores que ameaçam o legado do movimento constitucio-
nalista e democrático.

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81. LIMA, Juliana Domingos de. Como as mulheres fizeram o governo da Polônia recuar na proi-
bição total do aborto. Nexo Jornal, 05 out. 2016. Disponível em: <https://www.nexojornal.
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Heloisa Fernandes Câmara

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Cap. 3 • QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO

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105
4
DERECHO CONSTITUCIONAL
Y DERECHOS HUMANOS: HACIENDO
MANEJABLE EL ANÁLISIS
DE ESTEREOTIPOS1
Laura Clérico2

Sumario: 1. Introducción; 2. Sobre los estereotipos; 3. Sobre el análisis de


estereotipos; 4. Caminos para detectar estereotipos; 5. Consideraciones
finales; 6. Referencias bibliográficas.

1. INTRODUCCIÓN
El estudio de la jurisprudencia de los tribunales nacionales y cortes
de protección internacional de derechos humanos arroja como resultado
que la frecuencia con que los tribunales utilizan el análisis de estereoti-
pos va en aumento.3 Estudios recientes demuestran esta tendencia en la

1. Agradezco los comentarios, las sugerencias y lectura crítica de este trabajo a Celeste Novelli,
Camila Meijide, Liliana Ronconi y a Gustavo Ferreyra. Este trabajo fue publicado anteriormen-
te, en: REDEA. DERECHOS EN ACCIÓN, Univ. Nac. de La Plata, Año 2 N° 5, Primavera 2017, p.
211-246.
2. Abogada (UBA), LLM y Doctora en Derecho (Univ. de Kiel), Profesora de Derecho Constitucio-
nal (UBA), Investigadora CONICET, Profesora Honoraria de Derecho Constitucional Compara-
do y Protección de los Derechos Humanos (Univ. Erlangen/Núremberg).
3. FERNÁNDEZ VALLE, Mariano. Apróximación a las temáticas de género en la jurispruden-
cia interamericana. RATJ, v. 17, 2016. Disponible en: <http://www.utdt.edu/ver_contenido.
php?id_contenido=12835&id_item_menu=5858>. Acceso en: 21 nov. 2017; CLÉRICO, Laura;
NOVELLI, Celeste. La violencia contra las mujeres en las producciones de la Comisión y la Cor-
te Interamericana de Derechos Humanos. Revista Estudios Constitucionales, U. de Talca, Chile,
2014; CLÉRICO, Laura; NOVELLI, Celeste. La inclusión de la cuestión social en la perspectiva

107
Laura Clérico

jurisprudencia de la Corte IDH. Lo ha utilizado en casos sobre discrimi-


nación por orientación sexual (Atala,4 Duque,5 Flor Freire6), por género
(Campo Algodonero,7 Atala; Artavia Murillo;8 Véliz Franco;9 Velásquez
Pais;10 Gutiérrez Hernández11), por informalidad de la relación afectiva
y familia no-tradicional (Fornerón12), o por discriminación interseccio-
nal, en el caso de una niña (edad y género) con VIH/SIDA (condición de
persona con VIH), y viviendo en condición de pobreza (Gómez Lluy13),
entre otros.
Sin embargo, cuanto más visible se hace la referencia a los estereo-
tipos en la jurisprudencia, tanto más urgente se vuelve su enseñanza en
la formación de grado y en las capacitaciones de operadores jurídicos.14

de género: notas para re-escribir el caso “Campo Algodonero” sobre violencia de género. Re-
vista de Ciencias Sociales, Valparaíso, 2016, p. 453-487; CLÉRICO, Laura. Impacto del caso Ata-
la: posibilidades y perspectivas. En: BOGDANDY; Armin von; PIOVENSAN, Flávia; MORALES,
Mariela. (Coord.). Igualdad y orientación sexual. El caso Atala de la Corte Interamericana de
Derechos Humanos y su potencial. México: Ed. Porrúa, 2012, p. 27-55.
4. Sobre formación en derecho y género, v. RONCONI, Liliana; VITA, Leticia. La perspectiva de gé-
nero en la formación de jueces y juezas. Academia. Revista sobre Enseñanza del Derecho, v. 11,
2013, p. 115-155; GONZÁLEZ, Manuela; SALANUEVA, Olga. Las mujeres y el acceso a la justi-
cia. Derecho y Ciencias Sociales, n. 6, 2012; BERGALLO, Paola. El género ausente y la enseñanza
del derecho en Buenos Aires. En: RODRÍGUEZ, Marcela; ASENSIO, Raquel. Una agenda para la
equidad de género en el sistema de justicia. Buenos Aires: Del Puerto, CIEPP, 2008; RONCONI,
Liliana; VITA, Leticia. El principio de igualdad en la enseñanza del Derecho Constitucional.
Academia: Revista sobre enseñanza del Derecho, año 10, n. 19, 2012; GÓMEZ DEL RÍO, María
Eugenia; RÍOS, Graciela. Duración de los estudios universitarios en la carrera de Abogacía y
diferencias de género. Academia: Revista sobre enseñanza del Derecho, año 7, n. 14, 2009, p.
119-131, entre otros.
Corte IDH. Caso Atala Riffo y niñas vs. Chile, Sentencia de 24 de febrero de 2012.
5. Corte IDH, Caso Duque vs. Colombia, Sentencia de 26 de febrero de 2016.
6. Corte IDH, Caso Flor Freire vs. Ecuador, Sentencia de 31 de agosto de 2016.
7. Corte IDH. Caso González y otras (“Campo Algodonero”) vs. México. Sentencia de 16 de noviem-
bre de 2009.
8. Corte IDH. Caso Artavia Murillo y otros (“Fecundación in vitro”) vs. Costa Rica. Sentencia de 28
de noviembre de 2012.
9. Corte IDH, Caso Véliz Franco vs. Guatemala, Sentencia de 19 de mayo de 2014.
10. Corte IDH, Caso Velásquez Paíz vs. Guatemala, Sentencia de 19 de noviembre de 2015.
11. Corte IDH, Caso Gutiérrez Hernández vs. Guatemala, Sentencia de 24 de agosto de 2017.
12. Corte IDH, Caso Fornerón e hija vs. Argentina, Sentencia de 27 de abril de 2012.
13. Corte IDH. Caso Gómez Lluy vs. Ecuador, Sentencia de 1 de septiembre de 2015. V. RONCONI,
Liliana. Mucho ruido y pocos… DESC. Análisis del caso Gonzales Lluy y Otros contra Ecuador
de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Anuario de Derechos Humanos, v. 12, 2016,
p. 119-131.
14. Sobre formación en derecho y género, v. RONCONI, Liliana; VITA, Leticia. La perspectiva de gé-
nero en la formación de jueces y juezas. Academia. Revista sobre Enseñanza del Derecho, v. 11,

108
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

El análisis de estereotipos no ocupa aun un lugar preponderante en esas


formaciones. Sin embargo, es urgente. Además, no hay excusas: “es una
técnica que se aprende y no es difícil”15 de aplicar.
En un informe temático reciente, la CIDH enfatiza que tanto ella
como la Corte IDH “en diversas decisiones, … han reconocido explícita-
mente la necesidad de restructurar los estereotipos sociales de género y
adoptar programas de educación y capacitación con una perspectiva de
género, así como reformas legislativas e institucionales, con un enfoque
transformador. La lista de decisiones que recopila no es menor.16 Sin em-
bargo, aún no se ha instalado en forma sistemática la perspectiva de

2013, p. 115-155; GONZÁLEZ, Manuela; SALANUEVA, Olga. Las mujeres y el acceso a la justi-
cia. Derecho y Ciencias Sociales, n. 6, 2012; BERGALLO, Paola. El género ausente y la enseñanza
del derecho en Buenos Aires. En: RODRÍGUEZ, Marcela; ASENSIO, Raquel. Una agenda para la
equidad de género en el sistema de justicia, Buenos Aires: Del Puerto, CIEPP, 2008; RONCONI,
Liliana; VITA, Leticia. El principio de igualdad en la enseñanza del Derecho Constitucional.
Academia: Revista sobre enseñanza del Derecho, año 10, n. 19, 2012; GÓMEZ DEL RÍO, María
Eugenia; RÍOS, Graciela. Duración de los estudios universitarios en la carrera de Abogacía y
diferencias de género. Academia: Revista sobre enseñanza del Derecho, año 7, n. 14, 2009, p.
119-131, entre otros.
Corte IDH. Caso González y otras (“Campo Algodonero”) vs. México. Sentencia de 16 de noviem-
bre de 2009.
15. UNDURRAGA, Verónica, ¡Cuidado! Los estereotipos engañan (y pueden provocar injusti-
cias). Revista Corte Suprema, Chile, 1 mar. 2017. Disponible en: <http://www.uai.cl/colum-
nas-de-opinion/cuidado-los-estereotipos-enganan-y-pueden-provocar-injusticias>. Acceso
en: 19 set. 2019.
16. CIDH. Las mujeres indígenas y sus derechos humanos en las Américas, 2017, párr. 75, con cita
de: “Corte IDH. Caso González y otras (“Campo Algodonero”) vs. México, Excepción Prelimi-
nar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 16 de noviembre de 2009, Serie C No.205,
párrs. 450, 502, 540; CIDH. Informe 80/11, Caso 12.626, Jessica Lenahan (González) y otros
(Estados Unidos), Fondo, 21 de julio de 2011, párr. 201; CIDH. Informe 51/13, Caso 12.551,
Paloma Angélica Escobar Ledezma (México), Fondo, 12 de julio de 2013, párrs. 153-154;
CIDH. Informe XX/13, Caso 12.777, Claudina Velásquez Paiz (Guatemala), Fondo, noviembre
de 2013, recomendaciones 5, 7 y 8; CIDH. Informe 67/11, Caso 11.157, Gladys Carol Espino-
za González (Perú), Admisibilidad y Fondo, 31 de marzo 2011, párr. 236, recomendación 8;
CIDH. Informe XX/13, Caso 12.595, Ana Teresa Yarce (Colombia), Fondo, octubre de 2013,
párr. 370; Corte IDH. Caso Atala Riffo y niñas vs. Chile, Fondo, Reparaciones y Costas, Sen-
tencia de 24 de febrero de 2012, Serie C No. 239, párrs. 267, 269, 284; Corte IDH. Caso Arta-
via Murillo y otros (“Fecundación in vitro”) vs. Costa Rica, Excepciones Preliminares, Fondo,
Reparaciones y Costas, Sentencia de 28 de noviembre de 2012, Serie C No. 257, párrs. 336,
341; Corte IDH. Caso Veliz Franco y otros vs. Guatemala. Excepciones Preliminares, Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 19 de mayo de 2014, Serie C No. 277, párrs. 264, 270;
Corte IDH. Caso Fernández Ortega y otros vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Repara-
ciones y Costas. Sentencia de 30 de agosto de 2010 Serie C No. 215, párr. 308, recomenda-
ciones 14, 19, 20; Corte IDH. Caso Rosendo Cantú y otra vs. México. Excepción Preliminar,
Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de agosto de 2010, Serie C No. 216, párr. 295,
recomendaciones 12, 17 y 18.”

109
Laura Clérico

género en la enseñanza y menos aún el análisis de estereotipos como


una de sus herramientas.
Hay que reconocer que el abordaje de estereotipos como conteni-
do de enseñanza siempre tuvo mayor presencia en sociología jurídica
o criminología o derecho penal.17 Sin embargo, no abunda en derecho
constitucional ni en derechos humanos ni en asignaturas que se encar-
gan de formar en metodologías de adjudicación de derechos, sea como
fuera su nombre.
El objetivo de este artículo es explorar el análisis de estereotipos
como herramienta metodológica para dar pistas a quien, por ejemplo,
quiere atacar la constitucionalidad o convencionalidad de una norma o
de una práctica que se sustenta en imágenes estereotipadas del papel
que se le asigna a determinadas personas o grupos en la sociedad y que
implica una violación de derechos.18 A su vez, está dirigido a operadores
jurídicos que trabajan en la justicia y deben mantener la alerta interpre-
tativa de no incurrir en el uso de estereotipos o que tienen la obligación de
desarmar los estereotipos que se enmascaran en las formalidades de las
presentaciones jurídicas o en la naturalización de los hechos del caso.19
Como en forma clara y sencilla plantea Verónica Undurraga:

17. ASENSIO, Raquel et al. Discriminación de Género en Las Decisiones Judiciales: Justicia Penal
y Violencia de Género. Buenos Aires: Defensoría General de la Nación, 2010. Disponible en:
<http://www.artemisanoticias.com.ar/images/FotosNotas/inv%20defensoria11-10%
5B1%5D.pdf>. Acceso en: 11 nov. 2017); FREEDMAN, Diego; GONZÁLEZ, Mariela; KIERSZEN-
BAUM, Mariano; TERRAGNI, Martiniano. El estereotipo del joven delincuente en la última
década a través de la jurisprudencia. En: BELOFF, Mary (Dir.). Estudios sobre edad penal y de-
rechos del niño, Buenos Aires, Ad-Hoc, 2013, p. 199-208; CUSSAK, Simone. Eliminating judicial
stereotyping. Equal access to justice for women in gender-based violence cases. Documento
de trabajo presentado en la Oficina del Alto Comisionado de la ONU, 2014.
18. Sobre estereotipos de género como violaciones de derechos humanos. ONU. Oficina del Alto
Comisionado de la ONU. Gender Stereotyping as a Human Rights Violation, 2013. Disponible
en: <http://www.ohchr.org/SP/Issues/Women/WRGS/Pages/GenderStereotypes.aspx>. Ac-
ceso en: 11 nov. 2017.
19. Detrás del carácter urgente de la capacitación en perspectiva de género y análisis de estereo-
tipos se encuentra la hipótesis de trabajo que plantean Liliana Ronconi y Leticia Vita, cuando
sostienen que existe “una relación de pertinencia entre la capacitación que reciben quienes
aspiran a o que ocupan cargos de magistratura” y perfiles de juezas y jueces “que colaboren
con la construcción de un modelo de sociedad igualitario”. Sobre esta base, analizan la incor-
poración de la perspectiva de género en la formación de aspirantes a jueces/zas y jueces/
zas en ejercicio. Trabajan sobre casos en los que se intentó implementar capacitación con
perspectiva de género. Identifican cómo se llevó a cabo y cuáles habrían sido las ventajas y
desventajas de la modalidad concreta de intervención sobre la capacitación. Esto les permitió
analiza cómo se vincula la perspectiva de género con las distintas concepciones de igualdad,
por un lado, y cómo esta perspectiva es incorporada en cuatro casos de oferta de capacitación

110
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

Los estereotipos operan de manera inconsciente cada vez que adscri-


bimos a una persona atributos, características o roles solo en razón de
su pertenencia o supuesta pertenencia a un determinado grupo social.
Reforzamos y perpetuamos estereotipos cuando los aceptamos acríti-
camente en lugar de cuestionarlos. Es posible evitar caer en juicios este-
reotipados…. Sólo un ejemplo: cuando alguien comienza una frase con
“las mujeres son …” (puede cambiar “mujeres” por “mapuche”, “gay”,
“migrante”, etc.), póngase en alerta, porque posiblemente esté operando
un juicio estereotipado. Esté atento a los contextos, porque hay espa-
cios que favorecen la acción de estereotipos. Por ejemplo, lugares muy
masculinizados donde hay pocas mujeres – como nuestro Congreso o
las fuerzas armadas- son un caldo de cultivo para los estereotipos de
género.20
Para ejemplificar los diferentes pasos de su uso utilizaré como ejem-
plos casos de la Corte IDH, del TEDH y de la Corte Suprema de Justicia
argentina,21 que incluyen el análisis de estereotipos de género. Sin em-
bargo, los desarrollos que realizaremos sobre la técnica de estereotipos
pueden ser utilizados para desarmar otros estereotipos, tales como por
etnia, condición social, edad, religión, apariencia física, entre otros.
Con todas estas imágenes y diagnósticos sobre la formación de ope-
radores/as jurídicos en la cabeza, pasamos al desafío de hacer el análisis

a nivel federal y provincial o local, por el otro lado. RONCONI, Liliana; VITA, Leticia. La pers-
pectiva de género en la formación de jueces y juezas. Academia: Revista sobre Enseñanza del
Derecho, v. 11, 2013, p. 115-155.
20. UNDURRAGA, Verónica, ¡Cuidado! Los estereotipos engañan (y pueden provocar injusti-
cias). Revista Corte Suprema, Chile, 1 mar. 2017. Disponible en: <http://www.uai.cl/colum-
nas-de-opinion/cuidado-los-estereotipos-enganan-y-pueden-provocar-injusticias>. Acceso
en: 19 set. 2019. Cursiva agregada.
21. Celeste Novelli me advierte sobre el potencial que tiene trabajar con casos de una Corte inter-
nacional y una Corte nacional en un mismo artículo, se lo agradezco porque cuando pensé en
tomar como ejemplos casos de ambas Cortes no reflexioné sobre las razones de la selección.
Novelli me explica que agregar el ida y vuelta entre, casos como Campo Algodonero de la Cor-
te IDH y el caso Sisnero de la Corte argentina, permite mostrar el potencial que tiene el análi-
sis de estereotipos aun frente a hechos sustancialmente distintos (violencia de género y femi-
cidios en Campo Algodonero, por un lado, y discriminación por género en el acceso al trabajo
en Sisnero, por el otro lado). Concluye, que esto contribuye a cambiar la percepción de que la
jurisprudencia internacional va por un carril y la nacional por otro, al menos esto surge de la
reflexión que realiza de su experiencia personal en la cursada de varias asignaturas durante
la carrera de Abogacía. NOVELLI, Celeste. Silencio (parcial) en la Sala. Reconstrucción crítica
del enfoque de estereotipos de género en la jurisprudencia de la Corte IDH. Tesis de maestría,
defendida el 9 de septiembre de 2016, Univ. Nac. de San Martín/ Centro Internacional de
Estudios Políticos. Las reflexiones de Celeste Novelli se podrían leer asimismo en el marco de
los trabajos de RONCONI, Liliana; VITA, Leticia. El principio de igualdad en la enseñanza del
Derecho Constitucional. Academia: Revista sobre enseñanza del derecho, n. 19, 2012, p. 31-62,
entre otros.

111
Laura Clérico

de estereotipos manejable para su uso en derecho constitucional y dere-


chos humanos. En suma, el desafío es que se instale en la caja de herra-
mientas de uso cotidiano de los y las operadoras jurídicas.22

2. SOBRE LOS ESTEREOTIPOS


Existen diversos ensayos sobre la definición de estereotipos. Estos
desarrollos provienen de la sociología y de la psicología social. Aquí,
como en tantas otras ocasiones, el derecho se presenta como un/a tra-
ductor/a. Diría como un/a traductor/a que debe ser consciente de sus
limitaciones y revisar de vez en cuando lo que al respecto se produce
en las disciplinas madres de esos conceptos. Esto es fundamental para
que esas traducciones no queden des-actualizadas. A los efectos de este
escrito, tomamos estereotipo como concepto de trabajo. Somos cons-
cientes de que como todo concepto sus sentidos son objeto de dispu-
ta.23 Sin embargo, nos sirve para identificar aspectos de violaciones a
los derechos que de otro modo quedan invisibilizadas. Acudimos a la
caracterización de estereotipo tal como surge de la jurisprudencia de
la Corte IDH. Esta, a su vez, se inspira en las producciones de la CEDAW
al respecto.24 Sin embargo, como preludio a la definición de estereotipo
de la Corte IDH, que puede sonar algo técnica, sugerimos trabajar con el
siguiente párrafo de Verónica Undurraga, que ha realizado una explica-
ción del concepto de estereotipo para un público no especializado:
Los estereotipos de género son creencias sobre los atributos de mujeres
y hombres, que cubren desde rasgos de personalidad (las mujeres son
más subjetivas y emocionales, los hombres son objetivos y racionales),
comportamientos (las mujeres son más pasivas sexualmente, los hom-
bres son más agresivos en ese plano), roles (las mujeres deben asumir
las tareas de cuidado y el hombre ser el proveedor), características físi-

22. Horacio Mendizabal me confirma que sirve y de mucho. Lleva ya varios casos atacando la
constitucionalidad de normas y prácticas basadas en estereotipos.
23. Sobre un análisis de las complejidades de los estereotipos, v. ARENA, Federico. Los estereo-
tipos normativos en la decisión judicial. Una exploración conceptual. Revista de derecho de la
Universidad Austral de Chile, v. 29, n. 1, 2016, p. 51-75, quien sostiene que se suele exigir a los
operadores judiciales que prevengan o contrasten los efectos perjudiciales de los estereoti-
pos. Sin embargo, advierte que a los efectos de entender la acción requerida es necesario ad-
vertir la ambigüedad de estereotipo. Distingue así entre estereotipos descriptivos y estereo-
tipos normativos. Por último, el trabajo propone algunos criterios de relevancia destinados a
determinar cuándo el uso de estereotipos está prohibido y cuándo es obligatorio.
24. ONU. Comité CEDAW, Recomendación general No. 25, sobre el párrafo 1 del artículo 4 de la Con-
vención sobre la eliminación de todas las formas de discriminación contra la mujer, referente a
medidas especiales de carácter temporal, 30° período de sesiones, 2004.

112
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

cas (las mujeres son más débiles que los hombres) y de apariencia (los
hombres deben ser masculinos), ocupaciones (las carreras de armas no
son para las mujeres, los hombres no pueden ser parvularios) y supues-
tos de orientación sexual (las lesbianas son egoístas y no priorizan el
interés de sus niños; los gays son promiscuos).25
En Campo Algodonero, el caso de los asesinatos de mujeres en Ciu-
dad Juárez, México, la Corte IDH aproxima una definición26 que reitera
en el reciente caso Gutiérrez Hernández c. Guatemala:27
el estereotipo de género se refiere a una pre-concepción de atributos,
conductas o características poseídas o papeles que son o deberían ser
ejecutados por hombres y mujeres respectivamente, y que es posible aso-
ciar la subordinación de la mujer a prácticas basadas en estereotipos de
género socialmente dominantes y persistentes. En este sentido, su crea-
ción y uso se convierte en una de las causas y consecuencias de la violen-
cia de género en contra de las mujer, condiciones que se agravan cuando
se reflejan, implícita o explícitamente, en políticas y prácticas, particu-
larmente en el razonamiento y el lenguaje de las autoridades estatales28.
Por su parte, el TEDH también acude al concepto de estereotipo en
su jurisprudencia. Valga como ejemplo, entre muchos otros, el caso de la
Gran Sala, Konstantin Markin contra Rusia.29 En el caso, se ataca la con-
vencionalidad de la norma que otorgaba hasta tres años de licencia pa-
rental para el cuidado de los hijos a mujeres con estado militar, pero no a
varones con el mismo estado. El gobierno ruso alegó que “… la presencia
y cuidado de la madre durante el primer año de la vida del niño era par-
ticularmente importante”. Agregó que “… debido a que había muy pocas
mujeres en el ejército, su ausencia del servicio no tendría impacto en la
capacidad de lucha”. El TEDH, con apoyo de un amicus curiae, desarma

25. UNDURRAGA, Verónica, ¡Cuidado! Los estereotipos engañan (y pueden provocar injusti-
cias). Revista Corte Suprema, Chile, 1 mar. 2017. Disponible en: <http://www.uai.cl/colum-
nas-de-opinion/cuidado-los-estereotipos-enganan-y-pueden-provocar-injusticias>. Acceso
en: 19 set. 2019. Cursiva agregada.
26. Corte IDH, Caso Campo Algodonero, párrs. 398, 401.
27. Corte IDH, Caso Gutiérrez Hernández c. Guatemala, Sentencia 24 de agosto de 2017.
28. Corte IDH, Caso Gutiérrez Hernández c. Guatemala, párr. 169, resaltado y cursiva agregada. V.,
Corte IDH, Caso González y otras (“Campo Algodonero”) vs. México, párr. 401, y Caso Velásquez
Paiz y otros Vs. Guatemala, párr. 180. Arenas, Federico, op. cit., discute la definición mixta de
estereotipo usada por la Corte IDH en Campo Algodonero, en tanto combina elementos des-
criptivos y normativos.
29. TEDH, Konstantin Markin vs. Rusia, 22 de marzo de 2012. Sobre la sentencia de la Sala previa
a la de la Gran Sala, v. TIMMER, Alexandra. From inclusion to transformation: rewriting Kons-
tantin Markin v. Russia. En: BREMS, Eva. Diversity and European Human Rights. Cambridge:
CUP, 2013, p. 156.

113
Laura Clérico

los estereotipos alegados. Por un lado, la petrificación de la imagen de


las mujeres como reproductora y cuidadora como un rol natural que no
es construido socialmente y que, por lo tanto, conlleva tareas que solo
lo podrían realizar las mujeres. Y, por el otro lado, el estereotipo del va-
rón como proveedor, nacido para buscar el sustento fuera del hogar. Se
trata de un asociado al uso de la fuerza física y lo militar, por oposición
a los atributos asignados a los estereotipos vinculados con las mujeres:
la imagen petrificada de lo delicado, de la debilidad y su falta de apti-
tud para actividades vinculadas al uso de la fuerza física .30 Estas imá-
genes estereotipadas obturan escuchar las voces de los y las afectadas
concretas, que tienen otros proyectos de vida que difieren de lo que se
espera de ellas y ellos desde la automaticidad que destilan los estereo-
tipos. “Cuando un tribunal se deja influenciar por estereotipos, juzga al
individuo basado en sus ideas acerca del grupo particular y no en los he-
chos relevantes respecto de esa persona y las circunstancias de ese caso
específico.”31 No permite así que el varón se dedique al cuidado y que la
mujer desarrolle su plan laboral fuera de su casa. Por todo ello, el TEDH
concluye que hay discriminación de género al excluir Rusia al varón con
estado militar de la posibilidad de gozar de la licencia parental para el
cuidado de sus hijas e hijos.
En suma, cuando aparecen las mujeres en lugares subordinados que
se refieren a los roles sociales que típicamente se le atribuyen, estamos
frente a un estereotipo de género. La idea de imagen estereotipada ayu-
da para comprender el problema que plantea el caso y desarmar las ra-
zones que se alegan para justificar la afectación de los derechos. Esas
imágenes estereotipadas refleja (y refuerzan) la distribución desigua-
litaria de poder que pone a un colectivo en lugar de subordinación y al
otro, nuevamente por la asignación de roles sociales, en lugar de aventa-
jado o de privilegio.32.

30. V., PUGA, Mariela; OTERO, Romina. Igualdad, género y acciones afirmativas. La justicia salteña
y la inclusión de las mujeres en el mercado laboral. En: ALEGRE; GARGARELLA (Comp.). El
derecho a la Igualdad. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2012, p. 341-362.
31. UNDURRAGA, Verónica, ¡Cuidado! Los estereotipos engañan (y pueden provocar injusti-
cias). Revista Corte Suprema, Chile, 1 mar. 2017. Disponible en: <http://www.uai.cl/colum-
nas-de-opinion/cuidado-los-estereotipos-enganan-y-pueden-provocar-injusticias>. Acceso
en: 19 set. 2019. Cursiva agregada.
32. Aquí sigo a Iris Marion Young: “... la injusticia estructural existe cuando los procesos sociales
sitúan a grandes grupos de personas bajo la amenaza sistemática del abuso o de la privación
de los medios necesarios para desarrollar y ejercitar sus capacidades, al mismo tiempo que
estos procesos capacitan a otros para abusar o tener un amplio espectro de oportunidades

114
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

En este sentido, se puede pensar en dos estrategias de formación


en estereotipos para operadores jurídicos. Por un lado, la discusión de
algún texto de corte más teórico que trabaje estereotipos, por ejemplo,
Estereotipos de género. Perspectivas legales transnacionales Rebecca
Cook y Simone Cussak,33 O de acuerdo con el ciclo de enseñanza, un texto
más corto y dirigido al público en general como “¡Cuidado! Los estereoti-
pos engañan (y pueden provocar injusticias)”, de Verónica Undurraga.34
Por el otro lado, el trabajo con fallos en donde se haya realizado análisis
de estereotipos. Esto conecta con el siguiente punto.

3. SOBRE EL ANÁLISIS DE ESTEREOTIPOS


El análisis de estereotipos en la jurisprudencia de la Corte IDH pa-
rece estar siempre de la mano de la desigualdad estructural. Por ejem-
plo, en el caso Atala v. Chile (2012) sobre discriminación por orien-
tación sexual y género, la Corte IDH enfatiza “que algunos actos dis-
criminatorios … se relacionaron con la reproducción de estereotipos
que están asociados a la discriminación estructural e histórica que han
sufrido las minorías sexuales …, particularmente en cuestiones rela-
cionadas con el acceso a la justicia y la aplicación del derecho inter-
no. ...”. Algo similar surge del caso paradigmático Campo Algodonero,
donde la Corte IDH habla de violencia de género en un contexto de
discriminación estructural contra las mujeres. Donde incluso avan-
za en el análisis de los estereotipos de género35 como manifestación

para desarrollar y ejercitar capacidades a su alcance. ... “ YOUNG, Iris. Responsability for Justi-
ce. Oxford: OUP, 2011, p. 69.
33. V. COOK, Rebecca; CUSACK, Simone. Estereotipos de género: Perspectivas legales transnacio-
nales. Bogotá: Profamilia, 2010; ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre de. Mujeres y estereo-
tipos de género en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Eu-
nomía: Revista en Cultura de la Legalidad, n. 9, oct. 2015 – mar. 2016, p. 26-48. Sobre análisis
de jurisprudencia desde perspectiva de género, v. EZPELETA, Cecilia; COLAZO, Carmen; CAN-
TORE, Laura. Igualdad, género y constitución: aportes feminista s para la reformulación del
principio de igualdad. Análisis de fallos relevantes desde una perspectiva de género(s). En:
GROSMAN; LEGARRE; RIVERA; ELÍAS (Coord.). Tratado de Derechos Constitucionales. Bue-
nos Aires: Abeledo Perrot/Thomson Reuters, 2014, p. 958-1031; DÍAZ ALDERETE, Elmina
Rosa. Perspectiva de género en las sentencias judiciales y en el ámbito jurídico. LLNOA2013
(septiembre), p. 825; DEZA, Soledad. “Brujas”, estereotipos de género y violencia simbólica.
LLNOA2013 (agosto), p. 719.
34. UNDURRAGA, Verónica, ¡Cuidado! Los estereotipos engañan (y pueden provocar injusti-
cias). Revista Corte Suprema, Chile, 1 mar. 2017. Disponible en: <http://www.uai.cl/colum-
nas-de-opinion/cuidado-los-estereotipos-enganan-y-pueden-provocar-injusticias>. Acceso
en: 19 set. 2019. Cursiva agregada.
35. Corte IDH, Caso Campo Algodonero, párrs. 398, 401.

115
Laura Clérico

y causal de discriminación.36 Por ejemplo, cuando identifica como la


imagen estereotipada de “mujer” provoca que los agentes policiales no
emprendieran acciones inmediatas para la búsqueda de las mujeres
desaparecidas en Juárez. Expresaron que las mujeres eran niñas “vo-
ladas”, que seguramente habrían salido con un novio y no tardarían
en regresar al hogar.37 La interpretación automática de los agentes es
que por ser mujeres estarían con sus novios, las mujeres estarían mol-
deadas para acompañar, cuando terminen esa tarea entonces volverían
al hogar en donde se proyecta otra imagen: la “mujer”, si joven ayuda
en las tareas domésticas para cuidar a los varones de la casa; si “ma-
dre”, es la encargada del cuidado de todos los integrantes del hogar.38
Así, por ejemplo, la madre de la joven Herrera sostuvo ante la Corte
IDH que, al interponer la denuncia, las autoridades le dijeron que su
hija “no está desaparecida, anda con el novio o anda con los amigos
de vaga” y “que si le pasaba eso era porque ella se lo buscaba, porque
una niña buena, una mujer buena, está en su casa”. En suma, la “mujer”
aparece pensando o haciendo algo con varones. Acciona también un
mecanismo de traslación de la responsabilidad, “se lo buscó”, si algo le
pasa. Se relaciona entonces con el papel de “mujer” sumisa y sacrifica-
da cuya misión en la sociedad sería quedarse en el hogar para servir a
los varones de la casa. Los diversos estereotipos hablan de los compor-
tamientos esperados que las mujeres deben adoptar en el marco de sus
relaciones interpersonales y en la sociedad. A su vez, usan estereotipos
para las mujeres que se movilizan para reclamar, las madres o parien-
tes de las desaparecidas. De ellas también se espera sumisión y, hasta
por su condición social, se estereotipa su uso del tiempo, se la manda a
tomar unas “heladas”.39 Por todo ello, la Corte IDH concluye que todos
estos comentarios y actitudes constituyen estereotipos. Y que “tan-
to las actitudes como las declaraciones de los funcionarios demues-
tran que existía, por lo menos, indiferencia hacia los familiares de las

36. TIMMER, Alexandra: Toward an Anti-Stereotyping Approach for the European Court of Hu-
man Rights. Human Rights Law Review, v. 11, n.4, p. 707-738, 2011; además, COOK, Rebecca;
CUSACK, Simone. Op. Cit.
37. Corte IDH, Caso Campo Algodonero, párr. 198. Énfasis agregado.
38. Luego volveremos sobre “los discursos adoctrinadores” que se esconden detrás de estos tipos
comentarios que buscan trasladar la responsabilidad de lo ocurrido a las víctimas.
39. SOSA, Lorena. Inter-American Court of Human Rights’ case law on violence against women:
breaking grounds, facing challenges. Seminario Moving beyond the good, the bad and the ugly:
What to learn from International Human Rights System? 2016, Gantes, Bélgica.

116
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

víctimas y sus denuncias.”40 Todo esto se traduce en violaciones claras


a los derechos de las mujeres desaparecidas y luego asesinadas y a sus
familiares.
En el orden interno, la Corte Suprema de Justicia desmantela implí-
citamente estereotipos de género en el caso Sisnero sobre discrimina-
ción para el acceso de mujeres al empleo de conductoras de transporte
público en la Provincia de Salta.41 La falta de contratación de mujeres

40. Corte IDH, Caso Campo Algodonero, párr. 208.


41. El caso se inicia por una acción de amparo interpuesta por Mirtha Graciela Sisnero y la Funda-
ción Entre Mujeres (FEM) contra la Sociedad Anónima del Estado del Transporte Automotor
(SAETA), la Autoridad Metropolitana de Transporte (AMI) y las siete empresas operadoras de
SAETA que tienen a su cargo el transporte público de pasajeros en la ciudad de Salta. La acción
contenía dos pretensiones, una individual y otra colectiva. La individual iba contra la dene-
gatoria de las empresas de contratar a Sisnero como colectivera a pesar de cumplir con los
requisitos de idoneidad. Respecto de la pretensión colectiva, la Fundación alegó la violación
de la manda de igualdad y la prohibición de no discriminación por género por la falta de con-
tratación de mujeres. La Cámara hizo lugar a la acción y ordenó el cese de la discriminación;
determinó que las empresas debían contratar mujeres hasta alcanzar un treinta por ciento
(30 %) de la planta de choferes. Agregó que la autoridad de aplicación de transporte local (la
AMT), debía confeccionar una lista de todas las postulantes mujeres y ubicar a Mirtha Sisnero
en primer lugar. Para el caso de que las empresas no cumplieran con lo ordenado, debían abo-
nar a la primera en la lista un salario idéntico al del chofer de mejor remuneración. La Corte
de Justicia de Salta revocó la sentencia. Sostuvo “síntomas discriminatorios en la sociedad” y
observó que “basta detenerse en cualquier parada de colectivos para relevar la nula presencia
de mujeres conduciendo estos móviles”; empero, revocó la sentencia por considerar que “no
se configuró el presupuesto para que prospere el pedido de una orden de cese de discrimi-
nación”. Por un lado, sostuvo que “la mera omisión de responder a las reiteradas solicitudes
de trabajo de Mirtha Sisnero era insuficiente para tener por configurado un supuesto de dis-
criminación porque las empresas no tenían ningún deber constitucional de responderle”. Por
el otro lado, intimó a las empresas demandadas a presentar ante la AMT los requisitos que
exigen para la contratación de choferes. Por último, exhortó al Poder Legislativo y al Poder
Ejecutivo provincial a emitir las normas necesarias para modificar los patrones sociocultura-
les de discriminación. En su sentencia reconoció “la presencia de síntomas discriminatorios
en la sociedad” porque en los hechos no hay mujeres choferes en Salta. Entonces, si bien no
hizo lugar a la pretensión individual, hizo lugar parcialmente a la demanda “sólo a los fines
preventivos, para que en futuras contrataciones se asegure que la postulación de mujeres será
analizada por las empresas prestadoras sin tomar en cuenta su condición femenina sino en
base a los mismos requisitos que los exigidos a los hombres”. El caso llegó a la Corte por queja
por recurso extraordinario federal denegado. La Corte Suprema dejó sin efecto la sentencia
de la Corte Salteña, en tanto la Corte salteña no había valorado adecuadamente la prueba que
constaba en el expediente. Recordó que la prueba es difícil de lograr en forma acabada para
la parte que alega la discriminación. Por ello, “es suficiente con la acreditación de hechos que,
prima facie evaluados, resulten idóneos para inducir su existencia, caso en el cual correspon-
derá al demandado, a quien se reprocha la comisión del trato impugnado, la prueba de que
éste tuvo como causa un motivo objetivo y razonable ajeno a toda discriminación” (conside-
rando 6). Si la actora lo logra la acreditación de “hechos de los que pueda presumirse su ca-
rácter discriminatorio”, entonces es el demandado, en este caso las empresas, quienes deben
probar que tuvieron “como causa un motivo objetivo y razonable ajeno a toda discriminación”

117
Laura Clérico

debía justificarse con “motivos objetivos y razonables”. No alcanza con


“dogmáticas explicaciones”. La Corte no habla expresamente de imáge-
nes estereotipadas. Sin embargo, lo hace implícitamente, cuando sostie-
ne que esas explicaciones “resultan inadmisibles para destruir la pre-
sunción de que las demandadas han incurrido en conductas y prácticas
discriminatorias contra las mujeres en general y contra Sisnero en parti-
cular.” Insiste la Corte Suprema que se desprende de la propia sentencia
de la Corte salteña que el reconocimiento de un contexto de discrimina-
ción contra las mujeres.42 Por eso parece cuestionarla cuando le repro-
cha implícitamente esa falta de observancia de la alerta interpretativa.
Lo traduzco en términos claros y sencillos a la manera de diálogo
entre ambas Cortes: Si Ud. reconoce que los hechos se dan en un contex-
to de discriminación, por eso no se ven mujeres colectiveras, cómo no
tener por probado que Sisnero es un caso de discriminación individual
en el marco de la discriminación colectiva. Aún más, le advierte la Cor-
te Suprema, en el expediente consta una entrevista a un empresario en
un medio periodístico, que es un “claro ejemplo en esta dirección”: “las
manifestaciones de uno de los empresarios demandados ante un me-
dio periodístico, quien, con relación a este juicio, señaló sin ambages y
“entre risas” que “esto es Salta Turística, y las mujeres deberían demos-
trar sus artes culinarias [..]. Esas manos son para acariciar, no para estar
llenas de callos [...] Se debe ordenar el tránsito de la ciudad, y [...] no es
tiempo de que una mujer maneje colectivos [...]”.43 Y, le agrega, no olvide
Ud. que tengo jurisprudencia al respecto, no basta con que los empresa-
rios afirmen que no tenían intención de discriminar. No veo los motivos

(consid. 5). No basta con negar que no hubo intención de discriminar en la exclusión en la
contratación, ni menos aún se puede basar esta prueba en imágenes estereotipadas acerca del
papel de las mujeres en la sociedad, en este caso, salteña. La Corte reenvió la causa a la Corte
provincial para que dictara nueva sentencia. ARGENTINA. CSJN. Sisnero, Mirtha Graciela y
otros c. Tadelva SRL y otros s/ amparo, 20/5/2014. V. análisis del fallo con referencia a la línea
jurisprudencial de la Corte que fue haciendo camino al andar (Alvarez c. Cencosud (2010)
Pellejero (2010) y Pellicori -2011), Zayat, Demián, “Hacia un definido Derecho Antidiscrimi-
natorio”, LA LEY 2014-D, 66; ÁLVAREZ, M. El principio de igualdad en la Constitución y en
la práctica constitucional. En: ROSETTI; ÁLVAREZ (Coord.). Derecho a la Igualdad. Córdoba:
Advocatus, 2010, p. 35-62; SABA, R. Más allá de la igualdad formal ante la ley ¿qué les debe el
estado a los grupos desaventajados?, SXXI, Buenos Aires, 2016; LOBATO, Julieta. Cláusula de
igualdad en el ámbito laboral y perspectiva de género. Revista de la Facultad de Derecho, v. 46,
2019, Montevideo.
42. RUIBAL, Alba. Movilización legal a nivel subnacional en la Argentina. El caso Sisnero por la
igualdad de género en el trabajo en Salta. Desarrollo Económico, v. 57, n 222, 2017, p. 277-297.
43. ARGENTINA. CSJN. Sisnero, Mirtha Graciela y otros c/Tadelva SRL y otros s/amparo (2014),
consid. 6.

118
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

“objetivos y razonables” que exige la jurisprudencia para “destruir la


presunción” de discriminación.
Sin embargo, ni la Corte IDH ni la Corte Suprema explicita una me-
todología de análisis de estereotipos en los respectivos fallos.44 Este es el
objetivo del artículo. Se trata de la reconstrucción de esos pasos.

4. CAMINOS PARA DETECTAR ESTEREOTIPOS


Antes que nada conviene guiar el análisis a través de las siguientes
preguntas generales formuladas por Rebecca Cook y Simone Cussak:

Cuadro 1.

a) “¿Se está negando un beneficio a las mujeres en razón de la existencia de cierto


estereotipo de género?”

b) “¿se le está imponiendo una carga a las mujeres en razón de la existencia de


cierto estereotipo de género?”

c) “¿se degrada a las mujeres, se les minimiza su dignidad o se las marginaliza de


alguna manera en razón de la existencia de cierto estereotipo de género?”

Fuente: Elaboración del cuadro sobre la base


de las preguntas en: Cook y Cussak (2010).45

Si volvemos la mirada sobre lo referido al caso Campo Algodonero o


al caso Sisnero, sin lugar a dudas, las respuestas son afirmativas. Los es-
tereotipos operan en contra de los derechos de las mujeres empeorando
en Sisnero sus oportunidades para acceder a empleos mejor remunera-
dos;46 y, en el caso, Campo Algodonero para ser buscadas en forma inme-

44. Esto contrasta con otras herramientas utilizadas por la Corte IDH en otros contextos. Por
ejemplo, cuando se trata de resolver la colisión entre la libertad de expresión y el derecho
al honor, la Corte IDH expresamente establece que someterá la justificación a la solución del
conflicto a un examen de proporcionalidad. E incluso en la versión de examen de proporcio-
nalidad estructurado ya que identifica con detalle los pasos a los cuales someterá la evalua-
ción de la justificación estatal. V., por ejemplo, Corte IDH, Caso Kimel vs. Argentina.
45. COOK, Rebecca; CUSACK, Simone. Estereotipos de género. Perspectivas legales transnacionales.
Bogotá: Profamilia, 2010.
46. CODDOU MCMANUS, Alberto. Addressing Poverty through a Transformative Approach to
Anti-Discrimination Law in Latin America. En: FORTES, P.; BORATTI, L., PALACIOS, Lleras A.;
Gerald DALY, T. (Coord.). Law and Policy in Latin America. St Antony’s Series. London: Palgrave
Macmillan, 2017, quien sostiene que las normas antidiscriminatorios sirven para ver la po-
breza como causal de discriminación y plantear el reclamo en clave de transformación de los
procesos sociales, culturales, políticos y económicos que generan la dominación. En especial,
estudia el caso de Argentina. CODDOU MCMANUS, Alberto. Las interrogantes y posibilidades

119
Laura Clérico

diata ante la denuncia de desaparición en un contexto de discriminación


estructural contra las mujeres.
Entonces, qué puede/debe hacer el o la jueza para desmantelar es-
tereotipos.47 Las respuestas surgen de líneas de trabajos que presentan
parecidos de familia, aunque no sean exactamente iguales. Nos referi-
mos a los trabajos de Cook y Cussack, Timmer, Canosa Onofre, Undurra-
ga, entre otras.48
Los operadores judiciales pueden hacer, por lo menos, dos cosas.
La primera se refiere a que el propio tribunal no debe utilizar estereo-
tipos en su argumentación. A su vez, debe formular las tres preguntas
propuestas por Rebecca Cook y Simone Cussak para analizar la cues-
tión desde una perspectiva de género. Y, agregar, ¿consideran el contexto
en la interpretación de los hechos y en la consideración de la prueba?
¿Están en una constante alerta interpretativa para no incurrir en forma
expresa o implícita en el uso de estereotipos?
La segunda se refiere a su deber de revisión de los “argumentos” ale-
gadas por el Estado en el caso de la Corte IDH o el razonamiento del tri-
bunal inferior en el caso de la Corte Suprema.49 Alexandra Timmer iden-

de un proyecto de derecho de la anti-discriminación en America Latina. Estudios Constitucio-


nales, Centro de Estudios Constitucionales de Chile, v. 12, n. 2, 2014, p. 315-322.
47. Es una obligación estatal. La Convención sobre la eliminación de todas las formas de discri-
minación contra la mujer (CEDAW), establece en su artículo 5 que “los Estados Partes toma-
rán todas las medidas apropiadas para modificar los patrones socioculturales de conducta
de hombres y mujeres, con miras a alcanzar la eliminación de los prejuicios y las prácticas
consuetudinarias y de cualquier otra índole que estén basados en la idea de la inferioridad o
superioridad de cualquiera de los sexos o en funciones estereotipadas de hombres y mujeres”.
48. V. COOK, Rebecca; CUSACK, Simone. Estereotipos de género. Perspectivas legales transnaciona-
les. Bogotá: Profamilia, 2010; ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre de. Mujeres y estereotipos
de género en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Eunomía.
Revista en Cultura de la Legalidad, n. 9, oct. 2015 – mar. 2016, p. 26-48. Sobre análisis de
jurisprudencia desde perspectiva de género, v. EZPELETA, Cecilia; COLAZO, Carmen; CAN-
TORE, Laura. Igualdad, género y constitución: aportes feminista s para la reformulación del
principio de igualdad. Análisis de fallos relevantes desde una perspectiva de género(s). En:
GROSMAN; LEGARRE; RIVERA; ELÍAS (Coord.). Tratado de Derechos Constitucionales. Buenos
Aires: Abeledo Perrot/Thomson Reuters, 2014, p. 958-1031; CLÉRICO, Laura; NOVELLI, Ce-
leste. La inclusión de la cuestión social en la perspectiva de género: notas para re-escribir el
caso “Campo Algodonero” sobre violencia de género. Revista de Ciencias Sociales, Valparaíso,
Chile, 2016, p. 453-487.
49. Esta identificación de estereotipos es lo que hace la Corte IDH en el mencionado caso Atala Ri-
ffo c. Chile. La Corte Suprema chilena y el Juzgado de Menores de Villarrica habían establecido
que la señora Atala había privilegiado sus intereses personales por sobre su papel de madre.
La Corte IDH consideró, por el contrario, que exigirle a Karen Atala que condicionara sus op-
ciones de vida implica utilizar una concepción “tradicional” sobre el rol social de las mujeres

120
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

tifica las siguientes etapas, que pueden ser consideradas parte de una
metodología de trabajo: a) identificar estereotipos, b) enunciar, nombrar
(naming) y desmantelar,50 los estereotipos que atraviesan el caso obje-
to de resolución y, además, c) evaluarlos como formas de discriminación
(contesting) a través de un examen bien estricto de igualdad.
Cuadro 2.
Identificar

Enunaciar, nombrar y desenmascarar

Evaluar intensamente
Fuente: Timmer (2013).

El objetivo de este apartado y los siguientes es poner a prueba la me-


todología reconstruida del texto de Timmer para aplicar en el contexto
interamericano, toda vez que la autora la ensayó para el contexto euro-
peo (TEDH). La Corte IDH es como el TEDH un tribunal regional de dere-
chos humanos que aplica normas que contienen cláusulas de igualdad.
La propia Corte IDH analiza casos en clave de “estereotipos”, con lo que
más allá de la propuesta concreta de Timmer, el abordaje no le es ajeno
en tanto se basa en lo que surge de los informes del CEDAW y de otros
organismos de protección de derechos humanos que están referidos en
la sentencia de la Corte IDH en Campo Algodonero. A su vez, se trata de
poner en diálogo la propuesta de Timmer y, en su caso, enriquecerla con
preguntas que traccionan los casos que utilizamos como ejemplos o los
textos sobre igualdad que permiten lecturas desde la multidimensiona-
lidad51 de los procesos que producen y re-producen los estereotipos en
perjuicio de mujeres, entre otras.

como madres, según la cual se espera socialmente que las mujeres lleven la responsabilidad
principal en la crianza de sus hijos e hijas y que en pos de esto hubiera debido privilegiar la
crianza de las y niñas renunciando a un aspecto esencial de su identidad. Por tanto, bajo esta
motivación del supuesto privilegio de los intereses personales de la señora Atala tampoco
se cumplía con el objetivo de proteger el interés superior de las tres niñas. Este mismo ar-
gumento sería trasladable a cualquier tipo de discriminación contra las mujeres cuando se
las excluye sobre la base de estereotipos en relación con el “rol” de la “mujer” en la sociedad.
50. “Llamar a las cosas por su nombre y mostrar que ciertas formas de nombrar son violentas,
es tarea pendiente para el poder judicial.” DEZA, Soledad. “Brujas”, estereotipos de género y
violencia simbólica. LLNOA2013 (agosto), p. 719.
51. V. CLÉRICO, Laura; NOVELLI, Celeste. La inclusión de la cuestión social en la perspectiva de
género: notas para re-escribir el caso “Campo Algodonero” sobre violencia de género. Revista
de Ciencias Sociales, Valparaíso, Chile, 2016, p. 453-487.

121
Laura Clérico

a) Identificar, enunciar, nombrar.


A los efectos de identificar y enunciar52 estereotipos hay que realizar
una serie de preguntas y reconstrucciones que tomo de Timmer pero
que, a su vez, tienen reflejo en los documentos de la CEDAW. Están anun-
ciadas en las tres preguntas de Cook y Cussack; y reformuladas en un
lenguaje claro y sencillo en el ejercicio que plantea Undurraga (apartado
I de este trabajo).
Así, para identificar, enunciar, nombrar y desenmascarar estereoti-
pos se requiere tener en cuenta los siguientes puntos:
Cuadro 3.
• una “reconstrucción comprensiva del contexto histórico, económico, político, cul-
tural, social;” y trabajar las siguientes preguntas:

• “¿los hechos y el contexto se enmarca en una historia de discriminación de género


o por orientación sexual o identidad o expresión de género?”,

• “¿cuáles son los efectos actuales para las personas concretas, grupos, situaciones,
estados de cosas, relaciones? ¿Cuáles son los procesos, prácticas, instituciones,
estructuras, que generan y alimentan esos estereotipos?”
Fuente: Timmer (2013).

En el caso Campo Algodonero, las mujeres desaparecidas fueron to-


madas en forma estereotipada como jóvenes en situación de coqueteo
con sus novios y que llegarían de regreso a sus casas después de haber-
la pasado bien. A su vez, se presume que las mujeres desaparecidas se
habrían, en todo caso, buscado ese destino porque no respondían a la
imagen petrificada de lo que se espera de una “mujer de bien”, estar en
su casa.

52. Entrevista a la Jueza Karen Atala, CURIA, Dolores. Lesbofobia de Estado. Entrevista con la
Jueza Karen Atala. Diario Pina 12, 16 jun. 2017. Disponible en: <https://www.pagina12.com.
ar/44360-lesbofobia-de-estado>. Acesso en: 11 nov. 2017: “Me acuerdo de que el Ministro
Visitador de mi tribunal (en Argentina sería el equivale a camarista) me llama a su oficina. Y
me dice: la cité porque tengo entendido que su ex marido la acaba de demandar de tuición
porque usted sería lesbiana. Le dijo: Sí, su Señoría, pero es un tema privado. Me contesta: le
quiero pedir que evite hacer todo tipo de escándalo por el prestigio del poder judicial y que en
lo posible entregue sus hijas a su marido para evitar mayores escándalos. Le dije: “me parece
preocupante lo que me dice puesto que usted ministro, esta casa está recién empezando en el
tribunal de primera instancia. Eventualmente, sea una sentencia favorable o no, va a llegar a la
corte. Y usted va a tener que conocerla, intervenir en algún momento y voy a tener que pedir
que se lo inhabilite”. Ahí el ministro tomó el peso de lo que estaba diciendo. Era, claro, una in-
tromisión arbitraria en mi vida privada. Eso demuestra el profundo machismo. En 2003 no se
hablaba ni se conocía de lesbianas allí en la zona. Mi caso sirvió para darles cara y visibilidad
a las lesbianas en Chile. Lo que no se enuncia, no existe.”

122
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

Estos estereotipos son/deben ser leídos en el contexto de una cultu-


ra de discriminación contra las mujeres en México.53 La Corte IDH toma
nota que el Estado, alega que: “uno de los factores estructurales que ha
motivado situaciones de violencia contra las mujeres en Ciudad Juárez
es la modificación de los roles familiares que generó la vida laboral de
las mujeres. (…) los roles tradicionales empezaron a modificarse, al ser
ahora la mujer la proveedora del hogar (...) Esto, según el Estado, llevó
a conflictos al interior de las familias porque la mujer empezó a tener
la imagen de ser más competitiva e independiente económicamente”.54
Continúa que es el propio Estado quien reconoce que estos mecanismos
responden a una “cultura fuertemente arraigada en estereotipos, cuya
piedra angular es el supuesto de la inferioridad de las mujeres” y que
“no se cambia de la noche a la mañana. El cambio de patrones cultura-
les es una tarea difícil para cualquier gobierno.”55 Así todo se explicaría
por el patrón cultural56 dominante del patriarcado.57 Se basa sobre un
informe de la Relatoría de la CIDH que señala que la violencia contra las
mujeres en Ciudad Juárez “tiene sus raíces en conceptos referentes a la
inferioridad y subordinación de las mujeres”58. Un informe del CEDAW
le sirve para comprender que “no se trata de casos aislados, esporádicos
o episódicos de violencia, sino de una situación estructural y de un fe-
nómeno social y cultural enraizado en las costumbres y mentalidades”
y nuevamente que estas situaciones están fundadas “en una cultura de
violencia y discriminación basada en el género”.59 La Corte realiza una

53. Corte IDH, Caso Campo Algodonero, párrafos 128-136.


54. Corte IDH, Caso Campo Algodonero, párr. 129.
55. Corte IDH, Caso Campo Algodonero, párr. 132 con referencia al Informe de México producido
por el CEDAW bajo el Artículo 8 del Protocolo Facultativo de la Convención y respuesta del Go-
bierno de México, CEDAW/C/2005/OP.8/MEXICO, 27 de enero de 2005.
56. V. CLÉRICO, Laura; NOVELLI, Celeste. La inclusión de la cuestión social en la perspectiva de gé-
nero: notas para re-escribir el caso “Campo Algodonero” sobre violencia de género. Revista de
Ciencias Sociales, Valparaíso, Chile, 2016, p. 453-487; asimismo, BÓRQUEZ, Natalia. Hacia Una
Igualdad Transformadora En Las Producciones De La Corte Y De La Comisión Interamericana
De Derechos Humanos. Derechos Sociales, Mujeres Y Maquilas. Revista Electrónica Instituto
de Investigaciones Jurídicas y Sociales Gioja, n. 19, 2017.
57. Corte IDH, Caso Campo Algodonero, v. nota al pie de pina Nro. 3 en este trabajo.
58. Corte IDH, Caso Campo Algodonero, párr. 133. En este párrafo la Corte cita el Informe de la
CIDH sobre la situación de los derechos de la mujer en Ciudad Juárez, México: el derecho a
no ser objeto de violencia y discriminación, OEA/Ser.L/V/II.117 Doc. 1 rev. 1, 7 de marzo de
2003, párr. 128.
59. Ídem. En este párrafo la Corte cita el Informe de México producido por el CEDAW bajo el Ar-
tículo 8 del Protocolo Facultativo de la Convención y respuesta del Gobierno de México, CE-
DAW/C/2005/OP.8/MEXICO, 27 de enero de 2005, párrs. 159 y 261.

123
Laura Clérico

reconstrucción del contexto, enmarca los hechos del caso y el contexto


en una historia de discriminación de género. Le permite ver que los efec-
tos actuales para las personas que son víctimas de violaciones a dere-
chos humanos. En suma, las preguntas del cuadro 3 permiten identificar
estereotipos.
De regreso al caso Sisnero60 sobre discriminación contra las mujeres
en la selección de personal para ocupar puestos de trabajo de colecti-
vera. La Corte Suprema no habla expresamente de estereotipo, es claro
que en la trastienda subyace ese concepto. La Corte salteña reconoce un
contexto discriminatorio61 cuando advierte sobre “síntomas discrimina-
torios en la sociedad”. Estos explicarían “la ausencia de mujeres en un
empleo como el de chofer de colectivos”. Sin embargo la Corte salte-
ña, no tiene por acreditada la discriminación en el caso individual de
Sisnero. Como reconstruimos arriba, la Corte nacional le reprocharía a la
Corte salteña, que no logra vislumbrar que las sinrazones alegadas por
los empresarios para derribar la presunción discriminatoria, que pesa
sobre la práctica de contratación,62 implican estereotipos de género.
Estos estereotipos son causa y consecuencia de “un mercado laboral se-
gregado en perjuicio de las mujeres”, como señala la Procuración.63
Esos estereotipos quedan patentes en los dichos del empresario de
transporte vertidos en una entrevista periodística y agregada al expe-
diente. La entrevista puede reformularse como una alegación de que las
mujeres deben corresponderse con lo que se espera de ellas, deben asi-
milarse al patrón social esperado. Las mujeres aparecerían como parte
del paisaje salteño. A su vez, debe servir los deseos de los otros, para ello

60. ARGETINA. CSJN. Sisnero, Mirtha Graciela y otros c. Tadelva SRL y otros s/ amparo, 20/5/2014.
61. “La situación de la mujer no mejorará mientras las causas subyacentes de la discriminación
contra ella y de su desigualdad no se aborden de manera efectiva. La vida de la mujer y la vida
del hombre deben enfocarse teniendo en cuenta su contexto y deben adoptarse medidas
para transformar realmente las oportunidades, las instituciones y los sistemas de modo que
dejen de basarse en pautas de vida y paradigmas de poder masculinos determinados histó-
ricamente.” Comité CEDAW. Recomendación general No. 25, sobre el párrafo 1 del artículo 4
de la Convención sobre la eliminación de todas las formas de discriminación contra la mujer,
referente a medidas especiales de carácter temporal, 30° período de sesiones, 2004, párr. 10.
Énfasis y cursiva agregadas.
62. ARGENTINA. CSJN. Sisnero, Mirtha Graciela y otros c. Tadelva SRL y otros s/ amparo,
20/5/2014, considerandos 5 y 6.
63. Dictamen de la Procuración, punto IV. V. POU, Francisca. Estereotipos, daño dignitario y patro-
nes sistémicos: la discriminación por edad y género en el mercado laboral. Revista Discusiones
(portal DOXA), 2015, p. 147-188, quien advierte sobre el carácter más completo de la argu-
mentación del dictamen en comparación con el fallo de la Corte.

124
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

su piel debe permanecer tersa para acariciar. A lo sumo, debe aspirar a


ser cocinera, dedicarse a las tareas culinarias (adviértase, trabajo mal
remunerado adjudicado por mandato social a las mujeres), y de ningún
modo a ser colectiveras porque desarrollarían callos en sus manos.64 Las
segrega así de puestos de trabajo mejor remunerados.
Tanto el caso Campo Algodonero como Sisnero permiten ejemplifi-
car la identificación del estereotipo, la referencia al contexto ampliado y
el efecto perjudicial para las mujeres de Ciudad de Juárez, por un lado, y
Sisnero y las mujeres de Salta por el otro lado. La identificación de este-
reotipos aparece como instantáneas recortadas de los procesos sociales,
económicos y culturales que ponen al colectivo mujeres en situación de
subordinación y desigualdad para el acceso al ejercicio de los derechos.

b) Des-enmascarar los estereotipos


Una vez identificado, enunciado y nombrado el estereotipo que per-
judica a la persona o colectivo afectado, este queda inhibido de ser uti-
lizado como razón para justificar el incumplimiento de una obligación
estatal como en los casos de violencia de género en Ciudad de Juárez o,
en el orden interno, de obligaciones de empresas privadas prestatarias
del servicio público de transporte de personas como en el caso Sisnero
(que no olvidemos deben estar bajo el contralor del Estado). Además, el
artículo 5(a) de la CEDAW y en los artículos 6(b) y 8(b) de la Convención
Belem do Para, establece la obligación estatal de erradicar los estereoti-
pos de género, mal puede entonces ser usado como “razón” para justifi-
car un trato en desmedro de la persona afectada.
En Campo Algodonero los estereotipos sobre las mujeres desapare-
cidas se refirieron a “mujer volada”, “mujer deshonesta”, “mujer no cas-
ta”. Estos inhibieron injustificadamente a los agentes policiales de actuar
en forma inmediata para la búsqueda de las víctimas. Implican violacio-
nes claras a los derechos de las mujeres. Estas imágenes estereotipadas
no pueden ser utilizadas por el Estado para justificar el incumplimiento
de su obligación de prevención, protección e investigación eficaz en el
caso. En forma más reciente la Corte IDH señaló en otro caso sobre vio-
lencia de género que:
[…] la influencia de patrones socioculturales discriminatorios puede
dar como resultado una descalificación de la credibilidad de la víctima

64. ARGENTINA. CSJN. Sisnero, Mirtha Graciela y otros c. Tadelva SRL y otros s/ amparo,
20/5/2014, consid. 6.

125
Laura Clérico

durante el proceso penal en casos de violencia y una asunción tácita


de responsabilidad de ella por los hechos, ya sea por su forma de ves-
tir, por su ocupación laboral, conducta sexual, relación o parentesco
con el agresor, lo cual se traduce en inacción por parte de los fiscales,
policías y jueces ante denuncias de hechos violentos. Esta influencia
también puede afectar en forma negativa la investigación de los casos
y la valoración de la prueba subsiguiente, que puede verse marca-
da por nociones estereotipadas sobre cuál debe ser el comportamien-
to de las mujeres en sus relaciones interpersonales. Es así que según
determinadas pautas internacionales en materia de violencia contra
la mujer y violencia sexual, las pruebas relativas a los antecedentes
sexuales de la víctima son en principio inadmisibles, por lo que la
apertura de líneas de investigación sobre el comportamiento social
o sexual previo de las víctimas en casos de violencia de género no es
más que la manifestación de políticas o actitudes basadas en estereo-
tipos de género.65.
Identificar el estereotipo le permitió desenmascarar las referencias
a crímenes “pasionales” como suelen ser caracterizados la violencia de
género: “el concepto de crimen pasional es parte de un estereotipo que
justifica la violencia contra la mujer. El calificativo ‘pasional’ pone el
acento en justificar la conducta del agresor”. Por ejemplo, “‘la mató por
celos’, ‘en un ataque de furia’, son expresiones que promueven la conde-
na a la mujer que sufrió violencia. Se culpabiliza a la víctima y se respal-
da la acción violenta del agresor”66. En este sentido, el Tribunal “rechaza
toda práctica estatal mediante la cual se justifica la violencia contra la
mujer y se le culpabiliza de ésta, toda vez que valoraciones de esta natu-
raleza muestran un criterio discrecional y discriminatorio con base en
el comportamiento de la víctima por el solo hecho de ser mujer. Conse-
cuentemente, considera que estos estereotipos de género son incompa-
tibles con el derecho internacional de los derechos humanos y se deben
tomar medidas para erradicarlos donde se presenten.”67 Así, concluye
que a “este respecto cabe insistir en general en la necesidad de descali-
ficar la práctica de devaluación de la víctima en función de cualquier es-
tereotipo negativo, idónea para culpabilizar a una víctima, y neutralizar
la desvaloración de eventuales responsables.” En suma, los estereotipos
no pueden ser utilizados como exculpatorios de la responsabilidad de

65. Corte IDH, caso Gutierrez Hernández vs. Guatemala, párr. 170; cfr. Caso Véliz Franco y otros vs.
Guatemala, párr. 209.
66. Corte IDH, caso Gutiérrez Hernández vs. Guatemala, cursiva agregada; v. Caso Velásquez Paiz y
otros vs. Guatemala, párr. 187.
67. Corte IDH, caso Gutiérrez Hernández vs. Guatemala, párr. 171.

126
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

los perpetradores y a la postre para alivianar el deber de investigación68


estatal adecuada y eficaz.69
En especial, resulta importante para poner la práctica en contex-
to, que el propio tribunal tenga en cuenta casos similares resueltos que
reconocen un mismo patrón de estereotipos: “Por otra parte, la Corte
advierte que las prácticas seguidas por los funcionarios a cargo de la
investigación de la desaparición de Mayra Gutiérrez no son un hecho
aislado, pues ha sido detectada reiteradamente por este Tribunal en los
casos Veliz Franco y otros, y Velásquez Paiz y otros, contra Guatemala, la
tendencia de los investigadores a desacreditar a las víctimas y culpabili-
zarlas por su estilo de vida, o ropa, así como a indagar aspectos relativos
a las relaciones personales y sexualidad de las víctimas para concluir
que esas personas fueron responsables de lo que les pasó, y la existen-
cia de estereotipos y prejuicios de género con influencia negativa en la
investigación, en la medida en que trasladaron la culpa de lo acontecido
a la víctima y a sus familiares, cerrando otras líneas posibles de investi-
gación sobre las circunstancias del caso e identificación de los autores70.”
Esto ayuda al tribunal para develar que en el caso particular bajo estu-
dio, el de Mayra Gutiérrez, “se observa la utilización de un estereotipo
para culpabilizar a la víctima de lo sucedido, excluyendo las demás hipó-
tesis y desechando cualquier otra línea de investigación, como aquella
relacionada con los trabajos realizados por la presunta víctima sobre la
adopción y tráfico de niñas y niños en Guatemala y la denuncia sobre su
presunta desaparición forzada.”71
Por su parte, la Corte Suprema en Sisnero concluye, reiteramos,
que las “dogmáticas explicaciones esbozadas por las empresas resultan

68. Corte IDH, caso Gutiérrez Hernández vs. Guatemala: “En consecuencia, tal y como lo ha hecho
anteriormente, este Tribunal considera que las referidas omisiones investigativas relaciona-
das con la falta de seguimiento de líneas lógicas de investigación, fueron una consecuencia
directa de una práctica común de las autoridades encargadas de la investigación, orientadas
hacia una valoración estereotipada de la víctima, lo que aunado a la ausencia de controles
administrativos y/o jurisdiccionales que posibilitaran la verificación de las investigaciones
en este tipo de casos, así como la rectificación de las irregularidades presentadas, afectó la
objetividad de dichas autoridades, denegándose, además, el derecho al acceso a la justicia de
la señora Mayra Gutiérrez y sus familiares.” Cursiva agregada.
69. Corte IDH, caso Gutiérrez Hernández vs. Guatemala, párrs. 174-176.
70. Corte IDH, caso Gutierrez Hernández vs. Guatemala; asimismo, Caso Veliz Franco y otros vs.
Guatemala, párrs. 90, 210 a 212, y Caso Velásquez Paiz y otros vs. Guatemala, párrs. 49, 210-
212.
71. Corte IDH, Caso Gutierrez Hernández vs. Guatemala.

127
Laura Clérico

inadmisibles para destruir la presunción de que las demandadas han


incurrido en conductas y prácticas discriminatorias contra las mujeres
en general y contra Sisnero, en particular”. Es que este tipo de defen-
sas -que, en definitiva, se limitan a negar la intención discriminatoria-
no pueden ser calificados como un motivo objetivo y razonable”. 72 En
este sentido, tampoco es atendible el uso del estereotipo de las mujeres
como acariciadoras natas o cocineras para excusarse de contratar a mu-
jeres para desempeñarse como colectiveras.

c) Evaluarlos como forma de discriminación y excluirlos como


argumentos
Si en el primer paso se identificaron, nombraron, enunciaron y
des-enmascararon estereotipos de género que generan perjuicio, enton-
ces se aplica una presunción en contra de la justificación de la acción u
omisión estatal, esto es:
Cuadro 4.
• la carga de la argumentación recae en cabeza del Estado,

• la carga de la justificación agravada (razones de mucho peso), consideraciones


excluidas, no se pueden basar en el uso de estereotipos,

• ningún margen de apreciación para el Estado,

• si al final de la argumentación persisten dudas, la medida estatal queda como


injustificada.
Fuente: reconstrucción jurisprudencial sobre casos de igualdad.

Al respecto, resulta ilustrativo el caso de la Corte IDH Atala Riffo c.


Chile sobre discriminación por orientación sexual y género en el caso
de una mujer divorciada que le revocan la tuición de sus tres niñas por
haber iniciado la mujer una relación con otra mujer. La Corte IDH resalta
que algunos actos discriminatorios analizados “se relacionaron con la
reproducción de estereotipos que están asociados a la discriminación
estructural e histórica que han sufrido las minorías sexuales, particu-
larmente en cuestiones relacionadas con el acceso a la justicia y la apli-
cación del derecho interno.”73 Lo primero que hace la sentencia es des-
articular esos estereotipos en la argumentación de las decisiones que
se tomaron en el orden interno. Al respecto, surge, de la reconstrucción

72. ARGENTINA. CSJN, Sisnero, consid. 6.


73. Corte IDH, caso Atala, párr. 267 y 92.

128
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

del fallo de la Corte IDH, la siguiente regla: cuando una clasificación está
prohibida, significa que el Estado que quiera excluir a alguna persona de
lo que le otorga a otra debe basar ese trato diferenciado en razones de
peso que nada tengan que ver con la orientación sexual de las personas.
Dos fueron los actos estatales que fueron analizados para evaluar si es-
tos resultaron discriminatorios: i) la sentencia que resolvió el recurso de
queja, y ii) la decisión de tuición provisional. Para analizar si existió un
“vínculo o nexo causal o decisivo entre la orientación sexual de la señora
Atala y las decisiones de la Corte Suprema de Justicia de Chile y del Juz-
gado de Menores de Villarrica”.
Entonces, un trato diferenciado en desmedro de los derechos de una
persona LGBTI nunca podría ser justificado por la orientación sexual,
sería una suerte de razón excluida de la argumentación. Esta condición
social no puede ser tenida en cuenta como elemento para decidir sobre
una tuición o custodia en aras del interés superior de las niñas. Por ello,
el trato diferenciado debería basarse en razones independientes de la
orientación sexual de las personas, de lo contrario se incurre en discri-
minación. Y, “es el Estado el que tiene la carga de la prueba para mostrar
que la decisión judicial objeto del debate se ha basado en la existencia
de un daño concreto, específico y real en el desarrollo de las niñas.”74
Este estándar es mucho más exigente que el del mero daño especulativo
esgrimido por las sentencias en los procesos de tuición. En el caso, el
tribunal interno se limitó a hacer referencia, respecto al supuesto daño,
a la “eventual confusión de roles sexuales” y la “situación de riesgo para
el desarrollo” de las niñas75. Para aprobar con éxito el estándar del daño
concreto, específico y real, es necesario que en las decisiones judiciales
sobre temas de tuición se definan de manera específica y concreta los
elementos de conexidad y causalidad entre la conducta de la madre
o el padre y el supuesto impacto en el desarrollo del niño o la niña.
Esta relación de conexidad no queda demostrada si, el Estado alega:
a) la pre-concepción, no sustentada, de que los niños criados por parejas
homosexuales necesariamente tendrían dificultades para definir roles
de género o sexuales,76 b) la presunta discriminación social que habrían

74. Párr. 124, cfr. 131.


75. Párr. 129, con cita de la sentencia de la Corte Suprema de Justicia de Chile de 31 de mayo de
2004.
76. Sentencia de la Corte Suprema de Justicia de Chile de 31 de mayo de 2004 (expediente de
anexos a la demanda, tomo V, folio 2672). Corte IDH, párrafos 123; 131; 127; 130.

129
Laura Clérico

sufrido las tres niñas por la orientación sexual de la señora Atala77 (antes
bien, es el Estado el obligado a que los niños y niñas no sean discrimi-
nados en las escuelas), c) la supuesta prevalencia que la señora Atala le
habría dado a su vida personal sobre los intereses de sus tres hijas toda
vez que esto está basado en un estereotipo de género que supone que
una “buena mujer” pospone cualquier cosa por la crianza de sus niñas
suponiendo a su vez que una madre lesbiana es una mala madre,78 y d)
el derecho de las niñas a vivir en el seno de una familia con un padre y
una madre79 (“modelo tradicional”), cuando la Corte IDH tiene jurispru-
dencia que reitera que la Convención protege una pluralidad de familias
y no solo la que responde a la tradicional. En suma, detrás de todas las
razones alegadas por el Estado, subyace algún estereotipo que se refie-
ren a la orientación sexual de las personas, al género o a la concepción
tradicional de la familia.
En general la Corte IDH en el caso Atala realiza un examen de igual-
dad en una versión de escrutinio bien estricto. Por lo demás, sobre el
final de la sentencia la Corte IDH amplia la mirada incluyendo el contexto
en el que se produce la (des)igualdad. Así relaciona la reproducción de
estereotipos con:
[…] la discriminación estructural e histórica que han sufrido las mi-
norías sexuales”. Por ello, concluye que “algunas de las reparaciones
deben tener una vocación transformadora de dicha situación, de tal
forma que las mismas tengan un efecto no solo restitutivo sino tam-
bién correctivo80 hacia cambios estructurales que desarticulen aque-
llos estereotipos y prácticas que perpetúan la discriminación contra la
población LGTBI.81
Esta argumentación se puede reconstruir en clave de identificación
de estereotipos, consideración del contexto para ubicar el carácter es-
tructural del perjuicio contra el colectivo LGBTTI, descalificación de los
argumentos que se basan en estereotipos, aplicación de un examen in-
tensivo de igualdad.82 Menos explorada está en la sentencia la multidi-
mensionalidad de la desigualdad. La sentencia ve correctamente que el

77. Sentencia de la Corte Suprema de Justicia de Chile de 31 de mayo de 2004.


78. Sentencia de la Corte Suprema de Justicia de Chile de 31 de mayo de 2004.
79. Sentencia de la Corte Suprema de Justicia de Chile de 31 de mayo de 2004.
80. En similar sentido, cfr. Caso González y otras (“Campo Algodonero”), párr. 450.
81. Caso Atala, párr. 267.
82. CLÉRICO, Laura. Hacia un análisis integral de estereotipos: desafiando la garantía estándar de
imparcialidad. Revista Derecho del Estado, v. 41, 2018, p. 67-96.

130
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

modelo dominante desde el que se concibe la orientación sexual, genera


identidades menospreciadas.83 Este fue el motor para quitarle la tuición
a Atala. Sin embargo, esta es solo una cara de la moneda. Las subjetivida-
des no respetadas tienen mayores obstáculos para acceder al mundo del
trabajo formal y remunerado. El caso claro es el de las personas trans.84
Es también el caso de muchas mujeres. Incluso, aquellas que tienen ac-
ceso a cargos de jueza, como la jueza Atala, pueden sufrir la iniciación de
procesos disciplinarios o similares. 85 La Corte IDH considera que el pro-

83. Se trata de una concepción de igualdad como reconocimiento. En otro lugar explicamos que
la idea de igualdad como reconocimiento busca resolver el problema de la formación de la
subjetividad apuntando a los déficits que, en términos de acceso a los recursos simbólicos,
fracturan a la sociedad en subjetividades dominantes y dominadas. Desde esta perspectiva,
la naturalización del estado de cosas vigentes y la obturación de los intereses de aquellos que
no pertenecen a los grupos dominantes se traduce en la legitimación de las desigualdades
de status dentro de la sociedad y el aumento de la brecha entre unos y otros. Lo que define a
esta perspectiva es su creencia en que es la transformación de los patrones de representación
cultural lo que permitiría resolver las injusticias sociales. En este sentido proponen la revalua-
ción de subjetividades no respetadas, en nuestro caso, la de los colectivos LGBTTI; CLÉRICO,
Laura; ALDAO, Martín. Nuevas miradas de la igualdad en la jurisprudencia de la Corte Inte-
ramericana de Derechos Humanos: la igualdad como redistribución y como reconocimiento.
Revista Estudios Constitucionales, Facultad de Derecho/Universidad de Talca, Santiago/Chile,
julio 2011. Disponible en: <http://www.scielo.cl/pdf/estconst/v9n1/art06.pdf>. Acceso en:
19 set. 2019; FRASER, Nancy: Iustitia Interrupta. Bogotá: Siglo de Hombres Editores/Univer-
sidad de los Andes, 1997.
FRASER, Nancy. Escalas de Justicia. Barcelona: Herder, 2008.
84. CIDH. Informe sobre la Violencia contra personas LGBTI, 2015, “la violencia generalizada, los
prejuicios y la discriminación en la sociedad en general y dentro de la familia, obstaculizan las
posibilidades de que personas trans tengan acceso a educación, servicios de salud, vivienda
y al mercado laboral formal”. La violencia, discriminación y estigmatización que las personas
trans sufren las inserta en un ciclo de exclusión que tiende a culminar en la pobreza, en fun-
ción de la falta de acceso a servicios básicos, oportunidades educativas y laborales y presta-
ciones sociales. Este ciclo de exclusión comienza generalmente desde muy temprana edad,
debido al rechazo y violencia sufrida por niñas/os y adolescentes trans y de género diverso en
sus hogares, comunidades y centros educativos. Esta situación tiende a impedir que este gru-
po acceda y complete los diferentes niveles educativos, lo cual impacta negativamente sobre
su calidad de vida.” A su vez, en forma más específica la Relatora Especial de Derechos Eco-
nómicos, Sociales, Culturales y Ambientales (REDESCA) de la CIDH, Soledad García Muñoz,
instó a que: “Las políticas de reconocimiento que avanzan en la región, referidas por ejemplo
a leyes de no discriminación, identidad de género, unión civil o matrimonio igualitario, de-
ben suponer también avances en el acceso a los derechos a la educación, la salud, el trabajo,
entre otras, tanto de las personas LGBTI como de sus familiares, sin discriminación. Desde la
perspectiva de indivisibilidad de derechos, el progreso en derechos civiles debe expresarse en
avances en el acceso a los DESCA”. V. CIDH. Comunicado de Prensa. En el Día Internacional de
la Memoria Trans, la CIDH urge a los Estados a garantizar el pleno acceso de las personas trans
a sus derechos económicos, sociales, y culturales, 20 nov. 2017. Disponible en: <http://www.
oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2017/185.asp>. Acceso en: 21 nov. 2017.
85. Entrevista a la Jueza Karen Atala: CURIA, Dolores. Lesbofobia de Estado. Entrevista con la
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131
Laura Clérico

cedimiento administrativo se inició por la orientación sexual de Atala


y es tachado por parcial. Esta faz de la sentencia habla de que las iden-
tidades desaventajadas sufren perjuicios en el acceso, permanencia y
promoción en sus profesiones, acceso al mundo del trabajo, entre otras.
Habilitaría entonces poner de relieve que el problema está también en
la estructura institucional y socio-económica que genera desigualdad86 y
que pone a las mujeres de ser pasibles de ser sancionadas en su trabajo
por su género y orientación sexual.87

ar/44360-lesbofobia-de-estado>. Acesso en: 11 nov. 2017: “Las mujeres lesbianas cargamos


con los prejuicios machistas. Ya de partida nos cuesta posicionarnos en nuestros espacios de
trabajo, nos cuesta la equidad de sueldos para las mismas tareas. Súmale además a esa mochila
el hecho de que eres lesbiana. Es muy poco visible el lesbianismo en los espacios públicos.”
Cursiva agregada.
86. CLÉRICO, Laura; ALDAO, Martín. La Igualdad como Redistribución y como Reconocimien-
to: Derechos de los Pueblos Indígenas y Corte Interamericana de Derechos Humanos. Re-
vista Estudios Constitucionales, Universidad de Talca, año 9, n. 1, 2011, p. 167: “La idea
de igualdad como redistribución (…) apunta a los déficits que en, términos de acceso a
recursos materiales, fracturan a la sociedad en propietarios, asalariados y desposeídos.
Desde esta perspectiva, la naturalización del estado de cosas vigentes y la obturación de
los intereses de aquellos que no pertenecen a los grupos dominantes se traduce en legi-
timación de las desigualdades en términos de acceso a recursos materiales y aumento de
la brecha entre ricos y pobres. De este modo se produce un círculo vicioso en el cual las
desigualdades de propiedad no pueden ser alteradas por el principio de igualdad formal,
reforzando las dificultades de acceso de trabajadores y desposeídos a las instancias de
participación política, que son a su vez las únicas que podrían modificar esta estrecha
comprensión de la igualdad. Lo que define a esta particular perspectiva de la justicia so-
cial es su creencia en que la transformación de las relaciones de producción constituye el
remedio fundamental para la solución de las desigualdades. En este sentido proponen la
redistribución del ingreso o la riqueza, la redistribución de la división del trabajo y la rees-
tructuración de la propiedad privada y de la empresa entre otros. A su vez, identifican en
la clase desposeída de recursos al principal grupo afectado; y a la eliminación de las dife-
rencias materiales como la solución a la desigualdad, a lo que se suma el cuestionamiento,
en sus versiones más radicales, de los criterios que se utilizan para definir el acceso a la
producción.” Disponible en: http://www.cecoch.cl/docs/pdf/revista_9_1_2011/08.%20
LA%20IGUALDAD_CLERICO_ALDAO.pdf.
87. La Com. IDH advierte la estrecha relación entre la violencia de género y la falta de acceso
a los derechos sociales, económicos y culturales. Sostiene que “Aunque la pobreza afecta a
todas las personas, su impacto es diferente para las mujeres, dada su situación de discrimina-
ción social y la existencia de cargas adicionales, tales como las funciones familiares, lo cual
limita sus posibilidades de acceder a los recursos económicos necesarios para su subsistencia,
y la de sus familias. Asimismo, las desigualdades y limitaciones en el acceso y control de recur-
sos económicos por parte de las mujeres contribuye a su baja participación en esferas vitales
para sus derechos humanos.” CIDH. El trabajo, la educación y los recursos de las mujeres:
la ruta hacia la igualdad en la garantía de los derechos económicos, sociales y culturales,
OEA/Ser.L/V/II.143 Doc. 59, 3 de noviembre de 2011, párr. 25. Por el otro lado, en forma
más reciente en el Informe de la Comisión sobre “Mujeres Indígenas Desaparecidas y Ase-
sinadas en Columbia Británica, Canadá” (2014), sostiene: “Las autoridades canadienses y
las organizaciones de la sociedad civil coinciden en gran medida sobre las causas de esta

132
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

Por su parte, la Corte Suprema argentina en el caso Sisnero, no


llega a implementar un examen de igualdad. Faltaban elementos por-
que a primera vista surgía que el empresariado sustentaba la exclu-
sión de mujeres para la selección de choferes de colectivos, en meras
afirmaciones dogmáticas. Recordemos que incluso utilizó estereotipos
de género en aras de explicar su práctica segregativa de contratación.
Estos estereotipos fueron descalificados desde el principio como posi-
ble argumentos para justificar los motivos objetivos y razonables que
la Corte exigía para dar la práctica de contratación como no-discrimi-
natoria. Sisnero abona una línea jurisprudencial de la Corte sobre dis-
criminación por género en el mundo del trabajo formal y remunerado.
La Corte aplica el estándar de la carga de la prueba dinámica. En estos
casos es difícil demostrar en forma acabada la discriminación para el
colectivo afectado, por ello sostiene: “Para la parte que invoca un acto
discriminatorio, es suficiente con la acreditación de los hechos que,
prima facie evaluados, resulten idóneos para inducir su existencia”.
En el caso estaba acreditada prima facie a través de las listas de con-
tratación que arrojaban como resultado choferes solo varones, inclu-
so luego de que Sisnero hubiese aspirado al puesto, por entrevistas
agregadas al expediente basadas en estereotipos de género y por un
clima concordante de discriminación social como parte del contexto.
Entonces, el estándar establece, que acreditada prima facie la discrimi-
nación, “corresponderá al demandado, a quien se reprocha la comisión
del trato impugnado, la prueba de que éste tuvo como causa un motivo
objetivo y razonable ajeno a toda discriminación, y si el reclamante
puede acreditar la existencia de hechos de los que pueda presumirse
su carácter discriminatorio, corresponderá al demandado la prueba de
su inexistencia.” Por ello, revocó la decisión de la Corte de Salta que

situación, que se relacionan con una historia de discriminación que se inicia con la coloni-
zación. Como consecuencia de esta discriminación histórica, la CIDH observa que las niñas y
mujeres indígenas constituyen uno de los grupos más desventajados en Canadá. La pobreza,
la vivienda inadecuada, y la relegación económica y social, entre otros factores, contribuyen
a su mayor vulnerabilidad a la violencia. Adicionalmente, las actitudes prevalentes de dis-
criminación –principalmente relacionadas con el género y la raza- y los estereotipos arrai-
gados a los que se han visto sujetas, exacerban su vulnerabilidad. La ausencia de debida
diligencia en casos de violencia contra las mujeres indígenas es especialmente grave, pues
afecta no solamente a las víctimas, sino también a sus familias y a las comunidades a las
que pertenecen. La CIDH subraya que abordar la violencia contra las mujeres indígenas no
es suficiente a menos que los factores subyacentes de la discriminación racial y de género
que originan y exacerban la violencia sean abordados de forma abarcativa.” CIDH. Mujeres
Indígenas Desaparecidas y Asesinadas en Columbia Británica, Canadá, OEA/Ser.L/V/II. Doc.
30/14, 21/12/2014. Cursiva agregada.

133
Laura Clérico

había revocado, a su vez, la sentencia que había admitido el amparo


individual y ordenado el cese de la discriminación por razones de gé-
nero. La Corte Suprema sostuvo que la Corte de Salta no había valorado
adecuadamente la prueba obrante en el expediente que acreditaba la
discriminación. Asimismo, le recriminó no haber aplicado los criterios
de la Corte Suprema en materia de cargas probatorias. Por ello con-
cluyó, insistimos, que “las dogmáticas explicaciones esbozadas por las
empresas resultan inadmisibles para destruir la presunción de que las
demandadas han incurrido en conductas y prácticas discriminatorias
contra las mujeres en general y contra la actora en particular.” Esta
línea jurisprudencia tiene proyecciones que exceden el caso concreto.
La carga dinámica de la prueba está también pensada para evitar el
efecto disuasivo frente a otros posibles casos de discriminación por
género. Si la carga es muy dificultosa para el colectivo discriminado
afectado,88 esto disuadirá a otras de atacar prácticas sistemáticas de
discriminación.
Por último, respecto de las razones que debe alegar el demanda-
do, se identifica aquí un punto divergente entre el dictamen de la Pro-
curación y la sentencia de la Corte Suprema. A esta última le alcanza
con que el demandado demuestre un motivo objetivo y razonable. En
cambio, en el dictamen de la Procuración se exige un mayor peso de las
razones. Considera que la discriminación contra las mujeres en el caso
del acceso a la profesión de colectiveras es sospechosa,89 que exige un
escrutinio más intensivo. A su vez, el uso de estereotipos de género
perjudiciales para el colectivo afectado justifica ese tipo de análisis. En
cambio, la Corte Suprema parece pronunciarse por un examen inter-
medio en Sisnero.

88. ARGENTINA. CSJN. Sisnero, Mirtha Graciela y otros c. Tadelva SRL y otros s/ amparo,
20/5/2014, consid. 5): “… la discriminación no suele manifestarse de forma abierta y clara-
mente identificable; de allí que su prueba con frecuencia resulte compleja. Lo más habitual es
que la discriminación sea una acción más presunta que patente, y difícil de demostrar ya que
normalmente el motivo subyacente a la diferencia de trato está en la mente de su autor, y “la
información y los archivos que podrían servir de elementos de prueba están, la mayor parte
de las veces, en manos de la persona a la que se dirige el reproche de discriminación”, con cita
de Pellicori, Fallos: 334:1387, considerando 7°.
89. Sobre categorías sospechosas ver GULLCO, Hernán. El uso de las Categorías Sospechosas en
el derecho argentino. En: ALEGRE, Marcelo; GARGARELLA, Roberto (Comps.). El Derecho a
la igualdad. Buenos Aires: LexisNexis, 2007; TREACY, Guillermo. Categorías sospechosas y
control de constitucionalidad. Revista Lecciones y Ensayos, Facultad de Derecho, Universidad
de Buenos Aires, n. 89, 2011.

134
Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

5. CONSIDERACIONES FINALES
Los pasos propuestos por Timmer se perfilan como una metodolo-
gía para trabajar los estereotipos. Después de todo no es del todo extra-
ña, empalma en un tramo con el examen de igualdad y con la determi-
nación de la intensidad de los escrutinios con los que hay que evaluar
las razones que sostienen la clasificación y que no se pueden basar en
estereotipos. Es probable que la metodología requiera mejoras. No lo
dudo. El objetivo de este trabajo era ponerla a prueba en su potencial
reconstructivo de una jurisprudencia que usa análisis de estereotipos
pero que no explicita una metodología. Esperemos que esta metodolo-
gía logre deliberaciones “suficientemente buenas” para provocar “re-
formas sociales que, aunque modestas, si fueran institucionalizadas,
asegurarían que el siguiente turno de deliberaciones pudiera acercarse
más a esa paridad participativa,90 mejorando así en claridad”.91 Sin lugar
a dudas, Sisnero y el colectivo mujeres de Salta tendrán que seguir ac-
tuando para que la implementación de la sentencia sea eficaz.92 A pesar
de que la Corte IDH condenó a Chile por violación a la prohibición de
discriminación por orientación sexual en el caso Atala, Karen Atala no
recuperó en los hechos y en forma inmediata la tuición de sus niñas.93
Sin embargo, estas sentencias “hacen camino al andar” y nos posicio-
nan con mejores herramientas para seguir demoliendo estereotipos de
género, orientación sexual e identidad de género, entre otros. Para las
víctimas la sola sentencia en la que se reconocen los estereotipos y la
discriminación tiene efectos reparadores. La Jueza Atala lo pone en las
siguientes palabras, “el fallo dignificó a las madres lesbianas y padres
gay. Nos reconoce como familia. Es la primera vez que en Chile te dicen
que la familia es diversa.” “Incluso, sirve como recurso para la solución

90. Según Nancy Fraser, para que la paridad participativa pueda darse tienen que cumplirse
dos condiciones: una condición objetiva y otra intersubjetiva. De acuerdo con la condición
objetiva, la “distribución de recursos materiales debe hacerse de manera que garantice la
independencia y la “voz” de todos los participantes”. De acuerdo con la condición intersub-
jetiva, “los patrones institucionalizados de valor cultural expresen el mismo respeto a todos
los participantes y garanticen la igualdad de oportunidades para conseguir la estima social”.
FRASER, Nancy. Iustitia Interrupta. Bogotá: Siglo de Hombres Editores/Universidad de los
Andes, 1997.
91. FRASER, Nancy. Escalas de Justicia. Barcelona: Herder, 2008, p. 93.
92. V., por ejemplo, ARGENTINA. Corte de Justicia de la Provincia de Salta, Sisnero, Mirtha Gracie-
la; Caliva, Lía Verónica c. Ahynarca S.A., Amparo, 23/11/2015, AR/JUR/51764/2015.
93. CURIA, Dolores. Lesbofobia de Estado. Entrevista con la Jueza Karen Atala. Diario Pina 12,
16 jun. 2017. Disponible en: <https://www.pagina12.com.ar/44360-lesbofobia-de-estado>.
Acesso en: 11 nov. 2017.

135
Laura Clérico

de otros casos en el orden interno: Si lees los fallos a nivel nacional de


mi caso, antes de llegar a la corte interamericana, los argumentos eran
que las niñas en el contexto de una sociedad heterosexual podrían sufrir
discriminación que les podría afectar su desarrollo. Las interpretacio-
nes de la Corte Suprema [de Chile] hoy son muy distintas de lo que eran
en 2004. Se ha internalizado que los Derechos Humanos son parte del
derecho positivo. Se hacen esfuerzos para adecuar nuestra legislación
decimonónica a los paradigmas actuales de DDHH.” Por fin, fue también
inspirador para resolver casos de este lado de la cordillera. “A una mujer
detenida, que tenía un nene lactante, se le deniega arresto domiciliario
diciéndole “tu compañera mujer está con el bebé”, la jueza Atala inter-
preta, le están diciendo “hay dos madres, no hace falta que esté vos”. El
caso no quedó ahí. “La mujer detenida era la que amamantaba al niño”,
por eso la Cámara revocó la denegatoria y acogió su pedido sobre la base
del caso Atala.94 Es urgente el uso cotidiano de la técnica del análisis de
estereotipos, a pesar de que el contexto sea adverso y no parece estar
dispuesto a admitir medidas de acción positiva transformadoras de las
estructuras que generan la desigualdad real.95

94. CURIA, Dolores. Lesbofobia de Estado. Entrevista con la Jueza Karen Atala. Diario Pina 12,
16 jun. 2017. Disponible en: <https://www.pagina12.com.ar/44360-lesbofobia-de-estado>.
Acesso en: 11 nov. 2017.
95. La reforma constitucional argentina de 1994 receptó diagnósticos en varias partes de la
constitución. Por ejemplo, en el inciso 23 del artículo 75 establece que no existe igualdad
real de oportunidades para el pleno goce y ejercicio de los derechos reconocidos por la
Constitución y por los IIDH en particular respecto de los niños, las mujeres, los ancianos y
las personas con discapacidad. Para solucionar esta desigualdad que opera de hecho deter-
mina que el Congreso Nacional debe legislar y promover medidas de acción positiva. Dos
conclusiones intermedias: primero, el carácter abstracto con que suelen ser reconocidos
los derechos (piénsese por caso en el encabezado del art. 14 “todos los habitantes”) es
martillado por la desigualdad de hecho del art. 75 inc. 23 CN. Si bien todos los habitantes
tienen derechos, los colectivos del art. 75 inc. 23 se encuentran en peores condiciones para
gozarlos de forma efectiva. De ahí que hay que revisar todas las dogmáticas de los dere-
chos desde la posición de los colectivos del artículo 75 inc. 23 CN para ver en qué medida
estos desarrollos de los contenidos de los derechos los incluyen o los siguen excluyendo.
Esto no es artificial, algo semejante está haciendo la Com. IDH, por ejemplo, en el Informe
sobre Pueblos indígenas, comunidades afrodescendientes y recursos naturales: Protección
de derechos humanos en el contexto de actividades de extracción, explotación y desarrollo,
2015, en la última parte advierte cómo afecta en especial a defensores y defensoras de de-
rechos humanos, mujeres, niños y niñas, adultos mayores y personas con discapacidad. En
suma, en el orden interno se requieren también dogmáticas críticas que tomen en cuenta
la asimetría que establece el 75 inciso 23. CLÉRICO, L.; ALDAO, M.. Situación de mayor vul-
nerabilidad. El fallo García sobre haberes previsionales y el carácter multidimensional del
art. 75 inc. 23 CN. Luces y sombras. Revista de Derecho del Trabajo. Buenos Aires: Ed. La Ley,
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Cap. 4 • Derecho constitucional y derechos humanos: …

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SABA, R. Más allá de la igualdad formal ante la ley ¿qué les debe el estado a los grupos
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men: breaking grounds, facing challenges. Seminario Moving beyond the good, the
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TEDH, Konstantin Markin vs. Rusia, 22 de marzo de 2012.
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car-injusticias>. Acceso en: 19 set. 2019.
YOUNG, Iris. Responsability for Justice. Oxford: OUP, 2011, p. 69.

140
5
GÉNERO Y DERECHO PÚBLICO LOCAL.
UN ANÁLISIS DE LA SITUACIÓN
EN ARGENTINA1
María de los Ángeles Ramallo2
y Liliana Ronconi3

Sumario: 1. Introducción; 2. El derecho público con perspectiva de género; 3.


El derecho público local con perspectiva de género 4. Análisis de cuestiones
de derecho público local; 5. A modo de cierre; 6. Referencias bibliográficas.

1. INTRODUCCIÓN
La igualdad de género se encuentra ampliamente reconocida y re-
gulada en Argentina. Las normas que protegen la igualdad de las mu-
jeres se encuentran desde hace un tiempo en continua expansión. En
primer lugar, se les otorgó rango constitucional a diversos instrumentos
de derechos humanos en al año 1994, entre ellos la Convención sobre la
Eliminación de toda forma de Discriminación contra la Mujer (CEDAW).

1. Esta publicación es un resumen de los capítulos del libro Género y Derecho público local, coor-
dinado por las autoras (Universidad de Palermo, 2019).
2. Abogada (UBA). Cursó sus estudios de maestría en el Instituto Internacional de Sociología
Jurídica (Oñati). Becaria doctoral del CONICET con lugar de trabajo en el Instituto Ambrosio
L. Gioja. Correo electrónico: mramallo@derecho.uba.ar
3. Abogada (UBA), Profesora para la enseñanza Media y Superior en Ciencias Jurídicas (UBA).
Especialista en Ciencias Sociales con mención en Currículum y Prácticas Escolares (FLAC-
SO) y Doctora en Derecho (UBA). Es Investigadora Adscripta del Instituto de Investigaciones
Jurídicas y Sociales Ambrosio L. Gioja (UBA). Profesora en la Facultad de Derecho de la Uni-
versidad de Buenos Aires y Docente de posgrado en la Universidad de Buenos Aires y en la
Universidad de Palermo. Correo electrónico: lronconi@derecho.uba.ar.

141
María de los Ángeles Ramalloy Liliana Ronconi

Asimismo, el Estado argentino ratificó la Convención Interamericana


para prevenir, sancionar y erradicar la violencia contra la Mujer, “Con-
vención De Belem Do Para”, protección que extiende el amplio sistema
de estándares en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos res-
pecto de las mujeres.4
Además, se incorporaron cláusulas específicas en la Constitución en
su última reforma, como por ejemplo, el art. 37 que garantiza la igual-
dad real de oportunidades entre varones y mujeres para el acceso a cargos
electivos y partidarios mediante acciones positivas en la regulación de los
partidos políticos y en el régimen electoral, y el artículo 75 inc. 23 que
establece la obligación del Congreso de legislar y promover medidas de
acción positiva que garanticen la igualdad real de oportunidades y de tra-
to, y el pleno goce y ejercicio de los derechos reconocidos por esta Constitu-
ción y por los tratados internacionales vigentes sobre derechos humanos,
en particular respecto de las mujeres. Estas normas han tenido el efecto
de generar diversa normativa más o menos protectoria en lo que refiere
a ciertos derechos de las mujeres. Por otra parte, las mujeres han utili-
zado el litigio constitucional para resolver controversias que envuelven
cuestiones de género como la participación política, los derechos sexua-
les y reproductivos, así como otros derechos económicos y sociales, en-
tre otros temas.5
Sin embargo, la desigualdad de las mujeres en el goce y ejercicio de
sus derechos sigue siendo un tema recurrente. Además, pese a las men-
cionadas reformas, el derecho sigue siendo “masculino”, en especial, el
derecho constitucional. Este ha sido creado y aplicado históricamente
por hombres y, si bien se han logrado grandes avances, se requieren más
reformas reales, que logren el ejercicio igualitario de los derechos por
parte de las mujeres.
Entendemos que es necesario ampliar la agenda del movimiento fe-
minista en Argentina desde un enfoque de derecho constitucional local. 6

4. ZUÑIGA AÑAZCO, Y. La construcción de la igualdad de género en el ámbito regional ameri-


cano. En AA.VV, Derechos humanos de los grupos vulnerables, Red de Derechos Humanos en
Educación Superior (RedDHES), 2014, p. 179-210.
5. BAINES, B.; RUBIO-MARIN, R. Introduction: Toward a Feminist Constitucional Agenda. En:
_______. The Gender of Constitutional Jurisprudence. Cambridge: Cambridge University Press,
2004, p. 1-21.
6. Es pertinente aclarar que los resultados que aquí presentaremos estarán enfocados en el lu-
gar de las mujeres en el derecho público local. Sin embargo, no escapa de nuestro conoci-
miento que la cuestión de género abarca también el tratamiento de temáticas de diversidad,

142
Cap. 5 • Género y Derecho público local…

En este artículo buscamos enfocarnos en dos aspectos. En primer


lugar (I), nos interesa poner énfasis en una cuestión quizás no tan nove-
dosa, que es la relevancia que tiene y/o que debería tener el estudio del
derecho público con una perspectiva de género (public law of gender)7.
En segundo lugar (II), pretendemos destacar la relevancia que tiene el
análisis de las normas locales (provinciales) con perspectiva de género,
ámbito que ha sido poco explorado en el derecho público argentino. Pos-
teriormente (III), realizaremos un análisis sobre distintos aspectos nor-
mativos en los que tiene especial importancia el derecho público local
en su cruce con la cuestión de género: a) La participación de mujeres y el
lenguaje b) Las cláusulas de igualdad c) Aborto d) Estereotipos e) Com-
posición de poderes y f) Derechos laborales. Por último, estableceremos
algunas conclusiones.

2. EL DERECHO PÚBLICO CON PERSPECTIVA DE GÉNERO


Muchas académicas feministas se han encargado de demostrar que
el derecho no es neutral: “según la ideología el derecho es masculino y
no femenino”.8 La categoría género no es natural sino histórica y social-
mente construida, basada en las supuestas diferencias entre los sexos
para organizar las relaciones sociales y los roles asignados a hombres y
mujeres. 9Dado que el derecho ha sido históricamente elaborado y apli-
cado por hombres, estos no han sido capaces de incorporar las experien-
cias de las mujeres. Diversas disposiciones legales dan cuenta de este
carácter masculino del derecho. A simple modo de ejemplo, la defini-
ción de la violación asociada a la penetración vaginal es producto de una
mirada masculina del sexo10. Por otro lado, normas que a simple vista

orientación sexual, identidad de género, etcétera. Este punto quedó pendiente en el análisis
realizadoesta el momento.
7. Corresponde aclarar que se adopta, en general, la referencia al “género” como distinción entre
mujeres y hombres. En este sentido, el análisis se centrará en los avances en los derechos de
las mujeres, dejando, para otra instancia, el análisis sobre los derechos de las personas con
orientación sexual o identidad de género distinta a la dominante (colectivos LGBTI) y los es-
tudios en diversidades.
8. OLSEN, F. El sexo del derecho. En: A. Ruíz. Identidad femenina y discurso jurídico. Colección
Identidad, Mujer y Derecho. Buenos Aires: Biblos, 2000, p. 25-42
9. UN. UN Mujeres. Gender Equality Glossary. Disponible en: <https://trainingcentre.unwomen.
org/mod/glossary/view.php?id=36&mode=letter&hook=G&sortkey=&sortorder=>. Acceso
en: 25 set. 2019.
10. MACKINNON, C. Feminismo inmodificado: Discursos sobre la vida y el derecho. Buenos Aires:
Siglo XXI Editores, 2014.

143
María de los Ángeles Ramalloy Liliana Ronconi

aparentan ser neutrales terminan, en la práctica, teniendo un impacto


diferencial cuando en su aplicación se ven involucradas mujeres o varo-
nes. Es en este camino que se requiere un análisis del derecho público
(y del derecho en general) desde una perspectiva de género, esto es que
tome en cuenta y cuestione la asignación de roles por sexo y entienda al
derecho partiendo de la base de que éste tiene género, que ese género es
masculino, y que esto produce una aplicación discriminatoria, cuestión
que, si bien no resulta innovadora,11 requiere ser reforzada a fin de ga-
rantizar igualdad real hacia las mujeres.
Sostiene MacKinnon que la relación de las disposiciones constitu-
cionales que abordan cuestiones de género con la situación de las muje-
res en la cotideaneidad aún no se ha establecido de manera sistemática,
aunque se han realizado intentos prometedores iniciales.12 Así, “para
ser “verdaderamente neutral”, el derecho debe tener en cuenta la actual
subordinación de las mujeres y elaborar normas cuidadosamente dise-
ñadas para rectificar y superar esta injusta desigualdad”.13
El derecho público ha sido entendido como aquel que regula las re-
laciones entre los individuos y el Estado, como asimismo de los diversos
organismos del Estado entre sí. Esta rama del derecho frecuentemen-
te ha sido analizada desde una perspectiva que resaltaba la preponde-
rancia del Estado. Sin embargo, de un tiempo a esta parte, el derecho
constitucional y los derechos humanos ingresaron a marcar la cancha
en el ámbito del derecho público. Esto tiene como correlato el análisis
de las acciones/ omisiones del Estado desde un enfoque de derechos y
no solo desde la preponderancia del Estado frente al individuo. Actual-
mente, esta influencia del derecho público con enfoque de derechos y, en
especial de derechos humanos, se extiende también, o debería hacerlo,
al clásico derecho privado. La distinción público/ privado ha funciona-
do para justificar límites de la intervención constitucional (la familia, el
mercado, la reproducción, las relaciones sexuales) y ha sido histórica-
mente fuente de críticas por parte del feminismo legal.14Esta distinción
quedaría desdibujada y se entiende que el derecho público, en especial

11. En este sentido, si bien resulta escasa en nuestro país ha sido fuertemente desarrollado en
otros ámbitos. Ver BAINES; RUBIO-MARIN, op. cit.
12. MACKINNON, C. Gender in Constitutions. En: ROSENFELD, M.; SAJÓ, A. The Oxford Handbook
of Comparative Constitutional Law. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 366.
13. OLSEN, op. cit., p. 31.
14. MACKINNON, op. cit, p. 372

144
Cap. 5 • Género y Derecho público local…

el derecho constitucional y el derecho internacional de los derechos hu-


manos, regulan las distintas relaciones en la sociedad.
Entendemos que las constituciones regulan sobre el género,15 prin-
cipalmente de dos modos: (i) reconociendo derechos y (ii) establecien-
do una determinada forma de organización del poder. Como menciona-
mos, incluso la normativa constitucional se presenta como neutral, en-
cubriendo, o por lo menos tolerando, situaciones de discriminación ha-
cia las mujeres.16 En muchos casos, estas normas permiten colocar a las
mujeres en una clara situación de desigualdad en el goce de derechos.
Se ha acordado que lograr la igualdad de género requiere no solo de
leyes que, por ejemplo, penalicen la violencia de género o despenalicen
el aborto, otorguen derechos y limiten otros a los fines de reducir la bre-
cha de desigualdad, sino que, además, se requiere romper con las estruc-
turas de dominación en el acceso al poder y los recursos económicos. En
este sentido, una Constitución verdaderamente “feminista” o igualitaria
requiere, al menos17:
• que sea el resultado de un proceso de discusión genuino en el
que exista relativa participación de mujeres y varones, de distin-
tos sectores de la sociedad;
• que incorpore lenguaje inclusivo;
• que no existan privilegios y derechos acordados a hombres y ne-
gados a mujeres;
• que regule cuestiones atinentes a las mujeres más allá de los de-
rechos y en especial en las estructuras de gobierno.
Es necesario remarcar que “la forma en que se incorpore el tema
de género en la “ley fundamental” propiciará el surgimiento de deter-
minadas condiciones jurídicas para su posterior procesamiento en las

15. YOUNG, K. Introducción: A Public Law of Gender? En: RUBENSTEIN, K.; YOUNG, K.. The Public
Law of Gender. From the Local to the Global. Cambridge: Cambridge University Press, 2016, p.
1-42.
16. “Uno de los peligros del silencio es que obliga a las mujeres a depender de provisiones genéri-
cas de igualdad y, al hacerlo, obliga a las mujeres a plantear sus problemas siempre en térmi-
nos comparativos. Debido a que los parámetros de comparación parten de las experiencias de
los hombres, presumiblemente, esta estratégica tiene limitaciones inherentes” (Traducción
libre). BAINES; RUBIO-MARIN, op. cit., p. 10.
17. JACKSON, V. Feminisms and Constitutions. En: K. Rubenstein/ K. Young. The Public Law of
Gender. From the Local to the Global. Cambridge: Cambridge University Press, 2016, p. 43-72,
p. 43.

145
María de los Ángeles Ramalloy Liliana Ronconi

leyes secundarias y reglamentarias, las que, a su turno, configurarán el


escenario operativo, el de la aplicación práctica, de las acciones sociales
en procura de la igualdad efectiva entre hombres y mujeres”.18

3. EL DERECHO PÚBLICO LOCAL CON PERSPECTIVA DE GÉNERO


Argentina es un país cuya organización política es federal, lo que im-
plica la existencia de un gobierno federal y 24 jurisdicciones provincia-
les19–que conservan todo el poder no delegado a la Nación. Entre estos
poderes se encuentra el de dictar sus propias constituciones y normas
que las regulen (conforme art. 5 de la Constitución Nacional).
Coexisten entonces en nuestro país 24 constituciones locales (las de
23 provincias y la de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires), que son la
norma fundamental de cada una de las provincias, pero que, sin embar-
go, deben ajustarse a la normativa federal (bloque de constitucionalidad
federal). Es necesario tener presente que cuando las naciones eligen un
sistema federal, la mayor consecuencia para la situación de las mujeres
se vincula con la forma en la que las provincias regulan muchas áreas
de su vida privada.20De esta distribución territorial del poder de legis-
lar se deriva la importancia de examinar su impacto en las mujeres.21La
desigualdad en la protección de derechos comienza con las diferencias
en los reconocimientos de derechos (promesas legales) que los Estados
provinciales hacen.22 Por ejemplo, dado que el sistema de salud depende
de regulaciones provinciales, son las provincias las que, en última ins-
tancia, terminan realizando la última interpretación y aplicación de las
causales de aborto no punible. También queda librada en las provincias
la regulación de los regímenes de licencias de maternidad/ paternidad
en el empleo público provincial.
Esto conlleva a que la protección para las mujeres sea más compli-
cada, presente dificultades y consuma más tiempo dependiendo de la

18. BOHRT, C. El Enfoque de Género en el Derecho Constitucional Comparado. Santa Cruz de la


Sierra: CEPAL, 2005.
19. Se trata de 23 provincias y la Ciudad Autónoma de Buenos Aires.
20. RUBESTEIN, K. Feminism and Federalism. Gilbert and Tobin Annual Constitutional Law Confe-
rence, 2006.
21. BAINES; RUBIO-MARIN, op. cit., p. 12.
22. SMULOVITZ, C. The Unequal Distribution of Legal Rights: Who Gets What and Where in the
Argentinean Provinces? Paper presentado en Latin America Studies Association. Toronto, Ca-
nadá, 2010.

146
Cap. 5 • Género y Derecho público local…

jurisdicción en la que se encuentren.23 Sostiene Smulovitz que el federa-


lismo determina diferencias en la forma en que los derechos son defini-
dos y efectivizados a lo largo del territorio.24
El análisis del derecho público con perspectiva de género es escaso
si tomamos en cuenta el derecho público local (constituciones provin-
ciales y normas que se dictan en su consecuencia). El estudio del federa-
lismo ha estadoenfocado principalmente en la distribución de recursos
y competencias. Esta falencia tiene un efecto muy fuerte cuando se de-
tecta que, en muchos casos, los tribunales provinciales y/o las autori-
dades locales utilizan como argumentos de sus decisiones, acciones u
omisiones solo, o en forma preponderante, la normativa provincial.25 En
este sentido, debe tenerse presente que en contextos federales, la pro-
tección de derechos varía por las competencias legislativas y judiciales
de las autoridades locales, pero también esas competencias permiten el
trabajo de los actores sociales y políticos en la distribución de las nor-
mas y de los recursos financieros y burocráticos.26
Esta postura no implica adoptar posición alguna sobre el federalis-
mo, que tiene la fortaleza, en este campo, de reconocer las diferentes
experiencias de las mujeres a lo largo del territorio, sino simplemen-
te postular un análisis riguroso de sus implicancias para las mujeres.27
Debe tenerse presente que, en orden a explicar las desigualdades en la
protección de derechos en las provincias, necesitamos observar otros
mecanismos de diferenciación, la extensión y el alcance de las capacida-
des legislativas, de ejecución, policiales y judiciales de las unidades lo-
cales.De esta manera, cuando las competencias federales legislativas ex-
clusivas son bajas y las competencias legislativas provinciales residuales
son altas, las variaciones en el contenido del derecho y en la aplicación

23. RUBESTEIN, op. cit.


24. SMULOVITZ, op. cit.
25. Ver, por ejemplo, las resoluciones provinciales del caso “Castillo, Carina Viviana y otros c/
Provincia de Salta Ministerio de Educación de la Prov. de Salta s/ amparo”, 2017. Asimismo,
las resoluciones provinciales del caso “Sisnero, Mirtha Graciela y otros c/ Taldelva SRL y
otros s/ amparo”, (2014). Por otro lado, las manifestaciones del gobernador Urturbey sobre
la implementación en la provincia del caso F.,A.L sobre aborto (sentencia del 13 de marzo
de 2012,) resuelto por la CSJN (PARA Urtubey, solo un juez autoriza el aborto. El Tribuno, 23
mar. 2012. Disponible en: <https://www.eltribuno.com/salta/nota/2012-3-23-0-46-0-para-
urtubey-solo-un-juez-autoriza-el-aborto>. Acceso en: 17 set. 2019.); y las declaraciones de
muchos/as legisladores en el debate sobre aborto, entre otras cuestiones.
26. SMULOVITZ, op. cit.
27. RUBESTEIN, op. cit.

147
María de los Ángeles Ramalloy Liliana Ronconi

serán más probables.28 En algunos casos, esas protecciones de derechos


serán más robustas que en el ámbito federal, pero esto, no siempre será
verificable.
Dicho esto, es importante destacar que, a pesar del amplio campo de
acción que tienen las provincias en relación con la regulación y la oper-
tatividad de los derechos, éste estará siempre limitado por lo estable-
cido en el conjunto de normas constitucionales y convencionales–“blo-
que de constitucionalidad federal”–. Es así que existe un piso mínimo de
derechos que las provincias deben respetar. Por ello se torna relevante
hacer un análisis de las constituciones y las normativas provinciales a
la luz de la Constitución Nacional y de los tratados internacionales de
derechos humanos, que, como se sostuvo en la introducción, obligan a
adoptar, a su vez, una mirada de género que abogue por la igualdad y
la no discriminación. En este sentido, “no se podría justificar una fuerte
desigualdad en acceso a derechos como consecuencia del lugar de naci-
miento bajo el argumento/escudo federalista”29.

4. ANÁLISIS DE CUESTIONES DE DERECHO PÚBLICO LOCAL


Analizar determinadas cuestiones de derecho público desde una
perspectiva de género, permite mostrar dimensiones en las que la des-
igualdad de género se encuentra institucionalizada.30 Para esto, hemos
realizado un análisis de las normas constitucionales (y en algunos casos
infraconstitucionales) que regulan cada uno de los ejes aquí elegidos.
Presentaremos a continuación los resultados de este estudio.
a) La participación de mujeres y el lenguaje: En primer lugar
analizamos las distintas constituciones provinciales en lo que respecta a
su año de sanción y posteriores reformas, a fin de identificar si las mis-
mas fueron redactadas con participación de mujeres y si son anteriores
o posteriores a la reforma de la Constitución Nacional del año 1994, en-
tre otras cuestiones. Tomando uno de los puntos señalados por Jackson
al describir lo que una verdadera constitución feminista o igualitaria
debería tener, también se realizará una mención a la utilización (o no),

28. SMULOVITZ, op. cit.


29. AZRAK, D. Lo local realmente importa, ¡y mucho! En: RAMALLO, M. A.; RONCONI, L. (Coord.).
Género y derecho público local. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Universidad de Palermo
(en prensa).
30. MACKINNON, op. cit., p. 365.

148
Cap. 5 • Género y Derecho público local…

en las constituciones, de un lenguaje sensible a los géneros (lenguaje


inclusivo)31.
Por la fecha de sanción de la mayoría de estas constituciones, es po-
sible afirmar que muchas de ellas fueron adoptadas sin la participación
ni representación de las mujeres. Para ese entonces, estas no podían ele-
gir a sus representantes como tampoco participar en el proceso cons-
tituyente.32 Aun cuando muchas de ellas fueron reformadas posterior-
mente, y, en muchos casos, cuando ya las mujeres podían votar, la base
de desigualdad para las mujeres continúa. Sostiene MacKinnon que “las
mujeres, en general, no han escrito o discutido las constituciones. Los
hombres poderosos las han escrito hace mucho tiempo atrás como si
las mujeres no existieran (…) expertos que asumieron que el liberalismo
era suficiente para las mujeres (…) más recientemente las mujeres tuvie-
ron alguna voz en los procesos constituyentes pero ni cerca de la mitad
de las influencias. Con excepciones, hombres dominantes han interpre-
tado por años las constituciones y han limitado, de una forma abruman-
te, debates en los que ellos se consideraron voces autorizadas sobre los
términos que ellos mismos establecieron”.33
Por otra parte, la mayoría de las constituciones provinciales fueron
sancionadas con anterioridad a la reforma de la Constitución Nacional
de 1994 (todas con excepción de la de la Ciudad Autónoma de Buenos
Aires que adquirió autonomía con esta reforma). Sin embargo, es im-
portante tener presente también que la mayoría de las constituciones
provinciales, también, fueron reformadas, parcialmente, luego de la re-
forma constitucional (17 de las 23 restantes).
En lo que respecta al lenguaje, el uso del masculino genérico expre-
saría el dominio simbólico de la mujer a través del lenguaje, lo que cons-
tituye una forma de negación de la mujer como sujeto.34En este sentido,

31. Se reconoce que, en verdad, este análisis de un “lenguaje inclusivo” solo se hace en referencia
a dos de los géneros existentes (femenino y masculino).
32. Las provincias de San Juan y Santa Fe iniciaron las primeras experiencias del voto femenino.
En el caso de San Juan la Constitución local reformada en 1927 incorporó la posibilidad de
que las mujeres en San Juan tengan los mismos derechos electorales que los hombres. Sin
embargo, a nivel nacional, es recién en 1947 que se sanciona la Ley 13.010 que establece la
igualdad de derechos políticos entre hombres y mujeres y el sufragio universal en en Argen-
tina.
33. Traducción libre. MACKINNON, op. cit., p. 366.
34. BALAGUER CALLEJÓN, Maria Luisa. Género y Lenguaje. Presupuestos para un lenguaje jurídi-
co igualitario. UNED Revista de Derecho Político, n. 73, p. 71-100, septiembre-diciembre 2008.

149
María de los Ángeles Ramalloy Liliana Ronconi

es interesante observar cómo la mayoría de las constituciones provin-


ciales –al igual que nuestra Constitución Nacional y la mayoría de las
constituciones latinoamericanas– utilizan al masculino para representar
tanto a las mujeres como a los hombres.Otras optan por utilizar palabras
neutras (como “personas”), y las menos hacen referencia tanto al feme-
nino como al masculino (“ciudadanas y ciudadanos”). Esto, por ejemplo,
queda claro cuando se analizan los preámbulos de las constituciones en
los que se refiere a quienes adoptaron el texto fundamental: “Nos, los re-
presentantes del pueblo…”.35La constitución de laProvincia de Tierra del
Fuego, Antártida e Islas del Atlántico Sur sostiene que “El Pueblo de la
Provincia de Tierra del Fuego, Antártida e Islas del Atlántico Sur, a través
de sus representantes”;sin embargo, continúa “reunidos en Convención
Constituyente, declarándose como parte de la Patagonia, y con el objeto
de ratificar su indisoluble integración a la Nación Argentina” haciendo
claro que quienes estaban allí discutiendo eran, en su mayoría, hombres.
Sostienen Castro Rubio y Bodelón González que “como la palabra
nombra en masculino, la presencia simbólica masculina está siempre
garantizada, pero la femenina está siempre oculta, en la generalidad. Sin
embargo, la exclusión histórica y real de las mujeres de esas profesiones,
de esos cargos públicos o del ejercicio de los derechos y deberes jurídi-
cos dificulta que en ese genérico se pueda identificar a una mujer, por-
que tradicionalmente siempre ha sido un hombre”.36La única excepción
se encuentra en la Constitución de la CABA. En este sentido, en la parte
orgánica de la Constitución, los artículos que inician los títulos relativos
al Poder Legislativo y Ejecutivo y los capítulos que describen a la Sindi-
catura General, Procuración General, Auditoría General y Defensoría del
Pueblo contienen un lenguaje inclusivo o sensible al género. Por ejem-
plo, el Artículo 68 indica que “El Poder Legislativo es ejercido por una
Legislatura compuesta por sesenta diputados o diputadas, cuyo número
puede aumentarse en proporción al crecimiento de la población y por
ley aprobada por dos tercios de sus miembros, vigente a partir de los dos
años de su sanción”.37 No obstante, este criterio no se sostiene en el resto

35. En este sentido, por ejemplo, pueden leerse, entre otros, el preámbulo de la Constitución de
Salta, de Tucumán, Córdoba, Buenos Aires. En el caso de la Constitución de la CABA, las muje-
res participaron como convencionales constituyentes (siendo en total un 31% del total de los
convencionales).
36. CASTRO RUBIO, Ana; BODELÓN GONZÁLEZ; Encarna. Lenguaje Jurídico y Género: sobre el se-
xismo en el lenguaje jurídico. Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2012.
37. Desde el punto de vista de la utilización de un lenguaje no sexista esta categoría puede ser cri-
ticada por el uso siempre primero del masculino, seguido del femenino, cuestión que no está

150
Cap. 5 • Género y Derecho público local…

del articulado donde directamente se utiliza al género masculino. Por


ejemplo, el artículo 69 indica que “Los diputados se eligen por el voto
directo no acumulativo conforme al sistema proporcional...”.
Se encuentra presente el lenguaje sensible al género también, cuan-
do se describe la integración del estamento profesional del Consejo de la
Magistratura (art. 115, inc. 3) o al iniciar el capítulo sobre la justicia por-
teña (art. 118). Sobre este último punto es interesante identificar cómo
se utiliza el término “juezas” para la justicia ordinaria pero se omite al
momento de describir la integración del Tribunal Superior de Justicia o
del estamento judicial en el Consejo de la Magistratura.
Si bien, en casi la generalidad de las constituciones se prohíben las
distinciones entre hombres y mujeres, es necesario destacar este punto,
que demuestra el uso del masculino mostrándose como genérico cuan-
do en realidad no lo es. Al respecto, “la universalidad del lenguaje tiene
sexo, y su neutralidad también”.38Las mujeres sí son mencionadas en las
Constituciones. Sin embargo, esas menciones aparecen prioritatiramen-
te en relación con las tareas de cuidado o con la protección especial de la
mujer embarazada (como veremos, muchas constituciones provinciales
sostienen que las mujeres cumplen un rol “esencial” en el hogar y en la
familia que el Estado debe priorizar). Así, “los prejuicios sexistas que el
lenguaje transmite sobre las mujeres y los hombres son, pues, el reflejo
del papel social atribuido a cada uno de ellos a lo largo de la historia”,39
pese a que el rol de la mujer ha mutado mucho en los últimos años.
Nombrar a las mujeres implica un proceso de reconocimiento sim-
bólico, que produce fuertes efectos en la sociedad. En este sentido, “la
disputa por las palabras es también una disputa por el poder, y por eso
el feminismo insiste aunque moleste, porque cambiar las relaciones de
poder implica una política del lenguaje”.40
b) Cláusulas de igualdad y autonomía: Es posible identificar que
todas las constituciones locales, contienen alguna cláusula de igualdad
(ya sea bajo la fórmula de igualdad formal, como no discriminación,

fundada en regla gramatical alguna. Al respecto, ver CASTRO RUBIO; BODELÓN GONZÁLEZ,
op. cit..
38. MAFFÍA, Diana. Hacia un lenguaje inclusivo ¿Es posible? Jornadas de actualización profesional
sobre traducción, análisis del discurso, género y lenguaje inclusivo. Buenos Aires: Universidad
de Belgrano, 2012.
39. CASTRO RUBIO; BODELÓN GONZÁLEZ, op. cit.
40. MAFFÍA, op. cit..

151
María de los Ángeles Ramalloy Liliana Ronconi

como no sometimiento).41 Este análisis permite demostrar que los pro-


blemas de desigualdad que padecen las mujeres no son por una cuestión
de falta de reconocimiento normativo sino por la falta de efectividad de
esas normas en la práctica42. Sin embargo, son pocas las constituciones
provinciales que contienen normas de autonomía.43En este sentido, de
las 24 constituciones provinciales, solo 10 de ellas contienen concep-
tualizaciones similares al artículo 19 de la Constitución Nacional en re-
lación a este principio.
Aborto: Si bien el derecho al aborto se deriva de otros derechos es-
tablecidos en la Constitución Nacional y en los tratados internacionales
de derechos humanos y que, por este motivo, no es posible sostener que
las constituciones provinciales planteen un obstáculo para la regulación
de la interrupción voluntaria del embarazo a nivel local, se decidió ana-
lizar este tema teniendo presente que la defensa del federalismo fue un
argumento reiteradamente utilizado en el debate parlamentario que
tuvo lugar en 2018 por quienes se mostraron en oposición al Proyec-
to de Ley sobre Interrupción Voluntaria del Embarazo44. Distintos ar-
gumentos jurídicos se podrían delinear a favor de la despenalización y

41. Al respecto, ver SABA, R. Más allá de la igualdad formal ante la ley: ¿qué les debe el Estado a
los grupos desaventajados? Buenos Aires: Siglo XXI, 2016; CLÉRICO, L.; ALDAO, M. Nuevas mi-
radas de la igualdad en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos:
la igualdad como redistribución y como reconocimiento. Revista Estudios Constitucionales, Fa-
cultad de Derecho/Universidad de Talca, 2011; RONCONI, L. Derecho a la educación e igualdad
como no sometimiento. Bogotá: Universidad del Externado de Colombia, 2018.
42. A pesar de ello, no es menos cierto que algunas constituciones poseen normas contradicto-
rias, aseguran el derecho a la igualdad (incluso haciendo específica mención al género) pero a
su vez indican que se deben respetar las características sociológicas de las mujeres o sus roles
esenciales dentro de la familia.
43. Esta se desprende del art. 19 de la Constitución Nacional, y resulta una norma sumamente re-
levante en lo que respecta al reconocimiento de los derechos de las mujeres. En este sentido,
fue uno de los principales argumentos en la defensa de la sanción de la ley de Interrupción
voluntaria del embarazo. Ver: FAERMAN, R. Algunos debates constitucionales sobre el aborto.
En: GARGARELLA, Roberto (Coord.). Teoría y Crítica del Derecho Constitucional. Tomo II (De-
rechos). Ed. Abeledo Perrot, 2008.
44. Durante el año 2018 se debatió en Argentina un Proyecto de Ley sobre Interrupción Volun-
taria del Embarazo. Tanto en la Cámara de Diputados como en la desenadores se realizaron
rondas de exposiciones con la participación de 700 personaspropuestas por los distintos
partidos políticos. Expertos/as, abogados/as, médicos/as, miembros de la sociedad civil y
otros/as ciudadanos/as fueron a expresar susconocimientos, opiniones y experiencias, mani-
festándose a favor y en contra de ladespenalización y legalización del aborto. El proyecto de
ley obtuvo media sanción en laCámara de Diputados, con 129 votos a favor, 125 en contra y 1
abstención. Luego, con 38 votos a favor, 31 en contra, 2 abstenciones y 1 ausencia, el proyecto
fue rechazado en laCámara de Senadores.

152
Cap. 5 • Género y Derecho público local…

legalización del aborto. Para realizar el estudio a partir del derecho pú-
blico local, decidimos enfocarnos en algunos de ellos y su anclaje en las
constituciones provinciales.
• En primer lugar, observamos las menciones sobre el derecho a
la vida: ¿incluyen las constituciones provinciales una protecci-
ón del derecho a la vida desde la concepción? Esto se torna rele-
vante porque podría ser un argumento utilizado por los y las re-
presentantes de las provincias en los órganos legislativos para
oponerse a garantizar el acceso a la interrupción voluntaria del
embarazo. Notamos que la mitad de las constituciones provin-
ciales indicaban la protección de la vida desde la concepción.De
las otras 11 constituciones, 4 protegen el derecho a la vida sin
establecer a partir de cuándo se considera que ésta comienza y
6 de ellas no tienen referencias explícitas a la protección del de-
recho a la vida. La restante, curiosamente, recién hace mención
a la vida cuando indica que “se reconoce a varones y mujeres
el derecho a tener control responsable sobre su sexualidad, in-
cluida la salud sexual y reproductiva, preservando el derecho
a la vida”. Una de las constituciones estableceque “la Provincia
reconoce y garantiza a las personas el derecho a la vida y, en
general, desde la concepción hasta la muerte digna”.
Si retomamos el debate parlamentario del 2018 podemos observar
que, a pesar de esta reiterada mención al derecho a la vida desde la con-
cepción en las constituciones provinciales, solo una senadora uso este
argumento para oponerse al proyecto. En cambio, muchos legisladores/
as hicieron mención a otra normativa –constitucional, convencional e in-
fraconstitucional– sosteniendo que esta obliga a la protección absoluta
de la vida desde la concepción45.
• En segundo lugar, buscamos identificar las referencias al sos-
tenimiento del culto católico apostólico romano presentes en

45. Por el contrario, quienes estaban a favor del proyecto de ley, sostenían que ni la Constitución
Nacional ni los Tratados Internacionales de Derechos Humanos impiden la despenalización y
legalización del aborto. En especial arguyeron que no es cierto que la Convención Americana
de Derechos Humanos proteja la vida desde la concepción en su artículo 4.1, que indica: “Toda
persona tiene derecho a que se respete su vida. Este derecho estará protegido por la ley y, en
general, a partir del momento de la concepción” (el resaltado nos pertenece). Por otro lado, en
el caso “Artavia Murillo y otros (“fecundación in vitro”) vs. Costa Rica” la Corte Interamericana
sostuvo que rige el principio de protección gradual e incremental –y no absoluta– de la vida
prenatal (cons. 256). El fallo F.,A.L. de la Corte Suprema de la Nación también receptó esta
idea.

153
María de los Ángeles Ramalloy Liliana Ronconi

muchas constituciones provinciales. Si bien éste no es argumen-


to suficiente para oponerse a la despenalización y legalización
del aborto, también podría ser uno utilizado, lo cierto es que 11
provincias incluyen en sus constituciones el sostenimiento de
la religión católica, apostólica, romana. Estas menciones se ase-
mejan al artículo 2 de la Constitución Nacional argentina. Sin
embargo, esto de ninguna manera podría plantear un obstáculo
a la aprobación de una regulación de la interrupción voluntaria
del embarazo. En una sociedad laica, multireligiosa, democrá-
tica, igualitaria y pluralista, los argumentos religiosos no son
aceptables a la hora de discutir en torno a derechos. Además,
conforme a la interpretación de la Corte Suprema de Justicia
de la Nación, lo único que se deriva del texto constitucional es
una obligación estatal de sostén y protección económica de los
gastos de ese culto, que serían pagados por el tesoro nacional,
incluidos en su presupuesto y sometidos al poder del Congreso.
• Por último, rastreamos en las constituciones las (casi inexisten-
tes) menciones a la salud sexual y reproductiva. La mayoría de
las constituciones provinciales protege el derecho a la salud, a
pesar de lo cual solo algunas de ellas tutelan específicamente
los derechos sexuales y reproductivos (Entre Ríos, Neuquén,
CABA). Por su parte la Constitución de la Provincia de San Juan,
si bien no hace mención a los derechos sexuales y reproducti-
vos, incluye en el art. 83, sobre educación, que “se promueve
la educación sexual (…) en todos los niveles educativos”. Final-
mente, como ya se mencionó, la Constitución de Corrientes re-
conoce el derecho a la salud sexual y reproductiva, señalando
que se “preserva el derecho a la vida” (art. 47).
Al observar cómo votaron las y los senadoras/os (representantes
de las provincias) en el debate del proyecto de interrupción voluntaria
del embarazo notamos que en la mayoría de los casos los/as senadores/
as de las distintas provincias no votaron de la misma forma entre sí, lo
que nos dificultaría trazaruna línea entre la tradición constitucional y su
posición sobre temas como la saludsexual y reproductiva y el derecho
al aborto. A pesar de ello, “En la Cámara de Senadores el argumento del
federalismo fue unoque primó entre quienes se manifestaban en contra.
Además, abundaron los discursosdirigidos a los habitantes de las pro-
vincias representados por cada senador/a. Es así queel eje de quienes se
opusieron al proyecto giró de un énfasis en las conviccionespersonales

154
Cap. 5 • Género y Derecho público local…

(que sí estuvo muy presente en el debate en la Cámara de Diputados) a


unénfasis en las convicciones del pueblo de cada provincia”46.
Por ello es que confirmamos la importancia de observar la norma-
tiva constitucional y legal de las provincias desde un enfoque de género
y de contrastar esto con un caso concreto como es el derecho al aborto.
d) Estereotipos: Buscamos identificar los estereotipos que existen
en las constituciones provinciales que, en muchos casos otorgan a las
mujeres principalmente el rol de madres y amas de casa. En particular,
esto resulta clave para comprender la situación de las mujeres en el goce
y ejercicio de otros derechos, como los derechos laborales (cómo ciertas
trabajos son otorgados prioritariamente a los varones y otros priorita-
riamente a las mujeres y cuál es la relación entre esto y la desigualdad
en la distribución de tareas de cuidado), como así también resultará re-
levante en el análisis de la situación de las mujeres en la organización de
los poderes del estado (ejecutivo, legislativo y judicial).
Un estereotipo es una visión generalizada o una preconcepción so-
bre los atributos o características de los miembros de un grupo en par-
ticular o sobre los roles que tales miembros deben cumplir, haciendo
innecesario considerar las habilidades, necesidades, deseos y circuns-
tancias individuales de cada miembro.47 En particular cuando estos se
vinculan con las mujeres tienden a caracterizarlas y ponerlas en el lugar
de madre o sujeto débil que merece especial protección; así, tienden a
degradarlas. Esta degradación causa a su vez mayor desvalorización de
la mujer.
Los estereotipos pueden ser de dos tipos: por los roles que implican
o por las características del sujeto, estos se retroalimentan y no siempre
somos consientes de ellos. Aparecen en distintos espacios, y el derecho
no es lejano a estos, como así tampocolas normas constitucionales. Los
estereotipos de género surgen de una historia sobre el estatus legal su-
bordinado de las mujeres. Esto queda claramente reflejado al identificar
la escasa participación de mujeres en los debates de las constituciones,
por ejemplo. Así, el análisis de estereotipos nos habla no solo del rol que
las mujeres se encuentran obligadas a asumir sino principalmente del

46. RAMALLO, M. A. El rol de las provincias en la discusión en torno a la despenalización y legali-


zación del aborto. En: RAMALLO, M. A.; RONCONI, L. (Coord.). Género y derecho público local.
Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Universidad de Palermo (en prensa).
47. COOK, R. J.; CUSACK, S. Gender Stereotyping: Transnational Legal Perspectives. Filadelfia: Uni-
versity of Pennsylvania Press, 2009.

155
María de los Ángeles Ramalloy Liliana Ronconi

rol que han asumido históricamente y que es necesario modificar. Asi-


mismo, implica reconocer que no alcanza con eliminar los estereotipos
de las normas (constituciones, leyes) y en sus interpretaciones, sino que
es necesario modificar el rol que las mujeres (y los hombres) han cum-
plido en la sociedad.
En diversas constituciones provinciales, existen ciertas preconcep-
ciones sobre el rol de las mujeres como asimismo sobre la calidad de
sujeto de estas. En este sentido, podemos “nombrar” los siguientes es-
tereotipos:
• La mujer- madre/ ama de casa/ cuidadora: Diversas consti-
tuciones provinciales “reconocen” respecto de la mujer traba-
jadora la“esencial función familiar de la madre”.En este sentido,
garantizan los derechos laborales de las mujeres pero sin em-
bargo, establecen un estereotipo que identifica a la mujer como
principal responsable de la crianza y de las tareas del hogar.
En primer lugar, este estereotipo enmascara un fuerte vínculo entre
el ser mujer y el rol de madre, imponiendo una noción generalizada se-
gún la cual las mujeres deben ser madres.48 A su vez, implica que sea la
mujer quién se hace cargo de las tareas cuidado (menores, tareas de la
casa, cuidado de adultos mayores), trabajo no remunerado y no valorado
socialmente. Así, las mujeres asumen, en muchos casos, un doble trabajo,
el externo, si lo realizan (y que generalmente es mal pago en compara-
ción con el del hombre) y el del hogar. Asimismo, perjudica a las mujeres
en otros ámbitos. Por ejemplo, el desarrollo de experiencia profesional o
académica, ya que son ellas las que cargan con ese trabajo doméstico y
enfrentan dificultades para quedarse largas horas en sus trabajos o cursar
algún tipo de capacitación (maestría, doctorado, entre otras).49
En otros casos, estas tareas de cuidado a cargo de las mujeres impli-
can que ellas no salen de sus casas, sino solo para realizar esas tareas.
• El poder es para los hombres: Como mostraremos más ade-
lante es claro que el poder en la esfera pública quedó reservado
para los hombres, a pesar de que todas las constituciones hayan

48. COOK; CUSACK, op. cit., p. 61. Esta imposición a las mujeres fue identificado como estereotipo
por la Corte IDH, en el caso “Artavia Murillo y otros (“Fecundación in Vitro”) vs. Costa Rica”,
sentencia del de 28 de noviembre de 2012.
49. Al respecto, ver Informe Detrás del número. Buenos Aires: ELA, 2011. En este informe se de-
musestra que “el peso de la carga reproductiva que asumen las mujeres es un condicionan-
te…a la hora de pensar la inserción de ellas en las estructuras de poder” (pág. 89).

156
Cap. 5 • Género y Derecho público local…

incluido la igualdad y que algunas, incluso, busquen garantizar


la participación igualitaria de las mujeres en la esfera política.
Esto se vincula, con lo que sostiene Olsen respecto del rol que
los hombres han asumido en el derecho. “Los hombres se han
identificado a sí mismos con un lado de los dualismos: con lo
racional, lo activo, el pensamiento, la razón, la cultura, el poder,
lo objetivo, lo abstracto, lo universal. Las mujeres resultaron
proyectadas hacia el otro lado e identificadas con lo irracional,
lo pasivo, el sentimiento, la emoción, la naturaleza, la sensibili-
dad, lo subjetivo, lo concreto, lo particular”.50 Este poder se tras-
lada también a la vida familiar, si bien las mujeres se ocupan
del trabajo en el hogar quienes tienen a cargo muchas de las
decisiones familiares son los hombres.
• La mujer como sujeto débil: Diversa normativa provincial bus-
ca proteger especialmente a las mujeres por considerar que és-
tas se encuentran en una situación especial de vulnerabilidad51
vinculando el rol de mujer con el de madre o cuidadora o ama
de casa. En muchos casos en los que las constituciones brindan
una especial protección a la mujer, lo hacen en lo relativo a las
cuestiones vinculadas con la protección del trabajo durante el
embarazo o a la seguridad social. Estas normas buscan proteger
una especial situación por la que atraviesan las mujeres, siendo
centrales si lo que se busca es la igualdad de género.52De esta
manera, mientras estas normas busquen proteger a la mujer
ante situaciones específicas, sin generar estereotipos, las mis-
mas se constituyen en acciones positivas. En este sentido, por
ejemplo, las normas cuestionadas al analizar los estereotipos
de la mujer madre el problema que presentan es que
• Las familias tradicionales: En todos los casos, estos estereoti-
pos refuerzan también la figura de una familia tradicional, donde
el hombre ocupa el rol de jefe y sustento del hogar y la mujer
de ama de casa que se dedica a la crianza de los niños. De esta
manera, excluyen de la protección de las normas constitucionales
familias diversas que no encajan dentro del modelo tradicional

50. OLSEN, op. cit., p. 2.


51. Cuenta de ello es que en especial aparecen junto a las cláusulas de protección de niños y niñas
y/o personas adultas mayores.
52. JACKSON, op. cit., p. 46.

157
María de los Ángeles Ramalloy Liliana Ronconi

(por ejemplo, familias compuestas por parejas del mismo sexo,


familias homoparentales, las mujeres como jefas de hogar, entre
otras). De esta manera, “los textos constitucionales citados(…),
demuestran determinados presupuestos de asignación de roles
en la sociedad y perfilan una concepción de familia: tradicional,
cristiana y patriarcal. De lo transcripto se deduce: 1) que las
“importantes” tareas de ama de casa ponderadas constitucio-
nalmente son funciones excluyentemente de la mujer; 2) que
el “aporte a la comunidad” de la mujer parece ser considerado
como un “valor” desde ese lugar: madre y ama de casa; 3) que la
“función esencial” de la mujer es la “familiar” y subsidiariamen-
te otras. Así́, las actividades laborales (de las mujeres) deben ser
“compatibilizadas” con las del hogar, porque la función familiar
es la “esencial”.53Las distintas constituciones “estereotipan a las
mujeres”, esto es, le atribuyen a las mujeres características o roles
solo en función de serlo.54 Así, refuerzan la posición de la mujer
como madre y/o ama de casa, desvalorizando el trabajo externo.
A pesar de ello, otras constituciones, por el contrario, no solo care-
cen de estereotipos sino que promueven que las responsabilidades fa-
miliares sean compartidas, ayudando de esta manera en la eliminación
de estereotipos de género. En este sentido, por ejemplo, el artículo 45
de la Constitución de Neuquén,55 el artículo 38 de la Constitución de la
CABA56 y el art. 31 de la Constitución de Rio Negro.57
• Los hombres-proveedores primarios: Los efectos de la uti-
lización de estereotipos no son solo para el grupo en cuestión
sino también para el que no encaja dentro del otro grupo. Si las
mujeres son vistas como las cuidadoras primarias, los hombres

53. BLANDO, Oscar. Género, Derecho y Constitucion. Un análisis al interior de las constituciones
provinciales argentinas. En: LEVÍN, Silvia et al. Políticas públicas, Género y Derechos Humanos
en América Latina. Iniciativa Latinoamericana de Libros de Texto Abiertos (LATIn), 2014.
54. COOK; CUSACK, op. cit.
55. “El Estado (...) sus políticas públicas y elabora participativamente planes tendientes a: 1. Es-
timular la modificación de los patrones socioculturales estereotipados con el objeto de elimi-
nar prácticas basadas en el prejuicio de superioridad de cualquiera de los géneros. 2. Promo-
ver que las responsabilidades familiares sean compartidas…”
56. “La Ciudad (...) estimula la modificación de los patrones socioculturales estereotipados con
el objeto de eliminar prácticas basadas en el prejuicio de superioridad de cualquiera de los
géneros; promueve que las responsabilidades familiares sean compartidas…”
57. “El Estado protege a la familia (…) Los padres tienen el derecho y la obligación de cuidar y de
educar a sus hijos”.

158
Cap. 5 • Género y Derecho público local…

por el contrario, tienen escasas oportunidades de ejercer tareas


de cuidado o en el hogar sino que son vistos como proveedo-
res.58 Son estereotipados como menos capaces de hacerse cargo
de las tareas de cuidado. Esto, puede verse claramente en las
argumentaciones utilizadas en las diversas sentencias que ori-
ginan el caso “Fornerón e Hija vs. Argentina”59 En este sentido,
el juez de la Provincia de Entre Ríos que entendió en la causa
de guarda seguida de adopción sostiene que el Sr. Fornerón “…
no conoce a la menor y no se encuentra casado, estaríamos oca-
sionando un daño irreparable a la niña, quién no solo perdería
a los únicos padres que conoce sino que además no contaría
con la madre…” al momento de resolver entregarle la guarda al
matrimonio “adoptante”.
Así, estas normas “institucionalizan desequilibrios en los derechos
y deberes de los cónyuges…. sugiere[n] una división de tareas entre las
responsabilidades financieras del marido y las responsabilidades do-
mésticas de la esposa” perpetuando “una discriminación de facto con-
tra la mujer en la esfera familiar y tienen el efecto ulterior de dificultar
la capacidad de los hombres para desarrollar plenamente sus papeles
dentro del matrimonio y de la familia. Los artículos en cuestión crean
desequilibrios en la vida familiar, inhiben el rol del hombre respecto del
hogar y los hijos y, en tal sentido, privan a éstos de una atención plena y
equitativa de ambos padres”.60
e) Composición de poderes: Un relevamiento realizado a julio
de 2017 de la composición de los distintos poderes provinciales,61 in-
dica que:
• En lo que respecta al Poder Ejecutivo, teniendo en cuenta los
cargos electivos para ocupar la Gobernación o Jefatura de Gobierno, las

58. Esto se refleja luego en las normas que regulan los regímenes de licencia por maternidad/
paternidad. Asimismo, es interesante el trabajo de GONZÁLEZ, A.; RAMALLO, M. Comentario
al fallo “Etcheverry, Juan Bautista c/ EN s/ amparo ley 16.986”: Pautas para la reglamentación
del artículo 179 de la Ley de Contrato de Trabajo. Revista Jurídica de la Universidad de Paler-
mo, 1, 2018.
59. Corte IDH, Caso Fornerón e Hija vs. Argentina, sentencia del 27 de abril de 2012.
60. CIDH. Informe Nº 4/01, María Eugenica Morales de Sierra vs. Guatemala, CASO 11.625, 19 de
enero de 2001, cons. 44.
61. En el ámbito local se mantiene la división de poderes existente en el plano federal, Poder
Ejecutivo, Poder Judicial y Poder Legislativo, en este caso en el plano local puede estar com-
puesto por una o dos Cámaras de Legisladores/as.

159
María de los Ángeles Ramalloy Liliana Ronconi

mujeres solo lo hacían en 5 de 24 jurisdicciones (21%).Por su parte,


existía una sola mujer ocupando un cargo electivo en la Vice-Goberna-
ción o Vice-Jefatura de Gobierno (4%).62
En cuanto a los cargos designados por la Gobernación o Jefatura
de Gobierno para ocupar un cargo como titular de un ministerio tene-
mos quede los 235ministerios que existían en todas las provincias, solo
46eran ocupados por mujeres. Esto representa solo el 19,6% de los car-
gos. Si desglosamos el porcentaje de mujeres titulares de ministerios,
podemos identificar que ellas ocupaban principalmente el Ministerio de
Educación (en algunos casos “y Cultura”),63 en el Ministerio de Desarrollo
Social,64 en el Ministerio de Turismo65 y en el Ministerio de Salud.66 Lue-
go aparecen en menor medida en el Ministerio de Ambiente o Ecología
y en el Ministerio de Derechos Humanos. Solo en la jurisdicción donde
existía paridad en la titularidad de los Ministerios, es posible destacar
que las mujeres no solo ocupaban cargos en aquellos ministerios vincu-
lados a los roles tradicionales de las mujeres, sino que, por el contrario,
estas aparecían ocupando cargos en el Ministerio de Hacienda Pública y
en el Ministerio de Seguridad, espacios que han sido tradicionalmente
ocupados por varones. Solo en una jurisdicción existía paridad en la par-
ticipación (San Luis) y en otra (Santa Cruz), las mujeres eran mayoría.
En el resto, los cargos eran ocupados en su mayoría porvarones, exis-
tiendo 4 jurisdicciones (Catamarca, Córdoba, Mendoza y Buenos Aires)
donde no había mujeres en los Ministerios. Existía una provincia, Córdo-
ba, cuyo Poder Ejecutivo estaba compuesto en su totalidad por varones.
Estos datos demuestran la necesidad de reforzar la participación de
las mujeres en aquellos espacios que han sido tradicionalmente ocupa-
dos por varones. En este sentido, “la necesidad de tener más mujeres en
el poder no depende de los resultados que producirán, sino de que estén
presentes en el proceso de representación política, en los momentos de
definición de los temas en la agenda pública y dentro de los espacios de
poder”.67

62. Para determinar este porcentaje se toman en cuenta solo 23 jurisdicciones ya que en una de
ellas el cargo está acéfalo.
63. En 10 jurisdicciones.
64. En 8 jurisdicciones (tomando el Ministerio “De la Familia y la Promoción Social”).
65. En 5 jurisdicciones.
66. En 5 jurisdicciones.
67. ELA. LIDERA: Participación en democracia. Experiencias de mujeres en el ámbito social y po-
lítico en Argentina. Buenos Aires: ELA, 2012, p. 82.

160
Cap. 5 • Género y Derecho público local…

• En lo que respecta al Poder Legislativo, de la composición de


las Cámaras de Legisladores en cada una de las provincias podemos
extraer las siguientes conclusiones: en 17 provincias existe Ley de
Cupo conforme la normativa local, solo en un caso el cupo femenino
surge de la norma constitucional (CABA), y en 6 de ellas existe Ley de
Paridad.68 Esto permite ver que en el Poder Legislativo se ha visuali-
zado la necesidad de garantizar la participación de las mujeres en los
cargos de toma de decisiones. Esta participación tiene un doble efec-
to. Por un lado, implica un avance en la calidad de la representación
democrática y sirve para impulsar el debate de ciertos temas vincu-
lados directamente con las mujeres.69Existían en total 1188 cargos de
Legisladores/as (diputados/as, senadores/as, legisladores/as) en las
24 jurisdicciones. De esos 1188 cargos, 374 estaban, a julio de 2017,
ocupados por mujeres (31,4%) y 814 por varones (68,6%).70 Es nece-
sario pensar que esta mayor participación, comparada con el resto de
los poderes, es efecto de esas leyes de cupo o paridad. Si esto es así es
necesario entonces reafirmar la necesidad de aumentar este tipo de
acciones en otras instancias u organismos.
Sin embargo, en aquellas provincias en las que existe Ley de Cupo o
de Paridad, esta representación no siempre se vía reflejada en las bancas
ocupadas efectivamente por las mujeres, pues el requisito del cupo o
paridad es respecto a la lista de candidatos/as a los cargos y no respecto
a los cargos efectivos (bancas). Esto se vincula, además, con las formas
de renovaciones de las Cámaras, la forma en que se ordenan los candida-
tos/ las candidatas en las listas, etc.
• En lo que respecta al Poder Judicial, tenemos que de los 128
cargos efectivamente ocupados en los Tribunales Superiores o Supre-
mas Cortes provinciales, solo 34 eran ocupados por mujeres (esto re-
presenta un 25%), el resto, 94 cargos, por varones. Solo en 3 jurisdic-
ciones existían mayoría de mujeres en la composición del alto tribunal

68. Las leyes de cupo fueron, en general, sancionadas a principio de los años 90, esto es concor-
dancia con la normativa nacional. Por el contrario, muchas de las leyes de Paridad fueron
anteriores a la reforma en el ámbito nacional.
69. ALVAREZ, S. Igualdad y representación de las mujeres: el impacto político, social y cultural de
la presencia. En: GARGARELLA, R. La constitución en 2020 48 propuestas para una sociedad
igualitaria. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2011.
70. Contando un total de 1006 bancas (673 ocupadas por varones y 333 ocupadas por mujeres)
en la Cámara de Diputados o Legislatura y un total de 182 bancas (141 ocupadas por varones
y 41 ocupadas por mujeres) en la Cámara de Senadores, en los casos que está existe.

161
María de los Ángeles Ramalloy Liliana Ronconi

provincial y 2 en paridad (en verdad, por existir alguna vacante).En 8


jurisdicciones no existían mujeres en la composición del alto tribunal
provincial. Es necesario destacar que los requisitos exigidos para ser
miembro de los altos tribunales son bien altos. En este sentido, en casi
la totalidad de los casos se exige tener más de 30 años, con más de
10 años en el ejercicio de la profesión y otros antecedentes de méri-
to.71 Para las mujeres lograr cumplir con estos requisitos se torna más
dificultoso porque en muchos casos son ellas las que siguen estando
a cargo de las tareas de cuidado (hijos/as, hogar). Además, estos re-
quisitos en general se pueden alcanzar cuando la mujer se encuentra
en plena edad fértil y en caso de que quiera ser madre, alcanzar los
antecedentes de mérito y los años de ejercicio de la profesión se verían
pospuestos.
En general, no existen leyes de cuota o que tengan en cuenta el géne-
ro a la hora de componer los altos tribunales. Las excepciones las consti-
tuyen la CABA, cuando establece que no todos los miembros pueden ser
del mismo sexo72 y Río Negro, donde la Ley Orgánica del Poder Judicial
establece que el Superior Tribunal de Justicia debe integrarse con voca-
les de ambos sexos, procurando una equilibrada representación de las
distintas Circunscripciones Judiciales.
Además, aun cuando en varias provincias se crearon Oficinas de
Violencia Doméstica u Oficinas de la Mujer o Tribunales específicos en
temáticas de género, muchas veces estas dependen de Tribunales Su-
periores (o Corte Suprema) que no cuentan entre sus miembros con
mujeres o cuya representación es mínima. Esto demuestra que existe
un interés en el tema pero que sin embargo no es trabajado en forma
general, solo apuntan a las graves situaciones de violencia sin iden-
tificar que una de las causales de la misma es la no oportunidad de
detentar el poder.
En resumen, como ya se ha señalado, si bien muchas constituciones
poseen cláusulas de igualdad, al observar la conformación de los pode-
res provinciales podemos notar que esta igualdad reconocida a nivel
normativo no se traduce a una igualdad real.
f) Derechos laborales: De igual manera, el estudio de las constitu-
ciones da cuentade una protección formal, ya que el derecho al trabajo

71. Algunas excepciones: CABA, La Pampa, Neuquén.


72. Art. 111 Constitución CABA.

162
Cap. 5 • Género y Derecho público local…

está reconocido en todas las constituciones provinciales y, en muchos


casos, éstas hacen referencias específicas a las garantías de igual remu-
neración por igual tarea y a la no discriminación por sexo. Sin embargo,
como mencionamos al analizar los estereotipos, una mirada con mayor
detalle que da cuenta de la persistencia de estereotipos de género que
relegan a las mujeres al ámbito doméstico, impacta en ellas perjudicán-
dolas en el ámbito del trabajo formal asalariado.

Por otra parte, si analizamos la cuestión en el ámbito infracons-


titucional, por ejemplo, observando las licencias por maternidad y
paternidad del empleo público provincial notamos que 10 de las 24
provincias argentinas aún conservan licencias por paternidad muy re-
ducidas; solo 3 incluyen licencias que podríamos catalogar de amplias
(entre 20 y 30 días); y sólo 1 equipara la licencia por maternidad con
la de paternidad73. Por otra parte, resulta curioso que, si observamos
las licencias por adopción, en muchos casos, éstas difieren, cuando se
trata de parejas casadas o en convivencia, si se trata de la mujer o del
varón quien deba tomarse la licencia (otorgando más días a la madre
adoptante y menos al padre adoptante) sin tener ellos laposibilidad de
elegir a quién se le otorgará la licencia más larga. Esto último da cuenta
claramente de la reproducción de roles de cuidado asignados priorita-
riamente a las mujeres.

Para lograr una igualdad en materia de cuidado, como así también


incentivar el ingreso igualitario de las mujeres al mercado laboral, será
necesario que los regímenes que regulan las licencias tiendan a una
equiparación de las licencias por maternidad y paternidad. Esto, desde
ya, no implica la reducción de las licencias por maternidad sino la equi-
paración de estas con las de paternidad.

73. En el ámbito nacional la Ley de Contrato de Trabajo (LCT) establece una licencia por materni-
dad de un total de 90 días: 45 días anteriores al parto y 45 días después, existiendo la posibi-
lidad de reducirse la licencia anterior al parto en 15 días y extenderse la licencia posterior al
parto a 60 días. Durante la gestación deberá garantizarse la estabilidad en el empleo y dentro
del plazo de siete meses y medio anteriores o posteriores a la fecha del parto se presume que
el despido de la mujer trabajadora obedece a razones de maternidad o embarazo. En cambio,
la licencia por paternidad está establecida en el artículo 158, como una clase más de “licencia
especial”: 2 días corridos por nacimiento de hijo (inc. a). Como es claro, ninguna presunción
de despido ni el derecho a la estabilidad en el empleo es aplicado para el caso de los hombres
padres. En lo que respecta al sector público nacional, el Convenio Colectivo de Trabajo Ge-
neral para la Administración Pública Nacional, la licencia por maternidad es de 100 días de
licencia mientras que la de paternidad es de 15 días.

163
María de los Ángeles Ramalloy Liliana Ronconi

5. A MODO DE CIERRE
Lo que buscamos con este artículo fue identificar el tratamiento que
han recibido las mujeres en las constituciones provinciales en Argenti-
na. Nos referimos en primer lugar a la importancia del análisis del dere-
cho público local con perspectiva de género, principalmente, tomando
en consideración que las mujeres no han participado de la discusión al
momento de sancionarse la mayoría de las constituciones (ya que el su-
fragio femenino y la posibilidad de ser elegidas surge posteriormente)
y han participado en alguna medida (menor que los hombres) en las
reformas que se han llevado a cabo. De esta manera, mostramos el se-
xismo en el lenguaje que utilizan, en general, los textos constitucionales.
Al respecto, sostiene Balaguer Callejón que “la ocultación de las muje-
res por parte del lenguaje es una consecuencia directa del ejercicio del
poder por parte de los hombres para mantener la estructura social del
patriarcado”.74 El cambio en el uso del lenguaje permitirá al derecho ser
una herramienta de cambio social. La igualdad real exige que las muje-
res sean nombradas, tanto en lo que se refiere a las mismas como sujetos
de derechos como respecto de la posibilidad de ocupar algún cargo en la
función pública, por ejemplo.
Por otra parte, consideramos que las constituciones provinciales
deben adecuarse al bloque de constitucionalidad federal, que incluye
los derechos incorporados en los tratados de derechos humanos del 75
inc. 22 de la Constitución Nacional. Esta perspectiva deberá aplicarse al
analizar, por ejemplo, cuestiones como la legalización de la interrupción
voluntaria del embarazo. Asimismo, cláusulas presentes en la Constitu-
ción Nacional y en los tratados internacionales de derechos humanos,
como así también reconocidas en las constituciones provinciales (como
es el caso de la igualdad y el derecho al trabajo) deberán encontrarse
reflejadas en normas infraconstitucionales, como las que aplican para
las licencias por maternidad y paternidad.
Mostramos mediante el análisis de la situación actual, la necesidad
de reforzar los mecanismos de participación política de las mujeres (por
ejemplo, leyes de cuotas en los diversos poderes del Estado) pero tam-
bien de romper con otras cuestiones que imposibilitan a las mujeres el
ejercicio efectivo de roles en la política (por ejemplo, el reparto de las
tareas de cuidado yla erradicación de estereotipos). Los números aquí

74. BALAGUER CALLEJÓN, op. cit., p. 96.

164
Cap. 5 • Género y Derecho público local…

analizados nos dicen que las acciones positivas (cuotas, paridad) esta-
blecidas en el ámbito del Poder Legislativo han permitido mayor parti-
cipación de las mujeres en la política, sin embargo, esto no se ve refle-
jado en otros espacios de poder, siendo que las mujeres siguen estando
subrepresentadas. Las leyes de cuotas aplicables en el ámbito del Poder
Legislativo, cuya vigencia tiene en muchos casos mas de 25 años, han
tenido un efecto claro, pero se tornan insuficientes. La participación de
las mujeres en los espacios de toma de desiciones es central para el fun-
cionamiento de la democracia, de esta manera, los datos nos obligan a
replantear y pensar nuevas estrategias para garantizar mayor participa-
ción política real de mujeres en espacios como el Poder Ejecutivo y el Po-
der Judicial. Con este aporte buscamos poner en debate dos cuestiones.
La primera, la importancia de que en aquellos países que han adoptado
un sistema federal, se reflexione en torno al derecho público local. En
muchos casos es éste el que mayor impacto tiene en la vida cotidiana de
las y los ciudadanas/os. En segundo lugar, que esta reflexión sea hecha a
partir de un enfoque de género, que visibilice el carácter masculino del
derecho y que analice la cuestión poniendo en evidencia las consecuen-
cias negativas que esto tiene para los derechos de las mujeres.

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Cap. 5 • Género y Derecho público local

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167
6
CONSTITUCIONALISMO E GÊNERO
EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL
Amélia Sampaio Rossi1
e Erika Carvalho Ferreira2

Sumário: 1. Introdução; 2. Modernidade, Colonialidade e Direitos; 3.


Gênero e Colonialidade; 4. Constitucionalismo, gênero e colonialidade; 5.
Considerações finais; 6. Referências bibliográficas

1. INTRODUÇÃO
O pensamento decolonial pode ser visto como uma chave de com-
preensão diferenciada da história, da ciência moderna e da própria ideia
de Estado e de direitos, ao desvelar as contradições subjacentes ao pro-
jeto da modernidade e a sua sombra indissociável, a colonialidade. É
possível classificar este pensamento como um movimento de resistência
teórico e político, uma teoria crítica que revela as feridas coloniais da
América latina questionando a geopolítica do conhecimento e a colonia-
lidade do Poder.
Nesta perspectiva a colonialidade passa a ser compreendida como
o legado colonial herdado do colonialismo que penetrou nas estruturas,

1. *Amélia Sampaio Rossi. Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professora
da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e professora perma-
nente do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUCPR
(Curitiba / PR-Brasil). E-mail: amelia.rossi@pucpr.br ORCID: orcid.org/0000-0003-2199-
9805
2. *Erika Carvalho Ferreira. Aluna do Curso de Graduação em Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Bolsista PIBIC Fundação Araucária e integrante do Grupo de Pesquisa
Alteridade e Constituição na perspectiva das tensões contemporâneas.

169
Amélia Sampaio Rossie Erika Carvalho Ferreira

“e instituições e também nas mentalidades, imaginários, subjetividades


e epistemologias, e que até hoje dão forma e conteúdo às sociedades
atuais. É importante destacar que a Modernidade e a Colonialidade
são faces de uma mesma moeda, ou seja, a Colonialidade é constitutiva
da Modernidade, e não derivada. A Colonialidade é a face obscura da
Modernidade.”3
Assim, com o auxílio do método histórico-dialético e utilizando-se
de pesquisa bibliográfica, pretende-se desenvolver e aprofundar o co-
nhecimento sobre a visão crítica decolonial4 em relação ao conceito de
gênero, e ao desenvolvimento do constitucionalismo, a fim de jogar lu-
zes na obscura dimensão da colonialidade encoberta pelo pensamento
moderno hegemônico.
Segundo Almeida e Silva, a colonialidade pode ser compreendida
como a permanência dos diferentes e perversos efeitos do colonialismo
que não se extinguiram com a Independência das colônias. Assim, para
os autores, a colonialidade acompanha todo processo subsequente ca-
racterizado pelas mudanças do capitalismo, acompanhada pela raciali-
zação da humanidade; pela instalação dos Estados-nação; pela ascensão
da razão única e universal; e, para completar o ciclo da Colonialidade,
pela constituição de subjetividades hierarquizadas. Assim, a colonialida-
de faz referência a um padrão de poder que toma por base a forma como
se articulam e se desenvolvem o trabalho, o conhecimento e as relações
sociais por meio da ideia de raça, gênero e classe e de sua interseccio-
nalidade.

2. MODERNIDADE, COLONIALIDADE E DIREITOS


Conforme ressalta BRAGATO5, a concepção dos direitos humanos
se estabelecem como um projeto moral, jurídico e político com ori-
gem na modernidade ocidental e que uma vez desenvolvido passa a ser

3. ALMEIDA, Eliene Amorim de; SILVA, Janssen Felipe da. Abya Yala Como Território Epistêmico:
Pensamento decolonial como perspectiva teórica. Revista Interritórios, v. 1, n. 1, 2015, p. 12.
4. Por isso o uso, aqui adotado, da expressão decolonial/decolonialidade, visto que se quer de-
marcar que o fato de ter ocorrido a descolonização não implicou concretamente na descon-
tinuidade das relações de colonialidade que se perpetuam até hoje por meio de um padrão
econômico mundial de poder.
5. BRAGATO, Fernanda Frizzo; BARRETTO, Vicente de Paulo; SILVEIRA FILHO, Alex Sandro da. A
interculturalidade como possibilidade para a construção de uma visão de direitos humanos a
partir das realidades plurais da América Latina. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 62, n.
1, jan./abr. 2017, p. 33.

170
Cap. 6 • CONSTITUCIONALISMO E GÊNERO EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

exportado para o mundo, sendo que nesta dimensão os direitos humanos


não se ligam nem com a história e nem com a racionalidade dos povos
não ocidentais. Ora, é evidente que uma concepção histórico, geográfica
e política de direitos humanos que se impõe como única, por certo guar-
da inconsistências que, uma vez melhor conhecidas, possam contribuir
para uma (re)construção/percepção destes mesmo direitos, envolta em
uma realidade mais consistente, podendo apontar para novos caminhos
de fundamentação e gerar ferramentas mais eficazes para a sua defesa.
É importante esclarecer que o que se chama neste artigo de pers-
pectiva decolonial faz ligação de sentido com o pensamento desenvol-
vido pelo grupo chamado modernidade/colonialidade. Nas Palavras de
BRAGATO,
(…) os estudos descoloniais, têm dado visibilidade à dimensão colonial
da modernidade e sinalizado para o caráter eurocêntrico das formas
de conhecimento dominante. Enquanto a tradição teórica ocidental
sustenta que a modernidade é um fenômeno puramente intraeuropeu,
constituído a partir da Reforma Protestante, Revolução Francesa e Re-
volução Industrial, e que, posteriormente, se estendeu a todo mundo,
Dussel entende-a como um fenômeno mundial produzido pelas rela-
ções assimétricas entabuladas pela Europa com suas colônias a partir
de 1492, data da chegada de Colombo à América. A modernidade não
seria um fenômeno da Europa como sistema independente, senão de
um ‘sistema-mundo’ no qual essa assume a função de centro, estenden-
do seu domínio colonial ao resto do mundo. 6
O Grupo denominado modernidade/colonialidade tem sua origem
na década de 90 nos EUA, composto por intelectuais latino-americanos e
americanistas. Estes fundam o Grupo Latino- Americano de estudos su-
balternos, cujo seu Fouding Statement foi publicado em 1993 na revista
Boundary 2. Em 1998, Santiago Castro-Gómez traduziu o documento para
o espanhol como “Manifiesto inaugural del Grupo Latinoamericano de
Estudios Subalternos”. Não obstante, devido as mais variadas divergên-
cias teóricas internas, este coletivo se dissolve em 1998 e a partir daí, por
meio de várias reuniões e discussões se criará, paulatinamente, o Grupo
Modernidade/Colonialidade. De 1998 até o momento atual o grupo reu-
niu vários pensadores e intelectuais das mais diversas nacionalidades e
áreas do saber, dentre os quais Aníbal Quijano, Henrique Dussel, Walter
Mignolo, Edgardo Landel, Boaventura de Souza Bantos, Catherine Walsh,
Grasfoguél, Cástro –Gomez , Zulma Palermo, Immanuel Wallerstein,
etc. Dentre os desenvolvimentos fundamentais do grupo estão os

6. Ibidem, p. 212.

171
Amélia Sampaio Rossie Erika Carvalho Ferreira

conceitos de colonialidade do “saber”, do “ser” e do “poder”, entendida a


palavra colonialidade, conforme já afirmado, como o lado constitutivo e
obscuro da própria modernidade.
É possível elencar, segundo Enzo Bello7 algumas características
do Grupo que apontam a sua lógica de funcionamento e compreensão
das estruturas políticas e econômicas e de reconhecimento de direitos:
A perspectiva transdisciplinar de análise dos fenômenos (envolvendo
áreas como filosofia, sociologia, história, teorias feministas, economia,
política, direito, ecologia política etc.); A América latina como espaço
epistemológico; A autocompreensão como uma comunidade de argu-
mentação que trabalha coletivamente, promovendo uma mudança no
conteúdo e nos “termos” (expressões, conceitos) dos seus diálogos e a
tomada de uma posição política enquanto sujeitos da academia em três
espaços convergentes: nos dos agentes e movimentos subalternos, nos
dos intelectuais-ativistas em espaços mistos e nos das universidades.
O objetivo do Grupo é descortinar o modo eurocêntrico e universalizado
de compreender o mundo e suas relações de poder e conhecimento a
fim de tornar visível aquilo que foi subalternizado e ocultado, o outro,
o diferente, o não europeu, a mulher, os povos originários, o negro, en-
fim, todos aqueles que foram e continuam sendo excluídos de quaisquer
perspectiva de integrar um projeto de desenvolvimento e civilização tra-
çado na modernidade.
Nesta linha teórica, conforme Dussel8, o mito da superioridade da
modernidade se estabeleceu como justificativa de uma práxis irracional
de violência e pode ser descrito da seguinte maneira,
1. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e su-
perior (o que significa sustentar inconscientemente uma posição euro-
cêntrica). 2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos,
bárbaros, rudes, como exigência moral. 3. O caminho de tal processo
educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (é,
de fato, um desenvolvimento unilinear e à européia o que determina,
novamente de modo inconsciente, a “falácia desenvolvimentista”).4.
Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a práxis moderna deve
exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os

7. BELLO, Enzo. O pensamento descolonial e o modelo de cidadania do novo constitucionalismo


latino-americano. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RE-
CHTD), v. 7, n. 1, p. 49-61, janeiro-abril de 2015, p.50.
8. DUSSEL, Enrique. Europa, Modernidade e Eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo (Org). A colo-
nialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos
Aires: Clacso, 2005, p. 30.

172
Cap. 6 • CONSTITUCIONALISMO E GÊNERO EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

obstáculos dessa modernização (a guerra justa colonial). 5. Esta domi-


nação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras), violência que é
interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-ritual de
sacrifício; o herói civilizador reveste a suas próprias vítimas da condi-
ção de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado,
o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica, etcetera). 6. Para
o moderno, o bárbaro tem uma “culpa” (por opor-se ao processo civi-
lizador) que permite à “Modernidade” apresentar-se não apenas como
inocente mas como “emancipadora” dessa “culpa” de suas próprias ví-
timas. 7. Por último, e pelo caráter “civilizatório” da “Modernidade”, in-
terpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos)
da “modernização” dos outros povos “atrasados” (imaturos), das outras
raças escravizáveis, do outro sexo por ser frágil, etcetera.9

Neste diapasão, a colonialidade do poder expõe o fato de que o fim


das administrações coloniais não extinguiu a dominação colonial que se
perpetua até hoje por meio do controle da economia, da episteme, das
subjetividades, natureza e recursos naturais, do gênero e da autoridade
pelos países de capitalismo central.
Depreende-se do exposto que a noção de colonialidade implica em um
código no qual a ideia de civilização ocidental se autolegitima como con-
troladora da economia, da autoridade, da subjetividade e conhecimento
dos povos não ocidentais. Neste aspecto a desumanização do não euro-
peu se mostrou necessária para justificar o controle sobre os mesmos
com base na ideia construída de raça. Para De Souza Pinto e Mignolo
(2015, p.384), “Racismo como o conhecemos hoje foi estabelecido àque-
la época. Racismo não é biológico, mas sim epistêmico; é a classificação
e a hierarquização de umas pessoas por outras que controlam a produ-
ção do conhecimento, que estão em posição de atribuir credibilidade a
tal classificação e hierarquização e que estabelecem a si mesmas como
o padrão: ‘os humanos.’

Assim sendo, a decolonialidade conforme afirmado, não se confun-


de com a descolonização ocorrida com a independência das ex-colônias,
mas antes envolve os processos de desengajamento subjetivo, econômi-
co, político e epistêmico ainda por ser realizados.
De Souza Pinto e Mignolo denunciam o caráter discursivo da mo-
dernidade, visto que a linguagem intermedia a compreensão do mundo
com a realidade embora não seja exatamente constitutiva da realidade
dos fatos,
Modernidade, desenvolvimento, democracia e direitos humanos, por-
tanto, não existem como realidades objetivas, tampouco são suas

9. Ibidem, p. 30.

173
Amélia Sampaio Rossie Erika Carvalho Ferreira

conceituações representações diretas ou imediatas de tais supostas


realidades exteriores. Modernidade, desenvolvimento, democracia e
cidadania, assim como mercado, estado e nação são realidades discur-
sivas, constituídas e validadas no curso das interações simbólicas nem
sempre plenamente conscientes entre sujeitos individuais e coletivos,
tanto no plano micro quanto no plano macro, espacial e temporalmente.
À modernidade, no entanto, interessa ocultar esse seu caráter discursi-
vo, político. A ela interessa apresentar-se como realidade objetiva, “na-
tural”, necessária e inevitável, eliminando, assim, toda e qualquer possi-
bilidade de contestação e de reexistência ou busca de outros mundos.10

No tocante à dimensão do campo jurídico e político, a ideia de de-


colonizar implica romper com a imagem universal de progresso jurí-
dico racional e da própria idéia de ciência do século XIX. A perspectiva
decolonial aponta para a possibilidade criativa na revelação dos sabe-
res silenciados ao reivindicar tanto um modelo de Estado quanto um
campo do saber que toma em consideração a pluralidade e diversidade
de conhecimentos e necessidades locais11.
Como se sabe a epistemologia ocidental se estabeleceu como a única
capaz de oferecer conhecimentos válidos no campo das ciências sociais,
do direito, da economia, da ética. Neste sentido, segundo Pietro COSTA12,
um intrincado processo histórico cultural, em desenvolvimento, pelo
menos, desde a Ilustração, foi responsável pela tendência de se quebrar
o ideal de caráter unitário do sujeito para dar forma e processo às mais
variadas antinomias que, de uma maneira ou outra, perpassaram o pro-
cesso de conhecimento até a segunda metade do século passado, com
consequências que se imbricam no saber e no direito, entendido como
um campo do saber, até os dias atuais. Lógica versus imaginação, razão
versus paixão, ciência versus arte, realidade versus invenção, são exem-
plos destas oposições. Especialmente deve-se perceber o distanciamen-
to entre o domínio da ciência, da razão e da realidade, do domínio da
paixão, da arte e da invenção ou imaginação. Tendo essas dicotomias
como pano de fundo, instalam-se e se desenvolvem, segundo o autor,

10. DE SOUZA PINTO, Julio Roberto; MIGNOLO, Walter D. A modernidade é de fato universal?
Reemergência, desocidentalização e opção decolonial. Civitas – Revista de Ciências Sociais [In-
ternet], v. 15, n. 3, p. 381-402, p. 385, 2015.
11. KOSOP, Roberto José Covaia; LIMA, José Edmilson de Souza. Giro Decolonial e o Direito: Para
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12. COSTA, Pietro. Discurso jurídico e imaginación. In: PETIT, Carlos (Ed.). Pasiones del jurista:
amor, memoria, melancolía, imaginación. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,
p. 163.

174
Cap. 6 • CONSTITUCIONALISMO E GÊNERO EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

as crenças epistemológicas da cultura moderna. Até a primeira metade


do século XX ganha êxito e desenvolvimento a cultura mais sofisticada
do neopositivismo, sob o panorama dos avanços das ciências físico-na-
turais. O discurso do saber visa conquistar um fundamento epistemoló-
gico que se identifica com o rigor dedutivo das argumentações, deven-
do ser submetido a uma esfera de verificabilidade real de um discurso
“científico” que carrega em si a pretensão de verdade. O paradigma lógi-
co – positivista ou cientificista – requer que o discurso científico não seja
contaminado pelos elementos que circundam a esfera da paixão, da va-
loração e da imaginação. Em outras palavras, o discurso científico deve
estar livre das impurezas da esfera da subjetividade. O saber jurídico, no
paradigma lógico positivista, está impregnado pela ideia de um saber
que se quer lógico, descritivo, objetivo, abstrato, geral e verdadeiro para
poder reconhecer-se científico. O saber jurídico, nesse contexto, se julga
capaz de, por meio de seu discurso e sua linguagem, descrever o direito
tal como ele é. O saber jurídico, então, se fecha ao mundo imprevisível
da subjetividade.
Assim, a modernidade instituirá o direito como técnica social, au-
tonomizando-o de todo o fundamento e subordinando-o apenas à sua
forma. Pietro Barcellona percebe a ligação estreita entre a subjetividade
abstrata da modernidade, ou seja, a irrelevância das relações pessoais,
das diferenças, a abstração das condições particulares de cada um, e o
fenômeno das codificações oitocentistas que por sua vez se derivaram
das primeiras declarações de direito. A construção da subjetividade jurí-
dica abstrata é condição para a aquisição e circulação de direitos e tam-
bém para a aquisição e circulação de mercadorias. A abstração jurídica
sanciona e exprime o significado da liberdade individual13.
A separação entre o sujeito (conhecedor) e o objeto a ser conhecido
implica na idéia de que o sujeito (e seus valores) não tenha nenhum tipo
de influência sobre o que se quer descrever (o objeto), assim sendo, as
definições jurídicas se pretendem pragmáticas e neutras. Kelsen repre-
senta o ápice deste pensamento. O seu objetivo, na realidade, era evitar
que o direito pudesse ser utilizado à conveniência de ideologias políti-
cas (em especial na justificativa do regime nazista), no entanto, como
se sabe, sua teoria não consegue tornar-se imune a este tipo de utiliza-
ção, nem consegue se estabelecer, em realidade, como ideologicamente

13. BARCELLONA, Pietro. Diritto senza società: dal disincanto all’indiferenza. Bari: Dédalo, 2003,
p. 57.

175
Amélia Sampaio Rossie Erika Carvalho Ferreira

neutra. O professor argentino, Luis Alberto WARAT14, observa com pre-


cisão que a tentativa de neutralidade das ciências e em especial da ciên-
cia do direito, carrega em si já um tipo de posição ideológica, ou seja, a
ocultação da própria ideologia.
A necessidade de se diferenciar o conhecimento científico do conhe-
cimento ideológico, entendido este como um saber pré-científico, foi se-
gundo Warat, uma das mais eficazes exigências para um controle episte-
mológico da ciência. Hans Kelsen, conforme comentado, procurou aten-
der a necessidade deste controle epistemológico para o conhecimento
jurídico estabelecer-se como ciência, e com este objetivo, combateu os
argumentos teológicos, metafísicos e os preconceitos jusnaturalistas,
estabelecendo uma pureza metódica para o conhecimento científico do
direito positivo, a partir daí, imune as manipulações e distorções ideo-
lógicas.
Os discursos da ciência e da epistemologia jurídica forjam o que
Warat denominou “senso comum teórico dos juristas”, que, na verda-
de, serve apenas para instrumentalizar um determinado poder social,
afastando o jurista do conhecimento sobre o papel do direito e do seu
conhecimento na sociedade. A instauração de critérios que demarcam o
que deve ou não ser considerado saber científico camufla uma tentativa
ideológica de eliminar a própria ideologia. Segundo Warat,
Assim, procuraram opor o conhecimento científico às representações
ideológicas e as representações metafísicas, distinguindo a verdade do
erro, distanciando o sentido referencial de suas evocações conotativas,
como também diferenciando as opiniões comuns (a dóxa) do conheci-
mento científico (a episteme). Esta última distinção abrange todas as
anteriores, já que a dóxa estaria constituída por um conglomerado de
argumentos verossímeis, formados a partir das representações ideo-
lógicas, das configurações metafísicas e das evocações conotativas. O
conhecimento científico seria o saldo, logicamente purificado, de todos
esses fatores. Ora, quando observamos a forma em que esta concepção
de racionalidade científica é apropriada na práxis do direito, verifica-
mos como nenhum dos fatores, aparentemente rejeitados, deixa de
manifestar-se. E o conhecimento científico do direito termina sendo um
acúmulo de opiniões valorativas e teóricas que se manifestam de modo
latente no discurso, aparentemente controlado pela episteme.15

14. WARAT. Luis Alberto; CARDOSO, Rosa Maria. Ensino e saber jurídico: epistemologia e teoria
kelseniana. Rio de Janeiro: Eldorado Tijuca, 1977, p. 33.
15. WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e o senso comum teórico dos juristas. In: _____. Epistemolo-
gia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, v. 2, p. 30.

176
Cap. 6 • CONSTITUCIONALISMO E GÊNERO EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

O espírito de neutralidade da ciência e, especialmente, da ciência


do direito se acomoda na ideia de que esta deve limitar-se a descrever o
direito a fim de evitar a subjetividade no conhecimento do objeto. É uma
noção de ciência baseada no conhecimento objetivo e avalorativo.
Barcellona observa que, da mesma maneira que o ser humano, tam-
bém o direito se emancipa das hipotecas do mundo clássico, do fun-
damento divino, da força e da justiça. O iluminismo e o individualismo
liberal realizaram no plano filosófico, político e econômico a liberação
do ser humano de seus próprios vínculos, colocando nele mesmo a jus-
tificação das suas ações. No mesmo sentido, o direito se emancipa de
seus fundamentos e de seu fim, que não é a realização de uma ordem jus-
ta, mas permitir que os indivíduos livres realizem a sua própria ordem.
A teoria kelseniana da validade e da autossuficiência do ordenamento
chancela no plano jurídico esta suposta neutralidade. Tal neutralidade,
no entanto, é indício da função do direito formal na nova ordem, ou seja,
sancionar o valor fundante da sociedade moderna, o valor da liberdade
individual que é, na realidade, também a chancela da liberdade econô-
mica. A função do direito é então a de dar vazão ao livre mercado e à livre
competição.
A vinculação entre o positivismo como doutrina geral, mas, espe-
cialmente na vertente jurídica, e o modelo oitocentista de Estado de di-
reito torna patente a ideia de que a separação entre o campo científico
e o campo valorativo ou ideológico serviu também para implementar a
“ideologia liberal” e naturalizar o avanço do capitalismo nascente na-
quele contexto. Assim, a modernidade e sua racionalidade intrínseca
estabeleceram um modelo de Estado, de direito e de conhecimento cien-
tífico que acabou por instrumentalizar a ideologia própria do liberalis-
mo econômico dos séculos XIX e XX, não sem o auxílio fundamental do
pensamento e da lógica do positivismo jurídico. À medida que o feuda-
lismo entra em declínio, surge uma nova classe, a burguesia. Esta nova
classe, em ascensão, necessitará, para poder estabelecer um novo modo
de produção em gestação (o capitalismo), um conjunto de regras gerais
e impessoais que lhes garantam um mínimo de segurança para que pos-
sam comercializar e produzir, o que não havia no medievo e que será
propiciado pelo implemento do Estado Nacional (inicialmente de cunho
absolutista). Max Weber, na sua obra Economia e Sociedade, esclarece
que o Estado Nacional repousa sobre um funcionalismo especializado
e um direito racional que se origina, nos seus aspectos formais (pensa-
mento formal-jurídico), do Direito Romano. Para o sociólogo alemão, “é
o Estado nacional fechado que garante o desenvolvimento do sistema

177
Amélia Sampaio Rossie Erika Carvalho Ferreira

capitalista. O capitalismo não pode prescindir de um direito previsível,


como o funcionamento de uma máquina”, o Estado moderno do ponto
de vista sociológico é uma verdadeira empresa. A aliança entre o Estado
e a Jurisprudência formal favoreceu grandemente o capitalismo. A legi-
timidade da dominação neste tipo de Estado reforça o que Weber de-
signou de dominação legal-racional, a crença na validade dos estatutos
legais, a dominação em virtude da legalidade, própria da burocracia no
Estado. Para Weber, a burocracia é o meio pelo qual a racionalização se
mantém presente no Estado moderno (área pública) e na empresa capi-
talista (área privada). A burocracia implica o predomínio do formalismo,
das regras escritas gerais e abstratas, da impessoalidade, da divisão do
trabalho (separação entre o quadro administrativo e os meios de produ-
ção), das estruturas de hierarquia.16

3. GÊNERO E COLONIALIDADE
Seja identificando-o como um movimento social, seja como uma te-
oria, o feminismo já teve, e ainda tem diversas formas de identificar o
seu “sujeito” ou de definir a temática segundo as quais organiza sua luta
ou teoria: do feminismo que dependeu da essência de certa “identidade
feminina” ou de uma “mulher” que identifica o sujeito em nome de quem
se fala, ao feminismo que, diante da crítica realizada por feministas ne-
gras17 e/ou da crítica do transfeminismo18 e da teoria queer,19 fala de
“mulheres”, abrandando o discurso universalizante; do feminismo que
de um lado tem como foco o sistema patriarcal, ao feminismo que tem
o gênero como categoria. Tal concepção do movimento/teoria feminista
que deriva de um “sujeito” tem sido discutida não apenas no sentido de
que as universalizações em torno dos termos mulher ou mulheres mis-
turam-se à realidades heterogêneas20 ou mesmo excluem determinados

16. Para esclarecimentos maiores consultar: ROSSI, Amélia Sampaio. Neoconstitucionalismo: ul-
trapassagem ou releitura do positivismo jurídico? Curitiba: Juruá, 2011 p. 31-54.
17. Algumas das referências de destaque do feminismo negro e sua crítica ao feminismo branco e
europeu estão, dentre outras, em Angela Davis (2016), Bell Hooks (1981, 1990, 1995, 2000),
Lélia Gonzalez (1984, 1988), Luiza Bairros (1995), Patricia Hill Collins (2000), Aparecida Sue-
li Carneiro (2003, 2011).
18. Em relação ao transfeminismo, vide trabalho de Jaqueline Gomes de Jesus (2012) e seu traba-
lho com Hailey Alves (2010) e a dissertação de Viviane Vergueiro (2015).
19. Sobre queer numa perspectiva decolonial, dentre outros, Larissa Pelúcio (2012), Pedro Paulo
Pereira (2015), Hija de Perra (2014) e Viviane Vergueiro (2015).
20. BADINTER, Elisabeth. Rumo equivocado: o feminismo e alguns destinos. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 2005, p. 23.

178
Cap. 6 • CONSTITUCIONALISMO E GÊNERO EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

grupos de mulheres bem como suas realidades, necessidades e formas de


produzir conhecimento, mas também porque “o próprio sujeito das mu-
lheres não é mais compreendido em termos estáveis e permanentes”21.
Dessa forma, o que significa usar o gênero como uma categoria de
luta política ou de uma forma de se produzir conhecimento? Como com-
preender a produção teórica feminista com base no uso do termo gê-
nero? A intenção do uso da categoria gênero no lugar da categoria sexo
tem uma função de rejeitar a imposição advinda de um determinismo
biológico sobre o que seria “ser homem” e “ser mulher”. Ao utilizar o
gênero e destacar o caráter social e construído do gênero, a intenção é
de questionar a posição da mulher em sociedade e, mais do que isso, é
questionar o “ser mulher”.
Assim, o gênero é tomado como questionamento, como categoria
que viabiliza colocar em questão os sujeitos- como sujeitos de cultura,
como sujeitos históricos, como sujeitos sociais, como sujeitos políticos e
como sujeitos de direitos. Tais intenções ou movimentos, contudo, ainda
não nos deslocam totalmente da criação de sujeitos universais e, diante
disso, esse uso do gênero como categoria de análise é aqui submetido a
uma virada decolonial. Afinal, o que significa a ideia de um “tornar-se
mulher”22 baseada na realidade natural do sexo, em uma espécie de opo-
sição corpo/mente ou corpo/alma?
O que significa usar o gênero como categoria de análise decolonial?
Sustenta-se aqui a posição de ser o gênero uma categoria de análise ca-
paz de desestruturar o que é “ser homem” ou “ser mulher” apenas quan-
do percebido não como uma categoria primária que secundariza a raça,
mas como categoria junto a ela produzida.
Desempenhar um estudo decolonial passa por entender, diferente
do que passamos a chamar de pós-colonialismo, que tal forma de realizar
estudos está ligada à história da América Latina. Assim, nesse contexto,
fala-se em continuidade das relações coloniais de poder- a colonialidade
do poder- “através das categorias de gênero, raça e classe” e que não
vivemos um momento pós experiência do colonialismo: a colonialidade
continua se fazendo presente23 na relação entre os Estados, entre países

21. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 18.
22. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
23. LIMA COSTA, Claudia de. Feminismos descoloniais para além do humano. Estudos Feministas,
v. 22, n. 3, p. 929-934, 2014.

179
Amélia Sampaio Rossie Erika Carvalho Ferreira

e sujeitos e entre os sujeitos. Colonialidade que é “de poder, saber, ser,


natureza e linguagem, sendo também constitutiva dessas”24.
Não restam dúvidas de que a perspectiva decolonial, particularmen-
te seu olhar sobre a raça e a criação da raça como produto da colonia-
lidade europeia na América Latina, é fundamental para compreender a
binaridade hierarquizada do sistema então criado e que se organiza até
hoje. No entanto, a aposta apresentada por autores como Anibal Quija-
no, de que a raça é a categoria que forma o sistema-mundo da colonia-
lidade, é insuficiente e mesmo “totalizante” ao invisibilizar o gênero 25,
além de essencialista naturalizadora, pois toma o sexo como dado da
natureza, organizando sempre da mesma forma as relações entre os su-
jeitos. É nesse contexto que passa a ser realizada uma análise feminis-
ta da colonialidade, ou um feminismo essencialmente decolonial, para
pensar como as normas de gênero fazem a colonialidade do poder, do
ser e do saber. Torna-se, necessário falar da colonialidade do gênero,
passando a pensar que tanto o gênero é informado pela raça, quanto a
raça é informada pelo gênero. Entende-se, dessa forma, não ser possível
tratar de gênero sem falar da colonialidade, nem pensar na colonialida-
de sem incluir o gênero. Isso significa que também não se pode partir de
perspectivas em que o gênero passa a ser a categoria explicativa central
e principal enquanto que a raça é algo que estabelece particularidades
dentro de um suposto sistema primário de opressão viabilizado pelo
gênero26. Não é esse o objetivo de inversão explicativa dos sistemas de
opressão, que se pretende com uma episteme feminista decolonial. Por-
tanto, talvez o questionamento inicial deva ser: Não seria o gênero uma
categoria moderna e ocidental? É possível encaixá-lo como categoria
quando o objetivo é traçar um estudo decolonial? Estudos feministas e
de gênero localizados além do discurso moderno-ocidental produziram
e continuam a produzir trabalhos que repetidamente mostram como
povos originários, indígenas, grupos sociais e comunitários colonizados
não possuíam (e ainda não possuem) uma estrutura hierarquizada de
gênero como a que consolidou na colônia por meio da metrópole.27

24. LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo decolonial. Revista de Estudos Feministas, v. 22, n. 3,
p. 940, 2014.
25. MENDOZA, Breny. La epistemología del sur, la colonialidad del género y el feminismo lati-
no-americano. In: Yuderkys Espinosa Minoso (Org.). Aproximaciones críticas a las prácticas
teórico-políticas del feminismo latinoamericano. Buenos Aires: En la Frontera, 2010, p. 24.
26. ESPINOSA-MIÑOSO, Yuderkys. Una crítica descolonial a la epistemología feminista crítica. El
Cotidiano, marzo-abril, p.11-12, 2014.
27. Dentre estes, ver os trabalhos de Oyèrónké (1997; 2004) e os de Segato (1986; 2005; 2013a).

180
Cap. 6 • CONSTITUCIONALISMO E GÊNERO EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

Tais pesquisas apontam como a cultura desses povos, muitas vezes


possuía grande transitoriedade das posições de gênero, uma relativa
igualdade, uma divisão de tarefas que não coincide com o que veio a ser
a divisão sexual do trabalho, um respeito pela homossexualidade, iden-
tidades de gênero mais fluidas e não decorrentes do sexo, divergindo
da duplicidade homem-mulher. É o exemplo da construção de gênero
dos povos latino-americanos, em que concepções múltiplas ou duais são
substituídas pelo binarismo colonial. Ainda que nessas culturas haja, em
sua maioria, as chamadas “divisões” dos papéis entre “machos” e “fême-
as”, a partir de alguma evidência biológica, isso não leva à consequência
da hierarquia de gênero binário, já que essas divisões ou são duais28 ou
funcionam de modo assimétrico, mas não hierárquico29.
Ao utilizar exemplos como esses e fazer tais referências não se ob-
jetiva questionar se havia ou não uma compreensão de gênero pré-colo-
nial, ou se o colonialismo idealizou ou não a “mulher” e as diferentes for-
mas de estudar o gênero. Essas referências são essenciais para que haja
percepção de que a colonialidade/modernidade entrega o que já havia
retirado, como destaca Rita Segato, povos que possuíam outro fazer do
gênero têm suas redes de relações que funcionam de modo dual ou múl-
tiplo esgarçadas pela violência colonizadora. Uma normatividade rígida
de gênero, centrada na reprodução e na domesticidade e feita contra os
males de uma relação “desviante” em termos de gênero e sexualidade,
faz parte do conjunto racista da colonialidade e, uma vez imposta como
ideal e parâmetro de relações, modifica as conformações dos coloniza-
dos, fortalecendo estruturas e hierarquias de gênero que tinham outras
dinâmicas.
Agora, outras teorias e políticas querem introduzir novas formas
de compreender o gênero, hostilizando violências e utilizando das desi-
gualdades de gênero presentes entre os povos indígenas para expandir
a “proteção das mulheres”, o que está acontecendo é um “entroncamento
patriarcal”30 em que “as relações de gênero internas nos povos indígenas
sofrem interferências de cultura ocidental ao redor. Ademais, identificar

28. SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulá-
rio estratégico descolonial. E-cadernos CES (Online), v. 18, p. 1-5, 2012.
29. GARGALLO, Francesca. Feminismos desde Abya Yala: ideas y proposiciones de las mujeres de
607 pueblos en nuestra América. Ciudad de México: Editorial Corte y Confección, 2014, p. 44.
30. SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulá-
rio estratégico descolonial. E-cadernos CES (Online), v. 18, p. 1-5, 2012.

181
Amélia Sampaio Rossie Erika Carvalho Ferreira

outras formas do fazer o gênero nos faz perceber que novas percepções
de gênero que o discurso feminista quer oferecer não são novidade.
Uma análise decolonial pressupõe pensar como raça e gênero (re)
produzem-se reciprocamente nessa construção moderna binária. Em
vista disso utilizar o gênero como uma categoria de análise em um tra-
balho brasileiro e latino-americano precisa se transformar em usar o
gênero como categoria da análise decolonial: mais do que falar de in-
terseccionalidade de raça, classe e gênero, é necessário falar de análi-
se decolonial: mais do que falar de interseccionalidade de classe, raça
e gênero, é necessário de estudar como essas categorias opressivas
funcionam criando experiências diferentes. Trata-se de analisar como
tais categorias, trabalhando em conjunto, são ao mesmo tempo causa
e efeito da criação dos conceitos uma das outras. Dessa forma, significa
dizer que a maneira como compreendemos o gênero depende de como
entendemos a raça e a classe, e igualmente no sentido contrário. Passa
por refletir como “categorias de branquitude e negritude, masculini-
dade e feminilidade, trabalho e classe passara a existir historicamente
desde o início”31.
Utilizando como base a produção do “outro” como inferior, o pen-
samento colonial, eurocêntrico e antropocentrado funciona por meio
das relações hierarquizadas que criam e escondem tal criação com pri-
vilégios de essência ou natureza, atuando em sua dicotomia principal,
conforme dispõe Maria Lugones: a de humanos e não-humanos. Lugo-
nes trata de uma desumanização constitutiva do que vem a ser colonia-
lidade do ser. Processo que não é apenas uma classificação de “povos
em termos de poder e gênero, mas também o processo de redução ativa
das pessoas, a desumanização que as torna aptas para a classificação,
o processo de sujeitificação e a investida de tornar o/a colonizado/a
menos que seres humanos” 32. Ambas as esferas formam a hierarquiza-
ção binária moderna que atribui (ou não) humanidade aos indivíduos e
constitui um menos ou não-humano, excluível, categorizával, explorável.
Especialmente quando tais esferas são transformadas em discursos bio-
lógicos/científicos utilizados para instaurar e manter ao mesmo tempo
tal hierarquização.”[N]o mundo da modernidade não há dualidade, há

31. MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campi-
nas: Unicamp, 2010, p. 39.
32. LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo decolonial. Revista de Estudos Feministas, v. 22, n. 3,
p. 939, 2014.

182
Cap. 6 • CONSTITUCIONALISMO E GÊNERO EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

binarismo”33. Ainda, se nesse mundo, ou nos saberes do mesmo, não há


espaço para as relações duais34, quem dirá para pensar amplamente nas
relações de gênero. Desamarrar as formas de poder e saber que esse sis-
tema nos entregou é fundamental para um pensamento que se pretenda
expansivo. À vista disso, tem-se urgência de que, para pensar os signifi-
cados do “humano”, é necessário ponderar o gênero dentro da perspec-
tiva decolonial que reconhece a raça como uma das principais categorias
definidoras e hierarquizantes do ser humano.
Nesta senda, não se faz possível pensar que gênero signifique sem-
pre a mesma coisa35, signifique sempre as mesmas formas de relações,
nos moldes de uma dominação patriarcal e exclusivamente masculina.
Aprofundar o gênero como performatividade e relacionalidade com-
preende perceber a multiplicidade do fazer gênero fora do mundo pós-
-moderno e ocidental. Porém, isso não quer dizer que esse fazer seja ex-
clusivamente binário, ou que sendo binário seja sempre com caráter de
dominação, tomado como organização linear entre sexo-gênero. O que
Connell e Pearse36 chamam de “arena reprodutiva” represente um ponto
comum de significação é variável. Logo, a função reprodutiva e da posi-
ção ocupada por cada indivíduo nessa função não decorrem significados
imediatos necessários ou universais e não decorre, obrigatoriamente,
uma significação por meio de dominação ou poder. Se utiliza do gênero
como forma de (re)significação de poder. Mas, em uma virada decolo-
nial, é preciso ressaltar que essa operação é resultado do colonialismo e
é parte da colonialidade que fica como legado.

4. CONSTITUCIONALISMO, GÊNERO E COLONIALIDADE


O constitucionalismo como teoria ou movimento doutrinário es-
tabeleceu a necessidade e garantiu a existência de limites jurídicos ao
exercício do poder político, e, consequentemente, estruturas de garantia
da liberdade por meio de técnicas e mecanismos de limitação do poder.

33. SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulá-
rio estratégico descolonial. E-cadernos CES (Online), v. 18, p. 1-5, 2012.
34. Sobre como a configuração da relação entre os sujeitos se dá de modo não necessariamente
binário e hierarquizado e com significado de importância e poder em ambos os espaços pú-
blico e privado, as obras de Rita Segato (2015) e de Marilyn Strathern (2006).
35. STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a
sociedade na Melanésia. Campinas: Unicamp, 2006, p. 77.
36. CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. São Paulo: NVersos,
2015, p. 56.

183
Amélia Sampaio Rossie Erika Carvalho Ferreira

Assim o constitucionalismo representou um movimento cultural e tam-


bém político, próprio do mundo moderno, do liberalismo e da filosofia
da Ilustração. O “constitucionalismo liberal” caracterizou-se, em fins do
século XVIII, pela criação de Constituições escritas cujo objetivo princi-
pal era estabelecer um equilíbrio entre Poder e Liberdade.
As Constituições da época preocupavam-se em abrigar mecanismos
de contenção do poder e, consequentemente, de garantia das liberda-
des que começavam a ser formalmente reconhecidas. O mecanismo de
separação de poderes e as primeiras garantias de direitos individuais
de liberdade, como já insistentemente reafirmado pela doutrina, de-
terminavam o próprio conteúdo e identidade da Constituição. A ordem
jurídica das sociedades modernas do capitalismo concorrencial diferiu
das ordens anteriores pelo seu projeto de exatidão, sistematicidade e
calculabilidade. O direito moderno foi fruto de uma construção, legisla-
do pelo Parlamento e interpretado pelos tribunais. A exigência de pre-
visibilidade inerente ao tráfego de mercadorias do sistema econômico
fixa a ideia da calculabilidade e previsibilidade dos riscos e esta, a de
segurança jurídica.
Nesta perspectiva é importante demarcar o conteúdo eurocêntrico
do próprio direito constitucional e o contexto histórico de nascimento
deste movimento marcado pela ascensão de um grupo de homens abs-
tratamente considerados iguais e que protagonizam a construção de
uma sociedade formalmente democrática estruturada em grandes ex-
clusões.
Segundo Garay Montañez37, o constitucionalismo moderno nasce
eurocentrado e incorpora as exclusões e contradições que vão marcar o
desenvolvimento da sociedade da época. Assim,
Si atendemos a la doctrina dominante, constataremos que el constitu-
cionalismo y la idea de Constitución se enuncian como categorías uni-
versales en un momento histórico determinado: en el siglo XVIII y en un
espacio concreto: Occidente. Así, vemos que la doctrina ubica los prece-
dentes u orígenes del constitucionalismo en la Ilustración que ocurre
cuando, en palabras de Kant (1990), el hombre sale de “su minoría de
edad. (...). El “hombre”, el pilar del pensamiento ilustrado, era aquel in-

37. GARAY MONTAÑEZ, N. Aportes del pensamiento decolonial en la investigación y enseñanza


del derecho constitucional. In: Tortosa Ybáñez, María Teresa; Grau Company, Salvador; Álva-
rez Teruel, José Daniel (Coord.). XIV Jornadas de Redes de Investigación en Docencia Universi-
taria. Investigación, innovación y enseñanza universitaria: enfoques pluridisciplinares. Alacant:
Universitat d’Alacant, Institut de Ciències de l’Educació, 2016, p. 813-828.

184
Cap. 6 • CONSTITUCIONALISMO E GÊNERO EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

dividuo con autonomía y capacidad para ejercer su libertad, los iguales


eran aquellos hombres blancos, propietarios. Estas condiciones le da-
ban la posibilidad de acceder al conocimiento y a un pacto social entre
iguales. Quienes no cumplían estas condiciones no podían ser iguales y
no serían sujeto de derechos.38
As Américas portuguesa e espanhola herdaram o constitucionalis-
mo ocidental em sua estrutura e com a adoção de seus sujeitos de direi-
tos não obstante, enquanto se dava a construção da modernidade, o que
acontecia em relação às colônias na América não era exatamente uma
história de conquista de direitos mas de extermínio e construção de in-
visibilidades. GARAY MONTAÑEZ estabelece questões intrigantes e sem
resposta que levam à reflexão de algumas contradições.
¿Mientras Maquiavelo pensaba en el poder, qué pasaba en los pueblos
invadidos por Europa? En tanto Bodin reflexionaba sobre la forma de
ejercer el poder, acerca de la idea de soberanía y en la familia patriarcal,
¿qué ocurría en cuanto al poder y la familia en el continente americano
colonizado por Europa? En concreto, ¿con sus habitantes nativos y de
origen africano esclavizados? Mientras que Descartes y Poullain de la
Barre proponían el camino hacia la revolución científica y la igualdad,
¿por qué ello no alcanzaba a los habitantes de los pueblos colonizados?
¿Por qué los hombres y las mujeres indígenas y negras no estaban in-
cluidos en la retórica de la Modernidad?39
Como se sabe, na perspectiva eurocêntrica e dominante que dá fun-
damento teórico aos direitos humanos, estes teriam se originado, de for-
ma mais singular, com o despertar da modernidade à medida em que as
fundamentações teocráticas e teocêntricas perdem o sentido na cons-
trução mais sólida das noções de poder e suas respectivas justificativas e
também na compreensão do papel do individuo na sociedade. Seria por
meio do desenvolvimento da Instituição política e jurídica do Estado,
em seus vários modelos, que o reconhecimento do homem como sujeito
de direitos vai se estabelecer e se aperfeiçoar. Nesta perspectiva os di-
reitos humanos fundamentais teriam sido fruto da ambientação política
e jurídica da modernidade europeia, não se tomando em consideração
a existência de outros sujeitos que não o indivíduo ideal e abstrato, de
outros saberes e de outras formas de associação e estruturas de poder.
Assim, para esta visão dos direitos humanos fundamentais, dentro
desta ambientação localizada espaço-temporalmente, em fins do século
XVIII estão estabelecidos os ingredientes que darão identidade ao caldo

38. Ibidem, p. 819.


39. Ibidem, p. 814.

185
Amélia Sampaio Rossie Erika Carvalho Ferreira

político e ideológico da modernidade. A afirmação de um Direito Natu-


ral de cunho racionalista propõe a ideia da existência de determinados
princípios universais e imutáveis de justiça, dados a conhecer ao homem
por meio da razão e do instintivo e natural reconhecimento do justo e
do injusto, do bem e do mal. O direito natural, neste contexto, pregará
uma vinculação entre norma e valor, entre direito e moral, embora ainda
com uma fundamentação metafísica. Paradoxalmente, porém, é possí-
vel observar que o Estado moderno foi fruto de um intenso processo de
secularização, sistematização e positivação do direito que privilegiou o
positivismo em detrimento do jusnaturalismo.40
A visão jusnaturalista de um direito racional e sistêmico será trans-
posta e positivada para os códigos e Constituições escritas de tal modo
que o fundamento do direito logo deixará de ser buscado na razão e
passará a encontrar-se na vontade do legislador. As sementes de um
legalismo exacerbado começam a ser plantadas a partir deste desen-
volvimento. No século XVIII, século das luzes, será marcada finalmen-
te, a hegemonia da classe burguesa. Nele, a razão (calculista e abstrata)
substituirá a fé do medievo, e o poder ganhará uma legitimação laica,
secularizada. A razão se transforma em instrumento para a busca da
verdade e fundamento da liberdade de escolha do indivíduo41.
Assim, esta racionalização é conexa à secularização intensa, como
desencanto do mundo. Surgirão as concepções democráticas da sobe-
rania. O relato político moderno, conforme se estabelece nas perspecti-
vas contratualistas, encontrará no indivíduo o ponto de partida das suas
construções. É justamente nesta faceta do Estado moderno (o Estado
Liberal de Direito) que, teriam nascido originalmente e de maneira mais
fortemente marcada, os direitos fundamentais do homem, com atribu-
tos de universalidade e inalienabilidade por se tratarem de reconheci-
mento, agora positivado, de prerrogativas dirigidas ao homem, participe
do gênero humano. No entanto, frise- se, em uma perspectiva crítica, é
o homem individual e abstrato o destinatário destes novos direitos. Os
chamados direitos de primeira geração ou dimensão são consignados
pelo prisma da autonomia individual. O poder politico, sob a Ilustração,
é visto como o grande algoz da liberdade e a preocupação naquele con-
texto é traçar limites ao exercício do poder do Estado.

40. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hanna
Harendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 16.
41. BARCELLONA, Pietro. Diritto senza società: dal disincanto all’indiferenza. Bari: Dédalo, 2003,
p. 56.

186
Cap. 6 • CONSTITUCIONALISMO E GÊNERO EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

As primeiras Constituições escritas da época (v.g. a Constituição


americana de 1787) são vistas como instrumentos de controle e equi-
líbrio entre poder e liberdade. Assim se apresentam como documentos
preocupados em estabelecer mecanismos de contenção ao exercício do
poder como adoção do princípio da separação de poderes e de reconhe-
cer algumas esferas de autonomia privada nas quais o poder do Estado
encontra limites de interferência pela afirmação das liberdades indivi-
duais. É oportuno sublinhar-se que deste triunfo do império da lei, da
centralidade jurídica do direito privado, do reconhecimento e ascensão
dos direitos de liberdade individual e da liberdade de participação polí-
tica, se encontram, naquele momento, excluídos os interesses das clas-
ses trabalhadoras e das mulheres no sentido de obtenção de tratamen-
to igualitário nas mais variadas esferas, mas, especialmente, na esfera
política, em que ambos são vistos como portadores de uma capacidade
diminuída, ou melhor, inexistente, de participação política por serem
dependentes dentro do sistema que se desenvolve. É possível, inclusive,
afirmar, segundo Luis Felipe MIGUEL, que o feminismo, no mundo oci-
dental, surgirá como um filho indesejado da Revolução Francesa. Não
é despiciendo lembrar que Olympe de Gouges escreve a Declaração de
Direitos da Mulher e da Cidadã, na qual transcreve para o feminino a de-
claração de Direitos do Homem e do Cidadão, e acrescenta em seu artigo
X, ao tratar da liberdade de expressão e opinião, que já que a mulher
pode subir ao cadafalso (o que será fatalmente o seu destino) poderá
igualmente subir à Tribuna42.
Este é, em linhas gerais, o modelo de direitos da modernidade que
passa a ser “exportado” para o mundo, como o modelo ideal e único,
não obstante não leve em conta boa parte da população mundial não
ocidental. QUIJANO escreve sobre o domínio da modernidade racional
europeia que se estabeleceu na ocultação do “outro” e também de outros
saberes, outras culturas e outras formas de legitimar o poder.
Durante el mismo periodo en que se consolidaba la dominacion colo-
nial europea, se fue constituyendo el complejo cultural conocido como
la racionalidad/modernidad europea, el Cual fue establecido como un
paradigma universal de conocimiento y de relacion entre la humanidad
y el resto del Mundo. Tal coetaneidad entre la colonialidad y la elabora-
cion de la racionalidad/modernidad no fue de ningun modo accidental,
como revela el modo mismo en que se elaboró el paradigma europeo

42. MIGUEL, Luis Felipe e BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução. 1. ed. São Paulo:
Boitempo, 2014, p. 20.

187
Amélia Sampaio Rossie Erika Carvalho Ferreira

del conocimiento racional. En realidad, tuvo implicaciones decisivas en


la constitucion del paradigma, asociada al proceso de emergencia de las
relaciones sociales urbanas y capitalistas, las que, a su turno, no podrian
ser plenamente explicadas al margen del colonialismo, sobre America
Latina en particular. 43
Em outras palavras, a perspectiva decolonial, ao apontar para o des-
cortinamento da dominação do “outro” não europeu e da universalidade
do eurocentrismo como modo de ser, de saber e de poder que ocultou
o diferente nestas dimensões e assim subjugou-as, pode mostrar as in-
consistências da compreensão dominante de direitos humanos hoje, e
consequentemente, de sua baixa densidade de aplicação concreta.
A ideia de que com fase pós colonial (marcada pela independência
das colônias) e com a ascensão dos Estados-Nação, também na periferia
do “mundo, se demarcaria a evolução da modernidade, apenas encobre
outras formas de dominação que se perpetuam com o desenvolvimento
do sistema capitalista, ou seja, a transição do colonialismo moderno à
colonialidade global44
De ahí que una implicación fundamental de la noción de ‘colonialidad
del poder’ es que el mundo no ha sido completamente descolonizado.
La primera descolonialización (iniciada en el siglo XIX por las colonias
españolas y seguida en el XX por las colonias inglesas y francesas) fue
incompleta, ya que se limitó a la independencia jurídico-política de las
periferias. En cambio, la segunda descolonialización –a la cual nosotros
aludimos con la categoría decolonialidad – tendrá que dirigirse a la he-
terarquía de las multiples relaciones raciales, étnicas, sexuales, episté-
micas, económicas y de género que la primera descolonialización dejó
intactas. Como resultado, el mundo de comienzos del siglo XXI necesita
una decolonialidad que complemente la descolonización llevada a cabo
en los siglos XIX y XX. 45
Assim, a colonialidade do poder expõe o fato de que o fim das admi-
nistrações coloniais não extinguiu a dominação colonial que se perpetua
até hoje por meio do controle da economia, da episteme, das subjetivi-
dades, natureza e recursos naturais, do gênero e da autoridade pelos
países de capitalismo central.

43. QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad/Racionalidad. In: H. Bonilla (Comp.) Los Con-
quistados: 1492 y la población indígena de las Américas. Quito: FLACSO/Ediciones Libri Mun-
di, 1992, p. 437-449.
44. CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. 2007. Prólogo. Giro decolonial, teoría crí-
tica y pensamiento heterárquico. In: _______ (Ed.). El giro decolonial: Reflexiones para una di-
versidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Iesco-Pensar-Siglo del Hombre
Editores, 2007, p. 11.
45. Ibidem, p. 11.

188
Cap. 6 • CONSTITUCIONALISMO E GÊNERO EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível afirmar que inúmeros movimentos, sejam eles políticos,
teóricos ou sociais, vêm transformando a geografia do conhecimento na
medida em que se estabelece um pensamento fronteiriço. Trata-se de
um conhecimento produzido a partir das bordas, sugerindo outro modo
de pensar, uma nova consciência crítica que rompe com o pensamento
hegemônico ocidental. O feminismo decolonial representa então um im-
portante giro epistemológico ao propor uma revisão crítica das estrutu-
ras de dominação do conhecimento e dos poderes por ele instaurados.
O constitucionalismo moderno, como movimento político, jurídico e cul-
tural que instaurou a consciência moderna da necessidade de Constitui-
ções escritas que instrumentalizassem o governo limitado, não fica de
fora destas críticas ao ser percebido também como um movimento que
invisibilizou a luta por direitos das mulheres, o reconhecimento de sua
igualdade e toda construção intelectual que o embasou e acompanhou.
Enquanto o discurso hegemônico feminista ocidental apaga as expe-
riências de raça/etnia, classe social e posição geográfica das mulheres do
Sul, universalizando-as ou homogeneizando-as culturalmente por meio
da limitação do potencial político dessas mulheres e as subordinando
em relação às mulheres do Norte, o discurso decolonial tem procurado
representar as mulheres do Sul como as “outras” da modernidade, opri-
midas não apenas nas relações de gênero,mas também pelo subdesen-
volvimento do denominado “terceiro mundo”. Tais mulheres, por conse-
quência, são comumente destinatárias de programas, políticas públicas
e projetos para o desenvolvimento que muitas vezes não reconhecem
suas práticas e saberes como uma forma de conhecimento legitimado
para enfrentar as adversidades do cotidiano.
Por fim, o foco na diferença vem trazendo um dos aspectos mais no-
táveis da crítica feminista na era pós-moderna. A diferença de gênero
foi reivindicada no plural, a questão das desigualdades e da opressão
vivida pelas mulheres não se resume ao binarismo homem/mulher, as
reivindicações pela inclusão das categorias de raça, cultura e classe so-
cial passaram a integrar as demandas de uma análise crítica feminista.
A perspectiva decolonial certamente permitiu mudar o olhar sobre as
representações focalizadas na mulher branca, europeia e de classe mé-
dia-alta que não refletia necessariamente as reivindicações das mulhe-
res negras do Norte, das mulheres latinas e de todo o chamado Terceiro
Mundo, fazendo-se presente um pouco por toda a parte, dado o fenôme-
no das migrações e da “nova” divisão internacional do trabalho presente
na contemporaneidade.

189
Amélia Sampaio Rossie Erika Carvalho Ferreira

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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190
Cap. 6 • CONSTITUCIONALISMO E GÊNERO EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

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191
7
MULHER E PODER NO BRASIL
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marques1
e Patrícia Pacheco Rodrigues2

Sumário: 1. Introdução; 2. O princípio da igualdade na Constituição de 1988;


3. Igualdade entre homens e mulheres; 4. Considerações finais; 5. Referências
bibliográficas

1. INTRODUÇÃO
O tema da Mulher e o Poder no Brasil além de ser atual e relevante
traz consigo uma série de inquietações e também discussões, tanto no
campo jurídico, como social. No entanto, o seu enfrentamento é neces-
sário para a busca da igualdade entre os sexos e para a consolidação
do Estado Democrático de Direito, pois ele pressupõe a participação de
todos os cidadãos no processo de tomada de decisão do Estado.
Do ponto de vista jurídico tem-se que o direito à igualdade é asse-
gurado no Brasil, desde a primeira Constituição, qual seja, a de 1824 e
esteve presente em todos os demais Textos Constitucionais. A isonomia
está prevista na Constituição de 1988 em seu art. 5º, que é dividido em
setenta e oito incisos e contém quatro parágrafos e que trata dos direitos

1. Doutora e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do
Programa de Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho e advogada. Currículo lattes:
<http://lattes.cnpq.br/4568093820920860>.
2. Mestranda em Direito pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE) na linha de pesquisa:
justiça e o paradigma da eficiência. Delegada de Polícia Civil em São Paulo. Currículo lattes:
<http://lattes.cnpq.br/5702557396011791>.

193
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marquese Patrícia Pacheco Rodrigues

e deveres individuais e coletivos. O rol de direitos ali presentes é mera-


mente exemplificativo.3
Os direitos individuais são cláusulas pétreas, e como tal não podem
ser abolidos por emenda à Constituição (art. 60, §4º, inc. IV). Limitam
o poder estatal, na medida em que proíbem ingerências “indevidas na
esfera jurídica individual.”4 Constituem-se em uma verdadeira carta de
direitos do cidadão. Houve um significativo aumento da previsão de di-
reitos individuais em relação ao disposto na Constituição de 1967, bem
como dos meios para garanti-los.
A igualdade é assegurada em toda sua amplitude, ou seja, abarca o
seu aspecto formal consistente na impossibilidade de a lei discriminar
por critérios que não sejam legítimos e também o critério material que
se encontra diretamente relacionado com a proteção da dignidade da
pessoa humana e visa a propiciar ao indivíduo condições para que possa
usufruir em igualdade de condições dosdemais bens da vida, tais como:
saúde, educação, moradia, alimentação e trabalho.
O Texto Constitucional expressamente também assegura a igualda-
de entre homens e mulheres nos termos da Constituição. Isso implica
dizer que é autorizado ao Texto Constitucional fazer distinções entre ho-
mens e mulheres com vistas a assegurar a tão almejada isonomia. Nesse
particular, tem-se a obrigatoriedade de prestação de serviço militar ape-
nas para homens, uma reserva de mercado de trabalho para mulheres,
bem como distinção no tocante ao regime de previdência social, princi-
palmente, no que concerne a idade e os anos de contribuição.
Na atualidade, ainda se fazem presente resquícios da cultura pater-
nalista dos séculos passados. Tiveram importantes movimentos femi-
nistas e sociais de apoio a emancipação da mulher, na busca da imple-
mentação da igualdade de fato que ainda não foi concretizada. A história
e a cultura são responsáveis pela desigualdade de gênero, que cresce
onde existem papéis e posturas discriminatórias.
As mulheres ainda aprendem o papel social de submissão, e os ho-
mens o papel de domínio. Tais concepções surgem desde a infância, no
âmbito familiar, do que por disciplinas legais. Portanto, trata-se de um

3. MELLO FILHO, José Celso de. Constituição Federal Anotada. São Paulo: Saraiva. 2. ed., 1986, p.
425.
4. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coim-
bra: Almedina, 2002, p. 407.

194
Cap. 7 • MULHER E PODER NO BRASIL

jogo de poder, e a mulher se mantém na sociedade com menos poder


político, econômico e menos prestígios sociais. O que, inevitavelmente,
vem influenciando na qualidade de vida e no acesso destas aos espaços
de poder.
No momento atual, as distinções normativas com vistas a assegurar
a igualdade ente homens e mulheres, ganha novos contornos na medida
em que as mulheres conquistam cada vez mais espaço no cenário políti-
co e econômico e também em relação ao papel por elas desempenhados
nas Forças Armadas, nas empresas privadas e principalmente no Poder.
Nesse sentido, o presente estudo pretende analisar com acuidade essas
novas nuances no que se refere à isonomia entre homens e mulheres.

2. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988


O princípio da igualdade é assegurado no caput do art. 5º da Cons-
tituição Federal de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza”.A garantia da igualdade é um dos pressupostos
necessários para alcançar uma democracia efetiva. Ela é um dos princí-
pios fundamentais do Estado Democrático de Direito brasileiro, um dos
pilares do arcabouço constitucional.
Num primeiro momento o ordenamento jurídico buscou-se asse-
gurar a igualdade formal, ou seja, a igualdade na lei consistente na ve-
dação de tratamento discriminatório5. Posteriormente passou-se a ga-
rantir a igualdade material, ou seja, “o tratamento uniforme de todos
os homens”6, igualdade de oportunidade em face dos bens da vida. Foi
nesse contexto que foram criadas as ações afirmativas, que são as ações
que visam assegurar, afirmar o princípio da isonomia, cuja modalidade
mais conhecida é o regime de cotas.7São ações que buscam assegurar às
minorias o acesso aos bens da vida, saúde, educação, emprego...
O sistema de cotas já é aplicado no ordenamento jurídico pátrio no
tocante ao acesso às universidades de afro descentes, descendentes de
índios e alunos oriundos de escola pública. Trata-se de um valioso ins-
trumento de inclusão das minorias na sociedade, na medida em que se

5. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo:


Celso Bastos Editor; Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. 2. ed. 1999, p. 48.
6. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros. 22. ed. rev. e
atual. por Samantha Ribeiro Meyer-Pflug, 2010, p. 284.
7. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

195
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marquese Patrícia Pacheco Rodrigues

garante a isonomia.8 Contudo, essas ações devem ser sempre provisó-


rias, pois uma vez alcançada a igualdade de fato, não há mais motivos
para mantê-la. Pelo contrário, se as ações afirmativas forem permanen-
tes elas acabam por violar o próprio princípio da isonomia.
Denominadas também de Discriminação Positiva (Ações Afirmati-
vas) são medidas de enfrentamento a desigualdade para implementar a
igualdade material perante a lei, com a promoção de igualdade de opor-
tunidades por políticas públicas. A atenção na efetivação destas medidas
é essencial para que esse caráter de favorecimento, não gere nos pre-
teridos o sentimento de rejeição e injustiça, mas sim promoção de em-
patia e alteridade. Atuando também na correção de distorções sociais,
“em favor de grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores
condições de competição em qualquer sociedade, com vistas a eliminar
os desiquilíbrios existentes entre estas categorias sociais.”9

3. IGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES


A Constituição Federal de 1988 estando no ápice do ordenamento
jurídico promove uma compatibilidade topográfica das demais normas
com o seu texto. Em geral, cada país tem a vigência e a predominância
de seu sistema jurídico estruturado conforme a sua Constituição. Após
a Segunda Guerra Mundial, devido ao Holocausto, a comunidade jurí-
dica internacional percebeu que se precisava de um comprometimento
com normas acima dos Estados, para proteção dos valores jurídicos.
Com o advento da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948,
houve o fomento à proteção dos direitos humanos, com normas gerais
de critérios amplos, que apontam diretrizes a serem incorporadas pe-
los Estados.
Com vistas a conferir maior efetividade à Declaração, foram cria-
dos em 1966 os Pactos de direitos civis e políticos e de direitos econô-
micos, sociais e culturais. Trazendo eles a ideia de auto aplicabilidade
dos direitos humanos. Como pertencentes a pessoa os direitos civis e
políticos, e no caso dos direitos econômicos, sociais e culturais há ne-
cessidade do Estado de proporcionar tais direitos. Paralelamente a tais
documentos, se percebeu que determinadas categorias de grupos de

8. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coim-
bra: Almedina, 2002, p. 387.
9. NOVAIS, Denise Pasello Valente. Discriminação da mulher e direito do trabalho: da proteção a
promoção da igualdade. 1. Ed. São Paulo, Editora LTR, 2005, p. 37-41.

196
Cap. 7 • MULHER E PODER NO BRASIL

indivíduos, demandavam Convenções especiais, e começaram a serem


criados tratados e convenções voltados a grupos específicos de pesso-
as, ou situações ou contextos específicos, que precisavam ser protegidos
no âmbito internacional, requisitando ainda mais atenção por parte dos
Estados signatários. Referidos documentos internacionais possibilitam
que qualquer país possa aderir e incorporar ao seu direito interno, como
aconteceu no Brasil.
Em conformidade com o disposto nos parágrafos 2º e 3º10 do artigo
5º, conferiu o Supremo Tribunal Federal o status aos tratados de direitos
humanos de norma supralegal11, acima das demais leis, mas abaixo da
Constituição, e apenas aqueles atos que foram aprovados como equiva-
lentes a norma constitucional, ou seja, com quórum de três quintos e
votação em dois turnos pelo Congresso Nacional. As normas que tra-
tam de direitos humanos para alguns autores, como Flavia Piovesan, são
compreendidas como integrantes do bloco de constitucionalidade, para
aquelas normas aprovadas antes da EC 45/200412. Nesse sentido, tem-
-se que a proteção aos direitos humanos das mulheres, fomenta ainda
mais a busca da igualdade, harmonizando o sistema jurídico brasileiro
às perspectivas mundiais. Tem-se na Constituição brasileira:
[…] um documento que contempla os direitos humanos de forma abran-
gente e pormenorizada, como nenhum outro documento em nossa his-
tória. Desse modo, o Estado brasileiro adotou uma Constituição com
ampla gama de direitos e garantias fundamentais, visando assegurar a
todos a plena realização da cidadania. A nova Constituição não só re-
percutiu no ordenamento interno, mas “impôs” a questão dos Direitos
Humanos como tema fundamental da agenda internacional do país.13
O Texto Constitucional assegura no inc. I do art. 5° o a igualdade
entre homens e mulheres nos termos da Constituição. Em outras pala-
vras, desde que respeitadas às distinções levadas a efeito pelo próprio

10. Art. 5º § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decor-
rentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte. Art. 5º § 3º Os tratados e convenções internacionais
sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais.
11. Decisão do Supremo Tribunal Federal no RE 466.343-SP e HC 87.585-TO, tese vencedora do
Min. Gilmar Mendes.
12. Posição da doutrina avalizada pelo Min. Celso de Mello no HC 87.585-TO.
13. RODRIGUES, Patrícia Pacheco. Processos históricos cíclicos e desafios que não conseguimos
superar sobre Direitos Humanos. In: KIAN, Fátima Aparecida; ANDRADE, Vander Ferreira de
(Org.). Ensaios de Direitos Humanos. São Paulo: Editora Anjo, 2018, p. 281.

197
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marquese Patrícia Pacheco Rodrigues

Texto Constitucional, como por exemplo, a garantia de aposentadoria


com tempo inferior ao dos homens.
A explícita proteção à igualdade entre homens e mulheres é uma
inovação da atual Constituição, pois não constava expressamente do
Texto anterior. Igualmente é vedada qualquer forma discriminação em
razão de sexo, cor, religião, cabendo à lei punir qualquer discriminação
atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, conforme disposto
no inc. XLI do art. 5º.
Há que se considerar que historicamente as mulheres sempre fo-
ram destituídas de liberdade e de igualdade de direitos em relação ao
homem. Nesse sentido, qualquer menção aos direitos humanos e à liber-
dade era vazia de significado. No mundo ocidental a mulher encontrava-
-se privada dos mais simples direitos até o início do séc. XX. Elas eram
consideradas dotadas de pouca idoneidade moral, fraca inteligência, e
usufruíam de pouquíssimos direitos.
Somente no séc. XX é que a sociedade ocidental começou a se preo-
cupar com os direitos das mulheres. A emancipação da mulher foi uma
das consequências da Revolução Industrial. No entanto, o processo de
conquista de direitos pelas mulheres tem se dado de maneira lenta e
gradual. Pode-se dizer que um dos primeiros passos nessa caminhada é
o reconhecimento formal pelo ordenamento jurídico da igualdade entre
homens e mulheres na fruição de direitos.
Todavia, a busca da igualdade entre homens e mulheres deve le-
var em consideração necessariamente a diferença existente entre eles.
Em outras palavras, busca-se uma igualdade de direitos e não de uma
“identidade de direitos.” Frise-se que a “identidade de direitos” pode ser
entendida como “a paridade e uniformidade de direitos entre homens
e mulheres o que por si só representaria uma violação a isonomia, na
medida em que ambos são diferentes e essas diferenças devem ser sem-
pre respeitadas.”14
A maioria dos ordenamentos jurídicos ocidentais passou a contem-
plar a igualdade entre homem e mulher de maneira expressa como faz
o Texto Constitucional de 1988 e as leis infraconstitucionais. Todavia,
a mera existência de normas jurídicas sobre igualdade de tratamento

14. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. A igualdade entre homens
e mulheres e as Forças Armadas. A&C – Revista de Dir. Administrativo & Constitucional, Belo
Horizonte, ano 14, n. 57, p. 133-146, jul./set. 2014, p. 134.

198
Cap. 7 • MULHER E PODER NO BRASIL

entre homens e mulheres não produzem por si só resultado iguais, nem


no plano individual, nem plano coletivo.
Não há negar-se que o Direito é um “campo amplo vasto no qual as
transformações ocorrem, ainda que de maneira gradativa, no entanto
deve-se sempre atuar através dele para se obter mudanças significati-
vas na sociedade”15. A lei deve almejar diminuir as diferenças entre ho-
mens e mulheres e criar condições para reduzir essas distinções. Se a lei
vier acompanhada da formulação e implantação de políticas públicas a
isonomia entre os sexos será mais facilmente alcançada, mas o fato de
existir leis prevendo essa isonomia já se tem a base para a concretização
dessa isonomia.
Deve-se reconhecer que o ordenamento jurídico normativo brasilei-
ro confere grande proteção à mulher. Há diversas leis que buscam asse-
gurar a igualdade de direitos entre homens e mulheres nas mais diversas
áreas, penal, trabalhista e eleitoral. A existência de mais leis protetivas
a mulher, auxiliam na redução da discriminação, prestigiando assim o
princípio constitucional da isonomia.
Na Revolução Industrial, no século XVIII, as lutas operárias eram di-
recionadas à busca de igualdade de oportunidades, exigiam que o Esta-
do liberal fosse intervencionista e assistencialista, para concretização de
direitos econômicos e sociais. Há a transição da busca de uma igualdade
formal para uma igualdade material, já que “as diferenças são biológicas
ou culturais, e não implicam a superioridade de alguns em relação aos
outros. As desigualdades, ao contrário, são criações arbitrárias, que es-
tabelecem uma relação de inferioridade.”16
Da aceitação social da divisão sexual do trabalho, a qual consistia
em designar aos homens o trabalho produtivo e as mulheres o trabalho
doméstico, resultou na reserva de mercado de certas atividades laborais
como masculina e feminina, e dessa reserva advém as diferentes condi-
ções de acesso e de permanência no emprego e de oportunidades. “Pro-
teger não apenas a mulher, mas também o homem, ou seja, protegê-los
enquanto seres humanos que merecem tratamento condigno é um fim
social que deve ser objetivado pela lei.”17

15. Ibidem, p. 134.


16. NOVAIS, Denise Pasello Valente. Discriminação da mulher e direito do trabalho: da proteção a
promoção da igualdade. 1. ed. São Paulo: Editora LTR, 2005, p. 28.
17. CALIL, Lea Elisa Silingowschi. Direito do Trabalho da mulher: a questão da igualdade jurídica
ante a desigualdade fática. 1. ed. São Paulo: Editora LTR, 2007, p. 38.

199
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marquese Patrícia Pacheco Rodrigues

A proibição da discriminação do trabalho da mulher é aquela fun-


dada no sexo, consoante o disposto no artigo 1º da Convenção nº 111
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) recepcionada no Brasil
pelo Decreto nº 62.150, de 19 de janeiro de 1968, in verbis:
Para fins da presente convenção, o termo “discriminação” compreende:
toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, reli-
gião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha
por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de trata-
mento em matéria de emprego ou profissão.
O patriarcalismo fundado em uma sociedade paternalista prejudi-
cou a inserção da mulher no mercado de trabalho, e isso vem se refle-
tindo até os dias atuais. A mulher em busca de emprego se submeteu a
condições tão precárias de trabalho, e ainda persiste nessa desigualdade
de gênero. No sistema jurídico brasileiro, o Código Civil de 1916 privava
a mulher de certas funções, pois a mantinha na classe dos relativamen-
te incapazes (art. 6°, inciso II); a necessidade de autorização do marido
para que pudesse exercer, fora do lar conjugal, qualquer profissão (art.
233) e o exercício exclusivo do pátrio poder pelo marido, enquanto per-
durasse a sociedade conjugal (art. 380).
Com a alteração deste cenário somente em 1962 com o advento do
Estatuto da Mulher Casada (lei n.º 4.121 de 1962), a mulher passa a não
ser mais considerada como relativamente incapaz. Além disso, estabe-
leceu-se um tratamento paritário entre os cônjuges no que se refere
aos efeitos jurídicos do casamento e às relações patrimoniais. Lenta e
progressivamente, foi ela quebrando os grilhões de sua subordinação ao
marido, não precisando da autorização para trabalhar e obteve a capaci-
dade de ser parte e estar em juízo. Tais privações tinham nítido caráter
discriminatório, de proteger a sua moral e relegá-la ao recanto do lar,
limitada a obrigação de cuidados e criação dos filhos, além da segunda
jornada nos afazeres domésticos.18
O Código Civil de 2002 traz a capacidade plena da mulher, exercendo
em conjunto a chefia da sociedade conjugal, e substituiu o pátrio poder,
pelo poder familiar, implementando, portanto, o princípio da igualdade
da Constituição Federal de 1988.
A Consolidação das Leis do Trabalho, em sua redação original de
1943, trazia normas de proteção ao trabalho da mulher, que eram con-
sideradas como verdadeiras discriminações, que dificultavam o acesso

18. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 22. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006, p. 573-590.

200
Cap. 7 • MULHER E PODER NO BRASIL

da mulher no mercado de trabalho, o excesso de proteção gerando des-


proteção. Por exemplo, em seu artigo 446, presumia autorizado o tra-
balho da mulher casada, revogado tal dispositivo somente em 1989. O
fenômeno do crescimento do trabalho feminino no mercado de trabalho
privado está associado à precarização.
Atualmente, as restrições na legislação trabalhista brasileira têm
como fundamento a proteção da mulher em sua fragilidade física, naqui-
lo que se relaciona com suas necessidades biológicas e físicas, peculia-
ridades e na busca da igualdade dos gêneros nas condições de trabalho.
A igualdade é a base de construção do Direito, ainda que haja diferen-
ça na concepção do que seja direito, só há justiça quando há equilíbrio,
quando há igualdade, que não é aritmética, mas consistente em tratar
igualmente os iguais, porém desigualmente aqueles que não são iguais,
respeitando assim suas diferenças19.
Seria o problema da discriminação exclusivo das mulheres? Afinal
são elas que enfrentam a discriminação, e não os homens. Contudo, ao
negar a mulher seu direito à igualdade, não sofrem apenas elas, mas
toda a sociedade, já que sociedades menos igualitárias produzem me-
nos avanços sociais, menos crescimento econômico, relegando o país
a recessão, que culmina em desemprego e no agravamento dos males
sociais20.
A discriminação no trabalho da mulher, em geral, no Brasil, se dá
com a definição de exigências e qualificações para o posto de trabalho,
assim como em procedimentos e critérios de seleção. Apesar de expres-
sa previsão constitucional como objetivo fundamental a promoção do
bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação, e da proteção ao mercado de
trabalho da mulher com incentivos específicos, para promover igualda-
de de oportunidades por medidas compensatórias, as já referidas ações
afirmativas.21
A primeira Constituição brasileira que versou sobre o trabalho da
mulher foi a de 1934, que, por exemplo, proibia a discriminação quan-
to aos salários; vedada o trabalho em locais insalubres, e garantia o

19. CALIL, Lea Elisa Silingowschi. Direito do Trabalho da mulher: a questão da igualdade jurídica
ante a desigualdade fática. 1. ed. São Paulo: Editora LTR, 2007, p. 16.
20. Ibidem, p. 16 e 66.
21. NOVAIS, Denise Pasello Valente. Discriminação da mulher e direito do trabalho: da proteção a
promoção da igualdade. 1. ed. São Paulo: Editora LTR, 2005, p. 92.

201
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marquese Patrícia Pacheco Rodrigues

repouso antes e depois do parto sem prejuízo do salário e do emprego,


assegurando instituição de previdência a favor da mãe.
A Constituição Federal de 1988 trouxe a licença a gestante sem pre-
juízo do emprego e do salário, com a duração de 120 dias (artigo 7, inci-
so XVIII CRFB); a proteção do mercado de trabalho da mulher mediante
incentivos específicos determinados em lei (artigo 7, inciso XX); proibiu
a diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admis-
são por motivo de sexo, (artigo 7, XXX). Garantia de emprego da mulher
gestante desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto,
o que nunca antes havia sido previsto em âmbito constitucional ou legal,
apenas em normas de categoria profissional (artigo 10, inciso II do Ato
das disposições constitucionais transitórias – ADCT).
No âmbito da legislação ordinária, destaca-se a Lei n. 9.029/95 que
proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras prá-
ticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência da
relação jurídica de trabalho. Tal legislação também tem incidência penal
de detenção de um a dois anos e multa. Além disso, prevê a possibilidade
de reparação por dano moral, podendo os trabalhadores optarem entre
readmissão com ressarcimento integral do período de afastamento ou a
percepção em dobro da remuneração do período de afastamento.
Já a Lei n. 8.861/94 teve por escopo garantir a licença-gestante às
trabalhadoras urbanas, rurais e domésticas e o salário maternidade às
pequenas produtoras rurais e às trabalhadoras avulsas. A Lei n. 9.799/99
trouxe regras sobre o acesso da mulher ao mercado de trabalho. A Lei
n. 10.421/02, por sua vez, estendeu à mãe adotiva o direito à licença-
-maternidade e ao salário maternidade. A Lei n. 10.710/03 restabeleceu
o pagamento pela empresa do salário maternidade devido à assegurada
empregada gestante. A Lei nº 11.770 de 2008, criou o Programa Empre-
sa Cidadã, destinado à prorrogação da licença-maternidade mediante
concessão de incentivo fiscal para o setor privado.
Toda proteção à mulher concedida na área dos direitos sociais,
como educação, saúde, previdência e assistência social são de extrema
relevância na medida em que possibilitam uma isonomia entre os sexos.
As mulheres são as maiores destinatárias das políticas públicas do Esta-
do, pois dependem em muito da prestação de serviços públicos. Nesse
particular, quando o Estado passa por uma crise, as mulheres são mais
afetadas. Destarte, no mercado de trabalho, a mulher pode-se dizer, so-
fre uma dupla opressão, pois além da opressão geral, sofre a opressão de
um mercado de trabalho discriminador e dominado pelo sexo masculino.

202
Cap. 7 • MULHER E PODER NO BRASIL

O estatuto de beneficiária de que a mulher usufrui no sistema de


segurança social é diferente e mais frágil e mais controlado do que o do
homem. As mulheres normalmente têm renda inferior à do homem, são
mais suscetíveis aos índices de desemprego, e ainda obtém remunera-
ção inferior, mesmo com a realização de igual trabalho. Nesse sentido, é
natural que ocorra a precarização do trabalho, a globalização provoca a
precarização. Além disso, temos famílias monoparentais chefiadas por
mulheres que mantém a prole, motivo que faz se submeterem aos traba-
lhos precarizados. Altos índices de informalidade e a desproteção social
do trabalho, revertem-se nas cruéis restrições de acesso à Previdência
Social, que da recente reforma gera ainda mais instabilidade, do que se
esperar no futuro desta proteção social.
O artigo 1º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher, de 1979, (promulgada no Brasil
pelo Decreto no 89.460, de 20 de março de 1984, revogado pelo Decre-
to nº 4.377, de 13 de setembro de 2002) define “discriminação contra
a mulher”:
[…] significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo
e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconheci-
mento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu es-
tado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos
humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico,
social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Vio-
lência contra a Mulher de 1994, (Convenção Belém do Pará promulgada
no Decreto nº 1.973, de 1996), entende que a violência contra a mulher
abrange a violência física, sexual e psicológica, incluindo, entre outras
formas, expressamente, o assédio sexual no local de trabalho, bem como
em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local.
A Declaração e Programa de Ação de Viena, de 1993 enfatiza a importân-
cia de se trabalhar no sentido de eliminar todas as formas de violência
contra as mulheres na vida pública e privada, prevendo expressamente
a necessidade de se eliminar todas as formas de assédio sexual, que con-
siste em um atentado a dignidade da mulher, sobrepondo a sexualidade
na capacidade de manutenção e ascensão nas relações de trabalho.
A Convenção Belém do Pará foi uma criação regional no âmbito das
Américas como principal instrumento de proteção dos direitos das mu-
lheres, que foi elaborada antes da Europeia e muito elogiada interna-
cionalmente por ter sido a primeira e pela sua abrangência na proteção
dos direitos. A regionalização dos direitos humanos sendo a proteção

203
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marquese Patrícia Pacheco Rodrigues

regional por conta da criação de cortes internacionais foi muito impor-


tante, pois passou a se ter um órgão para dar efetiva aplicabilidade aos
instrumentos internacionais quando violados.
A Convenção em seus artigos 7 e 8 impõe a obrigação aos Estados
partes de adotarem medidas jurídicas, evitando a violação de direitos
das mulheres. O Estado-parte se comprometendo com comportamentos
e práticas de atos para o combate a preconceitos. No artigo 8° traz a pro-
moção de programas e de que todos que trabalham no sistema de justi-
ça, assim como as polícias, possam trabalhar com políticas de prevenção
e enfrentamento à violência contra a mulher.
Em 2011 a criação da Convenção do Conselho da Europa para a pre-
venção e o combate a violência contra as mulheres e a violência domésti-
ca (Convenção de Istambul). Está no âmbito Europeu como uma conven-
ção específica, mas sem ainda um tribunal específico para julgamento de
casos de violação dos direitos humanos das mulheres. A Convenção de
Belém do Pará foi referência para a Convenção de Istambul.
A Convenção Interamericana ainda influenciou o direito brasileiro
no âmbito do Direito Penal foram significativas as alterações no sentido
de conferir proteção às mulheres. A Lei n. 9 930/94 incluiu o estupro
entre crimes hediondos que são inafiançáveis. A Lei n. 9.318/96, por
sua vez, alterou o Código Penal para considerar como agravante da pena
quando o crime é cometido contra criança, maiores de sessenta anos, en-
fermo e mulher grávida. Foi aprovada a Lei n. 10.244/01 que trata do as-
sédio sexual: insinuação ou proposta sexual repetida e não desejada por
uma das partes. O Poder Executivo também disponibilizou em âmbito
nacional, número telefônico destinado a atender denúncias de violência
contra a mulher (Lei n. 10.714/03). Os estabelecimentos penais desti-
nados a mulheres devem ser dotados de berçários, onde as condenadas
possam amamentar seus filhos, por força da Lei n. 9.046/95. Também
se percebe que no direito brasileiro há uma tendência de se buscar a eli-
minação das discriminações sociais e raciais, por leis de cunho criminal.
Não é função do Direito Penal alterar valores, mas, sim, protegê-los,
desde que não interfira no âmbito da liberdade de grupos, decorrente
do pluralismo a ser respeitado numa sociedade democrática. Contudo,
mesmo não sendo sua função, é certo que a criminalização de deter-
minada conduta pode ter efeito positivo, com a demonstração de que
o bem jurídico protegido possui tal dignidade a ponto de sua tutela ter
sido destinada ao campo penal, isto é, a prevenção geral em seu aspecto
positivo. A vertente negativa da prevenção geral, é que a criminalização

204
Cap. 7 • MULHER E PODER NO BRASIL

da conduta faz com que o agente se afaste dela, com receio de vir a sofrer
a imposição penal. Além desses aspectos, a vítima passa a contar com
todo o aparato do Estado para a elaboração da prova do ocorrido não
ficando, à mercê de qualquer outra iniciativa. Todavia, a criminalização
da conduta não pode desvirtuar o desempenho dos programas de pre-
venção.22
A tutela penal é para aquelas condutas que atentem contra o bem
jurídico, com dano considerável (princípio da insignificância), no princí-
pio da ofensividade da conduta de elevada reprovabilidade, assim como
atendendo ao princípio da fragmentariedade. Importante conferir o re-
conhecimento a que merecem tais condutas em todos os demais ramos
jurídicos, e não somente na esfera penal. Por exemplo, antes, na falta
de legislação específica, o assédio sexual era conduta genérica de crime
ou contravenção penal, o que ainda se mantém para o assédio moral,
prejudicando o seu reconhecimento como questão de gênero e dimen-
sionamento próprio.23
A violência doméstica contra mulher no Brasil recebeu visibilidade
nos tribunais brasileiros a partir do Recurso especial 1517 do PR do STJ
– relator José Cândido DOU 15/04/1991 determinando a não aplicabili-
dade da tese da legítima defesa da honra conjugal nos casos de violência
doméstica contra a mulher. Foi aprovada a Lei n. 10.455/02 que autori-
zou o afastamento do agressor do lar. Contudo, a grande conquista da
mulher no tocante ao combate à violência doméstica foi a aprovação da
Lei Maria da Penha, Lei n. 11.340/06 que cria mecanismos para coibir
a violência doméstica e familiar contra a mulher, originada de condena-
ção pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso 12.051 Ma-
ria da Penha Maia Fernandes – Brasil, relatório 54/01, de 4 de abril de
2001. Nesse contexto, aprova-se a Lei Maria da Penha, Lei n. 11.340/06
que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra
a mulher.
No campo eleitoral, a Convenção sobre direitos políticos da mulher
de 1953, em vigor no Brasil desde 1964, e promulgada pelo Decreto n.º
52476, de 12.9.1963, que reafirma os princípios estabelecidos no artigo
21 da DUDH, que declara que todas as pessoas têm o direito de partici-
par no governo de seu país o de ter acesso a seus serviços públicos. O

22. JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal anotado. 17. ed. São Paulo, Saraiva, 2005, p. 756.
23. YANNOULAS, Silvia Cristina. Dossiê: Políticas públicas e relações de gênero no mercado de
trabalho. 1. ed. Brasília: CFEMEA, 2002, p. 29.

205
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marquese Patrícia Pacheco Rodrigues

direito das mulheres em escolher seus representantes foi garantido em


1932, no decreto 21.076 do Código Eleitoral Provisório.
Dados estatísticos da Justiça Eleitoral, de 2018, mostram que 52%
do eleitorado brasileiro é formado por mulheres24. Contudo, o número
de candidatas mulheres é desproporcional ao número de mulheres po-
liticamente ativas no país, ou seja, aptas a votar e a serem votadas. A
primeira vez que as candidaturas femininas alcançaram 30% do total de
candidaturas de um pleito no país foi nas eleições de 2012, mesmo após
a criação das “cotas de gênero” que se tornaram obrigatórias com a Lei n.
12.034, de 29.09.2009. Tais cotas foram instituídas pela Lei n 9.504/97,
conhecida também como Lei de Batom, foi aprovada com o intuito de
possibilitar uma maior participação da mulher na política. Ela estabele-
ce que cada partido político ou coligação deverá reservar o mínimo de
30% e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo.
O intuito da lei não foi outro senão o de fomentar a participação das
mulheres no Poder, uma vez que impõe obrigatoriamente um mínimo
de candidatura de mulheres nos partidos políticos e coligações. Deste
modo, abre-se a possibilidade de as mulheres alcançarem cargos eleti-
vos e assim participarem das decisões políticas do País, tanto no Poder
Legislativo, como no Poder Executivo.
Pode-se afirmar que do ponto de vista normativo há uma ampla
proteção conferida à mulher no sentido de garantir a isonomia entre os
sexos. Todavia, a existência de leis garantidoras dos direitos das mulhe-
res não é suficiente para assegurar a igualdade de oportunidade para
as mulheres diante dos bens da vida. Não há negar-se que a previsão
de proteção às mulheres no ordenamento jurídico é um avanço, pois há
uma garantia formal de igualdade entre os sexos. Contudo é imprescin-
dível a elaboração e implantação de políticas públicas, bem como educar
a sociedade para evitar a discriminação entre os sexos.
As mulheres ainda são minoria nos principais cargos do Poder Exe-
cutivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário. Elas ainda estão alijadas do
processo de tomada de decisão do Estado.Trata-se também do reconhe-
cimento da luta política e respeito da igualdade de direitos, e amplia as
discussões em torno da participação política da mulher.

24. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Mulheres representam 52% do eleitorado brasileiro.
Notícias TSE, 06 mar. 2018. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-
-tse/2018/Marco/mulheres-representam-52- do-eleitorado-brasileiro>. Acesso: em 12 set.
2019.

206
Cap. 7 • MULHER E PODER NO BRASIL

Apesar da existência de cotas, em 2017, no Poder Legislativo, o per-


centual de cadeiras ocupadas por mulheres em exercício no Congresso
Nacional era de 11,3%. No Senado Federal, composto por eleições majo-
ritárias, 16,0% dos senadores eram mulheres e, na Câmara dos Deputa-
dos, composta por eleições proporcionais, apenas 10,5% dos deputados
federais eram mulheres25.
As mulheres ocupam, na maioria das vezes, desempenham papel
marginal na gestão destes assuntos de governo e nos órgãos de deci-
são, tem sido sobretudo destinatárias indireta da redistribuição. O Brasil
está na 161ª posição, de um ranking de 186 países, sobre a representa-
tividade feminina no Poder Executivo26, e ainda é pequena a participa-
ção em cargos comissionados, o levantamento foi realizado pelo Projeto
Mulheres Inspiradoras, que atua pela participação feminina nos espaços
de poder.
Na área da saúde, lei visando à mulher surge a partir de 1918, o Có-
digo Sanitário que proibia o trabalho noturno para mulheres. Nos anos
setenta a grande pauta de saúde da mulher no mundo era sobre a vio-
lência e o controle dos médicos sobre seus corpos, que não ouviam sua
opinião. Portanto, questionando no sistema de saúde a autoridade do
médico, e desde o início dos anos setenta vinha-se “debatendo as condi-
ções necessárias para se dar às mulheres um atendimento integral, tes-
tando diferentes modelos de assistência em que o corpo feminino fosse
tratado como um todo e não mais como uma série de órgãos isolados, da
competência de diferentes especialistas.”27
No Brasil vigorava o Instituto Nacional de Assistência Médica da
Previdência Social (INAMPS), autarquia federal, criada em 1977, pela Lei
nº 6.439, voltado ao atendimento de pessoas com registro em carteira
de trabalho, restando os serviços de filantropia nas Santa Casa aos de-
mais casos. Em 1983 o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mu-
lher – PAISM, oriundo de sanitaristas e do movimento de mulheres, que

25. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de gênero: indicadores so-
ciais das mulheres no Brasil. Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconômica
n. 38. Informações atualizadas em 08 jun. 2018, p. 09. Disponível em: <https://biblioteca.
ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf>. Acesso em: 18 set. 2019.
26. ROSSI, Marina. Brasil, a lanterna no ranking de participação de mulheres na política. El
País, 27 mar. 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/27/politi-
ca/1522181037_867961.html>. Acesso em: 12 set. 2019.
27. OSIS, Maria José Martins Duarte. Paism: um marco na abordagem da saúde reprodutiva no
Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 14, p. S25-S32, 1998, p. 26.

207
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marquese Patrícia Pacheco Rodrigues

pediam um programa materno – infantil, além de considerar a mulher


nas suas questões de saúde. Não há como deixar de reconhecer a impor-
tância deste programa na abordagem à saúde reprodutiva no Brasil, foi
pioneiro, inclusive no cenário mundial “ao propor o atendimento à saú-
de reprodutiva das mulheres e não mais a utilização de ações isoladas
em planejamento família.”28
Com a abertura democrática, advém o Sistema Único de Saúde (SUS),
Lei nº 8.080, de 1990, com base no direito à saúde individual, mas ainda
vinculado aos direitos sociais. Trouxe uma proposta de acesso universal
a saúde para o Brasil, além de garantir por lei acesso a medicamentos
necessários a manutenção da saúde. Foi instituída a carteira nacional
de saúde da mulher pela Lei n. 10.516/02. Um passo importante para a
independência da mulher foi a aprovação da Lei n. 9.263/96 que criou o
planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecun-
didade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumen-
to da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal. Tornou-se também
obrigatória a cirurgia plástica reparadora de mama por planos e seguros
privados de assistência à saúde nos casos de mutilação decorrente de
tratamento de câncer (Lei n. 10.233/01).
Ainda que a saúde seja direito de todos (art. 196 da CRFB), é no
acesso universal e igualitário que revela a dificuldade de como tratar
igualmente pessoas que têm capacidades e perfil diferentes. O ideal se-
ria adequar o serviço de saúde ao usuário, dando-se a possibilidade de
entendimento sobre racismo, machismo, que muitas vezes tem um fator
inconsciente por quem realiza o atendimento. Buscando assim, reverter
as injustiças e fazer um trabalho contra cultural, de minimizar os abis-
mos sociais, diante da falta do controle social sobre os conselhos gesto-
res e da carência de recursos do sistema de saúde.
O fenômeno da masculinização do comando e da feminização da su-
balternidade é efetivo, mas isto não no plano do serviço público e sim na
iniciativa privada. A participação das mulheres no âmbito do serviço pú-
blico, elas conseguem, geralmente, uma posição qualitativa e não quan-
titativa. Estão mais presentes em cargos em que o critério é o de mere-
cimento, ou seja, concurso público, e não nos políticos em que a escolha
é indiscriminada sem análise dos méritos. Elas vão mais para o serviço
público em busca de maior segurança, pois são mais dependentes do

28. Ibidem, p. 31.

208
Cap. 7 • MULHER E PODER NO BRASIL

Estado para o bem ou para o mal (setor de serviços e assistência e não


na produção de bens).
Somente em 1827, surge no Brasil a primeira lei com o intuito de
beneficiar a educação feminina, “concedendo às mulheres o direito de
frequentar escolas elementares, nas quais poderiam aprender a ler e a
escrever.”29 O avanço da escolaridade feminina se deu nos últimos anos,
com o crescimento da presença de estudantes do sexo feminino em uni-
versidades, ao ponto de suplantar os do gênero masculino, “dessa traje-
tória escolar desigual, relacionado a papéis de gênero e entrada precoce
dos homens no mercado de trabalho, as mulheres atingem em média um
nível de instrução superior ao dos homens”30. Além da presença das mu-
lheres em outras ocupações, antes apenas preenchidas por homens, são
aspectos positivos. Algumas barreiras foram rompidas, mas o caminho
para a efetiva igualdade ainda estamos percorrendo.
Em matéria de concursos públicos, especificamente nas Forças
Armadas, as mulheres começaram a ingressar na Marinha apenas em
198031. Além disso, até 2006 “elas eram discriminadas por estarem grá-
vidas e excluídas do processo de seleção e, provavelmente, as razões da
exclusão sejam baseadas nas provas de capacidade física (corrida e na-
tação) a que as candidatas são submetidas.”32 Violando disposição cons-
titucional e jurisprudencial:
Concurso público – critério de admissão – sexo. A regra direciona no
sentido da inconstitucionalidade da diferença de critério de ad-
missão considerado o sexo – artigo 5º, inciso I, e par. 2º do artigo 39
da Carta Federal. A exceção corre à conta das hipóteses aceitáveis, ten-
do em vista a ordem sócio-constitucional. (RE 120.305, Rel. Min. Marco
Aurélio, DJ 09/06/95).

O aumento do ingresso de mulheres na magistratura ocorreu quan-


do do estabelecimento de critérios que vedam a discriminação no in-
gresso. Nesse cenário, merecendo destaque a Lei Estadual n.º 9.351/96

29. QUEIROZ, Jamerson Viegas; GONÇALVES, Leandro de Almeida; KRÜGER, Gabriel Nogueira.
Análise do grau de escolaridade das mulheres no Brasil. Seminário Internacional Fazendo Gê-
nero 11 & 13th Women’s World’s Congress, Florianópolis, 2017, p. 02 (Anais Eletrônicos).
30. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de gênero: indicadores so-
ciais das mulheres no Brasil. Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconômica
n. 38. Informações atualizadas em 08 jun. 2018, p. 07.
31. LOMBARDI, Maria Rosa; BRUSCHINI, Cristina; MERCADO, Cristiano M. As Mulheres na Forças
Armadas brasileira: a Marinha do Brasil 1980-2008. São Paulo: FCC/DPE, 2009, p. 09.
32. Ibidem, p.40.

209
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marquese Patrícia Pacheco Rodrigues

que dispõe sobre o concurso de ingresso na Magistratura da Justiça Co-


mum do Estado de São Paulo, e que vedou nas duas primeiras fases, que
haja a identificação do candidato na prova. Segundo informativo da Se-
cretaria Especial de Políticas para as Mulheres, órgão do governo fede-
ral, as mulheres representam mais de 40% da base do Poder Judiciário33.
Contudo, o acesso aos Tribunais Superiores é maior para homens, vez
que se dá por critérios políticos e não por via do anonimato e mereci-
mento34. A primeira mulher a integrar a cúpula do Judiciário estadual
como desembargadora foi Maria Berenice Dias, em 1973, no Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul.
A divisão social do trabalho é natural, mas influenciada de forma
marcante pela evolução histórica, social e cultural. Pergunta que se colo-
ca nesse contexto, reside em saber até que ponto esses aspectos podem
e devem transformar-se em questões jurídicas é algo que desafia a Ciên-
cia Jurídica, a exemplo do que vem ocorrendo na esfera penal. A doutrina
identifica eixos de conflito na relação entre direito e gênero, apresentan-
do eixos da análise distributiva do direito, que levam a:
Ao invés de seguirmos perguntando sobre as razões pelas quais uma
norma não tem cumprido seus objetivos ou por que os indivíduos não
adaptam seu comportamento a ela (debate sobre eficácia/ineficácia
ou efetividade/inefetividade), (...) sugerem que passemos a buscar,
por meio de tal método (...), “rastrear o funcionamento” de uma nor-
ma jurídica levando em consideração, também, as normas processu-
ais, administrativas, entre outras, que também são responsáveis pelo
constrangimento dos efeitos da norma, em termos de acréscimo de
poder ou recursos às mulheres ou outra categoria subalternizada. 35
Além disso, a divisão de tarefas no interior da família continua mui-
to desigual com sobrecarga feminina, e independentemente de estarem
inseridas no mercado de trabalho, são as mulheres que ainda assegu-
ram o essencial dos afazeres domésticos e dos cuidados de pessoas,

33. COSTA, Marcos da. Representatividade Feminina no Poder Judiciário. OAB São Paulo, Palavra
do Presidente, 2012. Disponível em: <http://www.oabsp.org.br/sobre-oabsp/palavra-do-
-presidente/2012/167>. Acesso em: 12 set. 2019.
34. MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro et al. A igualdade entre homens e mulheres na composição
do Superior Tribunal de Justiça. Encontro de Iniciação Científica – Tradição e inovação na pes-
quisa acadêmica: Resumos do XV Encontro de Iniciação Científica da Universidade Nove de
Julho, São Paulo, 2018, p. 433.
35. SEVERI, Fabiana Cristina. Enfrentamento à violência contra as mulheres e à domesticação da
Lei Maria da Penha: elementos do projeto jurídico feminista no Brasil. (Tese de Livre Docência)
– Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2017, f.
60.

210
Cap. 7 • MULHER E PODER NO BRASIL

demonstrando que a família, ainda é propulsora da desigualdade entre


mulheres e homens. No Brasil, em 2016, as mulheres se dedicaram aos
cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos cerca de 73% a mais de
horas do que os homens (18,1 horas contra 10,5 horas).36 Tal ponto “for-
nece informações para o monitoramento do ODS37 5 (alcançar a igualda-
de de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas), é de extrema
importância para dar visibilidade ao trabalho não remunerado, realiza-
do, principalmente, pelas mulheres.”38
Nesse sentido, importante seria, por exemplo, a ratificação da Con-
venção 156 da OIT, que dispõe sobre a Igualdade de Oportunidades e
de Tratamento para Homens e Mulheres Trabalhadores: Trabalhadores
com Encargos de Família. Além de outras formas de se conscientizar a
família de que as responsabilidades domésticas cabem aos cônjuges co-
mungar destas atividades trazendo equilíbrio para a vida em comum e
individual, no âmbito social e profissional.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constata-se que houve um significativo avanço da legislação bra-
sileira no sentido de superar o protecionismo atribuído à mulher, que
como se percebeu ao longo deste artigo, era mais proibitivo e discrimi-
natório, assim como obstacularizava o ingresso feminino no mercado de
trabalho, aumentando os custos da contratação, e desestimulando em-
pregadores. A separação da massa social tem como tradição a categoria
gênero, tendo-se o trabalho produtivo e remunerado, destinado a ho-
mens, e o trabalho doméstico e reprodutivo às mulheres, estas por sua
vez, não deixaram de cumprir com as obrigações domésticas, conforme
dados do IBGE de 2018 referenciados neste artigo.
O papel do Direito no processo de construção de identidades so-
ciais e sexuais, faz pesar para o sistema jurídico que não deve ser usa-
do como um meio de encobrir as relações de poder no Brasil, assim

36. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de gênero: indicadores so-
ciais das mulheres no Brasil. Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconômica
n. 38. Informações atualizadas em 08.06.2018, p. 03.
37. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS): são uma coleção de 17 metas globais es-
tabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas. ONU. Transformando nosso mundo: a
Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, 2015. Disponível em: <https://nacoesuni-
das.org/pos2015/agenda2030/>. Acesso em: 30 jul. 2019.
38. Idem.

211
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marquese Patrícia Pacheco Rodrigues

como o sexismo estrutural. O que se pode perceber ao longo do pre-


sente artigo, foi que o princípio da igualdade não implica em tratamen-
to simétrico. Devendo-se problematizar essa perspectiva do princípio
da igualdade, de pensar o Direito e o seu processo de interpretação
da igualdade não com o viés de subordinado, ou de membro de um
grupo excluído de oportunidades sociais. Mas sim, pelo protagonismo
da própria pessoa na sua construção pessoal de identificação cultural
e da percepção das suas relações de poder e das implicações políticas
e econômicas, uma interpretação mais individualista do princípio da
igualdade.

Necessário um olhar específico para as mulheres, que por grande


período e ao longo da existência do Direito brasileiro foi um não sujei-
to de direitos. O duplo estigma da opressão e discriminação da mulher
negra, e na violência de gênero com a interseccionalidade na violência
de raça. A violência doméstica e familiar é aquela que atinge os diversos
níveis sociais, mas a questão da pobreza, raça e gênero vêm predomi-
nando no sistema de Justiça Penal.

Uma consciência múltipla, face a multidisciplinariedade do estudo


sobre a mulher, além da sua interseccionalidade. Perpassando pelo locus
social, local social no qual a mulher está inserida, assim como o contexto
histórico e as relações sociais, seu status cultural e econômico. Vivemos
em regime democrático, e a filosofia jurídica expressa concepção do Es-
tado como um transformador, com um constitucionalismo transforma-
dor para a emancipação de grupos marginalizados, (artigo 3, inciso III
da CRFB).

O artigo 5° da Constituição da República se irradia por toda o siste-


ma jurídico e deve ser o fundamento para combater a identidade racial,
cultural e de sexo. Assim quaisquer propostas emancipatórias devem
também levar em consideração a existência das pessoas enquanto gru-
pos, e não apenas o caráter procedimental e racionalista de aplicabilida-
de do direito posto, fomentando o sexismo institucional. Lembrando que
a própria formação do sistema de justiça, tem sua origem em um sistema
de injustiças, como visto, deixando um grande legado na cristalização da
desigualdade de gênero, na sociedade.

É de extrema importância conscientizar a sociedade da necessidade


de se garantir a igualdade de gênero e fomentar a participação das mu-
lheres em todas as áreas.

212
Cap. 7 • MULHER E PODER NO BRASIL

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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213
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marquese Patrícia Pacheco Rodrigues

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YANNOULAS, Silvia Cristina. Dossiê: Políticas públicas e relações de gênero no mercado
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214
8
A MULHER E O PODER
JUDICIÁRIO NO BRASIL
Fernanda de Carvalho Lage1
e Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha2

Sumário: 1. Introdução; 2. A inserção da mulher no mundo do trabalho;


3. Teorias feministas e a busca pela igualdade de gênero; 4. A realidade da
presença das mulheres nos Tribunais no Brasil; 5. A mulher na magistratura
Militar; 6. Uma proposta para ampliar o número de desembargadoras e
ministras; 7. Considerações finais; 8. Referências.

1. INTRODUÇÃO
Ao longo da história, as instâncias de Poder, das mais diversas so-
ciedades, cuidaram de alijar as mulheres. Esta situação era reflexo de
posição de inferioridade que se dava às mulheres na convivência social
e sempre foi objeto da contrariedade feminina. Ao longo do tempo e por
meio de muitas lutas, mudanças começaram a se tornar perceptíveis e,
afinal, prementes.
O ideal de conviver em uma sociedade na qual haja superação de
todas as formas de discriminação e opressão não é exclusivamente

1. Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB). Professora subs-


tituta da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – FD/UnB. Tutora dos cursos de
Formação de formadores da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados
– ENFAM. Advogada.
2. Doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais; Doutora Ho-
noris Causa pela Universidade Inca Garcilaso de la Vega – Lima- Peru; Mestre em Ciências
Jurídico-Políticas pela Universidade Católica Portuguesa; Professora Universitária; Ministra
do Superior Tribunal Militar do Brasil.

215
Fernanda de Carvalho Lagee Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

feminino. É de homens e mulheres atentos às imensas vantagens que a


convivência igualitária pode proporcionar a todos os gêneros, aceitando,
sem preconceito, os talentos que assomam nas comunidades e se recu-
sando a estereotipá-los de acordo com preconcebidas concepções sobre
os “papeis” femininos e masculinos. No Brasil, esse ideal igualitário en-
contra abrigo em nossa generosa Constituição, pródiga em enaltecer a
equidade e que, em seu artigo 3º, indica a sociedade que precisamos ser.
Foram concepções arcanas e discriminatórias sobre o papel dos gê-
neros que justificaram a deliberada exclusão das mulheres nas instân-
cias dos três poderes. O Brasil convive com a desigualdade de gênero no
Poder Legislativo, no Poder Executivo e no Poder Judiciário. O presente
estudo refere-se ao Poder Judiciário. Os desafios para a mulher que bus-
ca ingressar no Poder Judiciário, crescer na carreira e ocupar todas as
suas instâncias são imensos.
Embora o símbolo da Justiça seja uma mulher, o Judiciário no Brasil
é homem, notadamente nos Tribunais. Se a Deusa Thêmis, que de olhos
vendados pesa o direito de cada um, se desvendasse, encontraria poucas
de seu gênero nos Tribunais brasileiros. Aqui e ali, entre calvas circuns-
pectas e barbas esbranquiçadas, reconheceria os traços delicados e har-
moniosos femininos. Nestes traços, perceberia também o da força e da
determinação, pois as magistradas precisaram ampliar passagens mui-
tos estreitas, bem mais do que para seus colegas homens, para chegar às
estruturas superiores do Poder Judiciário. Tempos atrás, os homens não
teriam tais companhias, pois se acreditava que mulheres não teriam o
equilíbrio pessoal suficiente para prestar jurisdição, como se o conheci-
mento da lei, da jurisprudência, da prova dos autos e das alegações das
partes fosse um código masculino, decifrável somente por este mesmo
gênero.
A presença, ainda contida, das mulheres desembargadoras, correge-
doras, presidentes e líderes de Tribunais Judiciários somente se intensi-
ficou após a Constituição de 1988. Há muitas mulheres na magistratura
de piso. A comprovação da igual capacidade feminina se evidenciou exa-
tamente numa prova, a objetiva, efetuada nos concursos públicos da ma-
gistratura. Trata-se de prova intelectual e igualitária que todos e todas
devem realizar para se tornarem juízes e juízas, que não oferece discre-
pâncias de gênero. Nestes exames, as mulheres têm obtido significativo
êxito, não raro superior aos dos homens, em número de classificados e
pontuação. É verdade que, a princípio, bancas examinadoras, ao talante
de percepções sexistas, faziam o corte de gênero no exame oral, mais

216
Cap. 8 • A mulher e o Poder Judiciário no Brasil

subjetivo e, portanto, mais propício a discriminações indevidas. Cortes


superiores mais atentas à Constituição foram, aos poucos, podando as
extravagâncias que se praticavam nesses ensejos. As entrevistas pesso-
ais – nas quais se praticava desabrida diferenciação entre candidatos ho-
mens e candidatas mulheres – deixaram de perguntar obsessivamente
sobre a maternidade, pretérita ou pretendida. A vetusta opinião de que a
prestação da Justiça não combina com os cuidados dos filhos – a ser rea-
lizada por mulheres, exclusivamente – a cada vez mais se mostra somen-
te grotesca. Enfim, como resultado desta evolução, mulheres estudiosas
do Direito, talentosas e probas tiveram abertas, para elas, as chances de
ingresso na magistratura.
As mulheres representam 57,2% dos estudantes matriculados em
cursos de graduação, conforme Censo da Educação Superior de 2016
realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP), o que demonstra o acesso das mulheres ao En-
sino Superior3. Na Justiça Comum de 1ª instância as juízas já represen-
tam em torno de 40% dos postos de magistrados, graças à aprovação em
concurso público de provas e títulos.
Todavia, o périplo para chegar aos Tribunais mostrou-se mais árduo.
Para tanto, não basta ser uma boa juíza e, talvez, nem mesmo ser uma
excelente juíza. Se a ascensão aos cargos nos Tribunais depende do binô-
mio antiguidade e merecimento, para elas, parece conter-se na exigência
da idade no exercício da função. O merecimento é uma forma autorizada
de “cooptação” e Cortes predominantemente masculinas parecem pre-
ferir cooptar mais homens. As que superam tais limitações soem ter se
destacado a um nível maior do que o exigido para os bons juízes homens
que se veem promovidos. O desembargador esforçado e mediano é uma
realidade mais frequente do que uma desembargadora com idênticos
predicados: o caminho deles é ordinariamente mais suave.
Não há qualquer base científica para indicar que alguma caracte-
rística fisiológica ou psicológica feminina desqualifique para a tarefa de
julgar, monocraticamente ou num colegiado, ou faça com que mulheres
sejam menos eficientes ou equilibradas. Parece que o problema não é o
modo como exercem o poder, mas o caminho que elas têm que percorrer
para chegar até ele.

3. BRASIL. INEP. Portal Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
Mulheres são maioria na Educação Superior brasileira. 08 mar. 2018. Disponível em: <http://
portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/mulheres-sao-maio-
ria-na-educacao-superior-brasileira/21206>. Acesso em: 02 jul. 2019.

217
Fernanda de Carvalho Lagee Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

Um desafio seria reconhecer características de gênero numa sen-


tença judicial. Que parte, fora os pronomes e nomes, indicaria a feminili-
dade? Seria o relatório? A fundamentação? O dispositivo? Sim, seria este,
porque é de todos conhecido que as mulheres juízas são mais... brandas?
Compreensivas? Severas? Inclementes? O predicado varia de acordo
com quem está dizendo que mulheres não são boas julgadoras. A de-
pender do caso, dirão que são brandas ou que são rigorosas demais. Não
são incomuns falas como: “Só mesmo uma mulher para absolver alguém
nesse processo”, ou “somente uma mulher para condenar desse jeito”.
Quando se chega nos Tribunais, os acórdãos são construções coleti-
vas. Que estudo ou evidência demonstra que a participação feminina em
colegiados faz oscilar a força ou produtividade destes para baixo? Resta,
então, a pergunta: como as magistradas podem aumentar a participação
das outras no Poder Judiciário e na sociedade?

2. A INSERÇÃO DA MULHER NO MUNDO DO TRABALHO


No início da colonização, as mulheres brasileiras brancas que logra-
vam exercer atividades fora do lar eram fazendeiras, comerciantes, se
das classes abastadas, cozinheiras e lavadeiras, se das classes populares.
A escravização das mulheres negras, por antípoda da ideia de autono-
mia, igualdade e dignidade, não permite dizer que se tratava de ativida-
de fora do lar. Nos albores do século XX, as atividades profissionais “per-
mitidas” às mulheres – falando das classes médias – eram no magistério,
nas companhias telefônicas ou nos hospitais. Somente no pós-guerra,
a expansão dos negócios e da cultura passou a oferecer novos campos
“aceitáveis” para a atividade profissional feminina.
Sem pretender historiar essa evolução, o êxodo rural e a melhoria
das condições de vida nas cidades brasileiras foram abrindo novas opor-
tunidades para as mulheres. A redução do número de filhos nas famílias
brasileiras, por igual, contribuiu para diminuir uma sobrecarga que, des-
de há muito, é tida como preferencialmente feminina, a saber, o cuidado
e a educação da prole.
No mundo do trabalho as mulheres se afirmaram notadamente a
partir dos anos 80, mas sem ter, até a presente data, superar desigual-
dades de acesso, remuneração e reconhecimento4. Nos anos 1990, “as
trabalhadoras começaram a trocar a temática das desigualdades em

4. PRIORE, Mary Del. Histórias e conversas de mulher. 1. ed. São Paulo: Planeta, 2013, p. 90.

218
Cap. 8 • A mulher e o Poder Judiciário no Brasil

benefício da temática das identidades5”, e a “construção de si e o desen-


volvimento pessoal tornaram-se prioridade no final do século XX6.
A participação política das mulheres sempre foi, à mercê das imen-
sas dificuldades estruturais que a elas se opõem, menor do que sua di-
mensão populacional poderia antever. Houve um pequeno, mas renhi-
do, grupo de mulheres eleitas para o Congresso Nacional em 1986, esse
mesmo que recebeu, em emenda à Constituição de 1969, poderes cons-
tituintes. Elas colaboraram para que os generosos direitos trazidos pela
Carta de 1988 ali estivessem, como o direito à vida e o direito da mulher
ao trabalho.
Os problemas da desigualdade e do preconceito continuam, po-
rém. Há diferenças de empregabilidade, remuneração menor para de-
sempenhos idênticos, menor presença feminina em postos de direção
de empresas, menor participação feminina em associações de catego-
rias profissionais, etc. As mulheres prosseguem buscando a igualdade, a
conquista da autonomia profissional, evolução dos modelos de família e
alterando a realidade social7.
Ao avaliar as três últimas décadas, percebe-se o esforço das mulhe-
res para mudar as normas vigentes sobre as concepções de gênero e es-
tabelecer as bases para buscar a igualdade de direitos. Todavia, a despei-
to de alguns avanços e de projetos de inclusão feminina, a luta continua
necessária para quem defende a equidade de gênero8.

5. Ibidem, p. 90.
6. Nesse sentido: “Portanto, é possível afirmar que há um reconhecimento social, na atualidade,
de que as lutas feministas afetaram positivamente a maneira pela qual se deu a incorporação
das mulheres no mundo do trabalho, num momento de ampla modernização socioeconômi-
ca no Brasil, desde os anos setenta, e que contribuiu para que houvesse grandes mudanças,
apesar do regime ditatorial estabelecido, nos códigos morais e jurídicos, nos valores, nos
comportamentos, nas relações estabelecidas consigo e com os outros, nos sistemas de repre-
sentações e no modo de pensar, ainda não plenamente avaliadas. Especialmente a partir da
constituição de um novo olhar sobre si e sobre o outro – e, nesse sentido, penso num processo
de feminização cultural em curso –, o mundo tem-se tornado mais feminino e feminista, liber-
tário e solidário ou, em outras palavras, filógino, – isto é, contrário a misógino –, amigo das
mulheres e do feminino, o que resulta decisivamente do aporte social e cultural das mulheres
no mundo público”. RAGO, Margareth. Feminismo e Subjetividade em Tempos Pós-Modernos.
Departamento de História, UNICAMP, p. 03.
7. PRIORE, Mary Del. Histórias e conversas de mulher. 1. ed. São Paulo: Planeta, 2013.
8. EPPING, Léa; PRÁ, Jussara Reis. Cidadania e feminismo no reconhecimento dos direitos hu-
manos das mulheres. Estudos Feministas. Florianópolis, v. 20, n. 1: 344, jan./abr., 2012.

219
Fernanda de Carvalho Lagee Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

Daí a relevância teórica e política do tema da cidadania para o femi-


nismo e a busca por novas propostas de políticas públicas.
O projeto emancipatório e democrático almejado pelos grupos femi-
nistas reflete a conexão ou a possível convergência entre a perspectiva
de gênero e a do direito ao trabalho digno. Valiosa é a lição de Hannah
Arendt sobre o trabalho e a vida humana:
O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência
humana [...]. O trabalho produz um mundo artificial de coisas, nitida-
mente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas frontei-
ras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobre-
viver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do
trabalho é a mundanidade9.

Desse cenário decorre uma nova perspectiva da cidadania fun-


damentada na ideia do reconhecimento e da ampliação de direitos
da população feminina, incluindo os civis, políticos, sociais, culturais,
entre outros. Ou seja, no reconhecimento dos direitos humanos das
mulheres. E, baseando-se nas reformulações no modo de conceber e
reconhecer tais direitos humanos que se verificam suas experiências
participativas em ações de fomento à cidadania feminina e as redes
de articulação feminista a tratados, acordos, protocolos e convenções
internacionais10.

3. TEORIAS FEMINISTAS E A BUSCA PELA IGUALDADE DE GÊNERO


A evolução dos estudos feministas está associada à própria história
das ciências sociais. Há diferentes abordagens, impregnadas das verten-
tes teóricas de cunho liberal, marxista, socialista, psicanalista, estrutu-
ralista e pós-estruturalista. Essas abordagens levam a distinções como o

9. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad.: de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense-
-Universitária, 1981, p. 15. Ainda, Celso Lafer, em análise, ensina sobre a importância da cida-
dania enquanto primeiro direito humano: “O que Hannah Arendt estabelece é que o processo
de asserção dos direitos humanos, enquanto invenção para a convivência coletiva, exige um
espaço público. Este é kantianamente uma dimensão transcendental, que fixa as bases e traça
os limites da interação política. A este espaço só se tem acesso pleno por meio da cidadania.
É por essa razão que, para ela, o primeiro direito humano, do qual derivam todos os demais,
é o direito de ter direitos, direitos que a experiência totalitária mostrou que só podem ser
exigidos através do acesso pleno à ordem jurídica que apenas a cidadania oferece”. LAFER,
Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 166.
10. Ibidem, p. 166.

220
Cap. 8 • A mulher e o Poder Judiciário no Brasil

que se denominou de feminismo da igualdade, feminismo da diferença e


estudos relacionais de gênero11.
A heterogeneidade teórico-metodológica dos estudos feministas
exige abertura para o diálogo e sopesamento das diferenças, de modo a
distinguir o espaço comum de compreensão dos problemas e as diversas
soluções propostas. Especialmente num momento no qual, para além do
debate acadêmico, surgiram instrumentos para a proteção e a expansão
dos direitos das mulheres, por meio de uma hermenêutica igualitária da
Constituição e pela ratificação de tratados internacionais, planos, acor-
dos, ou protocolos, surgidos pelo empenho e mobilização de movimen-
tos de mulheres mundo afora.
Ainda para além dos desafios de cognoscibilidade, é por meio de
decisões negociadas com instâncias sociais e governamentais que surge
a possibilidade de intervir no desenho e na gestão de políticas públicas,
incluindo a disputa por garantia de direitos e pela equidade de gênero12.
A questão da mulher decididamente se espraiou para além dos espaços
universitários e intelectuais, surtindo, com força própria, no coração da
política, no sentido da arte de buscar consensos e produzir avanços. Ao
observar a trajetória das mulheres e as mudanças promovidas por elas,
é possível desenvolver estudos acerca da cidadania, dos direitos huma-
nos, nas eleições e partidos, do modo como o poder social é exercido,
orientando ações e estratégias que visam maior igualdade de direitos.
Nesse trecho, convém falar em autonomia e igualdade. A democra-
cia se ata ao reconhecimento do princípio da autonomia. Ele revela-se
na autonomia privada e na autonomia pública. Na primeira, trata-se da
escolha, inerente à partição do ser em individualidades, dos caminhos e
meios para a busca pessoal do bem estar e felicidade.
O objeto da autonomia pública, por sua vez, são as escolhas comuns
dos caminhos comunitários, no rumo da realização de uma concepção
política do justo e do bem13. Nesse sentido: “Na autonomia pública, di-
reitos do homem e democracia estão, necessariamente, unidos. [...] Um
desenvolvimento pleno, tanto da autonomia pública como da privada,

11. MENDES, Mary Alves. Estudos Feministas: Entre Perspectivas modernas e pós-modernas. Ca-
dernos de Estudos Sociais. Recife, v. 18, n. 2, p. 223-238, jul./dez. 2002.
12. EPPING, Léa; PRÁ, Jussara Reis. Cidadania e feminismo no reconhecimento dos direitos hu-
manos das mulheres. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 33-51, abr. 2012.
13. ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso: estudos para a filosofia do direito. Trad.: Luís Afonso
Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.

221
Fernanda de Carvalho Lagee Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

somente é possível em um estado constitucional democrático no qual os


direitos do homem adquiram a forma de direitos fundamentais”14.
A igualdade supõe o reconhecimento de que as autonomias priva-
das não se submetem a crivos hierárquicos, nem podem, sob tal pretex-
to, conduzir a privilégios e restrições. A desigualação, quando permitida,
mira a igualdade efetiva, reconhecendo-se que as distinções do ponto de
partida podem afetar o resultado dos pontos de chegada.
Diante de situações sociais nas quais segmentos encontram-se num
ambiente já permeado por um histórico de discriminação, a solução não
pode adotar como referência uma pessoa determinada. Ainda que al-
guém, num caso concreto, e à luz de suas especificidades tenha conse-
guido romper as travas que se lhe opuseram, é a desigualação sistemá-
tica de outros em condições assemelhadas que deve orientar a busca
de medidas. É o caso, por exemplo, de crianças, idosos, hipossuficientes,
homossexuais e mulheres. Histórica e estruturalmente não se dá a tais
segmentos a igualdade de competição que poderia justificar, ao sabor
dos talentos e esforços individuais, a obtenção de resultados pessoais
distintos. É nesta realidade que medidas de ação positivas reparadoras
ou transformadoras devem ser adotadas, ainda que em caráter não pe-
rene.
A igualdade real de oportunidades para o exercício dos direitos
pode depender destas ações, cognominadas discriminações positivas.
Elas devem compreender não apenas acessos, mas acompanhamentos
e, ao final, o devido prestígio social. É preciso “compreender que a desi-
gualdade não somente é derivada de uma distribuição injusta dos bens
econômicos e sociais, como também do reconhecimento15”.
Quando se fala na discriminação contra a mulher, se fala de uma
desigualdade que não é natural, mas que surge como produto de uma
dada estruturação social. Assim, para que esse grupo possa exercer seus
direitos em condições de igualdade, é preciso ditar medidas estatais de
ação positiva.
A exigência de igualdade se apresenta com viés de não dominação
e não submissão, implicando uma visão crítica sobre a igualdade. Deve

14. Ibidem, p. 101.


15. EPPING, Léa; PRÁ, Jussara Reis. Cidadania e feminismo no reconhecimento dos direitos hu-
manos das mulheres. Estudos Feministas. Florianópolis, v. 20, n1:344, jan./abr., 2012, p. 142,
tradução nossa.

222
Cap. 8 • A mulher e o Poder Judiciário no Brasil

sobrepairar sobre a mera igualdade formal ou jurídica, ascendendo a


uma igualdade social relevante. Em um contexto democrático, nenhuma
concretização do princípio da igualdade pode ser considerada válida se
alija e menoscaba a participação daqueles que se encontram na situação
concreta de disparidade, como é o caso das mulheres.
A abordagem feminista pós-moderna é distinta das abordagens an-
tigas. Ela reconhece que há pontos de vista feministas contraditórios e
conflituosos e aceita a impossibilidade da noção unitária da verdade.
O pós-modernismo tenta transcender o que está associado a valores e
princípios presentes na investigação tradicional nas ciências sociais. En-
tre esses valores e princípios destaca-se a noção de sujeito universal,
transcendental. Na pós-modernidade, “a luta feminista se transfere para
o nível espectral e individual, [...] o ângulo analítico deve inspirar uma
acção que encurte a distância entre o indivíduo, a encarnação do poder
democrático e as condições sociais do exercício do poder16”.
O feminismo pós-moderno se alimenta da criatividade cultural das
artes, arquitetura, filosofia e no exame de novas formas de produção e
distribuição econômicas, desafiando a ideia que existe uma base unitá-
ria de identidade e experiência dividida por todas as mulheres.
Pode-se citar como raízes do feminismo pós-moderno: Derrida
(1978 e 1981), Lacan (1995) e Simone de Beauvoir (1949). As femi-
nistas pós-modernas rejeitam a afirmação de que existe uma grande
teoria que é capaz de explicar a posição das mulheres na sociedade, ou
que possa haver uma essência ou categoria única e universal de “mu-
lher”. E, como consequência, tais feministas rejeitam as noções usa-
das para explicar a desigualdade de gênero – como patriarcado, raça
ou classe – como algo essencialista. Ao contrário, “o pós-modernismo
incentiva a aceitação de muitos pontos de vista diferentes como igual-
mente válidos. Em vez de haver um núcleo essencial do caráter femini-
no, existem muitos indivíduos e grupos, todos com experiências muito
diferentes17”.

16. FERREIRA, Virgínia. O Feminismo na pós-modernidade. Revista Crítica de Ciências Sociais. Fa-
culdade de Coimbra. n. 24. mar. 1988, p. 104.
17. GIDDENS, Anthony. Sociologia. Trad.: Ronaldo Cataldo Costa. 6. ed. Porto Alegre: Penso, 2012,
p. 444. Desse modo, a “ênfase no lado positivo da ‘alteridade’ é um tema importante no fe-
minismo pós-moderno, e simboliza a pluralidade, diversidade, diferença e abertura: existem
muitas verdades, muitos papéis e muitas construções da realidade”. GIDDENS, Anthony. Socio-
logia. Trad.: Ronaldo Cataldo Costa. 6. ed. Porto Alegre: Penso, 2012, p. 444.

223
Fernanda de Carvalho Lagee Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

Desse modo, é ponto central do feminismo pós-moderno o reconhe-


cimento da diferença (de sexualidade, raça, idade, cor, entre outras). Por
conseguinte, diferencia-se das linhas de feminismo anteriores a ele, vez
que defende não ser possível criar explicações gerais para a opressão
das mulheres, passando a conceber a categoria mulher como uma cons-
trução social e discursiva18.
Como referência, tem-se Judith Butler, para quem a principal tarefa
do feminismo é reconstruir o processo de formação das identidades de
gênero. Sua visão pós-moderna do feminismo conflui na desconstrução
da base unitária de identidade compartilhada por todas as mulheres,
bem como na renúncia à busca da estrutura universal da dominação da
mulher19.
Questiona que as mulheres querem se tornar sujeitos com base em
um modelo que exige e produz uma região anterior de degradação, e que
deve o feminismo tornar-se um processo autocrítico sobre os processos
que produzem e desestabilizam categorias de identidade20.
Apesar das diferenças entre os movimentos modernos e pós-mo-
dernos do feminismo, esse conjunto de ideias vem trazendo uma nova
feição à vida cotidiana, bem como à produção e revisão cultural21.
Assim sendo, o feminismo segue na sua proposta de reavaliação
própria dos valores da razão, da verdade e igualdade. E talvez se possa
associar tal ambivalência dos estudos feministas “a uma tentativa de sín-
tese, uma terceira alternativa que não a moderna e pós-moderna, qual
seja, uma justaposição e uma acomodação mútua entre diferentes nar-
rativas culturais e políticas22”.

18. MENDES, Mary Alves. Estudos Feministas: Entre Perspectivas modernas e pós-modernas. Ca-
dernos de Estudos Sociais, Recife, v. 18, n. 2, p. 223-238, jul./dez. 2002.
19. Pois essa universalidade é ilusória não apenas quando se refere ao fundamento da domina-
ção, mas também à própria identidade do dominado. Assim: “Uma teoria social comprome-
tida com a disputa democrática dentro de um horizonte pós-colonial precisa encontrar uma
maneira de pôr em questão os fundamentos que é obrigada a estabelecer”. BUTLER, Judith.
Contingent Foundations: Feminism and the Question of “Postmodernism”. Trad.: Pedro Maia
Soares. University of California at Berkeley. Nova York, 1990, p. 14-15.
20. BUTLER, Judith. Contingent Foundations: Feminism and the Question of “Postmodernism”.
Trad.: Pedro Maia Soares. University of California at Berkeley. Nova York, 1990, p. 24.
21. LAMEGO, Valéria. Quando o feminismo é pós-moderno. Estudos feministas, p. 219-220. Arqui-
vo digital.
22. MENDES, Mary Alves. Estudos Feministas: Entre Perspectivas modernas e pós-modernas. Ca-
dernos de Estudos Sociais, Recife, v. 18, n. 2, p. 223-238, jul./dez. 2002, p. 233.

224
Cap. 8 • A mulher e o Poder Judiciário no Brasil

Há, então, uma demanda por justiça social que tem sido chamada de
“a política do reconhecimento”. Nesta, o objetivo é contribuir para um
mundo amigo da diferença, em que a assimilação à maioria ou às normas
culturais dominantes não é mais o preço do igual respeito. Cita-se, por
exemplo, demandas por reconhecimento das perspectivas diferenciado-
ras de minorias étnicas, raciais, e sexuais, assim como da diferença de
gênero23. O gênero é uma categoria pautada na política econômica e na
cultura.
Em uma visão da justiça, “a emancipação de papeis sociais opres-
sores requer a formulação de princípios de justiça que condicionem a
validade moral das narrativas que resultam desses diálogos24”, e para
tanto, “é preciso que a luta contra a desigualdade não deságue numa re-
pressão à diferença25”, o que demanda políticas publicas que promovam
a igualdade na participação política.
Nesse sentido, tem-se que “o que distingue ciência androcêntrica e
ciência ginocêntrica não é serem as ciências só para homens ou só para
mulheres, mas a perspectiva de que cada uma delas é, respectivamente,
masculina e feminina26”. O androcentrismo (um padrão de valor cultu-
ral que privilegia traços associados à masculinidade) é uma das princi-
pais características da injustiça de gênero, e a consequência é a visão da
mulher enquanto subordinada e deficiente, incapaz de participar com
igualdade da vida social.
O gênero é, para Nancy Fraser, uma coletividade bivalente, que com-
bina uma dimensão de classe, que o lança no âmbito da redistribuição,
com uma dimensão de status, que o lança no âmbito do reconhecimento.
E, a solução da injustiça de gênero implica alterações na estrutura econô-
mica e na ordem de status da sociedade, ou seja, só pode ser remediada

23. FRASER, Nancy. Redistribuição, Reconhecimento e Participação: por uma concepção integra-
da de justiça. In: SARMENTO, D.; IKAWA D.; PIOVESAN, F. (Org.). Igualdade, diferença e direitos
humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
24. CHAMBOULEYRON, Ingrid Cyfer. A tensão entre modernidade e pós-modernidade na crítica
à exclusão no feminismo. 2009. 140 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2009, p. 97.
25. Ibidem, p. 98.
26. MIGNOLO, Walter D. Os esplendores e as misérias da “ciência: colonialidade, geopolítica do
conhecimento e pluri-versalidade epistêmica. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimen-
to prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revistado. 9. ed. São Paulo:
Cortez, 2003, p. 685 (Grifo do autor).

225
Fernanda de Carvalho Lagee Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

por uma abordagem que envolva tanto a política da redistribuição como


a política do reconhecimento27.
Na perspectiva da pós-modernidade as implicações no feminismo
trouxeram novos desafios à teoria e lutas feministas: a crítica ao essen-
cialismo e a necessidade do pluralismo e da diversidade. Também, a
importância de manter uma análise histórica da situação da opressão,
porque as relações de poder entre mulheres e homens não se reduzem a
um aspecto da vida social.
No estudo Gender and Power (1987), R. W. Connell faz uma nar-
rativa teórica sobre o gênero em que as masculinidades são uma parte
crítica da ordem de gênero e estuda como o poder social dos homens
cria e sustenta a desigualdade. Defende que é por meio de um campo
organizado de prática e relações sociais humanas que as mulheres são
mantidas em posições subordinadas ao homem28. Nas Instituições e no
Estado com um todo, tais práticas demonstram os principais locais em
que as relações de gênero são constituídas e contidas, o poder atua por
meio de relações sociais como autoridade, violência e ideologia.
Os direitos da mulher ao bem-estar (e os diretamente voltados para
a promoção desse bem-estar) e à sua livre condição de agente figuram
na pauta dos movimentos feministas atuais. Os aspectos que dizem res-
peito à livre condição de agente da mulher estão recebendo atualmente
mais atenção, e têm sido objeto de discussões.
Na contemporaneidade as mulheres são vistas cada vez mais como
agentes ativos de mudança, responsáveis pela promoção dinâmica de
transformações sociais “que podem alterar a vida das mulheres e dos
homens29”.
Os diferentes aspectos da situação feminina (potencial para auferir
rendimentos, papel econômico fora da família, alfabetização e instrução,
etc.) podem parecer muito variados e contrários, mas todos têm em co-
mum “a sua contribuição positiva para fortalecer a voz ativa e a condi-
ção de agente das mulheres – por meio da independência e do ganho do
poder30”.

27. Ibidem.
28. CONNELL, Raewyn; CONNELL, Robert. Gender and power: society, the person and sexual poli-
tics. California: Stanford University Press, 1987.
29. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad.: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2010, p. 246 (Grifo do autor).
30. Ibidem, p. 249.

226
Cap. 8 • A mulher e o Poder Judiciário no Brasil

A preocupação com as privações e sofrimentos das mulheres gera


uma necessidade urgente e básica de adotar uma abordagem voltada
para a condição de agente na pauta feminina.

4. A REALIDADE DA PRESENÇA DAS MULHERES NOS TRIBUNAIS


NO BRASIL
Na magistratura, os homens predominam: representam 48,4% da
população e 61,2% dos juízes31.
Em 2014 as magistradas correspondiam a 35,9% do universo de
magistrados, conforme Censo do Poder Judiciário realizado pelo CNJ.
Ademais, a pesquisa em comento identificou que quanto maior o nível
da carreira na magistratura, menor era a participação feminina, sendo
ela representada por 44% dos juízes substitutos, 39% dos juízes titula-
res, 23% dos desembargadores e apenas 16% dos ministros de Tribu-
nais superiores32.
O Conselho Nacional de Justiça, considerando os dados sobre re-
presentatividade feminina que constataram a assimetria na ocupação
de cargos no Poder Judiciário, publicou, em 04 de setembro de 2018,
a Resolução CNJ nº 255 que instituiu a Política Nacional de Incentivo à
Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, ratificando seu
compromisso na eliminação de todas as formas de discriminação contra
a mulher33.
A Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina no Poder
Judiciário dispõe que todos os ramos e unidades do Poder Judiciário de-
verão adotar medidas tendentes a assegurar a igualdade de gênero no
ambiente institucional, propondo diretrizes e mecanismos que orien-
tem os órgãos judiciais a atuar para incentivar a participação de mu-
lheres nos cargos de chefia e assessoramento, em bancas de concurso e
como expositoras em eventos institucionais34.

31. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciá-
rio. Brasília: CNJ, 2019, p. 07.
32. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Censo do Poder Judiciário – VIDE: vetores iniciais e da-
dos estatísticos. Brasília: CNJ, 2014, p. 06.
33. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 255 de 04/09/2018. Institui a Política
Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. DJE/CNJ nº
167/2018, de 05/09/2018, p. 59.
34. Ainda, conforme art. 3º da Res. CNJ nº 255, a Política deverá ser implementada pelo Conselho
Nacional de Justiça por meio da criação de grupo de trabalho, responsável pela elaboração

227
Fernanda de Carvalho Lagee Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

Nesse contexto, em 2019 o Conselho Nacional de Justiça publicou o


relatório de Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário,
analisando as informações sobre magistradas e magistrados que atua-
ram nos Tribunais nos últimos 10 anos (2008-2018), incluindo aposen-
tadorias e afastamentos de jurisdição nos 68 tribunais respondentes.
Concluiu-se que o Poder Judiciário brasileiro é composto em sua
maioria por magistrados do sexo masculino, com apenas 38,8% de ma-
gistradas em atividade, conforme dados do relatório de 2019. A partici-
pação feminina na magistratura é ainda menor ao se considerar o total
de magistrados que atuaram nos últimos 10 anos, com 37,6%35.
Nas instâncias superiores, os dados são mais menos favoráveis.
O percentual de magistradas nos cargos de Desembargadoras, Correge-
doras, Vice-Presidentes e Presidentes aumentou nos últimos 10 anos,
entretanto, ainda permanecem no patamar de 25% a 30%36.
O percentual de magistradas em Tribunais superiores reduziu de
23,6% nos últimos 10 anos para 19,6% ao considerar somente as magis-
tradas em atividade37.
Quanto ao percentual de magistradas por cargo e ramo de justiça, a
Justiça do Trabalho se sobressai por apresentar nos últimos 10 anos os
maiores percentuais de magistradas em todos os cargos, com ênfase na
composição de 41,25% de Presidentes do sexo feminino. Em oposição,
a Justiça Militar Estadual apresentou os menores percentuais de magis-
tradas38. Na Justiça Eleitoral, o percentual de magistradas ao final 2018
ficou abaixo da média dos últimos 10 anos, passando de 33,6% para
31,3%, ao considerar somente magistrados e magistradas em atividade,
bem como, em média, as mulheres ocuparam somente de 15% a 23%
dos cargos de Presidente, Vice-Presidente, Corregedora ou Ouvidora nos
últimos 10 anos39.

de estudos, análise de cenários, eventos de capacitação e diálogo com os Tribunais sobre o


cumprimento da Resolução, sob a supervisão de Conselheiro e de Juiz Auxiliar da Presidência
do Conselho Nacional de Justiça, indicados pela sua Presidência.
35. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciá-
rio. Brasília: CNJ, 2019, p. 07.
36. Ibidem, p. 09.
37. Ibidem, p. 17.
38. Ibidem, p. 09.
39. Ibidem, p. 31.

228
Cap. 8 • A mulher e o Poder Judiciário no Brasil

Dessa forma, nota-se que o percentual de participação feminina na


magistratura ainda é baixo, porém, vem aumentando partindo de 24,6%,
em 1988, para 38,8% em 201840.

5. A MULHER NA MAGISTRATURA MILITAR


No Judiciário Federal Castrense da 1ª instância o número de juízas
é ainda pequeno, 11, numa totalidade de 39 magistrados. Diferentemen-
te, e muito pior, é a situação observada no âmbito do Superior Tribunal
Militar (STM), o órgão de cúpula desta Justiça Especializada, onde sou a
primeira e única mulher a ocupar cargo de ministro nos seus 211 anos
de existência.
E esta situação se deve ao fato de que, nas instâncias superiores os
cargos são providos por indicação política, diminuta é a participação
feminina; não por falta de competência ou merecimento, mas, pelas di-
ficuldades de se transitar em espaços historicamente ocupados por ho-
mens.
Quando se chega ao ápice da carreira jurídica, a disputa não depen-
de mais de um concurso público de provas e títulos, ou seja, do acesso
meritório, momento no qual o acesso das mulheres é dificultado.
No caso específico do Superior Tribunal Militar, as barreiras à par-
ticipação feminina surgem, também, como reflexo da situação existente
no interior das Forças Armadas. A Justiça Militar da União ou Federal
que detêm jurisdição em todo o território nacional, no primeiro grau, é
composta por 12 Circunscrições Judiciárias, divididas em 19 auditorias.
E o Superior Tribunal Militar, é integrado por 15 ministros vitalí-
cios, sendo 3 oficiais-generais da Marinha, 4 oficiais-generais do Exér-
cito, 3 oficiais-generais da Aeronáutica, todos da ativa e do posto mais
elevado da carreira. Conta, ainda, com 5 civis: 3 oriundos da advocacia,
1 do Ministério Público Militar e 1 da Magistratura Militar. Todos, são
indicados pelo Presidente da República, com a aprovação do Senado
Federal.
Por imposição constitucional, os ministros devem ser generais do
último posto e patente. Por isso, é fundamental a abertura nas Forças
Armadas para o ingresso feminino em toda a sua amplitude, pois do con-
trário, elas não poderão tornar-se magistradas da Corte Superior Militar

40. Ibidem, p. 42.

229
Fernanda de Carvalho Lagee Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

na vaga destinada aos brigadeiros, almirantes e generais, como ocorre


presentemente.
E a plena aceitação da mulher no Exército, Marinha e Força Aérea,
foi e continua sendo uma jornada longa e inconclusa, que ainda deman-
da avanços.
A integração da mulher nas Forças Armadas iniciou-se quando o
Brasil ingressou na 2ª Guerra Mundial, em 1942. Naquele momento foi
necessário organizar a Força Expedicionária Brasileira, a FEB, para lu-
tar nos campos de batalha. As Forças Armadas sequer contavam com
enfermeiras em seus quadros, sendo elas urgentemente recrutadas, e
recebido treinamento para que pudessem acompanhar as tropas. Assim,
67 mulheres partiram em 12 de julho de 1944, com destino aos Estados
Unidos, antes de seguirem para a Itália. Lá chegando, em 7 de outubro
de 1944, retornaram ao Brasil em 3 de julho de 1945, quando o grupo
foi desmobilizado.
Somente após a guerra é que elas foram consideradas integrantes
da Força Expedicionária Brasileira (FEB), pelo Presidente Getúlio Var-
gas, passando a adquirir todos os direitos dos militares da FEB.
Na Força Aérea a mulher pode ingressar no quadro da aviação e ser
promovida à patente de Tenente Brigadeiro do Ar, ou seja, tornar-se ge-
neral de quatro estrelas, que como disse, faz-se necessário para a ascen-
são ao cargo de Ministro do STM na vaga da Força Aérea.
No Exército, apesar da reestruturação dos seus quadros, as mulhe-
res ainda não podem ingressar nas Armas da Artilharia, Infantaria, Ca-
valaria, Comunicações e Engenharia. Somente podem no Serviço de In-
tendência e no Material Bélico. Dentre os dois últimos, apenas o Material
Bélico propicia o acesso ao generalato de quatro estrelas, equivalente
à patente de General de Exército. Assim, só em um único quadro elas
poderão disputar a promoção juntamente com os oficiais do sexo mas-
culino que a ela pertencem. Isso significa que muito provavelmente elas
não chegarão ao STM como Ministras.
Por fim, na Marinha graças a uma lei aprovada no final de 2017, as
mulheres já ingressam na Escola Naval e, portanto, poderão ser promo-
vidas a Almirantes de Esquadra, Almirantes de 4 estrelas e, tal qual a
Aeronáutica, disputarem uma vaga no STM.
A diversidade de gêneros nas Forças Armadas é um cenário positivo
para a igualação, a repercutir-se positivamente na magistratura Militar,
mas um longo caminho ainda necessita ser trilhado.

230
Cap. 8 • A mulher e o Poder Judiciário no Brasil

6. UMA PROPOSTA PARA AMPLIAR O NÚMERO DE DESEMBARGA-


DORAS E MINISTRAS
A constatada desigualdade das mulheres, em especial nos cargos
de desembargadoras e ministras de Tribunais, sugere a necessidade da
adoção de ações afirmativas.
A promoção dos juízes e juízas de última instância (no caso da Jus-
tiça Comum Estadual) ou dos juízes e juízas federais elegíveis, é feita
respectivamente pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Fede-
rais. São Cortes formadas, majoritariamente, por homens. A escolha de
uma mulher, portanto, é uma possibilidade menor, vez que é próprio da
experiência humana preferir aqueles que se parecem com o escolhedor.
No caso dos Tribunais superiores – exceto do Supremo Tribunal Fe-
deral – a escolha é um ato jurídico complexo, somando as vontades das
próprias Cortes e do Presidente da República.
A escolha por cooptação é um dos campos mais férteis para a dis-
criminação e, portanto, dos que mais necessitam de ações afirmativas,
como as quotas.
Analisando a Constituição de 1988, percebe-se sua preocupação
com a composição plural dos Tribunais, que se revela na exigência do
“quinto constitucional”, ou seja, um percentual de membros do Ministé-
rio Público e da Advocacia que deverão compor as Cortes. É o que consta
do artigo 94:
Art. 94. Um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos
Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios será composto
de membros, do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e
de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais
de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla
pelos órgãos de representação das respectivas classes.
Parágrafo único. Recebidas as indicações, o tribunal formará lista trí-
plice, enviando-a ao Poder Executivo, que, nos vinte dias subsequentes,
escolherá um de seus integrantes para nomeação.
No caso do Superior Tribunal de Justiça, essa demanda por plurali-
dade alcança um terço dos ministros:
Art. 104. O Superior Tribunal de Justiça compõe-se de, no mínimo, trinta
e três Ministros.
I – um terço dentre juízes dos Tribunais Regionais Federais e um terço
dentre desembargadores dos Tribunais de Justiça, indicados em lista
tríplice elaborada pelo próprio Tribunal;

231
Fernanda de Carvalho Lagee Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

II – um terço, em partes iguais, dentre advogados e membros do Minis-


tério Público Federal, Estadual, do Distrito Federal e Territórios, alter-
nadamente, indicados na forma do art. 94.
A exigência que demanda a Justiça Especializada do Trabalho:
Art. 111-A. O Tribunal Superior do Trabalho compor-se-á de vinte e sete
Ministros, escolhidos dentre brasileiros com mais de trinta e cinco anos
e menos de sessenta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação
ilibada, nomeados pelo Presidente da República após aprovação pela
maioria absoluta do Senado Federal, sendo:
I – um quinto dentre advogados com mais de dez anos de efetiva ativida-
de profissional e membros do Ministério Público do Trabalho com mais
de dez anos de efetivo exercício, observado o disposto no art. 94;
II – os demais dentre juízes dos Tribunais Regionais do Trabalho, oriun-
dos da magistratura da carreira, indicados pelo próprio Tribunal Supe-
rior.
E que, por igual, vale para a Justiça Militar da União:
Art. 123. O Superior Tribunal Militar compor-se-á de quinze Ministros
vitalícios, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada
a indicação pelo Senado Federal, sendo três dentre oficiais-generais da
Marinha, quatro dentre oficiais-generais do Exército, três dentre ofi-
ciais-generais da Aeronáutica, todos da ativa e do posto mais elevado da
carreira, e cinco dentre civis.
Parágrafo único. Os Ministros civis serão escolhidos pelo Presidente da
República dentre brasileiros maiores de trinta e cinco anos, sendo:
I – três dentre advogados de notório saber jurídico e conduta ilibada,
com mais de dez anos de efetiva atividade profissional;
II – dois, por escolha paritária, dentre juízes auditores e membros do
Ministério Público da Justiça Militar.
Vale dizer, a Constituição não considerou adequado que os Tribu-
nais brasileiros fossem formados apenas pela adoção dos critérios de
antiguidade e merecimento, que tornariam apenas juízes elegíveis. Cui-
dou de assegurar um “arejamento”, uma medida para evitar o corporati-
vismo e a cláusula institucional que poderiam advir de uma composição
que não agregasse outros critérios a não ser a antiguidade e o mereci-
mento.
É hora de se valer desta preocupação constitucional e reconhecer
que a pluralidade não é apenas remédio contra o corporativismo, mas
pode ser também medicamento para a clausura de gênero. O quinto
constitucional, ao estabelecer quotas de promotores e advogados, em-
bora não seja uma ação afirmativa, mostra um caminho de busca por
pluralidade.

232
Cap. 8 • A mulher e o Poder Judiciário no Brasil

Ele inspira a constitucionalidade de uma proposta para que conste


que “alcançado o percentual superior a 70% (setenta por cento) de um
gênero no Tribunal, as promoções por merecimento deverão recair so-
bre o outro gênero, até assegurar o mínimo de 30% (trinta por cento)”41.
Ressalta-se que tal proposição, embora eficaz para os Tribunais de
Justiça e Tribunais Regionais Federais, não seria aplicável ao TST, STJ, e
STM, caso em que nesses Tribunais seria necessária outra fórmula que
levasse ao aumento da presença feminina, cuja proposta seria: “alcan-
çado o percentual superior a 70% (setenta por cento) de um gênero no
Tribunal, as indicações deverão recair sobre o outro gênero, até assegu-
rar o mínimo de 30% (trinta por cento)42”.
Tais medidas poderiam, a nosso ver, ser tratada na Lei Orgânica da
Magistratura Nacional, Lei Complementar nº 35, de 1979, o que depen-
deria de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, à luz do artigo 93 da
Constituição Federal. Alternativamente, tal proposições poderiam vir
em emenda constitucional.
Este percentual é inspirado em quota assemelhada, de lançamento
de candidaturas proporcionais, trazida pela Lei 9.504/97, Lei das Elei-
ções. Segundo o que consta em seu artigo 11:
Art. 10. Cada partido ou coligação poderá registrar candidatos para a
Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legisla-
tivas e as Câmaras Municipais no total de até 150% (cento e cinquenta
por cento) do número de lugares a preencher (...):

§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo,


cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cen-
to) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada
sexo.

É quota que assegura um percentual mínimo, mas não garante, à fór-


ceps, a paridade de gênero dos membros dos Tribunais. Há por um lado,
o critério de antiguidade que, como indicamos, é neutro. Ele pode levar,
em determinado momento, a promoção de maior número de homens
ou de mulheres. Por outro lado, porém, e principalmente, trata-se de
um índice mínimo. A aproximação à paridade dependerá da capacidade

41. Sabe-se que tal índice é um ponto de partida para a promoção da igualdade de gênero, e que
há Tribunais inclusive que já o superaram. Mas a quota se justifica tendo em vista que ainda
há muitos outros com percentuais muito abaixo do mínimo.
42. O Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, tendo em vista as regras especí-
ficas de nomeação dos seus ministros, demandariam estudo autônomo.

233
Fernanda de Carvalho Lagee Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

dos membros dos Tribunais de reconhecer, no universo dos membros


da magistratura de piso, a busca pela igualdade e a resplandecência do
talento feminino.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intervenção do Poder Público, em contraposição à neutralidade
estatal, reveste-se de função pedagógica, porque não apenas coíbe a
discriminação e promove o nivelamento, como serve de modelo ao se-
tor privado para que adote iniciativas semelhantes. Longe de refletir
um caráter assistencialista, reflete um ideal republicano que propõe
romper as estruturas arcaicas, caracterizando-se como uma conquista
civilizatória.
Afinal, está mais do que demonstrado que os seres humanos estão
ainda confinados à lugares preestabelecidos na hierarquia social dos se-
res sexuados. E neste entrelaçamento do mundo natural com o mundo
social, muitas vezes injusto e desigual, ele se conscientiza daquilo que
carece e do que gostaria de ser.
A história do feminismo possibilita reflexões sobre a construção co-
letiva da identidade da mulher diferenciada e alheada de uma cultura
patriarcal hegemônica, legitimando-nos a um melhor enfrentamento
dos desafios deste novo milênio.
Não há nas dimensões política e teórica do movimento feminista ex-
plicações ou interpretações fechadas sobre a realidade e as relações de
gênero. Assim, é possível concluir que não existe uma única definição
do ser mulher, e tentar fazer essa definição é inviável. O feminismo pós-
-moderno critica as epistemologias modernas, pois não concorda que
haja uma base unitária de identidade e experiência compartilhada por
todas as mulheres, compreendendo-a como uma construção social.
Os estudos feministas reivindicaram a categoria “mulheres” enquan-
to objeto de análise frente a uma ciência acadêmica androcêntrica. Du-
rante a história se observou a capacidade de mobilização das mulheres,
tendo em vista as transformações impulsionadas pelo ideário feminista
e por suas práticas participativas. No que concerne à relação de traba-
lho, o feminismo tem uma dimensão política profundamente crítica e
libertadora, e que enquanto teoria e prática apresenta uma função social
eminentemente política, pois pretende tornar o mundo mais humano,
livre e solidário, não somente para as mulheres.

234
Cap. 8 • A mulher e o Poder Judiciário no Brasil

Falar do feminismo e da pós-modernidade, significa ter presentes


as diferentes ocasiões pelas quais passa o feminismo no processo de
construção de suas diferentes identidades. Portanto, como sugere o fe-
minismo, desconstruir estereótipos e falsas dicotomias e caminhar em
direção à igualdade de direitos e à equidade de gênero são condições in-
dispensáveis para quem vislumbra uma sociedade democrática e cidadã.
Certamente, é esperado que uma mulher magistrada deve a outra
mulher estender a mão e ajudar seu crescimento e aspiração. Há uma
responsabilidade social e no auxílio a outras mulheres a alcançar os ob-
jetivos desejados.
Uma sociedade plural não pode ser julgada por um estamento ex-
clusivista. Não é que só mulheres possam julgar mulheres ou somente
homens possam julgar homens. Essa é uma versão reducionista de algo
que, na verdade, deve significar a abertura para uma enorme variedade
de experiências. O que representa uma distorção, não apenas no Poder
Judiciário, mas em todas as instâncias de Poder, é que haja o acentuado
predomínio de somente um segmento. Aos poucos, as particularidades
desse segmento predominante passam a ser difundidas como se fossem
gerais, de todos os segmentos da sociedade. É nesse momento que a Jus-
tiça passa a ser enviesada. A presença de mulheres, de negros, de ho-
mossexuais não é pensada para que cada um julgue os seus “iguais”, mas
para que a Justiça se descubra como um corpo social tão plural quanto a
sociedade que espera seus serviços. Além, claro, de significar igualdade
de chances de acesso.
As mulheres com acesso ao poder não devem permitir que isso as
separe do conhecimento do que significa ser mulher nesta sociedade43.
Então, como as mulheres juízas podem aumentar a participação das ou-
tras magistradas no Poder Judiciário e na sociedade?
Algumas escritoras feministas estão convencidas de que a nomea-
ção de mais juízas terá um impacto no processo de tomada de decisão
judicial e no desenvolvimento da lei substantiva. Isso decorre da cren-
ça de que as mulheres veem o mundo e o que acontece nele sob uma
perspectiva diferente dos homens. As mulheres pensam de maneira di-
ferente dos homens, principalmente ao responder a dilemas morais. Se
advogadas e juízes, através de suas diferentes perspectivas sobre a vida,

43. WAHL, Rosalie E. Some reflections on Women and the Judiciary. Law & Inequality: a Journal of
Theory and Practice, v. 4, n. 1, p. 153-157, 1986.

235
Fernanda de Carvalho Lagee Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

puderem trazer uma nova humanidade para o processo de tomada de


decisão, talvez elas façam a diferença44.
Uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos enseja uma
relação de igualdade entre indivíduos e entre estes e o Estado, indepen-
dentemente das disposições de liberdade individuais e sociais.

8. REFERÊNCIAS
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Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.
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-Universitária, 1981.
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ponível em: <http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/
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em: 02 jul. 2019.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Diagnóstico da participação feminina no Poder Ju-
diciário. Brasília: CNJ, 2019.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 255 de 04/09/2018. Institui a Política
Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário.
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BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Censo do Poder Judiciário – VIDE: vetores iniciais e
dados estatísticos. Brasília: CNJ, 2014.
BUTLER, Judith. Contingent Foundations: Feminism and the Question of “Postmoder-
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1990.
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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
2009.
CONNELL, Raewyn; CONELL, Robert. Gender and power: society, the person and sexual
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51, abr. 2012 .
FERREIRA, Virgínia. O Feminismo na pós-modernidade. Revista Crítica de Ciências So-
ciais, Faculdade de Coimbra, n. 24, mar. 1988.

44. WILSON, Bertha. Will Women Judges really make a difference? Osgoode Hall Law Journal, v.
28, n. 3, p. 507-522, 1990.

236
Cap. 8 • A mulher e o Poder Judiciário no Brasil

FRASER, Nancy. Redistribuição, Reconhecimento e Participação: por uma concepção in-


tegrada de justiça. In: SARMENTO, D.; IKAWA D.; PIOVESAN, F. (Org.). Igualdade,
diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
GIDDENS, Anthony. Sociologia. Trad.: Ronaldo Cataldo Costa. 6. ed. Porto Alegre: Penso,
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LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de
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LAMEGO, Valéria. Quando o feminismo é pós-moderno. Estudos feministas, p. 219-220.
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MENDES, Mary Alves. Estudos Feministas: Entre Perspectivas modernas e pós-modernas.
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MIGNOLO, Walter D. Os esplendores e as misérias da “ciência: colonialidade, geopolítica
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Conhecimento prudente para uma vida decente. ‘Um Discurso sobre as Ciências re-
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(org.), Teoria e Práxis dos Enfoques de Gênero. Salvador: REDOR-NEGIF, 2004, p. 17-
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237
9
EL DEBIDO PROCESO
CON ENFOQUE DE GÉNERO
EN COLOMBIA
María Luisa Rodríguez Peñaranda1

Sumario: 1. Introducción; 2. El andamiaje del debido proceso y la igualdad


ante la ley; 3. Debido proceso con enfoque de género; 3.1. El Principio de debida
diligencia; 3.2. La garantía de un recurso judicial efectivo; 3.3. Obligación de
investigar; 3.4. Obligación de juzgar, castigar y reparar; 4. El método feminista
del posicionamiento de Bartlett; 5. Conclusión; 6. Bibliografía.

1. INTRODUCCIÓN
El enfoque de género en el derecho es entendido como una herra-
mienta de interpretación que toma en consideración las relaciones de
poder gestadas a partir del género o sexo, y en especial, las desigualda-
des que tales asignaciones propician o crean en la sociedad, con el fin de
mitigarlas, neutralizarlas o compensarlas. Todo ello de conformidad con
la cláusula de igualdad y no discriminación consagrada en el artículo 13
de la Constitución de Colombia.
Tanto el derecho internacional como el nacional han identificado
una amplia gama de factores considerados sospechosos de discrimina-
ción, como la raza, la etnia, la clase, el origen nacional, la lengua, el géne-
ro o sexo, entre otros. Estos factores suelen producir, desde desventajas

1. CATEDRÁTICA EN DERECHO CONSTITUCIONAL COLOMBIANO – UNIVERSIDAD NACIONAL


DE COLOMBIA, CAMPUS BOGOTÁ; Doctora en derecho constitucional; profesora asociada; Di-
rectora del Observatorio Nacional de Justicia Real – ONJURE–, Facultad de Derecho, Ciencias
Políticas y Sociales, Universidad Nacional de Colombia.

239
María Luisa Rodríguez Peñaranda

socioeconómicas, marginalidad o exclusión, hasta prácticas condenadas


por el derecho internacional de los DDHH como el exilio o el exterminio.
La identificación de los grupos, colectivos o poblaciones en las que
frecuentemente recaen factores de discriminación ha revelado que éstos
tienden a imbricarse en un mismo sujeto, denominados por la Constitu-
ción como sujetos de especial protección, los cuales requieren de enfo-
ques diferenciales para ser receptores de políticas públicas que busquen
superar la brecha de desigualdad histórica, sin desconocer su identidad
y necesidades concretas.
En tanto que la primera es una herramienta jurídica que identifica
individuos pertenecientes a poblaciones vulnerables, la segunda deman-
da que las políticas públicas impulsadas para corregir las desigualdades
de ciertos colectivos no sean ciegas a las diferencias, de modo que una y
otra herramienta conceptual se necesitan y complementan para la reali-
zación del mismo fin: promover la igualdad real entre los individuos sin
menoscabar el reconocimiento de su identidad. El engranaje que confi-
guran ambos conceptos: sujetos de especial protección y enfoques dife-
renciales es lo que he venido denominando las tenazas de la igualdad2.
Aunque el diseño constitucional pareciera identificar grupos po-
blacionales con un solo factor de discriminación común, en ocasiones
generando el surgimiento de identidades estratégicas y/o disputas iden-
titarias en aras de obtener una ayuda económica concreta adaptable a la
oferta de beneficios económicos estatales (en ocasiones, mujer cabeza
de hogar, negra o desplazada según convenga). La mirada interseccio-
nal como aporte del feminismo negro estadounidense3 en el marco de
los Critical Legal Studies, vendría a complementar los enfoques diferen-
ciales y su tendencia a la esencialización. Estos aportes subrayan cómo

2. El concepto de tenazas de la igualdad lo formulé en «Dejando atrás la constitución del litigio


incluyente: el reto de la paz como bienestar social». Pensamiento Jurídico, 43, enero-junio,
Bogotá, 2016, pp. 349-375.
3. Kemberlé Crinshaw sería la abogada afrodescendiente estadounidense que nominó el fenó-
meno ya detectado por las feministas contribuyendo a su análisis y difusión. Para ello usó la
metáfora de la intersección como cruce de dos vías o caminos, en cuyo encuentro se invisibi-
liza la particularidad que se genera cuando un sujeto reúne más de un factor de discrimina-
ción, particularmente raza y género como las mujeres negras, al que pronto se sumarían las
latinoamericanas (feminismo chicano), mujeres del tercer mundo (feminismo poscolonial),
inmigrantes. Bajo el argumento feminista de que lo que no tiene nombre no puede compren-
derse ni superarse. CRENSHAW, Kimberlé, «Mapping the margins: Intersectionality, identity
politics, and violence against women of color», Stanford Law Review, 43, July 1991, pp. 1241-
1299.

240
Cap. 9 • EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA

puede generarse la superposición entre distintos factores de discrimi-


nación, principalmente entre la raza, el género y la clase, dando lugar a
situaciones de discriminación mayores o particulares soterradas en el
interior de uno o varios colectivos. Así sucede, por ejemplo, con las mu-
jeres negras frente a los reclamos del colectivo afroestadounidense que
identifica a los hombres como víctimas del discurso de la supremacía
del hombre blanco, pero que en el marco de ese discurso masculiniza la
opresión invisibilizando a las mujeres negras, las cuales tampoco se ven
reflejadas en las necesidades y reclamos de las mujeres blancas4.
Ahora bien, en el presente documento analizaré cómo el enfoque
de género ha sido considerado como una herramienta propia del dere-
cho sustancial que si bien involucra la interpretación de los derechos,
se encuentra fuertemente alejada de la parte más procedimental o de
aplicación cotidiana por los operadores jurídicos dentro y fuera de los
despachos judiciales. Al parecer, la práctica procesal suele hacer oídos
sordos de estas discusiones y sigue considerando que tales enfoques tie-
nen poco o nada que aportar al proceso judicial, administrativo o disci-
plinario.
Por el contrario, en el presente trabajo defenderé cómo el enfoque
de género, aplicado siempre desde una mirada interseccional en las po-
líticas de reconocimiento más no en las de redistribución, debe ser con-
siderado en todas las prácticas procesales pertenecientes a la solicitud,
decreto, práctica y valoración del material probatorio, como etapa pre-
via e indispensable para la adjudicación de los derechos.
Argumentaré cómo mientras el enfoque de género no sea imple-
mentado en la comprensión y práctica del derecho fundamental al de-
bido proceso, el acceso a la justicia y el derecho a una decisión eficaz
seguirá siendo fuertemente esquiva para las mujeres, niños, niñas y ado-
lescentes.
Para ello, el artículo se encuentra dividido en tres partes, en la pri-
mera de ellas recordaré las bases del principio/derecho al debido pro-
ceso e intentaré dilucidar sobre cómo la imparcialidad que lleva ínsito
dicho derecho puede llegar a validar la apatía e indiferencia de las y

4. Para una mayor profundización sobre el origen del concepto jurídico de interseccionalidad y
su difusión en las ciencias sociales; así como sus variables teóricas, contradicciones y críticas,
Vid. VIVEROS, Mara, «La interseccionalidad, una aproximación situada a la dominación», Re-
vista Debate Feminista, 52, 2016, pp. 1–17, descargable en http://debatefeminista.cieg.unam.
mx/.

241
María Luisa Rodríguez Peñaranda

los jueces frente al sufrimiento de la mitad de la humanidad, y más en


concreto, de las mujeres o los seres feminizados. En la segunda parte
haré una breve presentación sobre el concepto más instrumental de
género, sin profundizar sobre las identidades de nacimiento y su tran-
sición hacia otras, dejando de lado la muy importante discusión sobre
la apuesta por su deconstrucción como estrategia asumida por algunas
feministas queer, para derrumbar el edificio de la discriminación, tema
que desviaría la atención principal que quiero brindarle a este texto5.
En vez de ello, intentaré profundizar en un concepto básico, como he-
rramienta de partida que nos permita entender cómo dicho dispositi-
vo, al sumarse al debido proceso, no genera una mera subsunción, sino
una verdadera ruptura con la manera como hasta el momento hemos
entendido dicho derecho fundamental, ahora reconfigurado con el en-
foque de género. Por último y como tercer aspecto, traeré a colación el
método feminista planteado por Katherine T. Bartlett conocido como
«el posicionamiento» por considerarlo sumamente apropiado para el
abordaje del proceso judicial desde la experiencia feminista. El método
del posicionamiento revela el gran desafío que para los y las jueces su-
pone transgredir el conformismo, la pasividad e impunidad que hasta
el momento ha arropado a la rama judicial en la prevención, investiga-
ción, judicialización, sanción y reparación de la discriminación y vio-
lencias contra las mujeres.

2. EL ANDAMIAJE DEL DEBIDO PROCESO Y LA IGUALDAD ANTE


LA LEY
La contundente idea de que nadie puede ser condenado sin ha-
ber sido previamente vencido en un juicio justo es el fundamento del
principio/derecho al debido proceso. La fuerza de esta idea surge con
la firme intuición de que una sociedad justa es aquella en la que las
leyes que confiscan bienes mediante tributos y ordenan ir a la guerra
se apliquen a todos sin distinción ni privilegios, es decir que todos los
súbditos satisfagan de la misma manera las cargas de sostenimiento
del Estado especialmente las económicas y armadas. Con la supera-
ción del antiguo régimen, esta idea se consolidará bajo la aspiración de
construir una sociedad en la que se aplique la igualdad de trato ante la
ley, sea esta desfavorable (en las cargas u obligaciones) o favorable (en
los derechos).

5. Al respecto, ver BUTLER, Judith, Deshacer el género. Paidós Studio 167, Barcelona, 2006.

242
Cap. 9 • EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA

¿Cuándo hablamos de un proceso justo? Si bien el derecho no pre-


tende arribar a la construcción de un relato que dé cuenta de toda la
información disponible para construir la verdad, como lo hace un(a)
historiador(a), los/las jueces y abogados, circunscritos al marco de un
proceso judicial con dos partes determinadas, buscan obtener elemen-
tos de juicio que permitan esclarecer los hechos objeto de investigación
en igualdad «de armas». Con este fin utilizan todo de lo que se pueda
disponer para condenar al acusado por parte de la víctima, o exonerarlo
de toda responsabilidad, por parte de la defensa. El denominador común
con el que cuentan ambas partes es el material probatorio recaudado y
valorado bajo un halo de objetividad e imparcialidad judicial.
El aparato judicial ofrece entonces una serie de garantías dirigidas
a rodear de la máxima objetividad, imparcialidad y transparencia al pro-
ceso mismo, para que cada una de las partes pueda, sin distinción, con-
tar con un cúmulo de derechos que le son funcionales al rol contradictor
que ocupa dentro del proceso o actuación administrativa.
Así surgen los derechos a ser juzgado conforme a las leyes preexis-
tentes al acto que se le imputa (principio de legalidad y tipicidad); ante
un juez o tribunal competente (que excluye, por ejemplo, el juicio de
civiles ante tribunales militares); con observancia a la plenitud de las
formas propias de cada juicio (respeto y evacuación de cada una las eta-
pas y términos procesales con previa notificación); bajo la presunción
de inocencia del acusado; con derecho de defensa y a la asistencia téc-
nica escogida, o de oficio, durante la investigación y juzgamiento; a un
proceso sin dilaciones injustificadas; al principio de favorabilidad de la
ley penal; a solicitar pruebas y controvertirlas; a impugnar la sentencia
condenatoria y a no ser juzgado dos veces por el mismo hecho (non bis in
ídem). Además, otros principios (por ejemplo, in dubio pro reo (la duda
favorece al reo) o el del juez natural, entre otros) contribuyen a orien-
tar el proceso con una perspectiva hermenéutica de máxima garantía
para los enjuiciados y las víctimas. De suerte que ambos conceptos, el
derecho al debido proceso y la igualdad ante la ley. son los pilares de la
justicia en el marco de una democracia constitucional.
Dentro de la iconografía que acompaña esta pretensión de objetivi-
dad, imparcialidad y transparencia en el proceso judicial, dos símbolos
han sido construidos para transmitir dichos postulados: i) la imagen de
la justicia con los ojos vendados y ii) la toga. En la primera de ellas, la jus-
ticia se evoca en cuerpo de mujer, de pie, en una de sus manos eleva una
balanza y en la otra, blande una espada, lo que sugiere la ecuanimidad

243
María Luisa Rodríguez Peñaranda

de la decisión y la sanción implacable ante el desobedecimiento a la ley.


Pero todo esto sucede mientras tiene sus ojos vendados, de ahí la frase
común de que la justicia es ciega. Al ignorar quienes se someten a ella
en cuanto a sus condiciones sociales, de clase, género, origen, nacionali-
dad, lengua, religión, edad, raza o etnia, decide con el mismo rasero y sin
contemplaciones particulares que la distraerían de lo verdaderamente
importante: aplicar la ley en igualdad.
En segunda medida se encuentra la toga, ese traje oscuro, masculi-
no, largo, sin decorados ni formas que tiene por objeto ocultar la huma-
nidad del juzgador; detrás de este manto queda la historia personal y
las condiciones de los individuos, su biografía, sus experiencias, debili-
dades, gustos, preferencias, para dar paso al funcionario imparcial, que
desconociéndose así mismo se encuentra apto para conocer a los otros6.
A diferencia del velo de la ignorancia de Rawls, en su célebre Teoría
de la Justicia, aquí el juez ciego y sin humanidad no es parte de ningún
acuerdo, no se encuentra en igualdad con los procesados, ni tiene interés
en la forma como se resuelva la decisión (lo que generaría un conflicto
de interés, proscrito en la actuación judicial). El juez, observador pasivo,
se encuentra en un peldaño superior, pues de su libre convencimiento
plasmado en una decisión, penden las partes. La toga además neutra-
liza el género del funcionario porque esconde las formas femeninas y
los órganos de identidad sexual, por lo cual se espera que la justicia sea
asexuada, aunque la terminología militar que rodea el proceso –«igual-
dad de armas»– pareciera establecer un tablero de juego marcado por la
iconografía masculina.
«Pero la venda no siempre estuvo allí», recordó la Corte Constitucio-
nal colombiana en la sentencia SU-796 de 2014, a propósito de la simbo-
logía de la justicia cegada:
En un comienzo, incluso, esta era asumida negativamente como una
profunda limitación para cualquier persona así agobiada con la falta de
visión. En un grabado atribuido a Durero y que ilustra la obra de Sebas-

6. El uso de la toga, propia de los universitarios ingleses, se popularizó durante la revolución


francesa al ser elegida como la pieza que vestiría uniformemente al tercer estado o pueblo lla-
no, distinguiéndolos frente al clero –primer estado– y la nobleza –segundo– quienes habrían
de vestir el atuendo apropiado a su rango particular dentro del orden al que pertenecían.
El traje del tercer estado consistía en una capa de tela negra «peor incluso que la clase más
baja de togados en las universidades inglesas» aseguró un doctor inglés. Vid. MC PHEE, Peter,
La Revolución Francesa, 1789-1799. Una nueva historia. Crítica, Libros de historia, Barcelona,
2002, p. 65.

244
Cap. 9 • EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA

tián Brant de 1494, «La nave de los necios», aparece uno de los necios
(que siempre visten sombreros con orejas de asno) poniéndole la venda
a la justicia y, por ende, induciéndola al error y a la estulticia.
Es probable que el imaginario común de la justicia de ojos vendados,
como aquél frío e impávido funcionario que se limita a esperar que las
partes dispongan sus pretensiones sobre la balanza, no represente a
cabalidad el ideal del juez dentro del Estado social y democrático de
derecho.
Justamente estar con los ojos bien abiertos, observar a cada una de
las partes situadas en sus diferencias, comprender las formas de opre-
sión y privilegios que subyacen en sus interrelaciones, podría ser lo más
conveniente para un juez que siendo imparcial, no por ello sea indiferen-
te a la realidad. La intuición de la edad media, transmitida a nosotros por
el gran escultor y grabador Durero, es que la ceguera puede perpetuar la
injusticia en el escenario judicial, situación aún más intolerable en un es-
tado que se declara social de derecho, ergo, comprometido con la digni-
dad humana y la igualdad material de sus coasociados, nos dice la Corte.
La discriminación, entendida como el trato desigual no justificado,
frecuentemente ensañada en factores como raza, género y clase, deman-
darían una reconfiguración del concepto de igualdad. En ciertas situa-
ciones, estos factores deben no solamente ser observados, sino que ade-
más exigen una actuación del Estado para promover la igualdad en un
marco de desigualdad histórica. Así, a la igualdad ante la ley se sumará
la igualdad en la ley, tal como lo recoge el art. 13 superior, al establecer
la cláusula de prohibición a la discriminación y los sujetos de especial
protección.
Este principio/derecho de igualdad posee un alto contenido sustan-
cial, material, un mandato que pretende remover un pasado de exclusión
social en amplios sectores poblacionales. Irradiados por él han crecido,
siguiendo a Nancy Fraser, políticas de inclusión mediante el reconoci-
miento, la representación y la redistribución7. Desde esta triada se pre-
tende que, mediante el impulso de leyes y políticas públicas del orden
nacional y local, se promueva que los colectivos o grupos minoritarios
alcancen un mayor reconocimiento –empoderamiento– mediante el
respeto y la dignidad de su diferencia. Persiguen también que mediante
acciones afirmativas se permita la representación política adecuada y
suficiente de mujeres, indígenas y afros, así como proveer condiciones

7. FRASER, Nancy, Las escalas de la justicia. Pensamiento Herder dirigida por Manuel Cruz, Bar-
celona, 2008.

245
María Luisa Rodríguez Peñaranda

materiales que les permitan disfrutar de los derechos en similar manera


que los demás, superando la pobreza y precariedad económica a través
de políticas redistributivas. Éstas mejor formuladas en los estados del
bienestar con medidas universales que previenen los condicionamien-
tos en las prestaciones sociales. Por el contrario, en nuestro contexto la
reetnización y el consecuente fraude, incentiva la focalización.
A los grandes esfuerzos legislativos por positivizar las conductas
que vulneran los derechos de las mujeres y promover su investigación y
sanción (leyes 1257/1719/1761) se resiste la escalofriante cifra de un
98% de impunidad para estos delitos8. La pregunta es entonces ¿dónde
se encuentra el verdadero obstáculo a la igualdad en el género? La res-
puesta parece ubicarse en la cultura patriarcal y los estereotipos que
suelen asignarse a los roles de género.

8. Son múltiples los factores que pueden contribuir al altísimo nivel de impunidad reconocido
en el país. Tres son los aspectos identificados: i) la batalla de las cifras, ii) las características
del contexto familiar de la violencia y la vulnerabilidad de sus víctimas y iii) las deficientes
prácticas de los cuerpos de investigación y judicialización. En primer lugar cabe mencionar la
importancia de los datos. De hecho, la regla general es la inconsistencia de los datos producto
de la heterogeneidad en las formas de recolección y medición de los mismos por las insti-
tuciones (la falta de interoperatividad o capacidad de interlocutar entre ellos), sumado a la
falta de armonización conceptual y metodológica entre los agentes receptores de denuncias;
así como de los prestadores de servicios en la ruta de atención en los casos de violencias
contra las mujeres, aspectos que contribuyen a agravar la ya de por sí difícil tarea de analizar,
visibilizar y difundir con certeza la magnitud del fenómeno. Pese a la batalla estadística, los
datos son sumamente elocuentes con relación al segundo elemento del contexto familiar de
la violencia y el ensañamiento con los NNA « (…) se puede observar una tendencia estable
entre 2007 y 2016-2017 en el que entre el 80% y 85% de las víctimas de violencia sexual
son mujeres, es decir que la relación puede llegar a ser de 5 mujeres víctimas por 1 hombre
víctima. Los grupos de edad más afectados para las mujeres es el de las niñas que tienen entre
10 y 14 años; y para los niños son los que tienen entre 5 y 9 años. Así mismo, las diferentes
intervenciones presentaron que el agresor, normalmente, es una persona cercana a la víctima
(familiares: padre o padrastro, tío o primo, etc. Conocidos o amigos de la familia, la pareja o
expareja de su madre). Vale la pena resaltar, también, que 65% de los hechos ocurren en la
casa/hogar donde se aprovechan situaciones en las que hay ausencia de la madre o el padre.
Cerca del 40% de las niñas que quedaron embarazadas y fueron sujeto de agresión sexual no
recibieron la suficiente orientación sobre la interrupción voluntaria del embarazo». Sobre el
tercer elemento, las pocas denuncias derivan del aspecto anterior «teniendo en cuenta que,
normalmente, el agresor es alguien cercano la denuncia es poco probable que se haga porque
se convierte en un tema que se oculta en la familia. De hecho, en el país solo el 20% de las víc-
timas denuncian. Se destaca entre los principales motivos para no denunciar que el daño sea
considerado como poco significativo y se naturaliza como un hecho de la vida, que es algo que
puede resolverse/manejarse en privado, se tiene miedo a la retaliación, no se sabe a dónde ir,
no quieren herir al agresor, no se denuncia para no sentir vergüenza». Con relación al funcio-
namiento del aparato judicial, tan solo el 20% de las denuncias se concretan o materializan
en una captura. Relatoría Fundación Plan, Evento «Por una respuesta judicial Adecuada», or-
ganizado por el Consejo de Estado el 23 de noviembre del 017 en Bogotá D.C.

246
Cap. 9 • EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA

3. DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO


Como herramienta analítica de reciente creación en las ciencias so-
ciales, el género fue introducido por Robert Stoller (1985) a raíz de los
estudios psicológicos de la identidad personal, en la búsqueda de dife-
renciación entre la biología y la cultura. A mediados del siglo XX, Simone
de Beauvoir al formular en su célebre obra El segundo sexo que «no se
nace mujer, llega uno a serlo, ningún destino biológico, físico o económi-
co define la figura que reviste en el seno de la sociedad la hembra huma-
na», permitió entender que «mujer» no era una identidad natural sino
una identidad y un proyecto culturalmente interpretado, dando lugar a
la segunda ola feminista9. Ésta va más allá de la lucha por la igualdad de

9. La primera ola feminista sería impulsada por Olympe de Gouges, el marqués de Condorcet,
Etta Palm, Théroigne de Méricourt y el Cercle Social que exigían el voto de las mujeres, la
disponibilidad del divorcio y la abolición de las leyes de herencia que favorecían al hijo varón
primogénito en el periodo de la revolución francesa. Esta última solicitud fue rápidamente
aceptada por la Asamblea el 15 de marzo de 1790 por contribuir a acabar el poder de los
grandes patriarcas nobles, más que por reforzar las libertades económicas de las mujeres.
Al año siguiente, 1791, Olympe publicó un proyecto de contrato social para acuerdos matri-
moniales relativo a los hijos y a la propiedad, y la Declaración de los Derechos de las Mujeres
y de los Ciudadanos, como respuesta a la ausencia de las mujeres en la Declaración de los
derechos de los hombres y los ciudadanos, quién vale la pena señalar, al igual que Méricourt,
no fueron hostigadas por feministas, sino por girondinas. De hecho, los grandes progresos
en los derechos de las mujeres y los niños se llevarían a cabo con la Constitución jacobina de
1793 con medidas como: i) entregar al estado la responsabilidad de los niños huérfanos o
abandonados; ii) garantizar los plenos derechos de herencia a los niños nacidos por fuera del
matrimonio (algo que Colombia aprobaría en 1984, 191 años después!); iii) la ley del divorcio
votada en la última sesión de la Asamblea Legislativa el 20 de septiembre de 1792 que permi-
tía la disolución de un matrimonio infeliz mediante el mutuo acuerdo por incompatibilidad,
por la prolongada ausencia de su pareja o por crueldad; iv) Se establecieron tribunales de
familia para resolver la violencia doméstica introduciendo multas el doble de severas que
las que se imponían por asaltar a un hombre. Sobre la vigorosidad en la aplicación de la ley
narra Mc Phee: «las mujeres trabajadoras fueron quienes más se sirvieron de esta ley: en
Ruán, por ejemplo, el 71 por ciento de los pleitos de divorcio fueron iniciados por mujeres, y
el 72 por ciento de los mismos procedían de mujeres del ramo textil con cierta independencia
económica, a diferencia de la mayoría de las mujeres del campo. En el ámbito nacional, se
decretaron unos 30.000 divorcios bajo esta ley, especialmente en las ciudades: en París hubo
casi 6.000 en el periodo 1793-1795». La brecha entre la lucha por los derechos de las mujeres
desde el ala conservadora y la lucha por la igualdad social de los jacobinos serían concilia-
das por las Ciudadanas Republicanas Revolucionarias bajo el liderazgo de Claire Lacombe y
Pauline Léon, quienes reclamarían los derechos de las mujeres a acceder a cargos públicos, a
portar armas y la sororidad. Propuesta que a la postre sería pasajera por cuanto su capacidad
de convocatoria para integrar la sociedad se encontraría con la oposición de algunos líderes
jacobinos y de las mujeres del mercado para quienes las medidas de control de precios las
amenazaba con la pobreza, llegando a apalear a un grupo de Ciudadanas, lo que ofreció a la
Convención y algunos jacobinos como Amar, del Comité de Seguridad de la Convención la
oportunidad de tomar partido en su contra. «El 30 de octubre todos los clubes femeninos,
incluyendo sesenta de las zonas provinciales, fueron clausurados». Mc PHEE, pp. 167-171.

247
María Luisa Rodríguez Peñaranda

derechos políticos. De esta premisa se desprendería, con fundamento


en los estudios de la prominente antropóloga estadounidense Margaret
Mead, que el temperamento o personalidad está determinado cultural-
mente y no biológicamente, y que la mayor parte de las sociedades divi-
de en dos categorías binarias los rasgos humanos de carácter, los espe-
cializa para constituir las actitudes y las conductas apropiadas para cada
uno de los sexos10. Lo cual, con los estudios feministas posteriores, se
entendería como una forma arbitraria de imponer los roles, estereotipos
sexuales, la división sexual del trabajo, la jerarquía y desigualdad entre
hombres y mujeres y, por ende, da lugar a la opresión y subordinación
de las mujeres11.
Como última medida, con la llegada de la tercera ola, el género como
principio ordenador se conjugará con otros sistemas de dominación, je-
rarquía y subordinación como la clase, la etnicidad, la «raza» y la orien-
tación sexual, entrando a cuestionar la premisa de partida de la política
feminista, es decir, la existencia real o potencial de una identidad común
de «mujer»: la sororidad como supuesta hermandad que oculta la condi-
ción hegemónica, heteronormativa, blanca e ilustrada de ese feminismo.
En suma, se transita de un feminismo de la igualdad a un feminismo de
las diferencias, de las mujeres y sus intersecciones, que visibiliza el lu-
gar que ocupa la raza (black feminist), la hegemonía cultural (las críticas

Sobre los malentendidos con relación a Olympe ver el indispensable texto de Florence Gau-
thier, «Olympe de Gouges: ¿historia o mistificación? », en Sin permiso, República y Socialismo
también para el S. XXI; edición de 16/03/2014, http://www.sinpermiso.info/textos/olym-
pe-de-gouges-historia-o-mistificacin, página revisada el 20/04/17.
La segunda mujer sería Mery Wollstonecraft en Inglaterra con su obra A vindication of the rig-
ths of woman y el movimiento de las sufragistas que reclamaban igualdad de derechos civiles
y políticos a los entregados a los hombres tras las grandes revoluciones del s. XVIII.
10. Sin duda uno de los principales méritos de Mead fue el de darle voz a las mujeres al realizar
una de las primeras etnografías con informantes femeninas, las cuales solían ser invisibiliza-
das por los antropólogos que únicamente consideraban como sus informantes a los hombres.
Para profundizar en los grandes aportes a la antropología y a las ciencias sociales de Mead y
otras antropólogas feministas consultar MARTÍN CASARES, Aurelia, Antropología del género,
Culturas, mitos y estereotipos sexuales. Cátedra, Universitat de Valencia, Instituto de la Mujer,
Valencia, 2008.
11. VIVEROS, Mara y ZAMBRANO, Marta, «La diferencia: un concepto problemático para la an-
tropología y el feminismo», en: El género: una categoría útil para las ciencias sociales. Luz
Gabriela Arango Gaviria, Mara Viveros Vigoya (Editoras). Colección Estudios de Género, Fa-
cultad de Ciencias Humanas, Universidad Nacional de Colombia, 2013, pp. 143-170. También
consultar SCOTT, Joan, «El género: una categoría útil para el análisis histórico», en: El género:
la construcción cultural de la diferencia sexual. Lamas Marta, Compiladora. PUEG, México, pp.
265-302.

248
Cap. 9 • EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA

postcoloniales12 y decoloniales13) y la orientación sexual (teorías queer)


como relaciones de poder estructurantes de las ilaciones de género y de
la opresión patriarcal.
Así las cosas, en el ámbito del derecho, el enfoque de género es una
categoría de análisis que permite evidenciar cómo los valores, actitudes
y normas que conforman los géneros obedecen a una construcción so-
cial y no biológica –no determinada por el sexo de nacimiento– que re-
percute en los comportamientos e imaginarios adscritos a una sociedad
patriarcal, en la que las formas binarias hombres/mujeres, masculino/
femenino, se encuentran en desigualdad e inequidad. Por su parte, en la
construcción social del sexo, se asignan estereotipos, entendidos como
un conjunto de ideas, prejuicios, generalizaciones, simplificaciones, po-
sitivas o negativas, que se atribuyen al otro, individual o colectivo, aún
desconocido.
El estereotipo fue definido por G. Allport (1954) como una creencia
exagerada asociada con, o acerca de, las costumbres y atributos de un
determinado grupo o categoría social; una creencia exagerada cuya fun-
ción es la de justificar o racionalizar nuestra conducta en relación con
dicha categoría de gente.
¿Cómo y por qué se produce esa creencia, esa exageración distorsio-
nada? La generación de estereotipos obedece tanto a la necesidad o el
deseo de tener alguna opinión sobre los demás, como a la dificultad de,
o falta de interés en, fundar esa opinión en la experiencia propia y sufi-
ciente de la que derive un conocimiento directo y sólido.
En su forma más corriente los estereotipos, positivos o negativos juegan
un papel primordial en nuestras relaciones sociales y personales con
desconocidos al ayudarnos a adjudicar a los otros «un papel» o rol en
el juego de estas relaciones. Este papel es adjudicado no en función de
los logros personales de nuestro interlocutor, si no en función del este-
reotipo que tenemos del grupo al que adscribimos a dicho individuo.14

12. Sobre la crítica del feminismo del tercer mundo a la colonialidad discursiva del feminismo
occidental hegemónico, MOHANTY, Chandra, «Bajo los ojos de occidente. Academia Feminista
y discurso colonial», en: Descolonizando el Feminismo: Teorías y Prácticas desde los Márgenes.
Liliana Suárez Navaz y Aída Hernández (editoras). Cátedra, Madrid, 2008.
13. Sobre las diferencias entre el feminismo postcolonial y decolonial latinoamericano, CURIEL
PICHARDO, Ochy, «Construyendo metodologías feministas desde el feminismo decolonial», en
Otras formas de (Re)conocer, Reflexiones, herramientas y aplicaciones desde la investigación fe-
minista. Irantzu Mendia Azkue, Marta Luxán, Matxalen Legarreta, Gloria Guzmán, Iker Zirion,
Jokin Azpiazu Carballo (eds.), Universidad del País Vasco, Donostia-San Sebastián, 2014.
14. MALGESINI, Graciela y GIMÉNEZ, Carlos, Guía de conceptos sobre migraciones, racismo e inter-
culturalidad, Catarata, Madrid, 2000, pp. 147-148.

249
María Luisa Rodríguez Peñaranda

Desde los estereotipos se imparten normas de conducta median-


te instrucciones transmitidas por la familia, la escuela, la publicidad,
el cine, la música, la ley, sobre cómo deben comportarse los hombres y
las mujeres. Son imperativos culturales que cuando son individualmen-
te transgredidos provocan el rechazo del grupo mediante el oprobio, la
burla, el aislamiento u ostracismo, los denominados controles sociales,
y/o la violencia en cualquiera de sus formas –bullying, maltrato, abuso,
inducción al suicidio, etc.–, es decir, prácticas discriminatorias.
Los estereotipos aparentemente inocentes sobre el tamaño, talla,
modales, vestuario, maquillaje, estándares de bella, condicionan el cuer-
po y el performance de ser mujer, al igual que el tono de la voz, la contex-
tura física, estatura, corte de cabello, fuerza y capacidad económica, el
performance de ser hombre, desde el molde cultural y normativo bastan-
te estrecho de la identidad de género, reforzando una relación binaria
que excluye el tercer sexo, la intersexualidad, los tránsitos. Particular-
mente en la construcción de la identidad masculina, el varón es forzado
a reprimir aquellos aspectos considerados femeninos o feminizantes,
«el potencial del sujeto para la bisexualidad», según Joan Scott15, e intro-
duce el conflicto en la oposición de lo masculino y femenino, en donde
la expresión de las emociones y sentimientos como el dolor, el afecto, el
miedo son asociados con la debilidad y, por ende, el principal aspecto a
ocultar y a sancionar cuando son exhibidos.
Los roles suelen ser atesorados y reproducidos por las prácticas fa-
miliares y sociales que sancionan con violencia la transgresión que fren-
te a estos se busque realizar por ciertos individuos que muestran resis-
tencias a las restricciones a la libertad que tales asignaciones conllevan.
El efecto de dicha violencia sobre la integridad física y mental de
las mujeres es que las priva del goce efectivo, el ejercicio y aun el co-
nocimiento de sus derechos humanos y libertades fundamentales, con
consecuencias que contribuyen a mantener a la mujer subordinada me-
diante su escasa participación en política, su nivel inferior de educación
y capacitación, así como en la limitada posibilidad de obtener oportuni-
dades de empleo de calidad.
Así las cosas, el enfoque de género pone en evidencia las situaciones
de discriminación y desigualdad que aquejan a las mujeres, así como

15. SCOTT, Joan, «El género una categoría útil», en El género: la construcción cultural de la diferen-
cia sexual. Lamas Marta (compiladora). PUEG, Méjico, pp. 265-302.

250
Cap. 9 • EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA

los estereotipos e imaginarios que a través de la cultura influyen en la


percepción de los roles a desempeñar por los géneros. En el proceso ju-
dicial, la cultura patriarcal también se encuentra presente en la legisla-
ción y en la interpretación del derecho, permeando la valoración de las
pruebas y la facultad del juez o jueza para llegar a la formación del libre
convencimiento, por lo cual mediante el debido proceso con enfoque de
género se busca garantizar una decisión judicial que no de eco a los pre-
juicios sociales y culturales, y que por el contrario contribuya a la supe-
ración de los patrones de discriminación hacia las mujeres16.
Pese a los grandes avances normativos y jurisprudenciales a nivel
internacional, en la práctica, los servidores públicos, los y las jueces,
suelen actuar en forma pasiva e indiferente ante el dolor femenino, atra-
pados en tres dinámicas: i) el formalismo, o si se quiere, acartonamiento
probatorio que les induce a abstenerse de penetrar en lo considerado
«privado» o «intimo», lugar en el que suelen darse las violencias de gé-
nero; ii) el uso de un material probatorio inadecuado o improcedente
para probar la violencia contra las mujeres, en desmedro de una amplia
fuente de documentación y pruebas que establecen perfiles psiquiátri-
cos del agresor, nivel de riesgo de las víctimas, sistematicidad de la con-
ducta; y ii) los pactos secretos.
i. De la primera dinámica se deriva una sistemática impunidad
o tolerancia generalizada a la violencia, en tanto se omite el
deber de la debida diligencia. En este contexto, los y las ser-
vidores públicos, funcionarias judiciales y de policía están
equipados con cientos de excusas para evitar y/o soslayar
iniciar y culminar con éxito las investigaciones que envuel-
ven situaciones de vulneración de los derechos de las mu-
jeres, frases como: «¿y dónde está la norma que me autori-
za expresamente para actuar?, ¡mientras no haya sentencia
condenatoria, no podemos hacer nada!, ¡si ella se defendió
es que fueron agresiones mutuas! » , son de uso frecuente en
17

16. Sobre el inconmensurable impacto de los estereotipos de género en la justicia y en las decisio-
nes judiciales a lo largo y ancho del planeta, COOK, Rebecca y CUSACK, Simone, Estereotipos
de género. Perspectivas legales transnacionales. Traducción de Andrea Parra, Profamilia, Bo-
gotá, 2009.
17. Esta expresión esconde una suerte de esencialización que responde a la construcción de un
imaginario de «la víctima perfecta»: la persona débil, desprotegida, frágil física y psicológica-
mente que recibe toda clase de maltratos y se encuentra desprovista de cualquier posibilidad
de reacción y defensa.

251
María Luisa Rodríguez Peñaranda

los lugares de recepción de las denuncias y/o, despachos ad-


ministrativos y organismos de policía. Prácticas que configu-
ran una forma de violencia institucional que agrava la situa-
ción de las victimas generando una revictimización proscrita
por el derecho internacional y nacional .
18

ii. El uso de material probatorio inadecuado para probar las


violencias contra las mujeres y NNA o, la no valoración del
acervo probatorio que reposa en el expediente y que de-
muestra la vulneración de los derechos son prácticas que tie-
nen una directa relación con el uso tradicional del derecho
en el que las pruebas dominantes son los testimonios y los
documentos. En efecto, la mayor parte de los procesos judi-
ciales son resueltos con este conjunto de pruebas, de fuerte
presencia en la investigación y condena en la comisión de las
contravenciones y delitos.
No obstante, cuando de lo que se trata es de investigar lo sucedido
en el interior de un hogar, ninguna de estas pruebas suele tener reper-
cusión. En los testimonios, por cuanto no hay observadores de lo suce-
dido o éstos son NNA hijos de la pareja, cuya versión de los hechos es
silenciada, no creída, invalidada o cuestionada19. Por su parte, las prue-
bas documentales no están presentes o arrastran las falencias del siste-
ma judicial, como es que se trata de procesos judiciales iniciados por la
mujer contra su pareja pero que no llegaron a ningún puerto; órdenes
de alejamiento que fueron incumplidas y sin consecuencias; o informes
físicos, psiquiátricos de medicina legal que dan cuenta del perfil del vic-
timario y del tipo de riesgo que representa, pero que lamentablemente

18. La Corte Constitucional ha interpretado el principio de la debida diligencia en el sentido que


las autoridades encargadas de prevenir y erradicar toda forma de violencia contra la mujer,
evalúen los testimonios de las víctimas a la luz de un enfoque de género, evitando toda revic-
timización. Corte Constitucional, sentencia T-027 de 2017. M.P. Aquiles Arrieta.
19. Más aún con el uso judicial de una herramienta aparentemente técnica, que bajo un falso
manto de neutralidad pone en cuestión la versión de los NNA como es el SAP el falso –Síndro-
me de Alienación Parental–, inventado por el siquiatra Richard Garner y solicitado general-
mente por los padres para acusar de manipulada por la madre la versión de los niños, niñas
y adolescentes en los casos de incesto y violencia sexual en el entorno familiar. Mediante esta
estrategia «(…) Ya el ofensor sexual no es el victimario, sino la víctima, y el niño no es la victi-
ma sino el verdugo de su propio padre o victimario. », CUADROS FERRÉ, Isabel, «Introducción,
¿Por qué no vemos la violencia contra los niños? », en Evaluación médica del abuso sexual
infantil, Una guía práctica. Martin A. Finkel y Angelo P. Giardino; American Academy of Pedia-
trics, 2009. Traducción autorizada de la Asociación Afecto contra el maltrato infantil, Bogotá,
D.C., 2015, p. 23.

252
Cap. 9 • EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA

suelen ser apartados de la toma de decisión, y que de conformidad a la


jurisprudencia constitucional constituyen un error fáctico como causal
de procedibilidad de la acción de tutela contra decisiones judiciales20.
En este ámbito es donde el debido proceso con enfoque de género ha
tomado más contundencia en la jurisprudencia constitucional nacional.
iii. Los pactos secretos, considero que son un fenómeno arraigado
en la sociedad, tácito e incómodo, que empuja a ciertas perso-
nas a empatizar con la versión del victimario y sus condicio-
nes, únicamente porque resulta menos perturbador, inquietan-
te, transgresor, que creer en la versión de la víctima (llámese
niña, niño, adolescente, mujer o hombre), en especial cuando
ello supone confrontar instituciones como la escuela, el ejército,
la religión. Es decir, cuando se pone en cuestión los referentes
fuertes de la identidad: las creencias, la autoridad, la familia o
las bases de la sociedad en las que cada uno se soporta. Si bien
en el ámbito judicial se ha identificado el fenómeno como em-
patía con el victimario21, pienso que el concepto de «pactos se-
cretos» recoge en mejor medida lo vergonzoso y oculto de esta
clase de prácticas que además surgen en forma generalmente
inconsciente y espontánea, si se quiere naíf, pero que contri-
buye, de un lado, a gestar y mantener la impunidad, y de otro, a
alimentar la excesiva autoconfianza de ciertos victimarios. ¿Qué
factores del consiente y subconsciente operan en estos compor-
tamientos?, ¿por qué algunas personas son más solidarias con
los fuertes que con los débiles? Son preguntas sobre las que aún
hay mucho por resolver.22

20. En palabras de la Corte «Este defecto se caracteriza cuando el juez toma una decisión sin que
las circunstancias fácticas del caso se subsuman adecuadamente en el supuesto de hecho que
legalmente la determina, como consecuencia de una omisión en el decreto o valoración de
las pruebas; de una apreciación irrazonable de las mismas; de la suposición de una prueba; o
del otorgamiento de un alcance contraevidente a los medios probatorios. Es decir, existen en
la providencia cuestionada fallas sustanciales, atribuibles a deficiencias probatorias dentro
del proceso». Corte Constitucional sentencias T-587/17, T-902 de 2005 M.P. Marco Gerardo
Monroy Cabra. La doctrina ha además distinguido entre defectos facticos en dos dimensiones:
positiva y negativa, al respecto consultar QUINCHE R., Manuel Fernando, Vías de hecho. Acción
de tutela contra providencias. Ed. Ibáñez y Pontificia Universidad Javeriana, 2012, p. 188.
21. En la conferencia de Nydia Cerinza, Magistrada auxiliar del despacho de la Magistrada Stella
Conto, titulada «Estudio de casos» en el Evento «Por una respuesta judicial Adecuada», orga-
nizado por el Consejo de Estado el 23 de Noviembre del 2017 en Bogotá D.C.
22. Un extremo de este «pacto secreto» ocurrió con relación a los sacerdotes pederastas católicos
y la sorprende facilidad con la que podían embaucar a las familias católicas, llenas de fe, abu-
sando sexualmente de sus hijos sin apenas generar reacciones en la comunidad. Un sacerdote

253
María Luisa Rodríguez Peñaranda

Previamente hemos señalado que la discriminación puede ser en-


tendida como todo trato desigual no justificado. Cuando se refiere a las
mujeres, de conformidad a la Convención sobre la eliminación de todas
las formas de discriminación contra la mujer – CEDAW–23, se define como
«toda distinción, exclusión o restricción basada en el sexo que tenga por
objeto o por resultado menoscabar o anular el reconocimiento, goce o
ejercicio por la mujer, independientemente de su estado civil, sobre la
base de la igualdad del hombre y la mujer, de los derechos humanos y
las libertades fundamentales en las esferas política, económica, social,
cultural y civil o en cualquier otra esfera». En el ámbito interamericano,
la Convención Belém do Pará24 señala que la violencia contra la mujer es
«una manifestación de las relaciones de poder históricamente des-
iguales entre mujeres y hombres» y reconoce que el derecho de toda
mujer a una vida libre de violencia incluye el derecho a ser libre de toda
forma de discriminación.
Con la misma orientación, el Comité de la CEDAW ha declarado que
la definición de la discriminación contra la mujer «incluye la violencia
basada en el sexo, es decir, la violencia dirigida contra la mujer [i] por-
que es mujer o [ii] que la afecta en forma desproporcionada». Incluye
actos que infligen daños o sufrimientos de índole física, mental o sexual,
amenazas de cometer esos actos, coacción y otras formas de privación
de la libertad. La violencia contra la mujer puede contravenir disposi-
ciones de la Convención sin tener en cuenta si hablan expresamente de
la violencia. Dentro de la categoría de violencia basada en el sexo, el Co-
mité incluye violencia por «acto privado» y «violencia en la familia». Por
consiguiente, la violencia basada en el sexo comporta obligaciones para
los Estados.
También la CIDH, al resolver el caso conocido como campo algodo-
nero, del feminicidio en ciudad Juárez, tuvo la oportunidad de analizar
la cultura de la discriminación contra la mujer la cual se funda «en una

violador explica esta incapacidad para ver lo que está sucediendo «porque la gente quiere
creer en algo. Ellos quieren esperanza, quieren creer. Ellos quieren… hay algo dentro de la
gente que les hace querer creer en los mejor de las cosas y de los otros. Porque la alternativa
no es muy agradable. Suficiente verdad. La alternativa no es muy agradable». SALTER, Anna
C., Predators, pedophiles, rapists, & other sex offenders: who they are, how they operate, and
how we can protect ourselves and our children. Basic Books, New York, 2003, p. 29. Traducción
propia.
23. Ratificada mediante la Ley 51 de 1981.
24. Ratificada mediante la Ley 248 de 1995.

254
Cap. 9 • EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA

concepción errónea de su inferioridad» que afecta el proceso penal al pro-


ducir inacción (discriminación en el acceso a la justicia al descalificar la
credibilidad de la víctima), empequeñecer las investigaciones que invo-
lucran los derechos de las mujeres (impunidad) y postergar las acciones
inmediatas y contundentes por parte de las autoridades competentes
(actuación reproductora de la violencia que se busca atacar). «Esta in-
fluencia también puede afectar en forma negativa la investigación de los
casos y la valoración de la prueba subsiguiente, que puede verse marca-
da por nociones estereotipadas sobre cuál debe ser el comportamiento
de las mujeres en sus relaciones interpersonales».25
Según la CIDH, los comentarios efectuados por funcionarios en el
sentido de que las víctimas se habrían ido con su novio o que tendrían
una vida reprochable y la utilización de preguntas en torno a sus prefe-
rencias sexuales constituyen estereotipos.
Con una mirada más cercana a la interseccionalidad, la Comisión
también ha reconocido que ciertos grupos de mujeres padecen discri-
minación en base a más de un factor a lo largo de su vida, en virtud de
su corta edad, su raza y su origen étnico, entre otros, lo que aumenta su
riesgo de sufrir actos de violencia. Las medidas de protección se consi-
deran particularmente críticas en el caso de las niñas, por ejemplo, dado
que pueden estar expuestas a mayores riesgos de violación de sus dere-
chos humanos en razón de dos factores: su sexo y su edad. Este principio
de protección especial está consagrado en el artículo VII de la Declara-
ción Americana.
Por su parte, la CIDH al estudiar el caso del Penal Castro Castro vs.
Perú26, señaló que cuando las mujeres se encuentran detenidas o arres-
tadas «no deben sufrir discriminación, y deben ser protegidas de todas
las formas de violencia o explotación». Con esta finalidad, analizó dis-
tintas privaciones en el ámbito carcelario que si bien se establecen para
todos los reclusos, recaen en forma desproporcionada sobre las mujeres
por su condición y necesidades propias del embarazo, la maternidad o

25. Caso González y otras («Campo Algodonero») vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Repara-
ciones y Costas. Sentencia de 16 de noviembre de 2009. Serie C No. 205.
26. Después de esta decisión, la Corte Interamericana profundizará sobre el concepto y alcance
del enfoque interseccional en las sentencias Caso Gonzales Lluy y otros vs. Ecuador , de 1 de
septiembre de 2015 (excepciones preliminares, fondo, reparaciones y costas) y Caso i.v. – vs.
Bolivia sentencia de 30 de noviembre de 2016 (excepciones preliminares, fondo, reparacio-
nes y costas).

255
María Luisa Rodríguez Peñaranda

por el simple hecho de ser mujeres: como, por ejemplo, la falta de sumi-
nistro en toallas higiénicas, la exigencia de que
«deban ser supervisadas y revisadas por oficiales femeninas», o que
las mujeres embarazadas y en lactancia «deben ser proveídas con con-
diciones especiales».
Ante las grandes barreras en el acceso a la justicia que deben sor-
tear las mujeres, el derecho internacional ha buscado principalmente
remover la pasividad de la rama judicial y los estereotipos opresivos que
limitan la actuación judicial en el proceso judicial, mediante los siguien-
tes principios: 1) la debida diligencia; 2) garantía de un recurso efectivo;
3) la obligación de investigar; 4) obligación de juzgar, castigar y reparar.

3.1. El Principio de debida diligencia


La debida diligencia, en tanto principio y derecho, ha sido interpre-
tada como la obligación de los Estados de recurrir a «todos los medios
legales, políticos, administrativos y culturales para promover la protec-
ción de los derechos humanos y asegurar que toda violación sea consi-
derada y tratada como un acto ilícito que puede dar lugar al castigo de
los responsables y la obligación de indemnizar a las víctimas». Es de-
cir, los Estados Parte están obligados a suministrar recursos judiciales
efectivos para prevenir, investigar, sancionar y reparar los actos de vio-
lencia contra la mujer, que deben ser sustanciados de conformidad con
las reglas del debido proceso legal (artículo 8.1), todo ello dentro de la
obligación general de garantizar el libre y pleno ejercicio de los derechos
reconocidos por la Convención a toda persona que se encuentre bajo su
jurisdicción (artículo 1.1).
Son parte de la debida diligencia la investigación en contexto, en el
sentido de que debe tomarse en cuenta lo ocurrido en otras vulneracio-
nes de derechos u homicidios y establecer algún tipo de relación entre
ellos. En este sentido, la CIDH, al analizar el caso del campo algodonero
del feminicidio de ciudad Juárez, estableció que los estados, al adelan-
tar líneas de investigación separadas para casos en concreto –estrategia
que puede llegar a ser eficaz– no deben dejar de lado que éstas se en-
marquen en un contexto de violencia contra la mujer. Actuación que
debe ser impulsada de oficio, sin que sean las víctimas y sus familiares
quienes tengan la carga de asumir tal iniciativa.
Con relación al vínculo entre la discriminación, como una forma de
violencia contra la mujer y la debida diligencia, es deber de los Estados

256
Cap. 9 • EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA

emprender las medidas educativas y pedagógicas necesarias para modi-


ficar los patrones de comportamiento sociales y culturales de hombres y
mujeres, y eliminar los prejuicios y las prácticas consuetudinarias basa-
das en la premisa de la inferioridad o superioridad de uno de los sexos,
y sobre los roles estereotipados que se les imponen.
Estos principios también han sido aplicados para responsabilizar a
los Estados por fallas en la protección de las mujeres respecto de actos
de violencia doméstica cometidos por particulares. En esta línea, se ha
reconocido internacionalmente que la violencia doméstica es una viola-
ción de los derechos humanos y una de las formas más persistentes de
discriminación, que afecta a mujeres de todas las edades, etnias, razas y
clases sociales27.
Por último, el principio de la debida diligencia le exige a los y las
jueces el deber de documentar integralmente los hechos yendo más allá
del sistema probatorio tradicional en atención a que la mayoría de las
veces el maltrato en todas sus formas sucede en el ámbito privado de
la familia, en donde, como ya se ha mencionado, los testigos y pruebas
documentales que protocolizan las relaciones entre terceros no suelen
estar presentes28. Siendo pertinente acudir a estadísticas, protocolos de

27. Respecto a la violencia doméstica ver el precedente interamericano que constituye el Informe
No. 54/01, Caso 12.051, Caso Maria da Penha vs. Brasil.
28. En este sentido es importante resaltar el caso emblemático que constituye la sentencia T-967
de 2014, bajo ponencia de la magistrada Gloria Ortiz, en el que la Corte tuvo la oportunidad
de pronunciarse en torno al análisis probatorio para determinar la violencia sicológica en el
ámbito doméstico, para lo cual estableció un precedente con relación a la administración de
justicia con perspectiva de género. Esto último entendido como un llamado a que los funcio-
narios judiciales desplieguen una mayor creatividad probatoria para derrumbar los muros
que se elevan en el espacio de lo íntimo, y para permitirse una mayor sensibilidad sin la excu-
sa de la imparcialidad como arma para mantener el estatus quo de impunidad frente a estos
delitos. En este caso, una mujer, fiscal, impetra la acción de tutela contra la sentencia del juz-
gado 4º de familia de Bogotá que negó el divorcio por la causal 3ª, correspondiente a «ultrajes,
el trato cruel y los maltratamientos de obra», en los cuales se ubica el maltrato sicológico, bá-
sicamente porque: i) la mujer había construido las pruebas; ii) no encontró probados hechos
de violencia o agresiones al interior del hogar.
En los hechos de la demanda se narran los empujones, cachetadas, revisiones en su ropa,
insultos, acusaciones de infidelidad con cualquier persona que se cruzara en el camino o la
vida de la víctima –incluyendo al fiscal y Vicefiscal general de la nación–, ultrajes a los que era
sometida constantemente la mujer tanto en su entorno familiar como laboral por parte de
su esposo, hasta el punto de llegar a practicar una prueba de ADN en su hija por dudar de su
paternidad. A pesar de que estos comportamientos se ubican en el diagnóstico de la celotipia,
enfermedad mental que se traduce en una suerte de paranoia basada en el deseo compulsivo
de poseer en exclusiva y en forma absoluta a la persona amada, y constituye uno de los de-
tonantes más claros del maltrato en las parejas, la jueza de familia no pudo identificarlo. Por

257
María Luisa Rodríguez Peñaranda

atención, informes, estudios de situación, centros de pensamiento de


género, jurisprudencia, que permitan probar la sistematicidad o gene-
ralidad de la conducta29.

3.2. La garantía de un recurso judicial efectivo


El derecho a un recurso efectivo ha sido contemplado en múltiples
instrumentos internacionales, implica la capacidad de poder reivindi-
car los derechos ante un órgano independiente e imparcial, con el fin
de obtener reconocimiento de la violación, el cese de la violación si ésta
continúa, y una adecuada reparación30. Lo cual excluye la justicia penal
militar para investigar, juzgar y sancionar casos que involucran violacio-
nes de los derechos humanos.
Son múltiples las barreras de acceso a la justicia para las mujeres
identificadas a nivel global31. Éstas pueden verse agravadas en el país
a raíz de la presencia de actores armados en los territorios, la distancia
entre los puestos de salud, los costos del desplazamiento, la aún limita-
da descentralización del instituto nacional de medicina legal, la falta de
despachos judiciales, la ausencia de formación en el enfoque de género
y de sensibilidad por los servidores públicos y de los medios de comu-
nicación, entre muchos más aspectos. Carencias todas ellas que deben
ser superadas por los Estados dentro del deber de establecer garantías
de no repetición32 y la lucha contra la impunidad en la violencia contra
las mujeres. La jurisprudencia constitucional agregaría que además de

el contrario, el aislamiento social y familiar que ya había provocado el esposo sobre la mujer,
la cual ni siquiera podía almorzar con sus compañeros de trabajo, fue utilizado para, en clara
pasividad y pereza probatoria, blindar el maltrato con la forma más facilista, bajo el concepto
de la intimidad y usando como herramienta la lectura más formalista del derecho al debido
proceso.
29. ARBELÁEZ, Lucia; RUIZ, Esmeralda y otra, Criterios de equidad para una administración de
justicia con perspectiva de género. Comisión Nacional de género. Consejo Superior de la Judi-
catura, Bogotá, Agosto 2011.
30. En términos similares consultar CIDH, Informe de Fondo, N 5/96, Raquel Martín de Mejía
(Perú), 1 de marzo de 1996, p. 22.
31. Recomendación General No. 33 de 15 de agosto de 2015 del Comité para eliminar la discrimi-
nación contra la Mujer de las Naciones Unidas, creado por La Convención sobre la eliminación
de todas las formas de discriminación contra la mujer, CEDAW. En este documento se incluyen
seis aspectos a fortalecer para superar las barreras de acceso a la justicia para las mujeres,
como son: justiciabilidad, disponibilidad, accesibilidad, sistemas de justicia con calidad, ren-
dición de cuentas de los sistemas y recursos. Un análisis sobre esta y otras recomendaciones
del Comité se encuentran en la Sentencia T-241 de 2016, Corte Constitucional.
32. Caso campo algodonero, p. 115. (párr. 455).

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Cap. 9 • EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA

reparación, la tutela judicial efectiva garantiza los derechos a la verdad


y a la justicia33.

3.3. Obligación de investigar


La obligación de investigar se deriva de varios instrumentos inter-
nacionales ratificados por Colombia. La CoIDH ha determinado que de
la obligación general de garantía se deriva la obligación de investigar los
casos de violaciones de los derechos humanos.
En caso de graves violaciones, la investigación debe ser iniciada de
oficio, esto es, independientemente de que las víctimas o sus familiares
presenten una denuncia. Según los estándares internacionales en esta
materia, la investigación debe ser inmediata, exhaustiva, seria e impar-
cial. Según la ley 1761/15 del feminicidio, la investigación debe ser ade-
más técnica, especializada, ágil, oportuna y efectiva.
En los casos de violencia contra las mujeres la investigación se cons-
tituye en una etapa crucial del procedimiento y por lo tanto no se puede
subestimar la importancia de una debida investigación, ya que las fallas
a ese respecto suelen impedir u obstaculizar ulteriores esfuerzos ten-
dientes a identificar, procesar y castigar a los responsables. Por tanto,
la investigación debe ser asumida por el Estado como un deber jurídico
propio, que no debe depender de la iniciativa procesal de la víctima o de
la aportación privada de elementos probatorios.
Respecto de la obligación a cargo del Estado de llevar a cabo una
investigación seria, inmediata, imparcial y exhaustiva es preciso reiterar
que esta exigencia adquiere mayor relevancia cuando nos enfrentamos
ante hechos de violencia contra las mujeres y que pueden ser consti-
tutivos de crímenes de lesa humanidad o de guerra. En consecuencia,
estaríamos ante una obligación reforzada en materia de investigación a
cargo de las autoridades judiciales.

3.4. Obligación de juzgar, castigar y reparar


El juzgamiento de los responsables es una medida de prevención
de futuros hechos de violencia. La imposición de sanciones penales

33. Esta doctrina fue desarrollada tanto en el ámbito de la justicia penal militar, como de la justi-
cia penal ordinaria. Corte Constitucional, Sentencias C-293 de 1995; C-163 de 2000; C-1149
de 2001; C-228 de 2002; C- 805 de 2002; C-916 de 2002, C-454 de 2006, reiterada reciente-
mente en la T-241 de 2016.

259
María Luisa Rodríguez Peñaranda

permite enviar un mensaje a la comunidad en general de que este tipo


de violencia no es tolerada por parte del Estado y que por el contrario la
condena. De no ser así, la sistemática impunidad en que permanecen es-
tos crímenes puede constituir un elemento importante que contribuye a
la repetición de las violaciones.
Además se debe realizar una calificación de los delitos que evidencie
el papel que desempeñó su comisión en el marco de la guerra, y de ser
el caso la sistematicidad y generalidad con que fueron cometidos, para
determinar si constituye un crimen de lesa humanidad. Adicionalmente
tal obligación implica juzgar a todos los integrantes que pudieron estar
involucrados en la comisión de los delitos, es decir no sólo a los autores
directos sino a los máximos responsables.
A manera de síntesis y como conclusión preliminar, considero im-
portante señalar que he escogido el concepto de debido proceso con en-
foque de género porque desde él se irradia una completa armonía entre
los conceptos, que en cambio difieren cuando se realiza en forma sepa-
rada, consecutiva, o superpuesta. Lamentablemente cuando se diseccio-
na el debido proceso y el enfoque de género las y los jueces pueden errar
aun teniendo las mejores de las intenciones, dando interminables círcu-
los sobre la espiral de los términos, el lenguaje apropiado, las normas,
los protocolos, pero sin dejarse permear por la situación concreta, las
vivencias de las mujeres o sus experiencias frente al derecho y su apli-
cación real. A esto quisiera llamarle «el género como retórica» y ocurre
cuando los funcionarios, el aparato de investigación y el poder judicial
parecen no lograr articular ambos conceptos en una sola noción abar-
cadora que resignifique la manera de recepcionar, impulsar, acompañar,
tratar, investigar y fallar un asunto que envuelva la vulneración de los
derechos de las mujeres y NNA. Así, nos podemos encontrar con deci-
siones judiciales que hagan un largo recuento positivo que enumere la
normatividad internacional y nacional con relación al género, pero luego
la olvide a la hora de resolver el caso concreto, pasando de largo sobre
cómo en el asunto en ciernes justamente hubo practicas estereotipadas,
barreras y obstáculos de acceso a la justicia, normalización de las violen-
cias o reproducción de roles de subordinación en las mujeres.34

34. Un ejemplo de lo enunciado es la sentencia T-241-16 sobre maltrato intrafamiliar. Aunque


resuelve el caso por la vulneración al debido proceso en la valoración de las pruebas, olvidó
analizar de qué manera el sesgo de género que imperó en los funcionarios y jueces había
afectado la protección de los derechos de la víctima, así como analizar de qué manera las prac-
ticas aquí evidenciadas y tan recurrentes, contribuían a la perpetuación de los estereotipos

260
Cap. 9 • EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA

Como estrategia para superar el riesgo de caer en «el género como


retorica», el debido proceso con enfoque de genero debe ir acompaña-
do de una metodología feminista que dé sentido a la interpretación del
derecho y que oriente la toma de decisión situando a las mujeres, sus
realidades y sus necesidades en sus vivencias frente al derecho y la auto-
ridad estatal, para lo cual analizaremos el método del posicionamiento
de Katharine Bartlett.

4. EL MÉTODO FEMINISTA DEL POSICIONAMIENTO DE BARTLETT


En el proceso judicial con enfoque de género es relevante documen-
tar las distintas formas de opresión que sufren las mujeres con el fin
de situar la exclusión, opresión y subordinación que las determinan, lo
que en el derecho a la debida diligencia se denomina investigación en
contexto. A continuación, analizaremos un método jurídico feminista
denominado «el posicionamiento», propuesto por la académica esta-
dounidense Katharine Bartlett. El método del posicionamiento ha sido
definido por su autora como «un concepto de verdad no arbitraria basa-
do en la experiencia, no obstante, debido a que se estima que la verdad
es algo situado y provisional más que algo externo o final, obliga a las
feministas a usar sus métodos para seguir extendiendo y transformando
esta verdad»35.
El énfasis que los distintos feminismos suelen atribuirle a la expe-
riencia busca evitar las interpretaciones universalistas y apartadas de
la realidad que, bajo el manto de neutralidad del derecho, oculta las re-
laciones de opresión basadas en el género en circunstancias concretas.
En este sentido, el método del posicionamiento pretende nutrirse
de otros métodos ya explorados por las feministas como son: i) la pre-
gunta por la mujer; ii) el razonamiento práctico feminista y por último,
iii) el aumento de conciencia.

de género. Por ejemplo, obviar el material probatorio que recogía la vulneración de los dere-
chos de la víctima como eran los informes sicológicos de medicina legal; la reincidencia en el
quebrantamiento de las medidas de protección provisionales y la persistencia en la misma
alternativa claramente ineficaz por parte de la Comisaría de Familia y la alta credibilidad que
se le dio a la declaración del inculpado frente a duda que generaba las pruebas documentales
aportadas por la actora. Al respecto ver la interesante aclaración de voto de los Magistrados
Alberto Rojas Ríos y Luis Ernesto Vargas Silva.
35. BARTLETT, Katharine, «Métodos jurídicos feministas», en: Métodos feministas en el derecho,
Aproximaciones críticas a la jurisprudencia peruana. Marisol Fernández yFelix Morales (coor-
dinadores). Palestra, Lima, 2011, p. 20.

261
María Luisa Rodríguez Peñaranda

i. En el primero de ellos, la pregunta por la mujer pretende po-


ner de presente cómo lo sustancial del derecho puede «silenciosamente
y sin justificación» albergar conceptos, prácticas, ideas, concepciones
discriminatorias contra las mujeres. Para lo cual se torna aconsejable
que los operadores jurídicos se cuestionen en forma regular un grupo
de preguntas: ¿quién hace qué?, ¿cómo, con qué?, ¿quién es dueño de
qué?, ¿quién es responsable de qué?, ¿quién tiene derecho a qué?, ¿quién
decide qué?, ¿quién recibe qué?, ¿por qué? ¿cuál es la base de la situa-
ción?36. Esto nos permite identificar qué consecuencias –implicaciones
genéricas, dice Bartlett–, arrojan las supuestas normas sociales o prác-
ticas neutrales y objetivas. Tales preguntas proceden en todos aquellos
casos en que una mujer se encuentre en medio de un conflicto jurídico y
tal vez pueda tratarse de un asunto que requiera ser tratado con enfoque
de género por cuanto podrían tratarse de normas «masculinas» en un
sentido específico, que merecen ser no solo reveladas sino corregidas
en tanto persisten en la subordinación de las mujeres y de otros grupos
excluidos.
ii. Por su parte, el razonamiento práctico feminista expande las no-
ciones abstractas de relevancia legal y universal a aquellas hasta ahora
inexploradas por la doctrina legal, pero que ocurren en la experiencia
femenina en el sentido práctico de la vida, conforme a un contexto con-
creto. En suma, se trata de un razonamiento contextualizado. Esta forma
de razonar se nutre del modelo clásico aristotélico de la deliberación, en
donde los conflictos no son dicotomizados, sino explorados como dile-
mas con múltiples perspectivas, contradicciones e inconsistencias, en el
que no basta con la implementación de un principio superpuesto a otros
para su resolución, sino que requiere tanto de «integraciones imagina-
tivas y reconciliaciones»37 que den luz a lo hasta ahora considerado «in-
significante», así como de un enfoque feminista para identificar y tomar
en cuenta las perspectivas de los excluidos.
iii. Por último, el aumento de conciencia ofrece una manera de eva-
luar la validez de los principios legales aceptados con el filtro de la expe-
riencia personal de los directamente afectados en la aplicación de tales
principios, para en forma interactiva y colaborativa, identificar patrones,

36. Estas preguntas se encuentran sugeridas en: ARBELÁEZ, Lucia; RUIZ, Esmeralda y otras, Cri-
terios de equidad para una administración de justicia con perspectiva de género. Comisión Na-
cional de Género de la Rama Judicial, Consejo Superior de la Judicatura, Bogotá, agosto 2011,
p. 20.
37. RORTY, Amelie, Mind in action, 1988, p. 272; citada por Bartlett, p. 55.

262
Cap. 9 • EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA

construir significados o sentidos comunes. Así, lo que es experimentado


como un daño personal individualmente sufrido pasa a ser, mediante
la narrativa compartida, en una experiencia colectiva de opresión que
puede ser nombrada, interpelada y enjuiciada. Experiencias como la vio-
lación marital, la pornografía, el acoso sexual, los ataques en la calle y
otras formas de opresión y exclusión normalizadas han sido, mediante
el aumento de la conciencia femenina, percibidas en forma distinta por
la sociedad.
El posicionamiento es definido por Bartlett como «una postura des-
de la que un número de verdades aparentemente inconsistentes tienen
sentido»; donde el conocimiento y la epistemología de este punto de
vista se construyen desde la experiencia individual –la percepción– que
tras ser compartida cobra sentido.
Estas verdades son: situadas en tanto emergen desde implicacio-
nes y relaciones particulares que son las que definen la perspectiva
del individuo y proveen el lugar para el significado, la identidad y el
compromiso político (no basadas en razones esencialistas o innatas);
y parciales, en la medida que las perspectivas individuales que las
producen y juzgan son incompletas, producto de los contextos socia-
les entretejidos por la raza, el género, la clase, orientación sexual, etc.
Así Bartlett explica que el significado del embarazo no se deriva sola-
mente de sus características biológicas, sino del lugar social que ocupa
desde la experiencia vivida por cada mujer según las estructuras del
mercado laboral, los acuerdos domésticos, los sistemas de responsa-
bilidad civil, las escuelas, las prisiones, y otras instituciones sociales
que construyen su significado, su verdad del embarazo. De suerte que
el compromiso y la acción política feministas que se derivan del posi-
cionamiento produce también compromisos provisionales, abiertos a
nuevas experiencias de conocedores que permitan ampliar su espectro
de aceptación; compromisos que además están sujetos a una mayor
evaluación y revisión crítica. En este aspecto, Bartlett coincide con la
mirada postmoderna de la construcción de la verdad. Empero, es ple-
namente consciente que esa verdad atomizada es limitada, y puede y
debe ser mejorada a partir del esfuerzo por trascenderla, entendiendo
otras perspectivas –incluidas las masculinas–, poniéndose en el lugar
del otro, expandiendo las fuentes de identidad mediante la autodisci-
plina. Ello no supone que el posicionamiento pretenda reconciliar to-
das las verdades o los intereses en juego, pero sí busca hacer compro-
misos con los métodos feministas existentes, dejando la puerta abierta

263
María Luisa Rodríguez Peñaranda

a perspectivas aún inexploradas y que podrían alterar dichos compro-


misos. Este doble propósito podría resumirse en el compromiso au-
tocrítico en el que las verdades plurales sobre las que actúa Bartlett
están sujetas a un mayor refinamiento, ajuste y corrección38. Así las
discrepancias actuales sobre los temas ya habituales de la sociedad y
entre las feministas como el aborto, la pornografía, la custodia infan-
til, el acoso sexual, entre muchos más, son para la autora en mención
conflictos de valor en términos de la existencia social. En donde unas
realidades sociales se estiman mejor no porque se validen en compara-
ción con verdades morales externas – descubiertas o esenciales– sino
por lo que denomina verdades internas que tienen mayor sentido de
experiencia y existencia social.

Ahora bien, Bartlett no resuelve cómo ante verdades internas va-


liosas, únicas y personales distintas, cuál de ellas predominará cuando
éstas resultan irreconciliables. Al parecer, desde la mirada de la autora
las verdades sociales surgirán de las relaciones sociales y de su examen
crítico. Aunque no precise qué método de deliberación sea el adecuado,
bajo qué reglas o sin ellas, ni cuáles serían los límites del debate o qué
virtudes o características deben rodear a las personas que deliberan, al
menos queda claro que los sujetos del debate deben gozar de pensa-
miento autocrítico.

Bartlett arguye que el método del posicionamiento resiste los inten-


tos de clasificarlo como esencialista o relativista, en tanto que, si bien
rechaza una verdad universal, final u objetiva, el posicionamiento exige
que tales conocimientos parciales busquen continuamente lo común con
aquellos que tienen otra perspectiva: «entender la diversidad humana
es también entender las similitudes entre los humanos»39. Se trata de un
esfuerzo que culmina siendo el fundamento de un mayor conocimiento
tanto de la diversidad individual como de la similitud de la humanidad,
necesariamente interdependiente.

En breve, el método del posicionamiento parte formulando la pre-


gunta por la mujer, al tiempo que permite a los intérpretes poner en
cuestión la aparente neutralidad y objetividad del derecho y con ello
descubrir las distintas formas de afectación a las mujeres desde las

38. BARTLETT, Katharine, «Métodos jurídicos feministas», cit., p. 108.


39. BARTLETT, ibídem, p. 113.

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Cap. 9 • EL DEBIDO PROCESO CON ENFOQUE DE GÉNERO EN COLOMBIA

reglas jurídicas. El razonamiento práctico feminista crea un puente en-


tre los principios con pretensión de universalidad y la lectura contex-
tualizada de la experiencia compartida de las mujeres y otros colectivos
desaventajados, que da sentido a tales principios. Al razonar a partir del
contexto y del aumento de conciencia, los métodos feministas tradicio-
nales amplían sus horizontes de análisis al permitirse descubrir y tratar
nuevas formas de opresión y exclusión a las mujeres. Por último, el en-
tendimiento posicional pone el énfasis en la práctica crítica permanente
como forma de deconstrucción y renovación interna hacia el plantea-
miento de nuevas preguntas, a conocimientos parciales mejorados, a un
derecho más justo y métodos aún más críticos.

5. CONCLUSIÓN

En el presente artículo he analizado como el debido proceso con


enfoque de género es un concepto complejo que envuelve una triple di-
mensión: procedimental, sustancial y metodológica, que lejos de desa-
fiar una noción central del derecho como es el derecho fundamental del
debido proceso, al articularse con el género da lugar a una renovación,
resignificación y plasticidad de su contenido, mucho más consciente y
dialogante con la realidad que determina la toma de decisión judicial,
administrativa o disciplinaria.

Además, he defendido que para proteger los derechos de las muje-


res no basta con hacer un recuento positivista sobre las normas que así
lo reclaman, sino que a su vez, el operador judicial debe implicarse en
la resolución del caso entrando más allá de la dermis normativa para
comprender en qué forma el derecho y las prácticas judiciales, y en es-
pecial la probatoria, reproduce o no los roles sociales y estereotipos que
oprimen a las mujeres afectando el acceso a la justicia y el derecho a una
decisión justa.

De igual modo, he sostenido que la implementación del método fe-


minista del posicionamiento contribuye a superar el sofisma del género
como retórica para introducir la pregunta por la mujer, el análisis en
contexto y el pensamiento práctico como una hermenéutica abierta e
incompleta que se nutre de la experiencia femenina, de sus vivencias y
sentimientos en su relación con el derecho y las practicas que lo hacen
efectivo.

265
María Luisa Rodríguez Peñaranda

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267
10
EL PAPEL DE LA JURISPRUDENCIA
CONSTITUCIONAL EN LA PROMOCIÓN
DE LA TEMÁTICA DE “GÉNERO” EN
LATINOAMÉRICA. REFLEXIONES
INÍCIALES CON ÉNFASIS EN LA
JURISPRUDENCIA DE LA CORTE
CONSTITUCIONAL COLOMBIANA

Marie-Christine Fuchs
y Humberto Sierra Olivieri

Sumario: 1. Introducción; 2. Tipificación de la jurisprudencia constitucional


respecto al tema de “género”; 3. Conclusión y análisis final; 4. Bibliografía.

1. INTRODUCCIÓN
Tradicionalmente, en la jurisprudencia constitucional, a la hora de
estudiar lo relativo al tema de “género” y de los derechos ligados a este
concepto, se ha hecho énfasis en las condiciones de la mujer, su rol en la
sociedad y en las distintas problemáticas a las cuales estas están expues-
tas, como por ejemplo, la discriminación en el acceso al mercado laboral,
el contenido de los derechos prestacionales, la violencia intrafamiliar, la
utilización de lenguaje discriminatorio, la situación relativa a las muje-
res en situación de discapacidad, la discusión en torno a la interrupción
voluntaria del embarazo, entre otras.

269
Marie-Christine Fuchsy Humberto Sierra Olivieri

En el caso de América Latina, estas problemáticas se relacionan


principalmente con la raigambre patriarcal que domina la sociedad1.
Sin embargo, en los últimos años, esta temática se ha ido expandien-
do progresivamente y ha incluido en su ámbito de estudio los derechos
de otros grupos de personas que también son sujetos de discriminación
por cuestiones del sexo o por su interpretación del término “género”,
en particular, los transexuales y, en general, las personas cuya identi-
ficación de género no corresponde con las expectativas sociales de su
entorno cultural2.
Es un hecho que las mujeres (sin perder de vista a los transexuales)
representan un grupo considerable –incluso podría decirse que mayori-
tario– de la sociedad, el cual, sin embargo, se ha encontrado histórica-
mente, no solo en una posición de desigualdad, sino también de desven-
taja cultural y de discriminación estructural3.
Es paradójico como en el contexto latinoamericano se enfrenta el
intento estatal de garantizar la igualdad material entre hombres y muje-
res, y de promover la consiguiente erradicación de la discriminación en
razón del género4, con el indiscutible arraigo social de concepciones y

1. FACIO, A.; FRIES, L. Feminismo, género y patriarcado. Revista sobre enseñanza del Derecho de
Buenos Aires, n. 6, año 2, 2005, p. 259 y ss. PAUTASSI, L. Igualdad de derechos y desigualdad
de oportunidades: ciudadanía, derechos sociales y género en América Latina. En: HERRERA,
G. Las fisuras del patriarcado: Reflexiones sobre feminismo y derecho. Quito: Flacso-Conamu,
Ágora, p. 65-90.
2. La distinción entre sexo y género parte de una serie de estudios por los cuales se distingue el
concepto de sexo como una característica natural o biológica, y el concepto de género como
una significación cultural que hace referencia a un conjunto de roles.
3. Ver al respecto: SOLÍS, P. Discriminación estructural y desigualdad social: Con casos ilustra-
tivos para jóvenes indígenas, mujeres y personas con discapacidad. Consejo Nacional para
Prevenir la Discriminación – Comisión Económica Para América Latina (Cepal), 2017; ABRA-
MOVICH, V. Responsabilidad estatal por violencia de género: comentarios sobre el caso “Cam-
po Algodonero” en la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Anuario de Derechos Hu-
manos, p. 167-182, 2010. Disponible en: <http://justiciaygenero.org.mx/wp-content/uploa-
ds/2015/04/27.pdf>. Acceso en: 17 set. 2019; PELLETIER QUIÑONES, P. La “discriminación
estructural” en la evolución jurisprudencial de la Corte Interamericana de Derechos Humanos.
México: Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM,
2014. Pelletier describe la discriminación estructural de la siguiente manera: “Nos referimos
a patrones y contextos de violación de derechos humanos en perjuicio de grupos vulnerables
por su condición, situación social, económica y cultural, quienes han sido históricamente o
contextualmente marginados, excluidos o discriminados sin justificación legal alguna”. Falta
la página de la citación
4. Aquella se manifiesta en la adopción de instrumentos de carácter internacional y regional,
como son la Convención sobre la Eliminación de Todas las Formas de Discriminación contra la
Mujer (Cedaw, por sus siglasen inglés) de 1979 y la Convención Interamericana para Prevenir,

270
Cap. 10 • El papel de la jurisprudencia constitucional…

estereotipos machistas, los cuales todavía se traducen, en la práctica, en


una férrea asignación de roles, en violencia de distintos tipos en contra
de la mujer y en una situación de vulnerabilidad de las mismas5.
La discusión frente al concepto de género, los derechos que de es-
tese desprenden y sobre la interpretación que haga funcionales otras
garantías constitucionales desde una perspectiva de género ha sido un
tema que ha causado una fuerte polémica y polarización en la sociedad
latinoamericana, de la cual Colombia no ha sido la excepción6.
Dentro de estos procesos de adaptación y de adecuación también
debe mencionarse que las distintas confesiones religiosas como la ca-
tólica y, cada vez más, las iglesias evangélicas, cuya influencia es consi-
derable en la mayor parte de los países del continente, han jugado un
rol importante a la hora de canalizar el descontento de los sectores más
conservadores de la sociedad, en cuanto al cambio de paradigmas en
temas relacionados con el género, y han sido las principales defensoras
de la conservación del statu quo7.

Sancionar y Erradicar la Violencia contra la Mujer(Convención de Belém do Pará) de 1994


respectivamente.
5. Al respecto resulta interesante lo expuesto en el Caso Gonzales y otras (“Campo Algodonero”)
vs. México: “La Corte toma nota de que a pesar de la negación del Estado en cuanto a la exis-
tencia de algún tipo de patrón en los motivos de los homicidios de mujeres en Ciudad Juárez,
este señaló ante la Cedaw que están influenciados por una cultura de discriminación contra la
mujer basada en una concepción errónea de su inferioridad”. Corte IDH, Caso Gonzales y otras
[“Campo Algodonero”] vs. México, Sentencia de 16 de noviembre de 2009, Excepción Prelimi-
nar, Fondo, Reparaciones y Costas, Serie C., parr También cabe destacar lo señalado por Mé-
xico en su Informe de Respuesta a la Cedaw en relación con las acciones concretas realizadas
para mejorar la situación de subordinación de la mujer en México y en Ciudad Juárez: “debe
reconocerse que una cultura fuertemente arraigada en estereotipos, cuya piedra angular es el
supuesto de la inferioridad de las mujeres, no se cambia de la noche a la mañana. El cambio de
patrones culturales es una tarea difícil para cualquier gobierno. Más aún cuando los problemas
emergentes de la sociedad moderna: alcoholismo, drogadicción, tráfico de drogas, pandilleris-
mo, turismo sexual, etc., contribuyen a agudizar la discriminación que sufren varios sectores
de las sociedades, en particular aquellos que ya se encontraban en una situación de desventaja,
como es el caso de las mujeres, los y las niñas, los y las indígenas”. Falta la referencia.
6. Ejemplos de lo anterior se pueden consultar en: LEMAITRE, J. ¿Qué es una ideología de géne-
ro? La Silla Vacía, 11 ago. 2016. Disponible en: <https://lasillavacia.com/blogs/que-es-una-
-ideologia-de-genero-57494> Acceso en: 17 set. 2019; GONZÁLEZ, M. ¿Por qué se confunde
ideología de género con equidad de género? El Tiempo, 11 nov. 2016. Disponible en: <https://
www.eltiempo.com/archivo/documento/CMS-16747749>. Acceso en: 17 set. 2019; ACI. La
clara respuesta de los obispos de Paraguay a la ideología de género. Aciprensa, 1 nov. 2017.
Disponible en: <https://www.aciprensa.com/noticias/la-clara-respuesta-de-los-obispos-de-
-paraguay-a-la-ideologia-de-genero-81700>. Acceso en: 17 set. 2019.
7. Véase RUIZ SEISDEDOS, S.; BONOMETTI, P.; Las mujeres en América Latina: indicadores y
datos. Revista de Ciencias Sociales, n. 126-127, 2009-2010, p. 7; CARACOL RADIO. Ideología de

271
Marie-Christine Fuchsy Humberto Sierra Olivieri

Un ejemplo reciente al respecto fue el álgido debate sobre el aborto


en Chile. En este país, hace solo unos meses el Tribunal Constitucional de-
cidió, con seis votos a favor y cuatro en contra, declarar constitucional la
ley que lo despenaliza en tres casos excepcionales8. Dicha sentencia9 fue
acompañada por una fuerte discusión en la sociedad chilena, en la cual
un amplio sector conservador criticó enérgicamente dicha decisión10. Al
respecto, no debe olvidarse queel aborto está totalmente prohibido sin
excepciones en siete países de la región, entre otros El Salvador, Nicara-
gua y República Dominicana. Se permite solamente para salvar la vida
de la mujer en otros ocho. Unos pocos de estos últimos países permiten
el aborto en casos de violación (Brasil, México y Panamá) o anormalidad
fetal (Panamá y la mitad de los estados de México).11 En Colombia, la
sentencia a partir de la cual, ya hace más de una década, se despenalizó
el aborto en ciertas circunstancias particulares12, también fue acompa-
ñada por una fuerte protesta de ciertos sectores de la sociedad13.
Como quiera que las constituciones en América Latina son instru-
mentos relativamente rígidos y con capacidad reducida de ser ajusta-
dos a los vertiginosos cambios sociales, los tribunales constitucionales
se han constituido en instituciones de fundamental importancia para

género destruye la sociedad: Iglesia Católica. Caracol Radio, 9 ago. 2016. Disponible en: < ht-
tps://caracol.com.co/radio/2016/08/09/nacional/1470752686_387127.html>. Acceso en:
17 set. 2019; ADN RADIO. Iglesia católica: El aborto no es la solución para las situaciones do-
lorosas. ADN Radio, 21 ago. 2017. Disponible en: <https://www.adnradio.cl/noticias/nacio-
nal/iglesia-catolica-el-aborto-no-es-la-solucion-para-las-situaciones-dolorosas/20170821/
nota/3555405.aspx>. Acceso en: 17 set. 2019; ANF. Iglesia rechaza proyecto de Ley de Identi-
dad de Género por “contravenir la moral evangélica”. Página siete, 23 dic. 2015. Disponible en:
<https://www.paginasiete.bo/sociedad/2015/12/23/iglesia-rechaza-proyecto-identidad-
-genero-contravenir-moral-evangelica-81208.html>. Acceso en: 17 set. 2019.
8. En situaciones de peligro para la vida de la mujer, en casos de violación y cuando el feto pre-
sente graves malformaciones.
9. CHILE. Corte Suprema de Justicia. Rol 3729-17, de 28 de agosto de 2017.
10. JARA, A. Kast rechaza decisión del TC por aborto: “El Gobierno impulsó esta ley para ocultar
su desastre”. La Tercera, 21 ago. 2017. Disponible en: <https://www.latercera.com/noticia/
kast-rechaza-decision-del-tc-aborto-gobierno-impulso-esta-ley-ocultar-desastre/>. Acceso
en: 17 set. 2019.
11. GUTTMACHER INSTITUTE. Aborto en América Latina y el Caribe Incidencia y tendencias, mar.
2018. Disponible en: <https://www.guttmacher.org/es/fact-sheet/aborto-en-america-lati-
na-y-el-caribe>. Acceso en: 17 set. 2019.
12. COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia C-355 de 2006.
13. RODRÍGUEZ, D. Conservadores presentarán 5 millones de firmas para prohibir el aborto. El
Tiempo, 31 jul. 2011. Disponible en: <https://www.eltiempo.com/archivo/documento/CMS-
10055575>. Acceso en: 17 set. 2019.

272
Cap. 10 • El papel de la jurisprudencia constitucional…

adecuar el marco legal y constitucional a la realidad social de sus países,


siendo su principal herramienta para estos fines la interpretación de los
derechos fundamentales dentro de las cartas magnas.
En este proceso de adaptación de la realidad constitucional, algunos
tribunales–como es el caso de la Corte Constitucional colombiana–ge-
neralmente han adoptado una posición con inclinación progresista en
el sentido de acoger con mayor facilidad los argumentos a favor de la
reinterpretación de derechos en su jurisprudencia respecto al tema de
género. Mientras que otros, como es el caso del Tribunal Constitucional
chileno en algunas decisiones, han adoptado una actitud rígida, menos
permeable a las nuevas realidades sociales o a las transformaciones que
se derivan de una lectura más garantista de los derechos relacionados
con la temática de género14.

2. TIPIFICACIÓN DE LA JURISPRUDENCIA CONSTITUCIONAL RES-


PECTO AL TEMA DE “GÉNERO”
En el ámbito latinoamericano, y con base en la jurisprudencia tan-
to de diferentes tribunales constitucionales del continente, como de la
Corte Interamericana de Derechos Humanos (Corte IDH), se pueden
identificar tres grupos principales de problemáticas relacionadas con
temas de género, en torno a los cuales se han desarrollado la mayor par-
te de las sentencias y discusiones jurídicas: a) el atinente a la situación
de desventaja de las mujeres en todos los sectores de la sociedad y su
discriminación por motivos del género; b) lo que respecta a los derechos
específicos de la mujer, en cuanto a sus características propias; y c) el
relacionado con la temática de la libre determinación de género, en par-
ticular lo que se refiere a la transexualidad.

a) Situación de discriminación y desventaja de la mujer


Respecto al primer punto, es decir, la situación de desventaja de las
mujeres y su discriminación en todos los sectores de la sociedad, la ju-
risprudencia ha prestado particular atención a dos sectores, a saber: la
vida familiar y el ámbito laboral.

14. COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL); UNIDAD MUJER Y
DESARROLLO, CORTE NACIONAL ELECTORAL, ÁREA DE EDUCACIÓN CIUDADANA. El enfo-
que de género en el derecho constitucional comparado. Santiago: Cepal, 2005; COMISIÓN ECO-
NÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL); UNIDAD MUJER Y DESARROLLO.
Reformas constitucionales y equidad de género. Santiago: Cepal, 2005.

273
Marie-Christine Fuchsy Humberto Sierra Olivieri

En la vida familiar existe una asimetría histórica entre el hombre


y la mujer, por ejemplo,en relación con el papel de la mujer de “servir
a la familia y al esposo”, manejar el hogar, en los procesos de divorcio y
cuando se busca la asignación de la custodia de los hijos. En su jurispru-
dencia, los tribunales constitucionales en el continente parten del hecho
de que, en las relaciones sociales, hombres y mujeres no se encuentran
en igualdad de posiciones. En su jurisprudencia de los últimos años mu-
chos han tratado de reequilibrar las fuerzas en juego y de fortalecer la
posición de la mujer con el objetivo de establecer la igualdad entre hom-
bre y mujer15.
Este propósito vale particularmente para situaciones de violencia
intrafamiliar, en la cual las víctimas son preponderantemente mujeres.
En estos casos, muchos tribunales constitucionales, en su jurispruden-
cia, parten del supuesto de que la situación de las mujeres requiere un
tratamiento diferencial con una perspectiva del género16. Por ejemplo,
en México, en una decisión de 200517, la Suprema Corte de la Justicia de
la Nación (SCJN) cambió su jurisprudencia para las situaciones de viola-
ción entre cónyuges, estableciendo su anterior ilicitud y precisó que el
bien jurídico protegido en estos casos es la libertad sexual y no la “pudi-
cia individual” o la “honestidad de la mujer” como lo fue inicialmente18.
A este respecto es particularmente ilustrativa la sentencia de la Cor-
te IDH en el caso Atala Riffo y Niñas vs. Chile, en el cual la justicia chilena
había negado la custodia de sus hijos a una jueza chilena por el hecho

15. COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-012 de 2016; COLOMBIA. Los derechos de las
mujeres en la jurisprudencia de la Corte Constitucional colombiana 2005-2009. Bogotá: Presi-
dencia de la República, Universidad del Rosario, 2011, p. 60 y ss. Disponible en: <http://www.
equidadmujer.gov.co/oag/Documents/DERECHOS-MUJERES.pdf>. Acceso en: 17 set. 2019.
16. Un ejemplo en el contexto mexicano se encuentra en el Amparo Directo en Revisión
3186/2016 de la SCJN, en cuanto: “se estima correcta la interpretación constitucional reali-
zada por el tribunal colegiado en cuanto a que en casos de violencia sexual contra la mujer,
la declaración de la víctima del delito requiere un trato distinto o diferenciado, pues debe
realizarse con perspectiva de género, ello a luz del derecho de las mujeres a vivir una vida
libre de violencia consagrado en la Convención de Belém do Pará, siendo que lo procedente es
confirmar, en la materia de la revisión, la sentencia recurrida y negar el amparo solicitado”.
17. MÉXICO. Primera Sala de la Suprema Corte de la Justicia de la Nación. Decisión Varios 9/2005-
PS, solicitud de modificación de jurisprudencia, , Novena Época, 16 de noviembre de 2005.
18. También en la Sentencia T-027 de 2017, la Corte Constitucional colombiana establece que:
“Aun cuando las agresiones sean mutuas en la pareja, este no puede ser un motivo suficiente
para dejar sin protección a las mujeres”, y continúa diciendo que las agresiones “deben verse
desde un contexto en el cual las mujeres fueron víctimas de violencia estructural de forma
histórica y no están en igualdad de condiciones frente al hombre: el estereotipo de la mujer
débil que no se defiende ante la agresión es solo otra forma de discriminación”.

274
Cap. 10 • El papel de la jurisprudencia constitucional…

de ser lesbiana y por no “corresponder” su orientación sexual con las


expectativas sociales en cuanto a su rol de madre19. Sobre el asunto, la
Corte IDH consideró que:
… exigirle a la madre que condicionara sus opciones de vida implica
utilizar una concepción “tradicional” sobre el rol social de las mujeres
como madres, según la cual se espera socialmente que las mujeres lle-
ven la responsabilidad principal en la crianza de sus hijos e hijas y que
en pos de esto hubiera debido privilegiar la crianza de los niños y niñas
renunciando a un aspecto esencial de su identidad.20
La Corte IDH demostró que hubo un trato discriminatorio a efectos
de la tutela de los niños, basado en un estereotipo preestablecido sobre
el rol de la mujer y la condición de madre, y concluyó que el interés su-
perior del menor no puede ser un criterio que sirva para desconocer los
derechos de la mujer.
De igual manera, la jurisprudencia de la Corte Constitucional colom-
biana,en relacióncon la obligación de alimentos de los hijos, en la cual
se determina que incumbe a ambas partes y no solo al padre21, es una
muestra de la búsqueda de una simetría por parte de la justicia constitu-
cional al interior de la estructura familiar.
En lo relativo al ámbito laboral, los tribunales constitucionales han
tratado de fortalecer la posición de la mujer a través de la determinación
de cuotas rígidas o flexibles en posiciones de servidores públicos22 y en
las empresas privadas, censurando el acoso y la violencia laboral en con-
tra de las mujeres23 e intentando promover reglas de protección especial
para las trabajadoras durante el embarazo24.
Sin embargo, cabe mencionar que en algunos casos las sentencias
arriba mencionadas han provocado o incentivado cambios legislativos
tan garantistas, que es discutible si sus efectos han sido los efectivamen-
te pretendidos o conllevan al mismo tiempo un efecto contraproducente
para la posición de la mujer en el ámbito laboral. A manera de ejemplo

19. Corte IDH, Caso Atala Riffo y Niñas vs. Chile, Sentencia de 24 de febrero de 2012, Fondo, Repa-
raciones y Costas, Serie C.
20. Ibid., párr. 140.
21. COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-012 de 2016.
22. La Sentencia C-371 de 2000, de la Corte Constitucional colombiana, hace un análisis al res-
pecto.
23. COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-878 de 2014, M.P. Jorge Iván Palacio.
24. Cfr., al respecto, las sentencias de la Corte Constitucional de Colombia SU-070 de 2013, M.P.
Alexei Julio Estrada, y T-238 de 2015, M.P. María Victoria Sáchica Méndez.

275
Marie-Christine Fuchsy Humberto Sierra Olivieri

puede preguntarse si una extensión excesiva de los tiempos de la licen-


cia de maternidad podría desincentivar a los empleadores a contratar
mujeres en edad reproductiva, o si el establecimiento de cuotas rígidas
para mujeres ignorando el criterio de meritocracia y cualificación frente
a sus competidores masculinos podría llevar a una discriminación “in-
versa” en detrimento de los hombres. Cabe precisar que lo anterior es
discutible siempre y cuando no se llegue a cuestionar la necesidad de
reconocimiento de los derechos de la mujer y su particular situación de
desventaja en la sociedad.

b) Derechos específicos de las mujeres


E neste segundo grupo se hace referencia a situaciones que están
estrechamente relacionadas con características biológicas o fisiológicas
de las mujeres, las cuales deben ser analizadas y consecuentemente pro-
tegidas de manera específica.
Piénsese, a manera de ejemplo, en derechos como el derecho a la sa-
lud que, en cuanto las mujeres pueden padecer enfermedades relaciona-
das exclusivamente con su sexo, como el cáncer de seno o de cuello uteri-
no, adquiere un contenido diferente. Lo mismo aplica paraprocesos bioló-
gicos, fisiológicos y reproductivos, como el embarazo, que son exclusivos
del sexo femenino y requieren de una particular sensibilidad a la hora de
legislar25. Además, la interpretación de derechos como el acceso a la jus-
ticia o la integridad personal tienen un tinte diferente en materia de vio-
lencia sexual, que en el contexto latinoamericano también ha estado his-
tórica y estrechamente relacionada con el estereotipo de la mujer como
más débil y en una posición de inferioridad respecto al hombre26. Como
lo señala la Convención de Belém do Pará, la violencia contra la mujer no

25. Un ejemplo reciente (año 2017) e ilustrativo al respecto en México se encuentra en el Amparo
Directo 50/2015 de la SCJN, en el cual, en un caso de indemnización por negligencia médica
se establece que existe la “necesidad de introducir una perspectiva de género en la reparación
del daño”.
26. Ver Corte IDH, Caso González y otras (“Campo Algodonero”) vs. México, cit., párr. 401: “En
similar forma, el Tribunal considera que el estereotipo de género se refiere a una preconcep-
ción de atributos o características poseídas o papeles que son o deberían ser ejecutados por
hombres y mujeres respectivamente. Teniendo en cuenta las manifestaciones efectuadas por
el Estado […], es posible asociar la subordinación de la mujer a prácticas basadas en este-
reotipos de género socialmente dominantes y socialmente persistentes, condiciones que se
agravan cuando los estereotipos se reflejan, implícita o explícitamente, en políticas y prácti-
cas, particularmente en el razonamiento y el lenguaje de las autoridades de policía judicial,
como ocurrió en el presente caso. La creación y uso de estereotipos se convierte en una de las
causas y consecuencias de la violencia de género en contra de la mujer”.

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Cap. 10 • El papel de la jurisprudencia constitucional…

solo constituye una violación de los derechos humanos, sino que es “una
ofensa a la dignidad humana y una manifestación de las relaciones de po-
der históricamente desiguales entre mujeres y hombres”.
Particularmente, en torno al tema del embarazo se han enmarcado
numerosas discusiones recogidas por la jurisprudencia, como el aborto,
el uso de la píldora del día después27, la fecundación in vitro y la libertad
del uso de técnicas reproductivas. Sobre estas últimas resulta ilustrativo
el análisis de la Corte IDH en el caso Artavia Murillo vs. Costa Rica:
… Por otra parte, si bien la infertilidad puede afectar a hombres y mu-
jeres, la utilización de las tecnologías de reproducción asistida se rela-
ciona especialmente con el cuerpo de las mujeres. Aunque la prohibi-
ción de la FIV no está expresamente dirigida hacia las mujeres, y por lo
tanto aparece neutral, tiene un impacto negativo desproporcional sobre
ellas.28
Por lo anterior, cabe preguntarse si es necesaria una relectura de
los derechos humanos a partir de las características de los titulares de
los derechos, y, en este caso, si el contenido de los derechos debe inter-
pretarse y adaptarse a partir de las características de las mujeres, en
cuanto derechos como la salud29, la integridad física e incluso el derecho
a la vida, pueden tener rasgos diferentes en función de si su titulares un
hombre o una mujer30.
Además, en ciertos casos concretos relacionados con fenómenos y
situaciones de vulnerabilidad, resulta aún más evidente la necesidad
de analizar si debe haber lugar a una reinterpretación de los derechos
humanos en función del género, o una interpretación con enfoque de
género, como por ejemplo, en contextos en donde las mujeres se en-
cuentran en situaciones de migración, de detención31,están involucradas

27. PÉREZ, F. La judicialización del caso de la píldora del día después en Chile: las tensiones sobre
el rol de la mujer y la cuestión técnica. Mendoza: Universidad Nacional de Cuyo. Simposio n.
30, Praxis feministas y despatriarcalización de la política, 2012, Mendoza, Argentina.
28. Corte IDH, Caso Artavia Murillo y otros (Fecundación in vitro) vs. Costa Rica, Sentencia de 28
de noviembre de 2012, Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas, Serie C, p.
299.
29. Respecto a la seguridad social, véase PAUTASSI, L. Legislación previsional y equidad de género
en América Latina. Santiago: Cepal, 2002, p. 11 y ss.
30. Corte IDH. Cuadernillo de Jurisprudencia n. 4: Derechos Humanos y Mujeres. 2018, p. 35 y
ss. Disponible en: <http://www.corteidh.or.cr/sitios/libros/todos/docs/cuadernillo4.pdf>.
Acceso en: 17 set. 2019.
31. Corte IDH, Caso Penal Miguel Castro Castro vs. Perú, Sentencia de 25 de noviembre de 2006,
Fondo, Reparaciones y Costas, Serie C.

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Marie-Christine Fuchsy Humberto Sierra Olivieri

en conflictos armados32 o pertenecen a un grupo de origen indígena33,


afrodescendiente u otro grupo minoritario. Sobre todo, en coyunturas
en las que se reúnen varias de las circunstancias anteriores se puede
hablar de un especie de “doble vulnerabilidad” o “multivulnerabilidad”
en la cual se encuentra la mujer34. En la teoría feminista, en estos casos
de múltiples violaciones o entrecruzamiento de diferentes modalidades
de dominación se habla de interseccionalidad35.

c) Libertad para establecer o decidir la identidad de género


Este tercer grupo de sentencias –las relacionadas con el tema de la
libre determinación de género– resulta particularmente interesante en
el contexto de la jurisprudencia constitucional latinoamericana de los
últimos años.
La Corte Constitucional colombiana ha establecido que el derecho a
determinar autónomamente el propio género forma parte de la autono-
mía personal y se enmarca dentro del derecho al libre desarrollo de la
personalidad36. En relación con lo anterior, es obligación de los sistemas
de salud asumir los costos de las operaciones de cambio de sexo como
parte del derecho a la salud37.En cuanto a la prohibición de discrimina-
ción se encuentran sentencias de la misma Corteen donde se ordena al
Ejército Nacional excluir a las mujeres transgénero del servicio militar
obligatorio38.
Con el mismo enfoque, en el año 2016 el Tribunal Constitucional pe-
ruano reconoció el derecho a la propia identidad de género y ordenó que
el proceso de rectificación del sexo en los documentos de identidad se

32. Corte IDH, Caso Masacre de Mapiripán vs. Colombia,Sentencia de 15 de septiembre de 2005,
Serie C; Caso Masacres de Río Negro vs. Guatemala, Sentencia de 4 de septiembre de 2012,
Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas, Serie C, Caso Espinoza Gonzáles vs. Perú́,
Sentencia de 20 de noviembre de 2014, Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas, Serie C.
33. Corte IDH, Caso Masacre Plan de Sánchez vs. Guatemala, Sentencia de 19 de noviembre de
2004, Reparaciones, Serie c.
34. Corte IDH. Cuadernillo de Jurisprudencia n. 4: Derechos Humanos y Mujeres. 2018, p. 35 y ss.
35. Véase VIVEROS VIGOYA, M. La interseccionalidad: una aproximación situada a la dominación.
Debate Feminista, n. 52, 2016, p. 1-17; WILLAMS CRENSHAW, K. Mapping the Margins: Inter-
secionality, Identity Politics and Violence Against Women of Color. Disponible en: <http://
www.racialequitytools.org/resourcefiles/mapping-margins.pdf >. Acceso en: 17 set. 2019.
36. COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencias T-086 y T-622 de 2014, T-063 de 2015.
37. COLOMBIA. Corte Constitucional. sentencias T-918 y T-876 de 2012, T-552 de 2013.
38. COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-099 de 2015.

278
Cap. 10 • El papel de la jurisprudencia constitucional…

realice mediante procedimiento sumario. Lo anterior representa un giro


de 180 grados, puesto que deja sin efecto la doctrina jurisprudencial es-
tablecida en sentencia anterior39, según la cual el sexo era un elemento
“inmutable” y, portanto, no era viable solicitar su modificación en los
documentos de identidad.
Diez años antes, la Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina
resolvió conceder la personería jurídica a la Asociación de Lucha por
la Identidad Travesti-Transexual (Alitt)40. Negar ese derecho, advirtie-
ron los jueces supremos, sería un acto de discriminación. El fallo implicó
un vuelco histórico en la jurisprudencia de esta Corte, que quince años
atrás le había negado el reconocimiento a la Comunidad Homosexual Ar-
gentina (CHA) con el argumento de que su objeto social era “contrario
al bien común”41. A nivel regional, esta sentencia podría ser analizada
como la “hora de nacimiento” de la interpretación “funcional” del género
en la jurisprudencia constitucional latinoamericana en lo que respecta
al reconocimiento de los derechos de los transexuales y transgénero.

3. CONCLUSIÓN Y ANÁLISIS FINAL


La discusión arriba planteada nos conduce a unas observaciones
finales sobre el impacto real de las sentencias de las cortes constitucio-
nales latinoamericanas, en particular de la colombiana, en materia de
género y respecto a la posición de la mujer en nuestras sociedades.
En primer lugar, se debe reconocer que en el continente existen im-
portantes manifestaciones de una jurisprudencia garantista en materia
de género. Los derechos de la mujer se han ido reconociendo cada vez
más. Además, la amplia gama de temáticas tratadas en las sentencias y
demostradas en este texto muestra la gran magnitud de situaciones que
pueden relacionarse con el concepto de género.
Sin embargo, las realidades sociales de discriminación histórica, po-
breza y exclusión son condiciones que hasta el día de hoy han impedido
el pleno reconocimiento de los derechos de las mujeres y su realización

39. PERU. Tribunal Constitucional. Sentencia 0139-2013-PA/TC.


40. ARGETINA. Corte Suprema de la Nación Argentina. Asociación Lucha por la Identidad Travesti
– Transexual c/ Inspección General de Justicia, 22 de noviembre de 2006.
41. ARGENTINA. Corte Suprema de la Nación Argentina. Comunidad Homosexual Argentina c/
Resolución Inspección General de Justicia s/ personas jurídicas y recurso de hecho deducido
por la actora en la Causa: “Comunidad homosexual argentina”, para decidir sobre su proce-
dencia, 22 de noviembre de 1991.

279
Marie-Christine Fuchsy Humberto Sierra Olivieri

en la práctica. En consecuencia, al igual que en materia de derechos so-


ciales, en la jurisprudencia de los tribunales constitucionales del conti-
nente respecto a temas de género se puede identificar una discrepancia
entre la teoría y la jurisprudencia, por un lado, y la realidad social de
los países, por el otro. La divulgación de la jurisprudencia garantista se
ve frenada por el efecto interpartes que es usual en las sentencias judi-
ciales. La posibilidad de utilizar la figura de las sentencias estructurales
aparece como alentadora para dar un efecto tangible alas mismas, pero
aparte de ser discutible desde el punto de vista de la separación de po-
deres, aún tiene un desarrollo incipiente en nuestros países, y su grado
de ejecución no suele ser particularmente alto.
En segundo lugar, en materia de género, las reformas y políticas
públicas para modificar radicalmente la realidad de exclusión y margi-
nación de mujeres y transexuales, y para garantizar de manera efectiva
sus derechos, por lo general han sido insuficientes. En respuesta a esta
“paralización política” de los órganos legislativos, en muchos casos se
ha tratado de establecer la igualdad entre los géneros por medio de la
“judicialización” de este derecho, usando la fuerza vinculante de las sen-
tencias de las más altas Cortes42.
Estos procesos suponen que el reconocimiento creciente de estos
derechos en los fallos de los tribunales constitucionales puede influir
“desde arriba” en el orden familiar, social, económico y laboral de nues-
tras sociedades, con lo que se espera que se establezca un deber de pro-
tección por parte del Estado, o se interprete una orden constitucional al
poder legislativo de introducir mecanismos de control.
Cabe preguntarse si en un continente caracterizado por valores tra-
dicionales respecto a las asignaciones relacionadas con los temas de gé-
nero, la moral de la mayoría de la sociedad coincide con las posiciones
progresistas de sus altas Cortes o si deberían coincidir. En este contexto,
se plantea la recurrente reflexión sobre si las cortes constitucionales son
los órganos idóneos para promover cambios respecto al tema de género.
Sin embargo, no se debe perder de vista que el proceso de evolución
“espontáneo”, sobre todo a nivel político, es incierto. Esto se debe a la

42. COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL); UNIDAD MUJER Y
DESARROLLO, CORTE NACIONAL ELECTORAL, ÁREA DE EDUCACIÓN CIUDADANA. op. cit.,
2005; BUSTAMANTE ARANGO, D. El proceso de adaptación judicial hacia el posconflicto: de-
cisiones constitucionales con enfoque en género. Opinión Jurídica, v. 14, n. 27, 2015, p. 19-36.
Disponible en: <http://www.scielo.org.co/pdf/ojum/v14n27/v14n27a02.pdf>. Acceso en:
17 set. 2019; PÉREZ, La judicialización del caso de la píldora del día después en Chile, op. cit., p.

280
Cap. 10 • El papel de la jurisprudencia constitucional…

cada vez mayor presión de diferentes sectores de la sociedad, la cual ha


derivado, en algunos casos, en la formación de colectivos radicales que
critican fuertemente gran parte de los reconocimientos planteados en
los párrafos anteriores y los han agrupado dentro del concepto de “ideo-
logía de género”.
El tema estudiado en las páginas precedentes, y las reacciones so-
ciales al respecto, dejan muchos interrogantes. ¿Es el papel de los tribu-
nales constitucionales otorgar a sus ciudadanos visiones más modernas
en la interpretación de los derechos humanos, interpretaciones para las
cuales tal vez una gran parte de la sociedad todavía no esté preparada?
¿Se debe esperar hasta que la sociedad les reclame este cambio?¿Depen-
de de la voluntad política del primer y segundo poder que la igualdad
entre hombres y mujeres no quede en una consigna que buscan aplicar
“desesperadamente” unos jueces constitucionales progresistas? ¿ O tie-
nen estas sentencias una fuerza moral vinculante o un efecto erga om-
nes, la cual hace cumplir a los políticos, al empresario y, en últimas, a la
sociedad en su totalidad?
Mucho dependerá de una jurisprudencia constitucional racional y
creíble, y de un análisis realista de las circunstancias específicas y del
contexto en nuestra región. Independientemente de cualquier discusión,
los tribunales se encuentran ante la difícil tarea de sistematizar los casos
en materia de género y de priorizar los que verdaderamente logren te-
ner un impacto en el “día a día” de nuestras sociedades, más allá de casos
específicos. Esto solo se puede lograr a través de un diálogo constante
entre la justicia y la sociedad civil, en el cual se tomen en serio las críti-
cas y preocupaciones de todos los sectores de la sociedad. Sin embargo,
es evidente que, sin una jurisprudencia constitucional progresista en la
región –sobre todo como la de la Corte Constitucional colombiana–, el
enfoque de género tendría un desarrollo mucho menor y la discrimina-
ción en el goce y disfrute de derechos se seguiría perpetuando.

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282
Cap. 10 • El papel de la jurisprudencia constitucional…

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decidir sobre su procedencia, 22 de noviembre de 1991.
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COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-012 de 2016.
COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-012 de 2016.
COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-099 de 2015.
COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-878 de 2014, M.P. Jorge Iván Palacio.
COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencias T-086 y T-622 de 2014,T-063 de 2015.
COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencias T-918 y T-876 de 2012, T-552 de 2013.
Corte IDH. Caso Espinoza Gonzáles vs. Perú́, Sentencia de 20 de noviembre de 2014, Ex-
cepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas, Serie C.
Corte IDH. Caso Masacre de Mapiripán vs. Colombia, Sentencia de 15 de septiembre de
2005, Serie C.

283
Marie-Christine Fuchsy Humberto Sierra Olivieri

Corte IDH. Caso Masacres de Río Negro vs. Guatemala, Sentencia de 4 de septiembre de
2012, Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas, Serie C.
Corte IDH. Cuadernillo de Jurisprudencia n. 4: Derechos Humanos y Mujeres. 2018, p. 35
y ss. Disponible en: <http://www.corteidh.or.cr/sitios/libros/todos/docs/cuader-
nillo4.pdf>. Acceso en: 17 set. 2019.
Corte IDH. Caso Artavia Murillo y otros (Fecundación in vitro) vs. Costa Rica, Senten-
cia de 28 de noviembre de 2012, Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones
y Costas, Serie C.
Corte IDH. Caso Atala Riffo y Niñas vs. Chile, Sentencia de 24 de febrero de 2012, Fondo,
Reparaciones y Costas, Serie C.
Corte IDH. Caso Gonzales y otras [“Campo Algodonero”] vs. México, Sentencia de 16 de
noviembre de 2009, Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas, Serie C.
Corte IDH. Caso Masacre Plan de Sánchez vs. Guatemala, Sentencia de 19 de noviembre
de 2004, Reparaciones, Serie C.
Corte IDH. Caso Penal Miguel Castro Castro vs. Perú, Sentencia de 25 de noviembre de
2006, Fondo, Reparaciones y Costas, Serie C.
MÉXICO. Primera Sala de la Suprema Corte de la Justicia de la Nación. Decisión Varios
9/2005-PS, solicitud de modificación de jurisprudencia, , Novena Época, 16 de no-
viembre de 2005.
PERU. Tribunal Constitucional. Sentencia 0139-2013-PA/TC.

284
11
A IMPORTÂNCIA DA IGUALDADE DE
GÊNERO E DOS INSTRUMENTOS PARA
A SUA EFETIVAÇÃO NA DEMOCRACIA:
ANÁLISE SOBRE O FINANCIAMENTO
E REPRESENTAÇÃO FEMININA NO BRASIL
Polianna Pereira dos Santos1
e Nicole Gondim Porcaro2

Sumário: 1. Introdução; 2. Democracia e questões de gênero; 3. Democracia de


gênero no ordenamento jurídico brasileiro; 4. A política de cotas na legislação
eleitoral brasileira; 5. Financiamento de campanha; 7. Democracia de gênero
e os instrumentos para sua implementação; 8. Referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO
A Carta de 1988 marca a transição democrática e a institucionali-
zação dos direitos humanos no Brasil, inaugurando uma nova dogmáti-
ca constitucional, na qual ela assume posição central dentro do sistema

1. Mestre em Direito Político – UFMG. Especialista em Ciências Penais – IEC – PUC/MG. Bacha-
rel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Diretora
Presidente da Associação Visibilidade Feminina. Membro da Academia Brasileira de Direito
Eleitoral e Político – ABRADEP. Assessora no Tribunal Superior Eleitoral.
2. Mestranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-graduada em Direi-
tos Fundamentais pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e Ius Gentium
Conimbrigae (IGC) da Universidade de Coimbra. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogada. Diretora Administrativa da Associação Visi-
bilidade Feminina.

285
Polianna Pereira dos Santose Nicole Gondim Porcaro

jurídico. Eleva a participação política ampla e igualitária como direito


fundamental, declarando que homens e mulheres são iguais em direitos
e obrigações, de forma a instituir a paridade de gênero como princípio
visceral da ordem constitucional, inclusive estabelecendo como dever
do Estado tomar medidas apropriadas à inserção igualitária da mulher
na política.
Essa perspectiva constitucional se insere no contexto de reconheci-
mento da igualdade de gênero como elemento essencial para uma socie-
dade que se pretenda democrática3 e para o aumento da qualidade dessa
democracia4. A questão da desigualdade de gênero com reflexos na bai-
xa representação política é uma realidade mundial, em que as mulheres
continuam sub-representadas e marginalizadas nos espaços decisórios
institucionais.
O Brasil se insere nessa realidade global de desigualdade no tra-
tamento entre homens e mulheres. É exemplificativo disso o fato de as
mulheres terem sido um dos últimos contingentes sociais a conquistar
direitos políticos nas democracias contemporâneas5. No Brasil, o direito
ao voto das mulheres somente foi regulamentado em 24 de fevereiro de
1932, com o primeiro Código Eleitoral. O voto da mulher era, contudo,
facultativo6.

3. DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Trad.: Beatriz Sidou. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2001.
4. LIJPHART, Arend. Modelos de democracia: desempenho e padrões de governo em 36 países.
Editora Record, 2003.
5. Conforme esclarece Robert Dahl, “(…) há cerca de quatro gerações – por volta de 1918, mais
ou menos ao final da Primeira Guerra Mundial –, em todas as democracias ou repúblicas
independentes que até então existiam, uma boa metade de toda a população adulta sempre
estivera excluída do pleno direito de cidadania: a metade das mulheres”. DAHL, Robert A.
Sobre a democracia. Trad.: Beatriz Sidou. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001,
p. 13.
6. Enquanto o art. 2º definia como eleitor “o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo,
alistado na forma deste Código”, o art. 121 estabelecia a facultatividade desse voto, ao es-
tatuir que “os homens maiores de sessenta anos e as mulheres em qualquer idade podem
isentar-se de qualquer obrigação ou serviço de natureza eleitoral”. Para se candidatar, era
necessário ser eleitor e possuir quatro anos de cidadania, não havendo nenhuma restrição
legal de gênero para o exercício dos direitos políticos passivos das mulheres a partir desse
momento. Cabe salientar, no entanto, que embora as democracias modernas prometam um
grau mínimo de igual respeito mediante a universalização do sufrágio, esse arranjo nor-
mativo é insuficiente a fazer com que a igualdade se realize na prática, em especial no que
diz com os membros de grupos com um histórico de marginalização. FUKUYAMA, Francis.
Identidade: A exigência de dignidade e a política do ressentimento. Lisboa: Dom Quixote,
2018, p. 15.

286
Cap. 11 • A importância da igualdade de gênero…

Paralelamente a isso, temos que as eleições de 2018 resultaram na


maior bancada feminina da história da democracia brasileira, com 77
mulheres eleitas, o que representa apenas 15% das vagas. Aumentou
a quantidade de eleitas mulheres em todo o espectro ideológico e par-
tidário. O presente artigo se propõe a analisar uma variável nova nas
eleições de 2018 – a exigência de observância de percentual mínimo de
financiamento por gênero – e seus impactos.
Num primeiro momento, serão apresentadas as premissas teóri-
cas a partir das quais esse estudo se estrutura, a respeito da essencial
correlação entre democracia e gênero. Buscou-se expor a ficção de neu-
tralidade, ou a falsa neutralidade que em muitos momentos impede ou
dificulta o reconhecimento da desigualdade de gênero que é marca das
sociedades patriarcais. É possível falar, portanto, em democracia de gê-
nero, não como redundância, mas para marcar esse aspecto e essa cor-
relação de forças.
A análise que se segue, da Constituição da República de 1988 edos
Tratados Internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados
pelo Brasil que, por essa razão, apresentam status constitucional, tem
por finalidade ressaltar que a democracia constitucional brasileira não
se contenta com um mecanismo pautado simplesmente pela vontade
da maioria. Seu ponto de partida é uma cidadania coletiva que reflete
a liberdade e a igualdade, o que inclui, necessariamente, a igualdade de
gênero. Ainda que assim seja, as regras atuais do sistema político bra-
sileiro não têm se mostrado suficientes para garantir uma participação
igualitária.
Para a melhor compreensão do gap de gênero, apresenta-se o his-
tórico da regulamentação das cotas de gênero no Brasil, que surgem em
1995. Desde então, o que se percebe é a manutenção do baixo percentu-
al de mulheres eleitas, ainda quando comparados ao período, pós Cons-
tituição de 1988, em que não havia ainda referida regulamentação.
Há, todavia, a mudança importante de cenário nas eleições de 2018.
Ainda que o percentual de mulheres eleitas continue baixo – 15% – ele
representa um aumento significativo de mulheres eleitas para a Câmara
dos Deputados em relação às eleições de 2014 – 9,9%. Passa-se, portan-
to, a uma análise das mudanças na lei e em sua interpretação que nos pa-
rece expor a relevância de instrumentos para a promoção da igualdade
de gênero para a melhor qualidade da democracia, ou para a promoção
da democracia de gênero.

287
Polianna Pereira dos Santose Nicole Gondim Porcaro

2. DEMOCRACIA E QUESTÕES DE GÊNERO


O princípio da igualdade política é fundamento central para a op-
ção pela democracia entre os demais regimes, não só pelo direito de es-
colher quem governa, mas também pelo direito, de todos, de poder ser
escolhido e participar na tomada de decisões que afetam a si mesmo e a
toda a sociedade. Todavia, a existência de eleições per se não assegura o
respeito ao princípio democrático.
Nesses termos, o grau de inclusividade do sistema político – isto é,
a extensão com que os direitos civis e políticos são garantidos a todos
os cidadãos sem exceção7 – é uma condição fundamental de sua conso-
lidação. Considerando que a participação nas instituições públicas é um
meio especialmente efetivo de influenciar as regras políticas e as políti-
cas públicas do Estado, parece inegável que a participação equitativa de
homens e mulheres seja uma condição mínima para a eficácia das insti-
tuições democráticas e da própria democracia representativa.
Como ensina Dahl8, o exercício igualitário da cidadania passa neces-
sariamente pela existência de condições efetivas que assegurem a influ-
ência de todos os membros adultos da sociedade, em sua diversidade, no
processo de tomada de decisões que os afetam.
Autoras feministas como Philips9, Young10 e Mansbrigde contestam
o modelo hegemônico de democracia e de Estado “neutro”, e salientam
a importância da inclusão feminina na política para o aprofundamento
da democracia, indicando que a representação descritiva11, ou seja, uma

7. A inclusão política das mulheres é “condição indispensável de realização da igualdade políti-


ca”. MOISÉS, José Álvaro; SANCHEZ, Beatriz Rodrigues. Representação política das mulheres
e qualidade da democracia: o caso do Brasil. In: MOISÉS, José Álvaro (Org.). O Congresso Na-
cional, os partidos políticos e o sistema de integridade: representação, participação e controle
interinstitucional no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2014,
p. 97.
8. DAHL, Op. Cit., p. 49-50.
9. PHILLIPS, Anne. The Politics of presence. Oxford: Clarendon Press, 1995.
10. YOUNG, Iris Mansion. Representação política, identidade e minorias. Revista Lua Nova, São
Paulo, n. 67, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n67/a06n67>. Acesso em:
10 ago. 2019.
11. Mansbrigde define: “Na representação descritiva, a própria pessoa e a vida do representante
de certa forma traduzem a classe maior que ele representa. Legisladores negros representam
cidadãos negros, legisladoras representam as mulheres, e assim por diante.” (Tradução livre).
MANSBRIDGE, Jane. Should Blacks Represent Blacks and Women Represent Women? A Con-
tingent “Yes”. The Journal of Politics, v. 61, n. 3, 1999 (pp. 628-57), p. 629.

288
Cap. 11 • A importância da igualdade de gênero…

política que promova o acesso de grupos excluídos como as mulheres, é


etapa crucial para uma representação substantiva, de ideias12.
Sobre o que poderíamos chamar de ficção da neutralidade, cabe re-
lembrar o que diz Simone de Beauvoir ao tratar da condição da mulher:
em virtude da construção histórica e social em que estamos inseridos, o
masculino, ou o homem, encerra em si o “positivo e o neutro”, enquanto
a mulher é o “negativo”13. Citando Poulain de la Barre, acrescenta que o
homem é ao mesmo tempo parte e juiz14. A mulher seria, dessa foram, a
própria alteridade; ela é sempre o outro. Nas palavras da autora, “ela é o
Outro dentro de uma totalidade cujos dois termos são necessários um ao
outro”15. Essa construção social gera impactos na ocupação dos espaços
e, sobretudo, das posições de poder e liderança.
Susan Moller Okin, ainda nessa linha, faz um alerta sobre o fenô-
meno que chama de “falsa neutralidade de gênero”16, associado à negli-
gência em relação à vida familiar e as estruturas desiguais que pautam
as distinções pressupostas e em geral não fundamentadas entre esfera
pública e esfera privada (ou dicotomia público/doméstico). A autora
chama atenção ao fato de que os teóricos políticos usavam os termos
masculinos de referência – “ele” e “homem” –, e ficava claro que os ar-
gumentos centrais eram de fato “sobre chefes de família masculinos”17.
Importante trazer à luz o fato de que o gênero perpassa a políti-
ca, o Estado, e as estruturas de poder. O Estado Democrático de Direito
deve estar atendo às desigualdades que estão na base da estrutura so-
cial sobre a qual esse mesmo Estado se estabelece. Desse modo, não é
possível falar no princípio da igualdade sem refletir sobre gênero e essa
falsa neutralidade. Pateman18, no esforço de desnaturalizar os padrões
de dominação das instituições democráticas, ensina que “uma teoria e
prática ‘democrática’ que não é ao mesmo tempo feminista serve apenas

12. Hanna Pitkin defende no livro The Concept of Representation (Londres: University of Califor-
nia Press, 1967) a representação substantiva ou representação como um ato de ‘agir por’
(acting for), na qual a atuação política convirja com os interesses dos representados.
13. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2016, p. 11.
14. BEAUVOIR, Op. Cit., p. 18.
15. BEAUVOIR, Op. Cit., p. 16.
16. OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Trad.: Flávia Biroli. Revista Estudos Feminis-
tas, v. 16, n. 2, p. 309, 2008.
17. OKIN, Op. Cit, p. 309.
18. PATEMAN, Carole. The Sexual Contract. Cambridge: Polity Press, 1989, p. 223.

289
Polianna Pereira dos Santose Nicole Gondim Porcaro

para manter uma forma fundamental de dominação e assim zomba dos


ideais e valores que a democracia busca encarnar”.
Os processos deliberativos no âmbito da democracia devem respei-
tar o princípio da igualdade reconhecendo a desigualdade de gênero que
está na base da nossa construção social. Assim, quanto maior a quali-
dade dos processos deliberativos – pautados na diversidade, na repre-
sentatividade de perspectivas diferentes da sociedade em uma condição
de igualdade – maior a probabilidade dessas decisões serem justas, e,
assim, maior a legitimidade democrática.
A maior participação das mulheres na política ocupando cargos
eletivos é um importante indicador de qualidade democrática19. Além
disso, a eliminação de obstáculos à participação feminina nas instâncias
estatais constitui um pressuposto para a avaliação do índice de integri-
dade dos procedimentos eleitorais.
Nesse sentido, a Comissão Global sobre Eleições, Democracia e Se-
gurança20 estabelece como um dos conteúdos mínimos para a excelên-
cia das consultas eleitorais a “eliminação de barreiras à participação de
mulheres, jovens, pessoas com deficiência e outros grupos tradicional-
mente marginalizados” bem como a adoção de “medidas positivas para
promover a liderança e a ampla participação da mulher, inclusive me-
diante o uso razoável de quotas de gênero”21. Da mesma forma, a inicia-
tiva internacional Global Perceptions of Electoral Integrity (PEI)22 toma
em consideração, em suas avaliações, a presença de obstáculos fáticos ou
institucionais que dificultem o efetivo exercício dos direitos políticos pas-
sivos; dentro desse exame, os pesquisadores avaliam se, no contexto das
competições eleitorais, as mulheres gozam de oportunidades iguais23.
Em estudo sobre a correlação entre qualidade da democracia,
ideologia e presença de mulheres nos parlamentos, Moraes, Santos,

19. LIJPHART, Arend. Modelos de democracia: desempenho e padrões de governo em 36 países.


Editora Record, 2003.
20. COMISIÓN GLOBAL SOBRE ELECCIONES, DEMOCRACIA Y SEGURIDAD. Profundizando la de-
mocracia: Una estrategia para mejorarla integridad electoral en el mundo. Genebra: IDEA,
Fundación Kofi Annan, 2012.
21. COMISIÓN GLOBAL SOBRE ELECCIONES, DEMOCRACIA Y SEGURIDAD. Op. Cit., p. 6-12.
22. NORRIS, Pippa; GRÖMPING, Max. Electoral Integrity Worldwide. Sidney: The Electoral Integrity
Project, 2019. Disponível em: <https://static1.squarespace.com/static/58533f31bebafbe-
99c85dc9b/t/5ce60bd6b208fcd93be49430/1558580197717/Electoral+Integrity+Worldwide.
pdf>. Acesso em: 10 set. 2019.
23. ALVIM, Frederico A. Cobertura Política e Integridade Eleitoral. Florianópolis: Habitus, 2018, p. 47

290
Cap. 11 • A importância da igualdade de gênero…

Torrecillas e Leão24 demostram um significativo grau de correlação en-


tre países com maior qualidade democrática e aqueles com maior pre-
sença feminina nos parlamentos25. Para isso, estratificaram a frequência
relacionada à qualidade da democracia em três níveis: baixa qualidade
(≤50), média qualidade (>50 e ≤70), e alta qualidade (>70), correlacio-
nando cada um dos níveis ao número de cadeiras ocupadas por mulhe-
res nos parlamentos nacionais:

Gráfico 1: Médias da % de mulheres parlamentares


de acordo com os scores de democracia

Fonte: Moraes, Santos, Torrecillas e Leão

O estudo aponta que quanto maior a participação das mulheres na


política, maior a qualidade da democracia. Curiosamente, observa-se
que mesmo nos casos indicados como de maior qualidade (score>70)
o percentual de mulheres no parlamento é baixo. A desigualdade de gê-
nero e seu impacto na representação política é uma realidade mundial.
A “igualdade entre os sexos e a valorização da mulher” foi apresenta-
da como um dos Objetivos para o Desenvolvimento do Milênio (ODM) da
ONU para o período de 2000 a 2015. Em 2015, ao promover os Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável (ODS) a ONU mantém a preocupação

24. MORAES, Thiago P. B. de. et al. Mulheres, política e sub-representação. Um estudo sobre a
correlação entre qualidade da democracia, ideologia e mulheres nos parlamentos. Derecho y
Cambio Social, n. 36, Lima, Peru, 2014. Disponível em: <http://www.derechoycambiosocial.
com/revista036/MULHERES_POLITICA_E_SUB-REPRESENTACAO.pdf>. Acesso em: 10 ago.
2019.
25. Para tanto, comparam os dados das ONU sobre a ocupação dos cargos parlamentares pelas
mulheres com o ranking da democracia e com a frequência do Google trends para o tópico
feminism (feminismo).

291
Polianna Pereira dos Santose Nicole Gondim Porcaro

com a questão, com o fim de promover a “igualdade de gênero” (ODS 5)26


para a Agenda 203027.
Durante a XIII Conferencia Regional sobre la Mujer de América La-
tina y el Caribe, organizada pela Comisión Económica para América La-
tina y el Caribe (CEPAL) e o Governo do Uruguai, em outubro de 2016,
foi aprovada a “Estrategia de Montevideo para la Implementación de la
Agenda Regional de Género em el Marco del Desarrollo Sostenible hacia
2030”28. Foram identificadas, nesse documento, cinco perspectivas que
atuam de forma inter-relacionada e orientam as medidas das estratégias
delineadas. São elas a igualdade de gênero, os direitos humanos das mu-
lheres, a interseccionalidade e a interculturalidade, a democracia pari-
tária, representativa e participativa, e secularismo, e o desenvolvimento
sustentável e inclusivo29.
A injustiça de gênero30 tem impacto global, demandando inclusive,
como se vê, atenção de organismos internacionais, com edição e assina-
tura de acordos e tratados. Diversos indicadores mostram, outrossim,
como a situação no Brasil é precária, seja em termos de participação
política31, dos índices de violência contra a mulher32, do baixo percentual

26. Ver notícias em: <https://nacoesunidas.org/pnud-explica-transicao-dos-objetivos-do-mile-


nio-aos-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel/>. Acesso em: 30.07.2019.
27. ONU. Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, 2015.
Disponível em: <https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/>. Acesso em: 30 jul. 2019.
28. ONU. Comisión Económica para América Latina y Caribe. Estrategia de Montevideo para la Im-
plementación de la Agenda Regional de Género en el Marco del Desarrollo Sostenible hacia 2030,
2017. Disponível em: <https://www.cepal.org/es/publicaciones/41011-estrategia-montevi-
deo-la-implementacion-la-agenda-regional-genero-marco>. Acesso em: 18 set. 2019.
29. Tradução livre do original: “Los cinco enfoques o perspectivas que guían las políticas públicas
y los objetivos vinculados a la autonomía y los derechos de las mujeres son: i) igualdad de
género, ii) derechos humanos de las mujeres, iii) interseccionalidad e interculturalidad, iv)
democracia paritaria, representativa y participativa, y laicidad, y v) desarrollo sostenible e in-
clusivo. Estos enfoques, que actúan de forma interrelacionada, también orientan las medidas
de la Estrategia de Montevideo”. (ONU. CEPAL. Op. cit., p. 10).
30. O termo “injustiça de gênero” é utilizado por Nancy Fraser, não possuindo conotação mera-
mente quantitativa, inclusive por estar compreendido em sua teoria da justiça democrática,
crítica do enfoque uni ou bidimensional. FRASER, Nancy. Mapeando a imaginação feminista:
da redistribuição ao reconhecimento e à representação. Revista Estudos Feministas, v. 15, n. 2,
2007, p. 303.
31. INTER-PARLIAMENTARY UNION. Women in Politics: 2019. Disponível em: <https://www.ipu.
org/resources/publications/infographics/2019-03/women-in-politics-2019>. Acesso em:
22 ago. 2019.
32. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. Divul-
gação: OPAS/OMS, ONU Mulheres, SPM e FLACSO. Disponível em <www.mapadaviolencia.org.

292
Cap. 11 • A importância da igualdade de gênero…

de ocupação de cargos de liderança por mulheres em nossas empresas33,


entre outros.
Diante da compreensão da situação de injustiça, faz-se necessário
desvendar a maneira como cultura, política e economia se relacionam e
criam obstáculos para a realização da justiça social.

3. DEMOCRACIA DE GÊNERO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRA-


SILEIRO
Diversos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos,
ratificados pelo Brasil e que, portanto, apresentam status constitucional
e aplicação imediata por força do art. 5º, §§ 1º e 2º, da Constituição da
República, tratam da participação da mulher na política de forma igua-
litária.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, fundada “na
igualdade de direitos dos homens e das mulheres”, introduz a universa-
lidade e a indivisibilidade dos direitos humanos ao combinar o discurso
liberal e o discurso social da cidadania, conjugando o valor da liberda-
de com o valor da igualdade. Prevê no art. 21º que “toda a pessoa tem
o direito de tomar parte na direção dos negócios públicos do seu país,
quer diretamente, quer por intermédio de representantes livremente
escolhidos”, bem como “direito de acesso, em condições de igualdade, às
funções públicas do seu país”.
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos considera que o
ideal da vida humana “não pode ser realizado e menos que se criem as
condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis e polí-
ticos”. Estabelece o direito à autodeterminação e o dever do Estado de
promover seu exercício (art. 1º), bem como o comprometimento em “as-
segurar a homens e mulheres igualdade no gozo de todos os direitos
civis e políticos” (art. 3º). Assim como a Declaração Universal, prevê no
art. 25 o direito de participar dos espaços de poder do Estado e acesso a
eles em condição de igualdade.

br>. Acesso em: 14 set. 2019; BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Bra-
sileiro de Segurança Pública. Atlas da violência 2019. Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo: IPEA;
FBSP, 2019. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_conten-
t&view=article&id=34784&Itemid=432>. Acesso em: 14 set. 2019.
33. GRANT THORNTON. Women in Business 2018: saindo da teoria, para a prática, março 2018.
Disponível em: <https://www.grantthornton.com.br/insights/articles-and-publications/
wib-2018/>. Acesso: 14 set. 2019.

293
Polianna Pereira dos Santose Nicole Gondim Porcaro

Já a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discrimi-


nação contra a Mulher, de 1979, fundada na dupla obrigação de eliminar
a discriminação e assegurar a igualdade, afirma no preâmbulo que:
[...] a discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade de
direitos e do respeito da dignidade humana, dificulta a participação da
mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social,
econômica e cultural de seu país”, e que “a participação máxima da mu-
lher, em igualdade de condições com o homem, em todos os campos, é
indispensável para o desenvolvimento pleno e completo de um país, o
bem-estar do mundo e a causa da paz.
Prevê a adoção de “medidas especiais de caráter temporário” para
acelerar o processo de obtenção de igualdade de fato (art. 4º), e estabele-
ce no art. 7º que os Estados devem garantir às mulheres, em condição de
igualdade com os homens, os direitos de votar e ser elegível, participar
na formulação e execução de políticas públicas, “ocupar cargos políticos
e exercer todas as funções públicas em todos os planos governamentais”.
Quanto ao impacto desses tratados no direito brasileiro, além de in-
tegrarem, complementarem e ampliarem o universo dos direitos consti-
tucionalmente previstos, em grande parte seus preceitos se encontram
reproduzidos na Constituição da República.
O preâmbulo da Constituição logo estabelece que o Estado Demo-
crático brasileiro é instituído com o destino de “assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. No art. 1º, elenca a
cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político como
seus fundamentos, ressaltando que “todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos e diretamente”, prevendo no
art. 3º como objetivo fundamental o fim de toda forma de discriminação.
Já no caput do art. 5º, ao consagrar o princípio da igualdade para
todos, realça no primeiro inciso que “homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”, instituindo a pa-
ridade de gênero como princípio visceral da ordem constitucional. Edi-
lene Lôbo aponta como essa construção normativa dos fundamentos da
República exige uma democracia substancial, com a “participação pa-
ritária da mulher na sociedade em geral, e em particular, na política”34.

34. LÔBO, Edilene. A paridade como direito fundamental da democracia substancial no Brasil:
mulher na política. In: OLIVEIRA, A. A. de; RONCAGIOLO, Y. A. (Coord.). Teorias da Democracia
e Direitos Políticos. Florianópolis: CONPEDI, 2016, p. 43.

294
Cap. 11 • A importância da igualdade de gênero…

Eneida Desiree Salgado afirma que a Constituição estabelece o Esta-


do de Direito “como fundamento da cidadania contemporânea, uma no-
ção de democracia, uma concepção de representação política, indicando
os contornos dessa relação, e um ideal republicano, a partir de uma forte
noção de liberdade e de igualdade”35. Ela propõe como princípios consti-
tucionais para o direito eleitoral, entre outros, a necessária participação
das minorias no debate público e nas instituições políticas e a máxima
igualdade da disputa eleitoral. Eles derivariam dos princípios republica-
no e democrático, refletindo a exigência de pluralismo político estabele-
cido como fundamento da República.
A cidadania deve ser compreendida na contemporaneidade por seu
caráter coletivo36, a partir da reivindicação de direitos pelos grupos so-
ciais historicamente marginalizados do ponto de vista econômico, cul-
tural e político. A Constituição brasileira é pautada por essa cidadania
coletiva, resultado de lutas históricas da sociedade civil pela emancipa-
ção política. Entre elas, destaca-se a que resultou no “Lobby do Batom”,
movimento ocorrido durante os trabalhos da Assembleia Nacional Cons-
tituinte de 1988 no qual “deputadas mulheres que tinham entre si gran-
de diversidade de posições políticas e de trajetórias na vida pública”37
se articularam para assumir, juntas, “um conjunto de propostas sobre os
direitos das mulheres colocados pelo movimento feminista, conseguin-
do fazê-las matéria constitucional”.
Assim, a democracia constitucional brasileira não se contenta com
um mecanismo pautado simplesmente pela vontade da maioria. Seu
ponto de partida é uma cidadania coletiva que reflete a liberdade e a
igualdade. Um poder público legítimo precisa refletir tanto os anseios
da população em sua pluralidade como ser acessível de fato por todos
– no sentido de que os pares tenham oportunidades substancialmente
igualitárias de exercer o poder do qual são sujeitos.
No entanto, as regras atuais do sistema político brasileiro não têm
se mostrado suficientes para garantir uma participação igualitária. Na

35. SALGADO, Eneida Desiree. Os princípios constitucionais eleitorais como critérios de funda-
mentação e aplicação das regras eleitorais: uma proposta. Estudos Eleitorais, v. 6, n. 3, set/dez
2011, p. 103.
36. GOHN, Maria da Gloria Marcondes. História dos movimentos e lutas sociais: a construção da
cidadania dos brasileiros. São Paulo: Ed. Loyola, 2007.
37. PINTO, Céli Regina Jardim. Paradoxos da participação da mulher no Brasil. Revista USP, São
Paulo, n. 49, p. 98-112, março/maio 2001, p. 107.

295
Polianna Pereira dos Santose Nicole Gondim Porcaro

última eleição geral, de 2018, apenas uma mulher foi eleita governadora,
Fátima Bezerra no Rio Grande do Norte, e no legislativo, sete senadoras
(13% das cadeiras) e 77 deputadas federais (15%). O déficit igualitário
e democrático é grande e tem que ser corrigido por mecanismos nor-
mativos. A paridade de gênero invocada na Constituição é condição de
legitimação da ordem democrática, exigindo uma representação corres-
pondente nas instâncias decisórias.

4. A POLÍTICA DE COTAS NA LEGISLAÇÃO ELEITORAL BRASILEIRA

Apesar do gap de gênero na nossa representação político-eleitoral,


nas eleições proporcionais nacionais de 2018 elegeu-se o maior número
histórico de mulheres para a Câmara dos Deputados, que correspondem
a 15% das cadeiras. Ainda é uma proporção muito pequena que mantém
o Brasil em umacolocação constrangedora no ranking mundial de parti-
cipação da mulher no parlamento da Inter-Parliamentary Union, já que
entre os 193 países considerados, em 2019 o Brasil se encontra na 133ª
posição38.

Esses dados nos levam a concluir que as medidas institucionais de


incentivo à participação política de mulheres que começaram a ser im-
plementadas no Brasil a partir da década de 90 têm falhado. É essencial,
contudo, entender como as políticas de cotas de gênero surgiram e são
aplicadas no Brasil.

A Lei nº 9.100/95 foi a primeira lei brasileira a tratar das cotas


de gênero, proposta e promulgada sem grandes debates, estabelecen-
do normas para a realização das eleições municipais de 199639. A Lei
nº 9.504/97, hoje alterada pela Lei nº 12.034/09, estendeu a previsão
para as eleições gerais, reservando 30% do número de vagas para can-
didatos às casas legislativas a representantes do gênero minoritário,
tratando claramente do feminino. A cota não foi vinculada ao preenchi-
mento dos cargos, como se esperaria de uma política que pretende apre-
sentar mudanças de fato na composição do plenário.

38. INTER-PARLIAMENTARY UNION. Women in Politics: 2019.


39. SANTOS, Polianna Pereira dos; BARCELOS, Júlia Rocha de; PORCARO, Nicole Gondim. Partici-
pação da mulher na política: as reformas políticas que temos e as que queremos. In: PINTO,
Amanda Luiza de Oliveira; BERTLOTTI, Bárbara Marianna de Mendonça A.; FERRAZ, Miriam
Olivia Knopik (Org.). Reformas legislativas de um estado em crise. Editora Íthala, 2018.

296
Cap. 11 • A importância da igualdade de gênero…

Já a Lei nº 9.096/95, alterada pelas Leis nº 12.034/09 e 13.165/15,


estabelece que 5% dos recursos do Fundo Partidário sejam aplicados na
criação e manutenção de programas de promoção da participação polí-
tica das mulheres, e que 10% do tempo destinado à propaganda parti-
dária sejam utilizados para a mesma finalidade, inexistindo, no entanto,
qualquer garantia de que o partido promoverá candidaturas femininas
durante a propaganda eleitoral.
Mais recentemente, a Lei nº 13.165/15 estabeleceu em seu artigo
9º os questionáveis patamares de “no mínimo 5% e no máximo 15% do
montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campa-
nhas eleitorais para aplicação nas campanhas de suas candidatas”, nas
três eleições subsequentes. Não há fundamentação mínima razoável
que permita compreender o critério para fixação de um teto máximo
de 15%, uma vez que as candidaturas femininas correspondem a, pelo
menos, 30% do total.
O percentual de participação feminina na Câmara dos Deputados
pouco variou entre os anos de 1990 e 2014, período no qual se imple-
mentou a política de cotas de gênero nas candidaturas, passando de
5,96% em 1990 para 9,94% dos eleitos em 2014, uma variação de me-
ros 3,98% em um período de 14 anos, que sequer pode ser atribuída às
mudanças legislativas40.
No formato atual, embora as cotas estabeleçam um percentual mí-
nimo, um piso, devido à resistência dos partidos elas tornaram-se um
teto máximo para a participação das mulheres, o que no Brasil significa
um teto nas candidaturas que sequer resultou na eleição de mulheres
na mesma proporção. A cota tampouco é vinculada ao preenchimento
dos cargos, o que, diante das grandes barreiras impostas pela cultura e
prática partidária brasileira, não garante o acesso das mulheres a esses
espaços.
A constatação da evolução da igualdade de gênero nos diversos âm-
bitos da sociedade brasileira e a inclusão das mulheres no mercado de
trabalho em um ritmo mais acelerado evidencia que o espaço político
possui barreiras particulares e próprias ao acesso pelas mulheres. A
discrepância entre os números de candidatas e eleitas pode ser expli-
cada por diversos fatores, entre os quais podemos citar a apresentação

40. Sobre o tema: SANTOS, P. P.; BARCELOS, J. R.; GRESTA, R. M. Debates on female participation
in brazilian parliament: under-representation, violence and harassement. POLITAI – Revista
de Ciência Política, v. 12, p. 59-77, 2016.

297
Polianna Pereira dos Santose Nicole Gondim Porcaro

de candidaturas laranjas41, a falta de apoio e visibilidade por parte dos


partidos políticos e o capital social diferenciado que favorece os homens
e se traduz na dificuldade de obter financiamento para as campanhas42,
em uma realidade na qual os partidos supostamente destinam para elas
apenas a quantia mínima obrigatória do Fundo Partidário.
Nesse cenário, os tribunais vêm adotando uma postura mais ativa
na efetivação da atual política de cotas. Em março de 2018 o Supremo
Tribunal Federal (STF) julgou procedente a Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade n.º 5617/DF43 sobre o art. 9º da Lei n.º 13.165/15, deter-
minando que a distribuição dos recursos do Fundo Partidário (FP) deve
observar a exata proporção das candidaturas de ambos os gêneros, ob-
servado o patamar mínimo legal de 30%, devendo a regra vigorar en-
quanto perdurar a desigualdade. Entendeu-se que o princípio da igual-
dade não permite que o partido político crie distinções aleatoriamente
discriminatórias na distribuição desses recursos, como ocorria com os
percentuais de 5 a 15%.
Após este julgamento, ao qual se seguiram as Consultas formuladas
ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a observância destes percen-
tuais mínimos na distribuição do Fundo Especial de Financiamento de
Campanha (FEFC)44, que por tratar-se de inovação decorrente da Refor-
ma Eleitoral de 201745 não existiam à época da propositura da ADI n.º
5617, foi possível constatar um impacto no aumento da representação
feminina. A eleição de15% de mulheres para a Câmara dos Deputados

41. As chamadas “candidatas laranjas” são mulheres apresentadas pelos partidos políticos como
candidatas sem seu conhecimento, consentimento ou sem a intenção de disputar de fato o
pleito, apenas para preencher a cota de 30% de candidatas.
42. SACCHET, Teresa. Capital Social, gênero e representação política no Brasil. Opinião Pública,
Campinas, v. 15, n. 2, novembro, 2009.
43. Ver: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5617/DF. Relator: Min. Edson Fachin, julgado em
15 de março de 2018. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 23 mar. 2018; BRASIL. Tribu-
nal Superior Eleitoral. Fundo Eleitoral e tempo de rádio e TV devem reservar o mínimo de 30%
para candidaturas femininas, afirma TSE. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/imprensa/
noticias-tse/2018/Maio/fundo-eleitoral-e-tempo-de-radio-e-tv-devem-reservar-o-minimo-
-de-30-para-candidaturas-femininas-afirma-tse>. Acesso em 27.07.2019.
44. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Consulta nº 0600252-18. Relatora Min. Rosa Weber, jul-
gada em 22.05.2018. Em seu voto, a Ministra Rosa Weber, Relatora destacou que “a mudança
do cenário de sub-representação feminina na política não se restringe apenas em observar os
percentuais mínimos de candidatura por gênero previstos em lei, mas sobretudo pela impo-
sição de mecanismos que garantam efetividade a essa norma”.
45. O Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) foi incluído na Lei das Eleições pela
Lei n.º 13.487, de 2017.

298
Cap. 11 • A importância da igualdade de gênero…

em 2018, um efetivo aumento em relação às eleições anteriores para o


mesmo cargo, será objeto de uma análise mais detalhada e parece estar
relacionado às mudanças relativas ao financiamento de campanha e dis-
tribuição dos recursos públicos.

5. FINANCIAMENTO DE CAMPANHA
Os resultados da recente pesquisa “Democracia e representação nas
eleições de 2018: campanhas eleitorais, financiamento e diversidade de
gênero: relatório final (2018-2019)”, da Fundação Getúlio Vargas46, indi-
cam que as mudanças relativas ao financiamento de campanha aplica-
das às últimas eleições foram determinantes para o aumento do número
de mulheres eleitas.
A principal mudança foi a criação do Fundo Especial de Financia-
mento de Campanha (FEFC) pela Lei nº 13.487/17 – que consistiu na
principal fonte de financiamento das campanhas em 201847 – após a
extinçãoda doação de pessoas jurídicas (fruto da Reforma Eleitoral de
201548).
Uma primeira conclusão que se pode aferir do mapeamento de da-
dos realizado pela FGV é que recursos públicos são mais relevantes na
composição das campanhas de mulheres do que os recursos privados,
aos quais costumam ter pouco acesso49. Por essa razão, a criação de nova
fonte de financiamento público e o fim do financiamento por empresas e
outras instituições privadas teve um efeito positivo para elas. Por outro
lado, como os homens em geral possuem mais acesso ao capital priva-
do50, sentiram o impacto da falta desse tipo de recurso.
Houve um aumento significativo na receita total destinada às campa-
nhas de mulheres em 2018 em relação a 2014. A receita total das últimas
eleições superou R$ 270 milhões, contra R$ 182 milhões na eleição ante-
rior, um aumento de 50% que corresponde exatamente à porcentagem

46. BARBIERI, Catarina Helena Cortada; RAMOS, Luciana de Oliveira (Coord.). Democracia e re-
presentação nas eleições de 2018: campanhas eleitorais, financiamento e diversidade de gêne-
ro. Relatório final (2018-2019). São Paulo: FGV Direito SP, 2019.
47. Tabela 3 de BARBIERI, Catarina Helena Cortada; RAMOS, Luciana de Oliveira (Coord.), Op. Cit.,
p. 70.
48. O art. 81 da Lei das Eleições (Lei n.º 9504/97) que regulamentava a doação por pessoas jurí-
dicas foi revogado pela Lei n.º 13.165, de 2015.
49. BARBIERI, Catarina Helena Cortada; RAMOS, Luciana de Oliveira (Coord.). Op. Cit, p.69.
50. Ibidem, p. 70-71.

299
Polianna Pereira dos Santose Nicole Gondim Porcaro

de diferença do número de mulheres eleitas nas duas eleições: 10% em


2014 e 15% em 2018.
Enquanto isso, o valor total da receita destinada às campanhas mas-
culinas diminuiu, passando de R$ 1,9 bilhão para R$ 1,2 bilhão. Assim,
em 2018 as mulheres passaram a receber 22% de toda a receita arre-
cadada por candidatos a deputado federal, quando em 2014 receberam
apenas 9,3% dos recursos totais.
Os dados coletados pela pesquisa demonstram os motivos dessa va-
riação de recursos:

Gráfico 2: Receitas por origem


dos candidatos a deputado federal (R$)

Fonte: Relatório FGV51

A redução do total das receitas das candidaturas masculinas se


deu majoritariamente pela ausência de financiamento por pessoa ju-
rídica, bem como pela redução significativa de financiamento próprio
e de pessoa física. Embora essas duas últimas fontes de receitas tam-
bém tenham se reduzido para as campanhas femininas, o aumento de
recursos pelas fontes públicas foi muito significativo, considerando-se
o fato de que a divisão desses recursos por gênero passou a ser atrela-
da a percentuais mínimos a partir do julgamento da ADI 5617. Houve,
assim, uma diminuição na desigualdade de recursos destinados a can-
didatos e candidatas.

51. Ibidem, p. 71.

300
Cap. 11 • A importância da igualdade de gênero…

Entre as duas eleições, a receita média52 das candidatas passou de


R$ 133 mil para R$ 151 mil, uma elevação de 13,6%, enquanto a dos
candidatos passou de R$ 479 mil para R$ 242 mil, uma redução superior
a 50%53. Enquanto a média de recursos das mulheres representava cer-
ca de 27,8% da média dos homens em 2014, em 2018 esse valor saltou
para 62,4%. O saldo positivo parece ser resultado da confluência de dois
fatores: a prevalência do financiamento público e a destinação propor-
cional mínima de recursos para mulheres.
No entanto, é possível identificar um problema nas novas regras de
distribuição dos recursos, que possivelmente prejudicou um número
ainda maior de mulheres eleitas nas eleições proporcionais: a falta de
critérios para a destinação do financiamento público, permitido oseu
uso em chapas majoritárias. Os 22% de recursos destinados a candida-
tas proporcionais poderiam ter sido 30% com uma regra mais assertiva,
evitando as distorções criadas pelos partidos na formação das chapas
majoritárias54.
Em ensaio sobre as eleições de 2018, Salete Maria da Silva55 iden-
tificou que houve um número recorde de mulheres compondo chapas
majoritárias, como vices presidentas, vices governadoras e suplentes
de senador. Segundo a autora, as mulheres enfrentam dificuldades em
conseguir se colocar como cabeça de chapa, pois “continuam não sendo
vistas como titulares plenas de direitos políticos, ou como cidadãs, como
os homens, principalmente os brancos e ricos, desde sempre o são”.
Segundo dados disponíveis no site do TSE e do Senado Federal, em
um total de 338 candidaturas, apenas 60 mulheres se candidataram
para o cargo de Senadora, enquanto 86 concorreram como candidatas à
primeira suplência e 96 como candidatas à segunda suplência em 2018.

52. Ibidem, p. 68.


53. Não é demais ressaltar que ainda que tenha havido um aumento percentual de financiamento
para as campanhas femininas e uma redução percentual importante no financiamento para
as campanhas masculinas, em números absolutos os homens seguem tendo acesso a valores
muito mais expressivos em termos de financiamento por todas as fontes possíveis, que rever-
beram no maior sucesso na conversão de candidaturas masculinas em representantes eleitos.
54. Não se pretende questionar a importância do financiamento para as candidaturas femininas
nas eleições majoritárias, nem ignorar o impacto positivo no aumento do número de candida-
tas mulheres compondo chapas majoritárias. A análise que ora se propõe está restrita, meto-
dologicamente, ao impacto nas eleições proporcionais, e é nessa perspectiva que se inserem
as críticas e observações que seguem.
55. SILVA, Salete Maria da. Eleições 2018: o lugar das mulheres nas chapas majoritárias. Cadernos
de Gênero e Diversidade, Salvador, v. 4, n. 4, 2018, p. 98.

301
Polianna Pereira dos Santose Nicole Gondim Porcaro

A variação do número de mulheres nas chapas em relação aos cargos


demonstra mais uma vez a instrumentalização pelos partidos das can-
didaturas femininas diante de uma política destinada à participação de
mulheres, mas com regras insuficientes para assegurar seu resultado.
É importante reconhecer o resultado positivo decorrente do alinha-
mento do percentual mínimo de candidaturas previsto em lei (art. 10,
§3º, Lei n.º 9504/97) ao percentual mínimo de destinação de financia-
mento público de campanha (art. 9º, Lei n.º 13165/2015), na mesma
medida conforme estabeleceu o STF no julgamento da ADI 5617.
A relação se evidencia ao constatar que o percentual de aumento
das candidatas eleitas se equipara ao percentual de aumento do finan-
ciamento a que passaram a ter acesso. Nada obstante, conhecer as de-
mais variáveis que podem dificultar ou mesmo impedir o maior apro-
veitamento dessas mudanças – com mais mulheres eleitas – é essencial
para a busca da equidade como valor e princípio democrático contido na
nossa Constituição.

7. DEMOCRACIA DE GÊNERO E OS INSTRUMENTOS PARA SUA IM-


PLEMENTAÇÃO
Diante desta análise inicial sobre os impactos das mudanças no fi-
nanciamento de campanha no resultado das eleições de 2018 no que se
refere à questão de gênero, fica evidente a necessidade de políticas pú-
blicas para realmente promover o acesso de mais mulheres à esfera po-
lítica. Os obstáculos que as mulheres enfrentam na conquista do apoio
partidário e de financiamento de fontes privadas, pela desigualdade não
só econômica, mas que estão contidas na construção social e na pró-
pria distribuição de funções e demais formas de capitais (como o capital
social), precisam ser remediados com políticas de Estado para que se
caminhe rumo a uma verdadeira democracia de gênero.
A ordem constitucional exige o aprofundamento da democracia com
a inclusão efetiva das mulheres nos espaços de poder decisórios. As con-
dições que afastam a mulher da esfera pública na democracia represen-
tativa reforçam odéficit democrático que compromete o exercício pleno
dos direitos políticos pelas mulheres de forma igualitária.
O saldo positivo, ainda que tímido, das mudanças no financiamento
de campanha apontam um caminho a ser seguido para a eleição de mais
mulheres. No entanto, regras mais assertivas são necessárias para que
nas eleições proporcionais para o legislativo as candidatas recebam de

302
Cap. 11 • A importância da igualdade de gênero…

fato ao menos 30% dos recursos, e suas candidaturas não sejam instru-
mentalizadas pelos partidos. A fiscalização eficaz do cumprimento das
regras também é essencial para sua garantia.
Cabe ainda questionar o próprio patamar mínimo estabelecido pe-
las políticas de cotas de gênero. As cotas, nessa sistemática, não podem
continuar servindo apenas de paliativos frente às pressões pela adoção
de políticas públicas de inclusão feminina, enquanto persiste nos parti-
dos políticos a cultura de exclusão das mulheres e a discriminação ins-
titucionalizada.
A realização de uma democracia substancial que garanta o direito
fundamental das mulheres à participação política igualitária só será
possível quando a equidade for ponto de partida no processo democrá-
tico, tendo as mulheres oportunidade de decidir sobre seu destino e o de
sua comunidade na mesma condição de seus pares.

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305
12
DIREITO À EDUCAÇÃO
DAS MULHERES
Alessandra Gotti1

Sumário: 1. Uma breve retrospectiva da concepção contemporânea dos


direitos humanos; 2. O direito à educação à luz do direito internacional; 3. O
direito à educação e a igualdade de gênero à luz da Constituição de 1988; 4. O
direito à educação das mulheres e seus desafios; 5. Conclusões; 6. Referências
bibliográficas.

Embora o Brasil esteja entre as 10 maiores economias do mundo,


em 2018 ocupava o 79º lugar em 189 países no ranking do Índice de De-
senvolvimento Humano (IDH). No quesito igualdade de gênero, porém,
o país despenca quase 20 posições e ocupa o 95º lugar.
Esse cenário já é ruim por si só. Mas há uma notícia ainda pior: ao
invés de avançar, o Brasil está retrocedendo. Basta analisar os dados:
em 2016, o Brasil ocupava a 79º posição e, em 2006, 67º. Se em 2016
a igualdade de gênero poderia ser uma realidade em 86 anos, em 2018
levaria 108 anos para ser atingida e, especificamente no mercado de

1. Presidente-executiva do Instituto Articule. Sócia do Hesketh Advogados. Doutora e Mestre


em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professora da Graduação em Direito das Faculdades
Integradas Rio Branco. Consultora da UNESCO e Câmara de Educação Básica do Conselho Na-
cional de Educação. Membro Titular do Comitê de Assessoramento à Coordenadoria da Infân-
cia e Juventude para o Monitoramento da Criação de 150 mil vagas em Educação Infantil no
Município de SP. É Coordenadora da Célula de Soluções Estratégicas e membro do Grupo de
Administração Legal do Conselho Regional de Administração de São Paulo (CRASP). Membro
do Comitê Estadual da Saúde. Sócia-efetiva do Todos pela Educação. Autora das obras Direitos
Sociais – fundamentos, regime jurídico, implementação e aferição de resultados, publicada, em
2012, pela Editora Saraiva e Direitos Sociais: eficácia e acionabilidade à luz da Constituição de
1988, publicada, em 2005, pela Editora Juruá.

307
Alessandra Gotti

trabalho, mais de dois séculos (202 anos), segundo o Global Gender Gap
Report de 2018, do Fórum Econômico Mundial.
O propósito deste artigo é analisar o direito à educação das mulhe-
res e seus desafios, à luz da Constituição de 1988 e dos tratados interna-
cionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

1. UMA BREVE RETROSPECTIVA DA CONCEPÇÃO CONTEMPORÂ-


NEA DOS DIREITOS HUMANOS
Para Hannah Arendt, os direitos humanos são direitos históricos, na
medida em que “não são um dado, mas um construído, uma invenção
humana, em constante processo de construção e reconstrução”2. Refle-
tem um construído axiológico, a partir de um espaço simbólico de luta
e ação social.
Considerando a historicidade dos direitos humanos, destaca-se a
chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser
introduzida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e
reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993.
Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos
direitos humanos que surge, no pós-guerra, como resposta às atrocida-
des e aos horrores cometidos durante o nazismo, diante da descartabili-
dade das pessoas que não pertenciam à raça pura ariana. A barbárie do
totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos,
por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do Di-
reito. Se a Segunda Guerra Mundial significou a ruptura com os direitos
humanos, o pós-guerra deveria significar a sua reconstrução.
É neste cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos di-
reitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem
internacional. Fortalece-se a ideia de que a proteção dos direitos huma-
nos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela
tema de legítimo interesse internacional. Prenuncia-se, deste modo, o
fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais
era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência
de sua soberania. Além disso, os indivíduos passam a ser reconhecidos
como sujeitos de direitos no cenário internacional.

2. ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. RAPOSO, Roberto (Trad). Rio de Janeiro: 1979,
apud PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 17a ed. São
Paulo: Editora Saraiva, 2017, p. 197.

308
Cap. 12 • DIREITO À EDUCAÇÃO DAS MULHERES

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 inova a


gramática dos direitos humanos ao introduzir a chamada concepção
contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e
indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela ex-
tensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição
de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos. Indivisibi-
lidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para
a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa;
tais direitos compõem uma unidade indivisível, interdependente e inter-
-relacionada, com idêntico grau de relevância.
A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direi-
to Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de diversos
instrumentos internacionais de proteção no âmbito da Organização das
Nações Unidas (ONU). Ao lado do sistema global (ONU), surgem os sis-
temas regionais de proteção de direitos humanos, que buscam interna-
cionalizar os direitos humanos nos planos regionais, particularmente
na Europa, América e África. Os sistemas global e regional não são di-
cotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios
da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção
dos direitos humanos, no plano internacional.
A visão de que existem grupos determinados, cujas vulnerabilida-
des devem ser objeto de tutela por serem alvo de padrões específicos
de violação de seus direitos, deu vazão à criação do Sistema Especial de
Proteção de Direitos Humanos, em especial a partir do final da década
de 60. É nesse contexto que surgem, no âmbito da Organização das Na-
ções Unidas (ONU), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial (1965); a Convenção Interna-
cional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
a Mulher (1979); a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989); a
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006)3;

3. Observa Flávia Piovesan: “O advento da International Bill of Rights, como já visto, constituiu o
marco do processo de proteção internacional dos direitos humanos. A partir dela, inúmeras
outras Declarações e Convenções foram elaboradas, algumas sobre novos direitos, outras relati-
vas a determinadas violações, outras, ainda, para tratar de determinados grupos caracterizados
como vulneráveis. (...) O processo de internacionalização dos direitos humanos, conjugado com
o processo de multiplicação desses direitos, resultou em um complexo sistema internacional
de proteção, marcado pela coexistência do sistema geral e do sistema especial de proteção. Os
sistemas geral e especial são sistemas de proteção complementares, na medida em que o sis-
tema especial de proteção é voltado, fundamentalmente, à prevenção da discriminação ou à
proteção de pessoas ou grupos de pessoas particularmente vulneráveis, que merecem proteção
especial. Daí aponta-se não mais ao indivíduo genérica e abstratamente considerado, mas ao

309
Alessandra Gotti

Segundo Bobbio, a elaboração dessas Convenções específicas pode


ser compreendida no âmbito do denominado processo de multiplicação
de direitos. Na sua visão, esse processo compreende a multiplicação dos
direitos objeto de tutela, como é o caso, por exemplo, dos direitos econô-
micos, sociais e culturais que, com a adoção da concepção contemporânea
de direitos humanos, passam a ser conjugados aos direitos civis e políti-
cos, com idêntico grau de importância. E, além da multiplicação dos direi-
tos em si, abrange a ampliação dos próprios sujeitos de direito, a partir
da especificação de sua condição, como é o caso dos afrodescendentes, da
mulher, do idoso, da criança, da pessoa com deficiência, das lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transgêneros4. A respeito do processo de especifica-
ção dos sujeitos de direitos, observa Flávia Piovesan que:
O sistema especial de proteção realça o processo de especificação do
sujeito de direito, em que este é visto em sua especificidade e concretu-
de. Isto é, as Convenções que integram esse sistema são endereçadas a
determinado sujeito de direito, ou seja, buscam responder a uma espe-
cífica violação de direito. Atente-se que, no âmbito do sistema geral de
proteção, como ocorre com a International Bill of Rights, o endereçado
é toda e qualquer pessoa, genericamente concebida. No âmbito do sis-
tema geral, o sujeito de direito é visto em sua abstração e generalidade.
Vale dizer, ao lado da International Bill of Rights, que integra o sistema
geral de proteção, organiza-se o sistema especial de proteção, que adota
como sujeito de direito o indivíduo historicamente situado, o sujeito de
direito “concreto”, na peculiaridade e particularidade de suas relações
sociais, afirmando-se o reconhecimento de sua identidade própria. Por
esse prisma, ao lado do direito à igualdade nasce o direito à diferença.
Importa assegurar a igualdade com respeito à diversidade5.
A busca pela garantia de uma igualdade com respeito à diferença
dá espaço ao reconhecimento, ao lado das noções clássicas de igualda-
de formal (igualdade de todos perante a lei) e material (igualdade de
oportunidades, enquanto ideal de justiça social orientada pelo critério
socioeconômico), da igualdade material enquanto reconhecimento de
identidades (igualdade orientada pelos critérios de idade, gênero, raça,
origem, orientação sexual, dentre outros).

indivíduo “especificado”, considerando-se categorizações relativas ao gênero, idade, etnia, raça,


etc. O sistema internacional passa a reconhecer direitos endereçados às crianças, aos idosos,
às mulheres, às pessoas vítimas de tortura, às pessoas vítimas de discriminação racial, dentre
outros”. (Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, op. cit., p. 278-279).
4. BOBBIO, Norberto. Era dos Direitos. COUTINHO, Carlos Nelson (Trad.). Rio de Janeiro: Cam-
pus, 1988, p. 68-69.
5. Op. cit., p. 257.

310
Cap. 12 • DIREITO À EDUCAÇÃO DAS MULHERES

2. O DIREITO À EDUCAÇÃO À LUZ DO DIREITO INTERNACIONAL


A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, prevê, em seu
artigo 26, que:
1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita,
pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução
elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional
será acessível a todos, bem como a instrução superior, está ba-
seada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimen-
to da personalidade humana e do fortalecimento do respeito
pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A ins-
trução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade en-
tre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará
as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de ins-
trução que será ministrada aos seus filhos.
Ainda no âmbito da ONU, o direito à educação é reconhecido no
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigo
13)6, na Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discrimi-

6. Artigo 13. 1. Os Estados-Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à edu-
cação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personali-
dade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos
e liberdades fundamentais. Concordam ainda em que a educação deverá capacitar todas as
pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tole-
rância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos
e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
2. Os Estados-Partes do presente Pacto reconhecem que, com o objetivo de assegurar o pleno
exercício desse direito:
a) A educação primaria deverá ser obrigatória e acessível gratuitamente a todos;
b) A educação secundária em suas diferentes formas, inclusive a educação secundária técnica
e profissional, deverá ser generalizada e torna-se acessível a todos, por todos os meios apro-
priados e, principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito;
c) A educação de nível superior deverá igualmente torna-se acessível a todos, com base na ca-
pacidade de cada um, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação
progressiva do ensino gratuito;
d) Dever-se-á fomentar e intensificar, na medida do possível, a educação de base para aquelas
pessoas que não receberam educação primaria ou não concluíram o ciclo completo de edu-
cação primária;
e) Será preciso prosseguir ativamente o desenvolvimento de uma rede escolar em todos os
níveis de ensino, implementar-se um sistema adequado de bolsas de estudo e melhorar con-
tinuamente as condições materiais do corpo docente.

311
Alessandra Gotti

nação Racial (artigo 5º, alínea “e”, V)7, na Convenção sobre a Eliminação
de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (artigo 10)8, na

1. Os Estados-Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e,


quando for o caso, dos tutores legais de escolher para seus filhos escolas distintas daque-
las criadas pelas autoridades públicas, sempre que atendam aos padrões mínimos de ensino
prescritos ou aprovados pelo Estado, e de fazer com que seus filhos venham a receber educa-
ção religiosa ou moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
2. Nenhuma das disposições do presente artigo poderá ser interpretada no sentido de restrin-
gir a liberdade de indivíduos e de entidades de criar e dirigir instituições de ensino, desde que
respeitados os princípios enunciados no parágrafo 1 do presente artigo e que essas institui-
ções observem os padrões mínimos prescritos pelo Estado.
7. Artigo 5º. 1. De conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2, os
Estados-Partes comprometem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas suas
formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei sem distinção de raça, de cor
ou de origem nacional ou étnica, principalmente no gozo dos seguintes direitos:
a) direito a um tratamento igual perante os tribunais ou qualquer outro órgão que administre
justiça;
b) direito a segurança da pessoa ou à proteção do Estado contra violência ou lesão corporal
cometida que por funcionários de Governo, quer por qualquer indivíduo, grupo ou institui-
ção;
c) direitos políticos principalmente direito de participar às eleições – de votar e ser votado
– conforme o sistema de sufrágio universal e igual direito de tomar parte no Governo, assim
como na direção dos assuntos públicos, em qualquer grau e o direito de acesso em igualdade
de condições, às funções públicas;
d) Outros direitos civis, principalmente:
i) direito de circular livremente e de escolher residência dentro das fronteiras do Estado;
ii) direito de deixar qualquer pais, inclusive o seu, e de voltar a seu país;
iii) direito de uma nacionalidade;
iv) direito de casar-se e escolher o cônjuge;
v) direito de qualquer pessoa, tanto individualmente como em conjunto, à propriedade;
vi) direito de herdar;
vii) direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião;
viii) direito à liberdade de opinião e de expressão;
ix) direito à liberdade de reunião e de associação pacífica;
e) direitos econômicos, sociais culturais, principalmente:
i) direitos ao trabalho, a livre escolha de seu trabalho, a condições equitativas e satisfatórias
de trabalho à proteção contra o desemprego, a um salário igual para um trabalho igual, a uma
remuneração equitativa e satisfatória;
ii) direito de fundar sindicatos e a eles se filiar;
iii) direito à habitação;
iv) direito à saúde pública, a tratamento médico, à previdência social e aos serviços sociais;
v) direito a educação e à formação profissional;
vi) direito a igual participação das atividades culturais;
f) direito de acesso a todos os lugares e serviços destinados ao uso do público, tais como,
meios de transporte hotéis, restaurantes, cafés, espetáculos e parques.
8. Artigo 10. Os Estados-Partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discri-
minação contra a mulher, a fim de assegurar-lhe a igualdade de direitos com o homem na
esfera da educação e em particular para assegurarem condições de igualdade entre homens e
mulheres:

312
Cap. 12 • DIREITO À EDUCAÇÃO DAS MULHERES

Convenção sobre os Direitos da Criança (artigo 28)9 e na Convenção so-


bre os Direitos das Pessoas com Deficiência (artigo 24)10.

a) As mesmas condições de orientação em matéria de carreiras e capacitação profissional,


acesso aos estudos e obtenção de diplomas nas instituições de ensino de todas as categorias,
tanto em zonas rurais como urbanas; essa igualdade deverá ser assegurada na educação pré-
-escolar, geral, técnica e profissional, incluída a educação técnica superior, assim como todos
os tipos de capacitação profissional;
b) Acesso aos mesmos currículos e mesmos exames, pessoal docente do mesmo nível profis-
sional, instalações e material escolar da mesma qualidade;
c) A eliminação de todo conceito estereotipado dos papéis masculino e feminino em todos os
níveis e em todas as formas de ensino mediante o estímulo à educação mista e a outros tipos
de educação que contribuam para alcançar este objetivo e, em particular, mediante a modifi-
cação dos livros e programas escolares e adaptação dos métodos de ensino;
d) As mesmas oportunidades para obtenção de bolsas-de-estudo e outras subvenções para
estudos;
e) As mesmas oportunidades de acesso aos programas de educação supletiva, incluídos os
programas de alfabetização funcional e de adultos, com vistas a reduzir, com a maior brevida-
de possível, a diferença de conhecimentos existentes entre o homem e a mulher;
f) A redução da taxa de abandono feminino dos estudos e a organização de programas para
aquelas jovens e mulheres que tenham deixado os estudos prematuramente;
g) As mesmas oportunidades para participar ativamente nos esportes e na educação física;
h) Acesso a material informativo específico que contribua para assegurar a saúde e o bem-
-estar da família, incluída a informação e o assessoramento sobre planejamento da família.
9. Artigo 28. 1. Os Estados-Partes reconhecem o direito da criança à educação e, a fim de que ela
possa exercer progressivamente e em igualdade de condições esse direito, deverão especial-
mente:
a) tornar o ensino primário obrigatório e disponível gratuitamente para todos;
b) estimular o desenvolvimento do ensino secundário em suas diferentes formas, inclusive
o ensino geral e profissionalizante, tornando-o disponível e acessível a todas as crianças, e
adotar medidas apropriadas tais como a implantação do ensino gratuito e a concessão de
assistência financeira em caso de necessidade;
c) tornar o ensino superior acessível a todos com base na capacidade e por todos os meios
adequados;
d) tornar a informação e a orientação educacionais e profissionais disponíveis e accessíveis
a todas as crianças;
e) adotar medidas para estimular a frequência regular às escolas e a redução do índice de
evasão escolar.
2. Os Estados-Partes adotarão todas as medidas necessárias para assegurar que a disciplina
escolar seja ministrada de maneira compatível com a dignidade humana da criança e em con-
formidade com a presente convenção.
3. Os Estados-Partes promoverão e estimularão a cooperação internacional em questões re-
lativas à educação, especialmente visando a contribuir para a eliminação da ignorância e do
analfabetismo no mundo e facilitar o acesso aos conhecimentos científicos e técnicos e aos
métodos modernos de ensino. A esse respeito, será dada atenção especial às necessidades
dos países em desenvolvimento.
10. Artigo 24. 1.Os Estados-Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação.
Para efetivar esse direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os
Estados Partes assegurarão sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o
aprendizado ao longo de toda a vida, com os seguintes objetivos:

313
Alessandra Gotti

É importante observar que a Agenda dos Objetivos de Desenvolvi-


mento Sustentável (ODS), a chamada Agenda 2030, adotada pelos Esta-
dos-membros da ONU em 2015, estabelece um conjunto de 17 Objetivos
de Desenvolvimento Sustentáveis. Diretamente relacionadas à educação
e a igualdade de gênero, os objetivos 4 e 5 preveem, respectivamente, o
dever de “assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e
promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”
e “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e me-
ninas”.
Por fim, no âmbito regional americano, o direito à educação também
é reconhecido nos instrumentos do Sistema Interamericano de Proteção
dos Direitos Humanos, no âmbito da Organização dos Estados America-
nos (OEA), como é o caso da Convenção Americana sobre Direitos Hu-
manos (artigo 26)11 e do Protocolo Adicional à Convenção Americana de

a) O pleno desenvolvimento do potencial humano e do senso de dignidade e autoestima, além


do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos, pelas liberdades fundamentais e pela
diversidade humana;
b) O máximo desenvolvimento possível da personalidade e dos talentos e da criatividade das
pessoas com deficiência, assim como de suas habilidades físicas e intelectuais;
c) A participação efetiva das pessoas com deficiência em uma sociedade livre.
2. Para a realização desse direito, os Estados-Partes assegurarão que:
a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação
de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gra-
tuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência;
b) As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade
e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais pessoas na co-
munidade em que vivem;
c) Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais sejam providenciadas;
d) As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional
geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação;
e) Medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam adotadas em ambientes que maximi-
zem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena.
3.Os Estados-Partes assegurarão às pessoas com deficiência a possibilidade de adquirir as
competências práticas e sociais necessárias de modo a facilitar às pessoas com deficiência
sua plena e igual participação no sistema de ensino e na vida em comunidade. Para tanto, os
Estados Partes tomarão medidas apropriadas, incluindo:
a) Facilitação do aprendizado do braile, escrita alternativa, modos, meios e formatos de comu-
nicação aumentativa e alternativa, e habilidades de orientação e mobilidade, além de facilita-
ção do apoio e aconselhamento de pares;
b) Facilitação do aprendizado da língua de sinais e promoção da identidade linguística da
comunidade surda;
c) Garantia de que a educação de pessoas, em particular crianças cegas, surdo cegas e surdas,
seja ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados ao indi-
víduo e em ambientes que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento acadêmico e social.

314
Cap. 12 • DIREITO À EDUCAÇÃO DAS MULHERES

Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Cultu-


rais (artigo 13)12, dentre outros tratados.

4. A fim de contribuir para o exercício desse direito, os Estados Partes tomarão medidas apro-
priadas para empregar professores, inclusive professores com deficiência, habilitados para o
ensino da língua de sinais e/ou do braile, e para capacitar profissionais e equipes atuantes em
todos os níveis de ensino. Essa capacitação incorporará a conscientização da deficiência e a
utilização de modos, meios e formatos apropriados de comunicação aumentativa e alternati-
va, e técnicas e materiais pedagógicos, como apoios para pessoas com deficiência.
5. Os Estados-Partes assegurarão que as pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino
superior em geral, treinamento profissional de acordo com sua vocação, educação para adul-
tos e formação continuada, sem discriminação e em igualdade de condições. Para tanto, os
Estados Partes assegurarão a provisão de adaptações razoáveis para pessoas com deficiência.
11. Artigo 26. Desenvolvimento Progressivo. Os Estados-Partes comprometem-se a adotar pro-
vidência, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente
econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos
que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes
da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires,
na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.
12. Artigo 13. Direito à Educação.
1. Toda pessoa tem direito à educação.
2. Os Estados-Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o
pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deverá
fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades
fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm também em que a educação deve tornar todas
as pessoas capazes de participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista e
de conseguir uma subsistência digna; bem como favorecer a compreensão, a tolerância e a
amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos, e promover as
atividades em prol da manutenção da paz.
3. Os Estados-Partes neste Protocolo reconhecem que, a fim de conseguir o pleno exercício
do direito à educação:
a) o ensino de primeiro grau deve ser obrigatório e acessível a todos gratuitamente;
b) o ensino de segundo grau, em suas diferentes formas, inclusive o ensino técnico e profissio-
nal, deve ser generalizado e acessível a todos, pelos meios que forem apropriados e, especial-
mente, pelo estabelecimento progressivo do ensino gratuito.
c) o ensino superior deve tornar-se igualmente acessível a todos, de acordo com a capacidade
de cada um, pelos meios que forem apropriados e, especialmente, pelo estabelecimento pro-
gressivo do ensino gratuito;
d) deve-se promover ou intensificar, na medida do possível, o ensino básico para as pessoas
que não tiverem recebido ou terminado o ciclo completo de instrução do primeiro grau;
e) deverão ser estabelecidos programas de ensino diferenciados para os deficientes, a fim de
proporcionar instrução especial e formação a pessoas com impedimentos físicos ou deficiên-
cia mental.
4. De acordo com a legislação interna dos Estados-Partes, os pais terão direito a escolher o
tipo de educação que deverá ser ministrada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com
os princípios enunciados acima.
5. Nenhuma das disposições do Protocolo poderá ser interpretada como restrição da liber-
dade das pessoas e entidades de estabelecer e dirigir instituições de ensino, de acordo com a
legislação dos Estados-Partes.

315
Alessandra Gotti

Não obstante muitos juristas defendam o status de norma consti-


tucional dos tratados internacionais de direitos humanos, o Supremo
Tribunal Federal pacificou o entendimento, por decisão majoritária13,
adotada em 03/12/2008, de que os tratados internacionais de direitos
humanos possuem status de norma infraconstitucional, mas supralegal,
de modo que têm o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qual-
quer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante, não
podendo, portanto, ser negligenciada.

3. O DIREITO À EDUCAÇÃO E A IGUALDADE DE GÊNERO À LUZ DA


CONSTITUIÇÃO DE 1988
Marco jurídico da transição democrática e da institucionalização
dos direitos humanos no país, a Constituição de 1988 demarca a rup-
tura com o regime autoritário militar instalado em 1964, refletindo o
consenso democrático “pós-ditadura”. Após 21 anos de regime autoritá-
rio, objetiva a Constituição resgatar o Estado de Direito, a separação dos
poderes, a federação, a democracia e os direitos fundamentais, à luz do
princípio da dignidade humana.
Inspirada pelos parâmetros internacionais de proteção dos direitos
humanos, a Carta de 1988 introduz um avanço extraordinário na conso-
lidação dos direitos e garantias fundamentais, situando-se como o docu-
mento mais avançado, abrangente e pormenorizado sobre a matéria na
história constitucional do país. É a primeira Constituição brasileira que
dedica seus primeiros títulos e capítulos aos direitos e garantias funda-
mentais. Essa modificação da topografia constitucional reflete a mudan-
ça da lente ex parte principe para a lente ex parte populi, transitando-se
de um Direito focado nos deveres dos súditos para um Direito focado
nos direitos dos cidadãos.
Desde o seu Preâmbulo a Constituição de 1988 enfatiza o seu com-
promisso em “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar
o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança,
o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,

13. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 349.703-RS. Relator Min. Ayres
Britto e Relator p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 13 dez. 2008. Na mesma data, fo-
ram julgados o Recurso Extraordinário nº 466.343-SP (Relator Min. Cezar Peluso) e o Habeas
Corpus nº 87.585-TO (Relator Min. Marco Aurélio).

316
Cap. 12 • DIREITO À EDUCAÇÃO DAS MULHERES

fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e inter-


nacional, com a solução pacífica das controvérsias (...)”.
Preocupa-se, ineditamente, em detalhar os princípios fundamentais
que regem a República Federativa do Brasil, elegendo, dentre os “fun-
damentos” que alicerçam o Estado Democrático de Direito brasileiro, a
cidadania (artigo 1º, II), a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III) e
os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, IV).
Comprometida em “atingir resultados” para transformar a reali-
dade social, prevê, no seu artigo 3º, as metas a serem perseguidas pelo
Estado brasileiro, tais como a construção de uma sociedade livre, justa
e solidária (I); a garantia do desenvolvimento nacional (II); a erradi-
cação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades
sociais e regionais (III); e a promoção do bem de todos, sem precon-
ceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação (IV).
Como se observa, a igualdade de gênero surge como um dos objeti-
vos de transformação da realidade social perseguidos pelo Estado brasi-
leiro, na medida em que figura, dentre as metas a serem perseguidas, a
promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Por sua vez, no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, enun-
cia, no caput do artigo 5º que “todos são iguais perante a lei, sem distin-
ção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangei-
ros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade”. O primeiro inciso é dedicado
a afirmar, de modo categórico, que “homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações”.
Endossando a concepção contemporânea de direitos humanos, a
Constituição de 1988 traz um capítulo próprio (Capítulo II), dedicado
aos direitos sociais, encartado no Título II – Dos Direitos e Garantias
Fundamentais. Neste Capítulo, a Carta de 1988 prevê, em seu artigo
6º, como direitos sociais, a educação, a saúde, a alimentação, o traba-
lho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social,
a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desampara-
dos.
O direito à educação é tratado de forma detalhada pela Constitui-
ção de 1988, no Título da Ordem Social, nos artigos 205 a 214. Segundo
o artigo 205 da Carta de 1988, “a educação, direito de todos e dever do

317
Alessandra Gotti

Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração


da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu pre-
paro para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
O ensino, segundo enuncia o artigo 206 da Carta de 1988, deve ser
ministrado com base, nos princípios da igualdade de condições para o
acesso e permanência na escola (I); da liberdade de aprender, ensinar,
pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (II); do pluralismo
de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições
públicas e privadas de ensino (III); da gratuidade do ensino público
em estabelecimentos oficiais (IV); da valorização dos profissionais da
educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com
ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos
das redes públicas (V); da gestão democrática do ensino público (VI);
da garantia de padrão de qualidade (VII) e do piso salarial profissional
nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos
de lei federal (VIII).
Por sua vez, o dever do Estado é efetivado mediante a garantia da
educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade, as-
segurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não ti-
veram acesso na idade própria (I); da progressiva universalização do
ensino médio gratuito (II); do atendimento educacional especializado
aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de
ensino (III); da educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças
até 5 (cinco) anos de idade (IV); do acesso aos níveis mais elevados
do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de
cada um (V); da oferta de ensino noturno regular, adequado às con-
dições do educando (VI); do atendimento ao educando, em todas as
etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de
material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saú-
de (VII). Reforçando o direito à educação, a Carta de 1988 prevê que o
acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo (ar-
tigo 208, §1º) e, que o seu não-oferecimento pelo Poder Público, ou sua
oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente
(artigo 208, §2º).

4. O DIREITO À EDUCAÇÃO DAS MULHERES E SEUS DESAFIOS


De forma global, o Brasil avançou muito nas últimas décadas com
uma taxa de atendimento escolar de crianças e jovens de 4 a 17 anos que
saltou de 48%, em 1970, para 96,4%, em 2017. Os indicadores sociais

318
Cap. 12 • DIREITO À EDUCAÇÃO DAS MULHERES

demonstram que foi superado o desafio da equidade de gênero no aces-


so à educação nas últimas três décadas.
As mulheres inclusive superaram os homens nos indicadores edu-
cacionais, conforme análise feita em 2018 pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE:
Conforme os dados da PNAD Contínua 2016, não houve discrepân-
cias na frequência ao ensino fundamental entre homens e mulheres na
medida em que o acesso à escola para a faixa etária de 6 a 14 anos está
praticamente universalizada. De forma similar, a frequência à escola
das pessoas de 15 a 17 anos independentemente do nível de ensi-
no, ou seja, a frequência escolar bruta (CMIG 22), também apresen-
tou valores muito próximos para mulheres e homens, de 87,1% e 87,4%,
respectivamente. Para a faixa etária de 18 a 24 anos, o percentual de
mulheres na escola é superior ao dos homens em 2,5 pontos percentuais
(CMIG 23).
A vantagem educacional das mulheres fica evidente a partir da análise
de indicadores que mensuram o atraso escolar e o nível educacional da
população adulta. Uma forma de medir o atraso escolar é a partir da
taxa de frequência escolar líquida ajustada (CMIG 21). Esse indica-
dor mede a proporção de pessoas que frequentam escola no nível de
ensino adequado a sua faixa etária, incluindo aquelas que já concluíram
esse nível, em relação ao total de pessoas da mesma faixa etária.
(...)
Em 2016, segundo dados da PNAD Contínua, a taxa de frequência es-
colar líquida ajustada no ensino médio dos homens de 15 a 17 anos de
idade era de 63,2%, 10,3 pontos percentuais abaixo da taxa feminina
(73,5%).
(...)
A maior diferença percentual por sexo encontra-se no nível “superior
completo”, especialmente entre as pessoas da faixa etária mais jovem,
de 25 a 44 anos de idade, em que o percentual de homens que comple-
tou a graduação foi de 15,6%, enquanto o de mulheres atingiu 21,5%,
indicador 37,9% superior ao dos homens.14 (Grifos do original).
Todavia, não obstante essa evolução, é importante alertar para o de-
safio da igualdade na perspectiva de raça e cor. As mulheres pretas ou
pardas possuem atraso no fluxo escolar no ensino médio (15 a 17 anos)

14. BRASIL. IBGE. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Instituto Brasi-
leiro de Geografia e Estatística: Brasília, 2018, p. 5-6. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.
gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2019.

319
Alessandra Gotti

em 30,7% dos casos, comparativamente à das mulheres brancas que é


de 19,9%. O atraso dos homens pretos ou pardos é ainda mais signifi-
cativo, representando mais que o dobro das mulheres brancas (42,7%).
Esse padrão de desigualdade se repete no ensino superior, no qual as
mulheres brancas têm percentual de conclusão mais do que o dobro das
pretas ou pardas e mais do que o triplo comparativamente aos homens
pretos ou pardos, como pode ser observado abaixo15:

Esses dados demonstram a importância da adoção de políticas pú-


blicas focalizadas no recorte de gênero e raça para deduzir as desigual-
dades existentes.

15. Op. cit., p. 6-7.

320
Cap. 12 • DIREITO À EDUCAÇÃO DAS MULHERES

Embora em média as mulheres tenham mais anos de estudo do que


os homens, recebem cerca de ¾ do que eles: a diferença de rendimento
habitual médio mensal de todos os trabalhos é de R$ 1.764 para mu-
lheres e R$ 2.306 para homens. Os resultados segregados por nível de
instrução demonstram que o diferencial de rendimentos é mais elevado
a partir do ensino superior completo, em que as mulheres receberam
63,4% do que os homens, em 201616.
Qual a razão dessa discrepância de rendimentos se a escolaridade
das mulheres é maior? Uma explicação para isso é a divisão desigual nos
afazeres domésticos e cuidados com pessoas (filhos ou parentes) que
impõe que as mulheres tenham uma carga de trabalho reduzida fora da
residência, segundo analisa o IBGE:
No Brasil, em 2016, as mulheres dedicaram aos cuidados de pessoas e/
ou afazeres domésticos cerca de 73% a mais de horas do que os homens
(18,1 horas contra 10,5 horas). Ao desagregar por região, verifica-se
que a maior desigualdade na distribuição de horas dedicadas a estas
atividades está na Região Nordeste, onde as mulheres dedicam cerca de
80% a mais de horas do que os homens, alcançando 19 horas semanais.
O recorte por cor ou raça indica que as mulheres pretas ou pardas são
as que mais se dedicam aos cuidados de pessoas e/ou aos afazeres do-
mésticos, com o registro de 18,6 horas semanais em 2016. Observa-se
que o indicador pouco varia para os homens quando se considera a cor
ou raça ou região de residência.

(...)

A questão da carga horária parece ser um fator fundamental no diferen-


cial de inserção ocupacional entre homens e mulheres determinado pela
divisão sexual do trabalho. Mulheres que necessitam conciliar trabalho
remunerado com os afazeres domésticos e cuidados, em muitos casos
acabam por trabalhar em ocupações com carga horária reduzida17.

A percepção social de que o cuidado com as pessoas é uma atribui-


ção feminina pode explicar o fato de que 80% dos 2,2 milhões de docen-
tes da educação básica brasileira são do sexo feminino, conforme Censo
Escolar 201718.

16. Ibid., p. 5.
17. Idem, p. 3-4.
18. BRASIL. INEP. Censo Escola 2017 – Notas Estatísticas. Instituto Nacional de Estudos e Pesqui-
sas Educacionais Anísio Teixeira: Brasília, 2018, p. 19. Disponível em: https://drive.google.
com/file/d/1diB1miZTKvuVByb9oXIXJgWbIW3xLL_f/view. Acesso em: 20 ago. 2019.

321
Alessandra Gotti

É preciso romper com estereótipos de gênero no ambiente educa-


cional, combatendo visões de que há profissões “ditas femininas” e que
as mulheres não são boas em áreas como Matemática e Ciências.
Ao analisar “como aumentar a presença de mulheres em carreira
de exatas, o Boletim Aprendizagem em Foco, do Instituto Unibanco,
destacou que, em 2015, a Organização para a Cooperação e Desenvol-
vimento Econômico (OCDE) divulgou o relatório “O ABC da Igualdade
de Gênero na Educação”. Nesse relatório foram analisados comporta-
mentos de pais e professores que afetavam o resultado de meninos e
meninas que participaram do PISA – Programa Internacional de Ava-
liação de Alunos, exame realizado pela OCDE que avalia o nível educa-
cional de jovens de 15 anos por meio de provas de Leitura, Matemática
e Ciências. As meninas relataram ter menos autoconfiança em sua ha-
bilidade para resolver problemas de Matemática e eram mais propen-
sas a expressar fortes sentimentos de ansiedade em relação à discipli-
na, fatores que têm impacto negativo no aprendizado. O interessante
é que, comparados estudantes com iguais níveis de autoconfiança e
ansiedade, a desigualdade de resultados entre meninos e meninas de-
saparece19.
Os jornalistas especializados em educação, Renata Cafardo e Luiz
Fernando Toledo, chegaram a conclusão semelhante ao analisar os re-
sultados do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Constataram
que mais de 70% dos estudantes que tiraram as 1.000 maiores notas
são meninos, embora as meninas sejam a maioria entre os candidatos.
As meninas pretas e pardas representam apenas 6% das notas mais
altas. A maior diferença está justamente nos exames de Matemática e
Ciências20.
No tocante a possíveis soluções para mudar essa realidade, o Bo-
letim Aprendizagem em Foco apontou a importância de ter referências
femininas em Exatas no corpo docente e oferecer programas de orien-
tação vocacional para combater estereótipos de gênero na escolha das
carreiras:

19. INSTITUTO UNIBANCO. Gênero: Como aumentar a presença de mulheres em carreiras de


exatas. Boletim Aprendizagem em Foco, n. 7, março de 2016. Disponível em: <https://www.
institutounibanco.org.br/aprendizagem-em-foco/7/>. Acesso em: 15 ago. 2019.
20. CAFARDO, Renata; TOLEDO, Luiz Fernando. Homens têm 72% das mil melhores notas do
Enem. Estadão. 14 jan. 2018. Disponível em: <https://infograficos.estadao.com.br/educacao/
enem/desigualdades-de-genero-e-raca/>. Acesso em: 15 ago. 2019.

322
Cap. 12 • DIREITO À EDUCAÇÃO DAS MULHERES

A Unesco também abordou este tema no relatório de 2015 do compro-


misso Educação Para Todos. Além de citar o problema da alta ansiedade
e baixa expectativa, ao elencar ações que podem ser executadas para
enfrentar a questão, a organização remete a um estudo feito nos Esta-
dos Unidos que mostrou que meninas que contavam com professoras
de Matemática mulheres, com sólido conhecimento da disciplina, apre-
sentavam melhora significativa no aprendizado. Para a entidade, isso
mostra que é preciso investir mais na formação de professoras mulhe-
res em Exatas.

Outra sugestão de ação que aparece tanto no relatório da Unesco quan-


to no da OCDE é oferecer programas de orientação vocacional que te-
nham a preocupação de combater estereótipos de gênero na escolha
das carreiras. Um exemplo de abordagem que pode ser feita é convidar
mulheres que atuem em carreiras de Ciências Exatas e da Natureza para
darem seu relato sobre a profissão21.

A adoção de políticas públicas que busquem soluções para essas


questões é um imperativo legal. Tanto a Constituição Federal quanto os
tratados internacionais de que o Brasil é parte garantem o acesso ao di-
reito à educação que permita o pleno desenvolvimento da personalida-
de humana, sem discriminações.
A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discrimina-
ção contra a Mulher, em seu artigo 10, “c”, enfatiza o dever dos Estados-
-partes de eliminar “todo conceito estereotipado dos papéis masculino e
feminino em todos os níveis e em todas as formas de ensino mediante o
estímulo à educação mista e a outros tipos de educação que contribuam
para alcançar este objetivo e, em particular, mediante a modificação dos
livros e programas escolares e adaptação dos métodos de ensino”.
Não basta a garantia do direito ao acesso à educação. É preciso ir
além e garantir uma educação livre de estereótipos, que permita a li-
berdade de escolha das carreiras profissionais. No Brasil, a maioria das
mulheres estão em cursos superiores relacionados às áreas de educa-
ção, saúde e bem-estar social e são minoria nos cursos de exatas e tec-
nologias, conforme pode ser observado no Censo do Educação Superior
de 201722:

21. Op. cit.


22. BRASIL. INEP; MEC. Censo da Educação Superior 2017: divulgação dos principais resultados.
Brasília. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira e Ministério
da Educação: Brasília, 2018, p. 51. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/docman/setem-
bro-2018-pdf/97041-apresentac-a-o-censo-superior-u-ltimo/file>. Acesso em: 20 ago. 2019.

323
Alessandra Gotti

324
Cap. 12 • DIREITO À EDUCAÇÃO DAS MULHERES

Esse desafio é maximizado em um período onde há uma grande re-


sistência ao enfrentamento de questões relacionadas a gênero e orienta-
ção sexual no país, impulsionada por grupos religiosos conservadores e
pelo movimento “Escola sem Partido”.
Um exemplo dessa resistência foi a substituição, no artigo 2º, inciso
III da Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, que aprovou o Plano Nacional
de Educação, da expressão “desigualdades educacionais, com ênfase na
promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”
por “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção
da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”.
Acrescente-se, ainda, que a referência a gênero nos Planos Estadu-
ais e Municipais de Educação foi suprimida em muitas unidades da fe-
deração e, em algumas, houve inclusive proibição explícita de discussão
dessas questões nas escolas, como em Capitais como Teresina (PI), Reci-
fe (PE) e Palmas (TO), e cidades como Santa Bárbara d’Oeste (SP), Viçosa
e Varginha (MG), Paranaguá e Cascaval (PR), e Mossoró (RN)23. A título
de exemplo, vale citar o parágrafo único do artigo 2º da Lei Municipal de
Varginha nº 6.042, 01 de julho de 2015, proíbe a discussão de gênero no
ambiente escolar:
Art. 2º. São diretrizes do PME:
I – erradicação do analfabetismo;
II – universalização do atendimento escolar;
III – superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promo-
ção da cidadania;
IV – melhoria da qualidade da educação;
V – formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores
morais e éticos em que se fundamenta a sociedade;
VI – promoção do princípio da gestão democrática da educação pública;
VII – promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do País;
VIII – estabelecimento de aplicação de recursos públicos em educação
que assegure atendimento às necessidades de expansão, com padrão de
qualidade e equidade;
IX – valorização dos (as) profissionais da educação;
X – promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos e à sus-
tentabilidade socioambiental.

23. ABE, Stephanie Kim. Planos Municipais e Estaduais não podem proibir as questões de gênero,
porque contrariam as Diretrizes Nacionais da Educação. De olho nos Planos. Disponível em:
<http://www.deolhonosplanos.org.br/planos-educacao-proibicao-genero/>. Acesso em: 30
ago. 2019.

325
Alessandra Gotti

Parágrafo único. Não será permitida direta ou indiretamente implan-


tar, lecionar e aplicar a ideologia de gênero no âmbito do Município de
Varginha.
Tal fato é preocupante pois a discriminação de gênero no ambiente
escolar é uma realidade. Segundo a pesquisa “Preconceito e Discrimi-
nação no Ambiente Escolar”, a área temática que apresentou os maio-
res valores para o índice ponderado percentual de concordância com as
atitudes discriminatórias foi a que exprime a discriminação em relação
a gênero (38,2%), seguida pelas áreas referentes à discriminação gera-
cional (37,9%), em relação à deficiência (32,4%), à identidade de gênero
(26,1%), à socioeconômica (25,1%), à étnico-racial (22,9%) e à territo-
rial (20,6%)24.
O percentual de concordância com frases que expressam o precon-
ceito de gênero revela a importância do enfrentamento do tema para
garantia da igualdade de gênero no ambiente escolar25:

24. MAZZON, José Afonso (Coord.). Projeto de Estudo sobre Ações Discriminatórias no Âmbito Es-
colar, Organizadas de Acordo com Áreas Temáticas, a saber, Étnico-Racial, Gênero, Geracional,
Territorial, Necessidades Especiais, Socioeconômica e Orientação Sexual. Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, Ministério da Educação – MEC e
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE: São Paulo, 2009, p. 6. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relatoriofinal.pdf>. Acesso em: 30 ago. 2019.
25. Ibid., p. 77.

326
Cap. 12 • DIREITO À EDUCAÇÃO DAS MULHERES

Em pleno século XXI, é um imperativo ético apostar na igualdade de


homens e mulheres. A construção de um futuro sustentável não pode se
distanciar da premissa da igualdade de gênero e assegurar o direito à
educação, sem discriminação, é o primeiro passo.

5. CONCLUSÕES
A Constituição Federal garante o direito à educação visando ao ple-
no desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidada-
nia e sua qualificação para o trabalho, livre de qualquer discriminação.
Tal direito é reforçado pelos tratados internacionais ratificados pelo
Brasil, tanto no âmbito da ONU quanto da OEA.
O Brasil avançou muito nas últimas décadas com uma taxa de aten-
dimento escolar de crianças de 4 a 17 anos que saltou de 48%, em 1970,
para 96,4%, em 2017. Os indicadores sociais demonstram que foi supera-
do o desafio da equidade de gênero no acesso à educação nas últimas três
décadas. As mulheres superaram os homens na taxa de frequência escolar
líquida do ensino médio e no percentual de conclusão de ensino superior.
A igualdade de gênero na educação, entretanto, ainda está distante
se analisados os dados educacionais sob a perspectiva de raça e cor. Isso
demonstra a necessidade da adoção de políticas públicas focalizadas
para esse público em especial.
Não basta, todavia, a garantia do direito ao acesso à educação às mu-
lheres. É preciso ir além e garantir uma educação livre de estereótipos,
que permita a liberdade de escolha das carreiras profissionais.
No Brasil, a maioria das mulheres está em cursos superiores rela-
cionados às áreas de educação, saúde e bem-estar social e são minoria
nos cursos de exatas e tecnologias. É preciso combater visões de que há
profissões “ditas femininas” e que as mulheres não são boas em áreas
como Matemática e Ciências.
Uma estratégia é incentivar a formação de professoras para essas
áreas, ampliando as referências femininas no corpo docente. Além disso,
é preciso oferecer programas de orientação vocacional para combater
estereótipos de gênero na escolha das carreiras, garantindo às mulheres
não apenas o acesso à educação, mas também a liberdade de seguir a
carreira dos seus sonhos, independentemente de em qual área do co-
nhecimento ela esteja.
Por fim, é preciso superar a resistência à discussão das questões de
“gênero”, pois é fato que a discriminação é uma realidade no ambiente
escolar e precisa ser combatida.

327
Alessandra Gotti

Somente assim será possível transformar nossa realidade social e


alcançar a meta delineada pelo legislador constituinte de construir uma
sociedade livre, justa e solidária, com a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABE, Stephanie Kim. Planos Municipais e Estaduais não podem proibir as questões de
gênero, porque contrariam as Diretrizes Nacionais da Educação. De olho nos Planos.
Disponível em: <http://www.deolhonosplanos.org.br/planos-educacao-proibicao-
-genero/>. Acesso em: 30 ago. 2019.
BOBBIO, Norberto. Era dos Direitos. COUTINHO, Carlos Nelson (Trad.). Rio de Janeiro:
Campus, 1988.
BRASIL. IBGE. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística: Brasília, 2018. Disponível em: <https://biblio-
teca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf>. Acesso em: 20
ago. 2019.
BRASIL. INEP. Censo Escola 2017 – Notas Estatísticas. Instituto Nacional de Estudos e Pes-
quisas Educacionais Anísio Teixeira: Brasília, 2018. Disponível em: https://drive.
google.com/file/d/1diB1miZTKvuVByb9oXIXJgWbIW3xLL_f/view. Acesso em: 20
ago. 2019.
BRASIL. INEP; MEC. Censo da Educação Superior 2017: divulgação dos principais resulta-
dos. Brasília. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixei-
ra e Ministério da Educação: Brasília, 2018. Disponível em: <http://portal.mec.gov.
br/docman/setembro-2018-pdf/97041-apresentac-a-o-censo-superior-u-ltimo/
file>. Acesso em: 20 ago. 2019.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 349.703-RS. Relator Min.
Ayres Britto e Relator p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 13 dez. 2008.
CAFARDO, Renata; TOLEDO, Luiz Fernando. Homens têm 72% das mil melhores notas
do Enem. Estadão. 14 jan. 2018. Disponível em: <https://infograficos.estadao.com.
br/educacao/enem/desigualdades-de-genero-e-raca/>. Acesso em: 15 ago. 2019.
INSTITUTO UNIBANCO. Gênero: Como aumentar a presença de mulheres em carreiras
de exatas. Boletim Aprendizagem em Foco, n. 7, março de 2016. Disponível em: <ht-
tps://www.institutounibanco.org.br/aprendizagem-em-foco/7/>. Acesso em: 15
ago. 2019.
MAZZON, José Afonso (Coord.). Projeto de Estudo sobre Ações Discriminatórias no Âmbito
Escolar, Organizadas de Acordo com Áreas Temáticas, a saber, Étnico-Racial, Gênero,
Geracional, Territorial, Necessidades Especiais, Socioeconômica e Orientação Sexual.
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, Mi-
nistério da Educação – MEC e Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE:
São Paulo, 2009. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relato-
riofinal.pdf>. Acesso em: 30 ago. 2019.
PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 17a ed. São
Paulo: Editora Saraiva, 2017

328
13
O LEGADO DE MALALA
NO BRASIL ATUAL: O CENÁRIO
DO DIREITO À EDUCAÇÃO
DAS MENINAS E MULHERES A PARTIR
DO CONSTITUCIONALISMO FEMINISTA
Melina Girardi Fachin1
e Vitória Pereira Rosa2

Sumário: 1. Introdução; 2. Constitucionalismo feminista e a construção


histórica dos direitos das mulheres na Constituição de 1988; 3. Educação como
direito humano e movimentos pela escolaridade feminina; 4. Conclusões; 5.
Referências.

1. INTRODUÇÃO
“A educação é o poder das mulheres”
(YOUSAFZAI, Malala)
O balanço das últimas três décadas permite apontar que os movi-
mentos normativos de proteção dos direitos humanos das mulheres
centraram seu foco em três questões centrais: a) a discriminação contra

1. Pós-Doutoranda pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutora e Mestra em


Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Visiting Researcher na Harvard
Law School. Professora dos Programas de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direi-
to da Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de
Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (NESIDH-UFPR).
2. Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Paraná.

329
Melina Girardi Fachine Vitória Pereira Rosa

a mulher; b) a violência contra a mulher; e c) os direitos sexuais e repro-


dutivos. Isto porque a normatividade reflete, ao longo de seu desenvol-
vimento, a diversidade do próprio movimento feminista3- melhor seria
dizer dos feminismos – e de sua pauta.
Reivindicações feministas, como o direito à igualdade formal, a li-
berdade sexual e reprodutiva, o fomento da igualdade de condições so-
cioeconômicas, redefinição de papéis sociais e o direito à diversidade
sob as perspectivas de raça, etnia, dentre outras, cada qual, ao seu modo,
foram incorporadas pelos tratados internacionais de proteção dos direi-
tos humanos.
A realidade, todavia, ainda nos desafia em todos estes campos.
Quanto à igualdade formal, verifica-se que 20% dos países do mundo
ainda adotam explicitamente em suas legislações padrões normativos
discriminatórios contra a mulher4. O acesso à bens e serviços também
é marcado pela desigualdade, por exemplo, no campo, as agricultoras
–que representam 43% da mão de obra – têm tradicionalmente menos
acesso do que os homens a insumos, serviços e infraestrutura e tecnolo-
gias de produção5.
Em relação aos papéis sociais, em todo o mundo, 35% das mulhe-
res já sofreram, em algum momento das suas vidas, violência física e/
ou sexual por um parceiro íntimo ou violência sexual por um agressor
que não era seu parceiro6. Uma em cada cinco meninas e mulheres –
com idade de 15 a 49 anos, que já foram casadas ou estiveram em uma
união – relatou ter sido submetida a violência física e/ou sexual por um
parceiro íntimo ao longo dos últimos 12 meses.7
Ainda, quando agregado o recorte interseccionalidades os dados so-
bre violência se tornam ainda mais alarmantes – meninas indígenas, ado-
lescentes e jovens mulheres são mais vulneráveis a violência, agressões,
exploração trabalhista e assédio do que outras meninas e mulheres, 64%

3. TONG, Rosemarie Putnam. Feminist Thought – a more comprehensive introduction. Oxford:


Westview press, 1998.
4. ONU Brasil. Modelo de protocolo latino-americano de investigação das mortes violentas de mu-
lheres por razões de gênero (femicídio/feminicídio). Brasil, 2014. Disponível em: http://www.
onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/05/protocolo_feminicidio_publicacao.pdf.
Acesso em: setembro de 2019.
5. Id.
6. Id.
7. Id.

330
Cap. 13 • O LEGADO DE MALALA NO BRASIL ATUAL: …

das mulheres assassinadas no Brasil são negras e que, das 2,4 milhões
de mulheres que sofreram violência em 2013, 1,5 milhão são negras.8A
existência de uma pluralidade de movimentos feministas demonstra a
multiplicidade de realidades enfrentadas por mulheres diferentes. As-
sim, como toda expressão de um direito humano, a igualdade de gênero
se apresenta como um ponto de chegada inserido num processo de luta
por dignidade humana9.
Essa luta pelas variadas formas de emancipação feminina é feita de
avanços e retrocessos, em especial no contexto dos direitos sociais. O
primeiro passo deste caminho se apresenta no acesso pleno de mulhe-
res ao ensino, inserido como um catalisador de igualdade material10. O
papel emancipador da educação sobressai por si e também por ser agen-
te catalizador da proteção de outros direitos.
É certo que, como a inspiradora história de Malala Yousafzai nos en-
sina que “a educação é o poder das mulheres”, todavia, este caminho,
como a própria história da menina paquistanesa demonstra, é recente e
ainda pende de consolidação.
Com efeito, um dos primeiros registros da defesa da educação para
mulheres se deu em 1788 pela inglesa Mary Wollenstonecraft11, uma das
pioneiras do pensamento sufragista, em sua obra intitulada “Thoughts
on the education of daughters”. Esse guia para a educação de meninas,
apesar de defender ideias como autocontrole e submissão12 para a cria-
ção de uma boa esposa, em certa medida trazia também a independência
econômica e a respeitabilidade social13. Destarte, a construção histórica

8. Id.
9. FLORES, Joaquín Herrera. Direitos humanos, interculturalidade e racionalidade de resistência.
Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos. Florianópolis, 2002, p. 7.
10. BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p.
175.
11. SALDANHA, Jânia. “Carta das Mulheres” para o mundo?: O direito das mulheres na intersecção
entre o direito internacional, a jurisprudência da corte IDH e o direito constitucional brasilei-
ro. In: SILVA, Christine Oliveira Peter da; BARBOSA, Estefânia Maria de Queiroz; FACHIN, Me-
lina Girardi. Constitucionalismo Feminista. Salvador: Juspodivm, 2018. Organização de Bruna
Nowak, p. 90.
12. MIRANDA, Anadir dos Reis. Mary Wollstonecraft e a Reflexão Sobre os Limites do Pensamento
Iluminista a respeito dos direitos das mulheres. Revista Vernáculo, n. 26, 2º sem./2010, p. 122.
13. MIRANDA, Anadir dos Reis. Mary Wollstonecraft e a Reflexão Sobre os Limites do Pensamento
Iluminista a respeito dos direitos das mulheres. Revista Vernáculo, n. 26, 2º sem./2010, 123-
124.

331
Melina Girardi Fachine Vitória Pereira Rosa

dos direitos das mulheres passou por um caminho tortuoso e ainda há


dificuldades constantes na realização desses direitos.
Em termos de história brasileira, a educação para meninas não
ocorre em conjunto com o surgimento das primeiras escolas, presen-
tes já no período colonial, que eram exclusivamente masculinas. Dessa
forma, só existia educação formal feminina em casa ou em conventos14
até 1827, em que surgem as primeiras escolas femininas, com o advento
da Lei sobre o Ensino Elementar no Brasil15, mesmo que, no entanto,
essas escolas seriam obrigatórias apenas para as vilas e cidades mais
populosas16, privilegiando as estudantes de áreas urbanas. Desta forma,
além de uma institucionalização tardia da educação feminina no país, o
acesso seria de acordo com as possibilidades e os recursos de suas famí-
lias. A discriminação de gênero ao acesso ao ensino perdura no presente,
visto que mesmo diante de índices otimistas do aumento da escolariza-
ção feminina, o acesso à educação de qualidade ainda é um obstáculo a
ser vencido, pois existem maiores dificuldades de acesso com base nas
oportunidades e recursos das mulheres.
Outrossim, uma pesquisa realizada pelo IBGE em 201617 demons-
trou que 73% dos estudantes no Brasil figuram na rede pública de en-
sino. Dentre esses estudantes, a pesquisa aponta que o principal indica-
dor de evasão escolar de jovens é a dedicação a um emprego, tanto para
mulheres quanto para homens. Ainda, destaca-se que para as mulheres
o segundo maior motivo para evasão é a necessidade de cuidar da famí-
lia, ultrapassando um quarto das evasões escolares18, isto é, demonstra-
-se que mesmo dentro de classes menos favorecidas, as mulheres ainda

14. TOMAZONI, Larissa; LOBO, Andrea; DOTTA, Alexandre. A Condição da Mulher no espaço edu-
cacional brasileiro: aspectos históricos sociais da trajetória feminina, p 03. Disponível em:
<https://www.academia.edu/17352134/A_CONDI%C3%87%C3%83O_DA_MULHER_NO_
ESPA%C3%87O_EDUCACIONAL_BRASILEIRO_ASPECTOS_HIST%C3%93RICOS_SOCIAIS_DA_
TRAJET%C3%93RIA_FEMININA>. Acesso em: 28 mar. 2019.
15. BRASIL. Lei do Ensino Elementar no Brasil, de 15 de outubro de 1827. Manda crear escolas de
primeiras letras em todas as cidades, villas e logares mais populosos do Império.
16. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação e da Pedagogia. 3. ed. São Paulo: Mo-
derna, 2009, p. 222.
17. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional por amostra de domi-
cílios contínua de 2016 , p. 41. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/
com_mediaibge/arquivos/8b9eafcfed9d8742b0a8eaa5fce7ae94.pdf>. Acesso em: 07 abril
2019.
18. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional por amostra de domi-
cílios contínua de 2016, p. 42.

332
Cap. 13 • O LEGADO DE MALALA NO BRASIL ATUAL: …

encontram mais obstáculos para acessar o ensino por conta de obriga-


ções que não são estendidas aos homens.
Assim, o acesso à educação formal se apresenta como um meio de
emancipação social da mulher e um dos caminhos para o alcance da
igualdade de gênero material, em vista de superar a simples declaração
de igualdade perante a lei do feminismo liberal baseado na igualdade
formal, diante da existência de opressões na distribuição de recursos,
oportunidades e a ocupação de espaços em que mulheres não teriam
vez ou voz.
Para tanto, este trabalho pretende analisar essas questões através
da análise crítica da relação entre direito à educação e a emancipação
feminina. Assim, este artigo possui duas partes: a primeira procura inse-
rir a discussão do constitucionalismo feminista na construção histórica
dos direitos das mulheres no contexto brasileiro e a segunda propõe-se
a dispor sobre a educação como direito humano e a importância da in-
terseccionalidade nos discursos de igualdade de gênero.

2. CONSTITUCIONALISMO FEMINISTA E A CONSTRUÇÃO HISTÓRI-


CA DOS DIREITOS DAS MULHERES NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Por ocasião da promulgação da Constituição Federal, no dia cinco
de outubro de 1988, o Presidente da Assembleia Nacional Constituinte,
Dr. Ulysses Guimarães, disse em seu discurso que “a atuação das mu-
lheres nesta Casa foi de tal teor, que, pela edificante força do exemplo,
aumentará a representação feminina nas futuras eleições”19. Era uma
das primeiras vezes que mulheres participavam ativamente da história
constitucional brasileira, e a fizeram de maneira significativa e valorosa,
atuando em comissões temáticas de diversos assuntos20. Norberto Bo-
bbio aponta que os direitos humanos são direitos históricos21, ou seja,
que não se dão quando precisam emergir, mas quando o contexto histó-
rico, político e social permite que existam. A participação das mulheres
na discussão sobre os seus próprios direitos no Brasil não foi diferente,

19. BRASIL. Presidente da Assembleia Constituinte: Ulysses Guimarães. Discurso por ocasião da
promulgação da constituição de 1988. Brasília, 05 out 1988, p. 7.
20. URTADO, Daniela; PAMPLONA, Danielle Anne. A última constituinte brasileira, as bravas mu-
lheres e suas conquistas. In: SILVA, Christine Oliveira Peter da; BARBOSA, Estefânia Maria de
Queiroz; FACHIN, Melina Girardi. Constitucionalismo Feminista. Salvador: Juspodivm, 2018.
Organização: Bruna Nowak, p. 62.
21. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 51.

333
Melina Girardi Fachine Vitória Pereira Rosa

pois ocorreu no contexto de redemocratização brasileira, com participa-


ção feminina na Constituinte, o Conselho Nacional dos direitos da mu-
lher e outros movimentos.
Da mesma forma, não se dá crédito apenas ao contexto histórico,
pois como bem apontado por Urtado e Pamplona22 “a ausência de vozes
femininas não se constrói por sua suposta fragilidade e ignorância, mas
sim, se constrói na assertividade dos homens em mandar que se calem”.
Os direitos não são institucionalizados por bondade ou por consciência
dos detentores do poder, mas pelo que Joaquin Herrera Flores chama
de processos de luta pela dignidade humana23. Esses processos de luta
feminina podem ser observados sob um prisma multinível24, em que se
encontram contribuições nos anos 1980 no contexto brasileiro, na Amé-
rica Latina e no sistema ONU.
Inicialmente, no contexto internacional, pode-se referenciar que
a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação
contra as mulheres – CEDAW, editada em 1979 e ratificada pelo Brasil
em 1984. Este documento foi resultado de um movimento de reivindica-
ção25 no Sistema ONU que resultou em uma discussão sobre os direitos
das mulheres em plena ditadura civil militar no Brasil26, despontando
como um dos primeiros documentos que iniciou o combate da discrimi-
nação de gênero na saúde, educação, família e trabalho27.

22. URTADO, Daniela; PAMPLONA, Danielle Anne. A última constituinte brasileira, as bravas mu-
lheres e suas conquistas. In: SILVA, Christine Oliveira Peter da; BARBOSA, Estefânia Maria de
Queiroz; FACHIN, Melina Girardi. Constitucionalismo Feminista. Salvador: Juspodivm, 2018.
Organização: Bruna Nowak, p. 53.
23. FLORES, Joaquín Herrera. Direitos humanos, interculturalidade e racionalidade de resistência.
Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos. Florianópolis, 2002, p. 7.
24. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 2. ed. São Paulo:
Max Limonad, 1997, p. 115.
25. PIOVESAN, Flávia. FACHIN, Melina Girardi. Diálogos sobre o feminino: a proteção dos direi-
tos humanos das mulheres no Brasil à luz do impacto do sistema interamericano. In: SILVA,
Christine Oliveira Peter da; BARBOSA, Estefânia Maria de Queiroz; FACHIN, Melina Girardi.
Constitucionalismo Feminista. Salvador: Juspodivm, 2018. Organização de Bruna Nowak,
p. 179.
26. SALDANHA, Jânia. “Carta das Mulheres” para o mundo?: O direito das mulheres na intersecção
entre o direito internacional, a jurisprudência da corte IDH e o direito constitucional brasilei-
ro. In: SILVA, Christine Oliveira Peter da; BARBOSA, Estefânia Maria de Queiroz; FACHIN, Me-
lina Girardi. Constitucionalismo Feminista. Salvador: Juspodivm, 2018. Organização de Bruna
Nowak, p. 93.
27. SALDANHA, Jânia. “Carta das Mulheres” para o mundo?: O direito das mulheres na intersecção
entre o direito internacional, a jurisprudência da corte IDH e o direito constitucional brasi-
leiro. In: SILVA, Christine Oliveira Peter da; BARBOSA, Estefânia Maria de Queiroz; FACHIN,

334
Cap. 13 • O LEGADO DE MALALA NO BRASIL ATUAL: …

Ademais, a CEDAW trouxe um impacto para a questão dos direitos


femininos de maneira globalizada, em que se realizaram conferências
mundiais28 sobre assunto em diversos países, como no México em 1975,
em Copenhague em 1980 e Nairóbi em 1985. Isso modificou a discus-
são no plano dos direitos humanos das mulheres em todo o mundo29,
influenciando o Brasil para o que ocorreria três anos depois na promul-
gação do texto constitucional.
No contexto brasileiro, cabe ressaltar que em um primeiro momen-
to, o movimento feminista no Brasil se deu pelas reivindicações de mu-
lheres brancas, de classe média e com acesso à educação, baseado na
luta pelo sufrágio universal, e que tentava deixar claro que homens não
eram inimigos do movimento30. No entanto, com a ditadura civil militar,
há uma mudança na feição do movimento, que passa a ser de resistência
contra o autoritarismo político31. Da mesma forma, na década de 1980,
foi possível aumentar a participação de mulheres lésbicas, negras e cam-
ponesas no movimento32, tornando o feminismo brasileiro mais inclusi-
vo e plural.
Justamente nessa conjuntura, esses direitos foram tutelados na
Constituição Federal de 1988, sobretudo em razão do que se chamou de

Melina Girardi. Constitucionalismo Feminista. Salvador: Juspodivm, 2018. Organização de Bru-


na Nowak, p. 94.
28. SALDANHA, Jânia. “Carta das Mulheres” para o mundo?: O direito das mulheres na intersecção
entre o direito internacional, a jurisprudência da corte IDH e o direito constitucional brasilei-
ro. In: SILVA, Christine Oliveira Peter da; BARBOSA, Estefânia Maria de Queiroz; FACHIN, Me-
lina Girardi. Constitucionalismo Feminista. Salvador: Juspodivm, 2018. Organização de Bruna
Nowak, p. 95.
29. PIOVESAN, Flávia. FACHIN, Melina Girardi. Diálogos sobre o feminino: a proteção dos direi-
tos humanos das mulheres no Brasil à luz do impacto do sistema interamericano. In: SILVA,
Christine Oliveira Peter da; BARBOSA, Estefânia Maria de Queiroz; FACHIN, Melina Girardi.
Constitucionalismo Feminista. Salvador: Juspodivm, 2018. Organização de Bruna Nowak,
p. 176.
30. CESTARI, Mariana Jafet. A constituição do discurso feminista no Brasil e na Argentina nos anos
1970. 173 f. Dissertação (Mestrado em Linguística), Instituto de Estudos da Linguagem, Uni-
versidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011, f. 85.
31. MOREIRA, Laís de Araújo. Direito e gênero: a contribuição feminista para a formação política
das mulheres no processo de (redemocratização brasileiro. Periódico de Núcleo de Estudos e
Pesquisas Sobre Gênero e Direito, Centro de Ciências Jurídicas – UFPB, v. 5, n. 1, p. 217-255, jan.
2016, p. 222.
32. MOREIRA, Laís de Araújo. Direito e gênero: a contribuição feminista para a formação política
das mulheres no processo de (redemocratização brasileiro. Periódico de Núcleo de Estudos e
Pesquisas Sobre Gênero e Direito, Centro de Ciências Jurídicas – UFPB, v. 5, n. 1, p. 217-255, jan.
2016, p. 224.

335
Melina Girardi Fachine Vitória Pereira Rosa

“lobby do batom”33 que consistiu em uma atuação da bancada feminina


(formada por 26 deputadas e nenhuma senadora) na Assembleia Cons-
tituinte em conjunto com a atuação do movimento feminista da época.
Nesse sentido, destaca-se a Carta das mulheres34, enviada à Assembleia
Constituinte em 26 de agosto de 1986, que reunia reivindicações a res-
peito da discriminação de gênero, das famílias, trabalho, saúde, educa-
ção, cultura, violência, bem como questões nacionais e internacionais.
A atuação das mulheres constituintes foi crucial para a constitucio-
nalização dos direitos das mulheres que estavam sendo discutidos, utili-
zando o lema “Constituição para valer tem que ter palavra de mulher”35.
No entanto, apesar da seriedade de suas reivindicações, a bancada fe-
minina foi frequentemente desacreditada por suas demandas, ao que o
termo “lobby do batom”36 foi utilizado inicialmente de forma pejorativa.
Ao mesmo tempo, na década dos anos 1980, muitos países da Amé-
rica Latina estavam passando por contextos de redemocratização após
ditaduras militares, o que fortaleceu a vontade da participação popu-
lar no poder constituinte e fez com que as mulheres, antes pleiteando
seus direitos nos movimentos sociais, alcançassem a institucionalização
desses direitos e a participação feminina nesses processos, iniciando a
construção do constitucionalismo feminista37.
Assim, sob o contexto de redemocratização brasileira e os proces-
sos de luta no sistema ONU, na América Latina e no Brasil, nasceu a
Constituição Federal de 1988, permeada pela vontade de democracia e
participação. Desta forma, o constitucionalismo feminista se expressa,
primeiramente, como a constitucionalização dos direitos das mulhe-
res e a presença de intérpretes constitucionais do gênero feminino, de-
monstrando o real sentido do lema “Constituição para valer tem que ter

33. Em entrevista realizada pelo jornal Correio Braziliense pela jornalista Daniela Lima, a então
deputada Rita Camata menciona que esse nome foi utilizado inicialmente de forma pejorativa.
34. Carta das mulheres aos constituintes, disponível no site da Câmara dos Deputados.
35. URTADO, Daniela; PAMPLONA, Danielle Anne. A última constituinte brasileira, as bravas mu-
lheres e suas conquistas. In: SILVA, Christine Oliveira Peter da; BARBOSA, Estefânia Maria de
Queiroz; FACHIN, Melina Girardi. Constitucionalismo Feminista. Salvador: Juspodivm, 2018.
Organização: Bruna Nowak, p. 201.
36. LIMA, Daniela. Uma luta pela igualdade. Correio Braziliense, 28 out. 2007.
37. SILVA, Salete Maria da; WRIGHT, Sonia Jay. As mulheres e o novo Constitucionalismo: uma
narrativa feminista sobre a experiência brasileira. Revista Brasileira de História do Direito, v.
1, n. 1, 2015, p. 172. Disponível em: <https://www.indexlaw.org/index.php/historiadireito/
article/view/666/pdf>. Acesso em: 17 set. 2019.

336
Cap. 13 • O LEGADO DE MALALA NO BRASIL ATUAL: …

palavra de mulher”. Com efeito, seria muito inadequado se os homens


fossem os únicos a construir e interpretar a Constituição. É imprescindí-
vel que todas as mulheres tenham voz, seja na Assembleia Constituinte,
nos tribunais ou nas salas de aula. Todavia, essa construção vai além
disso, porque não basta que as mulheres façam parte da criação das nor-
mas constitucionais. O constitucionalismo feminista busca a realização
concreta desses direitos, como bem apresentam Tomazoni e Barboza38:
O Direito Constitucional Feminista (ou Direito Constitucional a partir de
uma perspectiva de gênero) é resultado do pensamento crítico feminis-
ta que vem modificando o mundo político-jurídico e construindo novos
conceitos a partir das noções de poder, justiça, liberdade e recontex-
tualizando a igualdade no Estado Constitucional para formular propos-
tas concretas e corrigir as injustiças baseadas na dinâmica de domina-
ção/subordinação entre homens e mulheres que acarretam a negativa
ao acesso das mulheres ao espaço público.
Destarte, diante desta problemática, relevante referir que a cons-
trução de espaços por dignidade feminina ainda é um ponto de chega-
da39, visto que, evidentemente, o esforço no combate às desigualdades
de gênero, mesmo como valor defendido expressamente na Constitui-
ção, encontra entraves constantes na sua efetivação. Aí é que se insere a
importância do direito à educação, que deve ser visto como efetivo para
todas a camadas da sociedade, o que não acontece.
Embora hoje as mulheres de classe média e classe alta apresentam
inserção maior no ensino superior do que os homens, ainda recebem
menores salários40. Enquanto isso, as mulheres periféricas são coloca-
das ao lado, sem formação e sem emprego, visto que apresentam maior
risco de estarem desempregadas ou fora do mercado de trabalho, em pe-
ríodos de estabilidade econômica, e seus ganhos são mais baixos41. Den-
tro desse contexto, coloca-se o acesso universal de mulheres à educação

38. TOMAZONI, Larissa; BARBOZA, Estefânia. O constitucionalismo feminista na América Latina.


III Congresso Internacional de Direito Constitucional & Filosofia Política: Caderno de Resumos.
Curitiba, 2017, p. 330.
39. FLORES, Joaquín Herrera. Direitos humanos, interculturalidade e racionalidade de resistência.
Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos. Florianópolis, 2002, p. 10.
40. PAINS, Clarissa. Mulheres estudam mais, mas recebem 23.5% menos do que homens. O Glo-
bo, 07 mar. 2018. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/mulheres-estudam-
-mais-mas-recebem-235-menos-do-que-homens-22461826>. Acesso em: 20 ago. 2019.
41. MOURA, Caroline Oliveira de. A desigualdade educacional de gênero e seus impactos sobre o
mercado de trabalho: uma apreciação da literatura. 2017. 36 f. Monografia (Especialização) –
Curso de Ciências Econômicas, Setor de Ciências Sociais e Aplicadas, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2017. f. 20.

337
Melina Girardi Fachine Vitória Pereira Rosa

como um dos primeiros passos no caminho a ser trilhado para a igual-


dade de gênero, um instrumento de criação de oportunidades e acesso a
outros direitos através da perspectiva interseccional.

3. EDUCAÇÃO COMO DIREITO HUMANO E MOVIMENTOS PELA ES-


COLARIDADE FEMININA
O direito à educação se tornou um direito fundamental no Brasil a
partir da Constituição de 1934, em que pela primeira vez vincularam-se
recursos públicos para esse fim específico42, por influência da Constitui-
ção de Weimar e da Constituição Mexicana43. Desde a Constituição de
1988, a educação é consagrada como um direito de todos, em que a res-
ponsabilidade pela sua efetivação é da família, da sociedade e do Estado.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal44 se manifestou no Agravo
Regimental em Recurso Extraordinário nº 594018, em 2009, reforçando
a obrigação do Estado em viabilizar o seu exercício e disposto como “di-
reito fundamental e indisponível”.
Primeiramente, cabe ressaltar que a educação definida na Constitui-
ção, na Lei e em documentos internacionais ratificados pelo Brasil não é
baseada apenas na transmissão de conhecimentos técnicos. Com efeito,
o Estatuto da Criança e do Adolescente menciona que a educação visa
também o “pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exer-
cício da cidadania e qualificação para o trabalho”, isto é, a escola repre-
senta um espaço para a socialização do indivíduo. Para as mulheres, isso
quer dizer discutir o lugar da mulher na sociedade.
Assim, de acordo com Maliska45 a educação não se limita apenas à
alfabetização ou o cálculo, pois coloca-se como uma forma de garantir
também o desenvolvimento social do indivíduo em sua comunidade. Da

42. SOARES, Rúbem da Silva. O financiamento da educação pública nas Constituições Brasilei-
ras. In: RANIERI, Nina Beatriz Stocco; ALVES, Angela Limongi Alvarenga. Direito à Educação
e Direitos na Educação em Perspectiva Interdisciplinar. São Paulo: Cátedra UNESCO de Direito
à Educação/Universidade de São Paulo (USP), 2018, p. 49-77. Disponível em: <http://www.
crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/unesco/direito_a_educacao_e_direitos_na_educa-
cao_em_perspectiva_interdisciplinar_2018.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2019.
43. SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado: Algumas Considerações Em
Torno Da Vinculação Dos Particulares Aos Direitos Fundamentais. Doutrinas Essenciais de Di-
reitos Humanos, v. 1, p. 383-442, ago. 2011, p. 14.
44. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE-AgR 594018/RJ, Rel. Min. Eros Grau.
45. MALISKA, Marcos Augusto. O direito à educação e a constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 2002, p. 157

338
Cap. 13 • O LEGADO DE MALALA NO BRASIL ATUAL: …

mesma forma, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948,


prevê em seu artigo 26 a importância do desenvolvimento da personali-
dade como um norte a ser seguido no direito à educação46. Por sua vez,
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/1996,
reforça a importância da existência de pluralidade de ideias no ambiente
educacional.
Infelizmente, na contramão dessa visão socializadora e crítica da
educação encontrada no Estatuto da Criança e do Adolescente e na De-
claração Universal de Direitos Humanos, existiram algumas tentativas
no Brasil de tornar a educação menos crítica, como a iniciativa do Escola
sem Partido, que tenta manter a “intocabilidade” da família na transmis-
são de valores47, para a salvaguarda de valores como o conservadorismo
e a tradição. Cabe referir que, a respeito da discussão de papéis de gê-
nero no contexto escolar, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou
contra a limitação da “ideologia de gênero” nas escolas. A Ação de Des-
cumprimento de Preceito Fundamental nº 526 foi ajuizada pelo Partido
Comunista do Brasil contra uma Lei do Município de Foz do Iguaçu que
proíbe, na rede municipal de ensino, a veiculação de conteúdo relaciona-
do à ideologia de gênero ou à orientação sexual e mesmo a utilização do
termo “gênero”. O Ministro Dias Toffoli defendeu a suspensão da eficácia
dessa Lei em sede de decisão liminar com base na competência federal
para legislar sobre as diretrizes e bases da educação, Ainda, o Ministro
relatou em sua decisão monocrática os perigos da supressão do conhe-
cimento no contexto escolar
Ainda, o Coletivo Transforma MP lançou uma nota divulgando o Mo-
vimento Nacional de Mulheres do Ministério Público se manifestou con-
tra o Projeto Escola sem Partido, defendendo que a educação deve deba-
ter preconceitos e desigualdades sociais. Segundo a nota, a escola deve
ter partido: o das meninas e mulheres brasileiras. Da mesma forma, a
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Fe-
deral se manifestou contra o Escola Sem Partido e o Ministério Público

46. “2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade huma-
na e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A
instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos
raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da
paz.”
47. MIGUEL, Luis Felipe. Da “doutrinação marxista” à “ideologia de gênero” – Escola Sem Partido
e as leis da mordaça no parlamento brasileiro. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 15, 2016, p. 590-
621, p. 605.

339
Melina Girardi Fachine Vitória Pereira Rosa

Federal já defendeu a educação com igualdade de gênero como uma das


principais alternativas para prevenir e combater a violência contra a
mulher. Diante disso, faz-se necessário que além do acesso à escola, essa
educação seja de qualidade, e para tanto deve incluir reflexões e profun-
didade de discussão social. Outrossim, no mesmo sentido, relata Cury48:
O direito à educação parte do reconhecimento de que o saber sistemá-
tico é mais do que uma importante herança cultural. [...]. Ter o domínio
de conhecimentos sistemáticos é também um patamar sine qua non a
fim de poder alargar o campo e o horizonte desses e de novos conheci-
mentos. O acesso à educação é também um meio de abertura que dá ao
indivíduo uma chave de autoconstrução e de se reconhecer como capaz
de opções. O direito à educação, nesta medida, é uma oportunidade de
crescimento cidadão, um caminho de opções diferenciadas e uma chave
de crescente estima de si.
Além da educação de qualidade, deve-se discutir o acesso universal
ao ensino. Conforme o artigo 206, inciso I, da Constituição, um dos prin-
cípios do ensino é a “igualdade de condições para o acesso e permanên-
cia na escola”, colocando mais uma vez a necessidade de a educação ser
um direito que deve ser acessado por todos e todas. Assim, a efetivação
desse direito se apresenta como um catalisador da promoção da igual-
dade material, a partir da ideia de igualdade de oportunidades, confor-
me a posição de Ana Paula de Barcellos49:
A lógica subjacente à ideia da igualdade de chances ou de oportunida-
des é a de que, uma vez que todos tenham reais oportunidades iniciais
de desenvolvimento pessoal e capacitação para a cidadania e para o tra-
balho, as extremas desigualdades poderão ser reduzidas no futuro.
Além do direito à igualdade, o acesso ao ensino contribui com o
direito à liberdade visto numa perspectiva substancial. Nesse sentido,
Amartya Sen50 dispõe que um indivíduo livre é aquele que pode realizar
suas próprias escolhas, através das suas capacidades e oportunidades.
Ou seja, o desenvolvimento se constrói a partir do aumento da capaci-
dade humana, não representando simplesmente um aumento no cresci-
mento econômico do indivíduo ou de uma comunidade, mas a “expansão

48. CURY, Carlos Roberto Jamil. Direito à educação: direito à igualdade, direito à diferença. Cad.
Pesqui., São Paulo, n. 116, p. 245-262, Julho 2002, p. 259. Disponível em <http://www.scie-
lo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742002000200010&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 19 ago. 2019.
49. BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p.
175.
50. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad.: Laura Teixeira Motta; Rev. Técnica: Ri-
cardo Doniselli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 17.

340
Cap. 13 • O LEGADO DE MALALA NO BRASIL ATUAL: …

das liberdades reais que as pessoas desfrutam”51. Para tanto, o autor


propõe dois conceitos importantes para a compreensão de sua proposta
de liberdade: o funcionamento e a abordagem de capacidades. O funcio-
namento é definido como bens “que uma pessoa pode considerar valio-
so fazer ou ter”52 para alcançar o bem estar ou a felicidade. Por sua vez,
a abordagem das capacidades ou Capabilities Approach é definida como
a liberdade dos indivíduos em alcançar esse bem estar ou felicidade, em
um conjunto de funcionamentos que faz do indivíduo livre aquele que
tem a capacidade de tomar as próprias decisões53.
Outrossim, Xavier e Consani54 exemplificam bem o conceito de Sen:
[...] é diferente quando alguém passa fome porque está fazendo uma gre-
ve de fome (uma atitude política para a qual o grevista teve a oportuni-
dade manifestar sua preferência) e quando alguém passa fome porque
não tem recursos financeiros e nem outros meios de adquirir alimentos,
como no caso da pobreza extrema ou das fomes coletivas em que não
há a possibilidade de manifestação de preferência. [...] Em Desenvolvi-
mento como liberdade, Sen afirma que a liberdade está relacionada à
expansão das capacidades, ou seja, à ampliação das possibilidades de
escolha das pessoas para levarem a vida que valorizam.
É justamente diante dessa abordagem, de oferecimento de oportu-
nidades e de escolhas livres, que se coloca o acesso ao ensino, capaz de
tornar as escolhas mais conscientes com o acesso ao conhecimento téc-
nico e crítico. No contexto brasileiro, é possível observar diversos movi-
mentos em defesa da educação de mulheres criados pela sociedade civil
que tentam promover os valores de liberdade e igualdade, principal-
mente em razão da inércia dos poderes estatais em promover políticas
públicas eficientes para tanto.
Assim, se esses projetos tentam preencher o vácuo deixado pela au-
sência de políticas públicas que tratem da matéria, necessário incentivo
à atuação dessas organizações juntamente com a cobrança de uma pos-
tura mais ativa do Estado. Com efeito, há muito a discussão evoluiu do

51. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad.: Laura Teixeira Motta; Rev. Técnica: Ri-
cardo Doniselli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 18.
52. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad.: Laura Teixeira Motta; Rev. Técnica: Ri-
cardo Doniselli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 95.
53. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad.: Laura Teixeira Motta; Rev. Técnica: Ri-
cardo Doniselli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 95.
54. XAVIER, Yanko Marcius de Alencar; CONSANI, Cristina Foroni. Sobre o conceito de liberdade
em Amartya Sen. Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade, Natal, v. 6, n. 1, p.
381-395, jun. 2015, p. 390.

341
Melina Girardi Fachine Vitória Pereira Rosa

ponto em que se considerava o Estado o único responsável pela garantia


dos direitos humanos, visto que a Constituição Alemã de 1949 trouxe
pela primeira vez ideia de eficácia horizontal dos direitos fundamentais
de forma mais desenvolvida55 e foi incorporada ao ordenamento brasi-
leiro com a constitucionalização do direito civil. A partir deste momento,
ocorre o fenômeno que ficou conhecido como a “virada de Copérnico”56,
em que os valores constitucionais ocuparam o seu lugar de centralidade
no ordenamento, acarretando em uma percepção de unidade no sistema
normativo e colocando os particulares como mais do que destinatários
da norma, pois eles passam a ser também quem realiza o sentido dela.
Destarte, os particulares cada vez mais participam da efetivação
desses direitos, deixando de lado uma concepção estadocêntrica, como
bem apresenta Fachin et al57:
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua Opinião Consulti-
va nº 18/03, embora não tenha se manifestado acerca da responsabili-
zação internacional das empresas, referiu-se à “eficácia horizontal dos
direitos humanos”, imputando aos Estados o dever de assegurarem que
os atores privados respeitem os direitos humanos.
Dois projetos se destacam na tentativa de promoção da escolarida-
de feminina no Brasil. O primeiro deles é realizado pela ONU Mulheres,
organização das Nações Unidas dedicada à igualdade de gênero e empo-
deramentos de mulheres. A organização concentra sua atuação para me-
lhoria do ambiente escolar em que discute machismo, violência e mas-
culinidade tóxica em escolas58, tentando tornar o ambiente escolar mais
seguro. Um de seus projetos mais recentes é intitulado “O Valente não

55. SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado: Algumas Considerações Em
Torno Da Vinculação Dos Particulares Aos Direitos Fundamentais. Doutrinas Essenciais de Di-
reitos Humanos, v. 1, p. 383-442, ago. 2011, p. 14.
56. FACHIN, Luiz Edson. Virada de Copérnico: um convite à reflexão sobre o Direito Civil brasilei-
ro contemporâneo. In: _______ (Coord.). Repensando os Fundamentos do Direito Civil Brasileiro
Contemporâneo, p. 317-324, p. 320.
57. FACHIN, Melina Girardi; RIBAS, A. C.; CAVASSIN, L. C.; PUCHTA, A. H.; NOWAK, B.; DOSSIATTI,
D.; KZAN, G. S.; BOLZANI, G. F.; SANTANDER, G. O. O Ponto Cego do Direito Internacional dos
Direitos Humanos: uma superação do paradigma estatocêntrico e a responsabilidade inter-
nacional de empresas violadoras de direitos humanos. Homa Publica: Revista Internacional
de Direitos Humanos e Empresas, v. 1, p. 77-104, 2016, p. 100. Disponível em: <http://ho-
macdhe.com/journal/wp-content/uploads/sites/3/2017/05/4-PONTO-CEGO-DO-DIREITO-
-INTERNACIONAL-DOS-DIREITOS-HUMANOS.pdf> Acesso em: 17 set. 2019.
58. ONU MULHERES. Cartilha: Princípios do empoderamento das mulheres. 2016, p. 12. Dispo-
nível em: <http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/cartilha_ONU_
Mulheres_Nov2017_digital.pdf>. Acesso em: 25 abril 2019.

342
Cap. 13 • O LEGADO DE MALALA NO BRASIL ATUAL: …

é violento”59 e constitui-se por tentativas de “estimular a mudança de


atitudes e comportamentos dos homens, enfatizando a responsabilida-
de que devem assumir na eliminação da violência contra as mulheres e
meninas”60. Da mesma forma, importante referenciar os grupos de Pro-
motoras Legais Populares61, que propõem praticar o empoderamento de
mulheres alheias ao âmbito universitário através de informações sobre
os seus direitos e discussão crítica sobre a construção de uma sociedade
mais justa, com o objetivo de eliminar “barreiras que até então eram
impenetráveis para as mulheres das camadas populares, como o acesso
à justiça e o conhecimento sobre direitos”62.
A preocupação com a escolaridade feminina não é uma exclusivida-
de brasileira. Com efeito, no contexto internacional, também é possível
referenciar movimentos que defendem esta bandeira. Um acontecimen-
to lamentável marcou a discussão na última década na comunidade in-
ternacional, quando a jovem ativista Malala Yousafzai sofreu uma ten-
tativa de homicídio em 2012 em razão da publicação de textos escritos
sob seu pseudônimo masculino “Gul Makai”, em defesa da educação de
meninas no Paquistão63, após a proibição de mulheres em ambientes es-
colares pelo movimento Talibã. Após o atentado, a ativista iniciou uma
cruzada contra a exclusão feminina nas escolas do mundo, que a tornou
a única adolescente a ganhar o Prêmio Nobel da Paz64, dentre outras pre-
miações de direitos humanos.
Em consequência da luta de Malala, a discussão sobre a educação
de meninas floresceu em escala mundial. Em visita recente ao Brasil, a

59. ONU MULHERES. Projeto “O Valente não é violento”, novembro de 2014, p. 1. Disponível em:
<http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/07/valente_inventario.pdf>.
Acesso em: 25 ago. 2019.
60. ONU MULHERES. Projeto “O Valente não é violento”, novembro de 2014, p. 1. Disponível em:
<http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/07/valente_inventario.pdf>.
Acesso em: 25 ago. 2019.
61. ALVES, Thaís da Rosa. Promotoras Legais Populares: uma análise sobre ação coletiva. Diálo-
go, n. 37, p. 21-29, 02 abr. 2018, p. 25. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.18316/dialogo.
v0i37.3786>. Acesso em: 17 set. 2019.
62. ALVES, Thaís da Rosa. Promotoras Legais Populares: uma análise sobre ação coletiva. Diálo-
go, n. 37, p. 21-29, 02 abr. 2018, p. 26. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.18316/dialogo.
v0i37.3786>. Acesso em: 17 set. 2019.
63. YOUSAFZAI, Malala. Eu sou Malala: a história da garota que defendeu o direito à educação e foi
baleada pelo Talibã. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 287.
64. THE NOBEL PRIZE. Discurso de aceitação de Malala, 10 dez. 2014. Disponível em: <https://
www.nobelprize.org/prizes/peace/2014/yousafzai/26074-malala-yousafzai-nobel-lectu-
re-2014/>. Acesso em: 20 abril 2019.

343
Melina Girardi Fachine Vitória Pereira Rosa

ativista noticiou a expansão da Organização sem fins lucrativos Malala


Fund, que já atua em seis outros países, para a América Latina65, anun-
ciando que “existe 1,5 milhão de meninas sem acesso à escola no Brasil.
Quero encontrar meios para mudar isso”66.
Diante desses projetos criados fora da atuação estatal, é possível
observar uma distinção da luta brasileira, que é guiada pela discussão
de classe, ao início do ativismo de Malala, que colocava o foco das dis-
cussões também em questões culturais e religiosas. De qualquer forma,
mesmo que as realidades e as causas iniciais sejam diferentes, pontua-se
que o início de um movimento global pela educação de meninas é muito
frutífero para a construção da dignidade feminina. Ainda, apesar da im-
portância desses movimentos da sociedade civil, a realidade brasileira
precisa do empreendimento de esforços institucionais para efetivar o
acesso ao ensino das mulheres mais vulneráveis. Depreende-se de da-
dos do IBGE de 2017 que as duas maiores razões que motivam a evasão
escolar de mulheres são o emprego e os cuidados com a família67.
Assim, percebe-se a urgência pela construção de mais espaços de
promoção de escolaridade feminina, principalmente que atendam às es-
pecificidades das necessidades de mulheres pobres e periféricas, visto
que a ausência do acesso ao ensino pode resultar na perda da dignidade
e diversos direitos sendo mitigados, como o emprego, a previdência e
a saúde. Dessa forma, em razão da multiplicidade de realidades que as
mulheres brasileiras enfrentam, parece inadequado discutir o direito à
educação da mulher, sem que se especifique o contexto e as vulnerabi-
lidades nele incidentes. Sem isso, seria possível questionar a importân-
cia da defesa da escolaridade feminina por meio de atuação do Estado,
diante de dados demonstrando que as mulheres estão ultrapassando os
homens dentro dos espaços de ensino superior68. Em resposta a isso, é

65. GOMES. Tamires. 5 destaques da palestra que marcou a vinda de Malala ao Brasil. Catraca
Livre, 10 jul. 2018. Disponível em: <https://catracalivre.com.br/educacao/destaques-malala-
-no-brasil/>. Acesso em 29 maio 2019.
66. GOMES. Tamires. 5 destaques da palestra que marcou a vinda de Malala ao Brasil. Catraca
Livre, 10 jul. 2018. Disponível em: <https://catracalivre.com.br/educacao/destaques-malala-
-no-brasil/>. Acesso em 29 maio 2019.
67. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional por amostra de domi-
cílios contínua de 2016, p. 43.
68. MOURA, Caroline Oliveira de. A desigualdade educacional de gênero e seus impactos sobre o
mercado de trabalho: uma apreciação da literatura. 2017. 36 f. Monografia (Especialização) –
Curso de Ciências Econômicas, Setor de Ciências Sociais e Aplicadas, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2017, f. 13.

344
Cap. 13 • O LEGADO DE MALALA NO BRASIL ATUAL: …

imprescindível discutir a experiência das mulheres na educação pública,


além das diferenças no acesso de cada uma delas tendo em conta as suas
especificidades.
Com efeito, a emancipação social a partir da educação não se es-
tende a todas as mulheres69, porque o acesso ao ensino de qualidade
é determinado pelas oportunidades e na camada da população em que
se nasce. Por exemplo, uma pesquisa apontou que apenas um em cada
quatro estudantes da escola particular atingem notas boas no Exame
Nacional do Ensino Médio – ENEM. No entanto, são apenas um em cada
quatrocentos alunos da rede pública que obtém um bom desempenho70.
Por isso, importante ressaltar que basear a igualdade de gênero a
um processo meritocrático é um equívoco. Esse é um ponto a ser critica-
do no feminismo liberal, pois a dignidade feminina não se constrói uni-
camente com mulheres alcançando postos mais altos em uma constru-
ção hierárquica capitalista, isso só resulta em mulheres de classes mais
favorecidas explorando mulheres periféricas, como bem colocado por
Arruza, Bhattacharya e Fraser71:
Completamente compatível com a crescente desigualdade, o feminismo
liberal terceiriza a opressão. Permite que mulheres em postos profissio-
nais-gerenciais façam acontecer precisamente por possibilitar que elas
se apoiem sobre mulheres imigrantes mal remuneradas a quem subcon-
tratam para realizar o papel de cuidadoras e o trabalho doméstico.
Com efeito, apesar do direito apresentar a tendência de abstratizar
o destinatário da norma e se basear no homem médio, isso não é mais
suficiente. Conforme pontuam Piovesan e Fachin72, a sujeita precisa “ser

69. TOMAZONI, Larissa; LOBO, Andrea; DOTTA, Alexandre. A Condição da Mulher no espaço edu-
cacional brasileiro: aspectos históricos sociais da trajetória feminina, p. 19. Disponível em:
<https://www.academia.edu/17352134/A_CONDI%C3%87%C3%83O_DA_MULHER_NO_
ESPA%C3%87O_EDUCACIONAL_BRASILEIRO_ASPECTOS_HIST%C3%93RICOS_SOCIAIS_DA_
TRAJET%C3%93RIA_FEMININA>. Acesso em: 28 mar. 2019.
70. TOLEDO, Fernando Toledo; ARRUDA, Mílibi; PRATA, Pedro. No Enem, 1 a cada 4 alunos de
classe média triunfa. Pobres são 1 a cada 600. Estadão, 18 jan. 2019. Disponível em: <https://
www.estadao.com.br/infograficos/educacao,no-enem-1-a-cada-4-alunos-de-classe-media-
-triunfa-pobres-sao-1-a-cada-600,953041>. Acesso em: 16 set. 2019.
71. ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi. FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um mani-
festo. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 38.
72. PIOVESAN, Flávia. FACHIN, Melina Girardi. Diálogos sobre o feminino: a proteção dos direi-
tos humanos das mulheres no Brasil à luz do impacto do sistema interamericano. In: SILVA,
Christine Oliveira Peter da; BARBOSA, Estefânia Maria de Queiroz; FACHIN, Melina Girardi.
Constitucionalismo Feminista. Salvador: Juspodivm, 2018. Organização de Bruna Nowak,
p. 170.

345
Melina Girardi Fachine Vitória Pereira Rosa

visto na sua particularidade e peculiaridade. Necessário ter uma respos-


ta específica e diferenciada [...]”.
Por fim, cabe referir que por isso o feminismo interseccional pare-
ce a vertente mais abrangente e mais adequada para discutir o direito
à educação de mulheres, porque busca discutir e trabalhar a igualdade
de gênero a partir das multiplicidades de realidades e opressões. Um
estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA,
intitulado “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça”73 revelou que
para mulheres a partir de 15 anos, 4,9% das mulheres brancas eram
analfabetas, enquanto 10,2% das mulheres negras. Ainda, em relação ao
espectro racial, a mesma pesquisa demonstra que a evolução do acesso
à escolaridade é mais lenta para a população negra:
Entre 1995 e 2015, duplica-se a população adulta branca com 12 anos
ou mais de estudo, de 12,5% para 25,9%. No mesmo período, a popula-
ção negra com 12 anos ou mais de estudo passa de inacreditáveis 3,3%
para 12%, um aumento de quase 4 vezes, mas que não esconde que a
população negra chega somente agora ao patamar de vinte anos atrás
da população branca.

A Agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS,


adotada pelos Estados-membros da ONU em 2015, que reconhece
que “a igualdade de gênero está inextricavelmente ligada ao direito à
educação”74. Quando se fala em direito à educação para mulheres, é im-
portante esclarecer de que mulheres está se falando, da realidade de po-
breza, racismo e exploração. Desta forma, a interseccionalidade está no
cerne da luta por educação feminina, porque enquanto uma mulher não
está livre, todas estão presas. Ainda, quando relacionadas à questões
de violência de gênero, a educação pode ser uma aliada na prevenção
e no combate à situações vexatórias e degradantes que as mulheres são
expostas. A partir do acesso à informação e do empoderamento dessas
mulheres, o processo de saída de uma situação abusiva é mais factível e
ambientes de proteção e acolhimento podem ser criados com mais faci-
lidade.

73. BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das Desigualdades de Gênero e
Raça – 1995 a 2015, 2017, p. 2 Disponível: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/
PDFs/170306_retrato_das_desigualdades_de_genero_raca.pdf>. Acesso em: 17 set. 2019.
74. MUNHOZ, Fabíola. Direito à educação com igualdade de gênero. Le Monde Diplomatique, Amé-
rica Latina, 30 nov. 2018. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/direito-a-educacao-
-com-igualdade-de-genero/>. Acesso em: 20 ago. 2019.

346
Cap. 13 • O LEGADO DE MALALA NO BRASIL ATUAL: …

A aproximação das mulheres com o ensino pode inclusive servir


como uma forma de evitar casos de violência. Com efeito, um levanta-
mento realizado pelo Ministério da Saúde em um boletim epidemiológi-
co que analisa a violência sexual revelou que as mulheres eram as víti-
mas em 74,2% dos casos. Da mesma forma, registrou-se que 76,5% dos
casos de violência eram contra crianças e adolescentes, em que 69,2%
ocorreram dentro da residência, com quase 40% dos agressores sendo
da família da menor. A partir desses dados, pode-se afirmar que a maio-
ria das vítimas de violência sexual são meninas menores de idade, den-
tro do ambiente doméstico, com um parente ou outro adulto próximo da
família sendo o agressor.
Assim, é possível discutir a importância do acesso ao ensino, que
pode proporcionar mais segurança para estas jovens, a partir da possi-
bilidade da discussão sobre sexualidade nas escolas de forma séria para
evitar abusos dentro do contexto familiar, ou seja, com informações de
saúde e de forma acessível. Além da educação sexual apresentar a fun-
ção de potencial proteção de menores contra abusos no contexto fami-
liar, o estudo da sexualidade pode reduzir a homofobia, conforme coloca
Prado e Ribeiro:
O não reconhecimento da diversidade sexual durante o planeja-
mento de algumas intervenções educativas expõe parte dos estu-
dantes à exclusão e violência e [...] faz com que a escola legitime
a estigmatização e perseguição de sujeitos que transgridam os
padrões socialmente esperados para os gêneros e sexualidades.
Dessa forma, a discussão de temas de sexualidade no contexto da
educação é uma forma de proteger mulheres, pois combater a lesbofo-
bia e a transfobia também representa uma pauta feminista. Com efeito,
as lutas por igualdade não podem ser vistas apenas dentro do universo
das mulheres cisgênero e heterossexuais. Sendo assim, visto que inicia-
tivas que tentam coibir a educação sexual nas escolas expõe crianças
e adolescentes a riscos e que além da discussão da sexualidade prote-
ger contra abusos, é interessante para discutir os papéis sociais que são
atrelados a cada gênero. A escola pode ser um espaço de mudança da
cultura machista e um espaço que fomenta a igualdade de gênero, como
bem apontou De Castro:
Se a cultura e sociedade é machista, a única forma de desconstruir mas-
culinidades que fazem vítimas entre as mulheres e os homens igual-
mente, é começando pela base, pela educação infantil. Se desde pequena
a criança aprende que há dentro dela princípios masculinos e femininos
(animus e anima – JUNG apud SAFFIOTI, p. 16, 2004), passa a respeitar
melhor o ‘outro’ e não querer se impor ou se submeter.

347
Melina Girardi Fachine Vitória Pereira Rosa

Dessa forma, faz-se necessário, além de políticas que aproximem as


mulheres e meninas do acesso ao ensino, e, que, além disso, que a escola
seja anti machista e promova valores de igualdade e emancipação femi-
nina.

4. CONCLUSÕES
Apesar de dados otimistas sobre a inserção da mulher no ensino
superior no Brasil, em que a hierarquia educacional teria sido invertida,
com mais mulheres do que homens estudando em universidades75, mais
da metade das evasões escolares de mulheres no Brasil ocorrem em ra-
zão de emprego ou cuidados com a família76 e três quartos da população
em idade escolar precisa estudar em escola pública77, ou seja, as mulhe-
res podem até estar ultrapassando os homens em números no ensino
superior, mas ainda existem questões que afastam-nas dos bancos esco-
lares e que não parecem ser muito discutidas nas instituições.
Para tanto, necessário se faz analisar a criação de oportunidades
para além das lentes do feminismo liberal, que acaba por tornar a “li-
berdade e o empoderamento impossíveis para uma ampla maioria das
mulheres. Seu verdadeiro objetivo não é igualdade, mas meritocracia”78,
isto é, visto que o feminismo liberal resulta na exploração de mulheres
sem instrução e acesso à políticas públicas de ensino por outras mulhe-
res, com acesso a oportunidades e recursos, ele deve ser superado para
que alguns problemas sejam sanados.
O constitucionalismo feminista se coloca como uma forma de for-
mular propostas concretas baseadas na subordinação de gênero79. Para
tanto, torna-se imprescindível a criação de políticas públicas necessárias

75. MOURA, Caroline Oliveira de. A desigualdade educacional de gênero e seus impactos sobre o
mercado de trabalho: uma apreciação da literatura. 36 f. Monografia (Especialização) – Curso
de Ciências Econômicas, Setor de Ciências Sociais e Aplicadas, Universidade Federal do Para-
ná, Curitiba, 2017, f. 13.
76. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional por amostra de domi-
cílios contínua de 2016, p. 41.
77. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional por amostra de domi-
cílios contínua de 2016, p. 41.
78. ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi. FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um mani-
festo. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 37.
79. TOMAZONI, Larissa; BARBOZA, Estefânia. O constitucionalismo feminista na América Latina.
III Congresso Internacional de Direito Constitucional & Filosofia Política: Caderno de Resumos.
Curitiba, 2017, p. 330.

348
Cap. 13 • O LEGADO DE MALALA NO BRASIL ATUAL: …

ao cumprimento dos objetivos constitucionais, com educação para todos


e todas. Dessa forma, não basta apenas o acesso à escola. Essa educação
deve ser de qualidade, com inspiração de pensamento crítico e transmis-
são de valores de igualdade, através da discussão do machismo e outras
formas de preconceito para semear um espaço de acolhimento e empatia.
Esse poderia ser o primeiro passo para criação de oportunidades e
acesso a outros direitos. Essas políticas públicas poderiam contribuir em
duas maneiras: aproximando mulheres da escola e tornando o ambien-
te escolar um inspirador de uma cultura de igualdade. Primeiramente,
combater as razões da evasão escolar e oferecer apoio à mulheres para
que continuem a estudar, aumentando as suas oportunidades. Em um
segundo momento, além de melhorar o acesso dessas mulheres, auxiliar
na mudança de uma cultura machista que oprime e subjuga metade da
população brasileira. Porque a discussão destes temas pode auxiliar não
só na mudança das dinâmicas sociais dentro da escola, mas contribuir
para a criação desse espaço de igualdade e respeito fora delas.
Destarte, necessário destacar que a melhora do quadro de escolari-
dade feminina na última década, apesar de positivo, ainda não é suficien-
te. Mostra-se urgente que existam novas formas de promover o acesso
ao ensino por mulheres, e que a escola a ser acessada seja pública, gra-
tuita, de qualidade e incentivadora do pensamento crítico. Assim, se a
igualdade de gênero e a libertação feminina das amarras do patriarcado
são o ponto de chegada, a garantia de uma educação libertadora para
todas e todos é o primeiro passo.
Como nos ensina a inspiradora história de Malala “Uma criança, um
professor, um livro e um lápis podem mudar o mundo”. Se este lápis é
empunhado por uma menina o seu potencial de emancipação faz-se ain-
da maior pela projeção social que gera.

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352
14
A EQUIDADE DE GÊNERO
NO PROGRAMA CONSTITUCIONAL
DAS RELAÇÕES FAMILIARES
Ana Carla Harmatiuk Matos1
e Lígia Ziggiotti de Oliveira2

Sumário: 1. Introdução; 2. Atmosfera constituinte, movimentos sociais


de mulheres e os direitos das famílias; 3. Igualdade de gênero em famílias
conjugais e parentais; 4. A relevância da previsão constitucional da união
estável; 5. A relevância da previsão constitucional da monoparentalidade; 6.
Entidades familiares constitucionalizadas: um movimento de interpretação
contínua; 6. Proteção constitucional da criança, do adolescente e da pessoa
idosa: propostas a partir da igualdade de gênero; 7. Conclusão; 8. Referências
bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO
Há pouco mais de trinta anos, o vigor da Constituição da República
Brasileira oferecia um panorama renovado para as relações de Direito
Civil. As temáticas que lhe diziam respeito, historicamente incluídas na
lógica codificadora, marcaram-se pela racionalidade oitocentista pró-
pria a movimentos jurídicos modernos.

1. Mestra e Doutora em Direito pela UFPR e mestre em Derecho Humano pela Universidad Inter-
nacional de Andalucía. Tutora Diritto na Universidade di Pisa – Italia. Professora na graduação,
mestrado e doutorado em Direito da Universidade Federal do Paraná. Professora Colaborado-
ra do Mestrado profissional em Direito da UNIFOR. Diretora da Região Sul do IBDFAM. Vice-
-Presidente do IBDCivil. Autora de livros e artigos. Conselheira Estadual da OAB-PR. Advogada.
2. Doutora em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná. Mestra em
Direito das Relações Sociais pela mesma instituição. Professora de Direito Civil da Universi-
dade Positivo. Autora de livros e artigos. Membra das Comissões de Estudos sobre Violência
de Gênero e de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-PR. Advogada.

353
Ana Carla Harmatiuk Matos e Lígia Ziggiotti de Oliveira

Como se sabe, o fenômeno de produção de Códigos Civis tratou-se


de uma consagração do ideário burguês e liberal predominante no sé-
culo XIX na conjuntura ocidental. Compreendidos como constituições
da vida privada, estes marcos normativos atravessaram séculos e têm,
ainda, um profundo significado ao imaginário jurídico.
A ressignificação oferecida, contudo, pela conjuntura constitucional
brasileira do final do século XX às relações consideradas, classicamente,
como de Direito Privado deve ser tida como uma relevante oxigenação
dos pilares que têm estruturado o pensamento civilista: contrato, pro-
priedade e família.
O Direito das Famílias contemporâneo, indubitavelmente, recebeu
influxos diretos do texto constitucional, que trouxe, especialmente, en-
tre os seus artigos 226 e 230, as principais contribuições para o campo.
Selecionam-se como principais irradiações de sua tábua de princípios a
pluralidade das entidades familiares reconhecidas como produtoras de
efeitos jurídicos; a quebra das assimetrias discriminatórias por gênero e
por geração no plano normativo formal; e a seleção de vulnerabilidades
no seio dos eixos conjugal e parental para a especial proteção do Estado.
Nesta cadência, o programa constitucional das relações familiares
enfrenta a sexista divisão de poderes impetrada, ao longo do século XX,
no Código Civil Brasileiro entre os cônjuges; retira a centralidade jurí-
dica do matrimônio no ordenamento; posiciona-se, contrariamente, à
hierarquia patriarcal entre pais e filhos, reconhecendo, enfim, estes últi-
mos como sujeitos de direito; e inclui também a população idosa como
vulnerada socialmente.
Tais temáticas têm íntima vinculação com a equidade de gênero, de
modo que o objetivo do presente texto consiste em demonstrar a exten-
são dos elos existentes entre os direitos das mulheres e o atual progra-
ma constitucional das relações familiares.

2. ATMOSFERA CONSTITUINTE, MOVIMENTOS SOCIAIS DE MU-


LHERES E OS DIREITOS DAS FAMÍLIAS
É bastante desconhecida, na dogmática jurídica, a contextualização
dos momentos de positivação de direitos.
Este perfil de abordagem contribui para que se conclua que tal en-
caminhamento normativo se dá naturalmente, o que não corresponde à
complexidade das lutas sociais que encaminham, em geral, a produção
legislativa relacionada às minorias políticas.

354
Cap. 14 • no programa constitucional …

De acordo com Teresa Cristina de Novaes Marques e Hildete Pereira


de Melo, é equivocado atribuir as mudanças jurídicas a tendências mo-
dernizantes da sociedade, minimizando a importância dos atores polí-
ticos que participaram da tensão necessária à superação do status quo
positivado3.
Como observam as autoras, “pensar que os elaboradores das leis
respondem prontamente a mudanças sociais é desconsiderar os proces-
sos políticos como um problema histórico, pois, no mais das vezes, os le-
gisladores resistem a adotar inovações”4. Neste sentido, os movimentos
sociais de lutas por direitos se constituem como importante peça para a
positivação e para a concretização das normas.
O movimento constituinte possui potente condão de demonstrar os
influxos produtivos entre os movimentos sociais e o direito positivado.
Como é sabido, ao representar o fim da ditadura militar no país, a atmos-
fera constituinte significou um marco de participação popular na elabo-
ração do pacto democrático. Houve composição de percepções bastante
plurais dos grupos articulados no país – a ponto de se fazer possível a
crítica de que a amplitude de pontos de vista produziu até mesmo con-
tradições arriscadas para a efetividade do texto constitucional.
No que toca o movimento social de mulheres, afirma-se que houve
notável êxito no processo de influência aos constituintes. Sem dúvidas,
a partir dos anos 80, ocorreu uma efervescência de pensamentos e de
ações feministas no Brasil5. Organizadas por uma frente que reunia os
principais movimentos sociais de mulheres no país – o Conselho Nacio-
nal da Condição da Mulher (CNDM) – elas produziram a chamada Carta
das Mulheres Brasileiras aos Constituintes. Desta última, aproveitaram-
-se 80% das pautas6.

3. MARQUES, Teresa Cristina de Novaes; MELO, Hildete Pereira de. Os direitos civis das mulhe-
res casadas no Brasil entre 1916 e 1962 ou como são feitas as leis. Estudos Feministas, Floria-
nópolis, v. 16, n. 2, Maio/Agosto 2008.
4. MARQUES, Teresa Cristina de Novaes; MELO, Hildete Pereira de. Os direitos civis das mulhe-
res casadas no Brasil entre 1916 e 1962 ou como são feitas as leis. Estudos Feministas, Floria-
nópolis, v. 16, n. 2, Maio/Agosto, 2008, p. 465.
5. JARDIM, Céli Regina. Feminismo, história e poder. Rev. Sociologia Política, Curitiba, v. 18, n. 36,
2010, p. 17.
6. PITANGUY, Jacqueline. Movimento de mulheres e política de gênero no Brasil. Disponível em:
<http://www.cepal.org/mujer/proyectos/gobernabilidad/documentos/jpitanguy.pdf>.
Acesso em: 13 ago. de 2019.

355
Ana Carla Harmatiuk Matos e Lígia Ziggiotti de Oliveira

O documento articulado pelas mulheres à ocasião constituinte, após


anunciar princípios gerais, encontra-se sistematizado pelos seguintes
tópicos que traduziam as suas pautas específicas: reinvindicações quan-
to à família; quanto ao trabalho; quanto à saúde; quando à educação e à
cultura; e quanto à violência.
Relevantes pautas que se imprimiram na Carta das Mulheres Bra-
sileiras aos Constituintes não foram incorporadas ao texto final, como
a reinvindicação pelo direito das mulheres de decidirem sobre os seus
próprios corpos – o que, indubitavelmente, contribuiria para um debate
mais avançado acerca da possibilidade de aborto – ou como a reinvin-
dicação para que o Estado coibisse o abandono de filhos menores pelos
pais – uma previsão que poderia problematizar, com mais ênfase, o dado
de que 5,5 milhões de crianças no Brasil não têm o nome paterno em seu
registro civil, como atestou o Censo Escolar de 20127.
Mesmo assim, considera-se, a este propósito:
Uma das mais significativas vitórias do feminismo brasileiro foi a cria-
ção do Conselho Nacional da Condição da Mulher (CNDM), em 1984,
que, tendo sua secretária com status de ministro, promoveu junto com
importantes grupos – como o Centro Feminista de Estudos e Assessoria
(CFEMEA), de Brasília – uma campanha nacional para a inclusão dos
direitos das mulheres na nova carta constitucional. Do esforço resultou
que a Constituição de 1988 é uma das que mais garante direitos para a
mulher no mundo8.

No campo do direito das famílias, de fato, as transformações se pro-


jetam com profundidade.
Rememore-se que, até 1988, com o texto constitucional, não havia
outra modalidade legislada de se constituir família juridicamente reco-
nhecida que não pelo matrimônio. Para além disso, o Código Civil então
em vigor, de 1916, ainda apontava o marido como detentor do poder
parental em relação aos filhos e encarregado da direção da sociedade
conjugal.
Consequentemente, o reconhecimento da igualdade entre homens e
mulheres estampado no art. 5°, I, da Constituição da República Brasileira

7. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. 12 de outubro: dia da criança. Disponível em: <http://
www.cnj.jus.br/noticias/cnj/85552-12-de-outubro-dia-das-criancas>. Acesso em: 01 set.
2019.
8. JARDIM, Céli Regina. Feminismo, historia e poder. Rev. Sociologia Política, Curitiba, v. 18, n. 36,
2010, p. 17.

356
Cap. 14 • no programa constitucional …

de 1988 não bastaria para o enfrentamento do passado de assimetrias


nos eixos conjugal e parental. Assim é que o art. 226 consagra as irradia-
ções deste princípio, explicitamente, em relação à família, confrontando
um longo período de desigualdade de gênero chancelada pelo Estado.

3. IGUALDADE DE GÊNERO EM FAMÍLIAS CONJUGAIS E PARENTAIS


O conteúdo principiológico extraído da Constituição para a discipli-
na das relações familiares varia entre os autores. Paulo Lôbo seleciona
os seguintes como centrais: dignidade da pessoa humana e solidarieda-
de familiar como princípios fundantes; igualdade, liberdade, afetividade,
convivência familiar, melhor interesse da criança e do adolescente e res-
ponsabilidade como princípios derivados dos dois primeiros9.
O princípio da igualdade se subdivide em três categorias essenciais
para os eixos conjugal e parental. Há projeções quanto à igualdade entre
cônjuges e companheiros em união estável; entre filhos independente-
mente da origem; e entre as múltiplas entidades familiares.
Quanto à igualdade entre homens e mulheres frente à família con-
jugal, é certo que constitui uma ruptura a uma tradição codificada que
vigorou até 1988, transformada a passos lentos ao longo do século XX.
De 1916 até o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121 de 1962), a inca-
pacidade relativa da mulher casada no país significava uma situação de
transmissão, ao marido, de parte de sua autonomia para o exercício de
atos da vida civil.
O texto codificado era, ainda, categórico ao reservar o poder paren-
tal exclusivamente aos homens. As mulheres o adquiriam, em substi-
tuição a eles, em situações como de viuvez, mas, se viessem a se casar
novamente, perderiam todos os direitos sobre a prole. Desde a primeira
metade do século, já se detectavam inquietações das feministas com re-
feridas escolhas legislativas10.
Isso porque, como se percebe, no campo do Direito das Famílias,
adotou-se tom sexista que prevaleceu até o final do século XX. E, nesta ca-
dência, é notável a divisão de águas promovida pelo texto constitucional

9. LÔBO, Paulo. Direito de família e os princípios constitucionais. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha
(Coord.). Tratado de Direito das Famílias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015, p. 108.
10. MARQUES, Teresa Cristina de Novaes; MELO, Hildete Pereira de. Os direitos civis das mulhe-
res casadas no Brasil entre 1916 e 1962 ou como são feitas as leis. Estudos Feministas, Floria-
nópolis, v. 16, n. 2, Maio/Agosto 2008.

357
Ana Carla Harmatiuk Matos e Lígia Ziggiotti de Oliveira

ao contrariar o texto codificado, afirmando a equivalência de direitos e


de deveres em sociedades conjugais.
O art. 226, em seu parágrafo 8°, ainda determina a proteção do Esta-
do à família na pessoa de cada um de seus membros, coibindo a violên-
cia em suas relações. Este dispositivo expõe, ao menos, dois desdobra-
mentos relevantes. O primeiro consiste em superar a ideia de entidade
familiar como organismo autônomo, que deve ser preservado unido e
íntegro a qualquer custo, dado que anuncia a individualidade de quem
forma o núcleo como relevante para a atuação estatal. Além disso, a coi-
bição de violência intrafamiliar dialoga com a experiência da violência
doméstica, que segue como estatística preocupante no país11.
Para o campo das relações parentais, a igualdade se projeta na proi-
bição de discriminação entre os filhos, independentemente de sua ori-
gem, nos termos do art. 227, parágrafo 6°, da Constituição. Este posicio-
namento interrompe um persistente passado de hierarquização filial em
que se dividia a prole entre filhos legítimos e ilegítimos.
Nesta segunda categoria, havia a possibilidade, no Código Civil, de
legitimação de crianças e de adolescentes cujos genitores se casassem.
Com a proibição do divórcio e do incesto, em casos de relacionamentos
extraconjugais ou incestuosos, não havia chances de plenitude de direi-
tos aos filhos, os quais se consideravam, por sua vez, espúrios.
Quanto àqueles provenientes da adoção, é preciso registrar a odiosa
diferenciação procedida em relação aos direitos hereditários, que his-
toricamente se percebiam como, de preferência, destinados à prole de
origem biológica. Ademais, a modalidade de adoção cartorial prevaleceu
no país até o Código de Menores de 1979, demonstrando a fragilidade
jurídica do vínculo em comparação ao parentesco genético.
Além da igualdade de gênero e entre os filhos, há compreensão con-
solidada no sentido de que deve tal princípio se considerar incidente
na apreciação das consequências jurídicas produzidas pelas múltiplas

11. “De acordo com o Mapa da Violência 2012: Homicídios de Mulheres no Brasil (Cebela/Flac-
so, 2012), duas em cada três pessoas atendidas no SUS em razão de violência doméstica ou
sexual são mulheres; e em 51,6% dos atendimentos foi registrada reincidência no exercício
da violência contra a mulher. O SUS atendeu mais de 70 mil mulheres vítimas de violência em
2011 – 71,8% dos casos ocorreram no ambiente doméstico”. (AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO.
Dossiê Violência contra as Mulheres. Disponível em: <https://dossies.agenciapatriciagalvao.
org.br/violencia/violencias/violencia-domestica-e-familiar-contra-as-mulheres/#dados-na-
cionais>. Acesso em: 03 set. de 2019).

358
Cap. 14 • no programa constitucional …

entidades familiares12. Como se passa a expor, foi com o texto constitu-


cional que se abriu o rol de conjugalidades para além do casamento, o
que significou uma profunda transformação do campo.

4. A RELEVÂNCIA DA PREVISÃO CONSTITUCIONAL DA UNIÃO


ESTÁVEL
O reconhecimento legal da união estável no país se deu de maneira
inédita pelo texto constitucional, em 1988, e representa, indubitavel-
mente, uma conquista de direitos em favor de companheiras. Trata-se
de uma ruptura com o modelo do Código Civil de 1916, o qual reconhe-
cia como única conjugalidade legítima para o Estado, e, portanto, apta à
produção de efeitos jurídicos, o casamento.
Embora não haja referência a gênero na norma, é certo que a ausên-
cia de previsão jurídica neste sentido conduzia a um contexto prejudicial
às mulheres, que se encontravam – e ainda se encontram – em frequente
posição de assimetria econômica em relação aos seus companheiros.
Assim, em uma conjuntura comum, era plausível que uma compa-
nheira em união estável – chamada, por décadas e pejorativamente, de
concubina – que tivesse convivido maritalmente por anos com um ho-
mem, ao se separar dele, estivesse em uma franca situação de misera-
bilidade, em face da inscrição de bens valiosos apenas em nome do seu
ex-companheiro, sem qualquer direito de partilha ou direito sucessório
decorrente de seu eventual falecimento.
Em acréscimo, os eventuais filhos provenientes desta relação, até a
Lei 883 de 1949, tinham dificuldade de registro em nome paterno, em
função de se considerarem ilegítimas certas sortes de relação sexual. Em
aplicação à conhecida máxima de que a responsabilidade materna era
óbvia, dado que mater sempre certa est; pater nunquam13, havia um estri-
dente incentivo estatal para a irresponsabilidade masculina em relação
aos filhos chamados de ilegítimos.
Nesta cadência, houve importantes avanços jurisprudenciais que
precederam a novidade da Constituição. Em 1964, o Supremo Tribunal
Federal, recolhendo entendimentos consolidados entre as décadas de

12. LÔBO, Paulo. Direito de família e os princípios constitucionais. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha
(Coord.). Tratado de Direito das Famílias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015, p. 114-115.
13. Em tradução do latim: “Sempre há certeza sobre quem é a mãe; quanto ao pai, nunca”.

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Ana Carla Harmatiuk Matos e Lígia Ziggiotti de Oliveira

40 e 60 nos tribunais pátrios, editou a Súmula 380, segundo a qual “com-


provada a existência da sociedade de fato entre os concubinos é cabível
a sua dissolução conjugal, com a partilha do patrimônio adquirido pelo
esforço comum”.
Embora relevante e progressista, se considerada a conjuntura em
que se concebeu, a súmula não resolvia as questões relacionadas à inse-
gurança jurídica abatida sobre as companheiras em união estável. Isso
porque se reproduziam óbices relevantes à garantia de seus direitos no
campo familiar, como a oscilação jurisprudencial quanto ao reconheci-
mento de trabalhos domésticos como esforço comum para a aquisição
de patrimônio14.
Diante da eventual improcedência do pedido de partilha do patri-
mônio adquirido pelo esforço comum, mediante o argumento de que
trabalho doméstico não é atividade lucrativa, tornou-se também fre-
quente intentar ação indenizatória por serviços prestados, incluindo-se,
por vezes, nesta insígnia, mesmo os chamados “serviços sexuais” ofere-
cidos pela concubina. Resta claro o potencial ofensivo destas pretensões
às experiências das companheiras em união estável no país.
O advento do art. 226, parágrafo 3°, do texto constitucional, portan-
to, impacta positivamente no ordenamento jurídico brasileiro ao conce-
ber, perante o Estado, a união estável como entidade familiar.
Este passo foi crucial para que a legislação infraconstitucional se
articulasse, nos anos seguintes, para estabelecer os critérios de reco-
nhecimento da união estável, bem como para se delinearem todos os
seus efeitos. A Lei 8.971 de 1994 e a Lei 9.278 de 1996 foram iniciativas
relevantes da década seguinte, e balizaram tal entidade familiar até a
promulgação do Código Civil de 2002, que incorporou, com maior refi-
namento, o conteúdo jurídico da união estável que até hoje vigora.
Tratou-se, pois, de um caminho relevante à igualdade de gênero
aberto pelo programa constitucional, o qual não significava consenso en-
tre os estudiosos de Direito das Famílias. Prova disso foi a indignação que
causou a medida à parte da comunidade de juristas mais conservadora.
Saulo Ramos, ex-Ministro da Justiça do governo José Sarney,
por exemplo, publicou, em março de 1995, duras críticas à primeira

14. MATOS, Ana Carla Harmatiuk. As famílias não fundadas no casamento e a condição feminina.
Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 47.

360
Cap. 14 • no programa constitucional …

legislação infraconstitucional dedicada à união estável no país. De acor-


do com o que ele previu, amargamente, em artigo denominado “A Lei
Piranha ou fim do casamento à moda antiga” na Folha de S. Paulo, “essa
leizinha imoral logo, logo será invocada até pelos companheiros(as) do
mesmo sexo”15.
Em verdade, foi o próprio art. 226, parágrafo 3°, do texto consti-
tucional, que serviu a este propósito anos mais tarde, em 2011, com o
unânime e celebrado reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal,
dos efeitos jurídicos de uniões estáveis estabelecidas entre pessoas do
mesmo sexo.

5. A RELEVÂNCIA DA PREVISÃO CONSTITUCIONAL DA MONOPA-


RENTALIDADE
Além do matrimônio e da união estável, o art. 226, parágrafo 4°,
da Constituição reconhece como entidade familiar aquela formada por
qualquer dos pais e seus descendentes. Esta modalidade a doutrina inti-
tula como monoparentalidade, e o seu ingresso à lógica jurídica formal
consolida um adimplemento histórico com a relação que tantas mulhe-
res brasileiras sem cônjuges estabelecem com os seus filhos.
Um primeiro aspecto que permite tal afirmação é a vinculação for-
çosa que o ordenamento jurídico brasileiro fixou entre as genitoras e a
prole considerada ilegítima pelo Código Civil de 1916. Nesta perspecti-
va, a hierarquização entre crianças e de adolescentes nascidos do víncu-
lo matrimonial e nascidos de relações não-matrimoniais produzia um
corte de direitos quanto ao reconhecimento paterno, impedindo a res-
ponsabilização dos homens quanto aos filhos concebidos em vínculos
extraconjugais ou incestuosos. A primeira versão codificada estampava,
junto ao art. 358, que referida prole, denominada espúria, não poderia
ser reconhecida, remanescendo, pois, como relacionada apenas à geni-
tora.
Outro aspecto que destaca a relevância da previsão corresponde
ao imaginário social discriminatório construído em torno da chamada
“mãe solteira”.
Como observa Claudia Fonseca:

15. RAMOS, Saulo. A “Lei Piranha” ou o fim do casamento à moda antiga. Folha de S. Paulo, 21 mar.
1995. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/3/21/opiniao/9.html>.
Acesso em: 01 set. 2019.

361
Ana Carla Harmatiuk Matos e Lígia Ziggiotti de Oliveira

Há uma tendência, nas análises tradicionais, de espelhar o sistema vi-


toriano de classificação. Dividindo as mulheres em santas ou demônios,
pacatas donas de casa ou prostitutas, os pesquisadores simplesmente
não enxergavam dinâmicas que driblam esses dois polos. Da mesma for-
ma, cientistas sociais se agarraram durante décadas à crença na norma-
lidade – estatística, natural, moral – da família conjugal. Hoje, vemos que
essa crença, além de ter reforçado a estigmatização das famílias pobres
– vistas inevitavelmente como desorganizadas por não corresponderem
ao modelo “normal” –, impediu gerações de pesquisadores de atentar
para a diversidade de dinâmicas familiares no Brasil16.
Mesmo atualmente, incentiva-se uma ordem grave de preconceitos
contra as famílias monoparentais femininas. Exemplo disso é a mani-
festação violenta de lideranças governamentais, em prestigiados car-
gos políticos, no sentido de que tais realidades configuram “fábricas de
desajustados”17.
Em um campo diametralmente oposto, em outros espaços, há uma
celebração quanto ao crescimento da chefia de entidades familiares por
mulheres. Trata-se de um arranjo que, afinal, apresentou crescimento
relevante de 11,5% em 1980 para 15,3% em 2010, ao passo que o arran-
jo monoparental masculino apresentou crescimento ínfimo de 0,8% em
1980 para 2,2% em 201018.
Contudo, este dado não pode ser lido de modo acrítico, sem a con-
sideração de que em 2005, o modelo familiar brasileiro que mais sofria
com a pobreza compreendia, precisamente, as famílias monoparentais
compostas por mães sem cônjuges19. Consequentemente, devem haver
investimentos sérios para a promoção dos direitos das mulheres em re-
feridas circunstâncias, principais cuidadoras de seus filhos.
As razões para esta vulnerabilidade especialmente agravada or-
bitam em dificuldades de conciliação entre responsabilidade paren-
tal e profissional; sobrecarga de demandas afetivas e financeiras; e

16. FONSECA, Claudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORE, Mary del (Org.). História das mulhe-
res no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 513.
17. GIELOW, Igor. Casa só com “mãe e avó” é fábrica de desajustados para tráfico, diz Mourão. Folha
de S. Paulo, 17 set. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/
casa-so-com-mae-e-avo-e-fabrica-de-desajustados-para-trafico-diz-mourao.shtml>. Acesso
em: 28 ago. 2019.
18. CAVENAGHI, Suzana. Mulheres chefes de família no Brasil: avanços e desafios. Rio de Janeiro:
ENS-CPES, 2018, p. 30.
19. SORJ, Bila; GAMA, Andrea. Family policies in Brazil. In: ROBILA, Mihaela (Ed.). Handbook of
family policies around the globe. New York: Springer, 2014, p. 462.

362
Cap. 14 • no programa constitucional …

centralidade da relação materno-filial, no cotidiano destas mulheres,


entre as suas experiências sociais cotidianas20. Sendo precarizados os
trabalhos que constituem a principal fonte de renda delas no país21, é
de se considerar a ausência de garantias como licença-maternidade e
benefícios previdenciários como reveladores da complexidade de tais
entidades. O segmento de mães sem cônjuges lidera o ranking de infor-
malidade laboral22.
Considere-se, ademais, que até 2013, apenas 27,9% das crianças
frequentavam creches23. Embora constitua um direito constitucional-
mente assegurado, a falta de vagas nesses estabelecimentos se trata de
mais um caso de ausência de efetivação concreta da previsão formal.
Tais contornos demonstram que a previsão da família monopa-
rental em sede constitucional é positiva e responsiva às demandas de
mães estigmatizadas pelo Estado, pelo mercado e pela sociedade civil.
Por outro lado, a omissão, em sede de legislação infraconstitucional, de
regulamentação precisa dos direitos provenientes desta entidade pode
ser apontada como uma falha do ordenamento jurídico contemporâneo,
como sustenta Maria Berenice Dias24.
Diante dos atuais recuos no campo das políticas públicas, como con-
sequência de um lamentável fortalecimento do modelo estatal neolibe-
ral, entende-se como cada vez mais necessário o investimento doutriná-
rio em prol do incremento de garantias às monoparentalidades femini-
nas.
Ilustrativamente, é desejável o reconhecimento de efeitos patrimo-
niais a grupos de mulheres sem cônjuge que convivem para o auxílio

20. COSTA, Florença Ávila de Oliveira; MARRA, Marlene Magnabosco. Famílias brasileiras chefia-
das por mulheres pobres e monoparentalidade feminina: risco e proteção. Revista Brasileira
de Psicodrama, São Paulo, v. 21, 2013, p. 141-153.
21. Aliás, o trabalho doméstico remunerado constitui a principal fonte de ocupação das mulheres
brasileiras, dado que 17% das economicamente ativas se encontram nesta categoria, e, em
termos absolutos, o país é o que apresenta o maior número de empregadas domésticas em
todo o mundo, convergindo, em seus corpos, marcadores não só de gênero, mas raciais e de
classe social (SORJ, Bila. Socialização do cuidado e desigualdades sociais. Tempo Social, v. 26,
n. 1, 2014, p. 123-128).
22. SORJ; Bila; FONTES, Adriana; MACHADO, Danielle Carusi. Políticas e práticas de conciliação
entre família e trabalho no Brasil. Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, 2007, p. 575.
23. Disponível em: <http://www.observatoriodopne.org.br/metas-pne/1-educacao-infantil>.
Acesso em: 28 ago. 2019.
24. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2010, p. 48.

363
Ana Carla Harmatiuk Matos e Lígia Ziggiotti de Oliveira

mútuo com a criação de crianças e de adolescentes a fim de permanece-


rem inseridas, com maior qualidade, no mercado de trabalho.
A esta possibilidade se pode aplicar o entendimento acerca das cha-
madas famílias solidárias25, a qual não exige vínculo conjugal ou paren-
tal entre os membros, bastando, para a sua caracterização, que cumpram
uma função de assistência moral e material entre os seus membros, os
quais, abatidos por vulnerabilidades sociais, unem-se com propósitos
familiares para melhor viverem.
Tal formato familiar não está inscrito no texto constitucional, tam-
pouco codificado. Mesmo assim, como é sabido, a ausência de previsão
expressa não impede o surgimento de consequências jurídicas a deter-
minados vínculos, porque a realidade vivida pode se tornar força cons-
titutiva de fatos relevantes para o direito. Nesta cadência, matrimônio,
união estável e monoparentalidade são apenas exemplos de como se
pode constituir família.

6. ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS: UM MOVI-


MENTO DE INTERPRETAÇÃO CONTÍNUA
O fenômeno da mutação histórica constitucional permite que os in-
fluxos contextuais promovam importantes sentidos acerca do texto ins-
crito em nosso pacto democrático ao final da década de 80. De fato, o art.
226 da Carta Magna tem mobilizado constantes dúvidas e respostas por
parte da doutrina e da jurisprudência.
Para se observarem estes embates, pode-se exemplificar a conside-
ração acima. O art. 6° de tal dispositivo, inserido pela Emenda Consti-
tucional 66 de 2010, trouxe uma singela previsão de que “o casamento
civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. Com poucas palavras, entende-se
que a inclusão se abateu profundamente sobre a legislação relacionada
ao divórcio em vigor, tornando o divórcio um direito potestativo no país.
Datada de 1977, a Lei 6.515, cuja lógica impactou na redação do
Código Civil de 2002, trazia prazos e causas para o acesso facilitado ao
divórcio, articulando, para tanto, categorias como “separação de direito”
e “separação de fato”, as quais se tornaram obsoletas na última década.

25. MATOS, Ana Carla Harmatiuk. “Novas” Entidades Familiares e seus Efeitos Jurídicos. In: PE-
REIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e Solidariedade: Teoria e Prática do Direito de Fa-
mília. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 47.

364
Cap. 14 • no programa constitucional …

Com efeito, elas constituíam entraves para a liberdade de destituição do


vínculo conjugal que vigora atualmente.
Mesmo assim, parte da doutrina se insurge contra a exclusão de tais
categorias, e segue defendendo que devem permanecer ativas na lógica
do Direito das Famílias.
O parágrafo 3° deste dispositivo também foi constante foco de con-
flito ao prever que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a
união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, deven-
do a lei facilitar sua conversão em casamento”.
Uma interpretação proveniente da leitura deste trecho se conduzia
a apontar um favoritismo constitucional pelo modelo de casamento em
detrimento da união estável, por se entender que a facilitação pressupõe
um estímulo do Estado em favor do modelo matrimonial.
Tampouco tal entendimento foi acatado pelo Supremo Tribunal Fe-
deral, o qual considerou, majoritariamente, que a hierarquização discri-
minatória entre tais entidades conjugais não está encampada pela lógica
constitucional. Isso se deu em julgamento que reconheceu a inconstitu-
cionalidade da distinção de efeitos sucessórios em casamento e união
estável até então promovido pelo art. 1.790 do Código Civil26.
Como expôs à ocasião o Ministro Luís Roberto Barroso, “facilitar a
conversão nada mais é do que oferecer instrumentos para que, no exercí-
cio da liberdade individual, os companheiros possam migrar de um mo-
delo de conjugalidade de fato – união estável – para um modelo formal
– casamento”, o que não abonaria uma diferenciação discriminatória27.
De igual modo, a Corte afirmou, quando reconheceu os efeitos ju-
rídicos das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, que o rol de
entidades familiares expressas no art. 226 do texto constitucional é me-
ramente exemplificativo, e não taxativo28.
Como Procurador-Geral do Estado do Rio de Janeiro, anos antes,
Luís Roberto Barroso participara, em sustentação oral, deste julgamento,

26. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 878694. Rel. Min. Luís Roberto
Barroso, julgado em 10 de maio de 2017; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extra-
ordinário 646721. Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 10 de maio de 2017.
27. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 878694. Rel. Min. Luís Roberto
Barroso, julgado em 10 de maio de 2017.
28. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental 132. Rel. Min. Ayres Britto, julgado em 05 de maio
de 2011.

365
Ana Carla Harmatiuk Matos e Lígia Ziggiotti de Oliveira

quando defendeu que o excerto “entre o homem e a mulher”, do art. 226,


parágrafo 3°, deveria ser interpretado como uma medida inclusiva da
população feminina à norma positivada, e não como uma escolha exclu-
dente das relações homossexuais29.
Como se pode auferir, a oxigenação da norma positivada no campo
familiarista tem se mostrado relevante para os direitos das mulheres.
Em casos de relacionamentos heterossexuais, negar consequências
de meação de bens, de alimentos conjugais e de sucessões significa, no
mais das vezes, contribuir com a preservação de assimetrias econômi-
cas informadas em razão de gênero.
Nesta cadência, a discussão estabelecida em sedes doutrinária e
jurisprudencial quanto a modelos ainda instáveis no universo jurídico
deve se acompanhar deste olhar crítico. A título exemplificativo, recha-
çar o reconhecimento de famílias simultâneas30 pode ter significados
concretos mais sensíveis às vivências femininas, em razão das ainda
constantes renúncias nos campos pessoal e laboral que procedem em
favor de seus companheiros e de sua prole comum.
Como afirmado em outra ocasião, “parecem ser os tempos presen-
tes propícios para, ao invés de insistir em traços da conjugalidade tradi-
cional, enfrentar criticamente a clandestinidade histórica da figura da
‘outra’, a amante, nas relações familiares”31.
Trata-se de estigma que impede, enfim, uma apreciação mais com-
plexa e conectada aos valores constitucionais, o que se espera ocorrer
em breve, em função do reconhecimento, por parte do Supremo Tri-
bunal Federal, da repercussão geral da matéria por meio do Tema 526,
versando sobre “a possibilidade de concubinato de longa duração gerar
efeitos previdenciários”, e que deve trazer novidades ao campo do Direi-
to das Famílias.

29. BARROSO, Luís Roberto. Sustentação Oral na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e Ar-
guição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132. Disponível em: <https://www.you-
tube.com/watch?v=5_CHQPes_ls>. Acesso em: 02 set. 2019.
30. As famílias simultâneas ou paralelas são aquelas em que um membro em comum se relaciona
conjugalmente com dois ou mais núcleos familiares de maneira similar à união estável. A dú-
vida relacionada à possibilidade de seu reconhecimento reside na valoração da monogamia
pelo direito.
31. MATOS, Ana Carla Harmatiuk; DE OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti. Responsabilidade civil e relacio-
namento extraconjugal. In: MADALENO, Rolf; BARBOSA, Eduardo (Org.). Responsabilidade
Civil no Direito de Família. São Paulo: Atlas, 2015, p. 11.

366
Cap. 14 • no programa constitucional …

6. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA CRIANÇA, DO ADOLESCENTE


E DA PESSOA IDOSA: PROPOSTAS A PARTIR DA IGUALDADE DE
GÊNERO
Incluir personagens vulneradas socialmente como focos de prote-
ção especial do Estado significou um encaminhamento constitucional
relevante para os sujeitos entendidos como destinatários das normas
familiaristas. Com efeito, o homem, branco, adulto, proprietário inspirou
a lógica codificada, de modo que incorporar os público infanto-juvenil e
idoso à letra normativa produziu um novo olhar acerca da temática.
Sobre infância e juventude, é correto observar que as décadas de
80 e de 90 consolidam o ápice dos movimentos sociais por sua defesa
no Brasil. Significam grupos historicamente precarizados pelas lentes
jurídicas, sobre os quais se projetou a seguinte divisão: a da menoridade
irregular, chamada de delinquente e de abandonada, para a qual se dire-
cionavam as forças estatais, com a lógica institucional; e a do restante de
crianças e de adolescentes do país, que eram considerados problemas
de seus próprios pais e não do direito.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecido em 1990, se-
gue esta sequência temporal, demonstrando a potência dos microssis-
temas a partir de tal década no país. Também o Estatuto do Idoso, em
vigor desde 2003, exemplifica referido movimento.
O Projeto de Lei 72 de 2018, que tem avançado na tramitação, altera
o nome deste marco normativo para “Estatuto da Pessoa Idosa”. O autor
da iniciativa, Paulo Paim (PT-RS), justificou-a a partir do peso demográfico
das mulheres idosas no Brasil, que são maioria e configuram uma poten-
cial “dupla vulnerabilidade” marcada pelos critérios de gênero e etário32.
A percepção das múltiplas vulnerabilidades parece entoar uma ten-
dência positiva para a hermenêutica constitucional futura. Não apenas a
incidência de múltiplos fatores de precarização social, como no caso de
mulheres idosas acima mencionado, é capaz de potencializar esta críti-
ca, como, também, a própria conexão cotidiana que o cuidado de grupos
vulnerados estabelece com a questão de gênero.
Percebe-se, de modo amplo, o fenômeno da feminização dos cuida-
dos de grupos vulnerados, o que produz relevantes desigualdades:

32. BRASIL. Agência Senado. Estatuto do Idoso pode passar a se chamar Estatuto da Pessoa Idosa, 25
abril 2019. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/04/25/
estatuto-do-idoso-pode-passar-a-se-chamar-estatuto-da-pessoa-idosa>. Acesso em: 03 set.
2019.

367
Ana Carla Harmatiuk Matos e Lígia Ziggiotti de Oliveira

De fato, o exercício assimétrico do cuidado, como tem sido percebido,


sepulta as promessas de igualdade substancial em sociedade, e, em
acréscimo, não é a melhor versão de cuidado a que se pode aportar.
Decorrem daí pelo menos dois nefastos efeitos: ignora-se a posição de
quem cuida, incrementando vulnerabilidades, e se oferece uma prote-
ção insatisfatória a quem é pretensamente cuidada33.
Nesta cadência, para além de se considerar a vulnerabilidade ato-
mizada de tais indivíduos aos quais se dedicaram microssistemas espe-
cíficos, parece uma trajetória prospectiva latente a democratização dos
cuidados de crianças, adolescentes e pessoas idosas, cujas rotinas se
vinculam, normalmente, ao engajamento das mulheres que compõem os
núcleos familiares em que convivem estes sujeitos.
A linha de pensamento crítica à rede de cuidados assimetricamente
tecida no seio social possibilita que variados institutos do Direito das
Famílias recepcionem compreensões renovadas.
A noção de alimentos adimplidos pelo genitor em que se fixa a resi-
dência da criança ou do adolescente, mesmo quando presente a guarda
compartilhada, deve ser informada pelo tempo de dedicação de cada um
de seus responsáveis pela rotina de cuidado. A modalidade de convivên-
cia paterno-filial deve envolver compromissos constantes com ativida-
des médicas, de alimentação, de higiene e educacionais para se efetivar
um real equilíbrio parental. Temas como alienação parental e abandono
afetivo devem ser lidos pelas lentes de distribuição desigual do cuidado
em família, o que pode dinamizar as soluções em juízo.

7. CONCLUSÃO
Conforme Luiz Edson Fachin, o texto constitucional tem um sentido
prospectivo que direciona a sua potência para as realidades do porvir
– as que ainda não realizaram o conteúdo das lógicas formal e constitu-
cional do ordenamento jurídico contemporâneo34. Para acionarem a sua
potência emancipatória, parece necessário o pensamento crítico acer-
ca do programa constitucional dedicado às relações familiares quanto à
equidade de gênero.

33. DE OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti. Cuidado como valor jurídico: críticas aos direitos da infância a
partir do feminismo. 143 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná,
2019, f. 120-121.
34. FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fins. Rio de Janeiro: Renovar,
2015, p. 89.

368
Cap. 14 • no programa constitucional …

Como se percebe, as últimas décadas significaram um caminho no-


tável de concretização formal de direitos sensíveis ao tema. O movimen-
to de mulheres contribuiu de maneira decisiva para a democratização
normativa dos eixos conjugal e parental na atmosfera constituinte.
A doutrina e a jurisprudência, desde então, retomam a literalidade
positivada, oxigenando-a através da lógica dos princípios, e oferecendo
significantes sólidos aos significados estampados ao final do século XX
na conjuntura de abertura política do país.
A contemporaneidade, por sua vez, invoca novos desafios à com-
preensão jurídica das relações familiares. Trata-se de uma conjuntura
nebulosa, na qual o próprio vigor da jovem Constituição se vê atingido
por reações antidemocráticas. Por certo, estes influxos disputam as con-
quistas recentes quanto à igualdade de gênero, o que resulta em riscos
que devem inspirar o pensamento crítico, a fim de se preservarem as
recentes conquistas e se avançar rumo a novas realizações dos direitos
humanos e fundamentais.

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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rélio, julgado em 10 de maio de 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 878694. Rel. Min. Luís Ro-
berto Barroso, julgado em 10 de maio de 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 878694. Rel. Min. Luís Ro-
berto Barroso, julgado em 10 de maio de 2017.

369
Ana Carla Harmatiuk Matos e Lígia Ziggiotti de Oliveira

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370
15
CIDADÃS DE SEGUNDA CLASSE:
AS LUTAS POR RECONHECIMENTO
DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS
NO BRASIL
Roberta Camineiro Baggio1
e Sarah F. M. Weimer2

Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. Formações constitucionais a serviço


da (manutenção da) ordem na América Latina; 2.1. Os (des)caminhos do
constitucionalismo no Brasil: breves notas; 2.2. A narrativa constitucional de
1988: sobre sujeitos e cidadãos; 3. A luta pelo direito a ter direitos; 3.1. Serviço
doméstico: que cara tem?; 3.2. Os percursos legislativos; 4. Integração social
e igualdade legislativa: por que as lutas por reconhecimento devem continuar
para as trabalhadoras domésticas?; 4.1. A Sociologia do Reconhecimento de
Axel Honneth; 4.2. O (não) reconhecimento das trabalhadoras domésticas sob
o prisma da solidariedade; 5. Considerações finais; 6. Referências.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Não é difícil imaginar que o serviço doméstico no Brasil tenha co-
meçado com a chegada dos colonizadores portugueses, quando as ín-
dias e, posteriormente, as africanas – sequestradas e traficadas para o
país – eram escravizadas e obrigadas a trabalhar nas grandes casas dos
senhores de engenho. E, que mesmo após a abolição da escravidão, o
trabalho doméstico segue como uma das principais ocupações das mu-
lheres, especialmente as negras.

1. Professora associada dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da


UFRGS,
2. Mestra em Direito pela UFRGS, mestranda em Ciência Política pela UFRGS, advogada.

371
Roberta Camineiro Baggioe Sarah F. M. Weimer

Possivelmente em razão da herança escravocrata somada à flagrante


desigualdade social, o Brasil dispõe da maior população de empregadas
doméstica do mundo, com cerca de 7 milhões de pessoas no setor3. Pas-
sados 70 anos da criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
que cuidou de regulamentar as relações de trabalho e 25 anos da pro-
mulgação da Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 5º, inciso I,
afirma que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos
termos desta Constituição”, salta aos olhos que somente com a recente
aprovação da popularmente conhecida como PEC das domésticas (PEC
n. 66/2012; Emenda à Constituição n. 72/2013), e da Lei Complemen-
tar n. 150, em 2015, as trabalhadoras desta categoria passaram a ter os
mesmos direitos dos demais.
Contradições como essas remontam aos processos de (des)integra-
ção social que forjaram historicamente a base das sociedades latino-
-americanas, inclusive a brasileira, e, que, por isso, imprimem efeitos
até hoje. Os indícios de uma sociedade hierarquizada que não promove
processos de integração social surgem quando parcela da sociedade não
se vê reconhecida nem em sua e nem por sua comunidade de valores e,
tampouco está contemplada pela previsão constitucional de igualdade,
restando à margem do status de sujeito de direito.
O objetivo do artigo consiste em refletir sobre o atraso na equipa-
ração legal do trabalho doméstico remunerado sob a óptica da (des)va-
lorização atribuída à categoria – empregada e mulher –, perpassando
a história constitucional brasileira e os percursos da legislação que as
contempla a partir da sociologia do reconhecimento, em especial a teo-
ria desenvolvida por Axel Honneth.
Propõe-se, portanto, voltar o olhar para os lapsos temporais entre
as legislações de equiparação de direitos e, também, para a hierarqui-
zada estrutura de classes na América Latina, impondo a reflexão acerca
da limitação da dignidade a determinadas trabalhadoras, e, ainda, sobre
quais homens e mulheres têm direito à igualdade, colocando em debate
o lugar que ocupam as empregadas domésticas em nossa gradação de
reconhecimento intersubjetivo e social.
O artigo está dividido em quatro partes. Após essa apresentação pre-
liminar do tema e dos objetivos da pesquisa, o primeiro tópico cuidará da
construção dos modelos institucionais na América Latina, evidenciando

3. Para mais informações: BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Retrato das
desigualdades de gênero e raça. Disponível em <http://www.ipea.gov.br/retrato/apresenta-
cao.html >. Acesso em: 10 ago. 2019.

372
Cap. 15 • Cidadãs de segunda classe: …

as distorções dos processos constitucionais que a permeiam, conferindo


especial ênfase para a estrutura brasileira. Nesse viés, tem-se a constru-
ção do brasileiro enquanto sujeito de direitos, da cidadania regulada e
de como o desenvolvimento desta serviu como mecanismo instituciona-
lizado de reprodução de desigualdades.
Na sequência, serão apresentadas algumas reflexões acerca do
modelo de divisão social do trabalho, em especial por meio do viés de
gênero. Logo, tratará de reconstruir a trajetória legal da proposta que
resultou na aprovação da PEC das domésticas, tendo como técnica de
pesquisa a documentação indireta em fontes primárias, tais como legis-
lações e documentos em geral e também fontes secundárias bibliográfi-
cas, que embasarão a busca para conhecer as disputas e narrativas que
a circundaram.
Na última parte, serão desenvolvidas algumas reflexões advindas
da Teoria Crítica, em especial da Sociologia do Reconhecimento de Axel
Honneth, com vistas a qualificar o debate acerca das lutas e dos conflitos
que permeiam as relações sociais. A equiparação dos direitos da traba-
lhadora doméstica remunerada ao de outras trabalhadoras e trabalha-
dores regidos pela CLT apenas por meio da Emenda Constitucional n.
72, em 2013 e pela Lei Complementar n. 150, em 2015, parece desvelar
a limitada possibilidade de participação destes sujeitos na asserção de
valor e de reconhecimento sobre o trabalho que exercem. Assim, entre-
laça-se o valor do trabalho doméstico remunerado, o gênero e o reco-
nhecimento, em todas as suas dimensões, buscando com isso, mensurar
suas repercussões na sociedade.

2. FORMAÇÕES CONSTITUCIONAIS A SERVIÇO DA (MANUTENÇÃO


DA) ORDEM NA AMÉRICA LATINA
Na América Latina o constitucionalismo desempenhou um papel di-
ferente daquele experimentado em tantos outros lugares, nos quais os
processos constituintes ocasionaram rupturas para promover processos
de integração social, pois os processos de independência vivenciados na
região não romperam substancialmente com a estrutura sociopolítica
vertical construída pela relação entre colônia e metrópole, como expli-
cam Waldo Ansaldi e Veronica Giordano4.

4. ANSALDI, Waldo; GIORDANO, Verónica. América Latina: la construcción del orden. Tomo II:
De las sociedades de masas a las sociedades en procesos de reestructuración. Buenos Aires:
Ariel, 2012.

373
Roberta Camineiro Baggioe Sarah F. M. Weimer

Por conseguinte, a história constitucional latino-americana é per-


meada por essas incongruências. E embora a região seja uma unidade
histórica essencialmente diversa, foi constituída pela imposição de cri-
térios e padrões alheios aos que nela eram desenvolvidos até sua inva-
são pelos colonizadores europeus, que promoveram a exploração eco-
nômica e humana dos povos originários.
Dessa maneira, é incontestável que a operacionalização e as dinâ-
micas dos Estados latino-americanos independentes tenham significado
a continuidade de muitas tradições daquelas metrópoles – assim como
a manutenção de um regime político em que o poder é exercido por um
pequeno grupo, seguindo a lógica da estratificação social e refletindo
uma tradição de exercício do poder e institucionalidade dos vencedo-
res5. Como frutos inequívocos do colonialismo, os sujeitos “passam a
existir” como resultado do colonialismo, de suas brutalidades, misérias
e contradições.
Essas permanências podem ser examinadas por diversas lentes, e
na América Latina, de maneira geral, a noção de desigualdade permeou
tanto o campo político, quanto o econômico, mantendo-se forte nos pro-
jetos constitucionais instaurados no período fundacional, com a preva-
lência dos projetos conservadores – designados por Roberto Gargarella
de “cruz e espada”, pela sua capacidade de combinar violência do Estado
e valores da religião católica na manutenção da ordem institucional e
social com fortes traços coloniais6.
Ao final do século XIX, o projeto conservador se alia ao liberal con-
solidando a matriz do constitucionalismo de fusão, contemplando inte-
resses liberais na parte dogmática (previsão de direitos e liberdades que
garantissem o resguardo da autonomia individual) e interesses conser-
vadores na parte orgânica (estabelecimento de direitos políticos restrin-
gidos que implicassem na exclusão das massas nos processos de tomada
de decisão) das Constituições que emergem dessa união – alcançando,
inclusive, o Brasil Império7.

5. ANSALDI, Waldo; GIORDANO, Verónica. América Latina: la construcción del orden. Tomo I: De
la colonia a la disolución de la dominación oligárquica. Buenos Aires: Ariel, 2016, p. 37.
6. GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la Constitución: dos siglos de constitucionalis-
mo en América Latina (1810-2010). Buenos Aires: Katz, 2014, p. 49-89.
7. GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la Constitución: dos siglos de constitucionalis-
mo en América Latina (1810-2010). Buenos Aires: Katz, 2014, p. 78.

374
Cap. 15 • Cidadãs de segunda classe: …

O padrão oriundo da aliança liberal-conservadora manteve-se nos


textos constitucionais brasileiros, mesmo depois de proclamada a Repú-
blica. Os momentos históricos de lutas sociais e políticas alcançaram re-
conhecimento de direitos e de participação política – sendo a conquista
do voto universal no século XX a expressão máxima desse cenário. O que
se verifica desde o surgimento do constitucionalismo de fusão é que, de
um modo geral, a resposta do Estado aos processos de organização so-
cial tem sido a positivação, – na parte dogmática dos textos constitucio-
nais -dos direitos reivindicados. Embora, a forma de exercício do poder
e o controle das instituições que o exercem, ou a “sala de máquinas”8,
mantenha-se com as características do modelo conservador.
A partir desse breve cenário, o presente trabalho busca identificar o
tipo de cidadania que foi oportunizada à sociedade brasileira construir,
e também a narrativa que sobreveio a partir da Constituição Federal de
1988, promulgada para coroar o período de redemocratização que esta-
ria por vir.

2.1. Os (des)caminhos do constitucionalismo no Brasil: breves


notas
O uso da mão de obra escravizada transformou-se em um modelo
tão arraigado que terminou se convertendo em um modus operandi com
graves consequências. Lilia Schwarcz relembra que, por aqui, do século
XVI ao XIX, alastrou-se uma escandalosa injustiça amparada pela arti-
manha da legalidade, e em face da ausência de qualquer norma na legis-
lação que impedisse ou regulasse tal sistema, “ele se espraiou por todo
o país, entrando firme nos ‘costumes da terra’”. Isto é, imperou no país
“uma grande bastardia jurídica, a total falta de direitos de alguns ante a
imensa concentração de poderes nas mãos de outros”9.
A história constitucional fundada no constitucionalismo de fusão,
em que direitos, garantias individuais e valores como liberdade e pro-
priedade privada são afirmados ao lado de um Estado voltado à manu-
tenção da violência e das hierarquias sociais, imprime efeitos peculia-
res no território brasileiro. A semântica que compreende o conceito de
liberdade e igualdade nos textos constitucionais brasileiros, não raras
vezes, os restringirá a uma perspectiva estritamente formal.

8. GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la Constitución: dos siglos de constitucionalis-


mo en América Latina (1810-2010). Buenos Aires: Katz, 2014, p. 333.
9. SCHWARCZ, Lilian Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras,
2019, p. 27.

375
Roberta Camineiro Baggioe Sarah F. M. Weimer

Dentro dessa lógica, com a proclamação da República, tem-se, em


um primeiro momento, a positivação de direitos essencialmente civis,
enquanto os direitos políticos, como a possibilidade de votar e ser vo-
tado, eram exclusividade de apenas uma pequena parcela da sociedade
– aquela que detinha poder econômico.
Com a Constituição de 1934, mantem-se os aspectos formais, mas
há maior preocupação em garantir liberdade e igualdade em sentido
material. Sob esta perspectiva, caberia ao Estado subsidiar diferenças
sociais e suprir a população com benefícios sociais. Os direitos civis são
reafirmados e os direitos políticos ampliados, de modo que o conceito
de cidadania sofre uma expansão, havendo uma maior inclusão jurídica
– ainda que tutelada.
Os avanços alcançados no texto constitucional de 1934 foram inter-
rompidos com a chegada da Constituição de 1937, que marcou o início
da ditadura do Estado Novo, tendo caráter altamente autoritário e res-
tringindo direitos individuais e sociais previamente garantidos. A rede-
mocratização veio com a promulgação da Constituição de 1946 que, por
sua vez, combinou os princípios liberais do texto de 1891 com os avan-
ços sociais do texto de 1934.
Após quase 20 anos de um período democrático repleto de crises –
suicídio de um presidente, políticas populistas, e uma forte luta por par-
te da elite econômica e social para retomar o poder político– eclode no
ano de 1964 o golpe civil-militar que põe fim à democracia e estabelece
uma ditadura no Brasil, por mais de duas décadas10. Ao tomar o poder, o
comando militar passou a legislar por meio de “Atos Institucionais”, que
na verdade eram leis com eficácia constitucional que ignoravam pratica-
mente toda a Constituição de 1946.
O regime militar produziu uma Constituição em 1967 buscando
manter a aparência de legalidade, marca indelével de toda a história do
autoritarismo no Brasil. Em 1968, com o recrudescimento do regime
após a edição do Ato Institucional nº 5, que atribuiu ao Poder Executivo
as prerrogativas de fechamento do Congresso11 e poder praticamente ir-

10. SILVA, João Carlos Jarochinski. Análise histórica das Constituições brasileiras. Revista Ponto-
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11. SILVA, João Carlos Jarochinski. Análise histórica das Constituições brasileiras. Revista Ponto-
-e-Vírgula: Revista de Ciências Sociais, n. 10, mar. 2013, p. 236. Disponível em: <https://revis-
tas.pucsp.br/index.php/pontoevirgula/article/view/13910>. Acesso em 01 ago. 2019.

376
Cap. 15 • Cidadãs de segunda classe: …

restrito – além da suspensão do habeas corpus nos casos enquadrados


como crimes políticos, contra a segurança nacional ou contra a ordem
econômica e social –,é imposta nova carta Constitucional travestida de
emenda que, “[...] outorgada pelo Ministro da Marinha de Guerra, do
Exército e da Aeronáutica Militar, assegurava um amplo elenco de liber-
dades públicas inexistentes e prometia aos trabalhadores um pitoresco
rol de direitos sociais não desfrutáveis, que incluíam ‘colônias de férias
e clínicas de repouso’. Buscava-se na Constituição, não o caminho, mas o
desvio; não a verdade, mas o disfarce”12.
O restabelecimento do Estado Democrático de Direito ocorreu por
meio de uma transição política controlada e, a promulgação da Consti-
tuição de 1988 emerge como uma grande promessa que, contudo, não se
desvinculou dos legados históricos.

2.2. A narrativa constitucional de 1988: sobre sujeitos e cidadãos


Como já se disse, tanto na América Latina, quanto no Brasil, o Direi-
to Constitucional desempenhou um papel diferente daquele experimen-
tado em outros lugares. Aqui, os processos constituintes foram métodos
de reafirmação do status quo, de busca por uma estabilidade institucio-
nal para promover e sustentar uma sociedade de classes hierarquizadas.
A Constituição de 1988 não foge à regra.
Para Marilena Chauí, a manutenção da desigualdade social no Brasil
é uma constante, e mesmo na redemocratização, o país manteve as bases
fortes do autoritarismo, de modo que as leis pudessem ser manipuladas
como armas para preservar privilégios13, sem definir claramente direi-
tos e deveres – para quando interessasse, serem usadas como instru-
mento para repressão e opressão.
Contudo, a Constituição atual proíbe a supressão de qualquer direi-
to e garantia individual, conforme estabelecido no artigo 5º, e também
consagra o direito à igualdade14. Esta previsão constitucional prometia

12. BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a cons-
trução teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2014,
p. 28.
13. CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. In: CHAUÍ, Marilena; Rocha,
André (Org.). Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica;
Editora Fundação Perseu Abramo, 2014, p. 262.
14. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Artigo 5º Todos são iguais pe-
rante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangei-
ros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança

377
Roberta Camineiro Baggioe Sarah F. M. Weimer

garantir às mulheres a não discriminação no mercado de trabalho, re-


gras específicas para aposentadorias, igualdade na sociedade conjugal,
liberdade no planejamento familiar15 e o dever do Estado de coibir a
violência na constância das relações familiares16, entre outras previsões,
conforme Cecília Lois17. Isto é, avanços que se pretendiam não apenas na
ordem formal, mas também material.
Quanto à fruição do direito à igualdade, identificam-se empecilhos
que parecem atingir desproporcionalmente algumas categorias, são
elas: os pobres, os trabalhadores, as mulheres, e, em especial, as traba-
lhadoras mulheres e pobres – e, mais ainda, as negras18. Estes sujeitos,
segundo Florestan Fernandes, não foram integrados à sociedade por
meio do trabalho livre e tampouco pela via de acesso à educação19, mas
por um processo intenso e constante de exploração, que, por consequ-
ência, manteve as regalias da pequena parcela de privilegiados. Esse ce-
nário contradiz a teoria clássica de Thomas Humphrey Marshall, para
quem a “[...]cidadania é um status concedido àqueles que são membros
integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são
iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status”20.
Sob a compreensão de cidadania como usufruto e exercício dos di-
reitos fundamentais assegurados nos textos constitucionais, importa
contextualizar a estruturação deste conceito no processo de inclusão/
exclusão social brasileiro. Até mesmo porque, nas palavras de Gabriel
Cohn,“a esfera pública não pode ser reduzida às instituições estatais e

e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obriga-
ções, nos termos desta Constituição.
15. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Artigo 227.
16. BRASIL. Decreto n. 89.460, de 1984. Promulgada a Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Violência contra a Mulher, de 1979.
17. LOIS, Cecília Caballero. A Constituição dos Cidadãos: Participação das Mulheres no Processo
Político da Constituição de 1988. Palestra proferida no Congresso 30 anos da Constituição: o
Brasil que queremos ainda cabe na Constituição que temos? Faculdade de Direito da UFRGS,
06 a 08 de novembro de 2018. Mimeo.
18. As autoras do presente trabalho são cientes de que esta gradação não se encerra na classe
social e tampouco no gênero, tendo vista a flagrante violência e as injustiças que permeiam
as questões raciais, de sexualidade e as advindas da herança escravista. Contudo, em razão da
limitação do espaço e tempo, bem como para possibilitar maior profundidade na proposta,
optou-se por problematizar, neste momento, as categorias gênero e classe.
19. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica.
3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 150.
20. MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967,
p. 76.

378
Cap. 15 • Cidadãs de segunda classe: …

grande parte do que se refere à experiência republicana tem a ver com


a dinâmica da sociedade e a conversão da cidadania em protagonista da
ação e da decisão política”21.
Para Newton Bignotto, o cidadão – considerado enquanto membro
de uma comunidade política – é a própria essência da República22 e,
refletir sobre a questão da identidade entre os cidadãos e sobre as leis
que dão forma jurídica à comunidade política, é de suma importância.
No caso específico da cidadania brasileira, James Holston afirma que
os brasileiros não costumam falar de cidadania, mas de direitos espe-
cíficos, pois o termo cidadão não remeteria a noção de direitos ou de
ser possuidor de direitos, mas a uma condição associada ao status de
trabalhador23.
Segundo Santos, entre a Constituição de 1891 e a década de 1930,
imperou um conceito de cidadania abstrato, articulado ao ideário liberal
clássico de direito natural, em que o binômio igualdade-desigualdade
seria inerente à natureza humana, distante de qualquer ideia de equida-
de social24. Porém, no período posterior a 1930, o conceito de cidadania
sofre uma inflexão e passa de uma cidadania abstrata para uma “cidada-
nia regulada pela estratificação ocupacional do trabalho”25. Nas palavras
do autor:
Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes en-
contram se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema
de estratificação social, e que ademais, tal sistema de estratificação ocu-
pacional é definido por norma legal. Em outras palavras, são cidadãos
todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados
em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei. A ex-
tensão da cidadania se faz, pois, via regulamentação de novas profissões
e/ou ocupações, em primeiro lugar, e mediante ampliação do espaço
dos direitos associados a estas profissões, antes que por expansão dos
valores inerentes ao conceito de membro da comunidade. A cidadania

21. COHN, Gabriel. A atualidade da questão republicana no Brasil do século XXI. In: CUNHA, Ale-
xandre dos Santos; MEDEIROS, Bernardo Abreu de; AQUINO, Luseni (Org.). Estado, institui-
ções e democracia: república, livro 9, v. 1. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília:
Ipea, 2010, p. 51.
22. BIGNOTTO, Newton. Problemas atuais da teoria republicana. In: CARDOSO, Sérgio. (Org.). Re-
torno ao Republicanismo. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 36.
23. HOLSTON, James. Cidadania Insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Bra-
sil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 23.
24. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e Justiça: a política social na ordem brasileira.
Rio de Janeiro: Campus, 1987, p. 16.
25. Termo cunhado por Wanderley Guilherme dos Santos.

379
Roberta Camineiro Baggioe Sarah F. M. Weimer

está embutida na profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos


direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reconheci-
do por lei. Tornam-se pré-cidadãos, assim, todos aqueles cuja ocupação
a lei desconhece. O instrumento jurídico comprovante do contrato entre
o Estado e a cidadania regulada é a carteira profissional, que se torna,
em realidade, mais do que uma evidência trabalhista, uma certidão de
nascimento cívico.26(grifos do autor)

A ressignificação da noção de cidadania sucedeu um momento de


grande participação popular, instrumentalizado para a legitimação do
governo, por meio do gradativo estabelecimento de legislações traba-
lhistas27, de política sindical e da instituição da Justiça do Trabalho, no
período de 1930 a 1943, sob a ditadura de Getúlio Vargas.
Adalberto Cardoso, ao analisar o programa varguista de “valoriza-
ção integral do homem brasileiro”, constatou que a instituição da legis-
lação trabalhista e social transformou inteiramente a relação do Estado
brasileiro com seu povo, pois “gerou nos trabalhadores a expectativa de
proteção social, alimentando um promessa de integração cidadã”28. Para
o autor, a cidadania dizia-se regulada porque, “na maior parte do tem-
po, permaneceu como uma possibilidade, ou, mais propriamente, uma
promessa de inclusão”29 – jamais universalizada –, mas pela qual se va-
lia a pena lutar. Contudo, essa luta não estava aberta a todos da mesma
maneira, e, tanto foi, que não conseguiu ampliar direitos, nem dar-lhes a
faticidade pretendida, nem pelos que a instituíram, nem pelos próprios
trabalhadores.
É o caso das trabalhadoras domésticas remuneradas, que salvo por
algumas leis esparsas, estavam à margem da promessa de inclusão so-
cial, pois foram relegadas pela legislação trabalhista e, inclusive, pela
Constituição Federal de 1988, que não as equiparou aos demais traba-
lhadores – limitando-as ao status de cidadãs de segunda classe.

26. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e Justiça: a política social na ordem brasileira.
Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1987, p. 75-76.
27. BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Traba-
lho.
28. CARDOSO, Adalberto. Uma Utopia Brasileira: Vargas e a construção do Estado de Bem-Estar
numa Sociedade Estruturalmente Desigual. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janei-
ro, v. 53, n. 4, 2010, p. 776.
29. CARDOSO, Adalberto. Uma Utopia Brasileira: Vargas e a construção do Estado de Bem-Estar
numa Sociedade Estruturalmente Desigual. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janei-
ro, v. 53, n. 4, 2010, p. 793-794.

380
Cap. 15 • Cidadãs de segunda classe: …

3. A LUTA PELO DIREITO A TER DIREITOS

No Brasil, a extensão dos direitos civis, sociais e políticos para a


classe trabalhadora foi fruto de um longo processo e, antes de ser uma
conquista, constituiu-se enquanto promessa, mantendo parcela consi-
derável da sociedade – as domésticas – alheia ao reconhecimento e ao
exercício da cidadania, pois “ter direitos” era um pressuposto restrito
apenas aos trabalhadores formais.

A isso, soma-se a ideia deque a divisão do trabalho por gênero abar-


ca duas noções principais: inicialmente, a de que existem trabalhos de
homens e trabalhos de mulheres na sociedade; e, depois, de que a socie-
dade, assim como os divide, também os valora de modo distinto. Dessa
forma, para Alice Abreu et al. há uma hierarquização, na qual o trabalho
dos homens vale mais do que o das mulheres, entendendo que esse “va-
lor” se expressa não somente em diferenças salariais, mas também em
distinções sociais30.

No ponto seguinte caberá, portanto, a apresentação – em linhas ge-


rais – do perfil da trabalhadora que exerce o serviço doméstico, e, tam-
bém, a definição deste. Em seguida, tem-se a reconstrução histórico-le-
gislativa do processo de afirmação de direitos desta categoria.

3.1. Serviço doméstico: que cara tem?

Helena Hirata recorda que a estruturação da divisão dos espaços


onde o trabalho acontece separa, de um lado, a esfera privada repre-
sentada no trabalho doméstico e, do outro, as diversas unidades de
produção presentes na esfera pública. Essa fragmentação corresponde
também à divisão sexual do trabalho, cabendo ao homem o trabalho pro-
dutivo, remunerado e reconhecido socialmente para além do seu domi-
cilio, e restando às mulheres os serviços domésticos, a maternidade e a
educação dos filhos – em outras palavras, o trabalho reprodutivo e sem
qualquer remuneração31.

30. ABREU, Alice Rangel de Paiva; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa (Org.). Gênero e traba-
lho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais. São Paulo: Boitempo, 2016.
31. HIRATA, Helena. Nova divisão sexual do trabalho: um olhar voltado para a empresa e a socie-
dade. São Paulo: Editora Boitempo, 2002.

381
Roberta Camineiro Baggioe Sarah F. M. Weimer

No mesmo viés, Alda Facio32, aponta que o patriarcado33 é o único


tipo de sociedade que existe no mundo, e, embora apresente diversas
variações, sejam elas capitalistas, socialistas, terceiro-mundistas ou co-
lonialistas, a verdade é que em todos esses sistemas as mulheres têm
suas histórias invisibilizadas e são excluídas do poder.
A exemplo disso tem-se o trabalho doméstico no Brasil, que é uma
das ocupações mais antiga e mais exercida por mulheres, predominan-
temente, pobres, negras e com histórico de migração de cidades do inte-
rior para os grandes centros, como informam os dados divulgados pelo
Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos,
em 201534.
Essa ocupação, segundo Hildete Pereira de Melo35, tem vínculos for-
tes com o passado de servidão, pois apenas nas últimas décadas o tra-
balho doméstico passou a ser “profissionalizado”, isto é, realizado por
empregadas, enquanto, ao longo da história, era realizado por criadas,
servas, agregadas e mesmo pelas mulheres da família.
Por remontar não só ao período da escravidão, mas ao momento
que seguiu a própria abolição da escravatura, a prestação de serviço do-
méstico tornou-se a principal fonte de emprego das mulheres que até
entãoeram escravizadas. Em decorrência disso, o trabalho era cercado
de precariedades, inclusive em relação à sua contrapartida, que por ve-
zes traduzia-se em “casa e comida”, e não em dinheiro. A propósito disso,
Lilia Schwarcz esclarece que mesmo com a abolição formal da escravi-
dão, por meio da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, esta “não previu

32. FACIO MONTEJO, Alda. Cuando el género suena cambios trae: una metodología para el análisis.
San José de Costa Rica: ILANUD, 1992, p. 30.
33. Nos exatos termos da autora: “Patriarcado es un término que se utiliza de distintas maneras,
para definir la ideología y estructuras institucionales que mantienen la opresión de las muje-
res. Es un sistema que se origina en la familia dominada por el padre, estructura reproducida
en todo el orden social y mantenida por el conjunto de instituciones de la sociedad política y
civil, orientadas hacia la promoción del consenso en torno a un orden social económico, cul-
tural, religioso y político, que determinan que el grupo, casta o clase compuesto por mujeres,
siempre está subordinado al grupo, casta o clase compuesto por hombres, aunque pueda ser
que una o varias mujeres tengan poder, hasta mucho poder como las reinas y primeras minis-
tras, o que todas las mujeres ejerzan cierto tipo de poder como lo es el poder que ejercen las
madres sobre los y las hijas”. FACIO MONTEJO, Alda. Cuando el género suena cambios trae: una
metodología para el análisis. San José de Costa Rica: ILANUD, 1992, p. 28.
34. DIEESE. Trabalho Doméstico Remunerado. Sistema PED: Pesquisa de Emprego e Desemprego.
Regiões Metropolitanas, 2015.
35. MELO, Hildete Pereira de. O Serviço Doméstico remunerado no Brasil: de criadas a trabalhado-
ras. Rio de Janeiro: IPEA, 1998, p. 1.

382
Cap. 15 • Cidadãs de segunda classe: …

nenhuma forma de integração das populações recém-libertas, inaugu-


rando um período de pós-emancipação, que teve data precisa para co-
meçar, mas não para terminar”36.
Não surpreende, portanto, que o serviço doméstico remunerado no
Brasil, conforme Melo, ocupa mão de obra predominantemente femini-
na, pois “constitui culturalmente o lugar da mulher e a execução dessas
tarefas não exige qualificação”37, e, por isso, é o refúgio daquelas – via
de regra – com baixa escolaridade e que restaram à margem da inclusão
social.
Quanto à definição do que se entende por trabalho doméstico, So-
lange Sanches esclarece que:
Ele refere-se aos afazeres realizados por uma pessoa em troca de re-
muneração (em dinheiro ou espécie, como ainda é corrente em várias
partes do mundo). Esses afazeres compreendem o cuidado com o lar, o
que envolve a realização de um grande e variado conjunto de atividades:
serviços de limpeza, arrumação, cozinha, cuidado das roupas e outros
itens de vestuário, e, em muitos casos, cuidado de crianças, idosos ou
mesmo plantas e animais domésticos.38
Atualmente a legislação brasileira39 define o trabalho doméstico re-
munerado como aquele realizado por maior de 18 anos que presta servi-
ços de natureza contínua e de finalidade não-lucrativa à outra pessoa ou
família, no espaço residencial destas, enquanto cozinheiro, governanta,
babá, lavadeira, faxineiro, vigia, motorista particular, jardineiro, acom-
panhante de idosos, entre outras. De modo que, o trabalhador doméstico
se distingue em razão do caráter não-econômico da atividade que exerce
no âmbito residencial do empregador.
Apesar disso, por conjugar categorias historicamente desvalori-
zadas – mulheres, negras e pobres – só em 2013, através da Emenda à
Constituição n. 72, e da Lei Complementar n. 150, em 2015, o trabalho

36. SCHWARCZ, Lilian Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras,
2019, p. 30.
37. MELO, Hildete Pereira de. O Serviço Doméstico remunerado no Brasil: de criadas a trabalhado-
ras. Rio de Janeiro: IPEA, 1998, p. 1.
38. SANCHES, Solange. Trabalho doméstico: desafios para o trabalho decente. Revista de Estudos
Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 3, p. 879-888, dez. 2009, p. 880. Disponível em <http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2009000300016&lng
=en&nrm=iso>. Acesso em: 04 ago. 2019.
39. BRASIL. Ministério da Economia, Secretaria de Trabalho. Cartilha de Trabalho Doméstico, 22
abr. 2016. Disponível em <http://trabalho.gov.br/mais-informacoes/trabalho-domestico >.
Acesso em: 04 ago. 2019.

383
Roberta Camineiro Baggioe Sarah F. M. Weimer

doméstico remunerado aproximou-se da integralidade dos direitos tra-


balhistas vigentes, à época, no país. Cabe, então, apresentar os descami-
nhos das leis que ora marginalizaram e ora equipararam as empregadas
domésticas aos demais trabalhadores.

3.2. Os percursos legislativos


O trabalho doméstico remunerado foi a ocupação que mais cresceu
no país, desde 1980, segundo Márcio Pochmann40. E apesar do montante
de trabalhadoras e trabalhadores que compõem a categoria, a forma-
lização da profissão de empregada doméstica no Brasil foi tardia, haja
vista a Consolidação das Leis do Trabalho, que entrara em vigor no ano
de 1943, expressamente excluir a categoria do seu âmbito de proteção41.
Élen Schneider relembra que esse processo não ocorreu sem a or-
ganização da categoria pela luta de reconhecimento aos seus direitos, já
que desde 1968, sob a liderança de Laudelina de Campos Mello, “traba-
lhadoras domésticas mobilizaram-se realizando conferências nacionais
para tratar da formalização e valorização do trabalho doméstico”42. Con-
tudo, apesar das pressões que o movimento de trabalhadoras domésti-
cas exerceu para que se alcançasse a equiparação de direitos da catego-
ria, suas vozes eram constantemente silenciadas e suas reivindicações
sufocadas.
Ainda assim, apenas em 1972, por meio da Lei n. 5.859, regulamen-
tada pelo Decreto n. 71.885, de 197343, foi reconhecido o direito à car-
teira assinada e os benefícios da Previdência Social, mediante sua filia-
ção, além de definir o empregado doméstico44 como “aquele que presta

40. POCHMANN, Márcio. Sobre a Nova Condição do Agregado Social no Brasil: algumas conside-
rações. Revista Paranaense de Desenvolvimento, Curitiba, n. 105, p. 05-23, jul-dez, 2003, p. 18.
41. BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Traba-
lho. Art. 7º Os preceitos constantes da presente Consolidação salvo quando fôr em cada caso,
expressamente determinado em contrário, não se aplicam: a) aos empregados domésticos,
assim considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não-econômica
à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas;(...).
42. SCHNEIDER, Élen Cristiane. O Valor Social do Trabalho Doméstico e a Justiça Consubstancial.
Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Porto Alegre, 2016,
f. 189.
43. BRASIL. Decreto n. 71.885, de 9 de março de 1973. Aprova o Regulamento da Lei n. 5.859, de
11 de dezembro de 1972, que dispõe sobre a profissão de empregado doméstico, e dá outras
providências.
44. É digno de nota que apesar da categoria ser composta quase que absolutamente por mulhe-
res, o gênero do sujeito sobre quem a legislação versa é masculino.

384
Cap. 15 • Cidadãs de segunda classe: …

serviços de natureza continua e de finalidade não lucrativa a pessoa


ou à família, no âmbito residencial destas”45 e estabelecer que para sua
contratação deveriam ser apresentados os seguintes documentos: I –
Carteira de Trabalho e Previdência Social; II – Atestado de Boa Conduta
emitido por autoridade policial, ou por pessoa idônea, a juízo do em-
pregador, e; III – Atestado de Saúde, subscrito por autoridade médica
responsável, a critério do empregador doméstico46.
Com a promulgação da atual Constituição no final da década de 1980
– ocasião em que o movimento das trabalhadoras domésticas também
buscou articulação junto às mulheres que compunham a constituinte,
e, apesar de contribuírem nas discussões públicas, tiveram seus pleitos
limitadamente atendidos47 – tem-se a afirmação do princípio da igual-
dade, logo na abertura do título “dos direitos e garantias fundamentais”,
segundo o qual, todos são iguais perante a lei48. Contudo, o artigo 7º, ao
estabelecer os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais ao longo de
34 incisos, no parágrafo único do dispositivo assegurou– originalmente
– à categoria dos trabalhadores domésticos apenas alguns, dentre eles:
o salário mínimo, a irredutibilidade de salário, o repouso semanal re-
munerado, o gozo de férias anuais remuneradas, licença à gestante (sem
prejuízo do emprego e do salário, com duração de 120 dias), licença-pa-
ternidade (nos termos fixados em lei), o aviso-prévio, a aposentadoria e
a integração à Previdência Social.
Já nos anos 2000, a Lei n. 10.208/2001 acrescentou dispositivos à
legislação de 1972, tais como o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
(FGTS) facultativo a partir do requerimento do empregador e, também,
o pagamento do seguro desemprego em casos de demissão por justa
causa49. Com a edição da Lei n. 11.324, em 2006, os trabalhadores do-
mésticos firmaram direito a férias de 30 dias, adquiriram a estabilidade
para gestantes, alcançaram direito aos feriados civis e religiosos, além

45. BRASIL. Decreto n. 71.885, de 9 de março de 1973. Art. 3º, inciso I.


46. BRASIL. Decreto n. 71.885, de 9 de março de 1973. Art. 4º.
47. SCHNEIDER, Élen Cristiane. O Valor Social do Trabalho Doméstico e a Justiça Consubstancial.
Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Porto Alegre, 2016,
f. 271-272.
48. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Artigo 5º.
49. BRASIL. Lei 10.208, de 23 de março de 2001. Acresce dispositivos à Lei no 5.859, de 11 de
dezembro de 1972, que dispõe sobre a profissão de empregado doméstico, para facultar o
acesso ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e ao seguro-desemprego.

385
Roberta Camineiro Baggioe Sarah F. M. Weimer

da proibição de descontos do salário pelo fornecimento de moradia, ali-


mentação e produtos de higiene pessoal utilizados no local de trabalho50.
Algumas articulações internacionais sobre o tema resultaram em
novas legislações internas, como o Decreto n. 6.48151, de 2008, em cum-
primento à Convenção n. 182 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) de 1999, que instituiu o trabalho doméstico infantil como uma das
piores formas de trabalho infantil no país, proibindo-o para menores
de 18 anos. Em 2011 foi criada a agenda nacional do trabalho decente,
específica para o trabalho doméstico, com vistas a contemplar a Con-
venção n. 189 e a Recomendação n. 201 Sobre Trabalho Decente para
Trabalhadoras e Trabalhadores Domésticos da OIT, tendo como princi-
pal objetivo estabelecer os mesmos direitos de outros trabalhadores à
categoria.
Cabe destacar que o movimento de trabalhadoras domésticas na
luta por direito e reconhecimento sempre existiu, contudo, em face do
autoritarismo que permeia a sociedade brasileira e as relações que a
compõe, sua atuação foi limitada e, por vezes, emudecida; mas persis-
tente, fez-se ressoar no Congresso Nacional.
Em 14 de abril de 2010, o Deputado Federal Carlos Bezerra, vincu-
lado à época, ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB)
do Mato Grosso, apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
que pretendia a revogação do parágrafo único do artigo 7º da Constitui-
ção Federal, para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre
os empregados domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais.
A Proposta foi numerada como 478 e, na sua fundamentação, sustentava
não haver justificativa ética para manter por mais tempo a iniquidade
entre os trabalhadores.
Na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, em junho
de 2011, recebeu parecer favorável, seguindo então, para a Comissão
Especial de Igualdade de Direitos Trabalhistas, que elaborou um texto
substitutivo que não revogaria, mas alteraria a redação do dispositivo

50. BRASIL. Lei n. 11.324, de 19 de julho de 2006. Altera dispositivos das Leis nº s 9.250, de 26 de
dezembro de 1995, 8.212, de 24 de julho de 1991, 8.213, de 24 de julho de 1991, e 5.859, de
11 de dezembro de 1972; e revoga dispositivo da Lei nº 605, de 5 de janeiro de 1949.
51. BRASIL. Decreto n. 6.481, de 12 de junho de 2008. Regulamenta os artigos 3o, alínea “d”, e 4o
da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que trata da proibição das
piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação, aprovada pelo Decreto
Legislativo no 178, de 14 de dezembro de 1999, e promulgada pelo Decreto no 3.597, de 12 de
setembro de 2000, e dá outras providências.

386
Cap. 15 • Cidadãs de segunda classe: …

em questão, para que fossem incluídos outros direitos entre os assegu-


rados aos trabalhadores domésticos, em 07 de novembro de 2012. Logo,
a PEC n. 478 foi à votação em sessão extraordinária no plenário, em 21
de novembro de 2012, sendo aprovado, em primeiro turno, o Substitu-
tivo adotado pela Comissão Especial, com 359 votos a favor, do total de
361 presentes52. Em 04 de dezembro de 2012, foi aprovada, em segundo
turno, a PEC que recebeu 347 votos favoráveis, dois votos contrários e
duas abstenções53.
Dando continuidade ao processo legislativo, a proposta foi enviada
ao Senado Federal, passando a tramitar com nova numeração – PEC n.
66. Em 13 de março de 2013, a Comissão de Constituição, Justiça e Cida-
dania emitiu parecer favorável, e, em seguida, no dia 19 do mesmo mês,
a proposta foi aprovada em primeiro turno, recebendo votos a favor de
todos os 70 senadores e senadoras presentes, e, em 26 de março, foi
confirmada sua aprovação em segundo turno. No início do mês seguinte,
em sessão conjunta do Congresso Nacional, foi promulgada a Emenda
Constitucional n. 72, de 201354.
A aprovação da popularmente conhecida “PEC das domésticas” foi
responsável por alterar o parágrafo único do artigo 7º da Constituição
brasileira, garantindo aos trabalhadores domésticos os mesmos direitos
conquistados por outras classes trabalhadoras como: relação de empre-
go protegida contra despedida arbitrária; seguro-desemprego; fundo de
garantia do tempo de serviço; salário mínimo; piso salarial proporcional
a complexidade do trabalho; irredutibilidade do salário; décimo terceiro
salário; salário-família; duração do trabalho normal de oito horas diá-
rias e quarenta e quatro semanais; repouso semanal remunerado, pre-
ferencialmente aos domingos; remuneração do serviço extraordinário
superior à do normal; gozo de férias anuais; licença à gestante com du-
ração de cento e vinte dias e licença paternidade; aviso prévio propor-
cional ao tempo de serviço; redução dos riscos inerentes ao trabalho; e
aposentadoria.

52. Os votos contrários foram dos deputados Roberto Balestra (PP-GO) e Zé Vieira (PR-MA).
53. As abstenções foram dos deputados Aracely de Paula (PR-MG) e Penna (PV-SP). Os votos con-
trários foram dos deputados Vanderlei Siraque (PT-SP) e Jair Bolsonaro (PP-RJ), atualmente
chefe do Executivo.
54. BRASIL. Emenda Constitucional n. 72, de 2 de abril de 2013. Altera a redação do parágrafo
único do art. 7º da Constituição Federal para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas
entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais.

387
Roberta Camineiro Baggioe Sarah F. M. Weimer

Em seguida, para que estes direitos fossem disponibilizados indivi-


dualmente, a então Presidenta da República, Dilma Roussef, sancionou
a Lei Complementar n. 150, de 201555, para regulamentar as mudanças
previstas na Emenda Constitucional n. 72, assegurando, finalmente, à
categoria das empregadas domésticas igualdade formal em relação aos
demais trabalhadores.

4. INTEGRAÇÃO SOCIAL E IGUALDADE LEGISLATIVA: POR QUE AS


LUTAS POR RECONHECIMENTO DEVEM CONTINUAR PARA AS
TRABALHADORAS DOMÉSTICAS?
Da reconstrução histórico-legal dos direitos das trabalhadoras do-
mésticas, como exposto acima, verifica-se, gradualmente, a assunção de
tratamentos igualitários à categoria, por meio de mudanças na ordem
jurídica. Contudo, a transformação da legislação não repercute nem ime-
diatamente e, tampouco, necessariamente na modificação do imaginário
social que impõe o estigma da desvalorização do serviço doméstico e
das trabalhadoras que o exercem.
Para compreender esse processo e de que modo a longa história de
negação de igualdade jurídica pode ter impactado os processos de inte-
gração social, o tema será analisado a partir das premissas teóricas da
Sociologia do Reconhecimento de Axel Honneth que, inspirado nos es-
tudos de juventude de Friedrich Hegel e na teoria da formação da iden-
tidade de George Herbert Mead, construiu uma tipologia dos padrões
de reconhecimento intersubjetivo da identidade – aqui materializado na
relação empregador e empregado, e deste último com sua comunidade
de valores.

4.1. A Sociologia do Reconhecimento de Axel Honneth


Com base em Hegel, Axel Honneth considera que nas sociedades
modernas existem três esferas decisivas para a integração e a reprodu-
ção social: a família, a sociedade civil e o Estado56. Em seu livro “Luta

55. BRASIL. Lei Complementar n. 150, de 1º de junho de 2015. Dispõe sobre o contrato de trabalho
doméstico; altera as Leis no 8.212, de 24 de julho de 1991, no 8.213, de 24 de julho de 1991,
e no 11.196, de 21 de novembro de 2005; revoga o inciso I do art. 3o da Lei no 8.009, de 29
de março de 1990, o art. 36 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei no 5.859, de 11 de
dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei no 9.250, de 26 de dezembro 1995; e dá
outras providências.
56. HONNETH, Axel. A luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Pau-
lo: 34, 2003.

388
Cap. 15 • Cidadãs de segunda classe: …

Por Reconhecimento – A Gramática Moral dos Conflitos Sociais”, o autor


sustenta a tese de que no seio de toda sociedade há uma luta constan-
te dos indivíduos objetivando o reconhecimento intersubjetivo de suas
identidades.
E essa luta seria decorrente de três dimensões da vida do indivíduo;
o amor, o direito e a solidariedade. Assim, em cada uma dessas esferas
o reconhecimento intersubjetivo assume determinada forma, ou seja:
o reconhecimento pelo amor, o reconhecimento jurídico e o reconheci-
mento pela estima social, ou, ainda, pela contribuição de cada indivíduo
à coletividade.
A primeira esfera, a do amor, estaria contemplada nas relações pri-
márias, responsáveis pela autoconfiança do ser, no seio das relações
familiares e de amizade, que ensejariam uma dedicação emocional. A
segunda dimensão, o direito, contemplaria as relações responsáveis
pelo autorrespeito, aquelas em que o indivíduo se enxergaria como um
sujeito de direito em face de sua relação com o outro. Por sua vez, a di-
mensão referente à solidariedade estaria contemplada nas relações do
sujeito com a coletividade, em que a valorização da intersubjetividade
traduziria a importância valorativa daquele membro para a sociedade,
objetivando mensurar a estima social daquele indivíduo.
Contudo, “esse reconhecimento não é resultante de generosidade
generalizada, mas sim de processos de luta que em cada esfera assu-
mem formas distintas”57 e que podem também ser recusados. Sob esta
última hipótese, ocorreria a negação do reconhecimento na qual, res-
pectivamente, a primeira esfera teria como base os maus-tratos corpo-
rais que “destroem a autoconfiança elementar de uma pessoa”58, a se-
gunda seria formada pelas “experiências de rebaixamento que afetam
o autorrespeito”59, ou seja, pela exclusão do indivíduo do sistema de
garantias de direitos e, por fim, a terceira, que refere-se à “depreciação
de modos de vida individuais ou coletivos”60, atingindo, assim, a autoes-
tima.

57. SOBOTTKA, Emil. A. Liberdade, reconhecimento e emancipação: raízes da teoria da justiça de


Axel Honneth. Sociologias, v. 15, n. 33, p. 142–168, ago. 2013, p. 156.
58. HONNETH, Axel. A luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Pau-
lo: 34, 2003, p. 216.
59. HONNETH, Axel. A luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Pau-
lo: 34, 2003, p. 216.
60. HONNETH, Axel. A luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Pau-
lo: 34, 2003, p. 217.

389
Roberta Camineiro Baggioe Sarah F. M. Weimer

Assim, com base nessas três formas de reconhecimento – e também


na possibilidade de sua negação – é possível analisar diversos aspectos
da realidade das trabalhadoras domésticas no país, inclusive a insufici-
ência do reconhecimento legal à igualdade quando os padrões de nega-
ção do reconhecimento seguem persistentes nas outras esferas.
Para Honneth, os indivíduos legitimamente aguardam que os valo-
res que “orientam normativamente as interações dentro dela (na socie-
dade moderna) sejam efetivados no cotidiano”61, de modo que quando
ocorre a frustração dessa expectativa, o sujeito se percebe injustiçado. A
ausência de justiça diz respeito a condições e fatores muito mais com-
plexos que envolvem estruturas econômicas, legados históricos, ações
de indivíduos e instituições.
Logo, o não reconhecimento da dimensão do direito pelo indiví-
duo resulta no que o autor denominou como “morte social”, que seria
o desrespeito a direitos básicos e comuns a todos os membros de uma
sociedade62, direitos ditos de cidadania, ou seja, liberdade, participação
política, direitos sociais e de bem-estar. Para o autor:
[S]ó com o desacoplamento entre as pretensões jurídicas individuais e
as atribuições sociais ligadas ao status se origina o princípio de igual-
dade universal, que daí em diante vai submeter toda ordem jurídica
ao postulado de não admitir mais, em princípio, exceções e privilégios.
Uma vez que essa exigência se refere ao papel que o indivíduo detém
como cidadão, com ela a ideia de igualdade assume ao mesmo tempo o
significado de ser membro “com igual valor” de uma coletividade políti-
ca: independentemente das diferenças no grau de disposição econômi-
ca, cabem a todo membro da sociedade todos os direitos que facultam o
exercício igual de seus interesses políticos63.
Isso significa que não se pode mais reduzir o postulado da cidada-
nia a uma simples questão de tratamento igualitário, especialmente no
âmbito formal, pois o reconhecimento desse status necessita ultrapassar
a barreira do direito e chegar à solidariedade. Essa premissa implica-
ria, portanto, que todos se reconhecessem enquanto sujeitos, e, conse-
quentemente, como sujeitos de direito, pois, nas palavras de Honneth
“um sujeito é respeitado se encontra reconhecimento jurídico não só na

61. SOBOTTKA, Emil. A. Liberdade, reconhecimento e emancipação: raízes da teoria da justiça de


Axel Honneth. Sociologias, v. 15, n. 33, p. 142–168, ago. 2013, p. 157.
62. HONNETH, Axel. A luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Pau-
lo: 34, 2003, p. 189.
63. HONNETH, Axel. A luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Pau-
lo: 34, 2003, p. 190.

390
Cap. 15 • Cidadãs de segunda classe: …

capacidade abstrata de poder orientar-se por normas morais, mas tam-


bém na propriedade concreta de merecer o nível de vida necessário para
isso”64.

4.2. O (não) reconhecimento das trabalhadoras domésticas sob o


prisma da solidariedade
Por meio do trabalho, o sujeito busca sua identidade e vivencia a
dimensão do reconhecimento social, pois a satisfação de ver-se em sua
própria obra não pode ocorrer sem o olhar ou o reconhecimento do
outro. Nesse sentido, Christiane Silva et al. esclarecem que trabalhar é
também estar inscrito socialmente em um grupo de pertencimento, que
através da identificação, é o que possibilita ou não o reconhecimento
intersubjetivo, pois é o trabalho que permite ao sujeito “sair de si”, esta-
belecendo relações e construindo algo com e para o outro65. Por isso, a
relação sujeito-sociedade encontra-se na base da compreensão do mun-
do do trabalho e do sujeito trabalhador – isto é, as dimensões do direito
e da solidariedade prescritas por Honneth, pois a autorrealização e o
sentimento de autoestima decorrem do trabalho.
Assim, retoma-se a noção de cidadania regulada que garante a exis-
tência de um pré-cidadão criando um modelo dissociado tanto dos direi-
tos políticos quanto das regras de equivalência jurídica, mas que se tra-
duz na expectativa de alcançar determinado emprego e, a partir de então,
ser reconhecido como portador de direitos. Isto é, a cidadania define-se
através dos direitos sociais, que são transmitidos “gratuitamente”como
uma espécie de gratificação pelo trabalho exercido. Porém, a ocupação
laboral de grande parte das mulheres – diga-se de passagem, majorita-
riamente, pobres e negras – não foi inscrita no rol da legislação traba-
lhista, impossibilitando, inclusive, a expectativa de que se estas se vis-
sem e fossem reconhecidas.
Partindo do pressuposto de que a concessão social de direitos pode
ser uma forma de avaliar se um sujeito é membro completamente acei-
to de sua coletividade, o longo período de desamparo jurídico ao qual
a categoria das trabalhadoras domésticas foi relegada oferece noções

64. HONNETH, Axel. A luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Pau-
lo: 34, 2003, p. 193.
65. SILVA, Christiane L. L; ARAÚJO, José N. G.; MOREIRA, Maria I. C.; BARROS, Vanessa A. O Tra-
balho de Empregada Doméstica e seus Impactos na Subjetividade. Psicologia em Revista, Belo
Horizonte, v. 23, n. 1, p. 454-470, jan. 2017, p. 461.

391
Roberta Camineiro Baggioe Sarah F. M. Weimer

importantes de recusa do reconhecimento: a desvalorização social desta


atividade profissional e a manutenção das condições de desigualdade
em termos de direitos.
Para Christiane Silva et al. a discriminação relativa ao trabalho do-
méstico está estreitamente relacionada à condição escrava e, conse-
quentemente, à sua desvalorização social. Isso porque, pelo tempo em
que vigorou o sistema escravocrata, a associação da posição social à
identidade racial indicava certa equivalência entre a cor e o exercício
de determinadas atividades, ou seja, ser escravo significava ser negro
e as atividades realizadas pelos negros, na maioria das vezes, eram ati-
vidades desprestigiadas, por isso, “a assimilação da condição social da
empregada doméstica à sua identidade étnico-racial permanece no Bra-
sil contemporâneo”66. Ainda, soma-se a isso a questão de gênero, pois
é uma atividade exercida majoritariamente pelas mulheres no espaço
privado.
E em razão da conjugação dos vários marcadores de desvaloriza-
ção social, a categoria de trabalhadoras domésticas atravessou décadas
de preterimento em relação aos demais trabalhadores. Ao passo que as
demais categorias foram forjadas por meio da promessa de integração
social através da carteira de trabalho, que para muitos representou seu
nascimento cívico, as domésticas foram mantidas fora deste projeto.
Passados 70 anos desde a regulamentação das leis do trabalho, ape-
nas em 2013, as trabalhadoras domésticas foram equiparadas aos de-
mais trabalhadores, tendo seus direitos ampliados por meio da Emenda
à Constituição n. 72, e pela Lei Complementar n. 150/2015, que regula-
mentou os direitos da categoria.
Contudo, apesar do recente reconhecimento jurídico dessas traba-
lhadoras, os resultados das pesquisas realizadas pelo Instituto Brasi-
leiro de Geografia e Estatística e pela Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios, mostram que atualmente o número de profissionais com
carteira assinada é menor do que no período anterior à aprovação da
PEC das domésticas, apesar do número de trabalhadoras domésticas ter
crescido desde 2014.

66. SILVA, Christiane L. L; ARAÚJO, José N. G.; MOREIRA, Maria I. C.; BARROS, Vanessa A. O Tra-
balho de Empregada Doméstica e seus Impactos na Subjetividade. Psicologia em Revista, Belo
Horizonte, v. 23, n. 1, p. 454-470, jan. 2017, p. 455.

392
Cap. 15 • Cidadãs de segunda classe: …

Estes dados vão ao encontro do que Lilian Schwarcz afirma, isto é,


“o aumento da percepção social da igualdade, com a inclusão de novos
sujeitos políticos, muitas vezes acaba por gerar insatisfação em setores
da sociedade que tendem a considerar o ‘outro’ como menos legítimo e
dessa maneira lhe negam o direito a uma cidadania plena, condicionada
pela ‘diferença’ que ostentam”67. Em outras palavras, ainda que sobreve-
nha a inscrição jurídica da dimensão do reconhecimento, uma sociedade
de passado escravocrata que manteve suas hierarquias sociais intocadas
não se desapega facilmente de seus preconceitos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Voltando o olhar para a trajetória histórico-legal da equiparação das
trabalhadoras domésticas em relação aos demais trabalhadores, esse
artigo buscou analisar a ligação entre o reconhecimento e o não-reco-
nhecimento dos indivíduos em face dos direitos de cidadania que, conse-
quentemente, formam minorias entre os que detém e os que não detém
o status de cidadão, pois estão (ou já foram) privados dos direitos.
Valendo-se do conceito de cidadania regulada que define como cida-
dãos aqueles indivíduos que exercem profissões definidas e reconheci-
das por lei, a caracterização de quem é cidadão ou não, está intimamente
relacionada com o reconhecimento da ocupação exercida pelo ordena-
mento jurídico.
Portanto, apesar da legislação trabalhista ter representado um gran-
de avanço, a associação que ela faz entre cidadania e ocupação, impôs
mais um obstáculo ao reconhecimento das trabalhadoras domésticas
enquanto sujeitos de direitos – não bastasse o preconceito pela herança
escravocrata que carrega a ocupação e, ainda, a discriminação pelo gê-
nero das trabalhadoras.
A esse propósito, chama a atenção que mesmo com a promulgação
da Constituição Federal de 1988 que enaltecia o princípio da igualdade
entre todas as pessoas, ainda assim, a categoria das domésticas segue
sendo deixada à margem dessa promessa de inclusão social.
Desse modo, apesar de incrivelmente tardia, graças à Emenda
Constitucional n. 72/2013 e à Lei Complementar n. 150/2015, tem-se

67. SCHWARCZ, Lilian Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras,
2019, p. 174-175.

393
Roberta Camineiro Baggioe Sarah F. M. Weimer

a ampliação dos direitos das trabalhadoras domésticas, finalmente, ele-


vando-as à posição de sujeitos de direito, juridicamente reconhecidas.
Contudo, como mostram os dados supramencionados, anos após a apro-
vação da lei, essa categoria só aumenta e muitas trabalhadoras ainda
seguem na informalidade, pois não basta escrever direitos para a supe-
ração da desigualdade social, e, tampouco para romper coma herança
escravocrata da sociedade brasileira.

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5.859, de 11 de dezembro de 1972, que dispõe sobre a profissão de empregado
doméstico, e dá outras providências.
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de dezembro de 1972, que dispõe sobre a profissão de empregado doméstico, para
facultar o acesso ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e ao seguro-
-desemprego.
BRASIL. Lei n. 11.324, de 19 de julho de 2006. Altera dispositivos das Leis nº s 9.250,
de 26 de dezembro de 1995, 8.212, de 24 de julho de 1991, 8.213, de 24 de julho
de 1991, e 5.859, de 11 de dezembro de 1972; e revoga dispositivo da Lei nº 605,
de 5 de janeiro de 1949.
BRASIL. Decreto n. 6.481, de 12 de junho de 2008. Regulamenta os artigos 3o, alínea
“d”, e 4o da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que
trata da proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua
eliminação, aprovada pelo Decreto Legislativo no 178, de 14 de dezembro de 1999,
e promulgada pelo Decreto no 3.597, de 12 de setembro de 2000, e dá outras pro-
vidências.
BRASIL. Emenda Constitucional n. 72, de 2 de abril de 2013. Altera a redação do
parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal para estabelecer a igualdade de

394
Cap. 15 • Cidadãs de segunda classe: …

direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores


urbanos e rurais.
BRASIL. Lei Complementar n. 150, de 1º de junho de 2015. Dispõe sobre o contrato
de trabalho doméstico; altera as Leis no 8.212, de 24 de julho de 1991, no 8.213, de
24 de julho de 1991, e no 11.196, de 21 de novembro de 2005; revoga o inciso I do
art. 3o da Lei no 8.009, de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei no 8.213, de 24 de
julho de 1991, a Lei no 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12
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